Tanto que queremos: um ensaio sobre o desejo

O desejo é um fenómeno complexo, uma lição à nossa paciência. A experiência mostra-nos que a vida toma o seu rumo com vontade própria, sem grande consideração dos nossos desejos imediatos. Queremos ser alguém que não somos, vivemos num mundo onde não nos encaixamos.

Nas sociedades liberais incutem-nos esta sensação de empoderamento. Podemos ser o que bem nos apetece. Só que queremos mais sem grande consciência que os desejos implicam a cuidadosa reflexão sobre o que perdemos: sobre o que nunca será. Não basta querer, é preciso aceitar que não se tem.

Uma jovem do Curdistão iraniano foi brutalmente morta pela polícia da moralidade no Irão, porque o seu hijab estava mal posto. Tanto vos queremos que vos perdemos. Uma coisa simples como o cabelo, que mais sabe a um detalhe ridículo, pouco importante. As agências noticiosas também dão conta da brutalidade policial contra os protestantes e da consternação pública que esta morte suscitou. Deste confronto veio mais morte, não veio a transformação social ou política. Nestes anos complicados, de configurações geopolíticas dolorosas e difíceis, faz-se o luto pelo mundo que não existe e que julgámos existir. Fazer o luto implica acalmar a nossa angústia. Permite respirar antes do confronto, evita uma luta sem fôlego absolutamente nenhum e tenta dar alento à sensação de desespero.

A eleição de uma mulher primeira-ministra em Itália soube a derrota também. Tanto queremos líderes justos e inclusivos que não os temos. Como é que se aceita uma possível perda do direito ao aborto, como é que se discute o retrocesso dos direitos lgbtqi+, como é que se legitima um discurso que não abraça os direitos de todos, mas só de alguns? Quando nos julgámos protegidos de uma ressurreição do fascismo, quando achámos que concordávamos – todos – em não querer acordar os maiores horrores fascistas da história. Afinal não era bem assim.

Quando se deseja o que não se tem, a revolta ou o desconforto deviam ser suficientes. Poucos nos preparam para o sentido de impotência de nunca chegar àquilo que desejamos, nem de encontrar outros que queiram desejar contigo.

No sexo não se chega ao orgasmo porque se deseja, mas porque acontece. Encara-se a configuração completa do acto e acredita-se no conforto percorrendo um caminho, sem expectativas. Quem já teve problemas em adormecer também o sabe. Querer dormir não basta para adormecer, só atrapalha. O desejo é uma dança complexa entre paciência, compaixão, guerrilha e vontade.

Não basta querer, é preciso aceitar este momento particular da história individual e colectiva. Aceitar que não estamos cá para o orgasmo perfeito, nem para o mundo perfeito. Estamos cá para os desencontros constantes, e para as incessantes tentativas de os resolver. Estamos cá também para o encaixe, para o crescente sentido das coisas, e aceitar que pouco ou nada podemos controlar. O desejo pressupõe empoderamento e acção, mas também implica encontrar conforto nos lugares mais inóspitos, e nas situações mais absurdas, como as que se vivem neste momento. Tanto queremos e tanto aprendemos a perder, mas o desejo é mesmo assim.

29 Set 2022

A vergonha, o sexo e o riso

Quem já tentou falar com jovens sobre sexo certamente se deparou com os risos tontos ou as bochechas rosadas de vergonha. Gostaria que fosse um fenómeno exclusivo dos jovens de hormonas aos saltos. A verdade é que o riso inusitadamente se infiltra nos temas que julgamos mais vergonhosos. Para os jovens, e para muitos adultos, o sexo continua a ser isso: um tema que envergonha.

Para alguns teóricos, como o Goffman ou o Billig, a vergonha é útil para a organização social de uma forma geral. A vergonha que, inevitavelmente se associa ao gozo, serve de barómetro do que é aceitável ou não aceitável em contextos sociais. Tudo o que é corpóreo costuma cair nessa categoria: dar puns ou ter ranho no nariz.

Da vergonha existe uma relação íntima com o riso, que não é o mesmo que o riso prazeroso que nos oferece todo um conjunto de boas hormonas e bem-estar. Frequentemente a vergonha é gerida pelo riso unilateral, por pessoas com menos empatia, com um grande à vontade para apontar o ridículo. Aí cria-se uma espiral de culpa que a vergonha alegremente atravessa. A ejaculação depois de 3 segundos de penetração pelo rapazinho de 14 anos durante a sua primeira relação sexual pode ser acompanhada do ridículo – do riso desnecessário do parceiro ou parceira. Um exemplo clássico onde a empatia teria sido muito mais produtiva.

Mas não é por isso que desistimos do riso por completo. O riso pode ter outras funções bem mais interessantes, um riso que empodera em vez de castrar. Aquele que se faz em conjunto, de uma dinâmica capaz de carregar as nossas vergonhas por outros meios e caminhos. Transformar o condenável com a leveza de uma gargalhada compreendida é capaz de mover delicadamente a vergonha. Aquela gargalhada que não traumatizaria o rapazinho de 14 anos com pressão para a performance.

Dessa forma o sexo pode ser tonto ou cómico. O riso como canal de descarga. As pessoas ficam nuas, as peles baloiçam, as pregas criam-se em locais estranhos, os pêlos que ninguém pediu que nascessem, os ruídos abdominais, puns vaginais e os gritos de orgasmo originais.

A vergonha é inevitável. Aprendemos com os outros que há limites para aquilo que podemos mostrar. Mas também é com os outros que podemos re-alinhar esses limites, principalmente quando a ligação é feita com sinceridade. Um sexo cheio de tabus e de ensinamentos judaico-cristãos só vê transformação quando há à-vontade para nos rirmos à gargalhada com o que nos limitou no passado. Confiem no vosso acesso de riso porque caíram da cama ao tentar aquela posição difícil. Podem rir-se quando o sexo não é perfeito. Rir do desconforto é o antídoto – mas só e quando existe uma ligação.

Atirar com o cliché da “ligação” é vago, reconheço. É demasiado inespecífico para descrever o que acontece entre duas pessoas. Mas nada tem que ver com um estado enamorado, porque o sexo nem sempre precisa de amor. Precisa, sim, da consciência da presença de dois (ou mais) seres, e da sua humanidade. Só com essa conjuntura relacional é que o sexo e o riso podem fazer algum sentido.

14 Set 2022

Educação sexual | Especialistas alertam para efeitos negativos de “influencers”

Cheang Lei Ngo, directora do centro de apoio à juventude Seng Kong Hui, e a professora da Universidade de Macau, Vong Sou Kuan, consideram que a educação sexual deve ser uma responsabilidade compartilhada entre pais e escolas e alertaram para os efeitos negativos que os comportamentos dos “influencers” podem ter para os jovens. Sobretudo quando contribuem para os jovens tirarem “fotografias sugestivas” e “com pouca roupa”.

“Os influencers têm muitos seguidores e ‘likes’ e, para os mais novos, isso quer dizer que muitas pessoas gostam deles ou que são pessoas bonitas. Nesse contexto, os jovens tendem a imitá-los e tiram também fotografias sugestivas, com pouca roupa, por exemplo. À medida que são expostos a este tipo de mensagens, os mais novos vão-se tornando cada vez mais influenciáveis e susceptíveis a estas formas de estar”, disse Cheang Lei Ngo, segundo a TDM-Canal Macau.

Por seu turno, Vong Sou Kuan frisou que devem ser sobretudo os pais, e não “estranhos”, a abordar o tema da sexualidade com os jovens. Mesmo que seja durante pouco tempo.

“Os pais devem saber que não devem ser estranhos e pessoas sem ligação às crianças a ensinar-lhes temas relacionados com a educação sexual. Isso é muito mau. Os pais devem saber que é uma responsabilidade deles. Falar com as crianças não leva necessariamente muito tempo, o que é preciso é que haja diálogos que tenham conteúdo entre pais e filhos. Mesmo que seja só de 15 ou 20 minutos por dia. Se não se investe tempo na relação com as crianças, depois torna-se difícil falar com elas ou mesmo conhecê-las”, apontou a académica Vong Sou Kuan, especializada na área da sociologia da educação.

14 Jun 2022

A desnecessária arte de fingir orgasmos

Comecemos pela Meg Ryan e a sua icónica demonstração que os orgasmos podem ser fingidos, no rom-com clássico dos anos 80. Muitos filmes e sitcoms depois apropriaram-se desse facto inabalável que, tendencialmente em relações heterossexuais, as mulheres fingem os orgasmos e os homens parecem não notar. A percentagem, dizem alguns estudos mais alarmistas, é estrondosa. Cerca de 67 por cento a 74 por cento das mulheres já reportaram terem fingido um orgasmo pelo menos uma vez na vida. A pergunta que se impõe é: porquê?

Ninguém anda a ensinar que se deve fingir orgasmos. Eu certamente nunca assisti que fosse uma dica a ser passada de geração em geração. É como se o orgasmo fingido fizesse parte de um repertório silencioso, uma estratégia para lidar com as coisas do sexo e da cama, sem ninguém perceber bem como, nem de onde veio.

Resta-nos analisar o orgasmo fingido como o resultado de uma interacção que deve ter determinados contornos. Pode ser que o propósito seja despachar o sexo de forma inequívoca, simples, e sem palavras necessárias. Mas também pode ser que seja uma estratégia de lidar e cuidar do ego masculino que julga que a masculinidade é medida pela quantidade de orgasmos que se pode proporcionar à parceira romântica.

Ora, como sabemos, o orgasmo feminino necessita de um alinhamento particular, uma profunda delicadeza e grande sentido de descoberta. Só tendo essa abertura e habilidade é que as mulheres atingem o clímax. O orgasmo feminino ainda continua envolto em muito mistério, que ajuda a perpetuar o famoso orgasm gap documentado na literatura. Esta refere-se ao fosso que existe entre a quantidade de orgasmos reportados pelos parceiros. Em encontros heterossexuais de uma noite – e especialmente nesses casos – os homens reportam muito mais orgasmos do que as mulheres.

Elas tentam resolver esse problema da melhor forma que podem: fingindo o orgasmo. Isto porque as crenças patriarcais do orgasmo feminino continuam por aí, ideias pré-concebidas, algumas delas mirabolantes. Há quem ache que o orgasmo deveria ser simultâneo ou que depende de penetração profunda, unicamente. Estas e tantas outras crenças contribuem para a pouca flexibilidade e criatividade no sexo, e eventualmente, levando à sua desgraça. Podemos também culpar a pornografia, o educador sexual contemporâneo, para grande tristeza de muita gente.

A recomendação é que parem imediatamente de fingir orgasmos. Para todo o sempre. Uma recomendação que se aplica aos homens que, em números muito menores, também fingem orgasmos de vez em quando. Não será por magia que desencantam parceiros que muito eficaz e habilidosamente saibam dos vossos caminhos para o orgasmo.

