Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteBen Lee, analista de jogo, sobre as novas concessões: “Precisamos de algo grandioso” O analista de jogo e consultor Ben Lee acredita que é preciso fazer muito mais para diversificar a economia de Macau para lá do jogo, sobretudo tendo em conta o tipo de eventos organizados ao abrigo das novas concessões. O analista acha que Macau poderia olhar para dois resorts no Vietname como exemplos a seguir para atrair turistas internacionais Que balanço faz dos dois anos de novas concessões de jogo? Ainda há muito trabalho a fazer. Pelo que pudemos ver até agora, as concessionárias concentraram-se em projectos mais ligeiros, como galerias de arte locais, eventos culturais, a realização de concertos e pequenas reabilitações de bairros culturais. Os grandes projectos, como o parque de diversões de alta tecnologia, o Conservatório ou novos hotéis ainda não foram vistos. Uma vez que já passaram dois dos dez anos [de concessão], e tendo em conta que a construção de alguns destes projectos deverá demorar vários anos, parece que será necessário adiá-los. As receitas do segmento não-jogo, em percentagem de receita bruta obtida pelas concessionárias, parecem ser superiores às de 2019, mas diminuíram nos últimos dois anos. É possível que voltem nos próximos dois anos a situar-se entre os 10,5 e 11 por cento verificados em 2019. Recentemente, Ho Iat Seng agradeceu às concessionárias o cumprimento dos contratos e a colaboração no desenvolvimento do segmento não-jogo, reiterando que conseguiram obter alguns lucros durante a pandemia. Acha que foi justo nas suas palavras? Os casinos estão a fazer esforços para desenvolver o segmento não-jogo, mas, mais uma vez, a maior parte desses esforços estão focados em eventos mais ligeiros, de menor nível. Não vemos grandes ideias como a esfera de investimentos de 2,3 mil milhões de dólares que vemos em Las Vegas, por exemplo. Se tal acontecesse, iria enquadrar-se facilmente nos compromissos de 15 mil milhões de dólares prometidos pelas concessionárias [aquando da assinatura dos novos contratos]. Poderíamos falar também da ideia de fazer uma competição de Fórmula 1 na rua, como se viu em Singapura e recentemente também em Las Vegas. Como analisa a recuperação das operadoras em termos de receitas do jogo nos últimos meses? A recuperação do jogo em Macau tem sido extremamente boa, prevendo-se que o sector recupere para cerca de 78 ou 79 por cento dos níveis registados em 2019. A Sociedade de Jogos de Macau (SJM), por exemplo, foi uma das operadoras de jogo com maiores dificuldades em termos de cash flow durante a pandemia. Considera que a sua recuperação, em comparação com os outros cinco, foi positiva? A SJM teve dificuldades no início, mas parece estar, finalmente, a fazer alguns progressos. Mas ainda terão alguns desafios para reposicionar o seu “hardware” [instalações e demais empreendimentos] no futuro. O que podemos esperar do novo Governo de Sam Hou Fai para a área do jogo? O Chefe do Executivo eleito parece estar a tentar garantir que as operadoras honrem os seus compromissos. Os seus dois mandatos irão, provavelmente, cobrir os próximos oito anos das novas concessões. Penso que, em última análise, tudo se vai resumir a saber se ele consegue motivar os vários aparelhos governamentais a executar a sua visão e missão. No âmbito dos novos contratos, como vê a evolução global do sector do jogo? Em 2019, a percentagem das receitas do segmento não-jogo em comparação com as receitas do jogo atingiu 10,5 por cento. Essa percentagem subiu para 22 por cento durante a covid-19, e desde então tem caído gradualmente para 13,5 por cento, segundo dados do terceiro trimestre deste ano. Essa percentagem vai continuar a diminuir à medida que as receitas de jogo continuarem a crescer. Nos últimos tempos, temos visto os residentes de Macau e Hong Kong a dirigirem-se para o norte [China] para pouparem dinheiro. A questão que se coloca é porque é que os habitantes do continente iriam descer e fazer o inverso? A solução, tal como prevista pelas autoridades, é que Macau precisa de diversificar o mercado [de turistas e jogadores] que vem do continente. Isso faz todo o sentido em termos de lógica, mas a realidade é que os nossos esforços parecem estar a regredir. Os visitantes provenientes de fora da grande China representavam 7,8 por cento do total de visitantes de Macau, mas diminuíram para 6,5 por cento até final de Setembro deste ano. Isto remete para os eventos de cariz ligeiro que têm sido organizados que, de longe e em grande parte, são realmente orientados para os chineses que, afinal, constituem a maior parte da nossa fonte de receitas. Como se pode dar a volta a esse panorama? Voltando ao início, penso que precisamos realmente de algo grande, icónico, semelhante à esfera que se vê em Las Vegas ou até mesmo algo parecido com o projecto da “Ponte Dourada” em Da Nang, digna de aparecer no Instagram, ou a “Ponte do Beijo”, em Phu Quoc, ambos no Vietname. O facto de estes projectos terem sido construídos por um grupo local ligado ao sector hoteleiro, sem qualquer ligação aos lucros provenientes do jogo, demonstra criatividade e perspectiva de longo prazo em termos de planeamento. Luta de classes Ben Lee alertar para o perigo de mercado de massas “fugir” de Macau A conversa com Ben Lee surge no contexto de uma palestra que protagonizou, recentemente, sobre os dois anos das novas concessões de jogo. Promovida pela Câmara de Comércio França-Macau, a sessão teve como nome “Macau New