Os direitos dos úteros: a endometriose, o aborto e a vida

No mundo de produção e consumo, o bem-estar humano é de extrema importância para a boa continuação do sistema. A endometriose é daqueles problemas que se atravessam na visão de pessoas como máquinas, que devem estar prontas para contribuir para o enriquecimento comum. O aborto também é um direito que garante mais produtividade e crescimento económico, dir-vos-á o império do meio. E porque argumentos destes funcionam para dar um pouco de espaço no direito aos úteros existirem, o governo francês tem dado máxima importância à endometriose e à sua investigação. Recentemente, também, consagrou o aborto na sua constituição.

Ainda assim, o caminho para a paridade de género ainda é longo em qualquer ponto do planeta. O passado 8 de Março relembra-nos disso: “Queremos direitos, não queremos flores”. O caminho tanto parece infindável como circular. Esses direitos que parecem pouco estabilizados nas suas conquistas, são susceptíveis aos tremores políticos que se fazem sentir. Os úteros só estão protegidos enquanto se continuarem a reunir esforços para proteger a sua existência plena de direitos e oportunidades. Caminhos que reforçam a investigação em endometriose porque consideram o bem-estar um valor fundamental para se consagrar os direitos humanos, e não os direitos de produção capitalista. Passos ainda maiores são os que contemplam o direito ao aborto como um direito à escolha com dignidade.

O útero é a incubadora da vida humana, mas recebe pouca atenção humanista. Essa que integra a experiência dos que carregam os úteros nas suas vísceras. O fanatismo religioso que tem ditado as regras do aborto nos Estados Unidos chegou a um ponto assustadoramente caricato. Os embriões, na sua personalidade jurídica, são crianças por nascer. Os embriões sem casa, os que se encontram congelados para tratamentos de fertilização in vitro lá continuarão, à espera de que milagrosamente se transformem em crianças. Nenhum médico se arriscará a fazer o procedimento de implementação porque a perda do embrião pode ser punível por lei. Esse embrião não tem casa fisiológica, porque o útero, e quem o carrega, é completamente invisibilizado. Uma objectificação aflitiva que faz lembrar a “História de uma Serva” de Margaret Atwood.

Os direitos dos úteros são tão importantes quanto precisam de ser integradores da vida que os rodeia. No meio do genocídio que tem acontecido na faixa da Gaza há dificuldade em menstruar, parir e garantir a vida dos filhos com dignidade. A vida de quem carrega úteros, seja uma mulher, um homem trans ou uma pessoa não binária, tem de ser honrada. O útero pode não definir uma mulher na sua panóplia de existências sociais, mas não é esse objecto exterior, sem história e vontades que querem fazer acreditar. O útero é o princípio da vida só dentro de uma outra vida que o carrega.

14 Mar 2024

Dia de Não-Namorados

O Dia dos Namorados pode ser um dia difícil. Seria bom se fosse opcional, mas desde cedo, como na escola primária, vemos uma tentativa de institucionalizá-lo. Quando estava na 2.ª classe, a professora criou uma caixa de correio para celebrar o Dia dos Namorados, onde se podiam deixar cartas anónimas para as paixões secretas. Crianças de 7 anos têm uma compreensão muito madura do amor romântico, certo? No âmago do meu ser, eu sabia que não ia receber uma carta. E assim foi, era a mal-amada, e todos na turma deram conta disso. Se o Dia dos Namorados é difícil, é porque o tornaram assim. Tornou-se o triunfo da existência de um parceiro romântico, ou a desilusão da sua ausência.

Entretanto, tomei conhecimento de um conjunto de estratégias e actividades para tornar o Dia dos Namorados mais alternativo. Aqui, explanarei algumas opções que encontrei. Vou excluir desde já o mais óbvio: tempo para cuidar de si próprio. No Dia dos Namorados, parece-me a estratégia mais eficaz para não mergulhar no frenesim. De repente, somos invadidos por menus de jantar para namorados, promoções, vendas temáticas e, claro, redes sociais empenhadas em tornar o dia miserável.

Evitar. Para quem não quer ser lembrado de que o dia existe, pode ser possível bloquear notificações relacionadas com o dia. Este ano, uma empresa de comércio questionou-me se gostaria de ser contactada sobre o tema. Uma interpelação simpática, senti que era uma tentativa de dar controlo ao consumidor sobre a avalanche de conteúdos amorosos. Com um pouco mais de pesquisa, percebi que existem outras formas mais sofisticadas de bloquear conteúdos nas redes sociais. É só perguntar ao motor de busca favorito, descarregar as aplicações recomendadas e aplicar filtros para não receber informação sobre “namorados”, “amor” ou “São Valentim”.

Contrariar. Na tentativa de dar espaço aos que não se revêem no dia, há quem celebre a antítese do Dia de São Valentim, que já tem rituais e imagética associada. Falo-vos de festas temáticas com roupa e até comida decorada com o tema do amor não correspondido. São os corações partidos a jorrar sangue, uma paleta de cores mais sombrias, em vez do habitual vermelho e cor-de-rosa. Acusações de que o cupido é estúpido ou que o amor não existe. Chutam uma piñata em forma de coração até a estilhaçarem toda. Os mais sérios vão optar por tornar o dia uma consciencialização para os solteiros e espalhar outro tipo de amor para quem precisa.

Enraivecer. Não há nada como apaziguar um coração partido com acções de puro desdém. Um abrigo animal em Ohio, nos EUA, em troca de um donativo, oferece a possibilidade de escrever o nome do ex-namorado ou ex-namorada numa caixa de areia onde os gatos para adopção irão urinar e defecar à vontade. O abrigo prometeu fazer um vídeo público de todas as contribuições e dos momentos de alívio dos animais, e irá publicá-lo no Dia dos Namorados. O zoológico de San Antonio, no Texas, também preparou uma actividade de angariação de fundos ainda mais, digamos, assertiva desta raiva. Dependendo da quantia, o zoológico pode dar o nome do/a ex- a uma barata ou a um rato, que será devidamente consumido por um dos residentes do zoológico. Por 150 dólares, eles filmam a presa a ser devorada e depois enviam a filmagem ao ex- a quem a acção é dedicada. Alegadamente, todos os donativos servirão para ajudar os espaços a continuar o seu trabalho na protecção da biodiversidade e bem-estar animal.

Estas acções tentam oferecer novas formas de dar significado ao dia, mas não deixam de perpetuar a capitalização do amor romântico (ou a sua zanga com ele). Não quero desvalorizar o simbolismo do dia nem o desconforto que ele gera. Talvez me caiba sugerir uma reflexão sobre como estão associadas a ele memórias e emoções que materializam um ponto muito sensível da existência humana: a prova de que somos aceites ou rejeitados. E essa dicotomia precisa de ser desconstruída com muito carinho. A celebração do amor é sempre bem-vinda, mas talvez seja necessário expandi-la para o amor que nutrem por vocês próprios, pela família, amigos, amantes, amigos coloridos e até aqueles que ficaram para trás. Talvez perceber que a presença de um parceiro romântico na vida não é sinal de triunfo, nem a sua ausência um sinal de falhanço. O amor que traz uma carta no Dia dos Namorados não é o indicador de sucesso nem a condição prévia para a aceitação pessoal.

15 Fev 2024

Onde o legado de Gao Yaojie não chegou

Em 2013 dei aulas numa universidade privada na China. Os alunos esforçavam-se para serem rebeldes. Queriam dar a entender que sabiam do mundo, que já tinham tido experiências. Fumavam nos intervalos ainda que não fosse permitido. Falavam sobre sexo e amor. Um aluno, sem medos, dizia-me que gostava de homens. Senti que ele quis chocar, com a sua frontalidade, mas a descrição chinesa não era a minha norma. A mim nada me chocava particularmente. Fui a quinta professora naquele ano lectivo, aguentei-me um semestre inteiro. A turma era muito desinteressada naquilo que se devia trabalhar, e, para quem ensina, a sensação era de exaustão constante.

As aulas eram de conversação em inglês, por isso tentei falar sobre esses temas que eles tanto queriam falar. Tentei puxá-los com migalhas para o que estava a acontecer naquela sala de aula. Se eles queriam falar sobre sexo, então falámos sobre saúde sexual também. Pensei que se no ocidente a educação sexual tem falta de educação para o prazer, imaginei que a educação sexual na China estivesse, simplesmente, em falta. Quando mencionei o VIH, deparei-me com total desinteresse e desinformação. Diziam que sabiam o que era, que era um problema das crianças nas zonas rurais. E eu, fiquei estupefacta. Talvez a única vez que me chocaram. Primeiro, porque não sabia do flagelo da SIDA nas zonas rurais, especialmente em Henan. Segundo, porque assisti a uma estratégia retórica que justificava o distanciamento. Ao reduzir o vírus da SIDA a uma população que lhes era distante, conseguiam distanciar-se o suficiente do problema para julgá-lo fora do seu alcance. Foi aí que lhes perguntei: quais são as formas de transmissão do vírus da SIDA? Ninguém soube responder.

Quando a 10 de Dezembro de 2023 morreu Gao Yaojie, lembrei-me deste episódio. O legado de Gao Yaojie é imenso, e diria, até, maravilhoso. A sua resiliência é quase heróica. Desde a resistir à opressão da revolução cultural, que a impediu de exercer ginecologia durante 7 anos, altura em que a obrigaram a limpar casas de banho no Hospital, até à tentativa de suicídio, falhada, que a orientou para a total devoção aos outros com menos recursos e possibilidades. Ela tentou denunciar uma crise que em muito poderia ter sido prevenida. Cerca de um milhão de pessoas contraiu o vírus da SIDA na província de Henan, nas zonas rurais, por má prática e gestão na recolha de sangue. Uma crise de saúde pública e social alastrou-se a partir dos meados dos anos 90. Crianças órfãs com o vírus foram deixadas ao abandono, o estigma obrigando-as ao distanciamento. Gao Yaojie ter-se-á revoltado. Era ignorada, mas resistia. Não deixava de fazer o seu trabalho ao tentar aliviar o sofrimento a que assistia. Inclusive, comprava do seu próprio bolso medicação que aliviasse os sintomas destas pessoas. Também imprimia panfletos informativos sobre o vírus e sobre a sua transmissão.

Nas grandes cidades o vírus da SIDA era um pouco mais conhecido. A sua transmissão sexual provavelmente mais claramente discutida, principalmente no âmbito do comércio do sexo. Nas zonas rurais a morte parecia ter-se alastrado sem ninguém perceber bem porquê. Até que foi Gao Yaojie, já reformada, que desvendou o mistério, e muito tentou responsabilizar os culpados, ainda que implicasse um escândalo governamental. Em vez de abafar tudo o que estava a acontecer, quis prevenir mais contágio. Tentou informar que para além do risco de doar sangue nestas unidades móveis sem cuidados de higiene alguns, que as relações sexuais, bem como a transferência de fluidos no parto e na amamentação também ajudavam na propagação do vírus. Morreu exilada, mas reconhecida por muitos na China, e fora dela.