Não vale a pena remediar com os dotes –ainda que impressionantes – de os fingir. Mais vale lidar com o desconforto, com a potencial ferida, com o desfazer de expectativas de uma noite perfeita, a tal digna de um filme pornográfico. Importa que se observe o que nasce do desconforto e que se consiga confrontar com aquilo que não aconteceu. Só assim é que se cria uma oportunidade fabulosa de se transformar, experimentar outra vez, conversar sobre expectativas. Se se achar importante ou necessário, explica-se o que se gosta e como se gosta.

Pode-se até desconstruir o peso do orgasmo no sexo, e deixar que ele deixe de ser o eixo definidor de uma relação sexual satisfatória. Flexibilizar, re-criar, transformar, sentir o prazer em vez de o assistir, como se fosse um filme ou um romance – não é essa a mudança desejável?

Fingir o orgasmo só atrapalha o sonho de um sexo diferente. Pensem nisso na próxima vez que sentirem que devem fingir o que quer que seja.

24 Fev 2022

O corpo perfeito não existe: o mito que complica o sexo

Há um determinado número de condições para que o sexo faça bem. Sexo é demasiado vago para ser esse poço de benefícios que eu tento apregoar. No caso das pessoas que foram socializadas e que se identificam como mulheres, a questão da imagem corporal é um importante factor que pode bloquear ou desbloquear todos os benefícios do sexo. Quanto mais te sentires confortável na tua pele, quanto mais te sentires confortável sem roupa, expondo a celulite, as estrias, as banhas e os outros supostos demónios que foram incutidos, mais confortável te sentirás com o sexo. Isto não sou eu a dizê-lo de forma gratuita, isto é o que a investigação confirma.

Há investigação científica que sugere que é preciso resolver este problema – e obsessão – do corpo perfeito se queremos educar para uma sexualidade mais livre e prazerosa. Mas esta questão do corpo não vai lá só com livros e vídeos de auto-ajuda que de forma débil, e um tanto ou quanto incompleta, tentam ensinar as pessoas a aceitarem o seu corpo tal como é. Não quero soar pessimista, mas procurar uma solução milagrosa no trabalho individual e cognitivo – apesar de ajudar – é ingénuo.

Vivemos desde sempre em sociedades que gostam de cristalizar um ideal de beleza. A indústria – e o tão poderoso marketing por detrás – suscita o consumo de produtos e serviços com um propósito absolutamente indigno: que não deveremos querer ser quem somos. Por isso é que parte deste processo de libertação tem que passar por escrutinar todas as mensagens que são transmitidas por várias vias, desde o seio familiar, até às narrativas mais gerais de como é que podemos apreciar o corpo. Por exemplo, os ginásios escolhem promover os seus serviços com uma ênfase desmesurada nas 300 maneiras de como se pode esculpir e tonificar o corpo: um objectivo que a maior parte das pessoas não irá conseguir alcançar. Desafio-vos a encontrar um espaço de exercício físico que o publicite como um importante promotor da saúde e bem-estar, em vez de focar-se no controlo do corpo.

Se existem situações em que estas narrativas são óbvias e muito condenáveis – por exemplo, ao pensarmos que meninas de 8 anos já andam preocupadas com a gordura e com o seu visual – existem outras formas em que as narrativas operam de forma mais subtil. A associação entre excesso de peso e a saúde é um daqueles mitos que aos poucos começa a ser desconstruído. Não há evidência científica que o peso ou o índice de massa corporal seja um indicador de melhor ou pior saúde. O estigma que as pessoas com excesso de peso passam na sociedade e no acesso a serviços é que está associado a crescentes problemas de saúde. Aliás – e isto vai vos surpreender – a investigação parece mostrar que o défice de peso está mais associado a problemas de saúde do que o excesso. Disto ninguém fala, não é?

O sexo só faz bem se nos sentirmos bem. A forma como nos relacionamos com o nosso corpo é importante para a sexualidade positiva. Não podemos, contudo, assumir que está nos nossos ombros a responsabilidade de resolver um problema que vai existir ainda por muito tempo. Os mitos e as histórias do corpo perfeito e sensual precisam de muita desconstrução ainda. No entretanto, tenta-se viver o maravilhoso mundo do sexo sabendo que o corpo perfeito nunca irá existir.

9 Fev 2022

Resoluções Sexuais 2022

O Ano Novo de 2022 pede resoluções sexuais. Inspirada nas propostas de muitos investigadores e terapeutas sexuais para o ano de 2022, sistematizei aqui alguns dos desafios que as pessoas poderão abraçar para uma sexualidade feliz e saudável no novo ano.

Descobre o que te dá prazer. Esta é uma dica útil para dois tipos de cenários. Primeiro, para os que não têm prática de masturbação para perceber que tipo de caricias e intensidades são prazerosas. Para os que erradamente julgam que a masturbação é algum motivo de vergonha, é importante reiterar que é um importante veículo para a auto-descoberta.

Outras vantagens já foram descritas na literatura, como ajudar a dormir, aliviar o stress e até fortalecer o sistema imunitário. Segundo, há quem até saiba o que lhe dá prazer e, ainda assim, pode aumentar o repertório de experiências e técnicas. As pessoas e as relações estão sempre a mudar, e estar disponível para (re-)explorar novas experiências sensoriais é um dos segredos para uma vida sexual satisfatória a longo-prazo. Não há limites para esta descoberta. Os brinquedos sexuais são ferramentas que podem otimizar esta exploração. Em breve farei um guia de como comprar brinquedos sexuais: que são muito diversos e para muitas carteiras e objectivos.

Descobre que o sexo é muito mais do que a penetração. Se se começar a interiorizar que o sexo tem muitas formas e práticas, só há vantagens em abraçar esta diversidade. Assim é possível acomodar vários apetites e vontades sexuais em vários momentos das nossas vidas. Há alturas em que pode apetecer umas coisas, em vez de outras. Existem muitas formas de ligação e intimidade que até podem não envolver o toque nos genitais. Só a oportunidade de sentir a pele dos outros, com intenção e consciência, pode ser uma experiência sexual muito gratificante.

Aprende a comunicar o que te dá prazer. Esta dica é muito cliché, mas difícil de ser concretizada. A comunicação tem muito que se lhe diga, principalmente sobre temas sexuais. A investigação é clara que comunicar sobre as fantasias com as parceiras e parceiros está associado com maior prazer sexual e com maior qualidade da relação. Mas também se sabe que é preciso alguns cuidados na comunicação. Comunicar não é atirar as frustrações sexuais para o outro.

Uma boa dica é de que estas conversas devem acontecer fora da cama. Também é preciso ter algum tacto na forma como se fala, começar com as coisas boas da relação sexual e depois explorar alternativas ou partilhar fantasias que gostariam de ver concretizadas. A comunicação é como dançar o tango, precisa de duas pessoas. Mas também precisa que as pessoas estejam em alguma sintonia, para que seja possível ouvir o que outro precisa na cama (ou fora dela).

Estas sugestões são apoiadas por terapeutas sexuais na sua prática diária, bem como pela evidência científica. As dicas são gerais. Prometo rever em breve dicas mais práticas para uma mão cheia de truques na manga. Por exemplo, aprendi no podcast sobre sexo e psicologia do Dr. Justin Lehmiller que há investigação que comprova que gemer e vocalizar com volume durante o encontro sexual está associado a mais prazer. Só com disponibilidade para perceber que o sexo não é um script biologicamente programado é que se abrem as oportunidades de aprender e transformar o sexo, e de como ele é vivido no dia-a-dia. E assim viver um 2022 com mais prazer, por consequência.

12 Jan 2022

Sex Education

Depois de um hiato de dois meses, o regresso a este espaço de escrita vem divulgar a série que melhor caracteriza o sexo e os relacionamentos românticos em muitas das suas valências, tensões e dificuldades. A série Sex Education, da vossa plataforma de streaming mais popular, proporciona o espaço de discussão para os temas mais prementes do sexo na esfera do entretenimento – que como já sabemos, não é dos espaços mais críticos ou inclusivos da sexualidade. Ainda nos dias que correm, comediantes fazem uso de estereótipos de género e de excepções à heterossexualidade como se fossem alvo de gozo e de comédia. Um comediante disse recentemente que ser trans é um predicamento “hilariante”. Felizmente que muitos já lhe caíram em cima. Já começa a ser hora de produzir conteúdos televisivos que consigam ser mais inclusivos do que os clichés televisivos dos anos 90. A série Sex Education é uma lufada de ar fresco comparada com outros conteúdos onde a heteronormatividade continua a ser a representação de base da imaginação colectiva do sexo e dos relacionamentos.

A série foca-se em adolescentes na escola secundária, o que poderia insinuar que é uma série para uma faixa etária particular. Diria que é uma escolha estratégica para explorar o período de vida em que o sexo parece ocupar a maior parte das preocupações das pessoas. Mas esta exploração é tão relevante nessa altura como depois, e a série mostra isso também. A íntima relação entre o amor, o sexo, a paixão e o tesão continuam a ser explorados ao longo da vida. Os pais dos jovens que por lá aparecem mostram que toda a gente tem espaço para crescer, ora no sexo, ora na intimidade. Só mantendo a saudável curiosidade sobre o mundo é que é possível percorrer esse caminho de aprendizagem: que é tão relevante na adolescência como no resto da vida.

Porque a série foca-se no sexo em contexto educativo em particular, explora-se também o que é a educação sexual. O sistema educativo formal consegue ser opressor ao enquadrar a sexualidade única e exclusivamente na forma como se previnem bebés e infeções sexualmente transmissíveis. O foco no prazer – e de como é que se pode dar espaço a esta dimensão – é relevante para todos. A série consegue puxar a necessidade de se falar abertamente do prazer nas salas de aula, bem como em conteúdos de entretenimento. Todos sabem que o sexo dá prazer, mas se há coisa que o legado judaico-cristão ensinou é que o prazer não é um direito, é um desvio, uma tentação da pureza da essência humana. Estas representações precisam de ser desconstruídas, e a série faz um bom trabalho ao não moralizar o sexo. O prazer está sempre lá, não fossem as dezenas de cenas de sexo que a compõe.

Esta série também faz um trabalho decente em mostrar diversidade de constelações familiares, românticas e de expressões de género. Há uma naturalidade muito bem-vinda. A série remete para as dificuldades que muitos jovens não-heterossexuais e não-binários sofrem no seu dia-a-dia – mas não as tornam problemáticas. Todos abraçam esta diversidade na utopia que podia ser reflexo dos dias de hoje, mas que ainda não é.