Gaming Landscape: Two years into concessions, what now?”, tendo o analista e sócio-gerente da IGamiX Management & Consulting defendido, segundo o portal Asian Gaming Brief (AGBrief), que o jogo VIP não terminou por completo, estando assim a ser alvo de uma nova classificação. Segundo o AGBrief, citando palavras de Ben Lee, “o jogo de massas incorporou o mesmo escalão [de jogadores] que foi tão abertamente criticado pelo Governo”, mas que as operadoras “estão a mudar o seu foco para o acomodar”. O analista realçou o “recente foco na transformação de quartos de hotel mais antigos e pequenos em opções de luxo, com todas as operadoras a compreender a necessidade de obter qualidade em vez de quantidade”. Porém, defendeu que “o foco no segmento de luxo continua a criar um impasse”, pois “há muito que Macau se concentra em aumentar o número de visitantes para poder aumentar as receitas”, mas o modelo de negócio “vai contra a necessidade de aumentar as despesas por pessoa”. Ben Lee alertou também para o facto de muitos turistas poderem, de facto, começar a optar por outros destinos com preços mais em conta. O analista defendeu que os jogadores de massas “não podem ser ignorados”, pois continuam a ser “o principal motor” do sector. “Os preços exorbitantes dos quartos de hotel podem constituir uma ‘barragem’ para o aumento de visitantes”, pois, conforme sugeriu, “os apostadores podem ir para outros locais de férias, como a Tailândia, se o preço não for bom”. Este país asiático “está a crescer e espera-se que ultrapasse Singapura em termos de receitas brutas”, numa altura em que os tailandeses trabalham na nova legislação sobre o jogo. “Esperam aprovar a sua lei do jogo em Maio do próximo ano. Partindo do princípio que isso acontece, há três a cinco anos para construir um resort integrado ou empreendimento. Poderão estar a funcionar consideravelmente antes da abertura do Japão”, indicou Ben Lee. Ainda em relação ao mercado de jogo na Ásia, o analista destacou que os apostadores asiáticos irão concentrar-se nos futuros mercados de jogo da Tailândia e Japão “enquanto aproveitam as actuais ofertas em Macau, Singapura e Filipinas”, escreveu o AGBrief.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteMiguel Gomes, realizador: “O cinema não é um tribunal” Molly e Edward têm casamento marcado, mas na hora de ir buscar a noiva ao comboio, Edward decide fugir, iniciando a “Grand Tour” pela Ásia. A película é um dos filmes de Miguel Gomes exibido no Festival de Cinema entre a China e os Países de Língua Portuguesa, que está a decorrer até 13 de Dezembro, dia em que é exibido “Grand Tour” É um dos realizadores em foco neste festival de cinema que decorre em Macau. Como se sente pela oportunidade de mostrar o seu mais recente filme, “Grand Tour”, nesta região? Poder mostrar o filme em qualquer sítio do mundo é sempre um objectivo para alguém que quer fazer filmes, pois estes só existem a partir do momento em que são vistos. O filme tem uma relação com a Ásia e a China. Foi comprado para Hong Kong, e não sei se será exibido comercialmente no território e quais são os planos dos distribuidores. Independentemente deste festival em Macau, o filme terá visibilidade nessa parte da China. O filme é uma homenagem ao cinema antigo, pelo menos foi assim que o encarei. Não. Acho que o cinema não precisa de ser homenageado, pelo facto de a história do cinema ser um património que homenageamos vendo-a. É muito importante que essa memória continue a fazer parte das nossas vidas e que os filmes possam ser exibidos. Em Lisboa temos a sorte de ter uma cinemateca muito competente e forte e que cumpre essa missão. O cinema de hoje está vivo, apesar de não ter um papel social tão forte como teve no século XX, e acho que não precisa de homenagens. O “Grand Tour” é um filme de hoje, mas digamos que tem a memória de outros filmes que foram feitos. Não pretendo homenagear o cinema, mas sim explorar o potencial que ele tem, fazendo duas coisas muito diferentes. Quais são? Uma delas terá a ver, de facto, com a história do cinema e do seu património histórico, que ligo ao trabalho em estúdio. Isso é uma coisa que o cinema fez muito, inventar mundos que não são o nosso mundo real. Por outro lado, quis captar a realidade, pois o cinema também tem esse potencial de colocar a câmara à frente de pessoas, filmar acontecimentos, lugares e poder registar isso. Quando me refiro a essa homenagem ao cinema antigo refiro-me à presença de uma certa maneira de filmar que já esteve em voga. Queria misturar elementos cinematográficos antigos e contemporâneos? Queria trabalhar com a Ásia fabricada, que nunca existiu, que o cinema criou. Com a visão ocidental da Ásia. A visão que os americanos e europeus criaram. Grande parte do cinema americano foi inventado por europeus, gente como [Josef von] Sternberg, que saiu da Alemanha e terá sido o expoente máximo de um autor de cinema que trabalhou com uma imagem da Ásia romantizada. E filmou em Macau, inclusivamente. [O filme “Macao”, de 1952] Exacto. Queria trabalhar com esse imaginário, tentando criar um diálogo em que pudéssemos sair para fora do estúdio e estar numa Ásia que correspondesse a um tempo colonial em muitos daqueles países, mas que depois, noutros momentos, pudéssemos estar num tempo presente. Esse tempo seria o futuro das personagens, já num outro tempo histórico pós-colonial. “Grand Tour” era o nome dado ao percurso que então muitos ocidentais faziam para descobrir uma certa Ásia. Para fazer o filme presumo que tenha sido necessária