Talvez o seu legado não tenha chegado tão longe quanto gostássemos. A prova é esta história, anedótica, dos miúdos rebeldes que sabiam muito sobre sexo, mas não tanto sobre os seus riscos. Apesar do vírus já não ser a sentença de morte que foi no passado, o risco de contágio ainda existe. Recomenda-se que pessoas com uma actividade sexual activa tomem as devidas precauções e que se testem com alguma regularidade para o vírus da SIDA e outras infeções sexualmente transmissíveis: o legado de Gao Yaojie que ainda importa manter vivo.

18 Jan 2024

Os gaydares e a sua (in)utilidade científica

A literatura em psicologia tem vindo a estudar um fenómeno que há muito entrou na cultura popular: os “gaydares”. Um suposto radar que informa se alguém é homossexual ou heterossexual. Há pessoas que dizem tê-lo mais afinado do que outras. Supostamente, os “gaydares” funcionam de forma heurística, ou seja, basta analisar a cara ou ouvir a voz de uma pessoa para saber se é gay ou lésbica. Os estudos em psicologia parecem mostrar que a probabilidade de acertar numa caracterização correcta é maior que o acaso, mas ainda assim, com uma margem de erro grande. Também a inteligência artificial, com base nesses estudos, parece conseguir distinguir as caras gays e lésbicas com alguma exatidão. Rapidamente as fontes de informação mediática vieram com títulos sensacionalistas sobre o assunto, o que levou vários investigadores a interrogarem-se sobre as implicações desta investigação.

Normalmente, olhando para estes estudos, salta-se para a conclusão precipitada de que existem indicadores faciais e vocais que ditam quem é homossexual e quem não é. Mas na verdade, estes estudos somente mostram que a categorização com base em estereótipos pode funcionar. O procedimento é simples: mostram-se fotografias ou clips áudios de pessoas a falar e pedem ao participante que classifique se a pessoa é heterossexual ou homossexual. Estes indicadores que estão a ser apanhados pelo “radar” têm mais que ver com indicadores de não-conformidade de género, do que orientação sexual. Por exemplo, quando alguém se depara um homem com trejeitos mais afeminados, irá assumir que é homossexual.

Contudo, a orientação sexual é vivida de forma bem mais complexa. Há evidência de que identificação pessoal nem sempre se alinha com o comportamento sexual. Como é que se assume, por isso, que a orientação sexual é, de facto, algo facilmente perceptível a olho nu? Nos estudos para a existência de um suposto “bidar”, i.e., um radar para identificar as pessoas bissexuais, verificou-se que a sensibilidade do radar, nestes casos, já é bastante débil. Principalmente em relação a homens bissexuais. Este corpo de literatura só está a confirmar que existem processos de reificação de estereótipos sexuais, e essa reificação tem os seus riscos e consequências.

Estudar os “gaydares” como um fenómeno psicológico é uma forma de legitimar o uso de estereótipos como fonte de informação fidedigna, quando não o são. Os estereótipos são só uma forma simples de categorizar, um processo cognitivo automático. Não são um processo sofisticado de compreensão do mundo vivo. São alimentados por viéses cognitivos que precisam de ser continuamente escrutinados. Num estudo em que informaram um grupo de pessoas que o “gaydar é real” e a outra em que “o gaydar é estereotipar”, repararam que no primeiro grupo se usou com legitimidade o termo “gaydar” para normalizar os estereótipos que estavam continuamente a ser perpetuados. Outros estudos também mostraram que o uso de “gaydares” podem ter associação a formas de discriminação, preconceito e violência para com as pessoas que se identificam como LGBTQIA+.

Os “gaydares” devem continuar a ser objecto de investigação científica, mas precisam de ser contextualizados. O que falta nos estudos sobre esta temática, e na forma como se discutem estas questões no dia-a-dia, é uma reflexão aprofundada e complexa em que se conceptualiza orientação sexual, conformidade de género, identidade e comportamento. Ao mesmo tempo, é preciso produzir conteúdos, científicos e não-científicos com a consciência de que eles têm efeitos no mundo. Refletir sobre o que se estuda, e porquê, precisa de ser nutrido por uma consciência social e humana para uma ciência mais impactante e relevante para o dia-a-dia das pessoas.

14 Dez 2023

Para onde vão as dick pics que ninguém recebe?

O envio de dick pics, “fotografias de pénis”, são agora um comportamento clássico, e infeliz, da comunicação digital contemporânea. Todas as mulheres heterossexuais que conheço, em aplicações de engate, já foram premiadas com uma fotografia de um pénis não solicitado.

A fotografia explicita é provavelmente recebida mais com desdém e repugnação do que contentamento ou satisfação. “Era mesmo isto que eu queria” jamais terá sido dito por alguém que recebeu uma fotografia-surpresa. A imagem cai do céu cibernético que certamente aloja as muitas fotografias de pénis que se urgem, independentemente de o mundo estar preparado para as receber. Como a chuva, que não pede para cair. Mas a chuva não tem o poder de escolha que se espera ao ser humano. Esse tem o dever de agir de acordo com o contexto em que está inserido.

O envio destas fotografias de pénis é tão comum que as aplicações de engate desenvolveram estratégias de gestão da etiqueta de comunicação digital para as contrariar. Considerado uma forma de assédio digital, as aplicações conseguem filtrar as imagens para que o recipiente possa escolher ver o pénis que foi enviado, se assim o entender. Curioso é como a pessoa que recebe a fotografia fica mais embaraçada, do que a pessoa que se expôs a tirá-la. Acredito que estas fotos se equivalem aos exibicionistas de outrora que, diz-nos o estereótipo, andam de gabardine bege, sem nada por baixo, a mostrarem-se aos transeuntes que passeiam no parque. A tecnologia possibilitou formas bem mais simples para conseguir o mesmo efeito.

Em qualquer um dos casos, não é claro os motivos para o exibicionismo. Num contexto de exibicionismo puro, o que torna a prática excitante é esta forma forçosa de se mostrar, e a reacção atrapalhada de quem assiste. Estudos focados no envio das dick pics, contudo, não mostram com certeza a evidência desta tendência. Ora já se demonstrou que pessoas que enviam fotografias dos seus genitais têm níveis altos de narcisismo, ora também já se mostrou que são pessoas com auto-estima baixa. Num estudo qualitativo com jovens adultos heterossexuais, estes explicaram que enviam as fotos para se mostrarem, mas também para elogiar a recipiente. Em alguns casos o envio traz a esperança de receber imagens explicitas de volta. Neste mesmo estudo as jovens raparigas mostraram que achavam esta estratégia muito ineficaz: mostrando de forma clara e dolorosa o desencontro de expectativas de género e das suas relações. A educação sexual parece que ainda está muito distante destes jovens.

Contudo, a concomitância de fotografias de pénis e sua não solicitação pode fechar a importância de discutir que (1) não há nada de errado em tirar uma fotografia ao pénis e (2) o seu envio não é problemático quando é consensual. Nas coisas humanas, e em especial as coisas do sexo, o contexto deve importar bem mais para o nosso comportamento do que reacções fisiológicas do corpo. Da mesma forma que um adolescente se recordará de como até uma brisa durante uma aula de educação física incita uma erecção, também saberá que o contexto não deverá permitir que se masturbe à frente de todos.

Se, numa aplicação de engate, um homem fica com uma erecção porque viu uma fotografia de uma miúda gira, pode fotografá-la, mas não precisa de partilhá-la. O acto de fotografar pode ser uma estratégia de auto-conhecimento, e até de auto-cuidado, quando é feito para seu individual prazer e excitação. Depois, se se conhecer alguém com o mesmo entusiasmo pela troca de imagens explicitas, é uma forma tão boa de criar intimidade e ligação como qualquer outra.

Há quem se mostre preocupado com a excessiva demonização das dick pics e as consequências negativas para a representação do falo. Mas é preciso desconstruir que o problema não é do pénis, nem de este servir de modelo fotográfico. As dick pics que ninguém recebe de surpresa são bem mais importantes para a descoberta e gestão do desejo de cada um. Podem ficar nas nuvens digitais sem pressa de vir ao mundo, como uma técnica de auto-prazer e admiração dos corpos. As dick pics que ninguém recebe criam o espólio fálico que pode ser tão importante como prazeroso para as pessoas em processos de auto-conhecimento, essenciais para uma sexualidade plena.

23 Nov 2023

Um soutien com mamilos e o colapso climático

Há uns dias foi lançado no mercado um soutien com mamilos incorporados, protuberantes. Não me apetece dizer a marca porque não quero facilitar a publicidade do produto. Também não quero dizer o nome da pessoa que o criou e que o publicita. Mas posso dar pistas. Participou num reality show com a sua família e tem quatro filhos com o apelido de um ponto cardeal. Usou o famoso vestido de Marilyn Monroe numa Met Gala. Tem sido acusada de revitalizar o culto da magreza quando até era famosa pelas curvas.

A sua criação é uma provocação a vários níveis e uma bênção em poucos. Comecemos pela maior vantagem de um soutien com mamilos: para as pessoas que não os têm. Sobreviventes do cancro da mama têm vindo a agradecer a existência do produto. Colmata o que a reconstrução mamária não consegue que é um mamilo endurecido. Este soutien, para algumas pessoas, pode ajudar na auto-imagem e auto-estima. Mas agora é preciso apontar as múltiplas formas que um soutien com mamilos também pode ser problemático, até porque ele não foi criado tendo em conta este nicho de mercado. Não podemos dar-lhes tantos louros.

Apresentado como uma forma de “libertar o mamilo”, a existência deste soutien parece-me um esforço pseudo-alinhado. Libertar o mamilo, leia-se, é o grito pela libertação dos soutiens e não pretende uma conquista alargada do objecto que mais controla mamas. Quer-se a libertação dos apetrechos que enformam as mamas para mais cheias, mais redondas, ou mais empertigadas quando elas, humildemente, não o são. Libertar o mamilo enquanto ele se esconde e é substituído por um enchimento de soutien é mais uma forma de opressão. Nada contra a quem for usá-lo, mas é preciso uma incitação de revolta contra o esforço colectivo de impor uma forma aceitável de mamilos, continuando a prender os outros.