Se se podia fazer mais e melhor em termos de representatividade televisiva? Claro que sim, a verdade é que as personagens principais continuam a ser brancas com tendências heterossexuais. Ainda assim, os escritores desta série tentam explorar o tutano das experiências diárias destes jovens e dos seus pais, até em contexto de terapia sexual e de casal. Os autores expõem dados com base na evidência, tentam desconstruir estereótipos e preconceitos, ideias que foram guiadas pelo consumo de pornografia: ideias erradas sobre o corpo, as formas das vulvas e o tamanho do pénis. Discutem sobre o orgasmo feminino e as muitas formas de sexo que podem existir. Há uma tentativa de criar um ambiente verdadeiramente sex positive. Também é verdade que há quem se chateie com o nível de inteligência emocional que estas personagens mostram: a maioria delas mostram uma maturidade relacional e sexual fora do normal. Pelo menos que nos sirva de referência que maturar a nossa relação com o corpo, o sexo, e os outros pode ser bem possível. Dentro e fora do ecrã.

21 Out 2021

Dia da Criança | Sexo precoce apontado como entrave ao desenvolvimento saudável

Assinala-se hoje o Dia da Criança, uma data que, segundo Lei Chan U, deveria ser feriado oficial. O deputado aponta o abuso de drogas e o sexo precoce como factores que afectam o desenvolvimento dos mais novos e alerta para “insuficiências” na defesa dos direitos das crianças, apesar de reconhecer melhorias nas últimas décadas

 

Embora reconheça melhorias na defesa dos direitos das crianças, o deputado Lei Chan U apontou novos desafios ao crescimento saudável dos jovens. “Com o desenvolvimento da economia e da sociedade, as crianças encontram cada vez mais factores que perturbam o processo de crescimento e vários elementos indesejáveis irão sempre afectar o seu desenvolvimento saudável, como o vício da internet e produtos electrónicos, fumar, beber, abuso de drogas e sexo precoce”, pode ler-se num comunicado da Federação das Associações dos Operários de Macau (FAOM).

De acordo com a nota, Lei Chan U apontou “insuficiências” no desenvolvimento dos direitos das crianças em Macau, como a falta de espaços de entretenimento e desporto de larga escala diversificados, a ocorrência de casos de bullying escolar e violência doméstica, e situações de abuso sexual. Elementos que “afectam ou mesmo ameaçam o desenvolvimento saudável das crianças”.

Além disso, o deputado apontou dificuldades à intervenção das crianças no processo de tomada de decisões políticas, criticando que as suas expectativas e exigências sejam “frequentemente ignoradas”. Assim, ficou o apelo para as entidades governamentais trabalharem no sentido de “ouvir as vozes das crianças”.

Tempo de reflexão

Lei Chan U enfatizou que o Dia da Criança, celebrado hoje, não é um feriado oficial, pelo que, a menos que coincida com o fim de semana, a maioria das crianças passa a data longe dos pais. O deputado defende que o dia se torne num feriado para “lembrar a sociedade de prestar atenção à família”.

A Convenção sobre os Direitos da Criança aplica-se em Macau desde 14 de Setembro de 1998. As crianças passaram a contar com direitos fundamentais que incluem o direito à vida, de serem protegidas, ao desenvolvimento e à participação. Apesar dos desafios apontados, Lei Chan U considera que nas duas décadas que seguiram à adesão à convenção, o Governo “cumpriu as suas obrigações” e “protegeu e desenvolveu” os direitos e interesses das crianças.

“O estado de saúde das crianças continuou a melhorar, o direito à educação foi plenamente garantido, o ambiente de crescimento foi optimizado diariamente e as conquistas são notáveis”, destacou.

De acordo com a Base de Dados das Crianças do Instituto de Acção Social (IAS), em 2019 registaram-se três menores em tratamento de desintoxicação e 12 vítimas de abuso sexual. Em 2020, houve dez casos de violência doméstica sobre crianças. Na vertente escolar, os dados mostram uma taxa de aproveitamento do ano lectivo 2018/2019 no ensino infantil de 98,9 por cento e no secundário de 92,1 por cento.

1 Jun 2021

Sobre o prazer e as suas dificuldades

O prazer – e vamos assumir o conceito de forma mais geral, onde cabe o sexo e muitas outras actividades – não é fácil de ser conquistado pelas mais variadas razões. Razões pragmáticas a conceptuais fazem parte do debate por quem luta pelo prazer. Inclusive, até por quem não assume posição nenhuma mas, com o seu silêncio, contribui para a complexidade do prazer na contemporaneidade. Passo a explicar como é que o prazer é afectado por três níveis de análise, para simplificar.

Corpo. Muitas vezes olham-se para as barreiras mais palpáveis ao prazer procurando o nível de comprometimento do corpo. Existem várias patologias que comprometem o prazer, podem ser problemas anatómicos e até neurológicos. Só que utilizar esta classificação deixa o prazer abandonado num estado de incompreensão, onde é definido pela capacidade sensorial de um corpo que reage e espera por reagir, única e simplesmente.

Mente. Depois vem uma visão mais psicológica do prazer, aquele em que o prazer não depende exclusivamente de um estado de corpo, mas de uma disponibilidade mental, cognitiva e emocional, para lhe dar forma. Falando assim parece vago, eu sei. Mas todos os estudos sobre o orgasmo, apontam para uma visão conjunta entre corpo e mente. Os estudos sobre disfunções sexuais também mostram a importância da terapia, o trabalho de desenvolvimento pessoal, em resolvê-los. Que estado mental é, então, desejado? É um estado de aceitação: do corpo que se tem, dos medos que se têm, das ansiedades, receios, desejos e prazeres. Mantenho a definição vaga para não cair em fórmulas rígidas, e mantendo a diversidade de escolas psicoterapêuticas e do entendimento de mente, o prazer depende de um corpo (que não tem que ser perfeito), e da aceitação e desenvolvimento de quem somos, para quê e como.
Social. A seguir vem a visão social do prazer, que, como uma matryoshka, a boneca russa, se interpenetra no entendimento do prazer do corpo e da mente. Claro que somos bombardeados por imagens e representações sobre o que é o prazer, mas também somos afectados de forma mais profunda do que isso.

O “social” contribui para a forma como podemos ou não assumir e aceitar o nosso corpo e a nossa individualidade dentro dos sistemas de privilégio e opressão vigentes. A interconexão do que se passa cá dentro com o que se passa lá fora não pode nunca ser negligenciada. Quem é que é merecedor de prazer e porquê? Só com esta interrogação é que se pode explorar de que forma é que as estruturas sociais moldam o acesso ao prazer e as formas como ele pode ser vivido.

Estes três níveis, e a forma como estão ligados uns aos outros, reforça a necessidade de uma visão integrada (interdisciplinar!) do prazer. Onde o corpo, a mente e a sociedade estão em movimentos perpétuos de ligação. Esta conceptualização também mostra que a luta pelo prazer tem que ser feita por várias frentes.

Perceber o nosso estado do corpo é importante, ter disponibilidade para estar em contacto com as nossas dificuldades, fragilidades e recursos é importante, estar pronto para lutar contra a injustiça social também é importante. Só assim é que poderemos libertarmo-nos do velho mito de que o prazer é de alguma forma pecaminoso. Pelo contrário, aceitar que podemos ter prazer é talvez a pré-condição para o bem-estar, não só com o sexo, mas nos pequenos momentos do dia-a-dia. Perceber o prazer e aceitá-lo, talvez seja a peça do puzzle que nos falta para outro tipo de consciência global. E para os que responderão com uma definição de prazer egoísta, tenho a acrescentar que o verdadeiro prazer resulta de uma dinâmica complexa, nada solitária, onde a responsabilidade é partilhada entre o próprio e os outros.

29 Jul 2020

Exteriorizando sexo

Sexo em pé, no tapete, no lavatório ou na banca da cozinha. As pessoas na cama, não são as mesmas fora dela. Há vários factores que influenciam esta dinâmica. No mês do orgulho LGBTQI+, esta discrepância torna-se mais óbvia. Muita gente não consegue gozar de liberdades plenas para se entreter com os prazeres da cama, muito menos assumi-las fora das quatro paredes de um quarto. Ou até fora das paredes de uma casa: pode não haver espaço para as formas de expressão lá fora, para viver o sexo que nos faz mais sentido.

Ainda se sabe e se sente a pouca aceitação da diversidade sexual, até em países liberais. Nota-se também a persistência em não se falar sobre sexo. A ideia que as pessoas têm do sexo e a forma como as pessoas fazem sexo e têm prazer com isso, continua a ser muito alienígena em muitos contextos. Nestes anos de escrita sobre o sexo tenho-me familiarizado com, e divulgado a literatura sexual que o mundo nem sempre acompanha. Porque perceber o estado da sexualidade fora da cama, e fora de casa, é ainda uma missão muito pertinente, se quisermos atacar as desigualdades associadas a ela.

A educação sexual teria um papel muito importante em desmistificar as assumpções retrógradas que o sexo ainda tem. Mas a educação sexual é um produto socio-político e, por isso, pode estar revestido de ideologias partidárias. Não assumem uma posição humana, quiçá, universal, do prazer. Nestes programas, a enfase continua a ser na contracepção, ignorando por completo o prazer. A masturbação é tabu, o orgasmo é tabu.

Puxando pela procriação, o prazer do sexo torna-se tabu. E essa tendência de deslegitimar o sexo continua a ser um tópico preocupante, mas deveras interessante, desde que entrou na esfera pública, com Freud.

A psicanálise não foi bem recebida em muitos contextos, apesar do seu vocabulário ter sido apropriado pelo senso-comum. Muitas das ideias chave, para a época, e ainda agora, são difíceis de ser digeridas. Isso acontece porque nos afastámos do sexo desde há muito tempo, e tornámo-lo num artefacto exterior à vida, de forma utilitária e descartável. Deixámos de perceber o sexo e o corpo, que sabe de desejo, para trás.

Reinam-se as vidas humanas no dualismo cartesiano persistente. Preza-se tudo o que acontece com a razão, inteligência e pragmatismo, mas nunca com o corpo. O corpo que talvez sinta de formas que não nos são inteligíveis de ser explicadas. As ideias que começaram com Freud ainda são polémicas e suscitam interesse porque o sexo ainda tem esse caracter incompreensível. Aliciando o comum mortal com ideias e sensações pelas quais nunca passámos antes.

Este potencial do sexo raramente salta para o exterior. Porque ainda não soubemos como fazê-lo. Da mesma forma como criamos divisões entre o corpo e a mente, criámos divisões entre o sexo e tudo o resto, desvalorizando a forma como o sexo afecta as nossas identidades, as nossas formas de estar com a vida, a forma como encaramos o prazer num mundo progressivamente mais competitivo e rápido. Claro que podem existir algumas orientações de como contornar esta tendência, mas não devem ser confundidas com receitas de fácil aplicação. O caminho pode ser lento e longo guiado pela honestidade e simplicidade do prazer.

Exteriorizar o sexo dentro dos nossos eixos de significado é um processo tão simples que se torna deveras complexo, com todas as forças que nos obrigam a contrariar aquilo que de mais puro o sexo tem para oferecer.

