Corredor solitário

encontra quatro amigas para almoçar. As palavras têm virtualidades próprias e alheias, que não se encontram em mais nenhum discurso expressivo. As imagens têm outras, e os filmes. Os sons, nestes, por exemplo e a mistura de sons concretos com fraseamento musical, numa acentuação ou num nivelamento de sensações. De quem?

Take one: O impacto seco dos pés no pavimento, como em câmara lenta, porque a mente corre mais rápida, embora impedida pelo ritmo cadenciado que perturba o turbilhão encadeado de pensamentos corrosivos, de elaborar mais do que fotogramas soltos. Perturbadores mesmo assim. O batimento cardíaco com arritmias que não se arrumam, apesar da regularidade persistente da passada. O esgotamento e algo que continua mesmo assim por mais um pouco. A invasão de ácido láctico nos músculos a intoxicar a intenção. Uma respiração ritmada e ofegante a abafar a música. Mesmo a dos auriculares. Interrompida pela dor no joelho. A cabeça baixa em derrota momentânea, as mãos nos joelhos o suor a escorrer, o rio impávido ao lado. Sem se poder definir por agora se corre, também, ou se se apresenta numa unidade constante. A respiração. Como o fim. De um reservatório de energia para seguir a imperturbável transitoriedade do rio. Paralelamente e sem olhar. Linhas que não se cruzam senão no infinito. Ou seja, para muito além da nossa capacidade.

O que é apaziguador num rio é que há sempre um indefinido lado de lá. Que não tem que ser o visível ou o que é, mas simplesmente uma dimensão outra, para o devaneio – como definido por Bachelard, do repouso, da vontade – que nos dá espaço aberto ao anseio de respiração para além do espaço que já o é, de rio.

O relógio conta passos e quilómetros, enorme, no pulso cada vez mais apertado, o corpo seco e consumido, mas fruto da vontade, a consumir o que já não é excesso.

Nesta narrativa três pessoas encontram-se no corpo. No corpo das palavras da narrativa. A que anda a que corre a que baixa a cabeça. A oxigenação eufórica. Os limites. O consumo e as reservas, numa economia difícil de anotar no livro de contas. O que fica. Tudo junto ao rio de sempre e de margens que são continuidades de percurso. E uma quarta pessoa, a que se senta à mesa, para almoçar. Final cut. Quatro, como quatro amigas que se juntam num almoço a sós. Mas à quarta pessoa, juntaram-se à mesa outras três, vindas de corridas diferentes, nas margens dos mesmos rios.

8 Nov 2022

ZELENSKY VS ZELENSKY

27/10/22

Um reformado ucraniano, com o mesmo nome do presidente, culpa Zelensky sobre o prolongamento do conflito que destruiu o seu vilarejo. Zelensky, o aldeão, que nunca saiu da sua terra, vive agora mortificado porque o seu coveiro preferido morreu no bombardeiro.

Este Zelensky, aldeão, representa a metade do mundo que recrimina o outro Zelensky, o vilão, por não querer negociar com Putin.

Negociar o quê? O invasor entra-nos pela casa, papa-nos a mulher e a filha (cf. recente relatório da ONU sobre as violações na Ucrânia, nesta “operação especial”), acto que nos obrigou a assistir, e depois dizemos-lhe: alto lá, somos pela paz, mas temos de negociar: ainda não disseste o nome que queres dar às crianças!

Uma paz que não é digna não passa de uma cessação dos direitos. Tão grave como a russofobia que Putin inflige ao seu povo.

 

28/10/22

Num almoço com vários convivas ouço uma amiga, que se declara espírita, a explanar sobre as particularidades da sua crença, de uma forma serena e equilibrada, diria até, sem ponta de “irracionalismo”. Discorreu longa e serenamente, destituída de qualquer proselitismo fanático. “Aqui está alguém a quem a crença trouxe ponderação!”, pensei, uma aliança rara.

Porém, a dado momento sai-lhe uma frase que me horroriza. Diz, “não existe acaso, nada acontece por acaso!”, e entrevejo ali as fauces vorazes do holismo. Porque o holismo tem uma vertente patológica como todas as coisas boas, um lado de sombra.

Dois exemplos: no hinduísmo há uma menor sensibilidade aos dramas existenciais, se aquela criança sofre nesta vida isso é apenas expressão da rigorosa simetria kármica, um efeito dos actos que ela cometeu na sua vida anterior. Em África não se aceita que a morte possa ter sido acidental, e muitas mulheres são acusadas pela família do morto de terem causado a morte do marido, num acto de manifesta demência, e, na flagrante maioria dos casos, numa enorme injustiça para a esposa — loucura que se dissemina e infiltra no tecido social.

O Budismo introduziu a Compaixão e o Cristianismo a Caritas, tentando romper com esta lógica, mas em muitas outras crenças e religiões a gaiola das causalidades prevalece sobre a sensibilidade à experiência, à necessidade de responder ao agora.

É uma lógica tremenda que transforma o mundo num palco platónico, onde não passamos das sombras de algo — uma lei inextricável -, num determinismo que calcina todas as singularidades, mas que estranhamente fascina muitos.

A conquista da modernidade ancorou na conquista do acaso e do aleatório, subtraindo as incidências de uma vida a esse determinismo feroz que encerrava o mundo numa teia. Quando a Renascença libertou o corpo da influência dos astros, nesse momento a sexualidade aliviou-se das culpas e o individualismo e a sua volição puderam emergir.

Há uma inequívoca implicação moral na frase “não existe acaso, nada acontece por acaso!”, o que devia funcionar como chave para o auto-conhecimento e o auto-juízo, contudo, habitualmente, essa frase é manejada para se buscar uma razão para as coisas no exterior a nós, no outro. É um álibi.

Corre hoje no mundo uma tentação holística, como na Idade Média houve uma tentação satânica, sem grande reflexão sobre as suas consequências. Porque não basta queremos ligar tudo numa ressoante cadeia de afecto. Até pelo mais inesperado: o próprio afecto pode matar.

Dou conta, graças aquela mulher culta, equilibrada, inteligente, que “o combate” se deslocou no início deste século. Um dos grandes equívocos do século XX foi a falsa dicotomia entre «racionalismo e irracionalismo», debate que se estendeu a todos os campos, inclusive à arte. Primeiro, confundia-se racionalidade (o lado positivo da razão) com racionalismo (a feição patológica da razão), e articulada nesta falta de discernimento confundia-se irracionalismo com liberdade. Quase toda a arte do século XX, com o Surrealismo à cabeça, laborou neste erro. A falácia ainda existe apesar de se ter consolidado por toda a parte a emergência do «irracionalismo» e as consequentes correntes relativistas que se lhe seguiram. No essencial muito do que se passou no século XX girou em torno desse choque entre dois paradigmas: Racionalismo versus Irracionalismo.

Agora, verifico, há que salvar a indeterminação, o acaso, o aleatório da terrível tentação da gaiola das causalidades. O holismo, na sua feição patológica, pode ser o reducionismo que se põe a jeito como uma nova «narrativa escatológica».

Será «por acaso» que o holismo emerge no momento em que o neo-liberalismo e o seu cínico desprezo pela pessoa humana sitia tudo, todas as liberdades, todos os direitos adquiridos?

A consciência holística trouxe de positivo uma maior consciência ecológica mas seguida com rigor escolástico abafa a realidade sob a manta de um determinismo que é muito mais do que incómodo: todas as grandes ideologias autoritárias são holísticas.

A minha amiga saberá conjugar a sua crença holística e transpessoal com a liberdade e a responsabilidade que cada momento nos pede — mas quantos farão a destrinça, ao abrigo de uma Lei que tudo explica e abarca?

Quantos não se abandonarão ao que é?

A consciência do indeterminado traz a consciência trágica, como o sabiam os gregos, mas traz também o arbítrio e a coragem da decisão. E disto não poderemos abdicar.

Para além disso, como mostra Drummond no poema “Quadrilha”, de Carlos Drummond de Andrade:

«João amava Teresa que amava Raimundo/ que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili/ que não amava ninguém./ João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,/ Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,/ Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes/ que não tinha entrado na história.»

O Real corre sempre por fora da pista, na plena exterioridade aos nossos conceitos. É o que nos vale — desponta um J. Pinto Fernandes no exacto momento em que julgávamos ter tudo sob controle.

31 Out 2022

Do Nobel e outros

9/10/22

Ao ler as reacções de muita gente quando se anunciou o Prémio Nobel da Literatura deste ano, não pude deixar de me lembrar deste reparo de Jean-Pierre Siméon, em relação a um outro Prémio Nobel: «Um editor de um grande jornal diário nacional escreveu cinco linhas de indignação por ter sido atribuído o Prémio Nobel de Literatura a Thomas Traströmer, um completo desconhecido. Mas desconhecido para quem? Como é que não ocorreu a este colunista literário, patenteado e pago para fazer o seu trabalho, que a sua aparente ignorância era uma questão de conduta profissional incorrecta? Tranströmer fora traduzido em muitas línguas, estava disponível em francês.»

Há sempre o coro dos que esperam pelo anúncio do Prémio para reclamarem por não terem sido convidados para o júri do mesmo, há um subgrupo de irados que professa “nunca li e nem me vou dar ao trabalho de ler”; é uma fauna pouco humilde, a que habita as redes sociais.

Eu nem sempre conheço todos os premiados – desconhecia a existência da Louise Glück, que acho uma grande poeta, ou da Olga Tokarczuk, por exemplo – mas isso só me traz o conforto de saber que o mundo não é uma telenovela onde toda a gente se conhece e a alegria de reconhecer que a bitola do mundo não se mede com a minha medida curta e que pelo contrário dá-me uma nova oportunidade para enfrentar o desconhecido e aprender com ele.

E talvez a mais cretina das reacções tenha sido a daquele inteligente que escreveu, Mas ainda há quem leia francês?; confirmando apenas que hoje há um novo tipo de ignorância que se arvora com desplante: o daqueles que só lêem inglês.

Também eu preferia que, em francês, fossem premiados o Pascal Quignard, a Linda Lê ou mesmo o Sollers, ou, de entre os novos, o Mathias Énard, mas isso não tira dignidade à obra de Annie Ernaux (e bastaria ter escrito o “Les Années”). Há livros dela de que gosto menos, como o vulgar “Uma Paixão Simples”, mas isso acontece com quase todos os autores, têm livros-charneira e outros que são como intervalos no seu itinerário. Aconselho a leitura de um belíssimo livro de entrevistas com ela, “L’écriture comme un couteau”.

11/10/22

Ontem saiu um artigo no matutino “Notícias”, de Maputo, a dar conta de que fora atribuído o Prémio Pen Club de Narrativa à minha mulher, a Teresa Noronha, pela sua novela “Tornado”, que já havia tido o Prémio Maria Velho da Costa.

O resumo que fizeram do livro nem merece comentários, por patético, mas o que interessa realçar é a nota de desqualificação quanto à sua «moçambicanidade» ao chamarem-lhe luso-moçambicana. Não é que seja inexacto, mas, para quem conhece o contexto, é um toque sacana.

Porque enfim, seguindo a mesma lógica, ao Adelino Timóteo devia chamar-se tsonga-moçambicano, ao Álvaro Taruma ronga-moçambicano, e macua-moçambicano aos escritores que forem do norte, etc., etc. O que não consta que aconteça.

A dado momento, na novela, escreve ela:

«A nossa cor nunca foi a dominante. No tempo colonial não éramos brancos, éramos arraçados de monhés, canecos de cú la¬vado, o termo pejorativo para falar de um filho de goês e portu¬guesa. No período pós-colonial, eu não era negra e se, em Lisboa, me tomavam por brasileira ou por cabo-verdiana, já em França perdiam-se em cogitações sobre de onde seria e espantavam-se quando descobriam que era africana. Lá tinha de explicar as deambulações do meu ADN antes de assentar arraiais em Mo¬çambique. Levei muito tempo a aceitar que era assim porque sim, e que não era nenhuma maldição que assim fosse; ao contrário, podia até descobrir padrões intensos de fantasia e liberdade neste manto de arlequim que é a nossa genealogia…»

No Moçambique actual passa por ser branca… e isso sobrepõe-se logo ao que faz ou ao que é.
É triste, mas como advertia o Naipaul, por estas paragens a raça é tudo e vive-se encharcado nela tão profundamente como, em outros lugares, na religião.

12/10/22

Morreu o Bruno Latour, um antropólogo que estudou as ciências e os seus procedimentos e legitimações, o direito, a técnica e as religiões e que se entreteve a virar as tripas aos dogmas dos “modernos”. Para ele o lugar, a função do especialista, definia-se mais pela perplexidade que encarnava do que pela suposta verdade que o sustentaria.

Propunha, por alternativa às bondades do multiculturalismo e à sua equívoca senha chavão «todos diferentes todos iguais», o regresso à «diplomacia», dado esta, precisamente, não partir do pressuposto de que «somos unificados porque partícipes da mesma natureza» mas relevar simplesmente que nós «ainda não partilhamos um mundo comum»; sendo necessário lidarmos frontalmente com o «abismo de desacordo» que nos separa, em vez de querer iludi-lo.

E sobre a política dizia, desassombradamente:

«Se se exige transparência ao político, matamo-lo; se alguém exige fidelidade ao que o outro era ou ao que diz, mata-o; se se exige uma relação mimética entre o que a multidão quer e o que diz o seu representante, mata-se a representação. Estes devem, portanto, por definição, trair, enganar, modificar, distorcer a palavra. Sem essa capacidade de dobrar a palavra e de trair, a linguagem política não existiria. Ponho a hipótese perfeitamente plausível de que o vocabulário político se tornará tão inacessível quanto a linguagem religiosa dos últimos vinte, três ou cinquenta anos.» (em “Un Monde Pluriel mais Commun”). Creio que nos fará falta para decifrar este mundo freneticamente complexo que nos coube.

17 Out 2022

O Fuxi

Ó meus amigos, companheiros destas funestas viagens por países tão antigos quanto as estrelas e a Lua, e tão estranhos quanto o profundíssimo interior de nossas desgraçadas almas, ¿que sobressaltos ainda nos esperam, que magias secretas teremos ainda de superar, que horrores se erguerão perante as nossas pupilas dilatadas de espanto e terror?

Cada vez mais perto de nossas precárias existências, uiva o monstro da guerra, que ameaça fundir de vez a humanidade com a terra, incessantemente percorrida pelo espectro esquálido da fome e pela invisível maldade de dez mil pestes.

Ó maldito humano, que te crês superior à própria Natureza, mas depois te revelas, uma e outra vez, incapaz de simplesmente ordenar a tua existência e não compreendes que te encontras possuído pela inconstante ira e és escravo da tua própria ambição! Não te contentas com o jade branco ou o refulgente ouro, não há tesouro que sacie tua inextinguível sede de mando sobre os outros homens, os animais e as coisas; pois em ti habita uma eterna angústia; em ti rastejam as serpentes expulsas; por ti cresce, poderosa e impante, a fertilíssima hera do Mal!

É talvez por isso que no Monte a que chamam do Veado Branco, onde um dos oito imortais em montada sagrada se evolou pelos céus rumo a Penglai, habita o fuxi, um pássaro cuja forma lembra a do galo, embora encimada por uma cabeça humana. ¿Que estranhas cópulas, que monstruosos amplexos, que terríveis procedimentos terão ocorrido para tornarem possível a existência deste sinistro animal? Não sabemos, mas basta a nossa mente extenuada atrever-se a alvitrar uma resposta, para logo sentirmos a pele percorrida por horrendos arrepios e o coração disparar em desfilada, qual cavalo selvagem fustigado pelo chicote nocturno do medo, alheio a rédeas e contenção.