alguma pesquisa histórica. Como foi esse processo? Não lhe chamaria uma pesquisa muito profunda, porque não era esse o objectivo. [O “Grand Tour”] não é um filme de cariz sociológico, é uma fantasia de cinema. Está mais desse lado do que do lado sociopolítico, digamos assim. O ponto de partida foram duas páginas de um livro de viagens [o conto ‘Mabel’, de W. Somerset Maugham], que nos deram esse itinerário. A situação descrita [no conto] corresponde àquilo que vemos no filme, com um casal de noivos, com ele a viver na Birmânia e ela a regressar de Londres. Ele entra em pânico e foge no dia em que é suposto ir buscá-la ao cais de Rangum. O casal faz então esse itinerário, sendo que no livro ela consegue apanhar o noivo e casam-se, mas no filme é diferente. Presumo que seja difícil comparar filmes. Mas entende que o “Grand Tour” marca uma viragem na sua carreira relativamente a produções anteriores? Acho que não. É um filme pessoal, como todos aqueles que tive oportunidade de fazer. É pessoal no sentido em que não me foram impostas limitações ou qualquer caderno de encargos do produtor. Pude fazer exactamente o que queria. Vejo elementos comuns deste filme a outros que fiz. Acho que se insere numa continuidade do meu trabalho. Houve depois a questão da recepção do filme e do facto de ele ter ganho um prémio em Cannes [o de Melhor Realizador], o que obviamente me ajuda a continuar a trabalhar e ter uma receptividade mais favorável neste momento. É um grande reconhecimento. Antes de fazer este filme estava a tentar fazer outro no Brasil, uma adaptação do livro de Euclides da Cunha, “Os Sertões”, e é um projecto complicado, que envolve uma grande logística de produção. No período em que estava a tentar fazer o filme foi difícil [continuar] por várias razões, e uma delas chama-se Jair Bolsonaro [ex-Presidente do país]. Hoje estamos a retomar esse processo, de voltar ao filme. Houve uma altura de desânimo, em que pensei que tinha mesmo de abdicar do projecto, e hoje o processo de refinanciamento do filme está a avançar muito mais rapidamente. As perspectivas são mais animadoras. Sente que o prémio ganho em Cannes é também do cinema português? Espero que sim. Da minha parte, não tenho dúvidas de que aquilo que faço devo-o ao esforço de outros realizadores que filmaram antes de mim, e alguns deles continuam a fazê-lo. Eles tiveram de se confrontar com as características do nosso mercado e sociedade, conseguiram filmar num país onde não há indústria porque não há mercado para isso. Tiveram de lutar muito para poder filmar e fazer os filmes que fizeram. Reconheço uma experiência de identidade nesses filmes, revejo-me nisso, apesar dos filmes serem todos muito diferentes. Há, de facto, essa identidade na história do cinema português, talvez a partir dos anos 60, com o Cinema Novo, com produtores e realizadores que lutaram muito para poderem filmar. Fizeram filmes que, para mim, são muito importantes. Hoje em dia, com o sistema criado com a luta deles, é mais fácil para mim e para os meus colegas do que terá sido nos anos 60 e 70. As condições políticas também eram outras, com menos investimento. As condições políticas foram mudando ao longo do tempo, mas a vida deles também não foi fácil a seguir ao 25 de Abril de 1974. A forma como o cinema português se conseguiu impor e ganhar espaço para que existisse foi sendo travada em tempos históricos e interlocutores diferentes. E foi difícil. Voltemos ao “Grand Tour”. Disse numa entrevista que a rodagem do filme foi “surrealista”. Que momentos que destaca dessa fase? Quando disse isso referia-me a um momento específico da rodagem, na China, que foi muito surrealista. Esta ocorreu a milhares de quilómetros, estava em Lisboa porque não conseguia entrar no país por causa da covid-19. Depois de dois anos de espera para poder filmar, decidi que a única forma de fazer o filme seria ter uma equipa chinesa e eu estar em Lisboa e fazer a rodagem à distância. Estava num Airbnb no Areeiro, rodeado de monitores e a discutir aquilo que se deveria filmar com a equipa chinesa. Aí foi tudo muito surrealista, sim. Alguma vez teve medo de não conseguir captar a essência do lugar, da cultura asiática, tendo em conta todas essas condicionantes? Achava que a coisa não ia funcionar. Desconfio muito da técnica, sou bastante analógico, e achava que não ia funcionar. Para resultar tinha de ter a imagem em directo, dar um “acção” e um “corta” em tempo real, que pudesse ter a imagem geral, o que estava à volta no lugar além da imagem da câmara. Precisava de ter um sistema de comunicação que funcionasse com o director de fotografia e o responsável de câmara para lhe poder dar indicações na altura em que estávamos a filmar. Isso tudo foi possível, e fiquei espantado com isso. Por outro lado, a ideia de captar a essência do lugar, ou uma coisa mais profunda da cultura de um destes países, neste caso na China, parece-me um fardo demasiado pesado. Não era essa a minha intenção no filme, porque é algo impossível. Acredito que um filme é sempre o resultado de uma negociação entre alguém que olha e aquilo que existe para ser olhado. Há um lado subjectivo. Aquilo que nos interessa, que nos apela, que dialoga connosco e nos suscita o desejo de filmar pode existir na China, no Vietname, em África ou aqui na esplanada do café onde estamos. Parti para a Ásia como parti para a zona de Arganil para fazer um filme anterior, “Aquele Querido Mês de Agosto”. Numa aldeia. Sim, uma zona rural de Portugal, e não sei se olhava de maneira diferente numa