Ângelo de Lima e a nossa loucura moral

Nos vinte anos passados em Rilhafoles nunca terá habitado o famoso panóptico, destinado aos loucos furiosos ou agitados, como se dizia à época. O psiquiatra Miguel Bombarda impusera-lhe no diagnóstico um vago “loucura moral”, que é como quem diz “loucura social”. Alguns anos antes, é lá que Fernando Pessoa, não se sabe acompanhado de quem, vai buscar um punhado de poemas para publicar no segundo número de Orpheu, assim respondendo a quem considerava loucos aqueles novistas, atirando-lhes como resposta um louco consumado e contumaz.

Ângelo de Lima, poeta e artista plástico, nascera no Porto em 1872. Ingressa muito novo no Colégio Militar em Lisboa, do qual é expulso em 1888. Regressado ao Porto, aí frequenta a Academia de Belas-Artes. Reconhecido desenhador, chega mesmo a substituir o pintor (e também poeta) António Carneiro na direção artística de uma das muitas revistas artísticas que pululavam na capital do Norte, A Geração Nova (1894-95). Continuará ainda a desenhar nas instituições psiquiátricas que o acolheram, mas a sua obra gráfica, tocada de óbvio academicismo, não se compara à importância da sua poesia. Como militar, oferece-se para seguir em 1891 na expedição a Moçambique que apresou o Gungunhana e está também envolvido na gorada conspiração republicana do Porto, no mesmo ano, e de que tem notícias ao chegar a Adem. Depois de complicações várias, incluindo um presumível incesto e um desacato público, em 1901 é internado em Rilhafoles, hospital em que mais tempo passará, até à sua morte em 1921.

A loucura domina assim como um signo fatal sobre o poeta e sua obra, não só comprometendo-lhe a receção, mas toldando ou até apagando o entendimento dela. Mais do que isso, toda a crítica – nem de propósito, Essa Crítica Louca é um título de E. Melo e Castro – está, na verdade, refém desta questão, na loucura moral de não ver o óbvio.

Cem ou mais anos para ver o óbvio: Ângelo de Lima nunca foi louco, foi feito dele um louco. Bastaria olhar a métrica perfeita e a articulada desagregação gráfica dos poemas. São textos enlouquecidos de um poeta que nunca foi louco, e apenas na aparência desarticulados: “– Mia Soave… – Ave?!… – Alméa?!…/ – Maripoza Azual… – Transe!…/ Que d’Alado Lidar, Canse… / – Dorta em Paz… – Transpasse Idéa!…” Já não é esse o caso da prosa, a maior parte da qual muito possivelmente escrita mais tarde, como a carta em que disserta acerca da feia bandeira do novo regime, apesar do seu republicanismo inflamado. É já uma carta de alguém de quem foi feito um louco.

Mas há que começar a ler Ângelo para além da sua (falsa) loucura. O seu caso é um de lenta patologização de comportamentos desviantes, como as obscenidades que terá proferido num teatro (“porra!”) ao ser comprimido pelo público e um incesto com uma suposta meia-irmã. É hoje em dia extremamente perturbador, e significativo do grau de controle e alienação de uma sociedade que não só encarcera alguém que diz “porra!” no lobby de um teatro, mas que ainda o patologiza com base nisso e num suposto incesto, nunca comprovado e sempre desmentido pelo poeta.

Do teatro vai direto para a penitenciária, e daí para Rilhafoles, num processo de criminalização da miséria amplamente documentado por João Gonçalves, no elucidativo A Penitenciária perante a Loucura, obra de 1908. Ratoneiros, latoeiros, lavradores analfabetos é que formam a brandoniana enxurrada humana que escoa em Rilhafoles. Seria essa uma das causas da patologização de Ângelo, empobrecido e alcoólico por anos de errância? Não sou eu quem o diz, antes de mais o poeta: “Eu não sou doudo, tenho sido manejado como um puro manequim”, frase repetida por João de Deus nas Recordações da casa amarela e que, quanto a mim, deve ser lida à letra. Nas últimas linhas da sua autobiografia diz ainda: “E agora aqui estou, resultado final, sob concorrente exótica – a determinação tão arbitrária dêsse acobertado com a autoridade legal – resultado final até aqui, dêste viver aqui neste papel descrito.” É outro texto que, pela sua desarticulação, já mimetiza, pelo menos na sintaxe, as vesânias que lhe atribuem.

Posto isto, falta só uma coisa, que é ler os seus poemas, lê-los realmente, e parar de os apresentar como exemplo de loucura em literatura. Parar de o tomar como exemplo de o que quer que seja. E então estaremos prontos para encontrar, por exemplo, o Oriente metafísico da sua poesia, ao qual não escapou a China, e que vai muito além dos livros de jade de uma Judith Gaultier: “– E a Mãe do Rei do Reino Sul-Occaso/ Disse a Mu-Ang – Alguma Vez, Accaso…/ – Olha a Nuvem no Ceu… e como Corre!…/ – Assim as Horas da Ventura Minha… / – Quem Tem Filhos na Terra – Esse Não Morre!…/– Despozae – Se Sois Rei – uma Rainha/– Que É Tanto como Vós Pela Grandeza…/– E… Depois… de Espozardes a Belleza /Podeis Seguir Então Vossa Encaminha!…”

E é assim que, nesta reta íngreme em direção ao olvido na qual sempre vamos distraídos, ninguém se deu conta dos cem anos passados sobre a morte de Ângelo de Lima, em ano que se encontra agora perto do fim. Talvez este seja o único texto publicado na imprensa de língua portuguesa que se lhe dedica. Em Macau, o que é significativo.

Esperemos que não, embora muita coisa naquele país distante seja possível, o Grande Reino do Mar de Ocidente, como lhe chamavam os missionários que chegaram à corte imperial de Pequim. Posto assim, nominalizado e substancializado pelas maiúsculas, quase que essa inglória tradução da língua chinesa parece um poema de Ângelo de Lima.

14 Dez 2021

Ruy Cinatti, uma poesia com vultos

Disse Jorge de Sena, no prefácio a um livro de Ruy Cinatti, que os literatos seus contemporâneos, em matéria de insulíndias não iam além das livrarias do Boulevard Saint Michel. De facto, poucos como este poeta nascido em Londres em 1915 olharam de forma tão intensa para fora do eixo euro-americano, para terras que são as eternas ilhas dos exotismos dos outros. Cinatti escolheu Timor – por ninguém desejado ou escolhido, devastado que era pela invasão japonesa e pela péssima administração – não como um lugar de sensualidades imprevistas, mas como uma geografia humana, real e sensível. Foi aí que ele deu largas a uma amorosa compreensão do espaço e das gentes, e por isso se chama Timor-Amor um de seus livros.

Homem de ciência e de terreno, da agronomia (sua formação de base) e da meteorologia, passou à etnologia e à antropologia (sempre timorenses, bem entendido). Na mesma década em que dirigiu, com Tomaz Kim e José Blanc de Portugal, os Cadernos de Poesia, chefiou também o gabinete do governador desta colónia portuguesa, de quem fala num poema dos anos 70: “Desse digo eu,/ que me queria às vezes/ para seu poeta,/ sorrindo às minhas luzes de botânico,/ «Você… da Orta…/ Eu, Albuquerque!»”, um que acabou “com os miolos fritos/ pegados no teto”.

Mas as tais luzes de botânico deram para ter duas plantas batizadas com o seu nome, tal como o seu predecessor em Timor, o também poeta-botânico Alberto Osório de Castro. Cinatti vai e vem daquele território português e, entre os anos de 1951 e 1956, lá o encontramos diretor dos serviços de agricultura. Porém, incompatibilizado com a administração colonial, regressa a Lisboa. As visitas à “ilha verde e vermelha” ficarão cada vez mais condicionadas, até à definitiva proibição em 1966. Metido em Lisboa, dedicou-se a uma errância mais condicionada e à poesia das famosas folhas volantes, que distribuía mão a mão.

Os versos timorenses, sobretudo o livro central Paisagens timorenses com vultos (1974), conseguem grande concisão nas suas intimações sobre o espaço e as gentes: diretas, despretensiosas, abertas ao estremecimento emocional e até ao humor: “Em Díli./ Em Baucau, tanto faz.// Um médico suplicava: «Não leias António Nobre,/ que eu adoeço».”

Centrada numa atenção ao quotidiano que comunica diretamente com a linguagem de alguns poetas dos anos 70, a escrita de Ruy Cinatti abre-se a um tipo de discurso que a poesia portuguesa demorou a levar a sério. Mas bem antes, já nos anos 40, Cinatti constituía uma ruptura na poesia portuguesa, já que os Cadernos pretendiam ser uma opção quer ao presencismo, quer ao neo-realismo.

O outro aspecto que ressalta nos versos dedicados a Timor é que aqui se realiza, talvez pela primeira vez na poesia portuguesa, uma forma de lidar com o mundo não-europeu que o não subjuga ao filtro do império e de seus avatares.