Que os homens se abstenham de percorrer o Monte do Veado, pois apesar de nele existirem riquezas capazes de acalmar as mais desvairadas ambições, se tiverem a desgraçada sorte de vislumbrarem um fuxi, é certo que cedo se desencadeará uma Guerra e por ela perecerão os campos cultivados, por ela serão decapitados os mansos animais, por ela serão sacrificados os melhores mancebos de duas gerações e destruída a soberba dos países.

O fuxi emite um som que lembra o seu nome. Se o ouvirdes, sombria noite ou dia claro, arrepiai caminho, pois a senda onde vos encontrais é a mais certa das vias para a desgraça!

30 Set 2022

Clube dos procrastinadores

Andando em releituras de Pascoaes, por causa de um artigo que preparo, dou com este excerto, extraído de “O Homem Universal”:

«Cada homem, moralmente, é uno e absoluto; mas tem de conviver de atenuar a sua personalidade. (…) A convivência só é possível entre pessoas reduzidas a uma presença negativa ou oca, que ceda constantemente. Daí, o vazio da sociedade, imenso fantasma composto de inúmeros defuntos. Um homem superior é anti-social ou criminoso. O seu destino é o cárcere e o deserto».

Hesito em pensar se Pascoaes reflecte aqui sobre a condicionante político-social que amordaça, e, pior, num país tristonho como era Portugal em pleno Estado Novo (e o livro é de 1931) onde se via coarctada quaisquer possibilidades de espontaneidade e franqueza nas relações humanas, ou se apenas empresta ao comportamento dos homens (oprimidos) uma moldura metafísica, uma “essência”, de logo declarada na presunção de cada um ser, isoladamente, “uno e absoluto”. Às vezes, a um excesso de Espiritualidade (ou de Saudade), soma-se em Pascoaes o faltar-lhe mundo. É um grande poeta, mas é um poeta que toma Ampolas-de-Grandes-Ideias e que por isso escreve amiúde acantonado por um furor programático, deixando de ter poros; não raro ergue-se um vidro entre ele e o real, o mesmo que o fez redigir em O Bailado, de 1921: «Tudo é fantasma. Há só nuvens, nuvens de vozes, nuvens de almas, de aflições e de tragédias! Nuvens e mais nuvens, aparências e mais aparências! E um relâmpago divino que as trespassa, a instantânea Aparição que surge e nos lança por terra, deslumbrados!»

Às vezes apetecia lembrar-lhe, como o fez António Sérgio, no artigo “Regeneração e Tradição, Moral e Economia”, que dedicou a Pascoaes: «Pascoais, Pascoais meu querido amigo: você é um puro, excelso e nobilíssimo poeta, mas uma vítima também desse ambiente social, como nós todos: desse horrível isolamento que V. louva e eu maldigo».

«Ainda criança, roubou dois melros», conta Jacinto do Prado Coelho, roubou-o de um ninho, e palpitou-lhe toda a vida o remorso por isso. A Pessoa, poucas mais travessuras se lhe conhece. Só em Álvaro de Campos lhe brota uma pontada de malvadez e obscenidade: «Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,/ Que emprega palavrões como palavras usuais,/ Cujos filhos roubam às portas das mercearias/ E cujas filhas aos oito anos – e eu acho isto belo e amo-o! –/ Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.» (Ode triunfal).

Ambos os poetas assanhados por uma certa ideia de santidade, foi-lhes idêntica a inabilidade de romper o cerco da pele com o transbordo em dique alheio, a mesma maldição de sublimar a concreta ferocidade de eros com a mansuetude dos versos.

Evidentemente que são os dois «bigger than life», mas às vezes enerva-me assistir, do meu posto de chapeleiro no Clube dos Procrastinadores, às birras entre ambos, só para ver quem ocupa, na organização interna, o lugar de Presidente e de Tesoureiro.

Embora Pessoa tenha adivinhado mais coisas, por exemplo, isto que ele escreveu na menos conhecida Ode Marcial e que se decalca na situação que vivemos hoje, diferidamente, com o coração nas mãos:

«ODE MARCIAL
(…)
Helahoho! helahoho!

A máquina de costura da pobre viúva morta à baioneta…
Ela cosia à tarde indeterminadamente…
A mesa onde jogavam os velhos,

Tudo misturado, tudo misturado com corpos, com sangues,
Tudo um só rio, uma só onda, um só arrastado horror.

Helahoho! helahoho!

Desenterrei o comboio de lata da criança calcado no meio da
[estrada,
E chorei como todas as mães do mundo sobre o horror da vida.
Os meus pés panteístas tropeçaram na máquina de costura da
[viúva que mataram à baioneta
E esse pobre instrumento de paz meteu uma lança no meu coração.

Sim, fui eu o culpado de tudo, fui eu o soldado todos eles
Que matou, violou, queimou e quebrou,
Fui eu e a minha vergonha e o meu remorso como uma sombra
[disforme
Passeiam por todo o mundo como Ashavero,
Mas atrás dos meus passos soam passos do tamanho do infinito

E um pavor físico de prestar contas a Deus faz-me fechar os
[olhos de repente.

(…)
Mandei, capitão, fuzilar os camponeses trêmulos,
Deixei violar as filhas de todos os pais atados a árvores,
Agora vi que foi dentro de meu coração que tudo isso se passou,
E tudo escalda e sufoca e eu não me posso mexer sem que
[tudo seja o mesmo.

Deus tenha piedade de mim que a não tive de ninguém!

LÀ-BAS, JE NE SAIS OÙ…»

O que é hoje claro, neste momento funesto em que Cristiano & Companhia falharam na sua missão em Braga, e em que a auto-sabotagem dos gasodutos da Rússia lembra que Putin estará mesmo disposto a tudo para manter o domínio sobre as zonas referendadas,
é que, bomba por bomba, era preferível a “bomba” do Quinto Império.
Porém, até nisto, meus caros, fomos irresolutos, um bocadinho mais para o pielas do que para o determinado, e procrastinámos.

29 Set 2022

Espécies de vinho liu-pun

No Boletim Official do Governo da Província de Macau e Timor de 4 de Março de 1893, o inspector da fazenda apresenta o número de licenças e respectiva cobrança para negócio de Liu-pun em Macau, na Taipa e Colovane em relação ao período decorrido de 15 de Janeiro a 14 de Abril de 1893. Em Macau existiam 24 licenças para importação do Liu-pun que renderam à fazenda 345,000; para o fabrico de vinho 13 licenças pagaram 260,000; para a venda por grosso 41 renderam 501,500 e venda a retalho 136 licenças pagaram 669,500. Só na península de Macau a fazenda arrecadou em três meses um total de 1.776,000 patacas. Quanto à Taipa e Colovane não foram emitidas licenças para importação de vinho e as 11 licenças para o fabrico renderam à fazenda 87,500; as 21 licenças para venda por grosso 107,500 e na venda a retalho 7 pagaram 21,000, perfazendo em três meses um total de rendimento de 216,000 patacas.

No resumo comparativo deste mapa com os publicados nos Boletins Oficiais n.º 31 e n.º 46 da série de 1892, o número de licenças concedidas para o trimestre de 31 de Julho a 15 de Outubro de 1892 foi de 229, sendo 246 nos três meses seguintes, de 31 de Outubro de 1892 a 15 de Janeiro de 1893, e 253 de 31 de Janeiro a 15 de Abril de 1893, logo mais 24 licenças que desde o início. Enquanto a importância cobrada até 31 de Julho de 1892 com relação a três meses que findou em 15 de Outubro foi de $1,640,000, no trimestre seguinte para o período que acabou a 15-1-1893 foi de $1,888,500 e $1,992,000 até 15-4-1893, logo mais $353,000 que o previsto no início. O valor anual do imposto calculado a 31-7-1892 era de $6,560,000, a 31-10-1892 de $7,554,000 e para 31 de Janeiro a 15 de Abril de 1893 de $7,600,000, logo mais $1040,000 do que o estimado a 31 de Julho de 1892.

O Echo Macaense refere a 17-10-1893: “a câmara municipal ainda quer lançar 17% sobre o imposto do vinho liu-pun, sem se lembrar que este vinho é género alimentício de primeira necessidade, e que para implantar esse imposto o governo viu-se em embaraços de que não convém suscitar a recordação.”

A 5 de Março de 1894 na repartição de Fazenda se procederá, perante o inspector de fazenda Arthur Tamagnini Barbosa, à venda, em hasta pública, de 168 bules de vinho liu-pun das espécies: Ung-ka-pi 84 bules, Mui-kuai-lu 36 bules e o mesmo número de Si-kuoc-kung e 12 bules de In-ch’an-lu, apreendidos em harmonia com as instrucções para a arrecadação e fiscalização do imposto sobre o dito vinho em Macau, Taipa e Colovane de 16 de Julho de 1892.

O imposto indirecto sobre o vinho liu-pun no ano de 1894-95 rendeu à fazenda 7:067.00 patacas e no ano seguinte (1895-96) 6:667.33. Em 1896-97 deu 6:092.00 patacas; 6:595.51 no ano de 1897-98 e em 1898-99 a fazenda recebeu 6:855.58 das licenças; em 1899-1900 foi de 6:738.57; em 1900-01 rendeu 6:606.75; em 1901-02 facturou 6:683.50 e no ano de 1902-03 o valor de 6:457.50 patacas.

Por acórdão do conselho de província de 3 de Maio de 1889 e decreto de 31 de Janeiro de 1895 para as receitas do Leal Senado foi autorizado o Imposto municipal directo de 2% sobre o valor dos exclusivos. Daí relativo ao ano económico de 1895-96 a Câmara recebeu $188,75 do exclusivo da licença da venda de liu-pun, $150 em 1896-97, $120,50 em 1897-98 e $110 em 1898-99 como refere o B.O. de 16-7-1898, valor rectificado para 125,82 patacas no B.O. n.º 51 de 1899.

No B.O. n.º 30 de 1899 o Inspector da Fazenda faz público que no dia 3 de Agosto se procederá à adjudicação em hasta pública, por licitação verbal, do vinho liu-pun abaixo designado: Vinho de limão 2 boiões, 4 de vinho de abrunho, 1 de vinho de pera, 20 boiões de vinho de gramma, 21 de arroz preto e 4 de arroz branco; 28 potes de vinho de Ung-ka-pi e 6 garrafas de vinho medicinal. Nesse mesmo ano, o inspector da fazenda Arthur Tamagnini Barbosa publica o anúncio da arrematação a 23 de Novembro de 1440 boiões de liu-pun e a amostra desse vinho estaria patente na casernaria da fazenda. Mais 104 boiões de vinho liu-pun vão em hasta pública à adjudicação a 26 de Dezembro de 1899.

Nova legislação

O vinho liu-pun passou nas duas primeiras décadas do século XX sem referência no B.O. e apenas aparece em 1913 o convite aos proprietários das casas de venda por grosso e fabrico de vinhos chineses para comparecerem a uma reunião a 1 de Abril na Procuratura Administrativa dos negócios sínicos.

No diploma legislativo n.º 55 de 24 de Outubro de 1923 a Fazenda lançava um imposto adicional de 5% sobre a contribuição predial e licenças comerciais e industriais cobradas para pagar o seguro feito por o Tesouro Provincial contra incêndio dos bens móveis e imóveis da Colónia.

No B.O. de 22-11-1924 aparece aprovado o diploma provincial n.º 50 onde estão fixadas as taxas das licenças para o vinho liu-pun em Macau, Taipa e Coloane, estabelecidas pelo disposto no artigo 3.º do regulamento aprovado pela portaria provincial n.º 102 de 16 de Junho de 1892. Passam a ser: Em Macau, as taxas das licenças para fabricar, importar e exportar ou vender por grosso são de 100,00 patacas e para venda a retalho de 60,00. Na Taipa, fábrica, importação e exportação ou venda por grosso pagam 60,00 e venda a retalho 36,00. Sobre essas taxas continua incidindo o adicional de 5%, estabelecido pelas disposições do artigo 10.º do diploma legislativo n.º 55 de 24-10-1923.

O Diploma legislativo provincial n.º 45, publicado no B.O. de 27-8-1927, aprovava o regulamento para a cobrança do imposto sobre bebidas para Macau e Ilhas, e ao contrário dos vinhos chineses, que não pagavam imposto, por o Artigo 3.º o liu-pun continuava a ter as taxas fixadas no diploma provincial n.º 50 e por portaria provincial n.º 102.

No Boletim Oficial da Colónia de Macau de 29 de Dezembro de 1928 aparece o Diploma legislativo N.º 45 a actualizar o imposto sobre o vinho liu-pun e alterar algumas das disposições do respectivo regulamento. No ano seguinte, nesse diploma é substituído o artigo 3.º, suas alíneas e § único, como refere o Governador Artur Tamagnini de Sousa Barbosa no B.O. de 28-12-1929:

27 Set 2022

Finis Patriae

Estamos por conseguinte em luto nacional, o que não deixa de ser assaz estranho numa República, mas dada a mundividência em que a morte da rainha se tornou, e nessa quimera feliz «dos amigos para sempre» como se o fogo da memória varresse aquelas partes menos boas, e se esquecesse mesmo da aceleração que a própria Inglaterra nos deu para a instauração da República, que nestas coisas (como em outras) sempre melhor escutar os poetas que os políticos, e na circunstância vivida, relembrá-los, que ele, Junqueiro, também exercera funções políticas, mas é no último verso deste livro que vamos encontrar a indignação de uma Pátria ferida, a voz de um panfletário, o génio de um poeta, tudo junto à escala da insolência pela grave ofensa sofrida. Precisamos lembrar! Sair das mordomias esclerosadas e garantir o deslumbre dos vindouros. Que o Ultimato vale bem um sabre envenenado pela mais fina matéria do verbo para que se saiba que não vamos esquecer.

Guerra Junqueiro era uma espécie de rabi português, um perfil tão puro que nos perturba só de olhá-lo, tinha a intensidade e a sagacidade entrelaçadas na vasta barba, e ninguém contempla um ser assim sem um rebate de consciência por o não ter sabido replicar na visão colectiva, que nos seus olhos de lince se lhe notava ainda uma ternura que não sabemos explicar; tinha contornos de corvo e a silhueta negra indicava uma predestinação religiosa, que estas gentes são ainda aquelas que nos conseguem fulminar. Podiam fazer tranças em seus cabelos com estilos vários, que da sátira, ao saudosismo, ao panteísmo, ao verso alexandrino, eles condiziam articuladamente em suas majestosas cabeças. É desta aristocracia que a terra portuguesa é feita, muito mais que de súbditos nacionais a uma majestade que nunca fora a sua, é desta aliança com as boas práticas, feroz e intransigente, que nos devemos ocupar com carácter de urgência.

Quando Pessoa enaltece a sua ama na canção de embalar, é também Junqueiro que nos vem à memória em seu «Regresso ao lar» uma longa jornada de retorno onde o amor mora, que ele não teme tornar… Toda uma vida que perdemos acontece mais tarde, quando ao reler lembramos a forma tão bonita como o fizeram, e sem saída, uns relampeiam, outros esquivam-se, ainda outros “deslizam sem ruído… no chão sumidos como faz um verme…” mostrando a travessia de todos nós. Não esquecer que foi já pela década de vinte que a República que ajudara a tomar forma, começa a contestá-lo, estávamos à beira dos tempos sombrios, e ontem como hoje, tudo se passa de igual maneira. «À Inglaterra» pasme-se então o leitor diante a virulência “que não é mal nenhum ser conhecido pela rebelião de um filho seu paterno…” Destas estirpes nenhuma diplomacia é feita, e o Estado nunca nos representa por inteiro. Que os estados de alma também não fazem poetas, mas onde a alma não se encontra em fina conexão com a justiça, essa nem sabe de que epíteto é feita.