Mas a criação do soutien nem é o pior desta história. O pior foi o tiro certeiro da controvérsia nas redes sociais. O soutien com mamilos quis equiparar-se a um problema demasiado delicado e urgente. A criadora do soutien anuncia que com as calotes polares a derreterem cada vez mais que “cada um oferece as soluções que as suas habilidades lhes permitem”. Portanto, o soutien vem resolver um problema: num mundo cada vez mais quente, os mamilos afrouxam-se e dilatam-se. Num esforço de prevenir isso, este soutien é criado para os mamilos permanecem duros, enquanto as calotes polares derretem. Um anúncio com imensa piada, mas ao mesmo tempo, sem piada alguma.

A criadora de um soutien inútil face a um colapso climático diz que não teme ser cancelada. Ela inteligentemente pôs o dedo numa ferida que muita gente tem aberta. A percepção da total inadequação e incapacidade humana de lidar com um planeta em colapso, e ainda faz pouco disso. Produz um soutien que teria passado despercebido como mais uma coisa que existe para colmatar uma necessidade que é fabricada pela cultura popular. Mas ao invés, envolve-o numa narrativa onde põe a cru a hipocrisia da beleza e do culto do corpo, mas fá-lo alinhado com um investimento científico que não partilha dos mesmos valores e preocupações. Caso houvesse qualquer dúvida, produtos destes não fazem nada pelo colapso climático, muito pelo contrário. A criação de necessidades supérfluas que gastam recursos e produzem emissões na sua produção e transporte são, na verdade, a raiz de todo o problema que se vive.

Contudo, há uma perspicácia que não pode ser ignorada. A irritação de fígado é o combustível que os algoritmos precisam, para a publicidade gratuita que lhe garante. Ainda que seja uma sátira, não deixa de ser um discurso que poderá ressoar nas pessoas, dependendo do seu sistema de valores. Num mundo de desinformação atroz, uma miúda de 12 anos pode bem levar a sério a influencer que cria soutiens para parecer que tem sempre frio, enquanto as temperaturas do planeta aquecem. E o colapso climático fica para trás, permanece no pano de fundo que vai revelando um apocalipse iminente, nos silêncios daqueles que ainda não têm vontade de discutir o que nos espera de forma séria, informada e crítica

1 Nov 2023

Os sapos fingem-se de mortos para não terem sexo

Recentemente, vários jornais fizeram notícia de um estudo inédito em comportamento animal. Especificamente, do sapo comum europeu. Parece que o envolvimento sexual dos sapos não é pacífico. O macho prende-se à fêmea de tal forma forçosa que, em alguns casos, leva à sua morte. São sapos insistentes do seu desejo e instinto, querem copular à força, muito menos com o devido consentimento. A investigação mostrou, contudo, que os sapos fêmea não são passíveis à coerção do sapo macho. Os sapos fêmea simulam a sua morte para se escapulirem da sua insistência. No mundo dos sapos onde o consentimento, pelo menos, não é verbal, o sapo comum europeu desenvolveu estratégias para evitar o coito e as suas forças de coerção

Este exemplo do mundo animal ressoa em algumas experiências da sexualidade humana, onde até se pode comunicar de forma verbal e inequívoca. Em muitas situações é mais fácil fingir a morte do que dizer “não”. Em casos de violação o “não”, e a resistência física, pode espicaçar ainda mais a coerção. No livro “Amanhã o sexo voltará a ser bom” da autora Elizabeth Angel, explana-se de como o “não” enraivece agressores, quiçá humilham-nos, e a instrumentalização, ou a desumanização, do corpo da mulher prevalece. Também adianta que a total inação, apesar de ser protetora para evitar o escalamento da agressão, pode ser usada em tribunal contra a vítima: “Não mostrou suficientemente que não queria”.

Esta é a lógica que assume a ausência de um “não” como a presença do consentimento; um acompanhamento “óbvio” das teorias sobre a sexualidade e erotismo, onde se assume a dança dos corpos, sem reflectir que, por vezes, eles podem não saber como o outro quer dançar. Começou, então, a defender-se a presença do “sim”, para evitar assumpções demasiado esticadas. Só dizendo “sim”, em todas as suas fases, é que o consentimento assenta.

Elizabeth Angel, contudo, reflete também sobre a complexidade do “sim”. Para uma mulher afirmar que quer sexo, que quer ter prazer, ou que ousa a experimentar ou arriscar, abre um precedente onde o “não” já não é ouvido da mesma forma. Analisando a argumentação dos casos em tribunal de violação, frequentemente utilizam dados como o número de parceiros, outras experiências sexuais, e até o tipo de roupa interior, para responsabilizar a mulher pela violência sexual que exerceram sobre ela. A autora fala sobre como esta teoria de consentimento simplificada – onde basta dizer “sim” – encosta-se à “cultura da confiança”. Uma cultura que invisibiliza as dinâmicas relacionais, a bagagem emocional dos proponentes ou o contexto social em que vivemos. E que, pelas palavras da autora, ignora também o “facto de que as mulheres são frequentemente punidas por assumirem posições sexualmente assertivas que são instigadas a incorporar”.

Depois do movimento #metoo que assolou as sociedades ocidentais de forma mais intensa, era preciso procurar fórmulas para prevenir estes abusos. Todo um conjunto de temas foram abordados, conversas interessantes e necessárias correram a imprensa e a literatura. Há quem tenha desenvolvido aplicações onde se assina um contrato de consentimento para o sexo. Claro que a solução é precária: o consentimento pode mudar ao longo de todo o encontro e, acima do tudo, o consentimento não é um processo desprovido de contexto. Aplicações como estas continuam a não resolver os desequilíbrios de poder, hiatos no conhecimento, níveis distintos de à-vontade ou até suprimir níveis de auto-conhecimento que são essenciais para uma relação saudável com o sexo. O consentimento está intimamente ligado à vontade e ao desejo individual e do outro. Este inclui-se num espectro de experiências, e não está limitado à divisão categórica entre querer ou não querer sexo. O consentimento também precisa de ser teorizado em relação ao sexo que se quer e de como tê-lo. Desde o bom sexo, ao mau, ao violento, o consentimento é o acordo que as pessoas vão negociando (ou a ausência dele) e que resulta em cada uma destas configurações.

A informar estes processos estão padrões comportamentais, crenças, cânones culturais e religiosos que precisam de ser revisitados. No universo dos sapos aprendemos que nem tudo tem de ser como é. Nem por impulso, instinto ou desejo. Fingir de mortas, ainda que possivelmente uma resposta ao medo, ou uma resposta deliberada para o evitamento, não deixa de ser uma estratégia para contestar o que se julgava inevitável.

24 Out 2023

O poder do erótico

O erótico abraça o prazer, essa capacidade fisiológica que tanto minimizamos. Não sabemos dar espaço ao prazer nas nossas vidas. Muitas autoras negras norte-americanas têm vindo a alertar para esta incapacidade que precisa de se transformar em empoderamento. Desde os anos 70, Audre Lorde, e nos últimos anos, adrienee maree brown, defendem uma ideia muito simples. As ideias mais simples são as mais revolucionárias: o erótico é poder. Quem pratica o erótico pratica pleasure activism. Não se trata de um ativismo pelo orgasmo, apesar de esse ainda ser muito relevante. O erótico como arma política implica entender os obstáculos ao prazer, e reconstituir o acesso ao erótico e ao sensual, de forma genuinamente inteira.

No prazer cabe a re-invenção. O erótico oferece o contacto com o centro de si, alinhar a sensação de cabeça aos pés com a terra que habitamos, unir-se com a capacidade infinita de se ser e gozar. Essa capacidade que nos dizem difícil, porque é devassa, pecaminosa ou inconcebível, é uma arma política quando praticada, de tão negada que é. O erótico é a forma utópica de viver o presente. A sensação do corpo que nos segue, mas que pode comandar, é descurada em prol de formas tortuosas. A culpa, a repreensão, ou o medo sobrepõem-se ao estar-com que se quer simples e descomplicado.

O erótico não pode ser minimizado ao orgasmo, ou à pornografia. Audre Lorde, no seu ensaio sobre o poder do erótico, defende reclamar o erótico na forma inteira de sentir. Avança ainda que não deve ser confundida com a pornografia, porque esta, na verdade, revela-se o oposto do erótico.

A pornografia tem um guião, um desenlace planeado. O erótico exige o deixar sentir, deixar-se ir. Descobrir, em contacto, a vontade de se concretizar em pleno. Tal como o orgasmo, este pode ser mecanizado e performado, ou pode ser genuíno, naturalizado, improvisado. Ter um orgasmo antes do trabalho, antes de uma tarefa aborrecida, antes de um trabalho criativo, é o que muitas ativistas pelo prazer defendem. Abrir as portas do erótico através do orgasmo é provavelmente o caminho mais rápido de entrar, mas não fica por aí.

Como um mergulho pela riqueza da interioridade, o erótico e a sensualidade dão sentido e integram a complexidade humana. Na conceptualização de Audre Lorde, a função do erótico é interligar paradoxos e polaridades, os que dicotomizam espiritualidade da política, ou a arte da ciência. No erótico há um encontro que também se estende ao encontro com o outro, no desabrochar de sensações que se multiplicam. Assim se materializa a filosofia Ubuntu. Eu existo porque nós existimos. Limites que se desvanecem momentaneamente.

E claro, uma outra função do erótico que a autora defende, é a capacidade de encontrar ainda mais alegria e mais paixão na forma de existência. Na forma como o corpo ressoa as coisas belas da vida. Admirar arte, ouvir música, dançar ou fazer amor. No erótico encontram-se outros ritmos de danças nunca dançadas. O poder do erótico está na capacidade reivindicativa de ir contra o que conhecemos e aprendemos, e procurar lá dentro os mais íntimos desejos e vontades.

6 Out 2023

Sensate Focus de Masters e Jonhson

Quando nos anos 50 chegaram à conclusão de que a ciência sabia mais sobre parir bebés do que fazê-los, um ginecologista norte-americano, William Masters, com o auxílio da sua assistente de investigação, Virginia Johnson, decidiram desbravar terrenos nunca explorados. A experiência do sexo e do clímax não estavam analisadas, quantificadas ou teorizadas e eles trataram de resolver a questão.

Numa fase em que o sexo não saía das quatro paredes do quarto, estes investigadores propuseram a vários voluntários que trouxessem o sexo para o laboratório. Centenas de mulheres e homens foram convidados a atingir o clímax sob o olhar atento dos cientistas, monitorizado por máquinas que descreviam experiências fisiológicas. Alguns deles masturbaram-se, outros envolveram-se com voluntários anónimos à frente dos cientistas. Com a acumulação dos dados foi possível desenhar padrões de reconhecimento que facilitavam a compreensão generalizada da experiência sexual – desenvolveram o modelo de resposta sexual “normal” com 4 fases. Claro, que a amostra utilizada mostrou limitações. Numa tentativa de randomização, os investigadores vieram-se somente com homens e mulheres brancos, de classe média, com uma única coisa em comum: motivados para participar neste estudo altamente controverso. Insólito foi também quando os investigadores começaram a participar no estudo como sujeitos, envolvendo-se com o propósito de gerar mais dados e insight.