8 Jul 2020

O sexo importa-se com o apocalipse

O mundo está estranho e confuso. A minha tentativa de articular qualquer conteúdo esta semana virá da confusão dos sucessivos eventos da última semana, e dos últimos meses.

O mês do orgulho LGBTQI+ começou agora em Junho. A celebração de uma história de reivindicação e resistência ecoa todos os anos, em muitas partes do planeta. Um lembrete que a transgressão e contestação dos limites das forças normativas são necessárias se queremos ver alguma mudança no mundo. Na mesma altura em que outras vozes dissidentes, contemporâneas, são ecoadas num país norte-americano em particular. Fala-se em racismo estrutural, ou formas de preconceito estrutural, como nunca se falou. O mal do mundo não acontece pelas mãos das pessoas más. A discriminação não é um acto único, psicopata ou desviante, mas o resultado de uma estrutura, de relações sociais e instituições que permitem que as pessoas façam muita parvoíce – como já estamos fartos de assistir. Somos também obrigados a reflectir sobre a globalização de uns problemas, e não de outros. As redes sociais estão cheias de conteúdos de uma particular geografia, e não de outras. Talvez uns contextos estejam mais preparados para discutir coisas difíceis, e outros ainda não. Ninguém ignora o que está a acontecer, mas não sei até que ponto se olha e se analisa o estado do mundo com cuidado, e à forma como contribuímos para isso.

O sexo podia não estar metido nesta confusão de conceitos, mas é o lugar que melhor habita. Talvez porque o sexo desde cedo quebrou as amarras conservadoras e inflexíveis. A intimidade, o sexo e a auto-determinação não vivem num vácuo. O espaço das relações raciais dos diferentes tons de melanina não é um só nó por desembaraçar. É um nó de uma malha complexa, histórica, ligada a muitos outros nós de desigualdade. Uma terapeuta sexual, a Lauren Fogel Mersy, retoma o conceito de interseccionalidade, um conceito chave para perceber o emaranhado da malha, com a clareza que raramente consigo ter. Como ela diz na sua página social: “sabem o que faz decrescer a nossa líbido? Opressão sistémica, racismo, e trauma racial”. Não podemos perceber o que acontece à nossa volta sem tentar juntar várias peças de um puzzle, e perceber o seu encaixe e desencaixe.

Esta é uma forma, como muitas, de mostrar que o sexo se importa com o apocalipse. O apocalipse é entendido aqui como um suposto estado de disrupção e de potencial transformador. Quem me conhece sabe que gosto de olhar para o sexo como centro gravitacional que integra o íntimo e o social. Não desperdiço a oportunidade de reforçar esse argumento em alturas de crise: em pandemia, que nos obriga a uma reorganização de vivências e rotinas, ou num qualquer outro estado de conflito socio-político. Viro-me sempre para a mesma questão: como vemos o sexo dentro e fora de tensões sociais? E como é que, através dele, podemos olhar as malhas indissociáveis de sistemas de opressão? Como é que através da lente analítica do sexo podemos pensar a mudança e a libertação?

Raramente nos mostramos confusos como o mundo, mas é um estado legitimo. Frequentemente esquecemos de dar espaço à transição, e deixarmo-nos no meio de um antes e um depois que ainda não percebemos como é que se irá concretizar. Nesse processo de apocalipse, o sexo não pode ser um escape – como experiência sensorial, única – mas servir a consciencialização que aquilo que carregamos é tanto nosso como do mundo.

3 Jun 2020

O Sexo e a Maria-Joana

A investigação do efeito das drogas no sexo ainda está na sua infância. Há evidência clara de que as drogas psicoactivas afectam a sexualidade de forma negativa – tanto que é uma barreira para a aceitação da medicação psiquiátrica – mas pouco mais se sabe. A criminalização de outras drogas são uma barreira para a investigação e auto-descoberta, à excepção de umas vozes dissidentes que querem ver além. Pessoas, investigadores e terapeutas sexuais querem perceber a relação entre o sexo e a canábis, na sua totalidade de características de alteração de consciência, e o óleo CBD, que não é uma droga, mas que pode ser de aquisição difícil e de uso ainda bastante estigmatizado.

A pouca investigação que existe mostra que o consumo continuado e excessivo da canábis pode levar a disfunção eréctil e a contagem de esperma diminuída (o que não quer dizer que possa ser usado como contraceptivo!). Mas outros efeitos ainda estão longe de ser explorados. Paralelamente, muito se tem questionado acerca do uso da canábis e do óleo CBD para o tratamento de situações de ansiedade e controlo da dor. Não é fácil separar a discussão do sexo e a canábis da discussão global de como esta planta pode ser usada para fins terapêuticos. Aqui falaremos do pouco que se sabe da sua relação com o sexo e as suas especificidades.

No sexo há problemas que já nos são bem conhecidos, como a ansiedade em alcançar a performance perfeita, agradar o outro, ter um orgasmo assim ou assado ou querer apresentar-se da forma que se “julga” normal. A desigualdade do orgasmo também, discriminado por género, é um problema complexo de origens socio-culturais e biológicas. Todas estas dificuldades criam barreiras a uma boa conexão com o sexo, coisa que a canábis diz ajudar a resolver. Um estudo publicado em 2017 mostrou que muitas mulheres reportam um efeito positivo, de aumento de intensidade sexual e do orgasmo, consumindo canábis no pré-coito.

Apesar de, para outras pessoas, o uso de drogas poder ter o efeito completamente contrário – de desconexão e retracção – para outros, parece intensificar a experiência. A teoria é que a canábis ajuda a baixar as resistências mentais e ter uma experiência mais conectada com o corpo, e com o outro.

O óleo CBD, por sua vez, proveniente da canábis e do cânhamo, sem THC (a substância psicoactiva) pode trazer um estado de corpo e mente igualmente interessantes para o sexo e para a saúde sexual. Só que a investigação nessa área é mais escassa ainda. A indústria, contudo, não se retraiu de trazer cá para fora produtos inspirados no potencial deste óleo, que é discutido em teoria, mas que na prática não se sabe quase nada. Já existem lubrificantes sexuais com óleo CBD que dizem ajudar no relaxamento da zona pélvica e ajudar na minimização da dor sexual. Também já existem tampões com óleo CBD que dizem ajudar nas dores menstruais. Para quem sofre de endometriose, parece que o CBD tem um potencial enorme no tratamento dos sintomas. Há pessoas que têm deixado o seu testemunho por aí, mas pouco mais sabemos.

O perigo de não existir investigação que nos ajude a navegar nas incríveis vantagens que estes produtos podem trazer, é que se sabe pouco sobre dosagens e, como todas as drogas, que outros efeitos podem trazer. O uso desta planta e dos seus derivados para efeitos sexuais deve ser ponderada e cuidadosamente analisada. Não deve demorar muito até começar a existir um corpo de literatura mais robusto que nos ajude a perceber as vantagens e desvantagens dos seus efeitos.

20 Mai 2020

Literatura erótica de quarentena

Escrever histórias eróticas é o que está a dar nesta pandemia. Numa procura na secção erótica, de um site popular de ebooks, usando covid-19 como termo de busca, já existem 44 resultados. Em pouco menos de três meses já houve quem se sentasse, fantasiasse e escrevesse sobre como é que esta pandemia poderia criar cenários apropriados para o sexo. Quem disse que a pandemia não seria produtiva? Há quem já tenha começado colecções de livros eróticos da pandemia, só para perceberem como o negócio deve ser prolífero – ou simplesmente muito satisfatório. Claro que há erótica para todos os gostos, desde a amor incestuoso entre meios irmãos que estão presos em casa, até BDSM mais forte ou leve, heterossexual e homossexual e o covid69 – vocês apanham a ideia. Tudo contextualizado nesta contemporaneidade que ainda temos dificuldade em entender.

O que me leva a uma peça fabulosa da literatura erótica que é objecto de um podcast de comédia. A literatura erótica a ser um adereço de comédia não deve ser o objectivo de nenhum escritor erótico. Mas no sexo, e na escrita, para os corpos e a forma como os entendemos, as palavras importam. Irei elaborar sobre isto mais à frente.

Este podcast, my dad wrote a porno, tem sido o meu companheiro de pandemia para me introduzir à literatura erótica – e aos meandros do sexo cómico. O título diz tudo: um filho descobre que o pai, na sua velhice, decide escrever sobre sexo (sobre as suas fantasias?). O filho, com mais ou menos vergonha, decide ler um capítulo por cada episódio e comentá-lo com os amigos. Et voilá. Um êxito estrondoso no Reino Unido, e em muitos outros lugares por ouvintes que gostam de ouvir em inglês. Um fenómeno cultural, dizem os comentários.

O enredo que sai do Rocky Flintstone, o pseudónimo para o criador desta colecção de livros eróticos, são fabulosos. Desde mamas que são comparadas com romãs, a algemas de plástico vermelhas (que se calhar não cumpririam o seu propósito?), a um pénis, que é tão pequeno que se perde na penugem púbica de quem o pertence. Tudo acontece à heroína desta trama, uma tal de Belinda que é a directora de vendas de uma empresa de panelas e frigideiras, e onde o sexo faz parte do dia-a-dia laboral. Claro que um olhar mais crítico iria horrorizar-se pela objectificação feminina e pela tendência por interacções lésbicas sem explicação prévia. Já a descrição da entrevista de trabalho, é um cenário de exposição absurda, em que a entrevistada tem que se despir totalmente e… abrir as tampas vaginais (em inglês soa melhor, mas juro que é assim que é descrito) como se de uma inspeção ginecológica se tratasse.

Com toda a seriedade do sexo, esta possibilidade de rirmos dele, e destas descrições que poderiam ser melhor conseguidas, cria a possibilidade de o reinventar. Claro que o sexo é passível do gozo, muitas vezes bastante violento e de consequências nefastas, mas há qualquer coisa de maravilhoso quando este gozo não faz mal a ninguém. Quando o sexo não precisa de ser uma referência de seriedade e pode ser gozado de tantas outras formas, como a rebolar da cama, no chão, nos lugares estranhos que se quiserem. E ele pode existir nas palavras, neste exercício literário, entre o escritor, o leitor e até o ouvinte. O imaginário erótico, ainda assim, sobrevive nesta pandemia. Nem precisa de muito enredo, só mesmo de muito sexo.

22 Abr 2020

Massagem nos genitais

O sexo tântrico está mais na moda do nunca. Talvez porque as pessoas precisem de encontrar a sua criatividade sexual em algum lugar, e a tradição do sexo tântrico é tão boa como qualquer outra. Uma das actividades desta tradição milenar são as massagens nos genitais. A técnica é tão simples que se torna complexa. Ao contrário do que muitos acreditam, estas massagens não são uma nova forma de nomear a masturbação. A massagem na yoni e no lingam – os nomes em sânscrito para vagina e pénis – são formas de ligação sensual, sensorial, física e espiritual. A massagem não deve ser sexualizada, mas não é de admirar se assim se transformar.