Nós somos agora todos mais ou menos panfletários, e não conseguimos sair deste registo que atiçamos como se estivéssemos em eternas campanhas, o risco de tudo isto é que perdemos a capacidade de louvar coisas outras. Há-de ainda chegar o tempo em que estes livros já esquecidos, serão ainda proibidos, nesta Assembleia das Nações que a troco de uma vida repleta de coisas, perdeu tudo no esquecimento mórbido face àqueles que nos deram tantos sonhos, que a morte da rainha é também o início dos tempos funestos, ela que nunca soube que tanta verve contra o seu reino tivesse sido tão emblemática, baluarte de um Império que será destroçado com um clamor como o mundo ainda não viu, repousa finalmente nestes dias de luto nacional.

E neste Setembro em que o aniversário de Guerra Junqueiro se realizou, não sei explicar como iludir estes momentos. Quase duzentos anos! «Vencidos da vida»?! Tão diferente do “vencer na vida….” que é onde se encontram agora os derrotados de uma experiência triste. Eles, porém, são quem renasce perante o assombro da morte colectiva.

26 Set 2022

Godard e o deus preguiçoso

18/09/22

Chove copiosamente em Maputo, como se de um modo espasmódico mil florestas procurassem o seu unicórnio.
Leio num café, espero que a coisa abrande. Um ardina entra em passo de corrida, refugia-se, metade dos jornais estão uma papa. E então impinge-me um, “para compensar o prejuízo…”: pede. Cedo, compro o “Savana”, o mais antigo semanário da terra.

E logo na página dois, no artigo intitulado, “Nyusi acerta posições”, leio, sobre as eleições dos membros para o Comité Central, ao nível das províncias:

«Em muitas províncias, os documentos de alguns candidatos desapareceram dos processos submetidos às comissões eleitorais e a maioria deles só foi notificada nas vésperas da votação, facto que não abriu espaço para a regularização da situação.

Na província de Gaza, por exemplo, os candidatos que foram confrontados com a falta de documentos nos seus processos, apresentaram provas, através de duplicados, que não havia nenhuma irregularidade na documentação, mas a comissão eleitoral não aceitou receber as suas reclamações. Desesperados, estes levaram o caso para o chefe da brigada central destacada para Gaza, liderada por Tomás Salomão. Este, por sua vez, ordenou a reverificação dos processos e constatou-se que estava tudo legal e que os excluídos poderiam concorrer.

No entanto, antes da votação, no intervalo, estes foram coagidos a desistir da corrida, facto que veio confirmar-se.
Em algumas situações, as manipulações e manobras para o afastamento de candidatos incómodos e não alinhados foram lideradas pelos próprios secretários dos comités provinciais. A compra de votos foi a outra estratégia usada para a conquista do voto».

O problema da liberdade é que são mil florestas a correr afogueadas na perseguição de um unicórnio. Pode parecer uma ilusão, mesmo antes de cansar. O problema da democracia é que são mil florestas desgrenhadas à procura de um pente, fora a dignidade dos carecas, que, em protesto contínuo, incessante, bufam.

Chove lá fora. A rodos. A temperatura baixou uns oito graus, de ontem para hoje. Ao fim de dezoito anos em Moçambique já nem lamento que não se queira aprender com os erros, que se delapidem gerações com o embuste, que todos os filhos da burguesia que vão estudar para fora não queiram voltar. A acção dos “insurrectos”, ao norte, alastrou para Nampula ao norte, mas não se tiram ilações, a causa-efeito não existe para a mentalidade da política local. Desde que haja dinheiro para se comprar os votos tudo se adia, tudo se vai empurrando com a barriga, como aqui se diz!

Não admira que a invasão da Ucrânia nunca tenha conhecido por estes lados qualquer nota de repúdio. Se eles lá também comprarão os votos dos referendos nas regiões “conquistadas”!

19/09/22

Revejo o “Week-End”, do Godard, de 1967, o último filme da primeira fase do cineasta.
Em “Week-End” retratam-se os escroques, são personagens que claramente Godard detesta, a nata mais perversa e venal da burguesia, cujo consumismo antecipa um apocalipse sem remissão. Ao casal de protagonistas só move o instinto sórdido de apressarem a morte da mãe dela, para se apoderarem da herança. E cada um deles tem um amante, com quem combina ficar depois de se apoderarem do dinheiro. Filme inclemente, é como um libelo cruel (foi aqui que chegámos: agora aguentem!) que expõe o triunfo dos porcos; aliás, simultaneamente, assistimos ao massacre programado e dantesco dos porcos, em nome do progresso, ou com o apelo ao assassinato simbólico e o canibalismo, que no final do filme se torna literal.

Só os dez minutos a retratar a insanidade do engarrafamento na estrada vale o filme, onde em cada esquina há mortos e feridos e carros virados ou incendiados sob o olhar indiferente dos que estão em trânsito. Está-se já para lá do trauma de uma guerra civil, na sobrevivência agónica de quem vive a distopia e acorda em si o predador. É uma parábola sobre o Inferno interiorizado e climatizado, «um filme encontrado num ferro-velho», diz uma legenda ao princípio», e onde o Mozart é agora música para pasto (ou seja, estrume), para vacas e galinhas.

Do ponto de vista formal é uma “desgarrada” menos dominada do que “Pierrot le Fou”, de 1965, e repete-lhe muitos dos processos, mas politicamente “Week-End” é de uma ferocidade inigual. Todo o desnorte moral e ideológico dos movimentos radicais de guerrilha urbana que hoje conhecemos está escancarado nesta comédia negríssima, com uma presciência e truculência buñuelianas.

O que é “divertido”, em revendo-se o filme, para além do seu carácter profético, é imaginar como hoje seria objecto de polémica e de censura: a insídia dos seus temas “politicamente incorrectos” é superada em muito pelo despudorado “abjeccionismo” dos comportamentos.

Diz Corinne/Mireille Darc ao amante, sobre o marido: «Eu de vez em quando fodo com ele e então o coitado julga que o amo!», e a pedido daquele (que também se quer excitar) conta-lhe durante dez minutos uma cena de orgia em que participou (cena extraída a um romance de Bataille): «Paul ficou de joelhos para me lamber o cu, não foi desagradável, o sexo molhado de Monique palpitava contra a minha nuca, os seus pentelhos misturados ao meu cabelo. E tive que descrever-lhes o que que sentia, para excitá-los. Ela beijou-me o sexo. Depois masturbamo-nos os três e Paul começou a gritar: “Para a cozinha, bebês!”. Na cozinha pediu-me para subir para o lavatório, foi buscar um ovo ao frigorífico, partiu-o e escorreu-o sobre a minha vulva …». E Corinne descreve como se excita partindo os ovos que contrai entre as nádegas, para depois sentir a clara fria no seu sexo. E imaginamos nós as vozes puritanas que se levantariam contra o genocídio dos pintainhos!

Imensamente divertido é também o Anjo Exterminador (assim é designado) que os sequestra para lhe darem uma boleia (forçada) e que, entre os tiros com que vai eliminando alguns “escolhos” na paisagem, se apresenta deste modo deliciosamente herético: “Eu sou Deus, porque sou preguiçoso!”.

22 Set 2022

Licenças para o Liu pun

Antes da arrematação do exclusivo de liu-pun a 2 de Abril de 1892 era imensa a quantidade desse vinho importado anualmente por Macau, não sendo este só consumido nesta cidade, mas a maior parte era reexportado para Hongkong, como mostra a estatística do capitão do porto publicada no Boletim da Província de 24-4-1890. Aí se refere no ano de 1887 a quantidade exportada para Hongkong foi de 13.234 boiões, que rendeu 11.910,60 patacas.

Segundo O Macaense de 28-4-1892: “Calcula-se pelas estatísticas d’alfândega da Lapa que da China vem anualmente para Macau 132.000 boiões de vinho liu-pun. Dessa enorme quantidade, mais de 100.000 são daqui reexportados, porque os 32.000 boiões restantes e o vinho que é aqui fabricado em mais de dez fábricas, representam 50.000 boiões, que são o máximo da cifra do consumo local.” No entanto o B.O. apresenta os números do 1.º semestre de 1892 referindo ter-se importado 18.795 boiões no valor de 20.674,50 e exportado 6347 boiões no valor de 6.981,70 patacas.

Após celebrado a 6 de Abril de 1892 o novo exclusivo de liu-pun em Macau, ao vinho chinês passou-se a cobrar um imposto de 11 a 20%, o que levou os negociantes chineses da cidade a avisar o governo da colónia para este comércio e muitas outras indústrias poderem derivar para outros pontos, vindo assim a sofrer particularmente os hãos de consignação e as lojas d’arroz que vendem e fabricam o vinho.

O Ofício do Leal Senado datado de 10-5-1892 foi apresentado ao Ministro e Secretário d’ Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar acompanhado por o requerimento dos negociantes chineses a pedir a abolição do exclusivo do Liu-pun e a conservação da franquia do Porto de Macau. O Rei, após tomar conhecimento do ocorrido em Macau devido a uma inexacta compreensão do alcance, moral e financeiro, da imposição sobre o Liu-pun, por autorização telegráfica a 20 de Junho, anuía no projecto elaborado por o inspector de fazenda. Mas já o Governador da Província, alegando o arrematante não ter cumprido com todas as suas obrigações, rescindira a 14 de Junho o referido contrato.

Em anúncio no B.O. de 23 de Junho de 1892 o Governador faz público: A contar de 15 de Julho, a ninguém é permitido vender, fabricar e importar vinho Liu-pun em Macau na Taipa e em Coloane, sem que tenha para esse fim obtido licença especial passada por a repartição da Fazenda Pública. As pessoas que a partir do dia 15 de Julho queiram vender por grosso ou a retalho, fabricar ou importar, vinho Liu-pun, em qualquer das localidades mencionadas, apresentarão as suas declarações em papel selado nesta repartição até ao dia 5 de Julho e no dia seguinte, pela 1 hora da tarde comparecerão na repartição, a fim de, perante a comissão, se lhes designar a taxa que cada um terá de pagar. Sendo por dois anos o prazo máximo por que se concedem as licenças, a taxa poderá ser paga uma só vez, por ano, por semestre ou por trimestre mas sempre adiantadamente. A ninguém mais, além dos licenciados pela forma que aqui se consigna, é permitido importar, fabricar e vender vinho Lui-pun, sob pena da multa de cinquenta patacas e confisco de todo o vinho encontrado no estabelecimento não licenciado.

Em virtude da substituição do exclusivo de liu-pun pelo sistema de licenças, mais de 40 negociantes de arroz e de vinho descontentes com as taxas que se lhes pretendia impor, reuniram-se na noite de 6 de Julho sem prévia licença da autoridade competente e pelas 8 horas foram presos, sendo mais tarde libertados.

No Boletim Oficial do Governo da Província de Macau e Timor de 4-8-1892 aparece a Portaria n.º 107 onde o Governador Custódio Miguel de Borja refere ter tido conhecimento

Regime de licenças

No B.O. de 4-8-1892 aparece o mapa das licenças concedidas entre 31 de Julho a 15 de Outubro para importação, fabrico e venda do vinho Liu-pun em Macau, Taipa e Coloane, em conformidade com o Decreto de 1-10-1891 e as instruções em vigor pela Portaria provincial n.º 102 de 16-7-1892. Assim, em Macau a importância cobrada até 31 de Julho de 1892 com relação a três meses que findavam a 15 de Outubro foi de $1,640,000, sendo 11 o número de licenças para importar Liu-pun, num valor parcial de $600,00; as licenças para o fabrico deste vinho foram 14 que deram $710,00; quanto à venda por grosso havia 43 licenças que renderam $1870,00 e na venda a retalho 122 num valor de $2518,00. Na Taipa, as 4 licenças para o fabrico de Liu-pun pagavam $120,00; para venda por grosso 12 e 8 licenças de venda a retalho, rendendo respectivamente $240,00 e $102,00. Já para Coloane, 7 eram as licenças para o fabrico que pagavam $230; para a venda por grosso 8 pagavam $170,00, mas não fora passada nenhuma licença para a venda a retalho. Assim o total de licenças era de 229 que rendiam anualmente $6560,00.

No B.O. n.º 46 de 17-11-1892 é apresentada por a Repartição de Fazenda de Macau a Nota do número de licenças e respectiva cobrança para negócio de Liu-pun no período de 15-10-1892 a 14-1-1893. Para Macau existiam 22 licenças de importação do vinho Liu-pun que rendiam 315,000; para o fabrico de vinho 13 que pagaram 160,000; para a venda por grosso 42 licenças que renderam à fazenda 500,000 e venda a retalho existiam 131 licenças que pagaram 693,500. A fazenda arrecadou em três meses só na península de Macau, um total de 1.668,500. Já para a Taipa, a única licença de importação rendeu 10,000; para o fabrico 11 licenças no valor de 87,500; para a venda por grosso 21 que pagavam 107,500; e na venda a retalho foram passadas 5 licenças que renderam 15,000, dando no total 220,000.

O número de licenças concedidas até 31-7-1892 e relativas ao período que findou em 15-10-1892 foi de 229, que renderam em três meses $1,640,000. Comparando com as 246 cobradas até 31-10-1892 e relativas ao período que findou em 15-1-1893, foram mais 17 licenças, e renderam $1,888,500, mais $248,500 que no trimestre anterior. O valor anual do imposto calculado a 31-7-1892 foi de $6,560,000 e a 31 de Outubro de $7,554,000, logo mais $994,000. Assim escrevia a Fazenda a 31-10-1892.

19 Set 2022

Prestidigitação

Conhecemos entre nós o de Mário Cesariny, chamado de «Manual de Prestidigitação» deste poeta e pintor, que as mãos trazidas da sua competência nunca deixaram a componente subversiva que estimulou este representante do nosso surrealismo, o que faz não poder ficar entre as mandíbulas dos escrutinadores, pois que se atravessa nele um longo ditirambo que é a sua anti-lírica nunca menor que a própria lírica.

Aliás, o livro compõe-se de quatro partes, sendo a que dá origem ao título, a quarta e a última, talvez alinhando no pensamento de que os últimos são os primeiros, e que surpreendentemente diremos se tratar ainda da mais lírica. «É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia… é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano… é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora» e talvez seja aqui que transporte nas mãos a sua própria deidade.

Mas o modelo da memória reflecte um outro prestidigitador, Jacobo Sureda, também ele poeta e pintor, autor de «El prestidigitador de los cinco sentidos», que constrói no Manifesto Ultraísta (movimento literário espanhol em oposição ao modernismo dominante do final do século XIX) um grande axioma das suas convicções: «Nosso credo é não ter credo. Não pretendemos rectificar a alma, nem mesmo a natureza. O que renovamos são os modos de expressão». É desta insubordinação de quem se opõe, reinventa e caminha, de que falamos, que ser contra tal movimento não significou estar mais atrás, ou somente atrasado face ao seu presente- não-!

Jorge Luís Borges e Sureda assinam um destes manifestos em 1921, que Borges levará para a Argentina. São escritores que vivem muito da produção em revistas, panfletos, agrupamentos dinâmicos de pensamento… são gente que ao estarem juntas se prodigalizam. Aliás, Cesariny herdou ainda esta via, os debates em cafés, tertúlias e boémia, conjugaram-se nos seus alicerces muito férteis.