A sua investigação resultou em imensos artigos e dois livros que se revelaram populares. Apesar de terem sido criticados ao longo do tempo, eles desenvolveram uma forma de terapia sexual que era mais simples e rápida do que a terapia psicanalítica da altura. A terapia que desenvolveram chamava-se “sensate focus”. Os seus pressupostos entendiam que o sexo é uma condição natural que não pode ser forçada. Apesar do foco excessivo na fisiologia do sexo destes investigadores, uma perspectiva que ignorava quase por completo fatores psicológicos e sociais na resposta sexual, os exercícios sugeridos não deixam de ser relevantes até aos dias de hoje. Isto porque a investigação tem-se aproximado de novo ao foco nas sensações, e na sua importância para uma sexualidade plena e satisfatória. Os exercícios tentam desconstruir o excessivo foco na relação pénis-vagina na relação heterossexual, e tentam promover a comunicação. Com criatividade estes exercícios podem ser adaptados a todas as orientações e constelações amorosas com o intuito de promover a presença e consciência.

O método tem 5 partes. O primeiro o passo envolve o toque não genital, de modo que as pessoas envolvidas possam, à vez, explorar formas de toque e focarem-se nelas. Um oferece o toque, e o outro recebe, e depois trocam de posições. A ideia é que se dispam da expectativa sexual e desfrutem. No segundo passo, ainda à vez, os genitais já são estimulados e outras zonas erógenas, sempre ignorar a expectativa do sexo. Por exemplo, se o pénis estiver erecto, não fazer nada em relação a isso. No terceiro passo, sugere-se que se utilize óleos, ou lubrificantes, de preferência com base de água, se se utilizarem produtos de látex e borracha, para estimular outro tipo de experiências sensoriais. A ideia é que se continue ainda a dança onde primeiro recebe um e depois o outro. Sem receios, e sem pressão para compensar. No quarto passo, a estimulação sensorial já é mútua e no quinto passo, a exploração permanece sensual, em vez de sexual, isto é, incentiva-se o toque dos genitais, com interesse e curiosidade, ao roçar ou acarinhar, antes de explorar a penetração.

Esta forma terapêutica foi desenvolvida para tratar disfunções sexuais, e.g., disfunção eréctil ou vaginismo. Contudo, a complexidade destas condições não permite que esta técnica seja uma salvação certeira. Mas tem várias vantagens ao seu favor – explora a sensualidade e a presença para contrapor pressão, expectativa ou o nervosismo – e pode ser utilizada e apropriada por qualquer um que queira abrir espaços de consciência na sua vida sexual.

O trabalho destes investigadores foi romanceado na série televisiva Masters ofSex, que apesar de interessante, não explora em profundidade o legado teórico dos investigadores, nem as suas controvérsias. Ainda assim, contextualiza a dificuldade cultural em discutir estas questões que agora já são mais do domínio comum, e tratadas com mais leveza e importância.

20 Set 2023

As mamas

As mamas são complicadas. Desde veículo de alimentação a objecto de desejo, as mamas são partes do corpo criticadas em praça pública. Os humanos são os únicos primatas com mamas proeminentes desde a adolescência à morte. Um claro sinal evolutivo que as mamas servem para muito, até para debates sociais.

Amplamente discutidas nas revistas cor-de-rosa, as mamas entrelaçam discursos de aceitação (“body positivity”) e de escrutínio social. Uma combinação que tenta normalizar as diferentes mamas e mamilos, mas que ainda estabelecem definições entre “boas” e “más” mamas. Aos olhos da mulher moderna uma forma de resolver esta categorização está no discurso neoliberal pós-feminista, onde o consumismo é o único mecanismo para a mudança e empoderamento. Neste caso, através de soutiens e mamoplastias.

Soutiens são a solução proposta para as mamas “problemáticas”, que ninguém sabe bem o que são, nem como se parecem, pois as mamas dependem das modas. A ausência de soutien também está sujeita a um tipo de aceitabilidade ditada pelos senhores e senhoras da indústria. Uma tendência pelo look natural que nem todas podem ter acesso, muito menos as mamas descaídas. Já lá vai o tempo em que se queimavam soutiens como forma de empoderamento, agora, compram-nos.

A mamoplastia, uma cirurgia de alteração mamária, eleva este “empoderamento” a outro patamar. Referem-se a elas como formas de elevar a auto-estima. Assim dizem as revistas cor-de-rosa e os apresentadores de programas populares. Esse jargão clínico que já se incorporou na linguagem do dia-a-dia. As mulheres protegem-se do escrutínio público e vivem mais felizes, sem complexos para mostrar as mamas (aos outros). À medida que o tempo passa, e que o corpo se altera, as mamoplastias de revisão são obrigatórias para que as mamas se ergam firmes e hirtas, desafiando o tempo e a gravidade.

O pragmatismo para lidar com mamas só mostra que estamos longe da sua total libertação. Há quem peça censura no acto, tão singelo (e natural), de mamar. Essa exposição (desnecessária!) precisa de ser dissimulada e discreta, enquanto a Playboy continua a lucrar com o mamilo exposto. Ao mesmo tempo, envergonham-se as mulheres que escolhem não amamentar. “As mamas não nos pertencem”, já alguém dizia. As mamas vivem uma tensão milenar entre aceitação e escrutínio que deixam marcas profundas na forma como as mulheres vivem os seus corpos. Até estudos científicos contribuem para a sua objectificação. Insinuam que mamas assimétricas (que são todas) revelam uma pobre composição genética de quem as carrega. Esses estudos defendem que os homens que preferem mamas simétricas estão, na verdade, a optar por mulheres com uma carga genética mais favorável, garantido uma linhagem mais saudável.

As mamas são indicadores sexuais que precisam de ser urgentemente descomplicados. São necessários mais projectos sociais, educativos e artísticos que revelem de forma honesta a pluralidade de mamas existentes; projectos que revelem também que por detrás das mamas estão seres humanos de imensa complexidade. Há mulheres que odeiam as suas mamas porque lhes ensinaram a odiá-las. No pragmatismo dos dias que correm, é preciso tornar evidente que as mamas são uma pequena parte da complexidade da existência.

6 Ago 2023

Viagra: a erecção milagrosa?

O viagra está agora em todo o lado. Com o fim da patente pela Pfizer em 2019, alternativas genéricas ao fármaco multiplicaram-se. Muitos jovens com pénis e com alguma forma de disfunção eréctil têm recorrido a esta forma fácil de resolução do problema.

A experiência de não conseguir manter uma erecção pode ser vivida como profundamente problemática, já que vai contra a perspectiva da virilidade da juventude. A primeira preocupação é a de resolver o mecanismo, e não procurar perceber porque é que não está a funcionar. A medicação é essencialmente utilizada para evitar o desconforto social e relacional que um pénis não-erecto provoca no sexo performativo – que se julga penetrativo. A ausência de erecção também pode ser entendida como desinteresse pelo/a outro/a, que aumenta ainda mais a pressão da performance.

A medicação, nestes casos, ajuda a perpetuar uma narrativa que há muito se tenta desmantelar: que o envolvimento no sexo é de responsabilidade individual, exigindo-se uma espécie de configuração sexual perfeita. O aumento da (hétero- e auto-) prescrição deste tipo de medicamentos revela que há um constante evitamento em abordar outros factores que influenciam a disfunção eréctil e esta construção do “sexo perfeito”. São estes factores relacionais, psicológicos e sociais.

Ainda assim, a forma como os jovens entendem a sua (auto-)prescrição de viagra trouxe-me laivos de esperança. O mais interessante dos testemunhos de um estudo realizado, foi a descrição do dilema que enfrentam. O viagra traz o empoderamento milagroso, mas também traz a frustração da sua dependência. Como pequenos espaços de consciência, estes jovens compreendem a complexidade dos outros factores na disfunção eréctil. Sabem que talvez se o sexo fosse mais comunicativo, em vez de performativo, não sentissem tanta pressão para resolver o problema desta forma. A expressão de vulnerabilidade, no sexo, paradoxalmente, pode ser mal acolhida e compreendida.

Não tem de ser sempre assim. Na forma como os corpos se envolvem, abrem-se espaços mais ou menos susceptíveis à partilha. A responsabilidade estende-se para outros espaços e configurações. A forma como as sociedades e os sistemas de saúde funcionam também têm responsabilidade em normalizar e ajudar a resolver a insegurança e o desconforto da disfunção eréctil. Isso implicaria a existência de serviços cada vez mais integrativos, onde se cuida da sexualidade e das preocupações que se tem sobre ela. Com dados promissores sobre o efeito da psicoterapia nestes casos, e com a evidência da influência da ansiedade ou depressão na libido e a sexualidade, faz sentido que se priorize a saúde mental e o bem-estar em todas as áreas da vida.

É importante reconhecer a capacidade do viagra de salvar, de forma momentânea, tantas situações de desconforto. Mas é preciso mais ambição. Querer transformar representações de uma masculinidade rígida que inundam tantas instituições formais e informais da sociedade, bloqueando espaços discursivos e físicos para a vulnerabilidade, é o desafio de agora. O verdadeiro milagre seria uma mudança na forma de pensar e agir em relação à disfunção eréctil, e, para isso, não há nenhum comprimido capaz de o concretizar.

18 Jul 2023

Um conto de sexo e cancro

Há um cancro que é fácil de prevenir se as pessoas tiverem acesso a uma boa educação sexual e a um bom plano de vacinação.

Este cancro é provocado por um vírus transmitido sexualmente, vírus do papiloma humano, conhecido pelo acrónimo inglês HPV. É um vírus tão comum que cerca de 90 por cento das pessoas terá tido contacto com ele durante a sua vida sexual. São 150 estirpes do vírus, muitos deles não perigosos, que o corpo descarta no espaço de dois anos. A infecção é considerada a constipação do sexo, uma inevitabilidade de quem tem sexo, independentemente do número de parceiros. Os preservativos ou oral dams até podem reduzir um pouco o risco de transmissão, mas não são muito eficazes. Basta o contacto de pele com pele. A infecção é normalmente assintomática, mas podem surgir verrugas genitais, ou condilomas genitais, um dos sintomas mais comuns de fácil tratamento.

Contudo, existem duas estirpes do vírus que estão muito associadas ao desenvolvimento do cancro: o 16 e o 18. Embora associado ao cancro do colo do útero, este vírus pode ser também responsável pelo cancro da vulva, da vagina, do pénis, do ânus ou da garganta.

