Abuso sexual e violações de freiras por padres católicos na Índia têm décadas, escreve AP

[dropcap]U[/dropcap]ma investigação da agência de notícias Associated Press denuncia hoje uma série de abusos sexuais e violações cometidos sobre freiras na Índia durante décadas por padres que contaram com o silêncio cúmplice da hierarquia católica.

Quase duas dúzias de freiras e ex-freiras queixam-se de repetidas violações e de uma hierarquia católica que pouco fez para as proteger, ao mesmo tempo que detalham frequentes situações de assédio sexual, existindo ainda relatos de sacerdotes que afirmam terem tido conhecimento directo deste tipo de incidentes.

Ainda assim, o problema é encoberto por uma cultura do silêncio. Muitas freiras acreditam que o abuso é comum e que a maioria das ‘irmãs’ pode pelo menos dizer que se defendeu já dos avanços sexuais de um padre, enquanto algumas dizem ter a convicção de que os episódios são raros.

Quase ninguém discute o assunto abertamente e a maioria só fala na condição de não serem identificadas.

No verão, uma freira trouxe o assunto para a discussão pública. Depois de repetidas acusações contra responsáveis da Igreja que não obtiveram resposta, a freira de 44 anos apresentou uma queixa na polícia contra o bispo que supervisiona a sua ordem, acusando-o de a ter violado 13 vezes em dois anos. Um grupo de freiras lançou mesmo um protesto público para exigir a prisão do bispo.

O protesto dividiu a comunidade católica da Índia. O acusador e as freiras que a apoiaram foram isoladas das outras ‘irmãs’, muitas das quais defendem o bispo.

“Algumas pessoas estão a acusar-nos de trabalhar contra a Igreja”, disse uma freira, Josephine Villoonnickal. “Elas dizem: ‘Você está a adorar Satanás’. Mas precisamos defender a verdade”, defendeu.

As queixas de algumas freiras têm décadas, como a de uma ‘irmã’ que ensinava numa escola católica no início dos anos 90, em Nova Deli, a capital.

Uma noite, um padre de 60 anos foi para uma festa na vizinhança. Voltou tarde e bateu à porta do quarto onde se encontrava. A freira diz que o sacerdote cheirava a álcool e que tentou forçar a entrada, agarrando-a e tentando beijá-la, embora esta tivesse conseguido empurrá-lo e fechar a porta.

A freira queixou-se à sua madre superiora e escreveu anonimamente aos responsáveis da Igreja. O padre acabou por ser transferido, mas não houve qualquer sanção pública nem lugar a avisos às outras freiras.

O arcebispo Kuriakose Bharanikulangara diz que o abuso é “esporádico: Uma vez aqui, uma vez ali”. Embora “muitas pessoas não queiram falar”, acrescentou.

Já as violações, garante uma outra freira, aconteceram num pequeno convento na zona rural de Kerala, onde as irmãs do Lar da Missão São Francisco passam os dias em oração ou a cuidar de idosos.

O violador, disse, era o homem mais influente naquela parte do mundo: o bispo Franco Mulakkal. Mulakkal era o patrono oficial de sua comunidade, os Missionários de Jesus, exercendo enorme influência sobre os seus orçamentos e atribuições de trabalho.

De acordo com uma carta que a freira escreveu aos responsáveis da Igreja, ele violou-a. O bispo nega veementemente as alegações, acusando a irmã de o tentar chantagear para conseguir um trabalho melhor.

“Estou a passar por uma dolorosa agonia”, disse o clérigo, que foi detido durante três semanas e posteriormente libertado sob fiança em Outubro. Muitos em Kerala veem Mulakkal como um mártir, e uma série apoiantes visitaram-no na cadeia.

Autoridades católicas pouco falaram sobre o caso, com a Conferência dos Bispos Católicos da Índia a divulgar uma nota alegando não ter jurisdição sobre os bispos, de forma individual, e que a investigação e o processo judicial deviam seguir o seu trâmite.

“O silêncio”, segundo aquele órgão, “não deve, de forma alguma, ser interpretado como uma tomada de partido a favor de uma das duas partes”.

Milhares de manifestantes pró-democracia em Hong Kong protestam contra Governo

[dropcap]M[/dropcap]ilhares de pessoas manifestaram-se em Hong Kong no primeiro dia do ano num protesto contra o Governo, a favor de uma sociedade mais democrática e para demonstrarem publicamente o seu receio pela supressão crescente de liberdades.

O protesto terá juntado cerca de 5.500 pessoas, segundo a organização, a Civil Human Rights Front, ou cerca de 3.200 manifestantes, de acordo com a polícia, avançou o South China Morning Post (SCMP).

Activistas pró-independência e pró-Pequim marcaram presença numa iniciativa que ficou marcada por alguns confrontos e durante a qual alguns dos manifestantes exigiram a demissão da secretária da Justiça Teresa Cheng Yeuk-wah, segundo o SCMP.

Em causa está o facto de esta não ter avançado com a acusação do antigo Chefe do Executivo de Hong Kong Leung Chun-ying após uma investigação sobre corrupção, mas também queixas sobre perseguição política e preocupações sobre legislação relacionada com a segurança nacional. Durante o protesto, activistas citados pelo SCMP alegaram terem sido ameaçados.

Personalidades do ano de 2018

PAULO CARDINAL E PAULO TAIPA

[dropcap]O[/dropcap]s dois juristas portugueses da Assembleia Legislativa, agora de saída, desempenharam durante largos anos a sua função com competência, profissionalismo e lealdade. Paulo Cardinal e Paulo Taipa são um excelente exemplo da presença da comunidade portuguesa em Macau, na medida em que souberam resistir à transferência de soberania e foram reconhecidamente fundamentais para os trabalhos jurídicos da nascente RAEM. Neste ano de 2018, o seu anunciado afastamento da Assembleia Legislativa, onde recebiam o apreço da generalidade dos deputados, provocou ondas variadas e levantou muitas questões. A menor das quais não será: estarão as famílias portuguesas a prazo na RAEM, se a sua sobrevivência depender da administração? E outra que a complementa, mais incisiva: não haverá mais lugar para portugueses como consultores do Governo de Macau? Se profissionais do calibre de Paulo Cardinal e Paulo Taipa foram dispensados ao fim de longos anos de dedicação e serviço, durante os quais a sua competência e a sua seriedade nunca foram postas em causa, o que dizer de outros e do futuro? Aos dois juristas e cidadãos, o Hoje Macau agradece o trabalho efectuado, que sempre dignificou o nome da comunidade portuguesa e foi de uma extrema utilidade para a RAEM, com esta singela homenagem.

 

POLÍTICO DO ANO – HO IAT SENG

Quando saiu da reunião em Pequim, Ho Iat Seng não conseguia esconder o facto de ter sido abençoado. E, a partir daí, as suas palavras, os seus actos e as suas decisões ganharam um novo peso. O peso de quem (quase todos acreditam) poderá ser o próximo Chefe do Executivo da RAEM. Sobre ele, enquanto político, pouco haverá para dizer. Não se lhe conhecem convicções, visões, causas, ideologias. O que não é nada de novo na margem Oeste do Rio das Pérolas. 

GOVERNANTE DO ANO – WONG SIO CHAK

É o governante que, com mais facilidade, leva a água ao seu moinho, mói o pão, leva-o ao forno e mastiga-o, ainda quentinho, com prazer. Nota 10 em termos de protecção civil. Já outros aspectos das suas ambições, como tornar Macau numa cidade excessivamente securitária, etc, etc levantam algumas dúvidas e temores entre os que pugnam por uma sociedade mais liberal, onde o segundo sistema realmente funcione em pleno e os cidadãos gozem de todas as garantias proporcionadas pela Lei Básica.

GCS

REVELAÇÃO – SERVIÇOS DE PROTECÇÃO CIVIL

O tufão veio, soprou forte e muitos esperavam o mesmo desastre ocorrido quando da passagem do Hato. Mas os Serviços de Protecção Civil demonstraram ter aprendido a lição e tudo correu surpreendentemente bem. Isto é a prova que, quando as coisas são previstas e preparadas com antecedência e racionalidade, até em Macau podem correr bem, com profissionalismo e dedicação. Nestes dois capítulos, os Serviços de Protecção Civil foram exemplares e com a sua acção proporcionaram à cidade uma sensação de segurança, que se houvera esvaído no ano anterior.

DESILUSÃO DO ANO – ASSOCIAÇÃO DE FUTEBOL DE MACAU

Não conseguir que o Benfica, campeão de Macau, participe na Taça AFC foi uma verdadeira desilusão. Até porque o clube, liderado por Duarte Alves, realizou um investimento que lhe permitia levar e dignificar o nome de Macau num importante palco. Assim não vai ser por razões que escapam à razão e se devem anichar noutro canto da alma humana. Lamentável.

EVENTO DO ANO – BIENAL FEMININA

Macau abriu um novo capitulo das artes plásticas da Ásia ao fundar esta bienal exclusivamente dedicada a artistas do sexo feminino. E o resultado foi um sucesso, pois proporcionou uma excelente ocasião para conhecer o que se anda a fazer por aí. Ter conseguido o “apadrinhamento” de Paula Rego foi um golpe genial. Estão de parabéns todos os organizadores, nomeadamente os “pais” da ideia: Lina Costa e José Duarte.

INSTITUIÇÃO DO ANO – CINEMATECA PAIXÃO

A nossa cinemateca, recentemente criada, está espectacular. Excelente programação, que nos traz cinema importante, passado e presente, do Ocidente e Oriente, e que assim preenche um vazio, um buraco negro na oferta cultural de Macau porque as salas “normais” não chegam. Alberto Chu e a sua equipa não estão apenas de parabéns. Dão um exemplo fantástico de como as coisas devem ser feitas.

BRONCA DO ANO – ROTA DAS LETRAS

A proibição de entrada em Macau (ou a sua sugestão) de três escritores convidados pela organização do festival literário foi uma péssima surpresa. Jung Chang havia estado em Hong Kong sem que tal tenha causado problemas à “segurança nacional”. Contudo, o pior de tudo isto foi que se tratou de um primeiro caso no que toca a escritores. Esperemos que fique por aí.

FIGURA INTERNACIONAL DO ANO – JAMAL KHASHOGGI

O jornalista árabe foi barbaramente assassinado no consulado do seu país, a Arábia Saudita, em Istambul. O facto mostrou a face bárbara do regime saudita, com o qual é cada vez mais difícil conviver. Mas o que a morte de Jamal Khashoggi demonstrou é que o mundo está cada vez mais nas mãos de governantes que não hesitam em eliminar fisicamente os que não lêem pela sua cartilha. O líder do Ocidente, Donald Trump, nem perante as evidências prestadas pela CIA se atreveu a condenar os responsáveis. Os nossos valores são espezinhados. Money rules.

EXCESSO DO ANO – SEGURANÇA NACIONAL

Numa cidade tão patriótica como Macau parecem excessivos os cuidados com a segurança nacional. A fronteira continua a não deixar entrar alguns compatriotas de Hong Kong e de Taiwan sem que seja dada uma outra explicação além da cabalística “segurança nacional”. Enfim, defender a pátria tudo bem, mas dentro dos limites do segundo sistema que ela mesmo impõe, se faz favor.

LIVRO DO ANO – O SILÊNCIO DOS CÉUS, DE FERNANDO SOBRAL

Fernando Sobral é um escritor e crítico literário sobejamente conhecido em Portugal. Agora tivemos a sorte de ter voltado os seus olhos para Macau, talvez pela mão sempre dedicada de Rogério Beltrão Coelho, e ter produzido um excelente romance que usa esta cidade e a sua história como pano de fundo de uma narrativa que se sorve de um fôlego. A não perder.

EXPOSIÇÃO DO ANO – MARC CHAGALL

É isto. É este tipo de exposições, de grandes artistas internacionais, que Macau também tem a obrigação de proporcionar aos seus cidadãos. Uma cidade com tantos recursos disponíveis tardou em trazer-nos algo desta indiscutível qualidade. A ver vamos o que nos calha para o ano.

ACIDENTE DO ANO – SOPHIA FLOERSCH

O vídeo do acidente da jovem de 17 anos Sophia Floersch deve ter sido um dos mais vistos do ano na internet. Estava praticamente no portal de todos os jornais de circulação mundial. Sophia foi corajosa e comedida nas suas declarações, mostrando vontade de voltar a correr no Circuito da Guia.

 

PRÉMIOS ESPECIAIS 2018

 

PASSA POR MIM NO ROSSIO DO ANO – Ponte HKZM

É a grande obra de um regime por edificar, conhecido por Grande Baía. Aberta sem demasiadas fanfarras, não se tem revelado uma opção pacífica para quem ousa atravessar a maior ponte do… blá blá blá

IMPORTA-SE DE REPETIR? DO ANO – MAK SOI KUN

O deputado espantou o mundo e a Assembleia Legislativa com a sua astuta reivindicação de papel higiénico para as casas de banho públicas. Perante tamanha argúcia, entreabriram-se as bocas de espanto e de admiração.

SER OU NÃO SER, EIS A QUESTÃO DO ANO – HOTEL 13

Foi anunciado como o hotel mais luxuoso do mundo, para super ricos e outros animais de grande porte. Mas já lá vão uns aninhos que para ali está, aparentemente terminado e mobilado, e não abre nem vem abaixo. O número 13 deu azar?

PEITO ÀS BALAS FEITO DO ANO – PEDRO LEAL E JORGE MENEZES

Quando alguns advogados se apressaram a tirar o cavalinho da chuva, quando contactados para defender o deputado Sulu Sou, estes dois causídicos não hesitaram e subiram à tribuna para o representar. E tiveram a oportunidade (e o descaramento) para pôr alguns pontos nos is.