Os ensinamentos do sexo tântrico exploram o relaxamento com o objectivo de criar uma ligação com o corpo. Por isso é que é importante ter a mesma atitude mental tal como se fosse uma massagem às costas. Só que esta é uma massagem centrada nos genitais, e em outras zonas circundantes e erógenas. A barriga, as coxas ou as ancas fazem parte do pacote. Estas podem ser auto-administradas ou administradas por outros.

Ambas as formas permitem a sensualidade do toque – despindo-se das expectativas clássicas e heteronormativas da masturbação ou do sexo, de algum tipo de penetração ou de um ‘final feliz’ com o orgasmo. A forma como a enfase está no processo da massagem e não na sexualidade, pode, na verdade, resultar em imenso prazer e num dos orgasmos mais intensos de sempre. É uma lógica complicada de prioridades, mas é assim que o nosso sexo funciona. A pressão para a performance assim ou assada não existe nestas massagens. A ligação com o corpo, com as sensações, e com o deixar-se levar pelo toque é que cria a disponibilidade para o orgasmo.

Estas massagens podem fazer parte do ritual de bem-estar individual e até colectivo – trabalhando na relação de seres e de corpos. Apesar de não existirem estudos que confirmem muitas das assumpções desta tradição, esta diz-se ter muitas vantagens para a saúde física dos genitais e para a saúde emocional. Da mesma forma que acumulamos tensão nos ombros, também se acumulam tensões, problemas e desafios nos genitais, e que se estendem pelo corpo todo. Diz quem pratica, que as massagens ajudam a manter a saúde do pavilhão pélvico, a compreender melhor a libido de cada um, a tratar casos de ejaculação precoce ou de impotência. Apesar de não existir evidência científica, não vejo que mal faria em experimentar e, quiçá, incluir estas massagens na rotina.

A recomendação é que as pessoas explorem à vontade, e que puxem pela criatividade nas formas de estimulação, fricção e toque (acompanhado por algumas técnicas de respiração). Cada um poderá explorar de acordo com o que lhe mais agradar, e também encontrarão inspiração nos artigos e vídeos alusivos ao tema. A inovação vem da re-interpretação dos genitais, não só como órgãos de sexo, mas como órgãos de sensibilidade. Fujam da tendência de massajar o clitóris de forma circular, ou de estimular o pénis para cima e para baixo. Lubrificantes ou óleos de massagem são extremamente importantes, e convém procurar os produtos com os quais se sintam confortáveis. Não ter medo de guardar um momento para explorar estas massagens quando se está sozinho, com o ambiente preparado para o efeito – velas, óleos ou música. E quando a dois, deixar massajar e ser massajado nestas outras formas de toque, permitindo uma nova relação de confiança e prazer.

5 Fev 2020

Guia dos sexos

Ninguém escapa ao sexo. Pensamos e agimos com a consciência que o sexo está por aí, pronto para gozar ou por ser gozado – tantos sexos. Essas fontes inesgotáveis de ideias, apetites e desejos. Não será surpresa que há lugares mais criativos do que outros. Nas grandes metrópoles por esse mundo fora, onde a diversidade fervilha por todas as direcções, o sexo floresce com esplendor. Uma cidade como Londres, por exemplo, tem a oferta mais impressionante de experiências sexuais. Até porque o sexo fora de casa não existe só em bordeis, são centenas de espaços de expressão criativa sexual.

Mas antes de explorar o mundo do sexo lá fora, primeiro temos que responder à pergunta do que é que realmente gostamos. Uma pergunta que muitos de nós não tem a paciência de se perguntar. As fantasias sexuais ou os apetites particulares não nos aparecem só como impulsos inexplicáveis. A disponibilidade para fantasiar e a masturbação produzem as condições necessárias para apanhar o barco da exploração sexual também. Essa exploração, que a maior parte das vezes acontece individualmente, pode ser acompanhada por imensos brinquedos sexuais. Dildos de vários tamanhos, para quem gosta de penetração, varinhas ‘mágicas’ para quem gosta de estimulação do clítoris ou uma tampinha anal para os iniciados e já praticantes na exploração anal.

Depois desta exploração se tornar hábito – a masturbação não produz epifanias sexuais instantâneas, é mais uma prática de auto-cuidado que deve ser estimulada ao longo da vida, com ou sem parceiro sexual (porque não são experiências mutuamente exclusivas) – é que a nossa cabeça começa a explodir de ideias. Ideias que podem exigir mais ou menos recursos porque, infelizmente, as experiências e acessórios sexuais não são para todas as carteiras. Abrimos assim a possibilidade de estarmos atentos para novas formas de sexo. Fetiches são um bom começo, por exemplo. Ao reconhecermo-los torna-se mais fácil encontrar outras mentes que partilhem dos mesmos prazeres, e a internet é uma óptima forma de os juntar. Depois, claro, de certeza que existirão eventos que estimulam a concretização de fantasias. O BDSM aglomera um conjunto de práticas e fetiches que torna mais fácil identificar uma comunidade de gentes que partilham o mesmo fascínio por jogos de submissão e dominação. Pelo que tenho visto, muitas actividades sexuais urbanas são desta natureza. Há festas e speed-dating para amantes do BDSM, há a possibilidade de contratar uma dominatrix na vossa cidade de residência para satisfazer os fetiches mais variados: chuvas douradas, para os que gostam de praticar desportos aquáticos (é mesmo esse o termo) até chuvas castanhas, que não é preciso especificar do que se trata.

Depois também há outras actividades que se cruzam com desejos de BDSM ou não. Por exemplo, um clube de sexo de pessoas anonimizadas com máscaras é, na verdade, uma possibilidade para o mundo real, e não é tão inatingível quanto isso. Aliás, foi com alguma satisfação que me apercebi que existem grupos de mulheres – e.g. Killing Kittens – que organizam festas mistas onde só as mulheres é que podem dar o primeiro passo. Escusado será dizer que este tipo de eventos e serviços vivem da exigência de que todo o sexo é consensual. O grande lema para o sexo verdadeiramente prazeroso.

Ao olhar para esta variedade de sexos não nos é possível cair no erro de que há o sexo normal e o anormal. A decisão é muito mais individual: há sexo que nos interessa e sexo que não nos interessa. Os guias dos sexos criam-se assim, pelos aborrecidos e pelos curiosos, explorando o sexo de forma criativa.

11 Dez 2019

Ausências

Nem todos precisam de sexo. Há quem seja sexual e há quem seja assexual. Cada um vive a sua sexualidade ausente ou presente. Num futuro utópico isto não precisará de ser explicado, mas no presente distópico em que vivemos ainda é preciso relembrarmo-nos que a auto-determinação sexual é o privilégio de quem pode pensar sobre o sexo e agir sobre ele.

Para os que estão habituados (e sedentos) da presença do sexo, a sua ausência pode ser problemática. A ausência da troca de corpos e vivências pode ser dolorosa, não porque enlouqueça ou torne testículos azuis, mas porque nos é entendida como essencialmente humana. A dor de não ter com quem partilhar um orgasmo é o reflexo de um entendimento sexual animal, na nossa sofisticação racional. Mas a recusa de adoptar visões simplistas do mundo, ou visões congruentes do mundo, é grande. O nosso ambiente sexual não é, nem nunca será assim. O sexo vive da polémica, do conflito e da tensão. A ausência e presença do (e no) sexo é só uma forma complicada de olhar para a coisa. O sexo, os genitais, os fluídos que se trocam, os gemidos e os prazeres da fisionomia e dos desejos. Como é que se vive sem sexo? Para os que já resolveram esta ausência e para os que acreditam que o sexo é um simples impulso. A conexão connosco próprios e com quem partilhamos os medos e as alegrias de existir, faz parte desta compreensão. E ela revela-se na relação longa e trabalhada, ou no miscrocosmos de partilha fugaz. Uma noite, uns dias ou uma vida. A ausência desses momentos traz-nos para o sofrimento e para além dele. Transporta-nos para descobertas inexistentes, incompreensíveis a olho nu.

Pior do que a total ausência de sexo é quando o sexo é vazio, sem sentido, direcção ou consciência. Às vezes acontece, mas quando se torna rotina, a sua total ausência começa a fazer mais sentido. O que nos impede de seguirmos sugestões pré-definidas do que é certo ou errado é a curiosidade que temos do mundo. É com sentido crítico ou apropriação do que achamos melhor para nós, para os nossos corpos indefinidos, estranhos e tantas vezes monstruosos que percebemos as múltiplas possibilidades de ser, fora da moralidade barata que nos incumbem. A ausência oferece um espaço para esse encontro que não é mediado pelo desejo com o outro, pelo seu conforto. O desconforto que a ausência nos causa torna-nos alienígenas ao que é suposto. A ausência pode ser assustadora quando tudo o que esperámos era a ligação sexual divina, simples e incontestável.

Muitas vezes carregamos esses desejos e raivas às normas – ao que é expectável – interligadas na nossa própria confusão. A confusão que reflecte a consciência da complexidade. Navegamos na flexibilidade e na inflexibilidade com o carinho de quem tem paciência de errar, as vezes que precisarmos. Vamos aprendendo com a vida que não é linear, mas uma montanha russa de uma feira popular, que deixou de existir e que passou a ser nostálgica. Vamos aprendendo nesta complexidade, como nos permitimos. Iludimo-nos se pensarmos que podemos abraçar a diferença e a dificuldade assim, facilmente. Mas o sexo ensina-nos como fazê-lo, se estivermos disponíveis. Nesta incerteza das emoções e dos desejos que nunca mais acabam.

Somos um poço sem fim de quereres incompreensíveis. Com ou sem sexo.

O sexo e o prazer são direitos que não estão escarrapachados na carta dos direitos humanos. Talvez precisassem de estar: o prazer que carrega estas tensões, dilemas e dificuldades. O sexo é um factor complicador à vida. Estas formas de ser ausentes e presentes de outros, de nós próprios, e de prazeres que pensámos não merecer sentir, são as cartas do nosso baralho. Já temos tanta coisa, e já nos falta tanta coisa também. Falta-nos tesão de bondade.

4 Dez 2019

Comercialização da Intimidade

Primeiro, definimos a comercialização da intimidade de forma bastante abrangente. Hoje em dia podemos comprar tudo, desde o sexo à intimidade. O exemplo comum é o das pessoas que oferecem cuidados mais, digamos, sexuais – como as mulheres de conforto e outras que tais. Mas a literatura pede que olhemos para outros processos também – outras formas de comercialização das relações íntimas – como os cuidadores de crianças e idosos, empregados domésticos, ou serviços de fertilidade e de barriga de aluguer. Qual é a diferença entre uma bailarina exótica e alguém que cuida de idosos? Muita coisa, certamente, mas cada tipo de intimidade está a ser igualmente explorado no mercado (só que um é tido como menos decente do que o outro).

