Clube dos procrastinadores

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Andando em releituras de Pascoaes, por causa de um artigo que preparo, dou com este excerto, extraído de “O Homem Universal”:

«Cada homem, moralmente, é uno e absoluto; mas tem de conviver de atenuar a sua personalidade. (…) A convivência só é possível entre pessoas reduzidas a uma presença negativa ou oca, que ceda constantemente. Daí, o vazio da sociedade, imenso fantasma composto de inúmeros defuntos. Um homem superior é anti-social ou criminoso. O seu destino é o cárcere e o deserto».

Hesito em pensar se Pascoaes reflecte aqui sobre a condicionante político-social que amordaça, e, pior, num país tristonho como era Portugal em pleno Estado Novo (e o livro é de 1931) onde se via coarctada quaisquer possibilidades de espontaneidade e franqueza nas relações humanas, ou se apenas empresta ao comportamento dos homens (oprimidos) uma moldura metafísica, uma “essência”, de logo declarada na presunção de cada um ser, isoladamente, “uno e absoluto”. Às vezes, a um excesso de Espiritualidade (ou de Saudade), soma-se em Pascoaes o faltar-lhe mundo. É um grande poeta, mas é um poeta que toma Ampolas-de-Grandes-Ideias e que por isso escreve amiúde acantonado por um furor programático, deixando de ter poros; não raro ergue-se um vidro entre ele e o real, o mesmo que o fez redigir em O Bailado, de 1921: «Tudo é fantasma. Há só nuvens, nuvens de vozes, nuvens de almas, de aflições e de tragédias! Nuvens e mais nuvens, aparências e mais aparências! E um relâmpago divino que as trespassa, a instantânea Aparição que surge e nos lança por terra, deslumbrados!»

Às vezes apetecia lembrar-lhe, como o fez António Sérgio, no artigo “Regeneração e Tradição, Moral e Economia”, que dedicou a Pascoaes: «Pascoais, Pascoais meu querido amigo: você é um puro, excelso e nobilíssimo poeta, mas uma vítima também desse ambiente social, como nós todos: desse horrível isolamento que V. louva e eu maldigo».

«Ainda criança, roubou dois melros», conta Jacinto do Prado Coelho, roubou-o de um ninho, e palpitou-lhe toda a vida o remorso por isso. A Pessoa, poucas mais travessuras se lhe conhece. Só em Álvaro de Campos lhe brota uma pontada de malvadez e obscenidade: «Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,/ Que emprega palavrões como palavras usuais,/ Cujos filhos roubam às portas das mercearias/ E cujas filhas aos oito anos – e eu acho isto belo e amo-o! –/ Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.» (Ode triunfal).

Ambos os poetas assanhados por uma certa ideia de santidade, foi-lhes idêntica a inabilidade de romper o cerco da pele com o transbordo em dique alheio, a mesma maldição de sublimar a concreta ferocidade de eros com a mansuetude dos versos.

Evidentemente que são os dois «bigger than life», mas às vezes enerva-me assistir, do meu posto de chapeleiro no Clube dos Procrastinadores, às birras entre ambos, só para ver quem ocupa, na organização interna, o lugar de Presidente e de Tesoureiro.

Embora Pessoa tenha adivinhado mais coisas, por exemplo, isto que ele escreveu na menos conhecida Ode Marcial e que se decalca na situação que vivemos hoje, diferidamente, com o coração nas mãos:

«ODE MARCIAL
(…)
Helahoho! helahoho!

A máquina de costura da pobre viúva morta à baioneta…
Ela cosia à tarde indeterminadamente…
A mesa onde jogavam os velhos,

Tudo misturado, tudo misturado com corpos, com sangues,
Tudo um só rio, uma só onda, um só arrastado horror.

Helahoho! helahoho!

Desenterrei o comboio de lata da criança calcado no meio da
[estrada,
E chorei como todas as mães do mundo sobre o horror da vida.
Os meus pés panteístas tropeçaram na máquina de costura da
[viúva que mataram à baioneta
E esse pobre instrumento de paz meteu uma lança no meu coração.

Sim, fui eu o culpado de tudo, fui eu o soldado todos eles
Que matou, violou, queimou e quebrou,
Fui eu e a minha vergonha e o meu remorso como uma sombra
[disforme
Passeiam por todo o mundo como Ashavero,
Mas atrás dos meus passos soam passos do tamanho do infinito

E um pavor físico de prestar contas a Deus faz-me fechar os
[olhos de repente.

(…)
Mandei, capitão, fuzilar os camponeses trêmulos,
Deixei violar as filhas de todos os pais atados a árvores,
Agora vi que foi dentro de meu coração que tudo isso se passou,
E tudo escalda e sufoca e eu não me posso mexer sem que
[tudo seja o mesmo.

Deus tenha piedade de mim que a não tive de ninguém!

LÀ-BAS, JE NE SAIS OÙ…»

O que é hoje claro, neste momento funesto em que Cristiano & Companhia falharam na sua missão em Braga, e em que a auto-sabotagem dos gasodutos da Rússia lembra que Putin estará mesmo disposto a tudo para manter o domínio sobre as zonas referendadas,
é que, bomba por bomba, era preferível a “bomba” do Quinto Império.
Porém, até nisto, meus caros, fomos irresolutos, um bocadinho mais para o pielas do que para o determinado, e procrastinámos.

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