Quer dizer, não é o Timor português, projeção colonial de um Portugal sempre fora de si, que se colhe destes versos, apesar de o poeta ter vivido o império in loco e de até o ter defendido em seu estertor. Não admira, pois, que o nome do poeta tenha caído na marginalidade, apesar da galeria ilustre de predecessores, como Camões ou Pessanha, cuja escrita – tal como a de Cinatti – dependeu estreitamente das formas que historicamente assumiu o funcionalismo colonial português.

Neste sentido, é a partir do precedente aberto por este poeta que alguma poesia portuguesa contemporânea pode aceitar uma representação descomprometida e cosmopolita de espaços não-europeus: de forma notável na poesia de ambiente turco e chinês de Gil de Carvalho, mas também na poesia “macaense” de José Alberto Oliveira, na série «Poemas Orientais» de Fernanda Maldonado e ainda nos curiosos poemas japoneses de Miguel-Manso, numa dispersão geocultural que contrasta com o lastro de provincianismo que também deixou a sua marca na poesia portuguesa contemporânea. É partindo dos luminosos passos de Cinatti que novos poetas instauram novas formas de se falar na Ásia em Portugal, superando as marcas discursivas do exotismo orientalista. Longe do Oriente como metáfora do império ou locus exótico, o novo Oriente da poesia portuguesa é agora uma Ásia que é um entre outros interesses culturais, geográficos e sociais. Em suma, este descentramento físico e mental em relação ao espaço europeu, a constante plasticidade discursiva e ainda a positividade de fundo cristão são coisas que juntas se acham raramente e que não voltaram, depois de Ruy Cinatti, a juntar-se na poesia portuguesa.

5 Nov 2021

Macau, Trinta Autores de Língua Portuguesa

Em 2016, Monica Simas e Graça Marques publicaram o livro Contributos para o Estudo da Literatura de Macau. Trinta autores de Língua Portuguesa. Foi editado em Macau, pelo Instituto Cultural do Governo da R. A. E. M. É um livro que se vem somar à crítica produzida sobre literatura em língua portuguesa de Macau, sendo um importante momento desse esforço.

Só para referir algumas obras e melhor enquadrar o interessado, nós já tínhamos algumas coletâneas ou antologias (nos anos 80 a fundamental obra em 5 volumes De Longe à China, de Carlos Pinto Santos e Orlando Neves), mas também histórias literárias propriamente dita, como a de José Carlos Seabra Pereira em O Delta Literário de Macau (2015). Estes Contributos para o Estudo da Literatura de Macau (2016), da autoria da investigadora brasileira Monica Simas e da professora portuguesa de Macau Graça Marques, são algo de diverso. Não são nem uma antologia crítica, nem um dicionário (o DITEMA teve verbetes também sobre literatura), nem um ensaio de história e de crítica literárias no seu modelo mais clássico.

Ao modo de um dicionário, os 30 autores escolhidos são organizados alfabeticamente pelo apelido e não cronologicamente, mas não temos acesso aos textos, como aconteceria numa antologia, apenas a detalhados verbetes bio-bibliográficos, seguidos de escorços críticos sobre as obras desses autores. Neste sentido, há uma diferença fundamental em relação a De Longe à China, que privilegiava a divulgação. Isto mostra uma escolha pragmaticamente acertada, porque trabalhando com autores essencialmente do XX, cujas obras não são difíceis de serem encontradas, a recolha dispensa a função de dar a conhecer textos em primeira mão.

Acontece que o conceito de literatura de Macau é em si mesmo um problema. Esta questão não é muito tratada pelas autoras, o que mostra que as propostas críticas de Ana Paula Laborinho, David Brookshaw ou Daniel Pires, que ganharam corpo no final da administração portuguesa do território, já assentaram, gerando uma tradição de leitura de um corpus em língua portuguesa.

Assim, estes Contributos entram em cena como sofisticado manual da literatura de Macau, e bem poderia ser esse o seu título, não fora o tom didático que associamos a essa designação. Não obstante, o leitor tem aqui acesso a uma introdução a esta literatura, através de 30 autores de língua portuguesa, da segunda metade do século XIX até aos dias de hoje, num panorama crítico muito bem conseguido.

Os textos críticos operam, como seria de esperar, uma série de rearrumações no cânone. Estende-se não só à poesia e à ficção, mas também a géneros como a diarística e a crítica (Graciete Batalha), bem como a crónica (António Conceição Júnior), trazendo estes duas figuras da cultura e da sociedade para a literatura de Macau. Dão-nos boas e também refrescantes leituras os excelentes ensaios dedicados a autores consagrados desta tradição literária, como Maria Ondina Braga, Henrique Senna Fernandes e Adé. Outro tipo de modificação no cânone é a entrada de novos autores, mas com produção já de monta, como Carlos Morais José. A este respeito, é de estranhar o preterimento de dois poetas importantes, Jorge Arrimar e Yao Feng. Dizemos isto mesmo apesar de sabermos que apontar ausências ou presenças a uma antologia crítica é desconhecer que o gesto antológico depende de várias circunstâncias e pretende sempre ser desencadeador de modificações no cânone literário.

O texto crítico dos verbetes trabalha com vários tópicos: a identidade de Macau e a identidade macaense, a escrita de uma cidade em transformação contínua e sobretudo as formas pelas quais os autores refletem sobre uma cidade aberta, mas na qual essa abertura trouxe e traz enormes questões. A maior de todas foi sem dúvida as expectativas e incertezas em torno da transferência de soberania, que polariza – este livro mostra-o muito bem – uma série de obras que surgem entre 1986 e 1999.

Em suma, os autores de Macau desprendem-se deste livro como uma constelação orgânica, enraizada nesse território chinês como um significante dos seus movimentos. Fica claro da leitura dos ensaios que estes são autores de Macau não porque tenham escolhido o território para aí habitarem por alguns anos – como foi a certa altura pensado –, mas porque devolvem um rosto em língua portuguesa a essa cidade, interrogando-a e escrevendo-a, sendo por esta razão que Macau sempre tem forte incidência temática em suas obras.

24 Set 2021

Sansão na Vingança!

Nomeado secretário do novo Governador, Francisco Maria Bordalo (1821-1861) chegou a Macau em 1850, ainda a tempo de encontrar os restos calcinados do seu irmão, ao que parece melhor poeta do que ele: “Onde Camões desterrado/ Seu tão triste amor carpira/ Vivo eu pobre, eu deslembrado,//Sem ter como elle uma lyra:/ Oh! Quem china antes nascêra,/ Na minha Lorcha eu vivera/ Com velas de esteira fina;/ Que lhe importa ao china a terra,/ Se tudo qu´elle ama, encerra/A Lorcha dum pobre china?”. Escrevera a atestá-lo Luís Maria Bordalo, pouco antes de morrer na explosão da fragata D. Maria II, ao largo da Taipa.

Movido por esse inesperado desastre, o irmão vai escrever uma noveleta em que o ficciona; ou semi-ficciona na verdade, pois não esconde os nomes dos protagonistas históricos, o que lhe dá um registo cronístico do qual os seus textos nunca saem inteiramente. Ambientada em Macau, onde o autor esteve uns magros 18 meses, Sansão na Vingança! (1854) – assim mesmo, com ponto de exclamação –, lê-se numa assentada. E ainda tem um arremedo de amor ultrarromântico entre o marujo poeta defunto e uma italiana fatal, que a explosão salva do adultério a tempo.

Quem sabe o leitor, cansado de curtir o seu longo recesso em Macau – que nestes tempos tem voltado a ser o acantonamento para os europeus que era de início –, não dá um passeio até à Biblioteca Municipal, ao Tap Siac, onde encontrará a edição de 1980, publicada em Macau e prefaciada por Pedro da Silveira? O florentino confirma-lhe a qualidade de iniciador da ficção portuguesa de temas marítimos e ultramarinos, coisas que nessa altura se confundiam. Mas apesar de tal pioneirismo os seus livros, diz Silveira, vendiam pouco. Ocupados com os últimos fogachos das pugnas liberais, poucos ouvidos davam os seus contemporâneos a assuntos coloniais e a aventuras de bordo. Ainda não soara a hora do império, estavam longe ainda os mapas de Berlim e sua conferência.

Prosador com o seu quê de naïf, faz sorrir a forma como em Sansão cede às fantasias mais absurdas do orientalismo europeu sobre a China, em particular ao famigerado “perigo amarelo”. Bordalo levanta, por exemplo, suspeitas em torno de supostas sociedades secretas chineses, que existiriam há mais de quatro mil anos, para repor ao poder a dinastia Ming e colocar os cristãos uns contra os outros. Teriam feito parte de um conluio para a destruição das naves portuguesas. Certamente que o clima anti-chinês, bem vivo nesta novela, estava ao rubro com a morte recente de Ferreira do Amaral, o que se nota ainda, de forma menos folclórica e mais sopesada, no capítulo VI, em que descreve o funcionamento de um tribunal sínico. Recorda o famigerado prefácio que Camilo Pessanha irá escrever anos mais tarde, e que tantos enganos tem gerado.