Infelizmente, a vacina tem sido anunciada como a vacina do cancro do colo do útero, e por isso aconselhada a pessoas com um útero. Nas políticas ainda binárias, as meninas ainda jovens podem levar a vacina dentro do plano nacional de saúde de muitos países. Recentemente começaram a incluir a vacinação nos meninos. Esta (lenta) inclusão não tem sido muito eficaz na conscientização das tantas outras formas sexuais e cancros que podem surgir. Ao não vacinar homens, estamos a deixá-los mais vulneráveis. Isso incluiu homens que fazem sexo com homens e/ou com mulheres.

Em 2013, numa entrevista ao The Guardian, Michael Douglas revelou que o seu cancro da garganta tinha sido provocado por cunnilingus. Para além da histeria inicial, foram poucos os que quiseram desdramatizar de forma informada. A verdade é que tem havido um crescimento de cancros da garganta provocados por HPV, mas também é verdade que são facilmente prevenidos com vacinação.

 A vacina é polémica, como devem calcular. A população em geral está resistente em tomá-la. Primeiro, porque protege as pessoas de uma infecção sexualmente transmitida e ninguém gosta de pensar que pode ser afectado por tal. O estigma das infeções sexualmente transmissíveis desabrocha do medo de uma suposta actividade sexual prolífica, que ninguém quer assumir. Segundo, a vacina protege de um cancro que ninguém sabe se vai desenvolver. E se é verdade que muita gente vai estar em contacto com o vírus sem nunca desenvolver cancro, como tantas as outras infecções na história, só através de uma vacinação em massa é possível erradicar completamente o risco.

Na estória de sexo, infecção e cancro, uma vacina antes do início da vida sexual equivale a um acto heróico. E não só, a vacina é igualmente eficaz para quem já tenha iniciado a vida sexual e já tenha tido infecção por HPV. Para os adultos, infelizmente, é uma vacina dispendiosa se a tivermos de financiar. Mas se o vírus do HPV é praticamente inevitável, só com uma vacinação massiva o tornamos absolutamente inútil.

14 Jun 2023

Orgasmos não-genitais

Um artigo científico de 2018 publicado no International Journal of Sexual Health analisou uma série de publicações online sobre orgasmos não-genitais que ocorrem em situações inesperadas. Foram analisados 919 comentários anónimos para identificar as circunstâncias não sexuais em que as pessoas experimentaram orgasmos que não exigiram estimulação directa dos genitais e que não ocorreram num contexto sexual habitual.
Os exemplos mais comuns referiam-se a orgasmos durante exercícios físicos que envolvem as pernas ou a musculatura abdominal. Isso incluiu actividades como andar a cavalo ou de bicicleta. Algumas pessoas relataram ter orgasmos ao andar de bicicleta em pavimentos calcetados que produzia uma vibração prazerosa. Embora esses orgasmos sejam considerados não-genitais, uma vez que não há manipulação intencional dos genitais, parece evidente que eles surgem devido à sua fricção e estimulação. O mesmo ocorre com a subida aos postes, que alguns comentadores afirmaram ter sido uma fonte de prazer durante a infância ou juventude, embora só tenham compreendido a razão mais tarde.
Outros mencionaram uma associação entre a vontade de urinar ou defecar e o orgasmo, especialmente quando essa vontade é suprimida. Novamente, mesmo que os genitais não sejam estimulados nesses casos, as conexões nervosas que envolvem toda a região pélvica parecem ser responsáveis. Algumas relataram ter orgasmos durante o parto, o que confirma essa associação.
Existem também orgasmos mais inesperados, desafiando tudo o que sabemos sobre as vias neuronais do orgasmo. Algumas pessoas têm orgasmos com a estimulação de outras partes do corpo, sendo os mamilos uma das áreas mais comuns, inclusive durante a amamentação. Além disso, outras partes do corpo, como orelhas, ombros, pés, pescoço, cabeça, costas, tornozelos e boca, também podem levar algumas pessoas à loucura quando estimuladas. Li o relato de alguém que teve um orgasmo ao vibrar a ponta do nariz, áreas que não são especialmente erógenas.
A associação entre orgasmo e dor ou desconforto também é sugerida. De facto, estudos com pessoas que sofreram lesões na coluna vertebral e perderam a capacidade de sentir dor mostram que também podem perder a capacidade de ter orgasmos. Há algo nessa ligação entre a dor e o prazer que também explica como algumas pessoas atingem o clímax ao fazer uma tatuagem. Além disso, o alívio após uma experiência dolorosa pode levar alguém a uma descarga prazerosa, como alguém descreveu após a extracção de um dente.
Também foram relatados orgasmos em momentos de extrema ansiedade ou em estados meditativos. O nosso estado emocional pode contribuir para moldar este potencial. Estímulos visuais, como imagens, e alguns sons, como ouvir uma música especial, também foram relatados como desencadeadores do clímax. A experiência sensorial de comer também foi referida. Há quem tenha dito que o atum é a fórmula para o orgasmo, pois “há qualquer coisa na sua textura”. Cada pessoa conhecerá as comidas mais “orgásmicas” no seu repertório de experiências.
Estes são exemplos relatados por pessoas comuns que sugerem muitos caminhos ainda a serem explorados no estudo do orgasmo. Ter uma visão sofisticada do orgasmo também contribui para uma compreensão mais refinada do prazer, que pode surgir nos momentos mais inconvenientes. Promove uma visão mais abrangente do sexo, que inclui todos os corpos e as muitas formas de desejo, para além do ato sexual em si.
Saber que o orgasmo está associado a tantas dinâmicas diferentes também é um incentivo para o auto-conhecimento. Onde estão os nossos orgasmos? Até que ponto sabemos se nosso orgasmo está na ponta do nariz, atrás do joelho ou nos mamilos? Abrir espaço para criar oportunidades de descoberta é a lição a ser aprendida com a normalização de que o orgasmo pode estar em muitos lugares diferentes.

26 Mai 2023

MDMA na terapia de casal

Leram bem. MDMA, como quem diz, a droga do amor, molly, ou ecstasy, a droga recreativa, pode ser uma poderosa aliada na terapia de casal. Não se trata de uma proposta sem fundamento de tendências new age, como os mais críticos e conservadores poderão julgar à primeira vista.

É dentro das ciências psicológicas que se tem assistido ao renascimento dos psicadélicos. Um renovado interesse sobre o que alguns grupos de investigação já diziam há décadas, e que as comunidades indígenas já praticam há milhares de anos: as substâncias psicadélicas têm um grande potencial de transformação, e para os mais puristas da linguagem médica, um grande potencial para a cura. Neste renascimento, recupera-se a investigação realizada com psicadélicos, de onde fazem parte outras substâncias como o LSD, psilocibina ou ketamina. O que estes psicadélicos fazem é a dissolução do ser e a expansão da mente para que toque tudo o resto à nossa volta. Estas “trips” levam as pessoas para outros lugares mentais, lugares incomuns do cérebro. Como que um exercício de ginástica e flexibilidade cerebral, processam-se e recriam-se os padrões neuronais, resultando em novas formas de se estar.

A ciência tem percebido o potencial transformador destas substâncias em stress pós-traumático e depressões resistentes. Na sociedade contemporânea que padece de doenças mentais e que força modelos (irrealistas) de se ser e estar, os psicadélicos – especialmente, se tomados em contextos terapêuticos – podem revolucionar a forma tradicional de experienciar.

A investigação sugere, também, o potencial dessa revolução na terapia de casal. A droga do amor, que nos torna mais amorosos, ajudando na produção de hormonas de prazer e bem-estar, teoriza-se útil para os casais desencontrados. Digo teoriza-se por que não se tem testado o uso de MDMA nestes contextos por razões óbvias.

Os poucos estudos que existem aplicaram MDMA em casos de stress pós-traumático que então mostrou resultados promissores na satisfação conjugal. Há quem foque a sua investigação no uso “naturalista” desta substância, ou seja, perceber as transformações nas pessoas que tomam MDMA de forma regular – muitas vezes em microdosing, ie., doses que não levam a viagens, mas ajudam a estarem mais ágeis mentalmente – e de como é que sentem que impacta a vida em casal ou a sua sexualidade.

As vantagens reportadas são muitas. De acordo com os participantes ajuda a reduzir o stress e reduz também a ansiedade associada à performance sexual. Isto então ajuda no aumento do desejo, bem como a intensidade da exploração sensorial. Claro que o crepitar destas sensações ajuda na ligação emocional entre os envolvidos.

O papel das substâncias psicadélicas nas relações amorosas e sexuais ainda é um terreno por desbravar, mas extremamente promissor. Se a investigação associada a doenças mentais mais graves ainda é insipiente, em relação a estas coisas do amor e do sexo ainda mais insipiente é. Não considerem, por isso, este um convite para tomar psicadélicos sem noção dos riscos, muito menos sem noção das condições necessárias para uma experiência terapêutica. Depois de muitos anos em que os psicadélicos foram demonizados, entramos agora numa fase promissora de desconstrução do seu significado. Um processo que será lento.

Ainda assim, este palavreado tenta contribuir para esse processo. Urge olhar com nuance e complexidade a forma como os psicadélicos podem ser absorvidos pela sociedade – e refletir sobre os resultados maravilhosos, coloridos e psicadélicos que podem trazer.

9 Mai 2023

Da santidade ao abusivo vai uma língua

Vou assumir que tiveram acesso a conteúdos da mesma forma que eu tive. Fui bombardeada pelo vídeo do Dalai Lama a querer beijar na boca uma criança onde depois lhe pede que chupe a língua. Ele, ou a sua equipa, pediram desculpa pelo incidente nas redes sociais. “A sua santidade” pede desculpa dizendo que gosta de brincar com as pessoas.

No vídeo só se ouvem pessoas a rir, que confirma a tese de comédia que a sua santidade quer impingir. Também vos garanto que rir é o mecanismo mais natural para lidar com situações inesperadas. Muitos que assistiram ao vídeo pedem que seja avaliado como abuso sexual de menores, em vez de um incidente engraçado que não caiu muito bem. Ninguém deve estar isento destas críticas, nem a sua santidade, defendem os cidadãos por essa internet fora.

Este vídeo caiu-me numa altura curiosa, quando andava a refletir sobre o abuso sexual de menores e a igreja católica. Tive uma incursão católica recente numa missa de Páscoa de duas horas – a minha primeira e última – onde passaram muitas coisas pela minha cabeça: umas boas e outras más. Pensei inevitavelmente no inquérito realizado pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa, e da forma como a igreja tem reagido a isso.

A comissão publicou um relatório em Fevereiro deste ano que dá conta de 4415 menores vítimas de abuso ao longo de 70 anos. Ainda que com dados concretos, a igreja em Portugal não se comprometeu a afastar abusadores da sua prática paroquial. Disseram-me os frequentadores assíduos da paróquia onde assisti à missa que a publicação do relatório teve impacto na forma como alguns crentes vêem as suas práticas religiosas. Não é para menos.