O VALENTE DO ANO – SÉRGIO DE ALMEIDA CORREIA

Ele teve coragem e tentou, é certo. E só isso merece algum destaque. Contudo, a sua candidatura à presidência da Associação dos Advogados de Macau não chegou a levantar voo. Valores mais altos imediatamente bateram as asas e ocuparam os céus da advocacia local.

DESCULPEM LÁ QUALQUER COISINHA DO ANO – RAIMUNDO DO ROSÁRIO

O secretário para os Transportes e Obras Públicas tem muitas razões para pedir desculpa à população. E foi o que ele fez com todas as letras e mais algumas. Os deputados ouviram, abanaram as cabeçorras e a vida continuou o seu imparável curso.

ISTO NUNCA FOI VISTO DO ANO – VÍTOR SERENO

Pela primeira vez, o Governo da RAEM distinguiu um diplomata português com uma medalha. Vítor Sereno teve a arte de agradar a portugueses e chineses, sobretudo pelo modo como se empenhou na realização do seu trabalho e pela afabilidade a todos demonstrada.

EPURE SE MUOVE DO ANO – HOSPITAL SÃO JANUÁRIO

As queixas são mais que muitas em relação ao hospital público, mas o modo como tratou da acidentada Sophia Floersch reabilitou a imagem de uma instituição que tem sido atacada por várias frentes e que, aos poucos, perdeu a confiança da população.

AINDA SE PODE FALAR? DO ANO – PROGRAMA CONTRAPONTO

É um espaço singular de opinião da nossa TDM e que bravamente desafiou o passar do tempo. Gilberto Lopes consegue fazer variar o painel de comentadores cujas palavras e ideias, dizem, ecoam em Pequim.

Especial 2018 | Sociedade: Avançar ou talvez não

[dropcap]E[/dropcap]m Macau nunca se sabe muito bem no que contar quando se trata de medidas do Governo que possam ou não avançar. Hoje é uma coisa, amanhã outra, depois logo se vê. Tudo depende de alguns interesses capazes de apressar ou não o processo decisório, e quando não há interesses na mesa os veredictos são adiados, dependem da opinião da população, ou são dados de forma que parece ser aleatória. O ano de 2018 foi mais um ano rico em contradições nesta matéria.

Exemplo disso são as políticas acerca do uso de plástico. As linhas gerais para a proposta legislativa nesta matéria já foram alvo de uma consulta pública que terminou em 2016. O diploma está a ser produzido desde Março deste ano, e nem com a pressão da população para o seu avanço, a legislação é apresentada.

Este ano, o controlo do uso de plástico veio à praça pública quando a residente Annie Lau tomou as rédeas da situação e lançou, no mês de Agosto, uma petição a exigir medidas ao Governo que levassem à redução do seu uso. Lau conseguiu arrecadar 5.180 assinaturas. No entanto, apesar do interesse mostrado por parte dos residentes na implementação de taxas que dissuadissem a utilização deste material – que figura entre os mais ameaçadores do meio ambiente nos dias de hoje – o Governo continua a não avançar com acções, argumentando a necessidade de legislação nesta matéria, tendo, no entanto, adiantado que é sua intenção implementar uma taxa ao uso de sacos de plástico entre os 50 avos e uma pataca.

Entretanto, este mês, a Direcção dos Serviços de Protecção Ambiental (DSPA) já afirmou que afinal a cobrança pelo uso de sacos de plástico não é o mais importante no combate à sua utilização, sendo que o que importa é a sensibilização para o assunto.

Há boa maneira local, a sensibilização passa pelo prémio aos “bem-comportados”. Para o efeito, a DSPA dá como exemplo o programa “reduzir o uso de sacos de plástico poderá dar prémios” que pretende promover o uso de sacos ecológicos em compras e que na edição deste ano contou com a participação de mais 80 lojas do que no ano passado. Uau, que parece um bom slogan. Ainda de acordo com o Governo, após seis edições do concurso para reduzir a utilização de sacos de plástico, foram poupados 26 mil sacos, o que equivale a aproximadamente 4.400 sacos por ano. Os dados de 2015 indicava que Macau utilizava 450 milhões de sacos por ano.

Resta esperar que haja algum “interessado” que repare nos números, para que a protecção ambiental nesta matéria ganhe forma, que aqui, está visto, não é com a vontade dos residentes nem com o argumento de um mundo mais habitável que se vai longe.

O urso Bo Bo também tem lugar de destaque entre as decisões do Governo que causaram polémica. Trata-se agora do embalsamamento do urso-preto asiático que habitava o jardim da Flora, depois de ter morrido, a 20 de Novembro, com 35 anos. O deputado Sulu Sou mostrou no hemiciclo um cartaz que corria nas redes sociais e que mostrava o desagrado da população relativamente ao processo de embalsamamento, mas a operação avançou e Bo Bo vai, depois de embalsamado, ser colocado numa casa-museu em Coloane.

Já no espectro oposto, em que afinal o que conta é o que os residentes acham, está a suspensão da construção do crematório no cemitério de Ko Snag. Depois da população pedir a estrutura com urgência, durante anos, o Governo decidiu avançar. Comunicada a decisão e a sua localização, afinal o lugar escolhido não era o melhor. Toca de vir para a rua, toca de protestar. Isto de ter os defuntos a arder perto de casa pode ser mau agoiro, especialmente para o mercado imobiliário que se desenvolve nas redondezas. Afinal a urgência do crematório não era assim tanta e um cemitério não era o local mais adequado.

Protestos feitos o Governo volta atrás. Depois de anos à espera de um crematório, outros tantos a aguardar uma legislação que permita a construção da valência fora de um cemitério não fazem mal nenhum e é isso mesmo que o Executivo vai fazer para não ferir “susceptibilidades”.

Um volte de face também foi o que sofreu a construção do depósito para substâncias perigosas. Em Julho, foi aprovada pelo Conselho de Planeamento Urbanístico a Planta de Condições Urbanísticas para o depósito e armazém provisórios de substâncias perigosas em dois terrenos na zona de aterro entre a Taipa e Coloane, mais propriamente junto à Avenida Marginal Flor de Lótus e junto à Estrada do Dique. A população que mora nas imediações não gostou. Mais uma vez, saiu à rua, pegou na caneta, assinou petições tendo conseguido juntar 7000 assinaturas dos moradores de Seac Pai Van.

Apesar das garantias dadas por Wong Sio Chak relativamente à segurança das instalações, esta petição parece ser mais forte do que a que moveu os defensores do controlo do plástico, e o Governo acabou por voltar atrás. No final de Agosto anunciava a realização de um estudo ambiental acerca do projecto já aprovado. Os próximos anos ditarão o que será ou não será feito nesta metéria.

Já os galgos, continuaram a ser as estrelas do ano sem serem vistos nem achados para o assunto. Nesta pasta que se poderia chamar de “história interminável resumida em alguns pontos” estão os vários e turbulentos acontecimentos que envolvem os cães.

Ora, em 2018 o canídromo fechou, as corridas acabaram e os cães ficaram sem donos e praticamente sem casa. O Instituto para os Assuntos Municipais (IACM) ficou responsável, mas Angela Leong, depois de abandonar os mais de 500 cães, descobriu que “gostava muito deles”. Juntou-se finalmente a Albano Martins que sempre mostrou interesse em zelar pelos interesses dos animais.

Os dois, que até ali não se entendiam, acabaram por se unir por um bem maior e anunciaram um parque internacional dedicado aos galgos. O primeiro e único no mundo. Arranjaram a terra e tinham até um projecto. Mas o terreno não servia: tinha outra finalidade e ninguém pediu a sua mudança. Muda tudo, vão para Coloane. Mas ali havia um lar de idosos, e o latir incomodava.

Por fim, o IACM assume a sua tutela, Albano Martins continua a gerir os processos de adopção dos animais e a Yat Yuen, responsável pela exploração do canídromo, é multada em 25,450 milhões de patacas pelo abandono de 509 galgos. O IACM já disse que espera ter a totalidade dos cães adoptados até Maio do próximo ano. Parece resolvido para já, mas nunca se sabe o que 2019 vai reservar nesta matéria que parece ser infindável.

Especial 2018 | Economia: Um ano às escuras

[dropcap]A[/dropcap] economia continuou a dar cartas alavancada pelas receitas de jogo, mas a principal indústria de Macau continua à escuras. Se, por um lado, é expectável que o actual Governo queira deixar para o próximo o poder de decidir como vai funcionar o sector no futuro, por outro, é incompreensível que a pouco mais de um ano do fim dos contratos de duas das seis operadoras não haja qualquer pista.

A maioria dos analistas aposta as fichas na prorrogação, por um período de dois anos, dos contratos da Sociedade de Jogos de Macau (SJM) e da MGM, que expiram em Março de 2020, para que todos se alinhem e terminem no mesmo ano de modo a realizar-se o concurso público como exige a lei. Embora esse cenário seja altamente provável é preciso ter em conta, no entanto, de que não é, de todo, um dado adquirido.

A incógnita tem gerado incertezas, apesar de não serem muito visíveis, bastando pensar nomeadamente nos bancos que aprovam crédito com base em factos e não em probabilidades. Para o cidadão comum – como eu – faz apenas confusão que, nesta altura do campeonato, nada se saiba a respeito. Vejamos o exemplo da SJM que planeia abrir o Grand Lisboa Palace em 2019 – que marcará a sua entrada na ‘strip’ do Cotai – quando o seu contrato de concessão termina no ano seguinte.

O adiamento de informações tem sido ridiculamente justificado com forma de garantir que Macau se mantém competitiva relativamente a outras jurisdições. Aquando das Linhas de Acção Governativa (LAG), o Chefe do Executivo, Fernando Chui Sai On, apenas referiu que, com o mandato a terminar em Dezembro de 2019, apenas pode fazer “trabalhos preparativos”.

Mesmo que os contratos da SJM e da MGM sejam estendidos, o mistério não fica totalmente dissipado, dado que existe a hipótese de o Governo avançar para a revisão da lei que regula a exploração de jogos de fortuna ou azar em casino, para eliminar a obrigatoriedade de realizar um concurso público internacional. Uma opção vista como a mais sensata caso o Executivo não pretenda abrir o mercado a novas operadoras, mas os dados ainda não estão lançados.

A indústria manteve entretanto uma trajectória ascendente, apesar de ter ainda que andar para regressar aos níveis “pré-crise”. Ou seja, ao período antes do ciclo de 26 meses consecutivos de quedas terminado em Agosto de 2016, isto é, a 2013, ano em que os casinos fecharam com receitas de 360.749 milhões de patacas. Para se ter uma ideia, no cômputo dos primeiros 11 meses do ano, a indústria do jogo encaixou proventos de 276.378 milhões de patacas.

Não obstante, o Produto Interno Bruto (PIB) sofreu um forte abrandamento no terceiro trimestre, com a economia a crescer apenas 1,6 por cento em termos reais no terceiro trimestre do ano, devido à descida contínua do investimento em construção e à contracção significativa do aumento das exportações de serviços, após subidas de 9,4 e 5,9 por cento, no primeiro e no segundo trimestres, respectivamente.

cAliás, seria interessante fazer o exercício de calcular quanto valeria a economia de Macau se excluíssemos o mundo dos casinos da equação, retirando as receitas que gera, o peso do efeito dominó que cria, os empregos que sustenta. Aquém continua também o desempenho de Macau como plataforma económica e comercial entre a China e os países de língua portuguesa, cujos resultados efectivos se desconhecem, com o desígnio a ser alimentado basicamente por discursos e acções de formação. Como pode Macau ser a ponte quando as suas próprias trocas comerciais com o universo da lusofonia se encontram praticamente circunscritas a Portugal e ao Brasil?

Na área da Economia e Finanças destacou-se pelo lado positivo a saída, no início do ano, de Macau da lista negra de paraísos fiscais da União Europeia, onde fora colocada no final do ano anterior. Um acto que abriu caminho a uma série de medidas por parte do Governo que decidiu nomeadamente acabar com a actividade ‘offshore’. Essa lei, entretanto aprovada pela Assembleia Legislativa, surgiu em resposta a exigências internacionais, mas o processo inerente deixou a desejar, desde logo por o Executivo ter falhado em auscultar os 1700 trabalhadores de 355 empresas que arriscam perder o emprego caso os patrões não aceitem continuar a operar como companhias normais após 2021. Desta vez, faltaram os propalados estudos.

Especial 2018 | Justiça: Testes variados

[dropcap]A[/dropcap] todos os níveis, 2018 foi um ano cheio de testes para a Justiça e para os tribunais da RAEM. Apesar dos muitos casos polémicos, é na utilização da língua portuguesa que há mais motivos para questionar se os tribunais caminham na direcção correcta.

Ao longo do ano registaram-se vários processos em que simplesmente não houve traduções de documentos para português, apesar de pedidos de arguidos e advogados para que tal fosse disponibilizado. Tudo indica que entre os tribunais continuam a imperar uma certa postura de arrogância, uma visão de que são as pessoas que se têm de desenrascar após receberem um documento, que nem conseguem ler. Era espectável que os tribunais funcionassem numa lógica de servir as pessoas com uma boa Justiça, acessível em ambas as línguas oficiais. É claro que os juízes têm todo o direito de tomar as decisões e escrever as sentenças nas línguas com que se sentem mais confortáveis, mas com os recursos existentes na RAEM não há justificação para que não se alarguem as equipas de tradutores. E foram pelo menos três os casos mediáticos em que a falta de traduções gerou obstáculos ao falantes das línguas oficiais: o caso João Tiago Martins, o julgamento de Sulu Sou e o caso do Hotel Estoril. Será que é esta a imagem que a justiça pretende transmitir?