Segundo, assumimos que esta comercialização é global. A procura e a oferta tem feito uso dos movimentos transnacionais, tal como o sistema de produção coloca as fábricas em locais onde a mão-de-obra é mais barata. Os princípios que regem os custos e benefícios de uma transação aplicam-se à intimidade também. A busca por intimidade barata move as pessoas para lá das fronteiras, ora porque procuram, ou porque sabem que são procuradas. Nesta discrepância de poderes e possibilidades, a venda da intimidade traz à discussão temas que dão muito que falar.

Como a mobilidade, e o tipo de mobilidade que desejamos – quem é o bom ou mau migrante e o que vai fazer? Como olhar para o homem branco que vai a países em desenvolvimento à procura de intimidade e sexo, deixando filhos para trás? Como olhar para as mulheres que vêem a oportunidade de mobilidade ao vender o corpo, o cuidado ou o carinho? Ou, de que forma estas transacções tendem a reforçar as forças patriarcais que regem este nosso mundo, insistindo em papéis de género tradicionais? Como é que o neoliberalismo veio possibilitar a transformação dos nossos afectos? Num mundo que consegue estar ‘unido’ porque é muito desigual.

Terceiro, entendemos que as transacções de intimidade existem em detrimento de outras intimidades. Intimidades que se dividem porque uma é paga e a outra não é – como as famílias que se dividem para dar resposta a outras. Tal como as várias mulheres que deixam para trás os filhos para cuidar dos filhos dos outros. Uma espécie de hierarquização de intimidades em que a paga tem que ser mais valorizada se quisermos sobreviver neste mundo capitalista, e assim reforçar a desigualdade em que vivemos.

Quarto, também percebemos a importância de explorar o significado da intimidade para as pessoas, atravessando várias classes e estatutos. Particularmente, de como a intimidade pode ser utilizada como uma ferramenta de poder ou de subjugação, explorando fragilidades ou formas de empoderamento. Conceitos complexos para uma realidade que poderia ser simplesmente demoníaca, como a ideia de que aquilo que nos faz humanos sociais como o cuidado, o sexo ou a partilha podem ser comprados. Mas o foco nunca poderá ser a análise da sinceridade da ligação humana. Mesmo que a comercialização da intimidade nos ofereça o vislumbre do exagero que é a instrumentalização do conforto social, temos que ser mais analíticos que isso. A existência prática de objectivos capitalistas tornou-nos disponíveis para suprimir as necessidades afectivas e de cuidado ou de sexo com dinheiro.

Por último, se a intimidade não fosse comercializada neste estado económico actual, quem seríamos nós? Melhores ou piores?

17 Out 2019

Uma recordação estival

Não me lembro da idade precisa que tinha quando descobri que havia uma diferença anatómica vincada entre homens e mulheres. Já tinha obviamente uma noção, embora vaga e indistinta, que por debaixo das roupas diferentes que cada um usava se escondia uma realidade capaz de afastar uns e outros tanto quanto aproximar. Aos seis, sete anos, tudo é ainda muito confuso (não se infira desta afirmação que a confusão se dissipa com o passar do tempo, apenas muda).

A minha mãe e o meu pai, no Verão, alistavam-se na apanha da cereja para compor o mealheiro familiar. Embora se ganhasse muito melhor em França do que no Portugal do início dos anos oitenta, o dinheiro nunca nos sobrava de tal modo que não precisássemos de pensar nele. Era uma actividade razoavelmente bem paga, por não haver assim tanta gente disposta a fazê-la. A maior parte dos trabalhadores eram imigrantes que aproveitavam os tempos mortos de Verão ou alguns dias de férias ocasionais para fazer uns trocos.

Por vezes, quando ia com eles e por ser demasiado jovem para contribuir activamente para economia familiar, ficava na casa dos donos da fazenda ou na casa dos caseiros, a brincar com os filhos de uns ou de outros. A maior parte das vezes, era apenas ignorado. Embora tivesse nascido em França e falasse um francês escorreito, era ainda assim filho de emigrantes, um estatuto que condicionava as pessoas a relacionarem-se comigo como se eu fosse apenas uma espécie de caricatura.

Era depois de almoço, cerca das três da tarde. A governanta tinha instruções para pôr a criançada toda a dormir – ou a fingir que dormia – pelo menos uma horinha. Era uma família grande; entre avós, pais, tios, primos e filhos deviam ser uns trinta e, ainda assim, o que não faltava naquele casarão era espaço. Eu não fazia a sesta há mais de três anos, mas a minha margem de manobra para discordar do que quer que fosse era ainda menor do que na minha própria casa. Fomos levados para um quarto enorme, repleto de beliches, uma espécie de incubadora de gaiatos com duas janelas minúsculas a uma altura à que nenhum de nós conseguia chegar.

Ser obrigado a dormir quando não se tem sono é o equivalente a ser obrigado a comer o terceiro prato de cozido à portuguesa na casa da avó quando já na segunda volta não se tinha fome. Eu não tinha qualquer vontade de dormir mas, para ser franco, nem os mais novos me pareciam ter sono. À distância que me encontro agora do local e tempo em que vivi esta vida – que a maior parte das vezes não me parece ser sequer minha –, acho que a obrigação de pôr aquela gaiatada toda a dormir era apenas uma forma de garantir que a governanta tinha tempo para organizar o jantar.

Lembro-me de partilhar a cama com uma das miúdas mais velhas, que devia ter os seus oito, nove anos. Mal trocáramos umas palavras antes de a governanta achar por bem nos arrumar lado a lado no tetris das camas. A menina queixava-se também de não ter sono. Mas fazia-o como se eu não estivesse ali e a conversa dela se dirigisse a um amigo imaginário ou mesmo ao tecto. A certa altura pegou-me na mão e meteu-ma por baixo dos calções dela e das cuecas. Eu não sabia o que fazer. Mais: não sabia sequer se tinha de fazer alguma coisa. Em boa verdade, acho que nem ela sabia. Limitou-se a mexer-me a mão como se guiasse os braços desajeitados de uma marioneta.

Quando finalmente nos deixaram sair do quarto, eu não fazia ainda ideia de que o constrangimento podia ser a pontuação possível da intimidade. Lá fora a chuva de Verão aproximava-se como se de uma parede móvel se tratasse.

11 Out 2019

Bi-invisibilidade

A bissexualidade é invisível, mas muito presente nas formas de relacionamento romântico e sexual contemporâneos. A literatura parece concordar que isto se deve a um limbo algures entre o mundo heterossexual e o mundo homossexual, onde a bissexualidade se encontra. Estes mundos estão melhor limitados pela sua característica monossexual (ou só do mesmo sexo ou do sexo oposto) tornando-os muito mais fáceis de reconhecer e assumir. A bissexualidade, por sua vez, fica num não-lugar de identificação imediata. Durante muito tempo que se julgou que nem existia – era só uma fase de transição de um mundo para o outro.

Estes mundos apresentam-se numa espécie de sistema binário contrastante, em que a homossexualidade é o contrário da heterossexualidade. A necessidade de desconstruir a expectativa de que todos os relacionamentos são entre um homem e uma mulher, ou que a família se faz exclusivamente através desta relação, resulta nesta dicotomia que tem como intuito dar espaço a formas para além das heteronormativas. Este processo implica a constante politização de identidades e denúncia das dinâmicas de poder que definem o subalterno e o dominador. Mas a bissexualidade não é claramente uma nem outra e por isso fica perdida nesse jogo de poder e de legitimidade. Fica perdida entre o mundo do privilégio heterossexual e o mundo de reivindicação da homossexualidade. Navegar nestes dois mundos possibilita uma complexa posição de conforto e desconforto – e de muita dificuldade de reconhecimento – porque ‘normalmente’ ou se é uma coisa ou outra. A falta de reconhecimento pelo outro heterossexual ou homossexual faz com que sejam exigidas provas à não-monossexualidade.

Porque os bissexuais, se não forem poliamorosos (que podem ser), ou estão numa relação homossexual ou heterossexual – e aí espera-se que preencham os requisitos ou de um ou de outro.

Só que a bissexualidade não é só outra forma incompreendida de viver a sexualidade. Há quem a encaixe nas novas formas de heterossexualidade: é de algum modo expectável (graças à pornografia?) que as mulheres sejam bissexuais. Esta bissexualidade apresenta-se como comportamento sexual que deve ser visto/avaliado/admirado. Ao que a literatura chama de bissexualidade performativa – porque serve de performance ao outro-heterossexual. O que nos leva à questão – será que a bissexualidade está a romper com a perspectiva dicotómica do sexo ou está a dar mais força ao patriarcado? A resposta certa para ajudar a navegar este dilema da bissexualidade terá que partir da definição que lhe damos – só que ela continua invisível. Esta invisibilidade tem criado barreiras na maior congruência entre a identificação da orientação sexual e o comportamento sexual das pessoas. Pessoas tidas como heterossexuais que têm também parceiros do mesmo sexo não se identificam como bissexuais (e vice-versa) porque há dificuldade em mobilizar a bissexualidade para além dos mundos sexuais nossos conhecidos.

A bissexualidade está bastante alinhada com as expectativas de um contínuo sexual, onde as pessoas se poderiam posicionar entre mais heterossexual ou mais homossexual. A proposta inicial do Kinsey e a visão pós-estruturalista e mais sofisticada da teoria queer, tenta apresentar a identidade sexual e de género de forma fluída, contínua e em transformação. Num mundo ideal (um mundo muito mais justo do que o actual) esta fluidez talvez fosse menos complicada de ser entendida e os espaços deste contínuo seriam a única posição possível.