Tentei perceber um pouco melhor de que forma é que se fala da religião e do abuso sexual de menores, como a minha orientação construtivista me obriga. Reparei muito num discurso que justifica as causas dos abusos. Por um lado, incutem-nos a teoria da “maçã podre”, ou seja, os abusadores são pessoas que se desviam do normal, como casos isolados ou simples outliers. Por outro lado, há quem defenda uma teoria sistémica, olhando para a inevitável repressão sexual dos membros do clero com base nas visões católicas da sexualidade. Mas para além das possíveis causas, urge discutir como gerir abusos, de qualquer tipo, dentro de uma instituição milenar.

Foi o Papa Francisco que em 2019 proibiu o sigilo em relação a estas temáticas. A igreja parecia querer controlar os abusos por meio de uma cura espiritual sem vir a público, e sem manchar a fé dos crentes. No fundo, como qualquer estratégia de marketing que se preze, quiseram defender o produto para o consumo não cair. Em tempos de grande descrença, escândalos como este fazem abalar a fé de qualquer um.

Mas esta é a oportunidade de avaliar a honestidade dos espaços sagrados. Os membros e líderes espirituais não deixam de ser pessoas que cometem erros e podem ser abusadores. Devem ser julgados não só aos olhos da sua religião, mas aos olhos da justiça instituída.

Ao invés, as religiões usam santidade para proteger a santidade. É dessa forma tautológica que nos obrigam a olhar para a incapacidade reflexiva de resolver e mitigar problemas sérios como o abuso sexual de menores. Como um mito que coloca uns quantos num pedestal e deixando os outros a obedecer a tal organização estratificada. É neste equilíbrio de forças, e na sua naturalização, que se vai da santidade a uma postura abusiva muito mais rápido do que se gostaria. Às vezes, basta uma língua.

13 Abr 2023

As trabalhadoras do sexo e eu

A propósito da divulgação de uma concentração sobre o direito à habitação em Portugal, vi-me no bairro mais sexual de uma cidade do interior. Nas grandes metrópoles, sei identificar algumas trabalhadoras do sexo. Elas costumam estar em certas ruas para que sejam vistas e interpeladas por quem quiser contratar os seus serviços.

Neste lugar a disposição era bem diferente. Fazia lembrar um red light district de Amesterdão ou Hamburgo muito mais modesto. Demorei a entendê-lo, confesso. Quando as vi, pensei que eram mulheres à janela num dia solarengo. Só depois das duas primeiras janelas é que percebi o padrão. Eram quatro apartamentos do rés do chão, em dois blocos sucessivos de prédios. Elas, todas em linha, exibiam-se, tal como uma vitrine se tratasse. Algumas mais produzidas do que outras. Umas maquilhadas e com roupa de cores berrantes e decotes generosos, outras com um fato de treino justinho e curto.

Para a divulgação de um evento pelo direito à habitação não me coibi de as interpelar com palavras de justiça social. Nós todas precisamos de um tecto e de rendas justas. Houve quem me pedisse esclarecimentos sobre panfleto: “isto é o quê, exactamente?”. Ela talvez tivesse ficado incrédula pela natureza do assunto. Eu expliquei o melhor que pude. E ela sorriu e concordou com as reivindicações. Fantasiei de como terão sido outras interações ao longo do seu tempo ali. Talvez grupos religiosos sugerindo um caminho para a redenção.

Talvez outros com pena ou zanga. A maioria a querer pagar por um serviço sexual. Eu interpelei-as como cidadãs preocupadas. Algumas agradeceram o panfleto timidamente. Outras reagiam em concordância: “sim, sim, isto está péssimo para encontrar casa”.

Senti uma admiração imensa por elas. Estavam ali, expostas e visíveis. Elas que estão entre a violência do sistema machista e a luta contra o sistema extrativista e capitalista. Elas que podem ser vistas como vítimas do sistema ou a força da resistência. O trabalho sexual está cheio de dilemas e tensões que poucos querem assumir. No coração está o sexo que naturalmente se cobre de moralismos irritantes e de pouca reflexão. Diria que é preciso disponibilidade para olhar para a complexidade do trabalho sexual. Uma atitude que exige tempo, compreensão, capacidade de escuta e, especialmente, a possibilidade destas trabalhadoras terem lugar de fala.

Saí de lá com muita vontade de falar com elas, que partilhassem as suas experiências comigo. Queria aprender mais sobre essa complexidade que teoricamente compreendo, mas que de viva-voz ouvi pouco. Saí de lá também com medo de estar de algum modo a contribuir para o fetiche da prostituição.

Há quem viva o fetiche sexual, outros o fetiche intelectual. Fantasiar sobre as possibilidades de desgraça e o possível empoderamento do trabalho sexual não deixa de ser fantasia. Estas são pré-concepções que nos ajudam a dar sentido às múltiplas opressões sociais, mas que em pouco ou nada podem refletir a realidade vivida.

Essa realidade que me é distante do dia-a-dia de idas para o trabalho e regressos a casa. Elas provavelmente não querem ser vitimizadas, nem tidas como heroínas, ou se calhar até querem as duas coisas. A verdade é que eu não sei. Só soube que, aquelas trabalhadoras do sexo, concordam que as rendas estão muito caras.

30 Mar 2023

Ásia, Filmes & Amor

A cerimónia de entrega dos Óscares tem um peso demasiado grande na avaliação de bom cinema. Aceitamo-lo como um barómetro de cinema popular, dos temas e cinematografia que interessam no ethos contemporâneo. Avalia-se o cinema das massas que, parecendo que não, influencia as culturas.

Na última cerimónia assistiu-se a um momento atípico. Um filme de criação asiática, arrasou a maioria dos prémios. É um filme de ficção científica que faz uso de uma contestada ideia da física quântica: a possibilidade de existir o multiverso, vários universos paralelos. Mas mais que um exercício das muitas versões que podemos ser, o filme explora tradição, migração, família e o amor. Uma ficção científica cómica, certamente escrita durante uma viagem de ácidos, acompanhada por uma profunda reflexão sobre aquilo que é humano.

As questões culturais e de género estão irremediavelmente presentes. O que é ser um homem, mulher e menina numa família asiática, num país como os Estados Unidos da América, sofrem uma desconstrução profunda. Muito mais do que utilizar estereótipos, o filme oferece uma visão dura da dificuldade em navegar a complexidade da família entre culturas. A representação do homem asiático em Hollywood tende a ser assexualizada, ingénua e frágil. Ao invés, o filme mostra que a bondade e a empatia, essa que parece mais uma vulnerabilidade do que uma virtude, consegue fazer face aos desafios do dia a dia.

A popularidade do filme mostrou receptividade para olhar as personagens asiáticas com toda a complexidade que elas merecem, em vez dos sidekicks a que estavam frequentemente sujeitos. A personagem mais velha do filme, interpretada pelo actor James Hong com 94 anos, falou dos seus 70 anos de carreira na entrega dos (vários) prémios que o filme recebeu.

Na altura, os actores asiáticos nem eram precisos, bastava pôr um tipo branco com fita cola nos olhos para uns olhos em bico. Num universo de produção cultural dominado pela cultura caucasiana, os asiáticos tiveram com este filme uma exposição e reconhecimento nunca vista. Michelle Yeoh foi a primeira mulher asiática a ganhar um Óscar de melhor actriz. Sonhos realizados que precisaram muito mais do que a capacidade de sonhar. São precisas oportunidades para gerar conquistas como estas.

Os efeitos especiais, a produção estonteante, o amor e empatia foram o cocktail para o sucesso. Esse amor, um clichê que é atirado ao ar, não se mostrou completamente vazio ou superficial. Este filme mostrou o amor de uma forma mais ressonante ainda que num contexto absurdo de universos paralelos de dedos de salsicha. A ingenuidade e a simplicidade foram as armas secretas destes super-heróis que conseguiram conquistar o mal dentro e fora do ecrã.

Pode ser que todo o processo não tenha sido tão bonito, empático e cooperante da forma como descrevo. Mas por hoje, fica-se com a alegria do triunfo de uma produção asiática numa indústria maioritariamente branca, que usou o amor como bastão de batalha.

15 Mar 2023

A visibilidade trans

As mulheres trans são continuamente excluídas e discriminadas. A probabilidade de um adolescente trans desenvolver ideação suicida, ou tentar o suicídio, é de 5 a 7 vezes maior ao de um adolescente heterossexual e cisgénero, isto é, que se identifica com o género designado à nascença. A discriminação está no acesso ao trabalho, na educação ou na saúde. Uma discriminação estrutural que retira espaço ao direito de se ser trans.

No dia 19 de Janeiro, no Teatro São Luiz em Lisboa, uma mulher trans assaltou o palco. Em cena estava uma peça com duas personagens trans em que uma era representada por uma actriz trans, e a outra, a personagem principal, por um actor cis. A Keyla Brasil num acto de coragem saltou para o palco e conseguiu trazer ao holofote teatral uma tendência discriminatória e de exclusão, que ainda não tinha entrado no debate público: as histórias e narrativas trans precisam de ser contadas pelos corpos trans, até nas artes performativas. A produção da peça vai agora contratar uma actriz trans para ser a personagem principal.

Uns aplaudiram a coragem. Foi uma batalha vencida pela representatividade e visibilidade que não descura a reforma necessária no processo de selecção de artistas. Outros mostraram indignação pela forma como esta batalha foi ganha. A Keyla apareceu no palco semi-nua, expondo toda a violência a que é diariamente submetida. Falou do sexo oral que faz em troco de dinheiro, pelas poucas oportunidades no mundo do trabalho, falou da arma que lhe apontaram à cabeça, falou dos assassinatos constantes, violentos, nas tentativas de apagamento que ela, e muitas outras, estão sujeitas. Apontou o dedo ao homem que foi escolhido para o papel e quis responsabilizá-lo pelo apagamento das vivências e narrativas trans.

A forma poderosa como esta batalha foi ganha, ainda que falte travar uma guerra, foi alvo de intenso escrutínio público. Muitos queixaram-se que foi um método “violento”, apesar de concordarem com a premissa de base: se não é com a história de uma mulher trans que o corpo e a alma trans têm visibilidade, então quando? Muitas activistas trans já tinham contactado a companhia de teatro exigindo respostas e mudança. Sugeriram boicotes e nada aconteceu.

A mudança só veio depois, com a acção “violenta” da Keyla, carregada de tensão, antagonismo e conflito daquele que provoca desconforto. Mas esta “violência” é só um sintoma, uma resposta à violência que é vivida. De um lugar onde a outra realidade mundana nada se assemelha porque se vive distante. A “violência” de ver uma peça de teatro abruptamente terminada é que parece mais importante para os proponentes desta discussão.

