Tanto que queremos: um ensaio sobre o desejo

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O desejo é um fenómeno complexo, uma lição à nossa paciência. A experiência mostra-nos que a vida toma o seu rumo com vontade própria, sem grande consideração dos nossos desejos imediatos. Queremos ser alguém que não somos, vivemos num mundo onde não nos encaixamos.

Nas sociedades liberais incutem-nos esta sensação de empoderamento. Podemos ser o que bem nos apetece. Só que queremos mais sem grande consciência que os desejos implicam a cuidadosa reflexão sobre o que perdemos: sobre o que nunca será. Não basta querer, é preciso aceitar que não se tem.

Uma jovem do Curdistão iraniano foi brutalmente morta pela polícia da moralidade no Irão, porque o seu hijab estava mal posto. Tanto vos queremos que vos perdemos. Uma coisa simples como o cabelo, que mais sabe a um detalhe ridículo, pouco importante. As agências noticiosas também dão conta da brutalidade policial contra os protestantes e da consternação pública que esta morte suscitou. Deste confronto veio mais morte, não veio a transformação social ou política. Nestes anos complicados, de configurações geopolíticas dolorosas e difíceis, faz-se o luto pelo mundo que não existe e que julgámos existir. Fazer o luto implica acalmar a nossa angústia. Permite respirar antes do confronto, evita uma luta sem fôlego absolutamente nenhum e tenta dar alento à sensação de desespero.

A eleição de uma mulher primeira-ministra em Itália soube a derrota também. Tanto queremos líderes justos e inclusivos que não os temos. Como é que se aceita uma possível perda do direito ao aborto, como é que se discute o retrocesso dos direitos lgbtqi+, como é que se legitima um discurso que não abraça os direitos de todos, mas só de alguns? Quando nos julgámos protegidos de uma ressurreição do fascismo, quando achámos que concordávamos – todos – em não querer acordar os maiores horrores fascistas da história. Afinal não era bem assim.

Quando se deseja o que não se tem, a revolta ou o desconforto deviam ser suficientes. Poucos nos preparam para o sentido de impotência de nunca chegar àquilo que desejamos, nem de encontrar outros que queiram desejar contigo.

No sexo não se chega ao orgasmo porque se deseja, mas porque acontece. Encara-se a configuração completa do acto e acredita-se no conforto percorrendo um caminho, sem expectativas. Quem já teve problemas em adormecer também o sabe. Querer dormir não basta para adormecer, só atrapalha. O desejo é uma dança complexa entre paciência, compaixão, guerrilha e vontade.

Não basta querer, é preciso aceitar este momento particular da história individual e colectiva. Aceitar que não estamos cá para o orgasmo perfeito, nem para o mundo perfeito. Estamos cá para os desencontros constantes, e para as incessantes tentativas de os resolver. Estamos cá também para o encaixe, para o crescente sentido das coisas, e aceitar que pouco ou nada podemos controlar. O desejo pressupõe empoderamento e acção, mas também implica encontrar conforto nos lugares mais inóspitos, e nas situações mais absurdas, como as que se vivem neste momento. Tanto queremos e tanto aprendemos a perder, mas o desejo é mesmo assim.

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