situação ou outra. Há sempre qualquer coisa que acho bonito ou que me toca de maneiras diferentes. O que se passa em “Grand Tour” é uma série de desencontros, o do casal, mas parece-me que há também um desencontro entre aquelas personagens europeias na relação com o território. Parece que estão sempre desconectados do espaço onde habitam. Vivem um bocado numa bolha. Mas o colonialismo também foi um pouco isso. Sim. Concordo, acho que há pessoas que podem ver isso no filme, essa dissociação entre aquilo que as personagens estão a viver e aquilo que se passa em redor delas. Muitas vezes optámos por não traduzir o que se passava à frente deles para que o espectador ocidental possa estar tão intrigado e perdido como as próprias personagens. Também acho que, hoje em dia, há uma ideia, da qual discordo totalmente, que o cinema existe para corrigir a história e as injustiças todas do mundo. É também tarefa demasiado pesada para o cinema. Parece-me profundamente desajustado, porque o cinema não é um tribunal para julgar nem um espaço para punir espectadores e personagens, é outra coisa. Os filmes não têm de ser denúncias, prisioneiros de uma expectativa. Tentei fazer um filme onde a questão colonial pudesse ser tratada, mas sem ter de punir nem os espectadores, nem as personagens. Qual era a sua relação com a Ásia ou a sua ideia de Orientalismo? Quis trabalhar a ideia de que houve uma Ásia inventada e fabricada pelo olhar europeu, e tinha consciência que isso existiu e que tinha de trabalhar com isso no filme. O mundo da ficção, por outro lado, tem como uma das vertentes essa ideia de exotismo, independentemente da questão sociológica, de ter havido um olhar ocidental sobre o Oriente, quase como uma visão superficial desse mundo. Mas a ficção trabalha com estereótipos, e isso não é mau. É o cimento para depois fazer qualquer coisa com esses estereótipos. Miguel Gomes na Cinemateca Depois da primeira exibição ontem de “Aquele Querido Mês de Agosto”, a Cinemateca Paixão será o local para ver os filmes de Miguel Gomes seleccionados para a edição deste ano do Festival de Cinema entre a China e os Países de Língua Portuguesa. No próximo dia 8 é vez de “As Mil e Uma Noites – Volume 1, O Inquieto”, de 2015; seguindo-se “As Mil e Uma Noites – Volume 2: O Desolado” na terça-feira dia 10. Segue-se depois, na quarta-feira, 11 de Dezembro, o episódio da saga, com o nome ” As Mil e Uma Noites – Volume 3: O Encantado”. “Grand Tour” tem uma única exibição na sexta-feira, 13 de Dezembro.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteVera Paz e Ricardo Moura, directores “D’As Entranhas”, sobre “Home Sweet Home”: “Mais ácido que doce” A peça “Home Sweet Home”, uma produção da companhia d’As Entranhas, é apresentada hoje e sábado no Centro Cultural de Macau. Em entrevista ao HM, os directores artísticos Vera Paz e Ricardo Moura falam de um projecto sobre a mulher, a solidão, o espaço interior de cada um e os confrontos emocionais com que nos deparamos Como surge o projecto “Home Sweet Home”, que tem uma grande ligação à literatura portuguesa, com textos de Adília Lopes, Maria do Rosário Pedreira ou Dulce Maria Cardoso? Vera Paz (VP): Este espectáculo surgiu na pandemia, era para ter sido feito antes, a ideia surgiu quando estávamos todos confinados. Por várias razões o “Home Sweet Home” não foi executado na altura. É sobre uma mulher confinada em casa, que é uma casa prisão, um espaço íntimo e privado. Há uma transmutação desse universo [literário]. A escolha da Adília [Lopes] partiu sempre da obra dela, e depois temos a Dulce Maria Cardoso, que escreve sobre o lugar da mulher, com sentimentos e perdas, que é o que me interessa. [A peça] fecha um de três solos, que começa com o espectáculo “Medeia” [apresentado em 2020], depois “A Boda” [apresentado em 2021] e agora temos, em “Home Sweet Home” a completa solidão. A dramaturgia foi feita cozinhando os textos com estas obras, sendo uma ficção biográfica do meu universo como mulher e uma reconstrução das memórias da mulher na peça. Ricardo Moura (RM): No meu caso fui confrontado com o texto quase no final. No processo de construção do texto, nas últimas semanas, temos transformado algumas coisas e feito algumas mudanças. Adorei o texto e gosto do universo das mulheres. É sempre um desafio tentar entrar na vossa cabeça e pensar como se podem fazer as coisas. Idealizei logo uma série de imagens que, na minha cabeça, faziam sentido. VP: A mulher de “Home Sweet Home” é uma construção de várias. Mas mais do que uma peça sobre mulheres e o universo feminino, é uma peça sobre a configuração humana, o tempo, o que fica, o que vai e o que perdemos. RM: Esta é uma mulher que está fechada numa casa, mas essa casa somos nós. É sobre o processo de mergulharmos em nós e perceber que, muitas vezes, o que acontece é que estamos fechados em nós próprios. Ainda é mais interessante porque desde 2020 temos vivido a solidão das pessoas, que tentam fugir para a frente, com recurso às redes sociais, do “wannabe”. Aqui, nesta peça, é o inverso, o tentar mergulhar na densidade de uma mulher e perceber como está fechada. Não queremos contar nenhuma história nem deixar uma mensagem, mas simplesmente contar um pedaço daquela pessoa. Esta peça é escrita por mulheres e feita por uma mulher, mas eu vejo esta questão de forma transversal, com homens e mulheres, pobres e ricos que passam por estas “prisões”. Às tantas, somos nós a nossa própria prisão. Home sweet home antonio mil-homens VP: Nunca sabemos o que se passa no espaço íntimo