Casos políticos

Ao nível dos casos com óbvio impacto político, destaque para o julgamento de Sulu Sou e Scott Chiang, relacionado com a manifestação promovida pela Associação Novo Macau contra a doação de 100 milhões de yuan da Fundação Macau à Universidade de Jinan.

O deputado arriscava-se a poder ser expulso da Assembleia Legislativa se fosse condenado a uma pena de 30 dias ou mais dias de prisão. Ficou muito clara que a intenção do Ministério Público (MP) foi sempre a aplicação de pena efectiva, apesar de ambos os arguidos estarem a ser julgados pela primeira vez.

No final, as penas não foram além de multas. Sulu Sou, apesar de se considerar inocente, abdicou de um eventual recurso para regressar à Assembleia Legislativa imediatamente. Scott Chiang levou o caso para a segunda instância, e ainda não há decisões.

Será que a pena aplicada foi justa? O Tribunal de Segunda Instância (TSI) vai responder. Mas por tudo o que se passou ao longo do julgamento, qualquer interpretação de falta de independência dos tribunais seria, no mínimo, abusiva. Os arguidos eram primários, a gravidade do crime é relativa, não houve ofensas à integridade de ninguém, não houve mortos, qualquer pena efectiva seria sempre descabida.

O mesmo aconteceu no caso do Hotel Estoril. Todos percebemos que o caso tem uma componente política e que Scott e Alin Lam não foram os primeiros a entrar indevidamente no antigo edifício. Mas no final foram condenado com uma pena leve por terem entrado num local onde não deviam estar. Não foi desadequada e a prova disso é que os dois optaram por não recorrer.

Em relação aos outro caso ligados à Novo Macau, Jason Chao foi absolvido de um crime de difamação por artigos publicados no portal Macau Concealers. A decisão acaba por ser compreensível, até porque um dos três artigos era apenas uma partilha online de um outro jornal.

É verdade que todos estes casos apontam para um padrão de caça aos democratas, se fossem cidadãos apolíticos há muitas dúvidas sobre se seriam sequer levados a julgamento, mas este padrão aparenta estar nas investigações da polícia e no Ministério Público. No que diz respeito aos tribunais, parece-me claro que as decisões não dão margem para questionar a independência face ao Executivo.

Son Pou absolvido de crime

No que diz respeito à relação entre a justiça e o jornalismo, o ano de 2018 registou uma tendência crescente para colocar os meios de comunicação social em tribunal. O caso entre a Polytec e a publicação Son Pou foi o mais mediático, e a publicação e os jornalistas acabaram absolvidos da prática do crime de difamação. Mesmo assim, houve a condenação ao pagamento de uma multa de 50 mil patacas devido à difusão de informação factualmente errada, que segundo os tribunais prejudicou a empresa.

O caso vai ter recurso, mas nota-se uma nova tendência na sociedade para tentar controlar as notícias negativas com ameaças de processos. Mesmo nos casos em que os meios de comunicação social tenham razão em tribunal, é importante que a Justiça não passe a ser utilizada como ferramenta de pressão.

Terras da discórdia

Outro dos grandes temas quentes do ano foram os vários processos ligados à declaração de caducidade dos terrenos. No entanto, as decisões conhecidas até ao momento estão todas relacionadas com a legalidade da recuperação do acto das terras.

Neste prisma, os tribunais foram chamados a decidir se o processo foi legal ou não. Em todos os casos conhecidos o Executivo teve razão. Poderia ser de outra forma? Não. Os especialistas em Direito são praticamente unânimes a reconhecer que a lei actual não dá uma grande margem de manobra. Quando os terrenos não são aproveitados, o Governo tem de recuperá-los. Foi o que aconteceu.

Todavia, o tema promete gerar mais discórdia deverá ter desenvolvimentos no próximo ano. Quem é que vai assumir as responsabilidades pelos terrenos que ficaram por construir? Será que o Governo vai poder compensar com tempo as construtoras ou vai ter de pagar indeminizações? O tema está longe de ser pacífico.

Concurso falhados

Se no caso das terras há a possibilidade de haver o pagamento de indemnizações, no caso das obras públicas este cenário está muito perto de se concretizar. O Governo sofreu derrotas com um enorme impacto para a população: o primeiro foi um erro de cálculo no concurso de atribuição das obras do parque de materiais e oficina do metro ligeiro. A matemática foi mal feita e a obra deveria ter sido atribuída a uma empresa que não aquela que foi declarada vencedora. O caso tem pouca polémica e não há dúvidas que se fez justiça.

O que ainda não se sabe é como o Governo vai compensar a parte afectada e se o caso acabará novamente nos tribunais.

A outra grande derrota para o Executivo foi o concurso público para as obras da habitação pública em Mong Há. O Governo aceitou duas propostas com o mesmo accionista e uma foi mesmo a vencedora. Os tribunais consideraram que havia nesta prática possibilidade de manipulação da concorrência no concurso público. Apesar do secretário Raimundo do Rosário não concordar com a leitura do tribunal, a mesma não deixa de ser aceitável. Talvez não houvesse jurisprudência nesta questão e a mesma até tenha sido levantada pela primeira vez, mas a decisão tomada é razoável.

Especial 2018 | Assembleia Legislativa: O ano da crispação

[dropcap]A[/dropcap] ferro e fogo. Foi desta forma que se iniciou o ano na Assembleia Legislativa, com os deputados Vong Hin Fai e Kou Hoi In a utilizarem um projecto de resolução para enviarem uma mensagem para os tribunais: as decisões de suspensão e perda de mandatos dos deputados são políticas e não podem ser analisadas pelos tribunais. Em causa estava a decisão de Sulu Sou de levar a sua suspensão para a Justiça. Mais do que um acaso isolado, o episódio foi o princípio de uma nova fase no hemiciclo, em que até os deputados ligados aos Operários desafiaram o Governo.

Foi no meio de várias críticas e acusações de interferência na justiça que Vong e Kou – dois dos principais condutores do processo de suspensão de Sulu Sou – tiveram aquela que terá sido uma das maiores derrotas das suas carreiras. O projecto acabou mesmo retirado, entre acusações de “desespero” face à condução do processo de suspensão, porém, o mote estava dado para o que seria a Assembleia Legislativa com a entrada de Sulu Sou.

Com o legislador mais novo a sofrer derrotas nos tribunais e afastado do hemiciclo, o ambiente voltou à monotonia do ano anterior. Mas o fim do julgamento e o regresso do deputado ao hemiciclo, em Julho, voltou a mostrar a mostrar que as coisas estão mudadas.

Entre a facção pró-sistema, com o apoio de todos os deputados nomeados pelo Chefe do Executivo, é notória a existência de uma estratégia concertada de ataque e descredibilização do deputado pró-democrata. O maior exemplo foi proporcionado quando Vong Hin Fai apresentou uma queixa ao presidente da AL, porque Sulu Sou utilizou a expressão “Casa do Lixo”, para se referir ao órgão legislativo.

Apesar dos vários ataques, Sulu Sou não deixará de ter muitos motivos para estar satisfeito com o desenrolar do ano. O pró-democrata representa o voto de protesto de uma sociedade jovem que é ignorada pelo crescimento económico e que sabe que não é ouvida pelo Governo. Sem alternativas, vira-se para o deputado que representa o anti-sistema. Neste sentido, a intolerância serve mais para reforçar o sentido do voto dos eleitores de Sulu Sou do que efectivamente o descredibilizar.

Por outro lado, para os mais desconfiados, a postura da facção pró-sistema não pode deixar de levantar uma outra dúvida: será que, tendo em conta o que se passa em Hong Kong, Sulu Sou vai ser impedido de concorrer às próximas eleições? Ou será expulso antes disso?

Clima de medo

Se o conflito entre a fracção tradicional e Sulu Sou pode ser visto exclusivamente numa lógica política entre diferentes fracções, o momento de maior choque na Assembleia Legislativa chegou com a dispensa dos dois assessores jurídicos portugueses Paulo Taipa e Paulo Cardinal.

A decisão apanhou a maior parte das pessoas de surpresa e resultou em várias reacções de apoio ao profissionalismo e à experiência dos dois assessores. Na Assembleia Legislativa ninguém duvida da qualidade do trabalho dos dois e mesmo Ho Iat Seng não conseguiu ser coerente. Num primeiro momento, afirmou que seria feita uma reestruturação interna e que os assessores iam ter a oportunidade de seguirem um futuro profissional diferente. Mas, mais tarde, deu o dito por não dito, ficando a faltar uma explicação clara.

Nos bastidores, fala-se de caça às bruxas e demissões motivadas pelas posições dos assessores durante o processo de suspensão de Sulu Sou. Segundo esta versão, Paulo Taipa e Paulo Cardinal terão tido visões jurídicas contrárias ao que Ho Iat Seng queria ouvir e pagaram o preço. Como acontece nestas coisas, a história só se vai saber mais tarde. Mas, nos momentos de incerteza, o vazio é ocupado pelo medo. E entre os assessores portugueses ninguém podem levar a mal que a mensagem apreendida seja a seguinte: na dúvida, ou se tomam posições pró-sistema ou se fazem as malas. Será este o melhor ambiente para que a AL produza leis com a qualidade exigida? Não me parece.

Teatro para a TV

O ano que passou serviu igualmente para mostrar a incapacidade de grande parte dos deputados eleitos pela via directa para fiscalizar o Executivo. O Governo, principalmente o secretário Lionel Leong, já mostrou que não vai explicar a situação do empréstimo a fundo perdido à Viva Macau. Os deputados fizeram várias questões e nunca tiveram respostas satisfatórias. Houve vários legisladores que se mostraram descontentes, mesmo entre os pró-sistema. Claro que as perguntas sem repostas e a alegada “frustração” mais não são do que espectáculo político para as câmaras.

Quando há um assunto que o Executivo parece não estar disponível para esclarecer, era expectável que fosse feita uma audição, que fossem chamados à AL governantes e ex-governantes para dizerem preto-no-branco os motivos do empréstimo sem garantias. Mas uma posição destas envolvia que os deputado desafiassem o Governo, mas por “uns meros milhões” não há coragem. No hemiciclo prefere-se fechar os olhos a tudo o que levanta suspeitas, ao mesmo tempo que se pratica uma expressão de choque para ser utilizada quando é revelado mais um caso mediático. A peça de teatro é velha e vem sendo praticada há muitos anos. Neste capítulo, parte da responsabilidade também tem passado pelos deputados, que se demitem das suas funções. E após cada escândalo, quando deputados como Au Kam San fazem um mea culpa e assumem parte da responsabilidade, outros, como Mak Soi Kun sentem-se muito ofendidos por terem o seu trabalho questionado. Uma situação recorrente e que este ano não foi alterada.

FAOM com fartura

Finalmente, 2018 terminou com um confronto muito pouco esperado entre os quatro deputados da Federação das Associações dos Operários de Macau (FAOM) contra o Executivo. Em causa estava a intenção de Chui Sai On implementar a política “três em quatro”, ou seja um mecanismo para que três em quatro feriados obrigatórios fossem gozados em dias de feriados não-obrigatórios, sem qualquer pagamento extra das empresas e patrões.

Ao contrário do que tem sido habitual, os deputados da FAOM não se esconderam da luta política, defenderam o seu eleitorado tradicional e no final somaram uma vitória.

Especial 2018 | Governo: A construção da grande muralha

[dropcap]S[/dropcap]e não reparou, em 2018, Macau começou a construir uma “grande muralha”, com tijolos de diplomas para proteger uma terra segura. Mas porquê se a criminalidade violenta tem uma taxa reduzida, se não há motivos para alarme nem tão pouco para elevar o nível de alerta relativamente a atentados? Pergunto eu e provavelmente o leitor.

Desde logo porque os factos aparentemente contradizem a catadupa de iniciativas legislativas anunciadas pela Segurança, uma tutela que normalmente passa despercebida, desde que o cenário seja de paz – e tem sido. Contudo, a um ano do fim do mandato do actual Governo, conquistou um protagonismo ímpar relativamente às demais tutelas, particularmente pela rapidez com que passou das palavras aos actos.

A Primavera trouxe os primeiros sinais, com o secretário para a Segurança a expressar a vontade de elaborar diplomas complementares à Lei relativa à Defesa da Segurança do Estado, em vigor desde 2009, mas nunca aplicada. Em consonância, foi criada a Comissão de Defesa da Segurança do Estado que juristas não só colocaram em causa como a compararam a uma “polícia política”.

Mas, como diz o povo, o primeiro milho é para os pardais, porque a segurança nacional tornar-se-ia o centro do universo político, figurando num sem número de diplomas a elaborar ou a rever. Foi o que sucedeu com a proposta de alteração à Lei de Bases da Organização Judiciária, da tutela da Administração e Justiça.

O diploma, actualmente em análise em sede de comissão na Assembleia Legislativa (AL), faz uma distinção entre magistrados de primeira e de segunda, ao afastar os estrageiros dos processos relacionados com a segurança do Estado. Contudo, o pacote securitário estaria longe de estar completo. Seguiu-se a proposta de lei da cibersegurança (também na AL), a do regime jurídico de intercepção e protecção de comunicações (cuja consulta pública terminou a 9 de Novembro), estando ainda na calha o regime de prevenção, investigação e repressão dos crimes de terrorismo e actos conexos.

Reforço de poderes

As polícias também viram repentinamente os seus poderes aumentados e as estruturas e competências alargadas, estando prevista ainda uma subunidade da Polícia Judiciária (PJ) responsável pela recolha e investigação de casos relacionados com a segurança nacional. A guarita tem sido reforçada a olhos vistos. Basta pensar nas câmaras de vigilância introduzidas nas fardas dos agentes, nas que cercam as ruas e becos da cidade ou nos planos de dotar parte como sistema de reconhecimento facial. Um conjunto que, no seu todo, levanta sérios receios de que liberdades e garantias sejam beliscadas, pondo em xeque a máxima de que quem não deve não teme e a olho nu generalizadas preocupações de que 2049 chegue mais cedo.