Pedro da Silveira, simpático açoriano que também passou por Macau para ver como era, com muita generosidade e audácia o compara a uma “espécie de Blaise Cendras antecipado, mas sem os ousios ou a imaginação do autêntico” (Prefácio, p. vi). Um Cendras ultrarromântico é obra! Mais facilmente pensaríamos no cearense Adolfo Caminha e no seu mais conseguido Bom Crioulo (1895), de tema amoroso e talvez mais conveniente a climas náuticos. De qualquer forma, fora a marinhagem, que hoje temos como datada e algo fastidiosa, interessa mais em Bordalo as viagens que ela permitiu e que surgem descritas em várias obras, uma mina para os que estão atentos. Não é pela marinha, seu pitoresco vocabulário e quadros semi-heróicos, que me perdoe Silveira, que Bordalo deve ser recuperado, mas por uma escrita clara e despretensiosa, que se abre a muitas geografias.

11 Ago 2021

Pessoa, o Oriente e a Sociedade Teosófica

A palavra de ordem dos românticos alemães: “É no Oriente que devemos procurar o romantismo supremo” (F. Schlegel). Mas nunca conseguimos sair do plano das representações. Seria preciso esperar pelas vagas de emigração de proveniência dos países do mundo árabe e da Ásia, a partir dos anos 60, na Europa, e em Portugal nos anos 90, para termos acesso não a textos sufocados por traduções, mas a pessoas reais, com práticas e contextos reais. Mas já de antes o Oriente do budismo, do Hinduísmo, numa espiritualidade muito diluída e mal traduzida, exerciam um verdadeiro fascínio na Europa, ainda que sempre separado e alheio do contexto religioso, social, doutrinal em que nasceram. Acresce a isto o Esoterismo, que tantas vezes se misturou com muitas destas tradições, mas que tem uma linha europeia própria: tradição hermética, alquímica, maçónica, cabala, simbolismo cristão.

Um dos movimentos que mais fama teve, e logo na segunda metade do século XIX, foi a Sociedade Teosófica, cuja principal força motriz foi fazer essa ponte entre Ocidente e Oriente, daí o seu resultado textual ser fortemente orientalizado. Esse movimento propôs uma fortíssima e sincera revalorização das espiritualidades orientais. Com efeito, a fase madura da doutrina de Helena Blavatsky (1831-1891) foi influenciada pelo Hinduísmo e, mais tarde, pelo Budismo, sobretudo depois da sua viagem à Índia, em 1878, que deu origem à esmagadora obra em seis volumes A Doutrina Secreta (1888). É de notar que, instalada na Índia desde 1883, a Sociedade deu apoio ao combate anti-colonial contra os ingleses.

Fernando Pessoa descobriu a Teosofia em 1915, tendo traduzido para Português várias obras teosóficas como a da Voz do Silêncio, de Helena Blavatsky, datada de 1916. Mas a sua relação com o movimento e com a Sociedade não ultrapassa o papel de estudioso e tradutor, nem consta que tenha sido filiado. De qualquer modo, a espiritualidade tradicional indiana, e asiática em geral (ou uma certa imagem dela), passa a ser um objeto de pesquisa de Pessoa e entra na formação do pensamento esotérico pessoano. Não por acaso o poeta Ricardo Reis e o filosofo António Mora sentem a necessidade de serem dois acérrimos críticos do Esoterismo, pois também no ensaio e na reflexão sobre estas questões a autoria heteronímica entra em cena. As posições da côterie heteronímica sobre esta questão são, como seria de esperar, diversas e contraditórias.

O inicial respeito e fascínio conduz a um progressivo desconforto que o poeta e intelectual vai experienciando com esta tradição. Tal implica um repúdio face ao Oriente reciclado que a Teosofia apresentava, o que é visível neste apontamento inédito, datável da década de dez [c. 1917], onde se opõe a perspetiva teosófica ao Rosacrucianismo: “A Rosicrucian is a kind of occultist a man <† to> of <†> /our/ mind can understand. He cannot understand a neo-buddhist. The detestable indian sub-jugglery, called Theosophy, so despicably, taken far from the great, though diseased beauty of the Buddhism of the East, by its □ mixture with /western/ modernities” (BNP/E3, 26B-8r).
Mas a crítica pessoana à Sociedade Teosófica visa não apenas as suas roupagens orientalizadas. Outro dos incómodos, para Pessoa, consistiria na vulgarização dos princípios do Esoterismo, que defendia não deverem ser massificados, ao contrário do que a Teosofia propunha, bem como no seu “humanitarismo” militante, visto pelo autor como uma espécie de novo supracristianismo, incompatível com o projeto do anti-cristianismo neo-pagão que estava a desenvolver. Confessa numa importante carta a Mário de Sá-Carneiro, datada de 6 de Dezembro de 1915, e que pode ser conferida pelo primeiro volume da edição de Manuela Parreira da Silva da Correspondência: “A Teosofia apavora-me pelo seu mistério e pela sua grandeza ocultista, repugna-me pelo seu humanitarismo e apostolismo (…), repugna-me por se parecer tanto com o cristianismo, que não admito”. Por isso, o caminho do esoterismo pessoano vai divergir para o Rosicrucianismo, a Alquimia, a astrologia ocidental. Mas certas ambições pessoanas de criar um sistema totalizante, que unisse as religiões, as filosofias, a ciência e da literatura, é da Teosofia que recebem o seu primeiro modelo e impulso de escrita.

9 Jun 2021

Pessoa, Gandhi e as colónias

Há uma frase manuscrita de Fernando Pessoa sobre a figura de Ghandi, já parcialmente publicado por Richard Zenith na fotobiografia Fernando Pessoa (2008). Assim reza: “O Mahatma Ghandi e a única figura verdadeiramente grande que há hoje no mundo. E é isso por que, em certo modo, não pertence ao mundo e o nega”. O interesse pela figura de Gandhi pode ter sua origem no fato de a estada do independentista na Africa do Sul, entre os anos de 1893-1914, ter parcialmente coincidido com a permanência de Pessoa nessa colónia britânica. No entanto, no caso específico deste esboço o foco parece ser a tão indiana renúncia de si e esvaziamento do sujeito. Pessoa insinua que a tendência mística e acética é que está na base da luta pacifista pela emancipação do Mahatma.

Num imaginário encontro com Ghandi, Pessoa não lhe reprocharia a luta anti-colonial, mas talvez também não a elogiasse. Interessa-lhe a sua qualidade de herói dessubjetivado, vazio de si mesmo. E para Portugal, para o fim que lhe imaginava e atribuía, não só sabemos que queria heróis dessubjetivados, mas também as colónias não eram curiosamente necessárias. Num dos muitos projetos pessoanos de escrita (não apenas poemas e autores, mas ensaios, filosofias e sistemas), há um chamado Atlantismo, de 1915. Ficaram apenas os títulos de Secções do Manifesto, texto pouco desenvolvido e meramente tópico, ficamos com uma perspetiva abrangente das dimensões deste estranho “ismo”, contemporâneo de Orpheu. Alguns desses tópicos falam em “A conceção atlântica da vida” ou em “imperialismo espiritual”, um velho projeto de Pessoa que depois animará a Mensagem. outros mais duvidosos, sobretudo tendo em vista o contexto da Primeira Guerra, são “Germanofilia de alma, anglofilia de corpo”. O mais interessante a este propósito diz: “Inutilidade e malefício das nossas colónias”.

Este último tópico significa, antes de mais, a entrada em cena de Pessoa numa discussão da Primeira República e de antes, com antecedentes no pensamento de Oliveira Martins, e de outros intelectuais portugueses de Oitocentos, que advogaram a venda de Macau e sobretudo de Timor para com tal dinheiro investir em África, centro e foco do império a partir do final do século XIX. Em Pessoa estamos ainda muito longe da sensibilidade para a descolonização, historicamente trazida pela Segunda Guerra Mundial; mais perto estamos da conjuntura do tratado de Berlim de 1884 de redefinição e reforço do colonialismo em África do que com um real pós-colonialismo, para Portugal ainda muito distante.