de uma casa, mas no caso deste espectáculo é um espaço-prisão, do qual ela nunca consegue sair. RM: Mas o não sair dali não é uma coisa física. Não consegue sair das suas memórias, coisas, daquilo que gostaria de ter sido e feito, mas que não aconteceu. Tendo em conta o adiamento da apresentação de “Home Sweet Home” ao público, como foi a evolução do projecto? VP: Na pandemia tínhamos bastantes restrições, não conseguia ter os actores ou os encenadores em Macau. Mas o distanciamento [temporal] foi bom, porque na altura estávamos muito em cima do que estava a acontecer, e assim conseguimos ter uma certa respiração. O texto foi alterado, transmutado e foi sendo acrescentado, porque tinha uma certa dinâmica que agora já não fazia tanto sentido. Às tantas, a voz desta mulher é a mistura das vozes das mulheres [dos textos de Adília Lopes, Dulce Maria Cardoso e Maria do Rosário Pedreira], mas não se trata de um texto clássico com princípio, meio e fim. Não se percebe o que é da Adília Lopes ou da Maria do Rosário Pedreira, por exemplo. RM: Nos ensaios, no dia-a-dia, vamos alterando coisas. É o nosso processo de construção. Nós, na nossa companhia, temos uma linha de espectáculo que queremos desenvolver, e que se baseia na ideia de que antes de começar já começou, e quando termina é como se continuasse. Poderíamos continuar numa espécie de espiral. “d’As Entranhas” é a única companhia a fazer teatro de matriz portuguesa em Macau. Quais têm sido os maiores desafios? VP: É difícil. Somos a única companhia, ou associação, que, em Macau, faz teatro em português. Não traduzimos as peças porque o espectáculo não é só o texto, mas também a música. Há uma parte plástica muito marcada, é uma obra viva que é muito visual. O facto de assumidamente não traduzirmos as peças faz com que às vezes não seja [fácil]. A comunidade portuguesa em Macau é cada vez mais pequena, mas queremos continuar e vou continuar a insistir. Para este espectáculo integrámos dois actores da companhia em Portugal. Não é fácil a distância, e as pessoas têm as suas vidas. O Ricardo desenvolve projectos pontuais em Portugal, e tentamos manter um intercâmbio. Em 2018 fizemos uma parceria, mas com a pandemia ficámos num hiato imenso. Para o ano iremos continuar com dois projectos, com actores de Macau e de Portugal, e queremos manter este fio condutor. RM: Os nossos espectáculos vivem muito de um lado mais plástico, com imagens e emoções e daquilo que os actores provocam em nós. Se não existisse texto também seria possível fazer o espectáculo. Às vezes, as pessoas têm medo de arriscar e vir ao espectáculo por causa da barreira linguística. Nos anos em que não pude vir a Macau mantivemos a parceria e desenvolvi uma coisa que nos interessa, que é a junção de culturas. Os projectos que a Vera pensa desenvolver no futuro próximo giram muito em torno disso, em juntar actores de cá e lá. Agrada-me perceber como, face a um tema que queremos tratar, as várias culturas se juntam. Gostaria de trabalhar por Macau num futuro próximo. O próximo espectáculo vai ter bastantes pessoas. Home sweet home Como vai ser, em termos concretos? VP: Programei, para o próximo ano, um dueto com dois actores de Portugal e um colectivo, e vai ser uma espécie de baile. Como tem sido a ligação “d’As Entranhas” com os restantes grupos de teatro em Macau, de matriz chinesa? VP: Não tenho forma de chegar aos grupos de teatro chineses. É difícil a barreira e estão fechados nas suas próprias coutadas. Não há associações profissionais, é tudo amador, não existe uma continuidade. Há cada vez mais grupos de teatro com experiência, mas não existem companhias profissionais em Macau. Temos a Comuna de Pedra, a única, creio, que se dedica inteiramente a projectos culturais. Depois temos o Conservatório, existem iniciativas, mas não há uma profissionalização do sector. Este espectáculo terá algumas limitações em termos de idade. Alguma vez sentiram alguma pressão do Governo em relação aos conteúdos das peças que apresentam? VP: Este ano, pela primeira vez, a Comissão de Classificação de Espectáculos [do Instituto Cultural] pediu-nos o texto e classificou a imagem do espectáculo, que está aconselhado a maiores de 18 anos e interdito a menores de 13. Mas isso tem mais a ver com a linguagem do que com a imagem. Não sinto pressão. O que sinto é que existe um maior cuidado da parte de quem financia para perceber o que de facto vai financiar. Porquê o nome “Home Sweet Home”? VP: Não é um lar nada agradável. O nome original do espectáculo era “Estar em Casa”, com referência à obra de Adília Lopes. Depois adaptei, mas na verdade é mais “Home Bitter Home”, mais ácido que doce. É um nome enganador, mas não tem de ser tudo explicativo e taxativo para as pessoas. Pensei na ideia de que, quando estamos sozinhos, só nós é que sabemos, e o nome remete para isso. Tem várias leituras, e nunca gostamos de dar uma só leitura, para permitir que as pessoas criem as suas próprias histórias. RM: Para mim, o título surge como a ideia de “meu querido espaço”, o meu querido eu. O processo de isolamento das pessoas pode não ser mau e, às vezes, podemos perceber que temos uma fase boa em que somos nós próprios.