Salvou-se em 2018 a resposta da Protecção Civil ao tufão Mangkhut que mostrou efectivamente que o Governo aprendeu a lição do Hato que, um ano antes, expôs as fragilidades de toda uma estrutura que encontrou no então director dos Serviços de Meteorologia o único bode expiatório.

A pró-actividade da tutela liderada por Wong Sio Chak também cobriu esta área, designadamente com a elaboração de uma proposta de Lei de Bases da Protecção Civil que, entre outros, introduz o crime de falso alarme social, agravando a moldura penal para quem propagar falsos rumores durante desastres, em mais uma medida de tolerância zero, passível de condicionar a liberdade de expressão e de imprensa e que surpreendentemente apenas encontra sustento em “um ou dois” casos ocorridos durante a passagem do tufão Hato.

Sensatez q.b.

Já na área da Administração e Justiça, destaque para a alteração à lei da utilização e protecção da bandeira, emblema e hino nacionais e para o bom senso que vingou com o recuo na intenção de penalizar quem não ouvir a “Marcha dos Voluntários” de pé e para a alteração à Lei de Bases da Organização Judiciária que finalmente passa a prever recurso judicial para os titulares dos principais cargos – depois de Ao Man Long e Ho Chio Meng não terem tido essa possibilidade. Uma medida naturalmente bem-recebida que peca por ser tardia e por manter o Chefe do Executivo privado de tal direito.

2018 ficou ainda marcado pelos preparativos para o Instituto para os Assuntos Municipais (IAM), órgão municipal sem poder político que, a 1 de Janeiro, vai substituir o IACM, lamentavelmente constituído sem recurso a eleições directas. Como seria de esperar, entre os 25 nomeados para o Conselho Consultivo do IAM não foram escolhidas vozes dissidentes, mas apenas alinhados com o sistema.

Este foi ainda o ano do projecto do governo electrónico que, embora ainda numa fase incipiente, deu os primeiros passos concretos, estando, no entanto, por colmatar falhas graves no âmbito de uma cidade que aspira ser inteligente, como o não reconhecimento dos meios de comunicação social ‘online’.

No domínio dos Assuntos Sociais e Cultura, o ponto negativo vai para o aumento das taxas de parto a cobrar pelo hospital público a trabalhadoras não residentes que passaram a pagar nove vezes mais. Ao nível do turismo, continuamos a rebentar pelas costuras, perto de alcançar o recorde de 35 milhões de visitantes e claramente para lá da capacidade do território.

De positivo surgem apenas o facto de o projecto da Biblioteca Central ter sido finalmente adjudicado ou o lançamento do Registo para Doação de Órgãos. Na Saúde, em concreto, além da criação da Academia Médica, também pouco mais há a relevar, continuando a não haver um calendário para a abertura do segundo hospital público nem tão pouco um orçamento global da obra.

Em causa uma infra-estrutura intrinsecamente ligada à tutela de Raimundo do Rosário que, a par com o metro ligeiro, tem sido uma dor de cabeça para as Obras Públicas. Os transportes também estiveram em foco em 2018, com o Governo a ver-se obrigado a ceder em diversas frentes. Se, por um lado, foi sensato ao deixar cair a proposta de introduzir tarifas mais caras para trabalhadores não residentes nos autocarros públicos, por outro, não se compreende por que aceitou reduzir (e muito) o valor de sanções previstas na proposta de lei sobre os táxis.

Ao contrário do que é normal a Economia e Finanças foi uma das tutelas com mais polémicas do ano, desde logo devido ao empréstimo aparentemente irrecuperável à falida Viva Macau, passando pela postura opaca relativamente à prorrogação do contrato para a exploração das corridas de cavalos por – nada mais nada menos – do que 24 anos e meio, interpretada como uma espécie de prémio de consolação, pela retirada, no mesmo ano, do terreno do Canídromo.

Lionel Leong, putativo candidato a Chefe do Executivo, viu-se ainda a braços com um raro diferendo entre o Governo e a ala laboral em torno da transferência do gozo de feriados obrigatórios, acabando por ser obrigado a recuar na chamada proposta “três em quatro”, com a lição de que há garantias mínimas a cumprir quando estão em causa os direitos dos trabalhadores os quais não deixariam de ser afectados só porque os dias de feriados seriam pagos.

De fora para dentro

Já olhando para o desempenho do Chefe do Executivo, 2018 não trouxe nada de novo, com os discursos de Fernando Chui Sai On a centrarem-se principalmente no fora que é cada vez mais dentro ou, por outras palavras, no projecto de integração da Grande Baía.

No plano interno, a política continuou a ser a de distribuir apoios financeiros sem grandes medidas estruturais, com “batatas quentes” a serem deixadas para quem vier a seguir, estando a contagem decrescente em curso. Exemplo disso mesmo é o facto de, a um ano de cumprir o segundo e último mandato, ter encomendado ao Comissariado Contra a Corrupção (CCAC) um estudo sobre 73 terrenos, cuja concessão foi declarada caducada. Isto porque o CCAC tem de apresentar recomendações que servirão de base para resolver o problema dos terrenos, no entanto, pelo andar da carruagem, essa hercúlea tarefa deve sobrar para o próximo Governo.

Já completamente lamentável foi o facto de Chui Sai On ter sido peremptório (algo raro) ao afirmar que não vai avançar com uma proposta de lei sindical, falhando em cumprir uma responsabilidade prevista na Lei Básica e em pactos internacionais, sem esperar pelo resultado do estudo encomendado a propósito. Nada de inesperado, na verdade, se pensarmos que nunca referiu a intenção de regulamentar o artigo 27.º da Lei Básica desde que chegou ao poder há nove anos.

2019 – A porta estreita

[dropcap]O[/dropcap]s homens gostam de marcar o tempo não somente por razões práticas mas, sobretudo, porque tal lhes dá a ilusão de algum controlo sobre o mundo. E por isso vamos festejando as passagens dos anos, mesmo quando parece que pouco haverá para celebrar. De facto, o actual estado do planeta e dos países que o compõem não é de modo a inspirar alegria ou até mesmo grandes esperanças.

Com o aquecimento global, a Terra enfrenta um desafio enorme. É a primeira vez que o planeta sofre desta maneira pela acção dos seres humanos e da indústria. Em risco está a vida, essa ténue e frágil excepção num universo frio e perigoso. A nossa vida e a vida de milhares de espécies cuja existência contribui, de modos nem sempre óbvios, para o equilíbrio geral do planeta. A Idade do Plástico está a destruir a vida marinha, como se não bastassem os resíduos tóxicos das fábricas que já tornaram grande parte dos peixes incomestíveis.

Os governos dos maiores países do mundo parecem preferir alhear-se destes problemas. Trump é um negacionista perigoso, Xi Jinping não faz nem metade do que seria necessário para salvar o seu próprio país. E agora temos um Bolsonaro que promete destruir a Amazónia, ao serviço dos madeireiros e dos criadores de gado. O futuro avizinha-se negro.

Contudo, não são apenas os problemas ecológicos (gravíssimos) que fazem temer o pior no ano que se prepara para dar os primeiros passos. Os Estados Unidos declararam uma guerra comercial à China e ninguém deixará de sofrer com isso. É verdade que os dois países são mutuamente dependentes e, racionalmente, esta guerra não tem espaço para existir porque só terá vencidos. O pior é que a racionalidade parece ter-se esvaído deste repugnante mundo novo, no qual assistimos a uma remontada dos nacionalismos, do racismo, do nazismo, das religiões, do machismo, enfim, numa frase, de tudo aquilo que, desde os anos 70, julgávamos ter abolido de vez.

Não foi assim. Aí estão os nazis, disfarçados de alt-right, e a doutrina ultraliberal que preconiza a falta de direitos laborais e a libertinagem do mercado. Aí estão os militaristas, as milícias, os partidos autoritários, os povos explorados e oprimidos. A guerra na Síria é um bom exemplo da inutilidade e irracionalidade dos conflitos, de quem somente um punhado de traficantes de armas e de industriais da morte tiram realmente algum lucro.

O ânimo geral dos povos é de insatisfação e incompreensão pelo estado a que as coisas chegaram. Daí que surjam movimentos, como os coletes amarelos, que fazem reivindicações contraditórias ou aparentemente contraditórias. Por um lado, querem melhor ecologia; por outro, são contra o aumento da gasolina. Por exemplo. Mas há muito mais disto, ou seja, dilemas que nenhum governo pode responder ou resolver. Ora se as questões levantadas pelas massas não são formuladas de modo a permitir respostas governamentais, dentro do actual sistema, será porque esse mesmo sistema não funciona nas sociedades actuais. Estará gasto mas, sobretudo, desacreditado.

Haverá alternativa? Ou a alternativa é o caminho contínuo, imparável, para a destruição da espécie, quer às suas próprias mãos, quer por obra de um planeta cada vez menos capaz de suportar a vida? Os governos cada vez se pautam mais pelo acolhimento da estupidez, pela irracionalidade de escolhas que se baseiam nos interesses imediatos de uns quantos em detrimento dos interesses da maioria. O mundo, claramente regrediu.

Veja-se o que se passa nos países muçulmanos, em relação aos anos 50 do século passado. Veja-se quem ocupa a cadeira de presidente dos Estados Unidos e os disparates que continuamente bolça. Veja-se no que se tornou a Rússia, que incompreensivelmente entende ser-lhe favorável uma Europa desunida. Veja-se o Brexit e a irresponsabilidade dos políticos britânicos que o impuseram ao seu povo através de mentiras sucessivas. Veja-se o Brasil que as várias igrejas evangélicas e a corrupção generalizada conduziram para os braços de um indivíduo como Jair Bolsonaro. Veja-se, finalmente, como Xi Jinping está a fazer regredir a China ao impor-lhe o fim da limitação de mandatos e a introdução de tiques do pior maoísmo.

Não vai ser fácil o ano de 2019. Face ao despautério generalizado, o que resta afinal a cada um de nós? Muito pouco, o espaço encolhe e o ar torna-se irrespirável. Não sofremos de tédio mas da ansiedade de quem não consegue encontrar o caminho para “vencer na vida”, para produzir o necessário, para atingir os patamares do que ousamos chamar de “sucesso”. Como explica o filósofo coreano Byung-Chul Han, conseguiram-nos convencer que o inimigo mora dentro de nós mesmos e que somos nós os culpados de não termos a performance necessária. Não diria que nos resta rezar, porque não sou crente, mas provavelmente faz-nos falta uma séria meditação sobre os valores que guiam os nossos passos e se eles de algum modo correspondem ao que todos os dias a sociedade nos quer fazer engolir. Para a preservação da nossa liberdade, que nos torna realmente humanos e não peças de uma máquina, precisamos de nos afastar da manada, da enxurrada de informação descabelada que nos assalta, das mentiras e das inutilidades, e reflectir. E além de reflectir, sobretudo fruir a vida, aproveitá-la até ao último suspiro, não para procurar a felicidade mas o bem-estar, o prazer, de preferência desmedido. Assim nos aproximamos daqueles a quem chamávamos deuses. Talvez aqui esteja uma saída, uma porta estreita mas, ainda assim, uma saída.

 

Especial 2018 | Cultura: Um oásis no deserto

[dropcap]S[/dropcap]e por um lado há muito a apontar à cultura ou à falta dela no território, por outro é pertinente salientar o que consegue vingar, tratando-se de um lugar que por princípio lhe é hostil. Onde param as demonstrações culturais, sejam elas de que origem forem, num pequeno território governado por casinos e turistas consumidores de cosméticos?

A cultura é uma espécie de oásis que consegue, quase despercebida, emergir, lutando contra as forças de um deserto de gente poderosa que não quer saber dela. Apesar das dificuldades, há áreas que são de destaque e que, gradualmente, assumem um lugar digno, apesar de muitas vezes negado.

Neste ano que chega ao fim, a sétima arte ocupa o pódio no que respeita a cartazes, e mais importante, na sua capacidade de chamar as pessoas às salas da cidade.

Mas vejamos.

Macau conseguiu levar avante um festival internacional de cinema, que mais parecia ter nascido morto. O que parecia impossível, acabou por acontecer. Depois de uma primeira edição que nada tinha de auspicioso, o evento não só se manteve como, dois anos depois, nesta terceira edição, se conseguiu afirmar. Mais: conseguiu mostrar que não era mais um. Conseguiu garantir que podia ser bom. Mike Goodrige e Helena de Senna Fernandes estão de parabéns. O cartaz não desiludiu. Filmes como “Roma”, “Diamantino”, “A favorita” ou “The green book” foram exibidos por cá depois de passarem em ecrãs como Cannes, Berlim ou Veneza e antes de serem nomeados para os melhores dos óscares ou do ano.

Festival com público

Além do que está na tela, parece que o evento está a conquistar o público. Se na estreia, em 2016, as salas estavam tristemente vazias, com o andar das edições os auditórios do Centro Cultural de Macau, da Paixão e da Torre esgotam, ou se isso não acontece, estão pelo menos bem compostos por públicos diversos, reflexo de quem cá mora.

O festival é pontual, mas a cinemateca Paixão é presença permanente e nome a considerar para quem gosta da sétima arte. Apostada e convicta em manter uma programação que nem sempre é para todos os gostos, mas que sem duvida inclui os filmes de referência a nível internacional, a Paixão aqui salta poros fora e mostra-se. O grande ecrã é acarinhado regularmente com uma programação de luxo, não só para Macau, mas que poderia estar em qualquer cartaz de uma cidade internacional. Ali, na Travessa homónima, aquela sala pequenina peca por não ser a dobrar ou a triplicar.