E agora talvez seja tempo de perguntar o que têm em comum estas duas prestidigitações; diremos que bastante (se nos debruçarmos no Manifesto Futurista, também) mas é a novidade imposta em empreender novos balanços semânticos com total liberdade narrativa, pouco descritiva, que nos prende a tal métrica como se estivéssemos mais perto da telepatia, que o poema oferece uma abertura de espectro de tal forma improvável que ficamos limpos da razão bloqueadora que têm as sensíveis demonstrações anãs, exactamente por que se pensa e mede com a fita métrica dos impasses conhecidos. – Aqui não há nada disso! Talvez se pense que estejamos mais perto da reverberação que dê ao poeta sinónimo de louco, que ternamente as gentes dizem que têm deles um pouco. Não têm nada! E aqui nenhum louco entra pois que o infecundo distúrbio não chega para aguentar tais invitações, que nascem de um ainda estonteante poder criativo.

Se há efectivamente um aspecto antipático no chamado “criativismo” é essa coisa insalubre do chamado plágio, e aí, a loucura ganha, pois que se assemelha quase sempre de forma arrepiante…! Que um doido, imita outro doido, e o que acontece? Nada. E a acontecer é sempre coisa má. Se tinham estes dois poetas pintores vasos comunicantes?

Sem dúvida que é uma possibilidade válida. Mas mesmo assim, se Cesariny, homem raro, que teve como vida o ser poeta e pintor, e tudo o mais que a sua capacidade mantinha, conhecesse como à palma da sua mão Jacobo Sureda, isso só o engradecia. Como a Humanidade é cada vez maior, ela replica, e que bom seria ficar-se só por estes casos!« El religioso mar/ como una hostia azul/ Está en el paladar/ Del cielo y horizonte….»
PRESTIDIGITACION
e
«Pomo-nos bem de pé, com braços muito abertos/ e olhos fitos na linha do horizonte/ depois chamamo-los docemente pelos nomes/ e os personagens aparecem»
ARTE DE INVENTAR PERSONAGENS. In Manual de Prestidigitação.
Pode um choque atravessar as nuvens num instante, diluindo a conveniência? Eles dizem-nos que sim, que neste afã se registaram tais sinais.

15 Set 2022

Causas da greve

“Organizou o governo uma repartição de fazenda provincial, com numeroso pessoal, sendo os seus chefes muito bem remunerados em comparação dos outros funcionários. Há quem diga que estes empregados julgam que pelo facto de receberem eles uns vencimentos por assim dizer excepcionais, devem considerar Macau como colónia destinada à exploração fiscal e nada mais, e por isso tratam de espremer o povo chinês o mais possível. É assim que se explicam as odiosas execuções por dívidas de vinte a trinta avos.

É por isso que se arrombaram com machados as portas das casas do negociante Chou-sin-ip para cobrar direitos de contribuição de registos lançados até sobre lucros do espólio de Chou-on, acumulados por oito anos depois da morte do pai adoptante do executado. É por isso que acabaram com os avaliadores do valor locativo dos prédios para se poder aumentar o imposto predial. É por isso que se criou o exclusivo de liu-pun, e que houve receio de que viessem a criar-se outros exclusivos sobre salitre, enxofre, tabaco, etc.”

Assim explica O Macaense de 22 de Abril de 1892 o antecedente das causas da greve e continua, “Todos estes factos provam o propósito deliberado de uma exploração fiscal indefinida que amedrontou os chineses, e tende a sufocar o comércio, sendo certo que por outro lado nenhuma compensação lhes oferece o governo, e o crescente assoreamento do porto se vai tornando em espectro da morte para a navegação deste porto. Dizem os chineses que a greve é uma manifestação para conter essa exploração que o comércio não pode suportar, e quando não o consigam, então tratarão de abandonar Macau, como centenares deles já fizeram. Eis a explicação da greve.”

Já a 13 de Abril O Macaense falava no zum-zum em forma de boato propalado na cidade – pretenderem os chineses assassinar o Sr. Arthur Tamagnini Barbosa – “foi desmentido pelas averiguações oficiais. Essa ameaça não passou senão de uma balela”.

Intervenção oficiosa

Na reunião do conselho do governo na manhã de 21 de Abril de 1892 saiu um edital do governo para ser publicado no dia seguinte, mas graças ao Visconde de Senna Fernandes e de alguns chineses influentes, a greve terminou logo na manhã do dia 22.

O Macaense a 28 de Abril refere: “Serenou, finalmente, a tempestade, graças à intervenção puramente oficiosa de entidades particulares. Sobre esta intervenção, vimos na portaria provincial, n.º 42 de 25 de Abril de 1892 uma espécie de censura que surpreendeu toda a gente, porque ninguém se convence de que o Sr. Visconde de Senna Fernandes tivesse intervindo na questão, sem estar d’ acordo com S. Exa. o Governador da província. Admira-nos que nessa portaria se dissesse que o governo tolerava essa intervenção oficiosa, quando é sabido que nas greves há sempre intervenção solicitada de terceiros independentes, que procuram conciliar os interessados, servindo-se de medianeiros para pacificar os ânimos.

A 22 de Abril já O Macaense dizia: “Todos os que conhecem a índole dos chineses, sabem que quando eles se coligam, por juramento solene, para fazer ou deixar de fazer uma coisa, quase nunca o quebram.” “Os chineses sobre serem teimosos e persistentes, são fleumáticos.” “Quando os negociantes de peixe desta cidade fizeram greve e disseram que se iam estabelecer na ilha fronteira a Macau, as nossas autoridades riram-se da ameaça; mas eles sempre para lá foram e o comércio de peixe salgado que era tão próspero, não sofreu pouco com isso. Ora eles que se haviam resolvido a não abrir as lojas enquanto se não abolisse o imposto de liu-pun, é claro que o que tinham melhor do seu estava em lugar seguro, e deviam estar dispostos a sofrer as consequências, podendo quando muito ser obrigados a sair de Macau, indo estabelecer-se em outra parte.

O edital do governo não os demoveria decerto do seu propósito, porque eles confiam na união que lhes dá força; e à mínima violência que houvesse, não faltariam de certo espíritos malévolos que promovessem a desordem para fins de rapinagem, ou de vingança. [Reflexão sobre o ocorrido a 21 de Abril na reunião no Hospital.] O meio mais certo e que todos esperavam, era o incêndio. Já vimos como ontem, quando se deu o sinal de incêndio, viram-se obrigados os altos funcionários da colónia a puxar as bombas. Em uma das estâncias de madeira de Patane descobriu-se hoje que muitas traves estavam humedecidas de petróleo. As casas de Lucau e de Ho-lin-vong estavam indigitadas para pasto das chamas. Ora imaginem que arrebenta o incêndio em dois ou três pontos da cidade. Como combatê-lo sem pessoal suficiente?”

Noutra parte do texto o articulista ironiza: . É verdade, não o negamos; era isto muito factível e quase certo, sobretudo se se houvesse publicado o edital segundo as deliberações do conselho do governo; resolveu-se o Sr. Visconde de Senna Fernandes a constituir-se único responsável pelas taxas de liu-pun, por espaço de 6 meses, ficando assim os negociantes de Macau isentos de pagar o imposto durante esse tempo até que o governo de Lisboa resolva a questão. Sendo esta resolução comunicada aos principais lojistas, foi logo por todos aceite, e eles deliberaram terminar a greve, comprometendo-se a abrir as lojas. Este compromisso tomado às 9 horas da noite de ontem [21 de Abril], teve hoje pela manhã o seu inteiro cumprimento, pois às 6 horas estavam todas as lojas abertas.”

“Só Deus sabe até onde chegariam se se prolongasse mais tempo, e se fosse agravada com as medidas violentas que o governo provincial tencionava empregar.”

Louvores

O Governador da colónia, após lhe terem sido apresentados os relatórios acerca dos acontecimentos sucedidos em Macau nos dias 20 e 21 de Abril, em que teve lugar a greve dos comerciantes, no B.O. de 28 de Abril de 1892 louva pelos serviços prestados o comandante geral da guarda policial, coronel António Joaquim Garcia, os oficiais e mais praças sob seu comando; o capitão do porto, capitão de mar-e-guerra Albano Alves Branco, o seu imediato, capitão tenente Wenceslau José de Souza Moraes, o 2.º tenente da armada José António Arantes Pedroso Júnior, os oficiais e mais praças da estação naval sob seu comando, e as praças da polícia marítima; o comandante do 1.º batalhão do regimento d’infantaria do ultramar, major Júlio Luiz Felner, oficiais e praças do seu comando; o administrador da comunidade chinesa, bacharel Bazílio Alberto Vaz Pinto da Veiga, o administrador do concelho Albino António Pacheco, bem como o alferes da guarda policial Adolpho Correia Bettencourt, encarregado de o auxiliar no exercício das suas funções administrativas, e o chefe da repartição do expediente sínico Pedro Nolasco da Silva; louvor pela dedicação, zelo, energia com que executaram e fizeram executar as ordens superiores por ocasião da referida greve dos comerciantes chineses, contribuindo assim eficazmente para a manutenção da ordem e do respeito à lei.

13 Set 2022

O Poeta da Montanha Fria – Liu Qiuyin

Porquê questionar as gotas de orvalho,
o sol nasce, elas transformam-se em névoa.
O corpo não é um palácio,
mas uma simples estalagem.
Por isso tu, hóspede de passagem,
liberta-te da paixão, da ignorância, do ódio.
O que resta depois? A mágoa, a iluminação,
uma gota de orvalho, rigorosamente nada.

 

O homem que um dia se chamou Han Shan, ninguém sabe quem foi. Quando alguém o via, considerava-o um doido, um pobre diabo. Vivia retirado na montanha Tiantai, sete léguas a oeste do distrito de Tangxing, num lugar chamado Han Shan (Montanha Fria), entre rochas e falésias. Daí descia frequentemente para o templo de Guoqing, ao encontro do seu amigo Shi De, encarregado da limpeza da cozinha do mosteiro que lhe guardava restos de comida em malgas feitas com cana de bambu.

Han Shan costumava passear-se pelos terraços do templo, gritava de alegria, falava e ria sozinho. Os monges corriam atrás dele, tentavam agarrá-lo, insultavam-no, às vezes queriam bater-lhe. Então Han Shan assumia outra vez um comportamento normal, esfregava as mãos, sorria e partia. Parecia um verdadeiro mendigo. O corpo e o rosto estavam gastos, consumidos pelos anos, no entanto havia coerência nas suas palavras e bastava pensar no discurso de Han Shan para adivinhar ideias profundas. Tudo o que dizia tinha a ver com os segredos do passado, com o subtil princípio das coisas. O seu chapéu era uma casca de bétula, as suas roupas estavam cheias de buracos e usava tamancos de madeira muito gastos. Assim vivia este homem extraordinário, afável, isolado, diluído na natureza, espalhando bom gosto. Nos terraços do mosteiro murmurava palavras surpreendentes como “a transmigração e os três mundos”. Nas aldeias e herdades próximas, Han Shan cantava e brincava com as crianças que pastoreavam os búfalos de água.

Quer as coisas lhe corressem bem, quer as coisas lhe corressem mal, mostrava-se sempre satisfeito. Se não estávamos na presença de um sábio, então como reconhecer um sábio?…

Há tempos atrás, quando ainda não ouvira falar em Han Shan, fui nomeado para um posto pouco importante na prefeitura de Tanqiu. Na altura da partida apareceram-me umas terríveis enxaquecas.

Chamei um curandeiro que me tratou, mas os padecimentos agravaram-se. Atendendo à minha solicitação, veio então um mestre chan 禅 de nome Feng Gan que me disse habitar no templo de Guoqing, na montanha Tiantai. O monge Feng Gan cantava hinos e costumava cavalgar um tigre, o que assustava os outros monges.

Quando lhe perguntavam qual era a essência dos ensinamentos de Buda, o mestre respondia: “Seguir o tempo.” Pedi-lhe então que tratasse da minha enfermidade. Feng Gan sorriu e disse:
“Os quatro elementos estão no seu corpo, a doença provém da ilusão. Se vos quereis libertar da moléstia é preciso simplesmente água pura.”

Trouxeram água e o mestre despejou-a sobre mim. Pouco tempo depois as enxaquecas desapareceram. Feng Gan acrescentou: “A prefeitura de Tanqiu fica junto ao mar, perto das ilhas no meio do oceano, o clima é muito húmido. Ao chegar, cuidai bem de vós.”

Perguntei-lhe: “Gostava de saber se existem alguns sábios na região, pessoas que eu possa considerar como meus mestres”.

Feng Gan respondeu: “Os sábios são fáceis de encontrar, difíceis de reconhecer. Quando a gente os vê, não os reconhece, quando a gente os reconhece, não os vê. Se quereis mesmo vê-los, não confiai nas aparências. Podereis então olhar para eles. Han Shan é como Manjusri,[1] escondido no templo de Guoqing, por sua vez, Shi De é como Samatabhadra.[2] Ambos parecem uns pobres diabos, uns doidos. Chegam e desaparecem, trabalham no templo de Guoqing, cuidam dos fogões, da cozinha.”
O mestre acabou de falar, pediu licença para se retirar e partiu.

Chegou a altura de ser eu a meter pés ao caminho, rumo ao meu posto em Tanqiu. Não esqueci o assunto e, três dias depois de entrar em funções, dirigi-me a um templo próximo e interroguei respeitosamente um velho monge. O que me respondeu, correspondia exactamente às palavras do mestre Feng Gan. Dei então ordens para que, em todo o distrito de Tangxing, se tentasse encontrar Han Shan e Shi De. O mandarim distrital disse-me:

“Quinze léguas a oeste da nossa prefeitura encontra-se uma falésia enorme onde existe uma gruta habitada por um vagabundo que visita frequentemente o templo de Guoqing. Às vezes passa lá a noite. Na cozinha do mosteiro trabalha um monge parecido com ele, de nome Shi De.”

Decidi então dirigir-me para Guoqing. Ao chegar perguntei:
“Este templo é habitado por um mestre chan chamado Feng Gan. Onde se encontra o seu quarto? Vivem também aqui os monges Han Shan e Shi De, como é que eu os posso encontrar?”
Um religioso de nome Tao Jiao respondeu:

“O quarto do mestre Feng Gan fica por detrás da biblioteca, mas neste momento ninguém habita lá e de vez em quando ouvimos os rugidos de um tigre. Han Shan e Shi De estão agora na cozinha.”

Em seguida, o mestre conduziu-me ao quarto de Feng Gan. Abriu a porta e não havia ninguém, viam-se apenas as pegadas de um tigre. Perguntei aos monges Tao Jiao e Pao De: “Quando o mestre se encontra aqui, o que faz?” Deram-me a seguinte resposta: “Durante o dia, Feng Gan anda por aí, recolhendo e descascando arroz, à noite canta para se distrair.”

Dirigi-me depois para a cozinha. Diante do fogão dois indivíduos aqueciam-se e riam às gargalhadas, os rostos iluminados pelo fogo. Saudei-os respeitosamente. Deram um grito, apertaram as mãos e começaram outra vez a rir. Um deles disse: “Ah, o Feng Gan, esse grande coscuvilheiro! Se o senhor não é capaz de reconhecer um Amithaba[3] porque nos veio cumprimentar?”

Aproximaram-se outros monges surpreendidos com a estranha situação de um mandarim saudar e conversar com aqueles pobres diabos. Han Shan e Shi De aproveitaram para fugir. Ainda pedi que alguém fosse no seu encalço, mas os dois homens já tinham desaparecido a caminho da Montanha Fria. Perguntei depois aos monges se eles estariam dispostos a alojar as duas criaturas permanentemente no mosteiro.

Foram preparados dois quartos para eles e pedi que alguém lhes fosse comunicar o meu desejo de se instalarem de vez no templo de Guoqing.