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteAntónio Branco, investigador da área da inteligência artificial: “Macau pode liderar” Docente da Universidade de Lisboa, e cientista da área da inteligência artificial e processamento de linguagem natural, António Branco está em Macau para o 9º Encontro de Pontos de Rede de Ensino de Português como Língua Estrangeira na Ásia. O académico considera que Macau pode liderar no desenvolvimento de ferramentas de inteligência artificial Quais os riscos e oportunidades do uso da Inteligência Artificial (IA) generativa no ensino de línguas? É sobejamente conhecido que as novas tecnologias trazem benefícios que anteriores tecnologias não conseguiam assegurar, mas sabe-se também que a introdução de novas tecnologias tem o potencial de aprofundar a desigualdade entre os seus utilizadores se tal efeito não for mitigado com contramedidas. A tecnologia da IA, e em concreto na sua aplicação ao ensino da língua, não é excepção. Tem o potencial de fazer avançar mais rápida e eficazmente a aprendizagem da língua, mas estudos recentes vêm mostrar que pode também levar os alunos a uma desvantagem, que é o facto de não conseguirem ultrapassar essas suas desvantagens se não existir a devida mediação pedagógica na exploração destas tecnologias. Desta forma, que medidas devem as escolas adoptar para melhor se adaptarem a este salto evolutivo? Guardadas as devidas distâncias, ainda assim pode ajudar a analogia com o que aconteceu há cerca de duas décadas atrás, com o advento das novas tecnologias digitais e da internet. Nessa altura, e desde então, uma medida das mais importantes tem sido dar formação aos professores para que melhor possam tirar partido da tecnologia. Com o recente advento da IA, um novo impulso de formação dos professores é imperativo. Além do trabalho como investigador, é também director-geral da PORTULAN CLARIN. De que se trata concretamente? É uma Infraestrutura de Investigação para a Ciência e Tecnologia da Linguagem e pertence ao Roteiro Nacional de Infraestruturas de Investigação de Relevância Estratégica, sendo o nó nacional [em Portugal] da infra-estrutura internacional CLARIN ERIC. A sua missão é apoiar investigadores e inovadores, mas também professores e estudantes da língua cujas actividades dependem de resultados da Ciência e Tecnologia da Linguagem através da distribuição de recursos científicos, do fornecimento de apoio tecnológico, da prestação de consultoria e da disseminação científica. Os serviços de processamento da língua, por exemplo o conjugador ou os analisadores sintáticos, são disponibilizados gratuitamente e podem ser facilmente experimentados online na bancada da infraestrutura. Assim, fazem parte do portfólio de novos instrumentos de apoio ao ensino e aprendizagem da língua. Está em Macau para participar num colóquio focado no ensino de português como língua estrangeira. Poderia o território tornar-se numa zona experimental para o desenvolvimento deste tipo de plataformas digitais? Macau beneficia do efeito combinado da sua herança histórica que lhe confere a vantagem de ser um território que promove o multilinguismo, bem como da sua integração na área da Grande Baía, que o coloca no epicentro da inovação tecnológica. Mais do que uma zona experimental, Macau poderá liderar o desenvolvimento e a exploração da nova tecnologia de IA, e em muito particular a sua aplicação à tecnologia e processamento da linguagem natural. Acredita que livros e manuais escolares como hoje os conhecemos poderão desaparecer e dar lugar a e-books e conteúdos feitos por IA? Ou haverá espaço para complementaridade? O passado recente, de exposição a novas tecnologias disruptivas, ensina-nos que devemos ser prudentes a vaticinar a extinção de anteriores formas e práticas sociais e culturais. Por exemplo, o livro em papel foi declarado em extinção acelerada, mas afinal continua connosco com grande vitalidade, em complementaridade com outros tipos de suporte e canais de disseminação. Estou inclinado a pensar que o mesmo se vá passar relativamente aos benefícios da aplicação da IA no ensino. Acima de tudo, o que precisamos urgentemente neste momento é de desenvolver novas formas de mediação pedagógica que ajudem os alunos a tirar o melhor partido possível deste benefício. A IA, por si própria, tal como um navegador da web, não é uma ferramenta pedagógica, também em si mesmo uma chatbot não é um instrumento pedagógico, mas nas mãos e com a orientação dos professores pode certamente transformar-se num dos mais importantes meios de aprendizagem da língua. Há possibilidade de uma maior conexão dos modelos “Albertina” e “Gervásio” de linguagem IA generativa, sistema por si coordenado em Portugal, com as instituições de Macau e o seu sistema de ensino? A possibilidade de os modelos de linguagem de IA generativa desenvolvidos pelo nosso grupo de investigação, o “Albertina” e o “Gervásio”, poderem reflectir a realidade linguística e cultural de Macau encontra-se a ser trabalhada. Com o apoio de instituições de Macau, assim como do IILP – Instituto Internacional da Língua Portuguesa, há um corpus de texto de Macau que está a ser recolhido. Esse é um primeiro passo para se poder afinar os modelos. Muito gostaria que este encontro desta semana em Macau sobre o ensino da língua portuguesa na Ásia, possibilitasse encontrar mais parceiros para passos seguintes. Os modelos “Albertina” e “Gervásio” Se falarmos do desenvolvimento da IA em Portugal, o nome de António Branco surge nas últimas tendências e projectos. No caso da IA generativa, o cientista é coordenador dos modelos “Albertina” e “Gervásio” que integram o ecossistema dos grandes modelos de linguagem IA generativa. No caso dos modelos “Albertina”, que são codificadores de linguagem, foi acrescentado o modelo “Albertina 1.5B”; enquanto que aos modelos “Gervásio”, descodificadores de