Celebrado o primeiro ano de actividade da Cinemateca em 2018, a dupla de programadores Rita Wong e Albert Chu merece os parabéns. Por ali passaram filmes de animação, documentários, curtas e independentes. Houve espaço para o mundo com ciclos dedicados ao cinema do Estados Unidos ou de Portugal. Deu-se destaque a alguns dos melhores realizadores da praça como David Lynch e Kore-eda. Macau e o seu ainda embrionário cinema também teve direito a uma programação própria. Até a gastronomia fez parte de um cartaz na celebração do primeiro aniversário da cinemateca, e não foi preciso andar por aí a falar de capitais de tudo e de nada para juntar sabores e imagens.

Filmes à parte, as demonstrações culturais continuaram a passar obrigatoriamente pelas iniciativas de matriz portuguesa. Acontecem todos os anos e há mesmo quem diga, com ar aborrecido: “Lusofonia outra vez? São João?”. Pois sim, é isso mesmo e é lá que se junta muito do que é a identidade local.

As casas da Taipa e a zona de São Lázaro voltaram este ano a ser palco de encontros, os do costume e outros, com as comunidades que partilham desta terra. Trazem o sabor da sardinha, trazem música do mundo ou do arraial. Trazem o que Macau é: esta mescla de gentes, que deve ser respeitada e recordada.

Música para si

E como estamos a falar de oásis no deserto, é tempo de falar de música. O festival de música de Macau é uma referência que se mantém, já faz parte do protocolo. É bom, mas não chega.

Apesar das queixas dos vizinhos, a Live Music Association (LMA) continuou a ser a alternativa para quem quer marcar o quotidiano com uma ida a um concerto. Num deserto de opções, o 11º andar da Coronel Mesquita conseguiu, durante mais um ano, abrir portas e arriscar. Entre uma programação semanal, Vincent Cheang consegue ter ali espaço para a diversidade, consegue ter “O gajo” a tocar viola campaniça, os “Re-Tros” com as sonoridades pós-punk de Pequim, as bandas dos países nórdicos europeus com minimalismos tecnológicos, o punk dos “Lonely Leary”, o rock, o jazz e até o cabaret. Bem-haja.

Por outro lado, e com agenda marcada uma vez por ano, o “This is My City” (TIMC) também fez a sua parte nisto de trazer música aos de cá. O evento usou efectivamente o território como um local onde a cultura musical do continente se apresentou a par com sons de Portugal e locais. Sem utilizar a palavra bem-amada dos governantes – plataforma – o TIMC concretiza de alguma forma este objectivo. Não é preciso dizer nada, é preciso fazer. O TIMC fez.

Também sem precisar de etiquetas e chavões, destacou-se mais uma vez o Festival Literário Rota das Letras, um espaço em que convergem as literaturas do mundo e que na edição deste ano acabou por ser assombrado pela impossibilidade da presença de alguns autores “controversos” – Jung Chang, James Church e Suki Kim – o que valeu a demissão do seu director artístico Hélder Beja. Ainda assim, o Rota das Letras foi o evento literário do ano – e único – que junta géneros e autores, e isso ninguém lhe tira.

O teatro, por seu lado, manteve-se escondido nas vicissitudes linguísticas. A culpa não é dele. Não é de ninguém. Mas além do que vem de fora, o que se fez por cá continua a carecer de uma divulgação multilingue capaz de levar outras comunidades a ver as peças do Teatro experimental ou a assistir a uma encenação da Comuna de Pedra.

As faltas são ainda muitas no que respeita a iniciativas culturais neste pequeno território, é um facto. Mas no final de mais um ano em que houve tantos a fazerem o que podiam, é necessário o devido reconhecimento. Não é fácil ser terreno fértil em solo contaminado.

Especial 2018 | Desporto: Entre o céu e o inferno

[dropcap]N[/dropcap]o campo desportivo, o ano de 2018 teve tudo para ser de excelência na RAEM. A participação surpreendente do Benfica de Macau nas competições asiáticas de futebol e a primeira medalha de ouro para Macau nos Jogos Asiáticos, conquistada por Huang Junhua, na modalidade Wushu, foram os momentos altos do ano. Mas o ouro ficou assombrado pela abertura da caixa de pandora e a exclusão da atleta Paula Carion da competição.

Começando pelo lado positivo, no futebol. É verdade o Benfica de Macau teve até aqui acesso a fundos sem paralelo no panorama da modalidade. Mas ter muito dinheiro não significa ter sucesso. Contudo, Duarte Alves conseguiu montar um projecto dominador internamente, que transpôs uma mentalidade vencedora para a realidade das competições asiáticas, nomeadamente para a Taça AFC.

Em seis jogos na fase de grupos da competição, o Benfica só sofreu duas derrotas, ambas frente à equipa do 25 de Abril, que foi semi-finalista da prova e que é a espinha dorsal da selecção da Coreia do Norte. E todos sabemos que as realidades do futebol na RAEM e na Coreia do Norte não são de todo comparáveis, mesmo que as águias tenham vencido por duas vezes uma outra equipa norte-coreana.

Contra tudo e todos

Mas se a nível desportivo, o Benfica de Macau merece todos os elogios, o maior feito talvez até tenha sido alcançado na secretaria, principalmente na relação com a Associação de Futebol de Macau (AFM). A inscrição é sempre feita contra tudo e contra todos. Em qualquer lado, as pessoas assumem que as associações têm todo o interesse em ver os clubes locais destacarem-se e brilharem foram de portas. Mas a AFM teima, ano após ano, em provar o contrário. Goste-se ou não, a mediocridade associativa local, que fica sempre impune, faz sempre mais para afastar as pessoas e os agentes do futebol.

Em 2017, o Benfica de Macau ficou fora da fase de grupos da Taça AFC porque os responsáveis da AFM “não viram a tempo” o fax para que a inscrição do clube fosse feita. E não, este episódio não é uma brincadeira. E este ano a AFM voltou a tirar o tapete ao Benfica, sem qualquer pudor. Ao contrário do ano passado, os clubes precisam de ter uma equipa do escalão sub-18 para poderem competir na Taça AFC. Dadas as particularidades dos clubes locais, o Benfica não tinha equipa. A solução foi encontrada com convites a futebolistas de equipas escolares para jogarem no escalão local de sub-18. Estes atletas iriam assim jogar no campeonato escolar, pelas respectivas escolas, e no campeonato sub-18 da associação, com as cores do Benfica.

No entanto, numa decisão sem precedentes, a AFM decidiu que as esquipas escolares, que têm um campeonato próprio, também podem jogar no campeonato de sub-18 chancelado por si. Como consequência o Benfica ficou sem equipa e sem hipótese de participar na Taça AFC. Alguém acredita que esta decisão beneficiou o futebol local? A AFM deveria servir os clubes e atletas ou as escolas?

Mesmo assim, em 2018 fica a memória de um clube que foi a excepção e que levou o nome de Macau mais longe, muito mais longe do que a AFM alguns vez conseguiu e, ao que parece, desejou.

Huang de ouro

O ano que agora termina marca igualmente a estreia de Macau entre os medalhados de ouro nos Jogos Asiáticos. Nascido em Guangxi, Huang Junhua veio para Macau atrás do sonho de uma carreira ao mais alto nível das artes marciais e levou a Bandeira da RAEM ao topo, onde nunca tinha estado. A medalha foi conquistada na vertente Nanquan do Wushu.

Mesmo que a modalidade tenha pouca expressão nos países sem comunidades chinesas, a verdade é que o ouro foi conquistado contra as potências do Wushu, nomeadamente Interior da China, Hong Kong e Vietname.

Mais do que um atleta local, Huang é ainda um dos melhores exemplo da essência de Macau, de um território que sempre viveu da imigração e que com ela foi crescendo. Espera-se que Huang consiga repetir por muitos e longos anos as vitórias contra as grandes potências e que continue a orgulhar Macau.

Precedente aberto

Se para o Chefe do Executivo, os Jogos Asiáticos foram um momento de orgulho. O mesmo não se pode dizer que tenha acontecido, principalmente para a comunidade macaense e locais com passaporte português. Pela primeira vez na história da participação de Macau nos Jogos Asiáticos, os residentes com passaporte português foram impedidos de participar. Uma discriminação que vai contra o espírito da Lei Básica. Infelizmente para todos nós, a principal vítima deste Governo fraco, que não sabe proteger os interesses dos seus cidadãos nem a singularidade de Macau, foi a macaense Paula Carion.

Nascida em Macau, residente local, falante das duas línguas oficiais e medalhada com o ouro nos Jogos da Ásia Oriental disputados na RAEM, Carion foi tratada como cidadã de segunda. Sem que tenha havido o mínimo de respeito por tudo o que fez pelo território. E mais grave, foi aberto um precedente que é um ataque directo à comunidade macaense.

E as imagens?

Uma análise ao ano desportivo, não poderia terminar sem uma menção ao Grande Prémio de Macau. À imagem do ano passado, a prova foi um sucesso e o acidente de Sophia Flörsch, felizmente sem consequências de maior face à dimensão do impacto, fez com que o circuito de Macau fosse, mais uma vez, tema de conversa em todos o mundo

No entanto, há um aspecto muito negativo que tem obrigatoriamente de ser mencionado: a ausência de imagens de vários acidentes. O evento ficou marcado por uma omissão dos impactos, que a todos pareceu propositada. E se é normal que não se queira mostrar imagens de sangue e dos pilotos em momentos de angústia, nada justifica que se vá contra a prática habitual da modalidade e que se escondam os momentos dos acidentes. Uma prova com 65 anos de história já não deveria estar envolvida neste tipo de polémicas.

Especial 2018 | Crimes sexuais: A voz das vítimas

[dropcap]O[/dropcap] ano de 2018 marcou uma mudança na sociedade civil no que diz respeito à denúncia de casos de abuso sexual. Até Novembro a Polícia Judiciária (PJ) recebeu um total de 67 queixas de crimes sexuais, um número que, numa sociedade onde muitos assuntos ficam dentro de portas, representa um importante passo para que este assunto seja cada vez mais abordado e discutido.

A temática do abuso e do assédio sexual é cada vez menos empurrada para debaixo do tapete. Há uma maior consciencialização por parte das vítimas e as associações locais também estão atentas ao assunto, puxando este tema para a praça pública, sem esquecer o papel dos deputados que cada vez fazem mais intervenções sobre a matéria.

O caso ocorrido este ano no jardim de infância D. José da Costa Nunes, do qual ainda não existem conclusões quanto à culpa do suspeito, foi o começo de muitas outras queixas de casos ocorridos em ambiente escolar e até universitário. De acordo com o jornal Ponto Final, das 67 queixas de crimes sexuais, 26 dizem respeito a abuso sexual de crianças e 23 a casos de violação. Além do processo do Costa Nunes, o caso de alegada violação cometida por John Mo, ex-director da Faculdade de Direito da Universidade de Macau foi outro que surpreendeu.

Perante esta tendência, cabe às autoridades abordarem mais a questão do abuso sexual junto das escolas, com sessões destinadas a encarregados de educação e alunos. É importante falar do assunto não só para que haja um incentivo a que as vítimas continuem a falar, mas também para que haja uma consciencialização do que é o abuso sexual e do impacto negativo que tem na vida de uma pessoa.

Ainda no âmbito dos crimes de natureza sexual, neste ano verificou-se também um maior debate sobre o assédio sexual e o #metoo, acompanhando uma tendência mundial desde que vieram a público os actos cometidos pelo produtor de Hollywood Harvey Weistein. Em Macau já se pede uma criminalização do assédio sexual e foi inclusivamente criada uma nova associação para a prevenção destes casos, a Associação de Estudantes Chong Wa.

Esta associação afirmou já ter contabilizado oito casos de assédio este ano, face aos dez do ano passado. Os números são baixos e a luta ainda está no início. O Governo não parece estar disposto, para já, a mudanças a nível jurídico, tal como a transformação do acto de importunação sexual em crime público. Alexis Tam, secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, parabenizou a constituição da associação, mas disse, em Novembro, não poder pronunciar-se sobre uma matéria jurídica.

É importante que esta e outras associações não deixem de chamar a atenção para esta matéria que existe no nosso dia-a-dia e da qual poucos falam. É importante organizar palestras e debates para que se entenda o que é verdadeiramente assédio sexual, para evitar que haja acusações e queixas sem fundamento. Acredito que as autoridades também devem ter mais formação em prol de uma maior consciência sobre este assunto.

Na China o movimento #metoo tem vindo a ganhar algum destaque nas redes sociais, tendo sido reportados alguns casos de assédio sexual cometido por professores universitários. Ainda assim, a censura que existe no país faz com que o #metoo não tenha mais poder de mudança na sociedade do que aquele que deveria ter, conforme disse, em Março, a escritora chinesa Lijia Zhang, que falou do assunto no festival literário Rota das Letras.

“Devido às restrições impostas pelo Governo não há um grande movimento #metoo na China. Algumas mulheres têm falado muito sobre isso, têm levantado a questão. O Governo não quer implementar este assunto, quer ter a sua própria agenda com assuntos onde se sente confortável. Há alguns anos, cinco mulheres tentaram protestar contra o assédio sexual em locais públicos, e foram presas pela polícia”.

Em Hong Kong e em muitos outros territórios asiáticos a questão do assédio sexual tem feito parte da agenda mediática, e é importante que Macau não volte a perder este barco. Numa altura em que o activismo político perde cada vez mais força, é importante que as associações locais não deixem de fazer activismo social, levantando a voz para questões actuais e importantes que acontecem nas empresas, escolas e universidades. Se 2018 foi o ano em que as vítimas não se calaram, é importante que as associações locais não o façam daqui para a frente.