De regresso à prefeitura, dei ordens para que fossem feitas roupas novas para Han Shan e Shi De e que as mesmas lhes fossem entregues, junto com pauzinhos de incenso. Os dois homens não haviam regressado mais ao templo e os meus criados levaram as vestes e o incenso para a Montanha Fria. Quando lá chegaram, Han Shan gritou: “Ladrões, ladrões!” E entrou numa gruta. Antes de desaparecer, pronunciou estas últimas palavras: “Digo-vos, segui os ensinamentos de Buda.” Depois foi impossível acompanhar os seus passos. O rasto de Han Shan tinha desaparecido.

Por fim, solicitei ao monge Tao Jiao que tentasse saber algo mais sobre os dois homens e que recolhesse os poemas de Han Shan. O homem da Montanha Fria escrevera pouco mais de trezentos poemas que gravara em lâminas de bambu, na casca das árvores, nas rochas, em muros de aldeias. Shi De escrevera os seus poemas nas paredes do templo. Tudo foi então compilado e organizado em livro.
O meu coração procurou o refúgio de Buda. Tive a sorte de encontrar os homens do Tao.

*Governador de Taizhou
Pilar superior do Império
Portador da insígnia do peixe, dom do Imperador, guardado num estojo vermelho (Séc. IX)

Tradução e notas de António Graça de Abreu

9 Set 2022

O Gato de Schrodinger

Seis e trinta da manhã. Acordo e testemunho pela nonagésima terceira vez a caricata celebração das nossas gatas à minha mulher, que dorme. São duas, absolutamente idênticas, distingue-as uma pequena mancha preta que a filha tem nas narinas. Felizmente, a minha mulher dorme quase sempre de barriga para baixo.

Quando se apaga de barriga para cima uma delas vai anichar-se-lhe no peito e vela. E, se acordo, dou um pulo – é invariável.

A minha mulher tem sinais no rosto (como a Bambu de Gainsbourg), vivêssemos na Idade Média e há muito que tinha ido para a fogueira: a absoluta comunhão com os gatos e os sinais, provas suficientes quanto ao seu comércio com o Diabo. Vale sermos de outro tempo. Ou ser eu o Diabo, num formato pachola.

E as duas gatas, dada a dificuldade em distingui-las na maior parte dos ângulos, evocam-me o gato de Schrödinger e o poema com que o Dinis H. Machado fecha o seu Eliot, É assim que o mundo termina, um lance onde se medita sobre o tempo e a sua face ondulatória e que para mim fecha o livro esplendidamente.
Dinis funde a caixa de Schrödinger no corpo do poema e faz dela dispositivo para sondar a ambivalência do tempo e a sua pulsação contra o senso comum, no intervalo das difrações e da ferida que as bordas de qualquer decisão impõe sempre ao rasto dos existentes. O gato (sugere-se) metamorfoseia-se num homem, numa mulher, em dois amantes na lâmina do instante que separa ou vincula, numa criança que ainda vacila no primeiro passo, a única constante que o gato ilumina é que o tempo é uma parede de ladrilhos a que a varredura ocasional de luzes oblíquas muda os padrões.

É um belíssimo poema de quatro páginas, uma digressão em torno da nossa fatuidade e da impossibilidade de não nos evadirmos pelo desforço de sermos múltiplos, ainda que retardados pelo erro, mas sem nunca se colocar na ponta dos pés, sem nostalgia nem pathos, e que termina assim:

«Aqui estamos, novamente, junto ao promontório./ Falamos com as ondas que se atiram contra o rochedo teimoso./ Não é a primeira vez e, decerto, não será a última e derradeira./ Nós estamos aqui porque somos incapazes de aprender./ Para nós, apenas existe o que podia ter acontecido,/ o que podíamos ser e nunca o que somos ou fazemos./ Nós estamos fora do tempo. A nossa presença é insignificante./ Nada do que fazemos altera o que o destino nos reserva./ Vemos o nosso rosto debaixo de uma luz defunta,/ extinta num momento em que ainda não éramos./ Tudo o que vemos está morto e deixou de existir./ Esta é a terra morta. A terra que aguarda o decair da estrela./ Nascemos com os mortos e vivemos sob o branco/ nevoeiro que nos cega e encanta com uma canção de embalar./ No final, iremos morrer com o morrer da luz,/ como um sonho que nos abraça e seduz./ Esta é a forma como o mundo acaba./ Esta é a forma como o mundo acaba./ Esta é a forma como o mundo acaba./ Não com um estrondo, mas com um gemido./ O resto é silêncio./ Um silêncio profundo que antecede um novo início.»

Uma primeira nota sobre a inteligência com que o verso repetido três vezes dá ênfase ao fecho do poema, pois se este é percorrido por um sentimento do “fatum”, o seu desfecho, num felino golpe de rins, renova os votos, relembra-nos que a decisão de considerar se o gato na caixa está morto ou vivo só depende de nós; sendo que mesmo a morte que nos atinge no singular não é afinal universal, como anuncia a coda de um poema anterior, A era das máquinas: «Esta impressão (o que o tempo nos faz sentir) é como um fantasma/ que nos persegue e assume a nossa forma quando o sono nos distrai./ Não há uma só morte que nos acompanha no fim,/ mas uma que é só nossa e nos acompanha desde o início.» Pertinente ainda que o verso que instala o silêncio restante seja o mais curto, o que interrompe a métrica, mas o que importa realçar é que se em Dinis H. Machado desponta, unha com carne, o acidental e o trágico que atravessam as estações da vida, o poeta sobrevoa, insurrecto («com uma subtil teimosia»), quaisquer tentações de cair na litania desairosa que antecipa o cinismo e sacode os mantos duma cristalização que de desconforto em desconforto nos alastre a impotência.

Lembremo-nos que, como é dito no prefácio, este livro foi escrito numa dupla injunção, para celebrar e esconjurar o poeta de A Terra Devastada. E lendo este Eliot, só me acode um verso espantoso que Nâzim Hikmet escreveu na prisão: «sou feliz, sou feliz a toda a brida». E diante desta força da afirmação só podemos agradecer. A bruxa acordou, ao meu lado. Embruxemo-nos, que bruxuleantes ficaram as gatas e a manhã.

8 Set 2022

Poemas da preguiça e do vinho

Li Bai, grande poeta da dinastia Tang, traduzido e anotado por António Izidro

Sentado sozinho na montanha Jingting
Um bando de aves nas alturas do céu,
uma nuvem espreguiça-se solitária.
Nunca o nosso olhar se farta do outro:
eu e a montanha Jingting.

Verão na montanha
Indolente agito o meu leque de alvas plumas,
de tronco nu me obrigo à verdura da floresta,
mas quando tiro o turbante e o poiso numa rocha,
uma brisa de pinho esfria o orvalho na minha testa.

Olhando a Lua depois da chuva
Nuvens e névoas se dispersam,
abro a janela e dou por meia Lua sorrateira.
Campos longínquos, nublados,
cruzados por rios de seda pura.
A Lua clareia a serra curva a meia altura;
inunda de luar o mar quando ascendia;
sofrerei se este aro abandonar
e por isso velarei até ser dia.

Bebendo sozinho ao luar
Entre as flores, um jarro de vinho,
levanto a taça, bebo sozinho.
Convido a Lua, é a sua vez,
com a minha sombra já somos três.
A Lua não sabe o vinho beber
e a sombra só faz o que eu fizer.
Tenho estes dois por companhia,
noite de Abril, plena alegria.
Canto e a Lua ouve o meu cantar,
danço e a sombra segue o meu dançar.
Folguemos unidos até aguentar,
pois depois o sono vai-nos separar.
Ó peregrinos sem alma de meu vazio festim,1
na Via Láctea faremos uma outra festa sem fim!

1. Peregrinos sem alma Não obstante a momentânea alegria que trouxeram, a Lua e a sombra são assim tratadas pelo poeta por não perceberem a sua solidão. Pode-se ler nos versos um conceito paradoxal, em linha com a filosofia budista sobre o criar e o desconstruir; em que, se por um lado se constrói, logo algo é desconstruído, desta destruição nasce seguidamente uma nova criação. É assim que o poeta quebra a solidão construindo a presença dos “companheiros”, realidade que logo se desvanece, quando no fim cada um segue o seu caminho; a partir desta separação, o poeta reconstrói a amizade, profetizando encontros perenes na eternidade celeste.

Não amasse o Céu o vinho…
Não amasse o Céu o vinho e nele não haveria
Estrela de Vinho remota.
Não amasse a Terra o vinho e nela não haveria
fontes de onde o vinho brota.1
Ora se à Terra e ao Céu o vinho tanto agrada,
a tudo o que é divino, o meu grande amor ao vinho
por certo não é maçada.
Fluído, cristalino vinho, para virtuoso beber,
e vinho turvo e espesso para letrado entreter:2
Se doutos mestres dele gostam e de bom grado o aceitam,
para quê perguntar aos deuses se por acaso o rejeitam?
Já vou na terceira taça quando dou por mim na Via,
com uma “medida” emborcada a Natureza me guia.
Ó gáudio tão desmedido que do vinho se retém,
alegria rutilante que o homem sóbrio não tem!

1. Fontes vinícolas. A analogia entre o vinho e as fontes de uma região de onde brotava água tão doce como o vinho.
2. Vinho cristalino e vinho turvo. Um é coado, refinado, o outro não; pelo facto de no culto aos ancestrais ser oferecido apenas o vinho puro, a tradição manda que aos virtuosos seja servido vinho cristalino e aos letrados o vinho turvo.

In António Izidro, “Li Bai – A Via do Imortal”, Livros do Meio, 2022

8 Set 2022

Para terminar com a greve

A 13 de Abril de 1892 O Macaense, publicado às quintas-feiras, noticia não haver nenhuma novidade e a cidade continuar a viver em paz, conservando-se os chineses no mais completo sossego, apesar de após a criação do exclusivo de liu-pun correr o receio de aparecerem novos exclusivos, sobre salitre, enxofre, tabaco, etc.. “Consta-nos que a câmara municipal dirigiu ao Sr. Governador um ofício a retransmitir a representação dos chineses” [transcritos nos dois artigos anteriores].

Refere a 22 de Abril O Macaense, que desta vez saiu um dia mais tarde, na sexta-feira: “Depois das sucessivas petições que os chineses haviam dirigido (…) sobreveio uma calma completa, parecendo que a agitação tinha cessado e os ânimos estavam sossegados. É que a bonança era aparente, mas prenhe de tempestades.

De repente, na tarde de 19 do corrente, correu o boato de que no dia seguinte ia haver greve geral, tanto assim que reinava grande actividade nas lojas do bazar, onde afluía numerosa gente para compra de arroz, lenha e outros géneros necessários ao sustento diário.

Soube-se então que os chineses, a quem se havia proibido fazer reuniões em Macau, sem prévia participação às autoridades competentes, faziam os seus meetings na Lapa, onde se decidiu fazer a greve.

Muitas pessoas, porém, não queriam acreditar que os chineses levassem avante o seu plano, e esperavam que tudo ficaria em águas de bacalhau, quando na manhã do dia 20 do corrente se viu, com surpresa geral, que a greve era uma triste realidade.

Não há memória de ter havido nesta cidade, desde a sua fundação, uma manifestação tão geral. Todas as lojas chinesas de Macau fecharam-se. Apenas se conservaram abertas as casas de jogo do fantan e das lotarias pac-a-piu e vae-seng, que estiveram vazias por falta de jogadores.

O Sr. Administrador do concelho, acompanhado de uma escolta de polícia, percorria as ruas fazendo abrir à força algumas lojas de arroz, que se vendia por preço exagerado. A maioria das lojas continuaram fechadas até ontem.”

O governo estabeleceu um celeiro de arroz na Rua Central para fornecimento do público e ordenou “o arrombamento de algumas lojas de arroz, porque o artigo 275.º do código penal proíbe ao mercador que vende para uso do público géneros necessários ao sustento diário esconder suas provisões, ou recusar vendê-las a qualquer comprador, com quanto este artigo venha no capítulo de Monopólio e não tenha aplicação na hipótese em questão.

Infelizmente, porém, parece que o governo provincial andava mais sôfrego de ver a solução da crise,” e “estava firmemente resolvido a fazer terminar até com violência a greve no começo do terceiro dia. Para esse fim tinha-se reunido o conselho do governo na manhã do seguinte dia (que foi ontem, 21 do corrente) e consta-nos que tomaram unanimemente as seguintes deliberações: 1ª. –

Que o governo não deveria ceder, nem transigir; 2ª. – Que devia haver-se com prudência, empregando primeiro meios suasórios para os chineses abrirem; a fortaleza do Monte daria um tiro, e se logo depois não se abrissem todas as lojas, o governo mandaria abrir à força as que se conservassem fechadas, e processaria os que fossem encontrados nelas, e além disso tomaria conta de todos os objectos existentes fazendo funcionar as lojas e remetendo o produto à tesouraria de fazenda.

Quando nos chegou isto ao conhecimento, foi uma verdadeira surpresa, porque pensávamos que a atitude do governo seria sempre moderada, e jamais agressiva.” (…) “O conselho do governo, porém não entendeu assim. Considerou a greve sob um prisma diferente, quando a verdade é que o código penal só proíbe a greve dos mercadores dos géneros necessários ao sustento diário, sendo o seu fim o monopólio, e não outro qualquer, e a pena da lei resume-se simplesmente em multa, conforme a renda do mercador, de um a seis meses.”

“O edital do governo teria sido publicado hoje [22 de Abril] se não tivesse acabado esta manhã a greve, graças ao patriotismo do Sr. Visconde de Senna Fernandes e de alguns chineses influentes, e ao edital do Leal Senado que concorreu em parte para acalmar os ânimos…”

Reunião no hospital

“Alguns arrematantes dos exclusivos fiscais, sobretudo o chinês Lucau, vendo-se gravemente lesado nos seus interesses, e compreendendo o grave risco em que incorriam os seus negócios, os seus bens, e a tranquilidade pública, da paralisação total do comércio, solicitou do governo licença para um meeting no hospital chinês. (…) Ao meeting, que se realizou ontem [21de Abril] ao meio dia, assistiram os srs. Procurador dos negócios sínicos, o primeiro intérprete-sinólogo Pedro Nolasco da Silva, e uns cinquenta principais negociantes chineses, presidentes ou chefes das agremiações industriais desta cidade, e o proprietário deste jornal [O Macaense] Sr. Secundino Noronha.

Corria placidamente a discussão, tendo chegado a resolver que se devia requerer novamente ao governo solicitando a abolição do novo exclusivo e a promessa de se não criarem mais impostos, quando a arraia-miúda, que se aglomerava dentro e fora do hospital, se mostrava impaciente e desejosa de saber o resultado da deliberação.

Já mesmo antes disso era tal a vozearia, que os deliberantes se viram obrigados a recolher-se para uma sala mais interna.

Alguns dos negociantes com o fim de acalmar a agitação, saíram da sala e participaram à turba que seria resolvida satisfatoriamente a questão, explicando-lhe a deliberação da assembleia. Nisso prorromperam em algazarra, gritando que queriam imediatamente a abolição do novo imposto; e uma chuva de pedras, cacos e telhas começou a cair sobre o lugar onde estavam os dois funcionários acima indicados e os negociantes, partindo as vidraças e chegando um dos fragmentos a tocar levemente um dos dois soldados do destacamento próximo àquele lugar, os quais tinham sido chamados pelo Sr. Nolasco da Silva logo ao manifestar-se o tumulto.

Interrompeu-se a sessão, e tanto o Sr. Procurador dos negócios sínicos, como os srs. Nolasco da Silva, e Secundino Noronha e os dois soldados tiveram de se escapulir por uma porta traseira do hospital que dá para o cemitério de S. Miguel, devendo-se aos srs. Procurador e Noronha o não ter rebentado nesta ocasião (ilegível) queriam imprudentemente atirar-se à multidão furibunda.