Há que pensar que o império está habituado à consideração da sua própria fragilidade através dos intelectuais portugueses, sobretudo deste a Questão Africana e do Ultimatum até 1975, no que à cultura contemporânea interessa. É por esta razão que o projeto de um imperialismo da cultura, do espírito e da literatura para o qual o Atlântico pode ser o melhor símbolo (anunciando as nossas lusofonias de hoje) é uma imagem que simultaneamente esconde e revela a hipótese de um Portugal sem colónias. Esconde-o porque é uma forma de dar sentido a um império frágil e ao mesmo tempo prova a sua fragilidade porque dela deriva, revelando-a. Afinal, como as cartas de amor, todos os imperialismos são ridículos, e se todos são ridículos, antes se prefira o que dá mais gozo, que é o imperialismo de poetas:

“É um imperialismo de gramáticos? O imperialismo dos gramáticos dura mais e vai mais fundo que o dos generais. É um imperialismo de poetas? Seja. A frase não é ridícula senão para quem defende o antigo imperialismo ridículo. O imperialismo de poetas dura e domina; o dos políticos passa e esquece, se o não lembrar o poeta que os cante.

Dizemos Cromwell fez, Milton diz. E nos termos longínquos em que não houver já Inglaterra (porque a Inglaterra não tem a propriedade de ser eterna), não será Cromwell lembrado senão porque Milton a ele se refere num soneto. Com o fim da Inglaterra terá fim o que se pode supor a obra de Cromwell, ou aquela em que colaborou. Mas a poesia de Milton só terá fim quando o tiver o homem sobre a terra, ou a civilização inteira, e, mesmo então, quem sabe se terá fim.”

Pessoa sabia que o verdadeiro imperialismo era pôr os outros a ler os nossos poetas, enviar as falanges anterianas para invadir Cádiz ou talvez uma outra Ceuta qualquer. Cromwell só existe para que possa existir Milton, Vasco da Gama só existe para que possa haver Camões. E esse, imperialismo, em última instância, como queria Agostinho da Silva, é sem império e sem imperador. Que os países, seus mandos e impérios, possam no futuro ser vagos e coloridos símbolos, já sem referentes, de atitudes mentais, filosóficas e literárias é coisa que aguardamos com expectativa, porque há de ser o mais ridículo e útil dos gozos de mandar.

7 Mai 2021

O canal e o engenheiro

O canal e o engenheiro

Opiário é o poema de Fernando Pessoa, publicado no primeiro número da revista Orpheu (1915) em que se estreia a voz do engenheiro naval Álvaro de Campos. Encontramo-lo a bordo de um navio, o que não seria à partida estranho, e de regresso à Europa. Mas o nosso engenheiro exprime a dada altura este estranho desejo: “Não chegues a Port-Said, navio de ferro! / Volta à direita, nem eu sei para onde”. Ora, Port Said fica na costa do mar Mediterrâneo, à entrada do Canal de Suez, de que o ano passado 150 anos decorreram sobre a abertura. O falso poeta Campos prefere antes ir para aquela direção misteriosa, entrevista por entre os vapores do ópio, e que havia sido formulada no quarto verso da estrofe introdutória: “Um Oriente ao oriente do Oriente”. É preciso ainda saber que o heterónimo escreve confinado na sua cabine, a bordo e em pleno canal. O paratexto dá a seguinte referência: “1914, Março. / No canal de Sués, a bordo”. Tudo ficcional, bem entendido.
À época celebrada como grande proeza da engenharia moderna, o engenheiro Campos não parece interessar-se por essa marca do progresso material da “civilização ocidental”. Foi o pai gay de Álvaro de Campos (não que o filho deixasse de ser) e não o tímido pederasta Marinetti, que o ensinou a olhar para a tecnologia moderna. Para o poeta de Leaves of Grass, esta encontrava o seu fim último no continente americano, implicando uma genealogia civilizacional. Ora, um dos pontos focais de transferência dessa herança da Europa para as Américas é precisamente o Suez: “(…) the strong light Works of engineers,/(…)/ In the Old World the East the Suez canal” (Whitman, Passage to India), e um dos pontos de passagem da sua sexualização do cosmos, como um omphalos ou um genital do mundo.
O Suez é, afinal, um episódio romântico, no sentido de haver sido assumido como forma de “progresso” técnico, afirmação espectaculosa e tardia de conquista da natureza. Na geografia simbólica da transição para o século XX, foi um local entendido como novo centro simbólico da terra, unindo Ocidente e Oriente. Aclamado como símbolo do progresso, louvado como prova de que a geografia deixaria de separar o Oriente e o Ocidente, o Oriente e o Ocidente, o canal foi quase o centro do mundo.
Ao estudar o processo de construção desta obra, entra-se em pleno território simbólico, isto é, depara-se com o capital imaginário que as principais potências coloniais daquela época depuseram sobre um particular espaço geográfico. É toda uma complexa teia de representações aplicada a um espaço que, em termos materiais, se trata apenas de uma linha de água atravessando um deserto, em simultâneo causa e efeito do confronto de várias posturas ideológicas. Pouco importa a realidade objetciva, antes a sua representação, é o que o canal parece dizer, algo que na nossa modernidade não é nada estranho. Por tal razão, o projecto de engenharia é baptizado pelo seu idealizador, Ferdinand de Lesseps, como “pensée morale”, pensamento moral. O canal não é um canal, é um pensamento.
Edward Said, no seu livro de 1978, Orientalism, que discute as representações que a Europa foi fazendo da Ásia, propô-lo como o sinal da viragem epistemológica que ocorre no próprio orientalismo: a passagem do Oriente, como categoria sinalizando um espaço perigoso e exterior, para uma “noção administrativa ou executiva” (2004, p. 107), já no contexto pan-imperial da segunda metade do século XIX, dominado pela Inglaterra e pela França. O feito de engenharia torna-se símbolo evidente da indistinção geográfica e política entre Oriente e Ocidente, de um Ocidente que devorou o Oriente.
São, pois, vários os elementos que circulam em torno do canal. O promotor da escavação do istmo é francês, os seus construtores são egípcios, e o capital que patrocina a obra é, quer egípcio, quer o grande capital europeu. Por último, os seus detentores serão os ingleses, com a ocupação do Egipto e subsequente controlo do canal entre 1882 e 1956. É assim um fenómeno da comunidade internacional, promovido por interesses expansionistas, e que joga com a sobreposição de valores (capitais monetários e imaginários) sobre um território em constante redefinição.
Se é certo que são a Inglaterra e a França os mais envolvidos na gestão real e simbólica do Suez, por serem as forças mais interessadas numa passagem de navegação entre o Mediterrâneo e o Mar Vermelho, o canal também não deixa de remeter para a cultura portuguesa, uma vez que esta nova porta de acesso realiza por fim, ainda que por outras mãos, a necessidade antiga de chegar à Ásia por terra. O Suez vem tornar obsoleta a travessia marítima do continente africano que servira o projecto imperial português na sua formação.
Ora, o português moderno e desiludido chamado Álvaro de Campos estudara engenharia naval em Glasgow. É significativo que este, como nós todos, herdeiro dos descobridores de Quinhentos se forme no Reino Unido, à altura possuidor da maior força naval do mundo. Mas agora vamos encontrá-lo duplamente desempregado. Não tem emprego certo, mero e desiludido passageiro de um cruzeiro quasi-burguês, e o mundo já não precisa de descobridores para as suas índias, já todas mais que descobertas: “Pertenço a um género de portugueses/ Que depois de estar a Índia descoberta/ Ficaram sem trabalho. A morte é certa./ Tenho pensado nisto muitas vezes”.

17 Dez 2020

Não há paisagem

[dropcap]N[/dropcap]o meio das litanias pela inacção, pelo tédio e pela abdicação, a China aparece de repente no meio do Livro do Desassossego. Bernardo Soares podia ser o Lao Tse da Rua dos Douradores, e Pascoaes o Confúcio do Marão, mas nem por isso. De qualquer maneira, para os dois primeiros a renúncia é a libertação e é certo que só “não querer” é o verdadeiro poder. Nisso concordam, quer o mestre Lao quer o guarda-livros (quer ainda o Manuel de Barros, lá na capitania de Mato Grosso), mas o sábio assiste e dá valor às dez mil coisas, revés e convexo do vácuo. Já Bernardo nem por isso, e fica-se pela pura inação:

“Que me pode dar a China que a minha alma me não tenha já dado? E, se a minha alma mo não pode dar, como mo dará a China, se é com a minha alma que verei a China, se a vir? Poderei ir buscar riqueza ao Oriente, mas não riqueza de alma, porque a riqueza de minha alma sou eu, e eu estou onde estou, sem Oriente ou com ele.”

De resto, por que razão aparece aqui a China? Ela é aqui apenas uma metáfora do longe, e interessa aqui o seu uso conhecido como imagem do outro absoluto. É assim exemplo privilegiado para uma desconstrução do exotismo da viagem. A única viagem possível é a viagem interna, porque o único criador de diferenças e de exotismos é a alma.