Especial 2018 | Educação : Valores em questão

[dropcap]Q[/dropcap]uase nada mudou no sistema educativo no ano que agora finda. O Governo injectou mais dinheiro nas escolas e também na atribuição de subsídios e bolsas de estudo. O relatório das Linhas de Acção Governativa (LAG) para 2019 tratou-se de confirmar a manutenção dessa política. Há, contudo, dois episódios que merecem ser realçados e que nos podem fazer questionar o futuro rumo do sistema escolar de Macau e dos valores que persegue.

A DSEJ e a homossexualidade

Parecia que estávamos em 1970, mas não. Foi em Agosto deste ano que a subdirectora da Direcção dos Serviços de Educação e Juventude (DSEJ), Leong Vai Kei, defendeu aos jornalistas que nos casos em que os alunos revelassem ser homossexuais seriam encaminhados para acompanhamento médico.

“Se tiver indícios de homossexualidade encaminhamos este caso para as outras autoridades competentes. Para confirmar se ele é homossexual ou não necessita de diagnóstico médico, portanto vamos transferir o caso para o respectivo departamento, ou seja, o departamento de psiquiatria do hospital”.

Nos dias que se seguiram Leong Vai Kei desmentiu o que tinha dito, afirmou ser um problema de tradução, algo que veio a revelar-se falso, após o jornal Ponto Final ter ouvido de novo as gravações e comparado as traduções. Um antigo conselheiro da DSEJ confirmaria mais tarde à mesma publicação que a política da DSEJ era mesmo enviar os alunos para um médico.

Foi em 1990 que a Organização Mundial de Saúde (OMS) deixou de considerar a homossexualidade uma doença, apesar deste continuar a ser um assunto tabu por esse mundo fora. Estas declarações de Leong Vai Kei ditas em pleno século XXI envergonham este Executivo e o sistema educativo, e não se compreende como é que o secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, Alexis Tam, deixou passar este caso em branco, ao dizer que a subdirectora da DSEJ tem capacidades e competências para continuar no cargo. É uma mancha para o seu governo e para as gerações do amanhã que estão a ser formadas e educadas nas escolas de hoje.

É certo que a homossexualidade não é aceite na comunidade chinesa, e são comuns os casos de jovens que escondem a sua sexualidade dos pais, vivendo-a às escondidas. Mas não precisamos de governantes com um discurso baseado no dogma, no erro, discriminação e, porque não, no ridículo.

No mesmo dia em que fez estas afirmações sobre a homossexualidade, Leong Vai Kei também aconselhou os jovens a só terem sexo depois do casamento. Que ingenuidade, doutora Leong Vai Kei. Conhece os alunos que a DSEJ tem a seu cargo? Num território onde se fazem tantos estudos, alguma vez se pensou na realização de um inquérito sobre as práticas sexuais dos jovens, no intuito de se saber se são ou não seguras, e se estes têm ou não conhecimentos suficientes sobre esta área? Ao invés de manter este tipo de discurso do século passado, mais vale apostar em campanhas de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e em aulas de educação sexual.

A entrada do Costa Nunes no ensino gratuito

No passado dia 5 os encarregados de educação com crianças no jardim de infância D. José da Costa Nunes receberam uma boa notícia: a partir do próximo ano lectivo, vão deixar de pagar propinas, uma vez que a instituição de ensino passa a integrar a rede de escolaridade gratuita. Foram feitas promessas de manutenção da matriz portuguesa da escola, com a garantia de que haverá sempre um espaço privilegiado para as crianças que fazem parte das comunidades portuguesa e macaense.

Contudo, é importante garantir de que estas promessas iniciais não caem em saco roto e que, daqui a uns anos, o jardim de infância não se torne igual aos outros, perdendo a sua identidade e qualidade.

Não nos podemos esquecer que o ano de 2049 está a chegar mais cedo do que era suposto e os sinais revelam-se em várias áreas, com maior incidência na área jurídica e política. Esperemos, por isso, que a ‘integração’ do jardim de infância D. José da Costa Nunes não seja mascarada por esta entrada no sistema de escolaridade gratuita.

Não podemos também ignorar a possibilidade da Escola Portuguesa de Macau (EPM) vir a integrar, no futuro, este sistema de escolaridade gratuita, o que seria uma nova reviravolta depois da mudança que se verificou ao nível do financiamento, com a entrada da Fundação Macau, que actualmente contribui com 49 por cento, o que se traduz em nove milhões de patacas por ano.

Não, há, para já, sinais de que algo venha a mudar para pior no que à perda de identidade destas duas instituições diz respeito. Mas cabe a nós, agentes de ensino, sociedade civil e Governo português estarmos atentos aos próximos anos, tendo em conta as rápidas mudanças que a sociedade de Macau está a atravessar. No contexto da integração regional no âmbito do projecto da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau, qual será o papel a desempenhar pela EPM e Costa Nunes? Haverá mudanças e interferências nos currículos? Que destaque terá a língua portuguesa nestas salas de aula? Estas podem parecer perguntas utópicas, mas não o são.

Design | Lusodescendente promove cortiça nos EUA

[dropcap]A[/dropcap] promoção da cortiça como um “material incrível” e “muito sustentável” é uma das motivações da designer lusodescendente Melanie Abrantes, que desenha peças únicas na Califórnia com a matéria-prima importada de Portugal. A artista, que fundou a marca Melanie Abrantes Designs em Oakland, produz artigos para casa com vários tipos de cortiça que são vendidos em lojas da especialidade, como a cadeia de decoração West Elm do grupo Williams-Sonoma. “Estou a tentar mostrar às pessoas que a cortiça tem muitos formatos, utilidades e visuais, em comparação com outros materiais”, disse à Lusa a designer, que está agora a tentar criar uma linha “usando as capacidades de isolamento” da matéria-prima.

A lusodescendente foi incluída na lista de 2018 dos 100 Maiores Criativos dos Estados Unidos pela revista Country Living, que a considerou uma “cork whisperer” e destacou o seu virtuosismo na arte de trabalhar a cortiça.

“Os meus produtos são virados para a estética e têm um visual muito específico, mas só faço coisas úteis”, disse. “Nada é puramente decorativo”. As características específicas da cortiça, como a sua porosidade, ajudam ao elemento funcional das peças de design.

Entre os produtos em cortiça que Melanie Abrantes criou estão caixas de jóias, candeeiros de tecto, cinzeiros para canábis, castiçais e vasos para plantas. Várias criações misturam cortiça e madeira, o outro material em que a artista se especializou e sobre o qual publicou o livro “Carve”, em 2017.

Os produtos são feitos com mais que um tipo de cortiça, incluindo um tipo “cortiça-mármore”, que “tem um preço mais elevado” mas leva as pessoas “a responderem bem às peças”.

O custo dos artigos é um dos desafios da criadora, com etiquetas que vão até às largas centenas de dólares.

“As pessoas não percebem que a cortiça é um material muito caro que ainda é retirado à mão”, argumentou, justificando com o facto de os consumidores norte-americanos estarem habituados a usar cortiça em objetos simples, como rolhas e tábuas de cozinha, cujos preços são baixos. “Tento educar as pessoas em relação ao valor da cortiça”.

A artista irá mostrar o seu trabalho em maio de 2019 na New York Design Week, como parte do grupo de designers independentes JOIN Design, e está em conversações para participar no programa televisivo da NBC “Making It”, que põe fazedores a criarem trabalhos manuais.

Neta de portugueses, Melanie Abrantes visita Portugal uma vez por ano, dividindo-se entre Lisboa, onde reside a avó, e produtores de cortiça no norte. “A razão pela qual trabalho com cortiça é devido à minha herança genética”, afirmou a lusodescendente, de 28 anos. “Todas as vezes que ia a Portugal quando era mais nova via produtos diferentes feitos com cortiça e achava fascinante, porque nem sabia que se podia fazer algo com o material”, recorda.

Natural de Sugar Land, perto de Houston, Texas, a artista estudou no Otis College of Art and Design em Los Angeles antes de abrir o seu estúdio em Oakland. Além de fazer dois workshops por mês sobre técnicas para trabalhar madeira e cortiça, também faz sessões em empresas. Os seus produtos estão à venda em cerca de 40 lojas nos Estados Unidos e nalgumas boutiques internacionais, incluindo Japão, França e Inglaterra.

A aposta

[dropcap]N[/dropcap]um dos seus pensamentos mais conhecido, Pascal propõe uma aposta para a pergunta se Deus existe ou não.

A argumentação de Pascal pode ser classificada como pragmática, porquanto se trata de apresentar as razões benéficas para se acreditar que Deus existe. Não se pode evitar a decisão. Temos de nos resolver por necessidade. O reconhecimento do “rapport” entre nós e o Senhor. É o ser a acreditar que faz a diferença vital para a vida de cada um na sua singularidade: uma “living option”. Escolher Deus implica-nos na vida no seu todo. Não há outra escolha porque “há uma meta infinita para a existência humana e que vale infinitamente a pena”. O modo de alcançar essa meta obriga a mudar de vida, a decidirmo-nos por um “modo de vida que possa levar-nos à felicidade infinita” (ibid.). Querer o vínculo é o supremo acto de liberdade, do ponto de vista humano. De que se abdica? A que se renuncia? “A tudo o que esta vida pode oferecer”. A escolha aponta à transcendência, convida-a a entrar, expõe-nos ao possibilitante. A escolha é inexorável e escatológica: Que Deus existe implica um reconhecimento de si na possibilidade mais extrema e radical que pode haver. Apenas ao reconhecer-se a si como susceptível de Deus se reconhece os outros na sua própria liberdade para Deus. É de Deus a assomar no horizonte que se potencia esta possibilidade, verdadeira modificação da imanência pela transcendência. Ao revelar-se Deus, revela-se, de algum modo, a Sua natureza na graça e a sua natureza infinita: no amor.

E como se manifesta este amor? O que é ser a amar? Primeiramente, há o reconhecimento de uma renúncia. Perdemos, com certeza, na aposta, no investimento. E o ganho é incerto. Não sabemos, como nenhum jogador sabe, se ganhamos – se perdesse e soubesse que perdia sempre de antemão, jamais jogaria. É o elemento de incerteza que o faz jogar. O risco é motivador e abre um espaço de manobra que não é despiciendo. Mas a renúncia não é um comportamento negativo? Não abrimos mão de qualquer coisa, às vezes até de alguém? Ficar com qualquer coisa implica sempre, para nós, abandonar certas outras coisas. A renúncia não é, assim, apenas negativa. Ela é por mor de qualquer coisa. Só podemos ter uma hipótese, quando se dá a ocasião, o custo de oportunidade. Para ter uma coisa precisamos de abdicar de outra ou de outras. De que nos fala Pascal? “Il faut renoncer à la raison” (“É necessário renunciar à razão”). É preciso ser louco. É na loucura que se resguarda a vida. Resguardar a vida diz-nos, aqui, que a não arriscamos. Antes arriscamos a razão para nos resguardarmos na vida. O sentido desta vida é “um ganho infinito” (“gain infini”). O ganho infinito pela sua qualificação transforma o nada da perda numa perda de nada. Ao permanecer na loucura, que renuncia à razão, cria-se uma tensão em direcção ao infinito. Nessa permanência, inundada de infinito, anula-se o finito e o nada. Se somos obrigados a apostar, somos também obrigados a renunciar, a arriscar (“hasarder”). É a isto que estamos forçados: e eu não estou na liberdade, não tenho nunca um momento de sossego. No momento de renúncia da razão, ganha-se a loucura do amor de Deus. A troca não é de géneros. Não há troca por troca. O sentido desta permuta não poderá ser nunca compreendido do ponto de vista ôntico. Primeiro, porque não se sabe, na cotação de valores, que preço tem uma coisa se não há um preço para quem abdica do que abdica e para o que ganha. Depois, porque a troca, aqui, não é comercial, mas assenta no sentido do ser do humano. Compreendemos a abdicação como o sacrifício a fazer para nos podermos dedicar a qualquer outra coisa. A recusa pode ser em vista de uma entrega. O sentido do ser é o da finitude. Este pode ser enunciado assim: não podemos ter tudo e, para termos alguma coisa, temos de abrir mão de qualquer outra coisa. Temos sempre de fazer escolhas. A dificuldade consiste nisto. Que o que quer que renunciemos estará sempre connosco. Temos sempre de ter a força para renovar os votos, temos sempre de suportar o que preterimos. Somos sempre o que escolhemos ter e o que escolhemos não ter ou não pudemos escolher. Somos sempre o que escolhemos ser e o que, com essa escolha, não pudemos ter sido.

A situação que Pascal cria é paradoxal: É preciso apostar: “Sim, mas eu tenho as mãos atadas e a boca muda. Forçam-me a apostar, e eu não existo na liberdade, não me soltam. E eu sou feito de uma tal maneira que eu não consigo acreditar. Que quereis vós que eu faça?” Contrariamente, “a impotência para acreditar … vem das paixões”. A situação que Pascal cria nega duplamente a liberdade. Por um lado, é-se obrigado a apostar, não temos a liberdade de não apostar, de poder não apostar. Por outro, e contrario, encontro-me na impotência de acreditar. Qual é motivo deste non possum ontológico, condicionado pela finitude constitutiva da nossa facticidade? A impossibilidade de acreditar (“impuissance à croire”) resulta das nossa paixões e do divertimento vão.