Quando os actores cisgénero recebem papéis trans, eles encaram-nos como o desafio da sua carreira. Jared Leto ganhou um Óscar ao fazê-lo. Mas esta não é uma condição de desafio que possa ser apropriada pela indústria criativa sem uma reflexão profunda sobre o seu papel na contínua exclusão de artistas trans nos seus projectos. A condição trans não é um adereço, como activistas reclamam, para catapultar carreiras.

Muitas vezes produtores optam por homens e vestem-nos de mulheres, porque as actrizes trans não reflectem os seus próprios estereótipos ou ideias pré-concebidas. A máquina de exclusão está oleada e em funcionamento, não é a responsabilidade de uma pessoa transfóbica. Desde os produtores, ao encenador e até ao actor que aceita fazer o papel, todos contribuem para isso.

Recentemente Hale Berry e a Scarlet Johanson recusaram papeis de homens trans porque foram confrontadas com a pouca representatividade trans em diálogo com as pessoas que mais são afectadas por estas escolhas.

Mas a minha voz não é a que mais interessa neste debate, ouçam as pessoas trans que tentam consciencializar sobre as muitas formas de como estão a ser invisibilizadas. Elas lutam de muitas outras formas também, fazem-no na discussão de ideias, na academia, nas manifestações na rua e no seu dia-a-dia. O confronto ou a violência é tão parte desta luta como a diplomacia. Neste caso, a suposta “violência” foi o resultado de uma não-escuta. Do outro lado onde nos situamos, pede-se reflexão. Se vos chocou, confrontem o desconforto e interroguem-se de onde vem.

Reflictam sobre as oportunidades perdidas de fazer de forma diferente, e de dar espaço a outras pessoas ou realidades. Nós não vemos pessoas trans em posições de destaque, protagonizando séries, a serem pivots de telejornal ou a contracenarem em peças de teatro. Com os níveis de saúde mental desta minoria sexual absolutamente desastrosos (e vergonhosos nos olhos de qualquer profissional de saúde), as pessoas trans precisam de saber que o mundo deve ter – e tem – espaço para todas.

26 Jan 2023

Congelar óvulos e o direito à fertilidade

Em Dezembro 2022 a Jennifer Aniston, numa entrevista muito honesta, falou sobre a dificuldade em engravidar. O insucesso de todo o processo pô-la a pensar nos ‘ses’ da sua vida. Um desses ‘ses’ teria envolvido congelar os óvulos quando era mais nova. Um conselho que ela tentou passar à audiência da sua entrevista.

“Façam o favor a si próprias: congelem os vossos óvulos.” Nas redes sociais começou-se a discutir isso. Imediatamente fui falar com uma amiga que estava a passar por um processo de inseminação artificial. Ela disse-me que aconselharia também a todas as mulheres que conhece. O procedimento exige a estimulação de produção de ovócitos, a sua remoção e o congelamento. O processo pode ser doloroso e ter alguns efeitos secundários, mas garante óvulos saudáveis numa fase posterior de vida.

Há uns 10 anos só um grupo muito estrito de mulheres é que fazia este procedimento: mulheres a lutar contra doença oncológica. Mas os números são claros de outras motivações que se insurgem. Chama-se congelamento de óvulos social para aquelas pessoas que decidem fazê-lo por razões sociais. Que razões sociais são essas? As mulheres fazem-no porque prevêem que pode ser importante nos seus planos de vida. A mulher nasce com uma quantidade definida de óvulos. Inicialmente, de forma gradual, a reserva começa a reduzir. Mas a partir dos 35 anos há uma aceleração deste processo. Assim, bem informadas, as mulheres decidem congelar óvulos nos 20, ou no início dos 30.

Para a mulher dita moderna esta é uma forma de planeamento e controlo da maternidade. A mulher moderna sabe que a estabilidade financeira e emocional só chegará depois dos 35. Também sabe que encontrar uma parceira ou parceiro ideal pode ser um processo lento e moroso. Mas a mulher moderna precisa de ter muito dinheiro para ser assim organizada – uns quantos milhares para assegurar a apólice de seguro da maternidade. Há custos associados à remoção, congelamento e armazenamento. Dado o seu caracter social, é um procedimento não comparticipado.

Apesar de ser visto como uma ferramenta de empoderamento das mulheres, para investir nas suas carreiras e conseguir ser mães em diferentes fases de vida, o empoderamento só é acessível a algumas. Para além do mais, há quem discuta que o seguro não é tão seguro assim. O congelamento dos óvulos é uma oportunidade, não é um embrião.

Por mais que as celebridades e as amigas aconselhem, há que pensar no grande esquema das coisas. Uma narrativa desta natureza assume que a fertilidade é um problema individual a necessitar de soluções individuais, que só um grupo da população consegue garantir. As condições de trabalho, de estabilidade profissional e financeira que possa garantir o bem-estar de uma criança, vem cada vez mais tarde, e isso não é da responsabilidade de cada uma. Este mecanismo de empoderamento precisa também de refletir sobre os ambientes propícios à fertilidade e à maternidade. Não vos custará muito verificar as fracas políticas de apoio à natalidade que não têm a consideração o tempo ou a exigência financeira que é ter uma criança. Se a decisão de ter uma criança é adiada, muitas vezes não é por capricho, é por necessidade.

O direito à fertilidade precisa de ser amplamente considerado nas suas formas multi-facetadas. A possibilidade de escolha de uma maternidade tardia é, claro, maravilhosa. É possível manter essa possibilidade em aberto para quem tenha os recursos para fazê-lo. Mas não deixa de ser uma estratégia que é individual e elitista. O reconhecimento que este é um procedimento de empoderamento, também precisa de vir acompanhado de uma consciência dos contextos em que esse direito à fertilidade é continuamente retirado e descurado.

11 Jan 2023

Cliteracia

Sophia Wallace, uma artista visual norte americana, desenvolveu a palavra cliteracia para definir o estado de se ser cliterado, ou seja, de saber identificar o clitóris e entender o seu papel na sexualidade feminina.

Choquem-se: a anatomia do clitóris só foi descoberta em 1998. Desenvolveu-se a tecnologia para ir à lua, para realização de fertilização in vitro e clonou-se uma ovelha antes de se estudar a anatomia do clitóris.

A etimologia do clitóris vem do grego, kleitoris, que significa pequeno monte. O que Helen O’Connell descobriu ao dissecar corpos e ao realizar ecografias a mulheres vivas nos anos 90 é que o clitóris é bem mais complexo do que um “pequeno monte”. O clitóris é como um icebergue, tem toda uma estrutura interior que está associada a vários tecidos pélvicos. Tem uma forma que pode fazer lembrar um pinguim ou uma nave espacial com braços que podem ter até 9 centímetros. Com 8.000 terminações nervosas, é o único órgão dedicado ao prazer e tem sido sistematicamente ignorado e desrespeitado pelas sociedades contemporâneas.

Em certas zonas do planeta é objecto de mutilação física, em outros lugares, é objecto de mutilação psicológica e linguística. Foi Harriet Lerner, num artigo na Chicago Tribune em 2003, que alertou para essa dinâmica. A nossa linguagem tenta apagar a complexidade dos genitais de quem tem útero ao focar-se na vagina – o canal interior – ao invés de descrever um complexo genital que tem várias partes e funções. Vagina, significa “suporte de uma espada” e quão frequentemente ouvem esta como a única denominação do órgão sexual? Vulva é a descrição mais exacta para a genitália exterior, de onde faz parte o clitóris e os lábios.

O clitóris nem faz parte dos livros de anatomia nem de aulas de educação sexual, pelo menos por enquanto.
Cliteracia também implica saber que não é da vagina que vem o prazer. Aliás, se a vagina tivesse terminações nervosas o parto seria incrivelmente mais doloroso.

A razão pela qual algumas mulheres – as estatísticas apontam para 18 por cento delas – conseguem ter um orgasmo com penetração é porque o clitóris estende-se por várias zonas. A investigadora Helen O’Connell propõe o termo “complexo clitoriano”, que ainda não pegou na linguagem comum. Uma proposta que melhor nos explica como é que a estimulação vaginal consegue reverberar nesse órgão: desvendando assim o mistério do ponto G.

Cliteracia é entender que a ciência já sabia sobre o pénis, e nunca se preocupou com o clitóris – e entender as implicações disso. A cliteracia, de acordo com a artista e muitos educadores sexuais, é a chave principal para uma sociedade mais equitativa. O foco no prazer feminino é essencial para desfazer uma desigualdade milenar de herança cristã, essa de génese em forma de serpente que condenou Eva ao pecado.

Cliteracia também é saber que o clitóris não é um simples botão de on-off que se esfrega para obter resultados orgásmicos. O clitóris é um símbolo de emancipação e empoderamento, facilmente reconhecível. A forma do clitóris é partilhada com orgulho e até é tatuada, usada em brincos, colares, usada como bibelot e colocada em altares para veneração.

Cliteracia é não deixar que a vagina seja a única parte da anatomia conhecida – o tal suporte de espada – tanto na ciência, como no senso comum.

14 Dez 2022

A naturalidade do sexo

Sexus em Latim refere-se ao “estado de ser macho ou fêmea”. Estas categorias são, supostamente, características observáveis de um organismo ou de um grupo. Esta diferenciação não reflecte qualquer qualidade subjectiva relacionada com a identidade de género, mas uma descrição fenotípica que tem o seu quê de complexidade. As hipóteses anatómicas disponíveis a quem vem a este mundo sob a forma humana são bastante limitadas comparadas com a diversidade e fluidez com que se constitui a identidade de uma pessoa. Não obstante, discute-se o espectro intersexo para dar conta que nem sempre, fenotipicamente falando, o binarismo do sexo se aplica. Nos Estados Unidos, um bebé em cada 100, nasce com uma anatomia sexual que não é tipicamente masculina ou feminina. E isso assusta a comunidade médica ao ponto de se apressarem a alterar a sua genitália ou forçarem tratamentos hormonais para encaixarem numa ou noutra. Para um corpo que não “encaixa” na categorização clássica, o corpo é alterado, evitado a ou ignorado em detrimento de uma suposta forma “natural” – quando claramente não o é.

Nestas coisas do sexo é comum analisar o mundo animal como um barómetro do que é natural. No mundo animal damos conta do sexo – do macho, da fêmea e de outras formas intermédias – e da capacidade maravilhosa de mudar o sexo, como por exemplo, nos anfíbios. Também damos conta da diversidade estonteante na escolha de parceiros sexuais, nos rituais de corte e acasalamento, nos papeis e funções sociais, nas formas comportamentais de como se relacionam com os pares da sua espécie. Nem a forma biológica ou a função reprodutiva, exclusivamente, determinam a sexualidade de um organismo de forma rígida. Até poderemos refletir se o movimento LGBTQIA+ não será uma amostra pálida da riqueza e diversidade que podemos encontrar no mundo vivo com que partilhamos este planeta. De forma crescente, reconhecemos as muitas formas de identidade, amor, sexo e de relacionamentos que se materializam naturalmente entre as pessoas. Também a vida animal se espraia numa panóplia de configurações e tipologias sexuais que são complexas – e muito naturais.