É difícil entender esta ideia, tão habitados que estamos – ou que estávamos, melhor dizendo – à ideia de viajar, de perder países. Na verdade, viajar é apenas uma vulgaridade, como o mesmo Bernardo disse a propósito de subir à montanha. Quem está no alto da montanha está apenas a ver o mesmo que se vê de baixo, só que de uma altura maior. Quem está no alto da montanha está apenas no alto da montanha. Assim também, quem viajou apenas se moveu uns quantos passos para a frente. Da mesma forma, quem está na China está apenas na China, foi ao termo real do continente ao qual se prende a Península Ibérica: em Vladivostok ou Dalian, comendo um bom glass noodle entre as duas Coreias, aí o termo real da península dos iberos e da terra dos zuavos. Quem está na China está apenas uns quantos quilómetros mais à frente. Lá só vai encontrar o mesmo que se encontra na Serra da Arrábida ou no Cacém, com uns quilómetros de permeio.

O campo é igual à cidade, o mar é igual à terra, e esta ao rio, e assim sucessivamente. A paisagem tem sempre gente lá dentro, e essa gente é sempre e toda mais ou menos boa, ou mais ou menos má.

Como consola, como ajuda, nestes tempos em que não podemos viajar, entender que viajar é apenas uma declinação pobre da (in)capacidade de sentir! Afinal, viaje quem não pode sentir, vá quem não pode ficar. Eu só encontro aquilo que os meus e mesmos olhos mostram, e daqui até à China a glauca retina não muda de cor nem de massa. São tão pobres os livros de viagens!, diz Soares: as terras de que falam, todas iguais e daninhas, imagens baças coladas a uma retina, uma fotografia que desliza como faz um verme.

31 Jul 2020

Bíblicas desilusões

[dropcap]E[/dropcap]m 1894, ainda a bordo do navio que o conduzia a Macau, Camilo Pessanha começou a escrever cartas ao pai e ao colega e amigo Alberto Osório de Castro. Trazem as descrições primeiras daquela cidade, bem como da travessia até lá. Mostram um registo pitoresco, embebido de leituras de Pierre Loti, um famoso autor do exotismo francês e dos crisântemos floridos que hoje já ninguém lê. É o registo do iniciante, do recém-chegado, vibrando a qualquer lastro de exotismo e não o Pessanha que nos habituámos a conhecer, ponderado estudioso das coisas da China e com muito poucas cedências ao fascinado discurso do exótico oriental, que tantas vítimas fez até hoje.

É de supor que as leituras orientalistas (Loti e outros franceses) fazem parte da bagagem da sua travessia para o “pálido Oriente – pálido e rútilo” (Correspondência, p. 120 da edição de 2012, de Daniel Pires), expressão com forte olor francês a chineserias e japoneserias retirada de uma carta a Osório de Castro. E o mais importante é que estas primeiras cartas assinalam já um vivo interesse pela China e, mais importante ainda, um programa de escrita logo desde a arribação, como o desta, enviada a seu pai desde Macau:

“Quase já estou animado a escrever sobre coisas do Oriente” (Correspondência, p. 228).
Mas o primeiro sinal desse confronto com o Oriente tem um nome concreto, chama-se desilusão, e chega mesmo antes de o poeta chegar à China. Passado o estreito de Malaca, logo se queixa ao pai acerca do mundo que se lhe apresenta para lá da Europa. É, na verdade, tópico habitual da literatura: o velho Oriente revelando-se como desilusão, quando confrontado com o livro, isto é, a autoridade europeia com que viaja debaixo do braço, que prepara, explica e dispõe o Oriente. É o ponto da viagem no qual se desilude com Adem, cidade-porto junto ao Mar Vermelho, na primeira travessia para Macau: “Não vi coisa alguma do que dizia um artigo que eu li de António Enes: nem chins, nem turcos, nem índios, nem gregos… nem ingleses” (p. 219). O poeta confronta a sua visão com a descrição de António José Enes, um político ultramarino invocado como autoridade (desmentida) em assuntos do Oriente. Seria porventura um artigo aconselhando o viajante português sobre o que iria encontrar em viagem para Leste, e como se comportar diante de bizarrias e barbaridades.

Aqui Camilo junta-se a outros viajantes ilustres da desilusão, como Goethe, Chateaubriand, Nerval ou Twain. O problema é que o Oriente moderno já não se parece nada com os textos, bíblicos e outros, como no caso daqueles turistas do Próximo Oriente a que podemos juntar o poeta da Clepsydra. O desencanto é porém mais um sinal do conhecimento superficial, e Camilo não é um turista na China, apenas nestas paragens. A China está certamente para além de qualquer encanto ou desencanto europeu, mas esta breve passagem pelo tema romântico da desilusão é importante como o momento em que a mente se prepara para conhecer o que está por detrás dos textos e criar novos textos que possam mentir de outra forma. Uma forma, digamos, mais sofisticada. Afinal, quarenta anos passados em Macau permitem mentir muito e melhor, ainda que sobre o celeste império dê para mentir apenas em prosa, que o verso, com China ou sem China, é sempre verdadeiro.

9 Jul 2020

Um flirt imperialista em Bombaim

[dropcap]A[/dropcap]lguém disse que o maior castigo dado aos portugueses pelo seu extenso rol de maldades foi o de terem ao pé de cada colónia sua uma outra inglesa: Macau e Hong Kong, Moçambique e a África do Sul, Goa e Bombaim, a grande urbe da Índia Britânica. A relação entre Bombaim e Goa acontecia de forma semelhante à relação entre aqueles dois pedaços de China nas mãos dos europeus. Bombay, numa falsa etimologia a “boa baía”, servia como acolhimento dos migrantes goeses que aí mourejavam uma vida melhor.

Muito depois de esta feitoria portuguesa ter sido entregue à Inglaterra como dote do casamento de Catarina de Bragança, poderíamos perguntar pelos textos em português sobre Bombaim. Provavelmente, a grande maioria foi escrita pelos próprios goeses, onde se nota o pasmo do homem da aldeia goesa face à grande metrópole. Católicos, dotados de elegantes nomes portugueses, estes cidadãos de Portugal tantas vezes se chocavam com o tratamento dado pelos britânicos à sua raça – inventora do xadrez, da matemática e da metafísica –, agora forçada a súbdita servil da rainha Vitória, ao passo que os católicos tinham formalmente assegurada a civilidade europeia.

No que toca aos portugueses de hoje, continuam a querer interpretar os sinais de Portugal num território que foi sua pertença, como Luís Filipe Castro Mendes que em Lendas da Índia dedica um poema a Bombaim e à Ilha Elefanta. Foi aí que uma bela tarde batemos a tiro de canhão estátuas de Shiva e da Trimurti pacientemente escavadas na mole de uma montanha. Admiramo-nos agora muito de ver estátuas cair e manchar, como se fosse uma novidade com a qual nada temos a ver.

E antes disso outras referências há curiosas à cidade indiana. A de uma carta de 1912 de Camilo Pessanha, por exemplo, referindo uma visita a caminho de Macau que lhe permitiu desfazer alguns dos estereótipos orientalistas que consigo levava. Aí deparou-se com bailadeiras bêbedas, a abastardada hieródula dos templos hindus, em lugar do misterioso e feminino Oriente: “Nunca me esquecerão as minhas deceções das primeiras viagens, ao ver, por exemplo, em Bombaim, certas supostas bailadeiras traçando mantos de chita estampada na Europa e bebendo como esponjas uma realíssima cerveja Pilsener”.

Já o primo e amigo de Pessanha, o poeta e juiz Alberto Osório de Castro (1868-1946), que viveu largos anos em Goa e Timor, escreveu um poema ao «Beautiful Bombay», do livro A Cinza dos Mirtos (1906). Recontando e treslendo o poema, coisa que em literatura nunca se deve fazer, Osório de Castro pinta um episódio romântico numa cidade a que chama um “delírio do oriente”. É lá que encontra os “loiros perfis de Inglesas”, frios e altivos, junto ao clarão das carruagens que saem da grande mole do Victoria Terminus, hoje Chhatrapati Shivaji, nome do guerreiro marata que tantos trabalhos deu aos portugueses no século XVII, e é lá também que se despede da amiga inglesa: “Era o momento quase de partir./ Todo negro, o comboio fumegava./Viu-me de longe, e alta e loira, a sorrir,/ Veio dizer-me adeus onde a esperava.// Not for ever! murmurou. Sua mão/ Na minha boca a última vez poisou./ E partiu! Todo ferro o train rodou,/ Pesou-me inteiro sobre o coração.”

Mas é claro que a inglesa não é realmente uma mulher, antes uma alegoria feminina do império: a Britannia ou a Lusitania, como os navios que cruzavam nessa altura o Suez. Cesário, que nessa altura ainda não namorava com o polemista Silva Pinto, tinha já forjado para a poesia portuguesa uma imagem baudelairiana para a mulher do norte da Europa: fria e distante como uma alegoria e provavelmente tão pouco mulher como esta.

No poema «Frígida», de Cesário, a mulher é o ferro, o aço e o gelo, não por acaso materiais que serviram a construção dos instrumentos do poderio colonial inglês. Um destes seria o grande feito de engenharia da segunda metade do século, a abertura do Canal do Suez em 1869. Este viria a agilizar a circulação entre a Grã-Bretanha e suas distantes possessões. E é assim que o brilho e o furor da tecnologia estremecem na alvura da pele e nos cabelos da mulher, triunfante no palco colonial.