Não importa aqui caracterizar exaustivamente o sentido das paixões e do divertimento em Pascal. O assunto é central no seu pensamento. Não podemos deixar, por outro lado, de caracterizar os fenómenos aqui em causa. É deles que, uma vez renunciados, resulta a possibilidade da aposta. Isto é, há uma incompatibilidade entre uma vida orientada pelo sentido que as paixões constituem e a fé. Há uma incompatibilidade entre o divertimento, que nos faz divergir e afastar de nós e de Deus em nós e da concentração no si de cada um de nós. As paixões são caracterizadas como fazendo guerra interior, intestina, na alma, à razão (29, 514), como perturbadoras, domáveis, mas que nos impelem para fora de nós (“nous poussent au-dehors”, 176), os inimigos do homem. Portanto, o que cria a incapacidade. O divertimento tem também esta orientação para fora de nós. É o divertimento que neutraliza a sensibilidade à morte (33). O que neutraliza a sensibilidade à morte é o que anula a capacidade de percebermos a finitude temporal e ontológica. A nossa própria condição finita depende da ideia da morte: que não podemos ter tudo, que não podemos ser tudo. É a ideia de morte que nos abre para a possibilidade da eternidade: cheia de sentido e salvação ou com sentido nenhum, a maldição do dia-a-dia dos condenados, a miséria do nada de nada, do para sempre em que nada acontece. É pela anulação do divertimento e das paixões que podemos ter a liberdade para ser quem se é em Deus, com Deus e por Deus.

Progresso e crença

[dropcap]À[/dropcap]s nove e meia da noite do dia 14 de Novembro de 1853 a Rainha D. Maria II entrou em trabalhos do seu décimo primeiro parto. Correu tudo mal – das vascas da morte a esta propriamente dita foi o trânsito de uma madrugada.

Já antes Maria tivera parições duríssimas e três dos seus nascituros vieram mortos ao mundo. Segundo algumas crónicas, num caso pelo menos houve que degolar o bebé in utero para que a mãe sobrevivesse. Por volta das duas da manhã o Teixeira, 1.º cirurgião privativo da Real Câmara, ainda augurava esperanças, mas três horas depois pediu que entrassem os restantes quatro colegas, que salvaguardavam o pudor da monarca aguardando respeitosamente à porta da sua alcova, a fina-flor da ciência médica nacional, para deliberarem o que fazer. Foi consensual diagnosticarem a situação como aflitiva e de imediato deram início à operação. Rasgado o ventre da Rainha extraíram-lhe D. Eugénio a tempo de o baptizarem antes de expirar. Ainda foram convocados mais dois médicos, entre os quais o ilustre Magalhães Coutinho, mas a causa estava perdida. Sem recursos que valessem à moribunda, que se mantinha meio consciente, os clínicos ministraram-lhe clorofórmio para lhe mitigar o sofrimento e hão-de ter procedido a uma ou outra flebotomia, o que à margem do jargão da arte se chama de sangria, em tentativas para lhe purificar o sangue e estimular a reacção do organismo. Combalida mas lúcida, D. Maria confessou-se e recebeu a extrema-unção do Patriarca, despediu-se dos íntimos e foi-se esvaindo até ao seu passamento às onze da manhã. Tinha trinta e quatro anos.

As catástrofes sanitárias que assolaram a Coroa portuguesa não se ficaram por aqui. Dois anos depois da morte da Rainha consorte D. Estefânia, vítima de difteria, em 1861 e no período de um mês, o tifo haveria de dizimar o rei D. Pedro V, com 24 anos, e os príncipes D. Fernando e D. João, ambos adolescentes. Sobreviveu o irmão Luís que ganhou horror ao infecto Paço das Necessidades onde consta nunca mais ter posto os pés.

Se for levado em conta que esta mortandade se abatia sobre quem habitava palácios, vivia rodeado de cuidados, comia e bebia do melhor e do mais impoluto e era zelado pela mais avançada medicina da época, com maior acuidade se percebe a urgência e o realismo que Dickens investiu no seu “Hard times” de 1854 e Victor Hugo em “Les Misérables” de 1862. Há, porém, outro aspecto que importa trazer à colação: esta mortandade ocorreu há coisa de 150 anos, uma bagatela na passagem do homo sapiens sapiens pelo planeta, que já dura há 200.000 anos. O séc. XX abundou em desastres e patifarias provocadas pelo ser humano, mas também em progressos assombrosos. Só a má-fé ou um espírito obtuso não ficará extasiado com o facto de a medicina ter evoluído mais em tão curto tempo do que em todos os anteriores 189.850 anos. Hoje só por grave incompetência não teria sido estancada a hemorragia que vitimou D. Maria e as epidemias de tifo, se não foram erradicadas, estão controladas. De cada vez que fazemos o gesto simples e casual de tomar um antibiótico, há 150 anos enfrentaríamos a morte.

Estamos no entanto a assistir actualmente a um fenómeno perturbante senão mesmo embaraçoso. Os habitantes das regiões mais pobres e ermas do planeta onde a medicina não chegou ou é rudimentar, ambicionam, com maior ou pior sorte, o bem-estar e a qualidade de vida que ela proporcionou aos cidadãos dos países mais desenvolvidos. Por experiência própria, ninguém melhor do que eles entende as vantagens da aspirina ao chá de ervas a que têm de recorrer. Em contrapartida, uma parte dos principais beneficiários deste miraculosos progressos, a despeito de todas as confirmações históricas e estatísticas, deu desconsiderar a medicina e a ciência preferindo-lhes terapias – pseudo-terapias – cuja eficácia é sustentada por um atabalhoado e pedestre jargão cabalístico mas, aparentemente, muito convincente porque parece “tradicional”, “natural” e “autêntico”.

Dos vários motivos que levam tanta gente a tamanho obscurantismo, dois serão preponderantes.

40 anos de insistência numa cultura da suspeição estão a produzir o seu efeito. Dela emerge uma forma de niilismo que vez de reparar que nunca as sociedades foram tão abertas e escrutinadas como hoje, imagina o mundo governado por um círculo secreto e fechado a conspirar no escuro contra mim. De tudo se duvida, portanto, porque sobre tudo se presumem más e obscuras intenções.

Outra causa será a espécie de solidão e desalento existencial que carece dos consolos especulativos da metafísica e das verdades seguras, embora inexplicáveis, de um transcendente. Conhecer não basta, é preciso acreditar. Mas em nome de uma pretensa pureza este misticismo tem que ser exótico e original, esotérico e meândrico, porque das formas organizadas, domésticas e tradicionais, ou seja, das igrejas, desconfia-se que façam parte da conspiração.

Só desdenha aquilo que tem, quem o toma como adquirido. A isto pode dar-se o nome de “alienação”. Talvez um pouco de consciência histórica e, literalmente, de razão, mesmo que em doses homeopáticas fizesse bem aos insatisfeitos da boa fortuna.

Dar corda ao relógio do caos

[dropcap]D[/dropcap]isse-me um senhor em Mafra que, no princípio do mundo, só havia ratazanas albinas. Depois vieram os humanos e a sua terrível mania de contar histórias e de relatar ‘memoriais’. Tinha razão, pois, desde a mais tenra infância, que ‘contar a vida’ é o desígnio mais óbvio que nos persegue. O mundo começa a alicerçar-se quando entendemos quem foram os nossos avós e bisavós, por onde andaram, o que fizeram, que traços deixaram. Há alturas na vida em que regressamos a esses vestígios e os passamos a pente fino com aquele jeito com que os cães cheiram os interstícios da lama ou a terra dos canteiros de onde brotam rosas em flor.

Um dos livros que mais associei a este tipo de afinidades (nada electivas) foi A Vida e Opiniões de Tristram Shandy de Laurence Sterne, uma obra publicada em meados do séc. XVIII. O ponto de partida é este: o biografado só é quem é (ou aparenta ser), devido ao modo como foi gerado. E a razão é elementar: nove meses antes de o biografado ter vindo ao mundo, em pleno truca truca, a futura mãe pergunta ao futuro pai se deu corda ao relógio. O homem ficou logo desarmado, o afã a murchar, o vaivém a esfriar tipo comboio a travar nos altos do desfiladeiro depois de ter soado o alarme.

Os efeitos que a pergunta provocou (imagino a futura mãe a olhar para os rendilhados do tecto sem sequer encarar o rosto anquilosado do homem), foram depois decisivos para a vida de Shandy (nome que, na sua origem, significa ‘cabeça oca’, ‘maluco’ ou mesmo ‘doido’, apesar de o termo ter raízes obscuras, podendo estar ligado a uma palavra do Inglês antigo – “shanny” – que quer dizer bufão, truão ou mesmo charlatão). O facto é que Shandy fica tudo a dever ao instante preciso em que foi gerado. O livro acabará por ser uma longa digressão: um passeio por tudo e por nada, uma narrativa que fala de si mesma e que quase acaba por elidir o herói, cuja trama e desgraça foram semeadas pelo relógio da sala.

O que ecoa da obra de Sterne é o nexo da linguagem, a atmosfera, o jogo sem fim. E é por isso que o livro se viria a tornar tão importante para diversos autores das ‘vanguardas’ do século XX. Das histórias que na infância chegaram até nós – acerca da vida dos nossos avós e bisavós – ecoará precisamente o mesmo: ambientes, geografias vãs, casas destelhadas, algumas anedotas e digressões inacabadas, enfim: sombreados que fascinam. Afinidades que não escolhemos, mas que nos semeiam e que desempenham o papel (da corda) do relógio da casa dos pais de Shandy.

Não tenho dúvidas nenhumas de que as atmosferas, digamos as músicas de fundo, são sempre memorialmente mais importantes do que os factos ditos reais (com princípio, meio e fim). A captação dos ambientes excede sempre o tema e o diapasão concretos.

Quando relembro ensaios que li, revejo sobretudo uma experiência íntima da linguagem e bem menos aquilo que pretendia ter sido comunicado (a chamada força ilocutória). O que fica repete-se interiormente como um brado que se agita e o que talvez fosse fundamental – aquilo de que se faz apologia – quase que se dilui como o óleo no mar. Quando relembro romances que li há algum tempo, acontece aparentemente o contrário: ficam situações, facetas de personagens, quebras, viragens, paisagens, palavras e expressões avulsas. A linguagem, ou o mar que faria de aquário a essas espécies, parece desaparecer. Evaporar-se. E só renasce de cada vez que volto a abrir um desses romances e releio uma ou outra linha. Seja como for, num caso e noutro, o que fica são os sombreados que fascinam.

Ainda que não cheguemos aos calcanhares das ratazanas albinas (terão elas calcanhares?), o certo é que ‘contar a vida’ não passa de uma Rayuela sem chão para pisar e para saltar. Bem sei que W. Benjamim foi pioneiro, quando alertou para o facto de a complexidade da vida moderna travar o tradicional trânsito dos legados familiares e de proximidade. Seja como for, o caos apenas respira onde não há imagens que lhe possam dar sentido. Mesmo que esse sentido resida em quebras de tesão e nos celerados ponteiros do relógio da casa dos pais de Shandy.

Votos para 2019

[dropcap]E[/dropcap] de repente faço sessenta anos (sou capricórnio) e recebo a visita de um neto, antes mesmo de ter tido um béguin com a Stephanie do Mónaco. A vida é ingrata!

Esta falha horroriza-me, nem sequer consegui ser guarda-costas da filha da Grace ou segurar-lhe as maças no circo. E em que zona das omoplatas me enxertaram um neto, se as minhas células continuam a regenerar à velocidade com que os supersónicos engolem nuvens de algodão doce e, por amor, me dispunha a renunciar aos princípios republicanos, de tal modo que ambos no fim tatuaríamos no peito um Leão da Tasmânia?

«Estamos alegres. Nem rato/ porá a casa em desacato,» sentencia o Robin de Sonho de Uma Noite de Verão, que acabo de reler, e sinto que o desacato personificou no rapaz gentil e falador de 9 anos que me entrou em casa nestes festejos e me desviou o pensamento da estratégia de me aproximar do Mónaco para conhecer a alvorada na intimidade de uma mulher que, dizem as revistas cor de rosa, choca os seus súbditos por não aparecer maquilhada nem esconder as rugas. Tudo o que me convinha.

O importante é que ela não cantasse, pois eu sou um gnomo honesto e seria incapaz de mentir-lhe.

E espero que o puto não me volte a visitar antes de me apresentar à Beth Hart, a cantora de blues, e de interpretarmos os dois no duche Caught Out In The Rain, fazendo disso cicatriz do destino.

Não esperem menos de mim que do Dominguín, o toureiro que foi amante de Ava Gardner e a deixou sozinha na cama às duas da manhã; respondendo, face ao espanto dela por ele sair da cama, Desculpa lá, mas agora tenho de ir ao bar contar que ando a comer a Ava Gardner, pois para mim metade do gozo está em contá-lo.

Fui sempre um rapaz recatado, mas esta onda de pez em que o «politicamente correcto» nos promete naufragar dá-me uma vontade irredutível de vos anunciar como vai ser, em 2019.

Na primavera rumarei à Escócia para dar uma oportunidade à Ali Smith para me conhecer. Depois proponho-lhe uma viagem no tempo, recuaremos vinte e cinco anos. Após o que talvez nos despenhemos no amor. A imaginação dela convém-me muito.

No verão, não regressarei imediatamente a Portugal depois da viagem que, está estabelecido, farei a Lisboa com a mulher e as filhas. Armarei uma estratégia para elas regressarem sem mim, e ala para a Bordéus, onde se encontra a escritora galega Luísa Castro. Do mais seria indecoroso falar, mas com certeza que a interrogarei sobre Los versos del eunuco, Los hábitos del artillero ou Una patada en el culo y otros cuentos, livros dela que me agradam muito.

Em Outubro deslocar-me-ei ao Canadá para discutir alguns tópicos de Oedipal Dreams com a sua autora, Evelyn Lau. Tudo dependerá de muito, mas se averiguar que ela não teve qualquer relação com o poeta americano Charle Simic – para mim, mulher de amigo é homem -, não me farei rogado e pode sair que algo corra entre nós, por exemplo, um livro a meias e em alexandrinos.

No Inverno repousarei.

A filha de Bukovski tem-me escrito, quer vir fazer-me a receita favorita do pai: bifes com ervilhas. Mas resguardo-me de quaisquer encontros com os mitos, temo a sua senescência.