linguagem, foi acrescentado o modelo 7B. Segundo o website da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, António Branco considera que este ecossistema de modelos de linguagem IA generativa “é crucial para a tecnologia da língua portuguesa e esta expansão representa um passo da maior importância na preparação da língua portuguesa para a era da IA”. O cientista acrescentou ainda que “estas classes de modelos estão na base de toda a gama de aplicações de IA generativa, incluindo as mais mediáticas, como os chatbots ou os tradutores automáticos, e sendo maiores, estes novos modelos têm melhor desempenho”. Ainda segundo o mesmo portal, este ecossistema “é líder mundial em termos de grandes modelos de linguagem desenvolvidos especificamente para a língua portuguesa que são totalmente abertos e documentados”, sendo que o primeiro modelo Albertina foi disponibilizado em Maio do ano passado. Este foi “um marco histórico na preparação tecnológica da língua portuguesa para a era digital, ao ser o primeiro grande modelo de linguagem aberto desenvolvido especificamente para o português, para ambas as variantes”. António Branco irá falar hoje, a partir das 10h, de todo este universo na sessão inaugural do 9º Encontro, promovido pelo Instituto Português do Oriente (IPOR), e que decorre até amanhã no Auditório Dr. Stanley Ho do Consulado-geral de Portugal em Macau e Hong Kong. O investigador irá partilhar o auditório com João Laurentino Neves, ex-director do IPOR e actual director-executivo do Instituto Internacional da Língua Portuguesa, que irá discorrer sobre “Tecnologias da língua e língua de tecnologias – O IILP na era dos conteúdos e dos dados”.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteMaria José de Freitas, arquitecta: “A nova identidade de Macau é um processo” A arquitecta Maria José de Freitas é uma das convidadas do Fórum do Património Cultural da Zona da Grande Baía, que tem hoje início. Amanhã irá falar sobre o “património partilhado da Grande Baía”, que ao longo dos séculos recebeu muitas influências culturais. A arquitecta elogia a acção dialogante do Governo da RAEM e diz que a identidade de Macau está sempre em construção O que se entende por património partilhado da Grande Baía? O património partilhado é um grupo científico que existe no ICOMOS [International Council of Monuments and Sites] e que tem a ver com o património que, à época da sua construção, foi partilhado por diversas culturas. No caso de Macau, temos os portugueses que trouxeram na sua bagagem cultural gente de outros continentes, Tailândia, Japão e Índia, e que tinham um vocabulário arquitectónico e urbanístico que foi transmitido para o património edificado que hoje temos. Tudo isso continuou depois no período da Administração portuguesa. Podemos dizer que essa herança continua hoje quando são convidados arquitectos e urbanistas estrangeiros a fazer intervenções em Macau. Nesse aspecto, o território sempre teve um papel e ligação com um âmbito bastante vasto. Temos ainda Hong Kong, que surge na altura dos grandes impérios [meados do século XIX], e que bebeu da influência cultural dos ingleses. Foi algo que se transmitiu numa arquitectura vitoriana também replicada em Macau e em toda a Ásia nessa altura. E na China? Em Cantão surgiu uma arquitectura neoclássica ocidental praticada por orientais, e que depois foi vivida por uma comunidade multicultural na sua génese. É uma arquitectura que, ao longo da sua existência, tem continuado a ser visitada e manteve uma narrativa que engloba a miscigenação cultural. É nesse sentido que falamos do património partilhado, sem que haja uma diferenciação de épocas. É assim que esse património é usufruído, dessa partilha, e é aí que entram os valores que levaram à classificação pela UNESCO do Centro Histórico de Macau. É importante frisar que algumas cidades mais recentes do Delta do Rio das Pérolas, como Zhuhai ou Shenzhen, também têm influências internacionais. As sociedades que pertencem à Grande Baía têm influências vincadas dessa multiculturalidade. Que exemplos pode apontar? Temos as Kaiping Towers [torres de vigia fortificadas, com vários andares, construídas em aldeias], que foram desenhadas por emigrantes por questões de defesa. Nas cidades, também mais recentes, de Zhongshan e Foshan, há uma influência ao nível urbanístico. Esta multiculturalidade, que é vivida e que é evidente, deve ser estudada e partilhada em termos de conhecimento e actuações. Existem pressões, até do ponto de vista das alterações climáticas e subida do nível da água do rio. Além dos sucessivos aterros construídos, que têm estrangulado as margens do rio, trazendo alguma poluição atmosférica. Todos esses factores afectam o património existente nas cidades portuárias e piscatórias, pelo que há situações comuns e que devem ser tratadas com uma visão regional e internacional. Há cidades portuárias em todo o mundo que sofrem estas vicissitudes e que tem centros históricos. Como pode ser feita essa conexão? Podem-se fazer estudos com resultados mais efectivos. Macau pode desempenhar um papel bastante dialogante dado o seu contexto histórico. Prova disso é fazermos este colóquio. O papel de plataforma de Macau sempre aconteceu desde o início da existência do território, porque sempre houve uma ponte entre a China e o mundo em redor. A China potencia Macau como locutor privilegiado com os países de língua portuguesa. O papel que Macau venha a desempenhar nas cidades da Grande Baía prende-se com esta ligação e abertura que o território sempre