Marchou em seguida para o local do conflito o 1.º batalhão do regimento d’ infantaria do ultramar, com o seu comandante Sr. Major Júlio Felner, acompanhado do Sr. Procurador dos negócios sínicos; mas não foi preciso empregar a força, porque à chegada dela já se havia dispersado a multidão.

Ao mesmo tempo que tudo isto acontecia, espalhava-se a notícia aterradora de haver incêndio no bazar; os telefones confirmaram-no, e em seguida a fortaleza do Monte dava dois tiros de rebate. Felizmente era rebate falso, mas concorreu para se dispersasse aquele ajuntamento da populaça, em que já dominavam intenções sinistras.”

6 Set 2022

O sentimento dum ocidental

Dedicado com amor a Guerra Junqueiro

 

É sem dúvida alguma uma designação feliz este nomear visto por um ponto cardeal só concebível por um poeta que em tudo via captações sensitivas dos espaços, Cesário Verde – tribuna verde para um Ocidente que desde há muito encetou o êxodo para as cidades e que tem sido rasgado a fogo nos últimos tempos – que ainda pode ser apelido, verdi, na linha de uma ascendência italiana, dúvida que recai na zona que ao poema interessa. Um ocidental não será contudo mais sensível à flora que um oriental, antes pelo contrário, mas tende a contemplação mais difusa a ver por onde conduz o interesse das suas visualidades e centros nevrálgicos nessa projecção. Mas é com ele, o poeta, que hoje seria certamente um ecologista pioneiro ou um lutador pelas causas dos mais desfavorecidos, que esta ocidentalidade nos interessa.

À extrema ocidentalidade, junta-se-lhe quase o deserto, esse espaço revigorante onde os oásis se dão, e onde tudo fica tão bonito que não precisamos de florestas defuntas de abandono, nascendo-lhe gentes talvez com verdes olhos, e nessa visualidade um Cesário em seu binómio cidade/campo, o qual nos foi deleitando na construção de um outro planeta sonhado. Este sonho partia no entanto de uma atenção prodigiosa do real, uma capacidade instintiva de religar as coisas como pertencentes a uma unidade mais vasta, uma certa diluição que lhe garantia a fluidez entre mundos, onde acompanhá-lo é deleite, e também um grande alerta.

Como um ser tão débil consegue tal acutilância, é sem dúvida o seu deslumbre. Usa as sinestesias como bailarino em trampolim e somam-se-lhe recursos linguísticos tais que ficamos elucidados acerca das componentes de suas inquietações. Não segue um estilo caracterizado, notando-se retalhos parnasianos, impressionistas, românticos e realistas, onde vai escavando uma modernidade a acontecer, inspiradora e readaptada em Fernando Pessoa.

Um cego pode ver as coisas escutando o Verde Cesário, que ele erradicou a cegueira como impedimento à compreensão; mas nós, videntes muito incapacitados, continuamos baixando a guarda ao bom entendimento, que ainda o terceiro conjunto deste poema é dedicado «Ao Gás», uma súmula de bem-dizer em verso raro que nos perturba, sim, mas nos orienta para olharmos a injustiça, a fria realidade das coisas vãs, e nos protege numa certa miséria a acontecer. Por quê? Por uma compaixão de si que a todos abrange, lúcida e leal. A estesia com a qual nos contempla vale bem uma outra Missa. Ele que não era freirático e desdenhava dos reis, que entravam a galope pelas cidades dentro, é no entanto o sentimento que nos transmite, o de um inacessível perdão, parecendo assim um para-raios que não chega até à locomotiva em marcha no momento que nos acolhe. Fora um paciente de Sousa Martins que julgou não lhe conhecer a identidade, mas o médico que se revelou uma alma curativa, sabia quem ele era, e a outro confirmou o quanto já estava irremediavelmente perdido! (perdido para a vida, mas não para nos lembrar que a vida de nada vale se não a soubermos olhar).

O sentimento ocidental não transpõe agora visão alguma, atropelando várias sensações com conduta errática e olhar vitral, que nós não vamos longe e daqui ninguém parece saber sair: a luz decresce na ocidentalidade que, cansada, acende fogueiras, enfrenta o escuro, apaga o gás… que a Guerra por gaseamento acolhe a “repaga” na memória colectiva. Bom! Vejamos. Ainda a procissão gasosa vai no adro!

Está quente e não tarda a arrefecer, que o extremado mundo não anda para subtis Estações intermédias, podendo deslizar para coisas bem piores, que os ferros com que matámos, nos matarão, tal qual como o belo Cesário aqui afirmou «Tudo cansa! Apagam-se nas frentes/ os candelabros, como estrelas, pouco a pouco; …tornam-se mausoléus as armações fulgentes…»

Por acaso estes instantes são de seda e pranto e não nos tornaremos menos pessoas se, de trás para a frente, as gentes contemplarem a vida dos que não morreram devagar. Estamos sitiados. Só os poetas nos podem agora falar de forma ampla e futura, pois que nem sempre somos assim tão felizes na virtual memória do vivente tempo que passa. E disse ainda uma coisa linda um seu amigo: a bondade suma está no poeta, mais visível pelo menos do que em Deus.

Estão ainda verdes estas belas pinceladas alfabéticas! Não as podem tragar.

5 Set 2022

Felix Salten

A Europa arde como se uma grande inflamação a tivesse assistido para acelerar o colapso da sua derrocada previsível e ainda não dramaticamente olhada como a que está a acontecer: pois que seja das alterações climáticas, e também pelas vicissitudes do chão do mundo mais regado a sangue de que há memória neste agora ardente planeta, que neste momento lembramos os bosques frescos que o coração dos filhos do Continente belo armazenou de forma a manter intocável a sua lenda.

Não há já que nos debruçarmos nos mitos distantes de uma Europa cavalgando o Touro – não – pois que estamos bem perto do tempo de uma abordagem de autor com tudo aquilo que deveria ter sido a sua mais nobre função enquanto ecossistema, sendo sem dúvida um testemunho ambientalista raiado de respeito por todas as minorias.

Hitler, odiava-o! Ao autor de «Bambi» que fez agora setenta anos de marcha improdutiva para alargar a sua urgência para um mundo capaz (que nós ainda nos deleitámos nas “conversões” Disney desta história de amor e resgate) atravessado pouco depois por razões paranoicas da “pedagogia do real” que de tão falha «Bambi» foi dormir para a sua floresta de sonhos sem desejo de regressar. Nascera em Budapeste, mas era austríaco, um austro-húngaro tal como o seu poderoso inimigo, o caçador das florestas europeias que derramando ódio ao ciclo natural da Floresta incendiou a Europa inteira[ que todas as ignições aparecem como forma de desespero diante de um mundo em colapso, e é com extremo respeito que esta obra nos parece encaminhar agora para exultação comum]. É tão ecológica que não precisa de menção, sendo a sua edição entre nós, verde- «E- Primatur» – e tão estranhamente crística que o pequeno cervo parece uma ovelha.

Os livros de Salten foram para as fogueiras já em 1936, que a indústria do papel tem como ciclo programático criar depois uns delinquentes que transtornados pelo efeito da celulose fazem piras com “eucaliptóides” onde em terras lusas se mitiga assim o efeito da fornalha inquisitorial de incentiva à piromania em que o vegetal compromisso está sempre além do caçador, ou seja, o nazismo arde em frente dos “nossos narizes” que esperam a grave oportunidade de se juntar a ele com vestes que não estejam associadamente chamuscadas. Sem transtorno, que isso é coisa de antanho, e já apetrechados de virtual capacidade para se susterem, vão treinando o fim definitivo de todos os equilíbrios com informação de alto grau para denunciar os nichos de liberdade que andam à solta, que é talvez o que restou do nosso « Bambi» travestido ainda de americano, mas teluricamente implorativo face àquelas coisas que jamais deveríamos ter esquecido.

Este é um livro que foi escrito em Viena em 1923 e publicado originalmente em Berlim, os ventos de mudança no Império traçavam vias onde as reservas de ternura deveriam ser apagadas para dar começo ao Urso e ao Lobo, no fundo, antropomorfismos desleais de uma seita humana tão decrépita que os grandes predadores a ela se escusam, mas foi neste ambiente quase premonitório de um adeus aos trilhos da floresta sonhada que esta dádiva se deu. O grande caçador como nuvem de um fogo negro iria abater as mães da natureza e dar todas as ordens para abertura à Caça. Felix foge para a Suíça, afinal era judeu, mas a sua lenda vai sempre connosco acompanhada de encanto e denúncia perante a sensação de que pouco ou nada aprendemos dos dons da vida através da escrita daqueles que nos alertaram para o perigo que somos, mesmos nesta torrente sem sentido aparente, mas que parece refazer-se em nosso destino comum.

Esta alegoria devia ser enaltecida e construída para memória social, que os nossos povos já não sabem nada do que andam a fazer. A Europa é demasiado bela para os europeus e, no fim, mesmo no términus da viagem : « a vossa mãe não tem tempo para se ocupar de vós… Não és capaz de ficar só?». – Não!

1 Set 2022

Petição dos negociantes chineses

A resposta dada em ofício de Sua Exa. o Sr. Governador ao Leal Senado a 21 de Abril de 1892 comunicava não estar nas suas atribuições abolir o referido exclusivo, visto ser o decreto de Sua Majestade Fidelíssima El-Rei de Portugal [D. Carlos], mas que havia enviado o requerimento dos chineses e o ofício do Leal Senado ao Governo de Sua Majestade.

Aditava ainda que o governo provincial não tinha em vista criar e lançar novos impostos. Só n’ O Macaense de 12 de Maio aparece transcrita a petição feita por escrito dos negociantes chineses de Macau, que já não seria a entregue a 5 de Abril ao Leal Senado para ser passada ao Governador, pois a data da sua tradução era de 5 de Maio e estava agora endereçada ao Rei. No mesmo jornal seguiam as condições do contrato do exclusivo e o ofício N.º 9 do Leal Senado da Câmara de Macau de 10 de Maio, apresentando uma nova redacção, sem deferir muito da do N.º 7 de 11 de Abril.

Assim, aqui deixamos registada a petição dos negociantes chineses de Macau: <Senhor! Os abaixo assinados, chineses residentes em Macau, capitalistas, proprietários, negociantes, lojistas e industriais, vem respeitosamente aos pés de Vossa Majestade fazer a seguinte exposição, pedindo se digne Vossa Majestade compadecer-se da situação angustiosa em que se encontram os suplicantes, e haja por bem atender à súplica que fazem: <Há muitos anos que os abaixo assinados vivem pacificamente em Macau, fazendo comércio e exercendo indústrias, com sossego e sem perturbação alguma, graças à protecção do Governo Português, pelo que estão os suplicantes gratos, e sempre que tiveram ocasião, manifestaram esta gratidão.

Ultimamente o exclusivo do vinho liu-pun, lançando um imposto, (xxx) [causou] um grave transtorno no comércio local, cuja prosperidade é devida unicamente ao facto de Macau ser porto franco, e de não pagarem as mercadorias imposto algum na entrada e saída do porto. O comércio de Macau está sobrecarregado de impostos, e não poderá manter-se se o onerarem com novos impostos lançados sobre as mercadorias logo à entrada do porto.

É por isso que os suplicantes vêm recorrer à Vossa Majestade, implorando da sua sábia solicitude pela prosperidade das possessões portuguesas, providências que salvem esta cidade de completa ruína. Se em toda a parte do mundo o comércio luta actualmente com graves dificuldades, não está isento deste mal o comércio de Macau, o qual pelo contrário está sofrendo ainda mais intensamente, pela natureza das suas transacções.

Macau é um palmo de terreno, tem uma população diminuta, nada produz, e consome muito pouco. Os produtos chineses, e as mercadorias estrangeiras que afluem a Macau, passam em trânsito por esta cidade para irem para outros lugares de consumo, servindo-se de Macau como de um armazém ou depósito; por isso os lucros que aufere o comércio desta cidade não podem ser mui abundantes. Nestas circunstâncias vê-se que a capacidade tributária de Macau não pode ter grande elasticidade.

De mais acontece que na proximidade de Macau, no território chinês, está estabelecida uma alfândega chinesa que tributa todos os produtos chineses que entram em Macau, bem como todas as fazendas europeias que daqui saem.

Ao mesmo tempo, aqui em Macau, o povo paga décima industrial, décima predial, contribuições municipais, direitos de registo e décimas de juros. Há em Macau também o exclusivo da carne de porco, o exclusivo da carne de vaca, o exclusivo de peixe e o exclusivo de sal. Há ainda mais exclusivos (xxx).

Todos estes impostos, e todos estes exclusivos, são pagos com o dinheiro que saí do povo de Macau. Este povo, portanto, não está habilitado para pagar novos impostos. Contudo correram boatos de que se iam criar novos exclusivos de tabaco, petróleo, azeite, arroz, hortaliças, salitre, enxofre, lenha e carvão; e estes boatos, como era de esperar, fizeram sobressaltar o povo.

Cumpre aos suplicantes submeter à consideração de Vossa Majestade o facto de que Macau, no tempo em que havia aqui alfândega, tinha uma população chinesa somente de 20 mil almas, mas desde que esta cidade foi declarada porto franco, cresceu essa população, que hoje sobe a 70 mil almas. Estes chineses trouxeram a Macau capitais, comércio, e indústria, e vieram em grande número aqui residir com suas famílias, na fé de que Macau seria sempre porto franco.

É certo, porém, que, se de repente alterarem este regime, e lançarem impostos sobre a importação de mercadorias, equivalerá essa nova lei ao restabelecimento da alfândega, e os suplicantes terão o desgosto de ver o seu comércio arruinado, perdidos os seus capitais, e destruído o seu futuro. Será isto justo? Além de tudo isto, o novo exclusivo do vinho liu-pun não fez incidir o imposto sobre o vinho destinado ao consumo do povo de Macau, mas abrangeu todo o comércio deste género, incluindo o vinho destinado à reexportação.

Este imposto, ainda que fixado em três caixas de prata por cate, é excessivo, pois vem a importar em 7 candorins e duas caixas de prata, ou 10 avos de prata, por cada jarro de 24 cates; e como o vinho liu-pun é muito barato, e o seu preço varia entre 60 a 90 avos por cada jarro de 24 cates, o referido imposto representa, por termo médio, um ónus de 14 % sobre o preço. É evidente que, ficando o preço do vinho liu-pun em Macau mais caro na proporção de 14%, bastará esta circunstância para desviar para outros portos os fregueses, que antes vinham a Macau abastecer-se deste género, e com isso sofrerá o comércio local.

Outrossim em Macau existe a indústria de preparar vinhos especiais, metendo de infusão frutas e outros ingredientes no vinho liu-pun. Mas ficando agora a matéria-prima mais cara na razão de 10 avos por jarro, ou de 14% sobre o preço, é certo que esta indústria irá buscar outra localidade, porque esse aumento (xxx). É sempre o comércio local que virá a ser prejudicado. Em vista do que fica exposto, os abaixos assinados pedem a Vossa Majestade haja por bem mandar abolir o exclusivo do vinho liu-pun, e dar ordens às autoridades de Macau para respeitarem integralmente a franquia do porto de Macau, não fazendo alteração nem inovação, para que reviva o comércio e floresça esta colónia. P.P. humildemente a Vossa Majestade haja por bem deferir o pedido, E. R. Mcê.

Macau, 4.ª lua do ano 18.º de Kwong-su [Guangxu]. Maio de 1892. Assinaturas de Ho-lin-vong, Lucau,” e mais 80 nomes. Em seguida vem 1023 selos dos negociantes, lojistas e industriais de Macau. Traduzido por Pedro Nolasco da Silva, 1.º intérprete. Macau, repartição do expediente sínico, 5 de Maio de 1892>.