7 Ago 2019

Vulnerável sexo

Importa perceber que significados escolhemos dar ao sexo. Claro que esta escolha influenciará de forma mais óbvia a nossa vida sexual. A pornografia acessível para consumo é um exemplo claro de repertórios sexuais prontos para serem apropriados. Repertórios que às vezes sugerem uma normalidade artificializada na prática – como a normalidade da ejaculação masculina apontada para a cara de uma mulher ou a suposta total ausência de pêlos púbicos dos membros sexualizados. Mas estas transformações alastram-se por nós fora do sexo. Nas relações de poder, nos objectos, nas formas ou nos conteúdos de género. Num jogo de sistemas vemos as transformações do sexo a concretizarem-se na forma como relacionamos connosco e com o mundo, num efeito em cadeia. A pornografia muito provavelmente quererá convencer que o sexo é uma tecnologia, de mecânica particular que obedece aos instintos e que nos dá prazer (e ao outro por mera consequência).
Mas esta objectificação do sexo como simples instrumento de prazer faz-me espécie. Frequentemente esquecemo-nos que, como seres sociais, o sexo é um artifício social e relacional também. Que possibilita (quando assim queremos) acesso a partes de nós de grande secretismo e por vezes de alguma incompreensão. Talvez valesse a pena pensarmos no sexo como acto social também – um acto de intimidade. Nascemos e crescemos (suspostamente) em lugares onde a proximidade é possível e dependemos dela para a nossa sobrevivência. Depois, de forma mais madura, procurarmos esse carinho fora – fora da nossa familiaridade para encontrarmos familiaridade novamente. Esta procura por vinculação adulta pode ser feita através do sexo. Há quem lhe dê a devida importância neste processo, e há quem não lhe dê. O potencial vinculativo do sexo está lá, mas raramente o discutimos. Os mais progressivos falarão do sexo como prazer e bem-estar, mas só os mais românticos falarão do potencial relacional e da forma única de conexão. O sexo como instrumento relacional não será novidade. A psicanálise tentou perceber isso mesmo – o sexo fora do sexo, por assim dizer. Mas percebeu-o na sua forma repressiva, de mão dada com instintos de morte. Talvez nos faltem teorias que mostrem o que há de puro e de bom na possibilidade de termos prazer com o outro. Essa qualidade de beleza e perfeição que é misturarmo-nos fora dos limites da nossa pele. Frequentemente foco-me no sexo biológico e político para alargar os limites aos quais as sociedades e os indivíduos prosperam. Poderia falar de amor, mas o amor chega a ser um lugar comum. Um conceito batido onde tudo é incluído, até esta profundidade relacional que o sexo proporciona – que bem pode existir fora dela. Os corpos, os gemidos e as fragilidades à flor da pele. Deixamos não declarada e não discutida a magia (e o engenho) que é misturarmo-nos com outros. De como o sexo fala sobre um momento de encontro.
Estamos presos a um tipo de ingenuidade que nos cega para uma natural complexidade do sexo que ninguém quer ver – não nos mostra a capacidade destruidora e reconstrutora do sexo ou de como o sexo é fascinante. O sexo como forma de relação, uma forma de encaixar no outro literal e figurativamente. Descobrimos coisas sobre nós próprios que nem sabíamos que existiam ou abrimos portas à intimidade que de outra forma não seriam abertas. A revelação das vulnerabilidades do corpo (e não só) poderiam ser fraquezas, mas são entradas que possibilitam formas sofisticadas de se ser com o outro.

19 Jun 2019

Sui generis

Quando viu o Sidónio nu à sua frente ficou sem jeito e sem capacidade de reacção. Estava farto de ver homens naquele estado, isso não era o problema, bastava olhar-se ao espelho ou ir ao balneário do ginásio, mas assim naquele registo tão íntimo, pronto-a-comer, nunca tinha acontecido. Deixava-o desconfortável. Esta sua decisão de se tornar homossexual ainda não era cem-por-cento consensual dentro de si, tinha ainda as suas dúvidas. Nem todos os seus genes tinham aprovado essas regras em uníssono, por isso caminhava um pouco a medo, em terreno desprovido de qualquer cor. Não, não era nenhum arco-íris, por enquanto. Sempre gostara de mulheres e, apesar de estar a entrar nos cinquentas, era um homem sexualmente bastante activo. Esteve casado duas vezes, a última quase dez anos, com muitas aventuras nos entretantos, mas chegara a altura de sair do armário, como se costuma dizer. Bom, ele nunca tinha estado a viver numa prateleira, tinha a certeza disso, sempre fizera tudo às claras, não tinha nada a esconder. Mas a heterossexualidade também não fazia o seu género, no sentido em que gostava de dar um passo à frente. Era um experimentalista e apetecia-lhe mudar de ares.

A primeira coisa que disse ao Sidónio foi: “vai devagar”. Era um comprimido dos grandes que tinha de engolir. Lembrava-se de quando tinha de tomar coisas assim quando era miúdo. Deitava tudo cá para fora e a sua mãe ficava com os cabelos em pé e gritava com ele. Mas aquele espécime não o atraía minimamente, tinha um ar a dar para o abichanado que o irritava. Sempre o irritou, para ser sincero. Por diversas vezes, em pensamento, tinha troçado um pouco dele, apesar de naquela figura se apresentar com um corpo tonificado e com uma cara laroca. Tratava-se bem, o Sidónio. E até era um gajo porreiro, mas era para ir beber uns copos e apanhar uma grande tosga, não era para estar com o pila dele na boca.

Mas tinha de ser e a ideia até tinha sido sua. Trabalhavam juntos há muitos anos e sempre teve um à-vontade extremo com o Sidónio para falar das coisas, vá-se lá saber porquê. Era um facilitador. E quando começaram a trocar ideias sobre o assunto, de como ele não se importava de experimentar “aquilo”, o colega ficou logo de antenas no ar e mostrou-se híper interessado, convencendo-o de que gostaria de ser a cobaia. Até chegarem a esta situação embaraçosa, não demorou muito tempo. Duas semanas?

Agora, era preciso relaxar e ultrapassar de uma vez por todas o complexo que se tinha atravessado à sua frente, senão não ia conseguir cumprir os seus objectivos. Dantes, quando precisava de se abstrair pensava em matrículas de automóveis. Estava sem recursos. Precisava de uma mão divina. À medida que o Sidónio fazia tenções de o acarinhar ele afastava-se compulsivamente. Dizia: “espera!”, enquanto colocava uma musiquinha a tocar, na esperança de que aquilo ajudasse, criando um ambiente mais propício, não diria ao romance, mas whatever. Queria era ver-se livre daquela situação e prosseguir com a sua vida.

Ele que não era nada esquisito com a comida, comia tudo o que lhe pusessem no prato e gostava sempre de se lançar de estômago alegre para gastronomias desconhecidas. E se as mulheres, de quem ele tanto gostava, o faziam com tanta facilidade, não havia de ser ele que iria agora voltar para trás e desistir. Mas havia ainda a outra parte, o factor essencial para que a contenda desse certo, entre as suas pernas parecia existir uma letargia completa. “49-BO-13”. Na casa-de-banho tinha usado um lubrificante adequado, para não estar a interromper nada mais à frente, o que ainda iria ser pior, e achava que estava preparado, que não ia custar. Já tinha beijado amigos em noites de bebedeira e ali tinha pensado em todos os pormenores, mas estava demasiado tenso, era preciso libertar-se daquele torpor, fosse de que maneira fosse. Então achou que se desse um beijo ao Sidónio, daqueles à antiga, imaginando-se inebriado com uma lufada de vento, talvez tudo se resolvesse. Sim, era isso que iria fazer. Iria abraçá-lo e beijá-lo com estrondo.

Depois logo se veria.

O que aconteceu, em concreto, não sabemos. O que é certo é que deu o grande salto em frente e com naturalidade enfrentou sem encerros a sua nova condição perante a sociedade. Do modo como os colegas de trabalho o entreolharam nas semanas seguintes, só confirmava que o seu outro eu já não era segredo. Mas ele gostava disso. Gostava da assumpção.

Encontramo-lo tempos mais tarde, já com o coração a bater a um ritmo semi-descontrolado. Começara a namorar com um homem, ou era o que ele achava, que aquilo era uma relação à séria. De início, estava confiante que tinha finalmente encontrado o seu primeiro namorado, extremando ainda mais a corda para a sua vida passada. Mas a história tinha outros contornos e revela-se aqui num excerto roubado do seu diário.

“Quando conheci o Eddy ele não me contou a verdade, não me disse que afinal não era bem assim. Conhecemo-nos numa noite, num festival de cinema. Ele fazia parte de uma equipa de produção de um documentário premiado, um documentário sobre a extinção do género, e a partir daí fomos falando quase todos os dias. Até que noutra noite mais acalorada, sem câmaras pelo meio, nos envolvemos de modo íntimo. Aconteceu tudo muito rápido. Bem que lhe meti logo a mão entre as pernas, mas ele afastou-me, dizendo que ainda não. Queria primeiro aguçar-me o apetite, pensei. E quando passámos ao acto em si – já não aguentávamos mais! – baixou as calças e virou-se de costas para mim. Tínhamos trocado beijos clamorosos, ficámos agarrados como duas tomadas, em curto circuito, com as nossas línguas derretidas uma na outra. Tudo corria bem. Todo o meu ser efervescia de paixão. Finalmente, estava com os dois pés no caminho que tinha começado a traçar com o palerma do Sidónio. Mas quanto a esse caso, nem me quero lembrar desse momento, aquilo foi um suplício.

Nunca tive qualquer dúvida quanto ao Eddy. Vira-o de tronco nu e, apesar de profusamente depilado, é uma mania que não pratico, tinha um bonito peito de homem. Seja lá o que isso quer dizer. Eu sei lá, pelo menos foi o que supus. A minha ideia nunca tinha puxado para o outro lado. Quando se vê uma coisa não se vê a outra e o toldo tapa o horizonte por completo. Mesmo depois de ele engolir o auge do meu prazer e continuarmos com aquilo noite fora, eu gritava: ‘Eddy! Eddy!’ E abraçava-o, como se não houvesse mais mundo.

Mas não demorou muito até descobrir a realidade, de que afinal o rapaz por quem me tinha apaixonado era afinal uma mulher. Raios! Não havia como evitá-lo, fiquei estupefacto e chorei. O que me tinha levado a gostar de homens tinha sido uma vontade imensa de experimentalismo e ao dar esse passo queria aprofundar a minha nova postura, assumindo-a. Na verdade, passei a ter uma atracção genuína por pessoas do mesmo sexo, e só por elas, achava eu. Limitava-me a saborear aquela fruta tropical. Agora, parece que me egasguei. Terá sido o caroço? Quando conheci o Eddy, era indiscutível de que ele era um homem. Nem foi tema de que alguma vez tenhamos falado, a dúvida, era tudo claro como a água. Mas a extinção do género tinha ganho um prémio, esse tinha sido o nosso ponto de encontro, e quando deparei com aquilo, não soube como reagir. Uma pessoa ama o indivíduo, para além da inscrição do género, seja ela qual for? O que é isto da sexualidade e do corpo que nos calhou? Depois de tanto esforço, eu não podia andar com uma mulher, ia contra os meus novos desígnios. Ai, Sidónio, eu vi logo que isto não podia dar certo.

Mas eu adoro o Eddy. É uma paixão sem fim, como nunca tinha sentido. E quero passar a vida nos braços dele – dela! – para sempre. E se descobrirem, depois de tanto vergar a corda, que afinal eu não sou homossexual? Também o que me havia de calhar na rifa, o Monsieur Butterfly. Não sei o que pensar, mas também não me interessa saber. Dê por onde der, mesmo sem arco-íris, sigo em frente.”

Ficamos descansados, não há cenas dos próximos capítulos.

13 Jun 2019

Como se fazem os bebés

Uma amiga comentou que fazer sexo e fazer bebés poderão ser encarados como actividades diferentes. Uma coisa é o sexo, outra coisa é fazer um filho. Uma coisa é ter prazer, outra coisa é criar uma família. Há momentos de intercepção também. Mas quem faz sexo porque quer um bom orgasmo, pode ser um depravado. Quem tem filhos é decente. Mas o sexo nunca desaparece dos nossos mundos de significado.