O poema de Osório de Castro é então uma curiosa encenação das relações inter-coloniais de Portugal e Grã-Bretanha sob a forma de um encontro amoroso, enquanto a cidade – ausente de tudo isto como um mero palco exótico – estremece no Divali, toda ela lume e brilhos. O poeta descreve uma imensa multidão que reza, entontecida de perfumes, enquanto os gongs chamam à oração. A Índia é aqui mero cenário de um flirt imperialista, cenário do qual os sujeitos locais são retirados, tornando-se obs-cenos, mera multidão indistinta. O que lhe importa são os personagens de um drama imperial: a mulher (?) dominadora, natural de um grande Império, e o homem português, amoroso e fragilizado como o seu amesquinhado império.

19 Jun 2020

Visitas ao Samorim

[dropcap]O[/dropcap] Samorim, figura histórica que em 1498 recebeu Vasco da Gama em Calicut, é personagem d’Os Lusíadas, e vamos encontrá-lo “modernizado” (como o poeta diz) em Lendas da Índia (Dom Quixote, 2011), de Luís Filipe Castro Mendes. Fruto de uma estada em New Delhi onde o diplomata viveu, o livro recolhe uma experiência da Ásia já atravessada pelo ar pós-colonial e multicultural do nosso tempo, que o obriga a nascer com várias precauções ideológicas. Começando por desmascarar estereótipos – “alguns pensam que a Índia é um país/ de milionários e de faquires…” (p. 53) –, o livro desde logo ultrapassa o modo exótico, que não sobrevive para o europeu mais do que o tempo de duas monções. Se é certo que o autor recusa tal registo, vai porém glosando velhos tópicos que dominaram a visão europeia da Ásia ao longo dos séculos XIX e XX.

Voltando ao Samorim, é curioso verificar que a questão que ele traz à tona é exatamente a mesma das recentes polémicas em torno dos Descobrimentos, da escravatura e do racismo, que tem agitado as àguas da intelectualidade portuguesa, em televisões e jornais: “Não causou estranheza ao Samorim que o Gama usasse com ele o verbo «descobrir»:/ tinham menos sensibilidade colonial aqueles reis/ e o «olhar antropológico» era para eles uma questão de mercado.// É verdade que o verdadeiro mundo colonial só veio depois./ Subramanyam estranha que o Samorim tenha deixado o Gama dizer/ que viera «descobrir» aquelas terras, de todos conhecidas,/ e insinua confusão dos tradutores árabes.// Mas o Samorim pensava/ que estava tanto a descobrir aquela gente como a nossa gente/ o estava a descobrir a ele./ O comércio tinha que crescer/ E a concorrência era proveitosa./ Não era nem um combatente da liberdade nem um leal colonizado:/ era o Samorim!” (“1498: Modernidade do Samorim”, p. 127)

Para Castro Mendes, o Samorim não é nem o anacrónico freedom fighter pós-colonial (no sentido anti-colonial deste último termo), mas também não é uma figura sem existência real fora d’Os Lusíadas. Assim, o Samorim “moderno” do autor representa um pragmatismo diplomático e económico que visa desconstruir o complexo pós-colonial português: o Samorim tratou com Gama com pragamatismo e não se importou em ser “descoberto”. A introdução de uma dimensão crítica e de debate no poema, para a qual não se coíbe de apresentar nomes (como o do historiador indiano Sanjay Subrahmanyam) e de emprestar voz às posturas em confronto, é uma das dimensões mais interessantes deste livro.

Nesta visão que se pretende descomplexada, quer em relação à Ásia, quer em relação a Portugal, torna-se absurdo pedir desculpas pela História – “A História (…)/ serve agora para pedirmos desculpa do passado,/ dispensando-nos de olhar para o presente”, (p. 43). A questão não é porém assim tão simples, na medida em que todas as posições são ideologicamente comprometidas e feitas a partir do ponto presente, mesmo as que buscam repor a tal verdade histórica ou encerrar estas questões na esfera da culpa, do remorso e do complexo, no sentido psicanalítico do termo. Esta discussão bastante viciada esconde talvez a dimensão mais interessante do livro. É por entre esta questão, com muitas armadilhas e alçapões, que se assume que Lendas da Índia trata, não apenas da Ásia, mas também de uma Ásia que é Portugal, embora não já num sentido imperial. As tais marcas que a cultura portuguesa deixou na Ásia são também Ásia, e são hoje (talvez sempre o tenham sido) mais Ásia do que Portugal.

22 Mai 2020

O Oriente dói

[dropcap]M[/dropcap]esmo os mais distraídos (o que por vezes inclui a crítica) terão notado a obsessão arqueológica presente em vários livros de poesia publicados sobre o Oriente por portugueses, desde o século XIX até hoje. Eles parecem estar sempre à procura (e por tanto que procurem é fácil encontrar) dos lugares, monumentos e inscrições da presença de Portugal na Ásia, mesmo tendo que escavar não só por entre a vegetação tropical que entretanto engoliu as igrejas jesuíticas, mas também por entre os resquícios mais visíveis de feitorias holandesas e de empresas britânicas que tomaram conta do nosso empório. Couto Viana disse-o em No Oriente do Oriente (1987): “O português no Oriente/ Encontra sempre sugestões, sinais” (p. 35).

Mas não só de ruínas vive esta poesia. Os próprios poetas portugueses que calcorrearam a Ásia são também recuperados como elos desse chamado Oriente Português. E assim Camões, Mendes Pinto, Bocage comparecem como personagens literárias sem as quais não é possível entender a Ásia, em poemas e outros textos de Camilo Pessanha, Alberto Osório de Castro e, mais recentemente, de Ruy Cinatti, Armando Martins Janeira, António Manuel Couto Viana, José Augusto Seabra, Carlos Morais José e de Luís Filipe Castro Mendes, formando uma linhagem de autores com uma ligação simultaneamente vivencial e estética ao chamado Oriente Português. Esta tem vindo a depender sobretudo de funções representativas do Estado, desde o próprio Camões, que em Macau terá sido (para quem esterilmente busca provar a veracidade histórica do mito) “provedor-mor de defuntos e ausentes” até aos diplomatas Seabra e Castro Mendes.

Mas não é apenas a profissão e a vivência directa de um espaço comum que os une. Trata-se de uma tradição com os seus tópicos particulares, directamente relacionados com as biografias dos autores, que como que performatizam a sua errância pela Ásia, mitificando-a à luz dos seus antepassados prediletos, quase sempre Camões e Mendes Pinto, de que sentem repetir os passos. Assim, uma das características desta poesia tem sido a constante mediação de referências literárias portuguesas para entender o próprio Oriente. Ao afeto pelas coisas asiáticas interseciona-se uma obsessão por encontrar Portugal e as marcas da sua cultura necessariamente imperial.

Muitas vezes a inscrição de Camões e de Pessanha como âncoras familiares contra a inalienável estranheza da Ásia são também problemáticas, por que podem trazer consigo construtos discursivos a que alguns chamam orientalistas. Este tipo de intertextualidade facilmente é lida à luz do mecanismo, apontado por Edward Said em 1978, de legitimação do discurso orientalista pela referência à autoridade de outros plumitivos. Mesmo que não seja esse o caso, é um tanto ou quanto irresistível, para um poeta português que habite na Índia e em Macau e que sobre ela escreva, falar de Camões e até mesmo de Pessanha. Homenagear ou repetir Camões e Pessanha não é, em si mesmo, um gesto orientalista, mas arrasta fortes implicações provindas da tradição onde tal homenagem acontece.

De qualquer das maneiras, e para quem tende a observar a Ásia com uma lente portuguesa, exige-se prudência nas experiências exóticas. Essa prudência está sobretudo nos que aqui mais tempo passaram. Ela está – tanto que sobre ela escreveram – em Wenceslau, em Pessanha, em Cinatti, e menos em outros.

Quando se vê o Oriente por aquela lente é como se ele doesse menos, pois a ignorância do europeu perante o “misterioso” Oriente (afinal também ela um conhecido tópico) é por vezes cansaço, como no poema de Castro Mendes «Um orientalista confessa-se», de Lendas da Índia (2012): “O Oriente dói,/ Alheio aos nossos conceitos estafados,/Desfeitos pelas chuvas da monção/ Ou dispersos pelos ventos do deserto” (p. 36).

Assim, junto com a prudência vem a ironia sobre o próprio olhar europeu sobre a Ásia, neste e noutros poetas mais recentes, o que modula este quadro. Mas afinal estamos sempre dentro do olhar europeu, e não nos são permitidas mais do que voltas concêntricas, que noutro lugar tocam o mesmo ponto.