Nesse jornal é referido o deplorável estado em que pelo assoreamento se encontra o porto de Macau, fazendo com que o comércio sofra gravemente. “O estado do porto é tal que só navios de pequena lotação e esses mesmos com dificuldade ali podem entrar; e assim os lucros comerciais convergem todos a Hong Kong, isto com gáudio dos ingleses e de inglesados. Tal é devido à indiferença e negligência dos governos de Macau.”

30 Ago 2022

Eliot 3

Sucinta, mas lapidarmente, diz-nos Jorge de Sena sobre Eliot: «é um defensor dos valores clássicos num sentido amplo, isto é, dos valores resultantes de uma disciplina aceite, de uma “ordem” em que as “aventuras” do espírito encontram a estrutura que tudo lhes rouba».

E realçamos aqui como ao advento da disciplina se acrescentou algo que Elias Canetti definiu como ninguém: «a arte é encontrar mais do que foi perdido».

Eis-nos num itinerário semelhante aquele que põe em movimento o novo livro de Dinis H. Machado e que teve como pretexto a mais preclara homenagem, logo no título: “Eliot”.

No prefácio ao livro, declaram-se duas coisas fulcrais para a sua leitura. A abrir: “A vida, acredito, mede-se em séculos”, e, depois, numa cronologia das suas leituras e admirações, Dinis relata o estupor de que foi tomado quando embateu de frente, ainda por cima num encontro fortuito, com “The Waste Land” (“conheci o meu primeiro Mestre”): “Fui confrontado com a perfeição e resignei-me à condição de mero leitor”.

Até aí, na esteira dos «beat», ou acompanhado por Baudelaire e Rimbaud, lograra fundir o impulso e a imitação, mas a descoberta da arquitectura em T.S.Eliot e da sua tremenda capacidade para conciliar abstracção e coloquialismo paralisou-o. E durante anos pôs o projecto da escrita de lado.

Felizmente que o tempo (diria até: a má raça do tempo) o obrigou a reagir. Este livro, o sétimo da bibliografia activa do seu autor é um longo poema autobiográfico dividido em duas metades, “Eliot” (em quatro movimentos) e “Terra Condenada” (onde se sucedem cinco partes), e se por um lado nos reporta à “angústia da influência”, por outro denota um labor de síntese que faz da intertextualidade chão mas acrescenta novos elementos calóricos ao húmus que o nutriu, fazendo o autor descolar da sombra majestática do Mestre.

O Dinis H. Machado, como Grabato Dias antes dele, como o seu coevo Daniel Jonas, é um poeta que gosta de se ancorar em modelos e não se furta ao desafio da rima, fazendo uso, com eficácia, de toda a técnica da prosódia.

Bastaria lembrar o seu livro anterior “Heathcliff”: sonetos de factura técnica irrepreensível, que tomam a personagem de “O Monte dos Ventos Uivantes” como máscara, um exercício mimético de inegáveis conseguimentos expressivos. Porque Dinis encara a linguagem como jogo da totalidade e não recua diante de opções lexicais que, a uma vista desatenta, parecerão resíduos formais de uma tentação arcaizante. É um engano, trata-se de, a) recuperar as possibilidades e o espectro da linguagem para além dos seus usos epocais (“A vida, acredito, mede-se em séculos”: lemos acima), e, b) um jogo de adequação dramatúrgica às vozes a quem lhe interessa emprestar uma dicção. E até ao Hamlet se atreveu, num livro que ainda não li. Quem por exemplo pegar neste “Eliot”, logo na primeira estrofe estranhará o tom à Guerra Junqueiro deste verso: «Lisboa, cidade agrilhoada em fervor ditada», mas depois rapidamente percebe um humor subterrâneo, um jogo de intercepção de várias camadas estilísticas e textuais, e um trabalho de verosimilhança das vozes que vão aparecendo nos poemas, que o justifica.

São múltiplas as entradas para um comentário a este belo livro, burilado e exigente com o seu leitor, que se defrontará com nove poemas em setenta páginas. Como o nosso espaço é curto, mostremos o modo paródico e dominado como o Dinis trata um dos “tópoi” centrais em Eliot, a questão do tempo, e a inteligência com que usou o Gato de Schrödinger e os seus paradoxos, no último poema do livro, como base para meditar sobre as ambivalências que concernem à própria existência humana, aos seus valores, e até ao domínio da arte.

No derradeiro da primeira parte, no poema “Stern”, lemos:

«Eu, embora jovem, um velho de apenas 20 anos,/ tinha em mim o tempo passado e o tempo presente./ Ouvia os pássaros que me indicavam o caminho,/ a direcção que seguia a música e o toque do tempo ausente. (…) Aguardo a hora primeira, a que antecede a luz e as constelações,/ e se esconde nas pregas de uma mão aberta e ainda inocente./ Ouço o lento rufar dos meus passos, olho em frente,/ e reconheço os ecos do tempo passado e do tempo presente./ Terá valido a pena? Terá valido a pena ter conhecido a beleza,/ e tropeçar nos frutos caídos sem os saborear?/ Terá valido a pena ter conhecido a noite e o toque frio da tristeza?/ A resposta encontra-se na queda lenta do fruto,/ no esvoaçar das flores e folhas que o vento incita./ Pudesse a terra contar os seus segredos,/ partilhar um pouco dos ossos que ninguém visita,/ e talvez o tempo presente perdurasse um pouco mais./ Mas que posso eu fazer? Eu que vivo entre os mortais/ e envelheço com o cair da folha e a mudança da lua. (…) Haverá tempo para espreitar o tempo indeciso? (…) Corríamos pela pradaria, com a pele nua a roçagar as papoilas,/ até pararmos junto ao velho sabugueiro. Aí, fazíamos amor,/ o tempo passado e o tempo presente baixavam o olhar,/ como quem espera por um amigo com quem brincar./ E ali passávamos o tempo presente, fugindo ao tempo (…) Mas o tempo futuro aguardava pelo sinal junto ao portão,/ escrevendo na pedra fria e fustigada pela estação/ os ecos da memória que a manhã vindoura sepulta.» (págs. 42,43, 44, sublinhado meu)

É uma belíssima sequência de versos, com um humor subtil a introduzir um curto-circuito na cadeia do Tempo imemorial – apesar de o tempo de medir em séculos, será imemorial mas não estático –, ao mesmo tempo que o desdobra em epifanias, vizinhanças e reversibilidades: a haver uma transcendência, a perenidade ganha consciência de si mesmo na simbiose com o efémero, com a matéria e a carne efémera que nos coube.

25 Ago 2022

Impermanência

É ela a grande dama do chá «Anicca», um conceito a que se juntam dois outros e que nos fala de mutação, essa constante do universo na melhor acepção budista que assenta na fluidez e no vínculo temporal que mantemos com as coisas e a consciência; ela pode ser até a porta giratória para as várias situações que ao serem interrompidas, se esgotam, morrendo, ou voltam mais tarde de outra maneira, não havendo o caminho linear que produza ditame último. Talvez tudo deixe de existir quando não fizer sentido, que o sentido do universo será essa forma de ” bailya d´amor” associado ao fluxo do tempo que passa.

Este maravilhoso princípio aplica-se a tudo, e não será de mais lembrar « o banhar nas mesmas águas» que manteve para sempre jovens os filósofos gregos, onde mais tarde dogmas vários foram abrindo fissuras para essa capacidade de se conseguir estar vivo por sucessivos fenómenos que transpõem o fim de considerados limites: aqui a morte entra no conceito, não como términus, mas ainda como processo constante de dádiva permanente, e é bem por esta perspectiva que o fluxo das coisas deve ser constante, que o mesmo universo de movimento vasto deverá ser um só e único Poema num verso que aqui se integra condensado. UNI(VERSO).

Os dramas agarram-nos como âncoras, e quando reparamos, sabemos que interrompemos o ciclo fluvial das marés e questionamos os pescadores sobre o canto de amor das baleias, que eles pensam ser sereias, sentindo-se atraídos para o mar profundo pela melodia cuja princípio fluído desconhecemos em nós. Esta imponderabilidade é mãe de lendas e narrativas, encanto que não devemos incapacitar pela sorte artificial dos bens terrenos agarrados a férreas estratégias de fixação.

Que a terra dura, se refaz, e se transmuta tão insistentemente como qualquer outro elemento prendendo aos mastros os Ulisses, e embarcando-os em todas as «Naus a Haver», que em nós, nunca repousa a dúvida nem permanece o estanque sentido da certeza; não há certeza, ainda assim habitamos em tudo.

De repente, a vida não quer que a nossa própria vida caminhe pela rota traçada, e traçamos mais caminhos cujo futuro desconhecemos – que o futuro se esconde enquanto o olhar de ontem permanece imóvel- e ao não controlarmos coisa nenhuma deixamos todo o espaço de uma fonte, vazia, para requerer a sua habitação, mudando-nos na via da composição como uma outra qualquer estrela. Nunca saberemos quem vamos encontrar, ou melhor, integrar, que o encontro, marca já o desencontro, mas na integração não existe mais a chacina da ruptura.

A Desfiguração, esse gigante imanente a toda a nossa produção da ideia moderna, não entra aqui. Não se está alinhado aleatoriamente compondo um sucessivo historial de coisas na vertente do ego, não morando portanto nesta inqualificável unidade que se diria inefável a todo o sábio budista, que para tal leveza teve de ter toda a disciplina de uma vida, mas onde podemos recorrer a algumas semelhanças mesmo na mudança de rumo que vemos flutuar entre as duas injuções. – Mutável, não é mutante, diferente, pode acabar por ser igual, mas unido, é um algoritmo que transcende a base de dados até do espectro virtual. – É belíssima a capacidade oriental de saber contemplar o cálice vazio! Mas, vazio de quê? Esta pergunta separa-nos para sempre, que velozmente as nossas sociedades perdem também a sua dinâmica de “cálice cheio”.

E cheio de quê? [Quem estava antes virá depois, quem estava longe estará presente, quem acreditou será traído, quem venceu será derrotado] por instantes tudo parecerá a antítese dos construtores de verdades, mas quem trilhou o caminho do meio estará ausente das consequências finais. No centro não há princípio nem fim, o Cabo das Tormentas engloba as escusas que fizemos a um tal encaminhamento, crendo-nos o centro de uma centralidade indevida manchada por exaustivas imprudências de contemplação.

Entre «Encontrado» e «Encoberto» prolonga-se na vida o silêncio escuro da paz, que a luz faz desaparecer a escrita terrena que cega os seres que não sabem da leitura para além de seu limitado alfabeto. Que nesta impermanência, toda a luz sobeja. Ela que nos queimou os manuscritos não resguardados e nos fez soletrar a treva sem a disciplina para o nada da imponderável manifestação. Digo, esquecimento.

«…. Quem consegue desligar-se do mundo
E sentar-se comigo no meio das nuvens brancas?
Han Shan

24 Ago 2022

Só o Rei pode abolir o exclusivo

A solução achada pelo Leal Senado, que O Independente de 28 de Abril de 1892 escusou-se a referir, aparece transcrito n’ O Macaense de 22 de Abril: Ofício da Câmara Municipal de Macau sobre o exclusivo do vinho Liu-pun dirigida ao Exmo. Sr. Governador da província, transmitindo a representação dos chineses, pedindo a abolição do exclusivo do vinho liu-pun. N.º 7. – Illmo. e Exmo. Sr. – Em conformidade com a deliberação do Leal Senado, do qual tenho a honra de ser presidente, levo ao conhecimento de V. Exa. que os negociantes chineses desta cidade vieram em deputação no dia 2 de Abril solicitar os bons ofícios deste Leal Senado para alcançar de V. Exa. a abolição [do exclusivo entregue ao] negociante de Hongkong; e que tendo sido a dita deputação chinesa informada de que esta corporação do Leal Senado não podia anuir ao seu pedido sem que lhe fosse apresentada uma petição por escrito, voltaram de novo os chineses no dia 5 deste mês, com o requerimento que incluso passo às mãos de V. Exa., acompanhado dos selos que representam a mór parte da comunidade chinesa.

Para a discussão e deliberação deste pedido convoquei a Câmara para uma sessão extraordinária no dia 7 do corrente mês, a qual, porém, não se efectuou por falta de maioria, e foi por isso que este requerimento foi lido e discutido na sessão ordinária da Câmara do dia 9 do presente mês. Trocaram-se nesta sessão entre vereadores ponderações e informações que elucidaram a questão, acabando o Leal Senado por convencer-se de que o pedido dos chineses é de certo modo justificável.

Antes de tudo, deseja o Leal Senado acentuar bem a sua convicção de que no meio da numerosa população chinesa em que vivemos, é de suma necessidade que o governo tenha o máximo prestígio, e, por isso, considerará este Leal Senado como seu dever impreterível apoiar o governo em tudo quanto seja tendente a manter o máximo respeito ao princípio da autoridade; e neste ponto o Leal Senado se apraz de declarar que tem prestado e prestará sempre o seu apoio incondicional, dedicado e leal a todas as medidas que V. Exa. tem adoptado, ou que vier a adoptar, para fazer respeitar as determinações das autoridades constituídas.

Mas, como até agora os chineses não têm feito mais do que usar do direito constitucional de petição, não duvida este Leal Senado em prestar os seus bons ofícios para solicitar de V. Exa. uma anuência equitativa às suas reclamações, baseando-se este Leal Senado nas razões seguintes: Este novo exclusivo de liu-pun, como V. Exa. sabe, não fez incidir o imposto sobre o consumo local, que daqui não pode fugir, mas abrangeu a totalidade do comércio do mesmo vinho, autorizando ao arrematante cobrar 3 caixas de prata, ou 4 sapecas, por cada cate [604,79g] desse género, importado ou aqui fabricado.

E como é sabido que a imensa quantidade de liu-pun que Macau importa anualmente, não é só consumido nesta cidade, mas, pelo contrário, a maior parte é reexportado para Hongkong, como se mostra da estatística do capitão do porto publicada no Boletim da Província de 24 de Abril de 1890, e daí (…) depois de preparado e confecionado em Macau com várias frutas e outros ingredientes, que lhe dão diversos sabores, cores e cheiro, o referido exclusivo onerou, por tanto, o comércio em geral, dificultando a reexportação e a indústria, pois o referido imposto de 3 caixas de prata por cate, equivalente a 10 avos por boião de 24 cates, vem a importar em uma percentagem média de 14% sobre o preço do vinho liu-pun, que varia de 60 a 90 avos de pataca por boião, ou jarro de 24 cates.

Além de ser inconveniente o novo exclusivo do vinho liu-pun, não está de harmonia com o Decreto de 20 de Novembro de 1845 [da Rainha, a Senhora D. Maria II, referendado pelo Ministro da Marinha e do Ultramar Joaquim José Falcão, onde, devido à abertura de alguns portos do império da China ao comércio e navegação de todas as nações, cessado as circunstâncias excepcionais que favoreciam o comércio da Cidade do Santo Nome de Deus de Macau, por o Artigo 1.º foram declarados francos ao comércio os seus portos, – tanto o interno, denominado do rio, como os externos, da Taipa e da Rada, – podendo ser neles admitidas a consumo, depósito e reexportação todas as mercadorias e géneros de comércio, sem pagamento de direitos. O artigo 2.º, sobre a importação em Macau refere dever ser em todo o caso completamente livre.]

O referido imposto lançado sobre o vinho liu-pun logo no acto da importação destrói a franquia do porto de Macau, garantida por uma lei em vigor, e tenderá a fazer afastar desta cidade o comércio e a indústria desse género, obrigando-os a ir buscar outro país, talvez Hongkong, pois como acima se disse, para aí é reexportado a maior parte do vinho liu-pun importado em Macau; pois é claro que uma diferença de 14 % sobre o preço de um género é suficiente para induzir os negociantes a buscar mercado mais barato.