Os pais que procriam em decência, terão que encarar a dura realidade de uma criança que se tornará adolescente e adulto. É preciso falar de sexo em algum momento e de como se quer incluir o sexo na parentalidade. Falar da intimidade é um dever cívico que não se resume a uma conversa do que são pipis ou pilinhas. Nas nuances do sexo e do comportamento sexual existem conceitos confusos. Há necessidade de clarificar emoções e direitos para que certas situações deixem de ser assustadoras ou estranhas. Estes são conteúdos que vão muito além dos métodos contraceptivos que existem e de ‘como se fazem os bebés’. Os conteúdos programáticos das escolas são inflexíveis, simples e de contrastes distintos e limitados. Estes carregam também uma fraca noção do direito à auto-determinação pessoal das crianças e jovens. Como se eles não tivessem nada a dizer, como se eles não pudessem participar na conversa.

Devemos falar de intimidade, consentimento, contracepção e prazer. Mas não há fórmulas perfeitas. Só abrindo espaços seguros e sem julgamento é que é possível explorar a curiosidade natural do sexo. Julgar que se pode controlar os conteúdos sexualizados a que as crianças e jovens têm acesso é pateta. Mais vale oferecer-lhes ferramentas onde eles próprios possam dar sentido às imagens e aos conceitos. Falar sobre sexo pode ajudar, mas impõem-se certos desafios.

Primeiro porque pensar na sexualização infantil/juvenil é difícil. Há um medo premente que conversas sobre sexo motivem a iniciação sexual. Segundo, há demasiada imaturidade sexual por este mundo fora para pensar que a solução passa por simples conversas. Poucos relacionam a obrigatoriedade do sexo – para a propagação genética e perpetuação da vida familiar com o bem último da vida humana – ao prazer dos corpos nus. A parte dos bebés é pragmática, a parte do prazer é polémica. A tensão cai obrigatoriamente na premissa que o sexo fora da procriação é crime – um exemplo bem contemporâneo é o caso do Brunei onde agora o sexo homossexual e o adultério são punidos com pena de morte. Portanto – estamos preparados para falar sobre sexo?

Não. Podemos não falar sobre sexo com os mais jovens? Também não. Falamos como podemos disto de ‘como fazer bebés’ e de como não tê-los. Esticamos os conteúdos para uma conversa sobre sexo cada vez mais informativa para depois percebermos que falar sobre sexo (e género também) é agora visto pelos mais melindrados como uma escolha ideológica. Sexo não é ideologia, sexo é um facto. Este facto de consequências reais precisa de ser apresentado da forma que melhor inclui a diversidade. Porque o sexo não é só sobre fazer bebés, é sobre percebermo-nos a nós próprios e à nossa sexualidade.

10 Abr 2019

Sobre o trabalho sexual

O trabalho sexual continua a ser um tema demasiado sensível e difícil de ser discutido, afinal, como é que se discute a sexualidade (que é difícil por si só) nos tempos neoliberais e dependentes da produção e crescimento económico? Qual é o valor do sexo, e mais importante de tudo, porque é que tudo precisa de ter um valor? Em Macau, o paraíso dos vícios, a prostituição sempre fez parte da sua história e imagética. Lembro-me bem andar pelo Hotel Lisboa e explicarem-me quem eram aquelas pessoas e o que faziam. Com desdém na voz, claro. Porque é raro falarmos sobre a prostituição sem tomar uma posição moralizadora. Não é por ser o posicionamento mais adequado, mas simplesmente – e infelizmente – porque nos é demasiado natural.

Num outro momento explorei a importância de distinguir o trabalho sexual com o abuso e exploração sexual – que de bem verdade, em muitos casos co-existem. Esta confusão é legítima em certos contextos, mas não o é em muitos outros. A análise do trabalho sexual tem que ser sensível que este ramo de negócio pode ser uma escolha. Há quem queira vender a sua sexualidade para fazer dinheiro – no mundo em que o dinheiro é a única coisa que nos vale para vivermos uma vida digna. A lógica mercantil que está enraizada nas nossas vontades, espíritos e comportamentos é tão profunda que moralizamos a suposta falta de dignidade que é vender o sexo ou o corpo – mas nunca moralizamos a falta de dignidade que o pouco dinheiro proporciona. Porque aí já entra a lógica meritocrática de que ‘quem não tem dinheiro é porque não fez o suficiente para o ter’. Se se vende sexo ou outros serviços sexuais é porque a comercialização de quem somos é uma pré-condição para sobrevivermos no mundo contemporâneo. Por isso é que me parece hipócrita que os moralizantes do trabalho sexual usem a falta dignidade como justificação última para censura e criminalização deste, mas não o façam para criticarem quem, ou os mecanismos, que perpetuam a lógica económica da vida humana.

Agora – eu também acho que é preciso muito cuidado com esta linha argumentativa. Porque apresentando o mundo comercializado e opressor em que vivemos, o único em que faz sentido vender o sexo, o trabalho sexual pode ser visto como a inevitabilidade de uma escrava condição deste sistema. E isto parece-me ser uma visão demasiado simplista do que é o trabalho sexual, porque também o vitimiza. Lá pelo trabalho sexual ser sintomático de um sistema neoliberal que nos obriga a vender o corpo para pagar, por exemplo, as propinas da universidade (como já aconteceu com muito boa gente), talvez seja melhor vermos para além disso. O trabalho sexual não pode ser sinónimo de exploração sexual, nem quando o sistema é o opressor. É necessário proporcionar um espaço de emancipação para que mulheres e homens escolham a carreira que lhes faça sentido. E que estas escolhas laborais tenham condições dignas de trabalho.

Na era da comunicação e partilha, em que as redes sociais dão voz a quem pode tê-la, estive há dias a passar pela conta de instagram de uma stripper que é bastante honesta acerca das tensões que existem à volta do tema. Fiquei seriamente incomodada pela forma como até os seus clientes se posicionam desta forma moralizadora – vitimizando-a ou repreendendo-a. Uma conversa séria e activa envolvendo quem de facto é trabalhador sexual faz falta. Acho que passamos muito tempo a discutir de formas demasiado exclusivas, não envolvendo as pessoas a quem estes temas dizem directamente respeito. Parece-me natural que se pense nos direitos e protecção que este trabalho – que gera imenso dinheiro – precisa e exige.

Se em Macau foram registados 21 crimes de exploração de prostituição até Outubro de 2018 – um crescimento que veio contrariar a tendência decrescente dos últimos anos – é necessário reflectir sobre o que estes números querem dizer. Afinal, como é que o sexo é vendido em Macau, e em que condições? Qual é a expressão de outro trabalho sexual no território? Existirão formas de contornar esta lógica de criminalização – para melhor compreender as experiências do trabalho sexual em Macau?

16 Jan 2019

Gino-fobia

Uma tentativa falhada de neologismo, ou talvez nem tanto.
Estou na sala de espera do hospital, à espera de uma consulta. Estou à espera há imensas horas, porque aconteceu eu ter uma vida e atrasar-me. Se calhar atrasei-me de propósito. O que interessa é que puseram-me no final da fila e agora tenho, quantas, uma dezena de vaginas à minha frente? Não sei, estou à espera há duas horas para a minha ser ‘inspeccionada’ ou verificada, nem sei que verbo é o mais adequado. Não sei porque é que as pessoas à minha volta têm um ar tão relaxado – serei só eu a irradiar tensão e desconforto?

Quem é que no seu perfeito juízo quer tirar as cuecas, deitar-se de costas, abrir as pernas e deixar um estranho mexer-lhe nas parte íntimas? Mesmo que seja um estranho de bata branca, continua a ser um estranho. A verdade que esta é a segunda vez na minha vida que estou numa sala de espera para ver um ginecologista. A primeira foi há dez anos atrás e a coisa correu muito mal. Prometi a mim mesma que não voltaria. O raio da Gineco era bruta como tudo, e por isso acho que… traumatizei. Daí o pobre neologismo no título, que, na verdade, quer dizer ‘fobia de mulheres’. Não é bem o caso, tenho é medo da Ginecologista.
Esta não é a minha história, tenho outra(s). Mas o medo não é incomum: pessoas detentoras de vaginas que tomam calmantes, pessoas que têm que respirar fundo e outras que estão absolutamente tranquilas com toda a experiência. Há imensos factores que podem moldar esta ida – extremamente importante à saúde feminina – à Gineco. Primeiro, a relação paciente e profissional de saúde é uma relação que pode ser complicada. Uma das razões é que nós temos um corpo que o sentimos, mas o outro é que percebe mais sobre o nosso corpo, apesar de não o sentir. Digamos que é uma experiência muito pouco participativa.

Há quem tenha problemas com essa dinâmica e há outros que não. O cerne da questão é que temos que ter a sorte em arranjar um bom médico que nos ouça com atenção – daí as pessoas detentoras de vaginas procurarem recomendações. Segundo, continuamos a anos luz de perceber bem a saúde feminina, aqui no reino do conhecimento diário e mundano. Há coisas do conhecimento técnico que não passam para o reino dos comuns mortais. Vivemos com a sombra do cancro que nos assola frequentemente – e por isso a insistência em campanhas de sensibilização para se tomarem medidas e rastreios como mamografias e citologias. Mas há tantas outras condições que podiam ser mais discutidas. Como por exemplo HPV (e as suas verrugas vulvares), herpes genital, cândida, vaginites e vaginoses.

Ir ao médico ginecologista regularmente é extremamente importante porque o nosso corpo detentor de vagina – cíclico – passa por muitas transformações e desafios ao longo do tempo. Mas para quem tem medo de ir, há vários dilemas que se criam. O que é que é melhor? Eu não encarar a condição da minha vagina ou submeter-me a uma carga de nervos aterrorizadora? Parece uma decisão simples, mas percebo perfeitamente que não seja.

Acho que o primeiro passo é compreender este terror. Há imensa gente que tem medo de ir ao dentista. Mas por alguma razão, fala-se mais disso do que do medo da Gineco. Uma pesquisa rápida em bases de dados em artigos científicos mostra-me que há mais literatura desenvolvida sobre o medo do dentista, do que o medo do Ginecologista – que sugeriu zero resultados. O medo do urologista também sugeriu zero resultados – apesar de ser a especialidade mais odiada pelos homens. Parece-me bastante natural que estas idas a especialistas do órgão sexual reproductor não sejam fáceis pelo simplesmente facto de já ser difícil falar sobre o sexo, educação sexual, direitos sexuais e reprodutivos no espaço público. Tenho cá para mim que talvez deva ser um tópico mais discutido, se não for na academia, que seja entre amigos ou com profissionais de saúde. A ‘ginecologio-fobia’ será real?

22 Nov 2018