8 Mai 2020

A Ásia na poesia de Gil de Carvalho

[dropcap]E[/dropcap]is a primeira novidade: a Ásia deste poeta não coincide, a não ser com a China, com os territórios típicos do Oriente português. Aqui não há então orientalismo (no sentido que lhe deu Edward Said em 1978) simplesmente porque não há Oriente, melhor dizendo, não há esse mecanismo de recondução do alheio ao próprio, essa necessidade de encaixar a Ásia num olhar europeu. Por outro lado, havendo intersecções de referências, estas dispensam qualquer formulação que implique identificação com a figura do “outro”: “Chegar à taiga. Mandala ou yantra?/ Panquecas muito secas fundindo/ O recheio no vermelho a rapariga/ Dum barco a neve montanhas fecha”. (Viagens, 2008, p. 273).

Seria assim penoso ou desadequado enquadrar o autor no Oriente quase sempre ideológico dos poetas portugueses do século XX, sempre entre império e exotismo. O que antes há no “orientalismo” de Carvalho é uma capacidade de notação, de registo – mesmo de investigação, o que se prende com a forte vertente “viajante” desta poesia – e que se tornou mais explícita a partir dos livros De Fevereiro a Fevereiro (1987) e Tarantela & Viagens (1998) –, exploradora de realidades culturais diversas, nunca endereçadas a partir dos binómios próprio/alheio ou eu/outro. Esta era porventura a dimensão que faltava à escrita poética portuguesa sobre o Oriente do século XX – exceptuando talvez Ruy Cinatti ou certos momentos de Couto Viana, muito ligados no entanto à ideia de império – e retomando virtualidades do nosso orientalismo “prático” quinhentista, de igual modo agindo no terreno. Quanto a mim, são precisamente certas dimensões da ligação histórico-cultural de Portugal à Ásia que são indirectamente retomadas na poesia de Gil de Carvalho, obviamente dispensando o poeta qualquer tipo de inscrição explícita nessa herança, e tendo em conta que estas não esgotam de modo nenhum a compreensão da presença da Ásia nesta poesia, ajudando contudo a explicar o uso de um certo tipo de olhar.

Numa cultura de prática do Oriente, foram as práticas humanas de campo, a exploração, a conquista, o comércio e a praxis de escrita (literária ou não), que se substituíram a um inexistente ou incipiente orientalismo cientifico, que iria depois ser criado por outras nações, tantas vezes com o material coligido por portugueses. De certa forma, e como se torna óbvio no século XIX e XX, em Camilo Pessanha ou Venceslau de Morais, a literatura fez as vezes de um inexistente orientalismo científico, assumindo-se como um conhecimento poético do Oriente, (como alguém disse) uma ciência de ver, tornando-se o veículo de uma continuada presença que sobreviveu à precariedade de um império asiático. E assim, dispensando todos os modelos culturais pré-estabelecidos de falar no Oriente por portugueses, a poesia de Gil de Carvalho é uma nova ciência de ver a realidade asiática, simplesmente por desejar conhecer, por notar, registar, alinhavá-la nas rugosidades da sua textualidade.

Com Carvalho são as viagens – título escolhido para a sua obra coligida – que dão, não a displicência sentimental do olhar do viajante, mas a sensação de percorrer realidades nunca lineares, nunca facilmente descritíveis, mas em tempos e espaços nos quais convivem o arcaico com o coevo, o urbano com o rural: “Por cima da estepe a última/ Cidade. Pacientes artesãos/ Em trocas eternas. O fumo/ Das centrais, aberto./ E a proverbial fidelidade/ Da mulher mongol. (Viagens, p.177) A noção de viagem parece-me ser, com efeito, uma chave para a compreensão da sua obra, em primeiro lugar como indicador, não só da constante mudança de cenário, mas da própria descontinuidade das coisas, indo ao encontro de uma horizontalidade geográfica de dimensão quase planetária. Em segundo lugar, aponta também para uma verticalidade, no sentido em que, quer a Mongólia quer a serra algarvia de que também fala a certo ponto são geografias complexas com camadas significantes, imagens do mundo em hiatos, em socalcos, de que a sua verbalização adopta a natureza. E não há aqui a imposição de uma subjectividade marcada que dê um sentido a esta errância, unindo os seus espaços; há antes um sujeito em viagem que é constituído pela descontinuidade do que vê, mais do que uma entidade sedeada no centro de algo, como neste encontro com a artesã manchu: “(…) Qual seria o rosto entregue/ Por ambos neste pagamento? Ancestral/Por certo./ Vermo-nos em vidros, manchus: séculos,/ Milénios passados após os Estreitos”. (Viagens, p.179)

8 Abr 2020

O Buda Dourado de Camilo Pessanha

[dropcap]D[/dropcap]izem que foi o primeiro funcionário público português a pedir transferência para um território onde ninguém queria viver. Mas Alberto Osório de Castro vivia há já largos anos em Timor, para onde se havia trasladado de Moçâmedes. Era primo direito e amigo de Camilo Pessanha e, tal como este, juiz e poeta, além de arqueólogo e botânico amador.

No verão de 1912, Osório de Castro passou por Macau e assistiu ao ritual matinal do despertar do poeta, como deixou escrito na página de memórias «Camilo Pessanha em Macau», publicada em 1942 na revista Atlântico. Aí descreve uma visita ao confrade na sua tebaida, isto é, a casa de Camilo à Praia Grande, onde hoje se acha um insípido hotel chinês, mais ou menos frente à chuchumeca da Solmar. Fechado no seu quarto, Camilo demorava a despertar, numa descrição do opiómano que se tornou famosa: “Diante da janela toda aberta, um Buda doirado de bronze, cujo rosto extático vagamente sorria, numa expressão de transcendente serenidade. Dois pivetes ardiam devagar ante a luz, em homenagem da terra e das almas, como depois me disse Camilo, ao Desconhecido. […] O Camilo fumava a longos haustos caladamente, e reanimava-se pouco a pouco como se o tocara vara de condão”. Por conta da legenda, é fácil prestar atenção ao ópio, e ficar por aí. Mas mais do que o causador de tantos dissabores para China, parecem-me bem mais interessantes as referências religiosas: a São Paulo e sobretudo ao curioso Buda doirado, a modos que a evidência de uma suposta adesão ao budismo. Na verdade, é uma «citação» indireta e até jocosa de Arthur Schopenhauer, que também era proprietário de uma estátua doirada de Buda, e que, de modo a alimentar o seu pensamento pessimista, fez amplo uso da versão distorcida e europeizada do Budismo que circulava à época. Junto com os pivetes ardendo em homenagem «ao [Deus] Desconhecido», são apropriações distanciadas, irónicas (tristes até, na sua descrença desolada), de elementos chineses e budistas, junto com o Deus Desconhecido, de que Paulo se fizera emissário em Atenas (Atos dos Apóstolos, 17.23). Houve quem, iludido por estes sinais inequívocos de descrença, quisesse ver em Pessanha um budista. Não entendendo a ironia, ignorando a China e ainda mais o Budismo, enredaram-se no folclore. E há mais deste budismo irónico em Camilo. Veja-se uma carta enviada a um amigo, de 1896, escrita de Mirandela após breve regresso a Portugal: “Continuo fatigadíssimo desta série de deslocações em que ando há dois meses — e que só virá a terminar daqui por cinco ou seis, outra vez no mesmo cabo do mundo. Um horror para quem está acostumado a dois anos e meio de quietação búdica.” Ironia, mais uma vez, e por vezes dolorosa, como nestoutra, de março de 1912: “Não sei se eu disse alguma vez ao Carlos Amaro que há no inferno chinês um terraço, — a torre da Amargura, — onde o condenado é levado ao cabo de cada ciclo de tormentos e de onde vê tudo o que se está passando no mundo distante e pode interessar-lhe o coração”. Para quem muito entendia da China e dos seus mundos, quer a quietação búdica quer a Torre da Amargura, às quais junto o Buda doirado, são pequenos e amargos jogos, não tanto com a China em sim, mas com uma certa visão dela.

Por um lado, Camilo Pessanha sabia que o buda schopenhauriano ou o budismo quietista-niilista eram distorções europeias de realidades asiáticas; por outro, sabia também que o seu olhar seria sempre o de um europeu descrente, de algum modo e por isso mesmo, sempre condenado às distorções.

28 Fev 2020

Epitácio Pais e a literatura de Goa

[dropcap]D[/dropcap]ir-se-ia que os poucos goeses que escrevem em língua portuguesa após 1961 o fazem numa língua forçosamente deslocada. Ela perdeu o seu sustentáculo social, dado pelo colonialismo português, e parte dos seus referentes simbólicos, que soçobraram com a integração de Goa na União Indiana. Ao contrário das literaturas africanas escritas na mesma língua, para quem a independência foi assentamento de batismo, para a goesa o fim do colonialismo implicou no ocaso de uma longa tradição que remonta a 1556, ano da introdução da imprensa no subcontinente, via Goa. Apesar disto, de alguma forma certos temas, figuras-tipo, situações narrativas da antiga literatura chamada “indo-portuguesa” continuam de outra forma, em outras línguas, o que me leva a crer que um livro como Preia-Mar, romance inédito de Epitácio Pais publicado há poucos anos em Goa (Edição de Paul Melo e Castro e Hélder Garmes. Taleigão: Goa 1556/Golden Heart Emporium, 2016), se encontra de alguma forma em contato com essas outras tradições dentro da literatura goesa.