E, vista deste inconveniente, e sendo de interesse geral evitar tudo quanto possa diminuir o número de industriais em Macau, resolveu este Leal Senado pedir a V. Exa., para benefício do comércio e da prosperidade desta cidade, se digne V. Exa. solicitar do governo de sua majestade a abolição do exclusivo do vinho liu-pun; e, se essa abolição não pode ter lugar imediatamente em consequência do contrato já celebrado com o arrematante, pede o Leal Senado, que a dita abolição seja decretada para se tornar efectiva depois do prazo pelo qual foi adjudicado o exclusivo na dia 2 de Abril, ou para quando seja possível vir a um acordo com o arrematante.

Essa abolição, assim decretada, removerá do ânimo dos negociantes toda a ansiedade sobre o futuro, e animará a indústria de preparação de vinho a permanecer em Macau, suportando temporariamente o ónus a que acima me referi.

Este pedido do Leal Senado é ditado pelo desejo de evitar que uma indústria fuja desta cidade para outra, e espero que V. Exa., que sempre se mostrou animado da melhor boa vontade de beneficiar esta cidade, o tomará em devida consideração, providenciando como julgar mais conveniente aos interesses legítimos do comércio desta cidade. Deus guarde a V. Exa., Macau Paços do Concelho, 11 de Abril de 1892. Assinado por Câncio Jorge, Presidente do Leal Senado.

Dez dias depois, a 21 de Abril chegou ao Leal Senado a resposta em ofício de Sua Exa. o Sr. Governador comunicando não estar nas suas atribuições abolir imediatamente o referido exclusivo, visto que foi estabelecido em virtude de um decreto de Sua Majestade Fidelíssima El-Rei de Portugal, mas que Sua Exa. havia enviado o requerimento dos chineses e o ofício do Leal Senado ao Governo de Sua Majestade, esperando que por ele será resolvido assunto consoante aos interesses desta província. Ainda comunicou Sua Exa. que o governo provincial não tem em vista criar e lançar novos impostos.

Em vista deste ofício, o Presidente do Leal Senado aconselhou à comunidade chinesa continuar pacífica, referindo apoiar o seu pedido.

22 Ago 2022

O tuofei

A belíssima Montanha da Ovelha Negra — cujo nome ignoramos a origem ou se, de algum modo, assume as características negativas da denominação ocidental —, além do xiao, alberga nas suas encostas esmeralda uma estranha ave, a que chamam tuofei. Tendo o corpo semelhante a uma grande coruja, o tuofei distingue-se por apresentar uma face humana e ser capaz de se equilibrar na sua única perna.

Além do seu fantástico aspecto, este bizarro pássaro parece apostado em tudo fazer ao contrário do que é apanágio na Natureza. Assim, mal os frutos começam a exalar o perfume da sua madurez, anunciando a chegada do Verão, os tuofeis recolhem-se nas grutas da parte mais alta da montanha e aí hibernam durante toda a estação quente. Só quando as temperaturas descem, as folhas se desprendem das árvores e os campos se preparam para vestir os mantos da geada invernal, é que os tuofeis se dignam abandonar as grutas e encher o ambiente com os seus alaridos.

Dizem as crónicas ser um espectáculo extraordinário observar os tuofeis quando estes resolvem, já depois das primeiras luzes outonais terem enrubescido os céus, voltar de novo à vida. Durante os primeiros dias, assiste-se a um certo caos no bando, pois as antigas relações são desfeitas ou esquecidas durante a hibernação e aquela sociedade de pássaros com face humana parte novamente da estaca zero. Formam-se novos casais e estabelecem-se novas solidariedades. Contudo, estes processos não são simples e implicam animadas, por vezes violentas, discussões entre as aves, o que propala nos ares um som obsessivo, parecido com os que emitem as cagarras.

Finalmente, quando de novo alguma ordem é restabelecida, o bando esboroa-se em grupos mais restritos, de dois ou três casais, e cada um segue a sua vida, aproveitando a abundância e segurança proporcionada por aquele magnífico ambiente.

Os machos que se quedam sem companheira, por alguma razão difícil de discernir, abandonam tristonhos a Montanha da Ovelha Negra e acabam vítimas de caçadores, que vendem as suas penas a altíssimo preço. É que, segundo os especialistas, quem as usar junto ao corpo, não terá receio de tempestades, de raios, de trovões e de outras calamidades. Já as fêmeas solitárias, geralmente mais velhas, erram pelos bosques, sozinhas ou em grupo, anunciando ao mundo em inexcedivelmente belos trinados a sua profunda desdita, o que parece comover os outros tuofeis. Como paga, o resto do bando vai-lhes deixando comida e oferecendo protecção.

19 Ago 2022

Greve ou fim do comércio em Macau

“De uma parte está a ordem superior de governo da metrópole e o compromisso do governo provincial com o arrematante do exclusivo [do liu-pun, o comerciante Chan Iü San de Hong Kong,] já concluído, tendo sido celebrado com todas as formalidades. De outra parte estão os lojistas chineses ligados pelo interesse comum, e unidos por meio de seus respectivos grémios, convencidos da necessidade de abolir este exclusivo para poder continuar o comércio a funcionar desafogadamente.”

Assim se discorre n’ O Macaense de 7 de Abril de 1892 e continuando: “Estudando bem a questão, não nos parece que esta reacção dos chineses seja uma oposição acintosa à acção do governo, mas é mais um acto de desesperação, causado pela decadência do comércio, que hoje sofre do mal-estar geral e não dá lucro algum.

Esta situação angustiosa, agravada pelo novo imposto, produziu um ressentimento contra o governo, que longe de auxiliar os negociantes, aliviando-os dos ónus que sobre eles pesam, veio ainda sobrecarregá-los tão inoportunamente, com um novo exclusivo que ameaça afugentar daqui para a frente.” Impressão deixada “após uma discussão desapaixonada com vários lojistas sob o assunto, e aqui a consignamos franca e lealmente.” E prosseguindo: “Para os chineses a greve funda-se no espírito de associação de que vem a força, e tanto pode significar uma pressão suave e indirecta aos poderes públicos, como uma manifestação colectiva de vontades, mui eficaz nos resultados práticos e imediatos, o que – diga-se a verdade – nunca pode ser condenado em vista do regime da liberdade d’ indústria e livre concorrência, sobretudo quando não seja acompanhado de ameaças ou violência. A intervenção das autoridades é só justificável quando haja ameaça contra a segurança dos direitos individuais, ou receio da perturbação da ordem. Folgamos de ver que estes princípios são respeitados e até afirmados no edital de S. Exa. o Governador, (…) Nem outra cousa era de esperar do ilustrado e enérgico governador.”

O Edital do Governador, publicado a 6 de Abril por causa da suposta greve dos negociantes de vinho, foi lido pela cidade. Em cortejo, “o procurador dos negócios sínicos acompanhado de um intérprete e de todo o pessoal administrativo, precedido de uma escolta de polícia com dois tambores à frente, percorreu todas as ruas da cidade.

A leitura do edital foi feita por um amanuense chinês da repartição do expediente sínico, que se punha em pé sobre o jenricksha [riquexó] para daí o ler. Um grande grupo de garotos acompanhava esse séquito fazendo uma vozearia infernal de mistura com os rufos do tambor.” Do edital [transcrito já em anteriores artigos] faltava-nos apenas publicar a apresentação do Governador feita por o próprio: <Custódio Miguel de Borja, capitão-de-fragata da marinha real portuguesa, ajudante de campo honorário de Sua Majestade El-Rei, comendador da ordem militar de S. Bento d’ Aviz, da de Leopoldo da Bélgica e do mérito naval de Hespanha, cavaleiro da ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, da de Aviz e da Legião de Honra de França; condecorado com as medalhas militares de prata das classes de bons serviços e comportamento exemplar; antigo deputado da Nação, enviado extraordinário e ministro plenipotenciário de Sua Majestade Fidelíssima nas cortes da China, Japão e Siam, Governador da província de Macau e Timor e suas dependências, …”

Refere o articulista, “Não podemos prever por enquanto qual a solução. Confiamos, porém, na alta inteligência e reconhecida prudência do chefe de colónia, que decerto não trepidará perante qualquer medida quando ela seja necessária para conservação do prestígio da autoridade, mas ao mesmo tempo não deixará sua Exa. de estudar a questão sob todos os seus aspectos.”

Opinião chinesa

Na rubrica Comunicado, ainda n’ O Macaense de 7 de Abril, um negociante chinês publicou a opinião: Os chineses consideram o vinho liu-pun como um dos géneros de primeira necessidade. Não há chinês, desde o mais rico até o mais pobre, que não faça uso do liu-pun nas suas refeições. Os da classe de operários e de carregadores preferem ficar sem comer a ficar sem beber o liu-pun. Acontece muitas vezes, quando o seu trabalho diário não dá o suficiente para o jantar, em que o arroz é indispensável para os chineses, compram um bocado de carne ou de peixe e comem-no acompanhado sempre do liu-pun, empregando no vinho a verba com que deviam comprar arroz.

Na generalidade os chineses, principalmente os da classe dos operários e carregadores, destinam 10 a 12 sapecas para vinho por cada refeição, o que corresponde por mês a 70 avos pouco mais ou menos. Para o arroz que é indispensável para os chineses e que constitui o principal género alimentício, os operários em geral não gastam mais do que 30 a 40 sapecas por dia, isto é, pouco menos do que o dobro do que se gasta com o vinho.

O liu-pun é tão necessário como o arroz para os trabalhadores; portanto se esses homens tiverem de despender mais 3 ou 4 sapecas por cada refeição ou 20 avos por mês, deixarão de beber ou diminuirão a porção usual. Em qualquer desses dois casos o resultado será decerto prejudicial ao comércio de vinho.

Asseguram os negociantes de vinho que, se tiverem de pagar a taxa de 4 sapecas por cada cate, pouco ou nenhum lucro auferirão; e o vendedor precisando de baratear o vinho, ver-se-á na necessidade de adulterá-lo para poder conseguir algum lucro.

As lojas chinesas de Macau não dão bons salários aos seus empregados, mas dão-lhes cama e mesa livre e nas suas refeições é indispensável o vinho, portanto o exclusivo de liu-pun virá não só lesar os indigentes como os donos das lojas que terão de despender mais com o salário do pessoal.

De mais o negócio do liu-pun está ligado ao do arroz. Rara é a loja de arroz que não tenha um ou mais alambiques para destilar o vinho, por tanto qualquer prejuízo que sofrerem os negociantes de vinho, terão nela parte os negociantes de arroz.

Finalmente é natural que as lojas de vinho mudem para Lapa ou Chin-san, onde quase nenhum imposto terão de pagar, levando consigo muitas outras lojas de diferentes géneros, o que contribuirá para enriquecer a ilha da Lapa com grande prejuízo desta cidade, como ainda há poucos anos aconteceu com o negócio de peixe salgado, que custou muito ao governo trazê-lo de novo para Macau.

Os chineses não se sublevarão por causa deste imposto; mas ver-se-ão obrigados a abandonar paulatinamente esta cidade por não poderem suportar tantos impostos com que já estão sobrecarregados. É esta a opinião de um chinês. Os negociantes enviaram no dia 5 uma petição ao Leal Senado.

16 Ago 2022

Romantizar o mundo

– Neste asfalto em que tudo é a causa de um efeito imediato e onde a casualidade se interpreta como sendo ela mesma matriz de esperado movimento, todos os seres deviam estar unidos por vínculos perecíveis, sim, porém de longo afecto, até se atingir no grupo a quintessência de um movimento maior. «Le Monde doit être romantisé» – é Novalis quem o afirma de sua época nada remota e que ecoa agora como necessidade e urgência: se não o conseguirmos, perecemos. Abandonados ao medonho das configurações onde se ajuíza tudo de todas as maneiras, retemos o grau de aceitação para mostrar os caninos ungidos em despudoradas formas felizes onde se nota o predador triunfante e grosseiro de um mundo “trincado”. Este triunfalismo “sadio” tem de ser abatido!

– Devemos então romantizar o mundo dando espaço aos mais constantes temas da nossa civilidade que vão muito para lá da sepultura das políticas locais, dos pareceres domésticos, e do transe obsessivo da fealdade do atrito como segmento de complexidade cheio de interesse sórdido mas nunca buscado pela inteligência pura. É claro que o desassossego de se ser algo para o qual não se tem aptidão pode provocar em sociedades assim embustes medonhos, onde alguns apelam a uma certa reserva de bom-senso para não partilhar do seu alarme. Por derivas misteriosas, encontram-se os seres manifestamente repulsivos, e em suas manifestações tributáveis são ainda a senda de todos os pareceres em tentativas de torturante afirmação; decrescemos em civilização perdendo o pulso sanguíneo de nossa lenda distante.

– Há vidas acelerativas! Novalis viveu vinte e oito anos, a sua vida breve produziu longos tratados e a sua romantização sincopou o estatuto dos mais fiéis depositários do estilo. Não falamos de “efebos” politicamente tidos por alguns governantes como grandes beneficiários das ablações entediantes produzidas pela longevidade, falamos de um homem que num espaço curto de tempo não teve intenção de reproduzir vícios, e através de um sintoma autónomo cujo grau de competência desconhecemos, nos vem dar mensagens essenciais para os dias de hoje. Pode-se escrever em fragmento de uma forma concebível, mas apenas e só, aqueles que de tão inteiros se não querem imobilizar no labor da inércia narrativa, que o que existe de belo na fragmentação excede os ciclos de composição passiva das descrições, pois que este livro, se encontra alinhado na grande correspondência de um monumental alerta contra as derivas mórbidas dos especulativos exercícios das personagens esdrúxulas.

– São cinco manuscritos escritos por Novalis a Freiberg, na primeira metade do ano de 1798, e não creio que exista ainda uma tradução portuguesa, mas nós faremos o melhor na esperança de conjugar o que está suspenso na esfera salvífica que é dar a conhecer em português transfigurado aquilo que na grande composição foi ainda, e também, o nosso Romantismo. Descrer de tantos dons por imposição de uma época é uma forma de assassinato colectivo, e nada existe mais fácil de reverter que a tendência suicida. É fácil, sim, porém, não ajustada a um princípio que a impeça. Já todos jogámos às originalidades, porém «Le monde doit être romantisé. C´est ainsi que l´ on retrouvera le sens originel.» Tal operação, diz ainda- é totalmente desconhecida- (já o era no seu tempo?) – [apesar disso dou ao trivial um sentido elevado, às coisas comuns um aspecto misterioso, e ao conhecido a dignidade do incomum, ao finito a aparência de infinito, e é então que tudo romantizo]

– Paramos diante das lendas dos sonhos por resolver, que eles esperam de nós maiores proezas que não correspondam à ruptura do pensamento, fórmulas estilísticas de omissão, e outras coisas assim…
– Estamos diante de uma beleza prestes a ser conceptualizada sem a afronta temível da razão obscura dos ideais gregários, estamos na Romantização que precede o mundo, onde um dia encontrar um Homem será felicidade tanta que ficaremos ardendo de memória universal e de contentamento constante. Pode ser para breve esse tempo em que iremos enquanto espécie sentir saudade imensa. Depois, virão «Os filhos do Homem» mas não serão Românticos, ou aqueles que considerámos romantizados para inaugurar aquilo que foi este nosso destino.

Comum. Que incomuns serão sempre os humanos que farão obras como esta: “cada palavra é encantamento, e todo aquele que a chama pelo espírito o fará aparecer” que o nascimento do Amor requer a proeza de não sermos ninguém, apenas essa grande centelha que uma luz transmite pela eternidade fora.

12 Ago 2022