O meu neto é que a sabe, fala como já floresceram as varandas em Verona.

Nos intervalos que a visita obrigatória ao Kruger com o miúdo me deixou, li dois livros deliciosos: Retalhos do Tempo/ Um memorial de Dublin, de John Banville, absolutamente recomendável, e a comédia de Shakespeare, numa excelente tradução de Maria Cândida Zamith.

O que é extraordinário, ao ler-se esta ou outra peça de Shakespeare, é pensar como era inteligente o público que fez de O Sonho duma Noite de Verão, o maior sucesso da carreira do bardo. A peça é estruturalmente enxuta e perfeita, mas a surpresa reside no facto do ignaro povo e maioritariamente analfabeto do período isabelino aderir ao seu teatro e à sua linguagem (que hoje nos parece elitista) sem a menor reserva e aprendendo trechos de cor.

Veja-se este espantoso jogo de trocadilhos fonéticos (- que fui buscar à tradução brasileira, que li primeiro, e que é o único trecho que prefiro a esta nova tradução da Relógio D’Água):

«Demétrio

O rapaz que jaz é um ás da morte.

Lisandro

Ás que jaz é incapaz; é um zero à esquerda.

Teseu

Com a ajuda de um médico é capaz de se recuperar e voltar a ser um as-no»

Pensar que o espectador elisabethiano acolhia entusiasmado o wit, a qualidade deste humor, e reagia na hora, no timing certo, às deixas – o que não acontece com a maioria dos meus alunos – é descoroçoador.

Há uma história da recepção literária ou dramatúrgica por fazer e seria utilíssima para derrotar mitos actuais que encharcam jornalistas, agentes culturais e editores numa suficiência espasmódica e gelatinosa que os levou a interiorizar a crença de que o gosto médio não está preparado para o complexo e só compreende estruturas básicas e um nível lexical a roçar a decomposição onomatopaica, viciando completamente a literatura e o que nela é considerado aceitável e inteligível.

Hoje o Shakespeare não teria editor e seria aconselhado a aplainar os textos em nome da eficácia e da funcionalidade. John Updike teria dificuldades em arranjar editor se começasse a editar vinte anos depois, pois foi sempre acusado de escrever bem demais.

E agora deixo-vos com uma variante minha à última fala de Oberon, na peça: «Agora, até à alvorada,/ Vá pela casa cada foda/ A melhor noiva escolher,/ Sua cama abençoar;/ (…) Cada foda vá voando/ Cada quarto abençoando/ Neste palácio amoroso: /E o seu dono, venturoso,/ Sempre descanse feliz./ Que se faça o que se diz».

São os meus votos.

Taiwan | “Coletes amarelos” chegam a Taipé

[dropcap]M[/dropcap]ilhares de manifestantes vestidos com coletes amarelos, inspirados nos recentes protestos em França e replicados em Portugal, ocuparam ontem as ruas de Taiwan para exigirem menos impostos, na sua terceira mobilização em menos de uma semana. De acordo com agências noticiosas, milhares de manifestantes mobilizaram-se até à sede do Ministério das Finanças, em Taipé, empunhando bandeiras e gritando palavras de ordem contra a política fiscal na ilha.

“Isto é pelo nosso futuro”, disse uma estudante de 23 anos Joanna Tai, citada pela agência Associated Press (AP). “Olhamos para os salários em Hong Kong e no interior da China. Queremos saber por que há tanta diferença em relação a Taiwan”, acrescentou.

O grupo activista “Tax & Legal Reform League” convocou o protesto depois de já ter mobilizado 20 mil pessoas, há uma semana, em frente à sede do Governo, e outras 10 mil no sábado, de acordo com a imprensa local.

Os organizadores dizem-se inspirados pelo sucesso dos recentes protestos franceses.

Há mais de um mês, o movimento inédito “coletes amarelos”, nascido nas redes sociais, espalhou-se por toda a França, dando azo a cenários de conflito em Paris e obrigando o Governo a adoptar medidas sociais estimadas em dez mil milhões de euros.

Ao contrário de Paris, o movimento não paralisou nenhuma cidade portuguesa, no passado dia 21 de Dezembro. As manifestações, com pouca adesão, provocaram apenas alguns condicionamentos de trânsito, tendo a polícia identificado 24 pessoas e detido quatro manifestantes, na sequência de desacatos.

Economia | Lucros da indústria registam primeira queda em três anos

[dropcap]O[/dropcap]s lucros da indústria na China registaram uma queda homóloga de 1,8%, em Novembro, o primeiro registo negativo desde 2015, acompanhando a tendência registada noutros indicadores económicos do país, face às disputas comerciais com Washington. Segundo o Gabinete Nacional de Estatísticas (GNE) chinês, os lucros ascenderam a 594.800 milhões de yuans, em Novembro, uma queda de 3,6%, face ao mês anterior.

Nos primeiros onze meses do ano, os lucros totais das firmas industriais da China fixaram-se em 6,17 biliões de yuans, 11,8% mais do que no mesmo período do ano passado. Entre Janeiro e Outubro, a subida dos lucros fixou-se em 13,6%, em termos homólogos. Entre os 41 sectores inquiridos pelo GNE, 29 registaram um aumento dos lucros, nos primeiros onze meses do ano, incluindo o setor do petróleo, aço, material de construção ou produtos químicos.

He Ping, estatístico do GNE, atribuiu a redução dos lucros, em Novembro, à “queda nas vendas e aumento dos custos de produção”. No mesmo mês, a produção industrial, outro importante indicador da segunda maior economia mundial, aumentou 5,4%, em Novembro, face ao mesmo mês do ano passado, depois de ter subido 5,9%, em Outubro. Foi a menor subida dos últimos dez anos.

O aumento das vendas a retalho, o principal indicador do consumo privado, recuou para 8,1%, o ritmo mais lento desde Maio de 2003, depois de se ter fixado nos 8,6%, em Outubro passado. Os dados revelam que o crescimento da segunda maior economia do mundo deve abrandar no último trimestre do ano, depois de se ter fixado nos 6,5%, no terceiro trimestre, o ritmo mais baixo dos últimos dez anos.

Analistas prevêem que a economia chinesa registe um declínio acentuado, ao longo da primeira metade do próximo ano, reflectindo o pleno efeito das taxas alfandegárias impostas pelos EUA. A ascensão ao poder de Donald Trump nos EUA ditou o espoletar de disputas comerciais, com os dois países a aumentarem as taxas alfandegárias sobre centenas de milhões de dólares de produtos de cada um. A liderança norte-americana teme perder o domínio industrial global, à medida que Pequim tenta transformar as firmas estatais do país em importantes atores em sectores de alto valor agregado, como inteligência artificial, energia renovável, robótica e carros eléctricos.

Segurança | Ex-vice-ministro condenado a prisão perpétua por corrupção

Era um dos espiões mais poderosos da China. Agora não volta a pisar as ruas de Pequim.

[dropcap]O[/dropcap] ex-vice-ministro da Segurança da China Ma Jian foi ontem condenado a prisão perpétua por corrupção e uso de informação privilegiada, parte da mais ampla campanha anticorrupção da história da República Popular. O Tribunal Popular Intermédio de Dalian, no nordeste do país, condenou ainda Ma a pagar mais de 50 milhões de yuans em multas. Ma Jian admitiu ser culpado e decidiu não recorrer da sentença, detalhou a agência noticiosa oficial Xinhua.

A Comissão Central de Disciplina e Inspecção do Partido Comunista Chinês anunciou, em Janeiro de 2015, que Ma tinha sido colocado sob investigação. No mês seguinte, o ex-vice-ministro da Segurança Pública foi destituído como membro da Conferência Consultiva Política, uma espécie de senado sem poderes legislativos.

Ma, que trabalhou na agência de espionagem da China durante mais de 30 anos e ocupava o cargo de vice-ministro desde 2006, terá usado a sua influência em benefício do empresário Guo Wengui, um dos homens mais ricos da China, que fugiu da China e vive agora num apartamento de 68 milhões de dólares, em Nova Iorque. Guo afirma ter várias informações comprometedoras para a liderança chinesa, incluindo sobre o vice-presidente, Wang Qishan.

Após ascender ao poder, o Presidente chinês, Xi Jinping, lançou uma campanha anticorrupção, hoje considerada a mais persistente e ampla na história da China comunista, e que resultou já na punição de um milhão e meio de membros do partido.

Os alvos incluíram funcionários menores, a que Xi se refere como “moscas”, mas também centenas de “tigres” – altos quadros do partido, com a categoria de vice-ministro ou superior.

Os dois casos mais mediáticos envolveram a prisão do antigo chefe da Segurança Zhou Yongkang e do ex-diretor do Comité Central do PCC e adjunto do antigo presidente Hu Jintao, Ling Jihua.

Além de combater a corrupção, a campanha tem tido como propósito reforçar o “controlo ideológico” e afastar rivais políticos, com as acusações a altos quadros do regime a incluírem frequentemente “excesso de ambição política” ou “conspiração”.

Cinema | Início de 2019 celebrado com tributo à actriz japonesa Kirin Kiki

Kirin Kiki, a actriz japonesa que morreu no passado mês de Setembro, aos 75 anos, vítima de cancro, é homenageada pela Cinemateca Paixão no ciclo de cinema que vai abrir 2019. Já a partir de dia 1 vão ser exibidos quatro filmes em que Kiki é protagonista e entre eles está o vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes deste ano, “Larápios”

 

[dropcap]O[/dropcap] ano de 2019 abre na cinemateca paixão com um programa especial de dicado à actriz japonesa Kirin Kiki, falecida no passado mês de Setembro e uma das protagonistas do grande vencedor de Cannes deste ano “Larápios”

A homenagem tem início logo no dia 1, pelas 19h30 com a exibição de “An”, um filme de 2015 realizado por Naomi Kawase.

Uma presença assídua em Cannes, Naomi Kawase abriu o evento “Un Certain Regard” em 2015 com este drama gastronómico que conta a história de Sentaro. O protagonista vive uma vida tranquila cozinhando dorayaki – um pastel com recheio doce de pasta de feijão vermelho – de qualidade medíocre numa pequena pastelaria suburbana. Um dia, uma simpática idosa chamada Tokue (Kirin Kiki) começa a trabalhar na loja de Sentaro. Consigo, Tokue traz uma receita caseira do mesmo pastel. A dupla improvável acaba por estabelecer uma parceria de sucesso e por dar um novo sentido à vida de cada um. De acordo com a apresentação da Cinemateca Paixão “An” “é um gentil drama humanista, apresentando poeticamente as visões de Naomi sobre a vida e o mundo”.

A An segue-se, no dia 4 pelas 19h30, um dos filmes de referência de Hirokazu Kore-eda, “Depois de tempestade”. Nomeado para o Prémio “Un Certain Regard” no Festival de Cannes 2016, para o Melhor Cinematógrafo no Prémios de Cinema Asiático 2017 e para Melhor Filme no Festival Internacional de Cinema de Chicago 2016, a película traz a Macau mais um drama familiar.

Ryota, um escritor de renome e falido que se sustenta a ele e ao filho com um trabalho paralelo enquanto detective privado, após a morte do pai, consegue reconciliar-se com a sua mãe e com a ex-mulher. No apartamento onde vivia em criança, redescobre o passado da família e procura as suas origens. Kirin Kiki, é a matriarca Yoshiko, uma mulher idosa conhecida pelas tiradas sarcásticas e pelo olhar crítico ao mundo.

 

Ladrões premiados

O dia seguinte é o momento para ver o filme galardoado em Cannes este ano com a Palma de ouro e a última obra do realizador Hirokazu Kore-eda “Larápios”. Mais um drama familiar de Kore-eda que conta a história de uma família que sobrevive à conta de pequenos roubos. No entanto, após uma das suas sessões de furto, Osamu e o filho encontram uma menina, abandonada ao frio. De início relutante em dar abrigo à rapariga, a esposa de Osamu e matriarca da família concorda em tomar conta dela. Apesar de pobres, mal conseguindo o sustento com os furtos que fazem, parecem viver felizes e com a nova presença em casa começam a ser desvendados os elos que podem unir as pessoas, sendo ou não de sangue. De acordo com o realizador quando recebeu o prémio em Cannes, “existem formas variadas de formação familiar que não passam por laços de sangue, mas que envolvem algum ideal de honra”, disse Kore-eda. “Existe intolerância demais neste mundo. Eu quis filmar a caridade”, apontou.

A fechar a homenagem à actriz japonesa, fica a exibição de “Crónica da minha mãe” de Masto Harada.

Em 1975, o escritor Inoue Yasushi compilou três contos autobiográficos num único romance que segue a sua relação, por vezes tensa, com a mãe que sofre de demência, durante os últimos anos da sua vida. O filme é uma adaptação do romance que traz temas como o abandono, o ressentimento e o declínio, e em que Kirin Kiki interpreta a idosa que se debate com a lenta perda das memórias que amava.

Contrato das lotarias chinesas estendido por um ano

[dropcap]O[/dropcap] contrato de concessão com a Sociedade de Lotarias Wing Hing para a exploração de lotarias chinesas vai ser prorrogado até 31 de Dezembro de 2019.

A informação consta de uma ordem executiva, publicada ontem em Boletim Oficial, que delega no secretário para a Economia e Finanças, Lionel Leong, os poderes necessários para, em nome da RAEM, outorgar na escritura pública de prorrogação do prazo até 31 de Dezembro de 2019, e alteração do contrato de concessão celebrado com a Sociedade de Lotarias Wing Hing.

As lotarias chinesas geraram, no ano passado, receitas de 10 milhões de patacas, detendo o segundo pior desempenho entre todos os tipos de jogos a seguir às lotarias instantâneas, de acordo com dados da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos (DICJ).