Num mundo romanesco onde a referência portuguesa (colonial, se quisermos) já não existe, nem a comunidade católica se encontra valorizada, o autor está condenado a ser um “fala-só”, o que certamente se manifesta no contexto de produção e de circulação de Preia-Mar: um póstumo, o que diz muito sobre ele: póstumo, que rem relação à vida do autor, quer da língua em que escreveu o livro. Por outro lado, em obras goesas da atualidade escritas em inglês ou traduzidas para o português e do português para o inglês, muitas delas se vêm ainda ligadas aos significantes desse mundo “indo-português”, como no caso dos romance Skin, de Margaret Mascarenhas (falecida o ano passado), escrito em inglês, mas no qual as personagens falam português.

Epitácio Pais (1924-2009) foi um excelente contista da comunidade católica – que é também a de língua portuguesa – de Goa. O seu Os Javalis de Codval (1973) já se havia publicado em Portugal (Editora Futura), por iniciativa de Manuel de Seabra. Preia-Mar é um romance também escrito nos anos 70, e que ficou anos escondido numa gaveta e que abre uma janela para um mundo perdido de língua portuguesa, ou para ela perdido, em outra perspetiva. O livro possui um tom semelhante àquele que encontramos nos contos e em ambos se sente aquele efeito de deslocamento na linguagem do autor. Por exemplo: “Imprimo à vida um rumo diferente da arqueologia que norteia a nossa grei”, pensa o protagonista na p. 68 ao desejar tornar-se pescador. Na verdade, enquanto língua literária o português de Epitácio é bem diverso das contemporâneas linguagens dos autores africanos, mas também não é o português escorreito de um José Cardoso Pires, que tende a escolher vários dos mesmos temas marginais. Pode o vocabulário ser duro e explícito, mas dentro de um estilo arrevesado próprio dos escritores goeses. De fato, o português como veículo da modernidade literária em Goa é uma questão que este romance também coloca e que a crítica terá ainda que enfrentar.

Ao mesmo tempo, Preia-Mar é um romance muito contemporâneo, pela sua descrença perante os vários discursos em conflito na arena social: o discurso tradicionalista da família católica de Leo, de alta classe mas decadente; o da modernidade e da tecnologia de uma nova Índia encarnado em vários personagens com os quais Leo se relaciona e ainda o neo-espiritualismo simplista dos hippies, em busca de uma Índia milenar numa Goa mais habituada à presença de estrangeiros do que a outra Índia. O protagonista Leo – uma espécie de anti-herói pós-colonial, numa terra em que ninguém, nem mesmo ele, é modelo de virtudes – encarna bem o pessimismo do autor face à Índia sua contemporânea. Aquele pessimismo exprime-se também em uma série de casos de marginalidade, exploração e oportunismo que se desenham em torno de Leo e que sugerem ser a ideologia do livro uma espécie de neo-realismo sem marxismo, passe o absurdo. Nesta Goa pós-colonial todos são viciados em qualquer coisa ou procuram pequenos esquemas para obter dinheiro, à exceção de uma mulher-anjo quase camiliana (autor certamente lido em Goa) que acaba por redimir Leo pelo casamento, solução ex machina que resolve vários dos problemas do protagonista.

Para terminar, merece ser sublinhado que a publicação em 2016, na Índia, de um romance em português é um fato extraordinário em si mesmo, a tal ponto que é possível falar deste fenómeno editorial enquanto sinédoque da condição do português em Goa. Corajoso investimento, este de um livro que, na Índia, só poderá ser lido por uma reduzida comunidade. Em 50 anos, ela praticamente se desenvencilhou do português, trocando-o pelo inglês, como se vê pelo próprio nome da editora (Goa 1556/Golden Heart Emporium), ou pela troca das placas de rua no bairro das Fontainhas, em Pangim. Assim, neste livro se encontra resumida toda a situação dessa língua. Podemos, como Galileu, afirmar que algo ainda se move em torno dela; certamente não uma forma de “lusofonia”, antes algo que se organiza multilinguisticamente como um sistema independente, inserto em um sistema maior, o indiano. Isto significa que o português na Índia tem uma vida própria, que escapa à sistematicidade postiça da lusofonia e que, por essa razão, um brasileiro ou um português terão dificuldade em compreender. Certamente que um indiano de um outro estado não: este poderá só não compreender o que é dito na língua em si, a sua praxis. Em suma, Preia-Mar é uma janela aberta não apenas para uma tradição literária esquecida, mas também para uma Goa vista, em português, pelos próprios goeses.

14 Fev 2020

Coisas do Oriente

[dropcap]O[/dropcap]riente é o particípio presente do verbo latino orior que, embora depoente, significa tão-somente levantar-se. Oriente é, portanto, o lugar onde o sol se ergue, para iniciar o seu caminho aparente no céu.

Houve vários orientes para o europeu: primeiro a separação entre a Oikoumenè grega, o Mediterrâneo, e todo o resto do mundo, baptizado como Oriente, num primeiro momento que vai desde a afirmação militar perante os Persas, no séc. V antes de Cristo, até ao expansionismo de Alexandre.

O segundo, de maior fortuna, seria o Islão (e durante a Era Moderna o mundo otomano), esse Oriente que tivemos por largos anos dentro do território português.

Finalmente, houve e há ainda Bizâncio, sobrevivente do cisma religioso do século XIII. Na terminologia da Igreja, a palavra designa aqui as cristandades do Leste, sendo que os Balcãs e a própria Grécia, a raiz da racionalidade do Ocidente, fazem dele parte. Ou seja, não há quase lugar nenhum, nem mesmo as Américas, essas índias ocidentais, a que não tenha já sido dado ser Oriente. Como disse Raymond Schwab em A Renascença Oriental (1950), o Oriente tanta terra diferente designou que já bastou para dar a volta ao mundo. No imaginário europeu da Idade Média (e é de um imaginário que falo, não de um lugar), o Oriente tinha em si no início largas partes de África. Depois, com as expansões europeias, vai-se afastando, até ao Extremo da Eurásia, lançando o Preste João cada vez para mais longe.

Deixa de ser um obscuro papa núbio para se tornar um lama tibetano, um letrado confuciano ou até um pajé dos guarani. Mas quando dizemos Oriente, onde estamos ou, mais precisamente, onde achamos que estamos? Certamente, pelo menos é o que ficou marcado na linguagem, ainda nos entendemos na Grécia, pois é esse o ponto de referência ficcionado onde quisemos crer que se separaram as largas massas de terra do mundo, cindindo-se em duas: dum lado a razão, doutra a irrazão, lembrando Roger Pol-Droit.

Mas quem diz Oriente, pode realmente estar no Oriente, ou está apenas num ponto em que observa o sol a chegar desse Oriente que é sempre mais a oriente? É preciso não esquecer que o Oriente não é um lugar, é apenas uma direcção. O Oriente não existe.

Uma das palavras-chave da cultura portuguesa, de acordo com António Quadros, deu o verbo orientar. Talvez levado do português a outras línguas latinas, esse orientar-se trouxe consigo naus, impérios e quejandos. Isso está tudo muito bem, ou muito mal, pois tudo isto são úteis ou até perigosas fantasias, como sabemos, ainda que bem úteis para os Huntingtons deste mundo (ou do outro, o Ocidente, para ser mais preciso), que tudo dividem em grandes blocos, dum lado os cavaleiros de barretes brancos e do outro os pérfidos persas, de tez escura.

Como na recentemente estreada série Messiah, em streaming no canal Netflix, sobre a segunda vinda do Cristo (o primeiro já havia sido responsável por uma perigosa seita oriental) ao mundo. A funcionária da CIA, no café que costuma frequentar para tecer as teias do imperialismo, tem uma converseta amena com o empregado, por mero acaso um rapaz negro. Repara que ele lê para um exame The Clash of Civilizations, e diz-lhe: “Tudo o que você tem que saber é que ele estava certo. Huntington previu que o principal eixo do conflito mundial após a guerra fria seria de natureza cultural e religiosa. É exactamente o que está acontecendo na política mundial hoje”.

Tudo isto me leva a crer que talvez nós, aqui nesta Cidade do Santo Nome de RAEM, não vivamos de facto no Oriente. É possível que este seja ainda mais a oriente, nalguma ilha da Samoa ou do Corvo, algures a oriente do oriente.

17 Jan 2020