Porque é que ainda existem tantos que moralmente implicam com a identidade de género, com a escolha de parceiros sexuais, com a diversidade de práticas e comportamentos sexuais? Porque é que se torna tão ameaçador reconhecer que existem diferenças agigantadas entre a forma com que uns e outros constroem a sua identidade e vivem a sexualidade? Como é que as pessoas ainda se defendem com crenças do que se considera natural ou não? Claramente que o que é natural só é passível de ser descoberto em pleno sentido de liberdade, esse que nos é negado em detrimento de categorias, expectativas e práticas que nos formatam. Serão estas questões realmente relevantes para dividir, afastar e polarizar as pessoas? Para quando a naturalidade do amor e da compreensão para as pessoas se expressarem exactamente como são? Para quando a naturalidade do sexo?

10 Nov 2022

Tanto que queremos: um ensaio sobre o desejo

O desejo é um fenómeno complexo, uma lição à nossa paciência. A experiência mostra-nos que a vida toma o seu rumo com vontade própria, sem grande consideração dos nossos desejos imediatos. Queremos ser alguém que não somos, vivemos num mundo onde não nos encaixamos.

Nas sociedades liberais incutem-nos esta sensação de empoderamento. Podemos ser o que bem nos apetece. Só que queremos mais sem grande consciência que os desejos implicam a cuidadosa reflexão sobre o que perdemos: sobre o que nunca será. Não basta querer, é preciso aceitar que não se tem.

Uma jovem do Curdistão iraniano foi brutalmente morta pela polícia da moralidade no Irão, porque o seu hijab estava mal posto. Tanto vos queremos que vos perdemos. Uma coisa simples como o cabelo, que mais sabe a um detalhe ridículo, pouco importante. As agências noticiosas também dão conta da brutalidade policial contra os protestantes e da consternação pública que esta morte suscitou. Deste confronto veio mais morte, não veio a transformação social ou política. Nestes anos complicados, de configurações geopolíticas dolorosas e difíceis, faz-se o luto pelo mundo que não existe e que julgámos existir. Fazer o luto implica acalmar a nossa angústia. Permite respirar antes do confronto, evita uma luta sem fôlego absolutamente nenhum e tenta dar alento à sensação de desespero.

A eleição de uma mulher primeira-ministra em Itália soube a derrota também. Tanto queremos líderes justos e inclusivos que não os temos. Como é que se aceita uma possível perda do direito ao aborto, como é que se discute o retrocesso dos direitos lgbtqi+, como é que se legitima um discurso que não abraça os direitos de todos, mas só de alguns? Quando nos julgámos protegidos de uma ressurreição do fascismo, quando achámos que concordávamos – todos – em não querer acordar os maiores horrores fascistas da história. Afinal não era bem assim.

Quando se deseja o que não se tem, a revolta ou o desconforto deviam ser suficientes. Poucos nos preparam para o sentido de impotência de nunca chegar àquilo que desejamos, nem de encontrar outros que queiram desejar contigo.

No sexo não se chega ao orgasmo porque se deseja, mas porque acontece. Encara-se a configuração completa do acto e acredita-se no conforto percorrendo um caminho, sem expectativas. Quem já teve problemas em adormecer também o sabe. Querer dormir não basta para adormecer, só atrapalha. O desejo é uma dança complexa entre paciência, compaixão, guerrilha e vontade.

Não basta querer, é preciso aceitar este momento particular da história individual e colectiva. Aceitar que não estamos cá para o orgasmo perfeito, nem para o mundo perfeito. Estamos cá para os desencontros constantes, e para as incessantes tentativas de os resolver. Estamos cá também para o encaixe, para o crescente sentido das coisas, e aceitar que pouco ou nada podemos controlar. O desejo pressupõe empoderamento e acção, mas também implica encontrar conforto nos lugares mais inóspitos, e nas situações mais absurdas, como as que se vivem neste momento. Tanto queremos e tanto aprendemos a perder, mas o desejo é mesmo assim.

29 Set 2022

A vergonha, o sexo e o riso

Quem já tentou falar com jovens sobre sexo certamente se deparou com os risos tontos ou as bochechas rosadas de vergonha. Gostaria que fosse um fenómeno exclusivo dos jovens de hormonas aos saltos. A verdade é que o riso inusitadamente se infiltra nos temas que julgamos mais vergonhosos. Para os jovens, e para muitos adultos, o sexo continua a ser isso: um tema que envergonha.

Para alguns teóricos, como o Goffman ou o Billig, a vergonha é útil para a organização social de uma forma geral. A vergonha que, inevitavelmente se associa ao gozo, serve de barómetro do que é aceitável ou não aceitável em contextos sociais. Tudo o que é corpóreo costuma cair nessa categoria: dar puns ou ter ranho no nariz.

Da vergonha existe uma relação íntima com o riso, que não é o mesmo que o riso prazeroso que nos oferece todo um conjunto de boas hormonas e bem-estar. Frequentemente a vergonha é gerida pelo riso unilateral, por pessoas com menos empatia, com um grande à vontade para apontar o ridículo. Aí cria-se uma espiral de culpa que a vergonha alegremente atravessa. A ejaculação depois de 3 segundos de penetração pelo rapazinho de 14 anos durante a sua primeira relação sexual pode ser acompanhada do ridículo – do riso desnecessário do parceiro ou parceira. Um exemplo clássico onde a empatia teria sido muito mais produtiva.

Mas não é por isso que desistimos do riso por completo. O riso pode ter outras funções bem mais interessantes, um riso que empodera em vez de castrar. Aquele que se faz em conjunto, de uma dinâmica capaz de carregar as nossas vergonhas por outros meios e caminhos. Transformar o condenável com a leveza de uma gargalhada compreendida é capaz de mover delicadamente a vergonha. Aquela gargalhada que não traumatizaria o rapazinho de 14 anos com pressão para a performance.

Dessa forma o sexo pode ser tonto ou cómico. O riso como canal de descarga. As pessoas ficam nuas, as peles baloiçam, as pregas criam-se em locais estranhos, os pêlos que ninguém pediu que nascessem, os ruídos abdominais, puns vaginais e os gritos de orgasmo originais.

A vergonha é inevitável. Aprendemos com os outros que há limites para aquilo que podemos mostrar. Mas também é com os outros que podemos re-alinhar esses limites, principalmente quando a ligação é feita com sinceridade. Um sexo cheio de tabus e de ensinamentos judaico-cristãos só vê transformação quando há à-vontade para nos rirmos à gargalhada com o que nos limitou no passado. Confiem no vosso acesso de riso porque caíram da cama ao tentar aquela posição difícil. Podem rir-se quando o sexo não é perfeito. Rir do desconforto é o antídoto – mas só e quando existe uma ligação.

Atirar com o cliché da “ligação” é vago, reconheço. É demasiado inespecífico para descrever o que acontece entre duas pessoas. Mas nada tem que ver com um estado enamorado, porque o sexo nem sempre precisa de amor. Precisa, sim, da consciência da presença de dois (ou mais) seres, e da sua humanidade. Só com essa conjuntura relacional é que o sexo e o riso podem fazer algum sentido.

14 Set 2022

Aborto, outra vez

Aconteceu o que muitos temiam. A terra dos livres tornou-se menos livre com a decisão do Supremo Tribunal ao reverter o direito constitucional do aborto. As implicações são muitas, e não são boas. Os ingénuos acreditam que é uma luta ganha pelos direitos dos bebés por nascer. A hipocrisia e incongruência é revoltante. Agora, muitas mulheres americanas não poderão tomar uma decisão consciente sobre os seus corpos. Ganham direitos as suas crias por nascer, que nem sempre têm direitos depois. Os mesmos que proclamam a procriação como sagrada são os mesmos que não quiseram garantir o acesso a fórmula para bebés quando houve uma falta grave no país. São os mesmos que se agarram ao liberalismo para deixar o apoio à natalidade à mercê da logica dos mercados. (In)congruências.

Mas são todos pelos bebés e pela parentalidade. São os mesmos que assumem o conceito de família com base em repertórios performativos, sem reflexão, muito menos intimidade. Aqueles que se agarram ao conceito de mulher e homem e que os estancam na visão dicotómica do bem. A complexidade da vida humana não é contemplada uma única vez por estes decisores e os seus apoiantes, como se não fosse mais abrangente do que a existência de um embrião. Ignora-se que uma gravidez implica a vida das pessoas.

Ignora-se que tirar o controlo das mulheres sobre os seus úteros é um atentado humano muito mais grave do que supostamente “devolver o direito aos bebés por nascer”. Ignora-se a violência sistemática a que as mulheres são sujeitas graças ao patriarcado que se infiltra no dia-a-dia e nas políticas. Ignora-se o trabalho de dissociar a representação da mulher da sua objectificação corpórea, sem a ver para além da sua função para copular, parir e tomar conta de filhos.

Uma gravidez indesejada pode acontecer a qualquer uma, e ninguém acredite que o aborto é uma decisão simples e descomplicada. Mas ter acesso ao aborto seguro permite contemplar outras alternativas para além da maternidade naquele momento e naquelas circunstâncias. Vai abortar quem já tem filhos, quem está casada, quem ainda é adolescente, a trabalhadora do sexo, a trabalhadora do banco, a mulher ou a menina que foi violada.

Uma escolha que a investigação mostra – e aliada com uma boa educação sexual – reduzir o número de gravidezes indesejadas e promover maior bem-estar em geral. O aborto é uma intervenção médica simples e a OMS defende o seu acesso seguro em qualquer lugar do mundo. Os abortos vão existir sempre, e quanto menos existirem condições para um aborto seguro, mais complicações virão daí. Desde trauma físico e psicológico à morte.

Confesso que ando tão desiludida com o mundo que me foi difícil reagir ao que aconteceu recentemente nos Estados Unidos da América. Prefiro evitar ou não ouvir, ficar no conforto que há outros locais onde ainda está tudo bem. Sonhar que eles existem. Sem deixar de estar com medo que a ficção da “Handmaid’s Tale” se torne numa profecia.

A vontade de Deus (ou da natureza) é estrategicamente mobilizada para defender umas parvoíces, e não outras. Resta desconstruir e revelar a violência que ainda existe sobre as mulheres. É o momento para acreditar na força popular mais do que nunca e não desvalorizar – e até acompanhar – as pessoas que gritam nas ruas.

5 Jul 2022