teve para acolher outras ideias e culturas. A actual direcção do Instituto Cultural está alinhada com essa visão mais global em relação ao património? Penso que sim, pela realização destas reuniões internacionais que me parecem bastante oportunas. Também pelo facto de a presidente [Delang Leong] ter ido a Portugal contactar universidades e com a Direcção-geral do Património, o que dá abertura e entrosamento entre o que está a ser feito em Macau e o conhecimento que se procura lá fora, e este é o caminho certo. Estou curiosa em relação ao contexto desta conferência internacional, para perceber o que os colegas de outras cidades vão dizer e o que têm para partilhar. Macau está a seguir o caminho de abertura, que é visível, e também com outras empresas, no que diz respeito à responsabilidade social corporativa, em que também está a ser feito um caminho faseado. Há novas áreas de conhecimento, culturais e de estudo. Não se pode fazer tudo a um tempo só e o IC está a fazer esse caminho. No contexto da parceria com casinos para renovar algumas zonas da cidade há o caso da Rua da Felicidade e do Centro Comunitário Kam Pek. Acredita que o futuro do património não passa pela perda da história e memória colectiva. Sim, isso está presente nas intervenções do IC, que tem tido essa situação bem presente em todos os diálogos que são feitos. Não penso que isso esteja em causa [uma possível perda da história e memória colectiva sobre os lugares]. Houve a questão do pavimento nas Casas-museu da Taipa, mas na altura não sabia o que estava a acontecer. Vi depois que houve uma intervenção em que foi criada uma faixa com granito que dá para percorrer com maior facilidade. Há que melhorar as situações para que sejam sentidas pela população da forma mais correcta possível. O IC tem de trabalhar em conjunto com as direcções de Serviço do Trânsito, Ambiente, Obras Públicas e com o Instituto para os Assuntos Municipais, porque está em causa a preservação da cidade. Há também a questão de existir um filtro em relação ao número de pessoas que visitam certos locais. Deve ser feita uma contagem do número de pessoas que visitam as Ruínas de São Paulo e aprovar medidas concretas sobre isso. Na Rua da Felicidade, algumas medidas implementadas foram revertidas [o fecho parcial da rua ao trânsito], foram apenas experiências. No princípio não se faz tudo bem ou mal, e vai-se balizando. É importante que, tanto o IC como a população, façam essa avaliação, incluindo os comerciantes que estão nos sítios, e os académicos. Toda esta metodologia pode depois ser partilhada com Hong Kong ou Shenzhen. Defendeu há pouco a sua tese de doutoramento sobre o património de Macau. Conclui nesse trabalho que o território tem construído a sua identidade própria a nível patrimonial. Como tem sido feito esse caminho, e com que actores? Concluí que Macau sempre teve em si uma identidade múltipla, com chineses, portugueses, macaenses, japoneses e todos os que aqui aportaram e encontraram a sua casa. Essa identidade múltipla era negociada entre portugueses e chineses, e também macaenses. As outras culturas que cá estavam também eram ouvidas. De que forma isso se tem manifestado? Com a protecção do Farol da Guia, por exemplo. São eles que elevam a voz e fazem interrogações. O Governo chinês classificou a culinária macaense e o teatro em patuá, há o conhecimento vasto de uma identidade abrangente, e sempre foi assim. Com a negociação dos novos contratos de jogo, após a transição, surgiram outras empresas de jogo que trouxeram outras culturas, com os americanos e neozelandeses que se interessam pela cultura do sítio. Com as novas licenças de jogo isso vai continuar, e Macau passou a ter um papel mais abrangente em termos de multiculturalidade do que tinha antes. Temos mais situações em confronto, mais manifestações culturais. A nova identidade de Macau é mais um processo do que propriamente uma definição, e está em permanente evolução. Na tese apresenta algumas medidas para a defesa da herança cultural. Faltam técnicos no IC, arqueólogos, investimento público, para que se preserve mais a partir de novas investigações? É importante que haja técnicos, e até de outros países. Não me parece importante que estejam sediados em Macau, pois podem trabalhar a partir de qualquer parte do mundo em regime de outsourcing. Importa é que o IC esteja ciente dessa situação e que haja uma abrangência cultural com conhecimentos vários vindos de diversas regiões do mundo. Cabe ao Governo fazer essa coordenação em conjunto com universidades de todo o mundo, porque este é um património também mundial. No ensino superior local, à excepção talvez da Universidade de São José (USJ), não tem existido muito foco nas áreas da Arqueologia e História. A Universidade Cidade de Macau e a USJ também promovem alguns encontros no âmbito da arquitectura, urbanismo e História, mas era importante que a própria Universidade de Macau (UM) tivesse mais cursos de doutoramento e pós-graduação relacionados com o património arquitectónico existente. Mas a UM está em expansão e pode abranger novos campos de intervenção, podendo existir mais parcerias com a Universidade de Coimbra, por exemplo. Já existe um Plano de Salvaguarda do Centro Histórico. Entende que é necessário mais dinamismo por parte do IC, dado o atraso na sua publicação? Os planos são revistos a cada cinco anos. O Plano demorou a aparecer e há algum desfasamento, pois alguns casos poderiam ter sido evitados se o Plano tivesse sido elaborado por altura da classificação do Centro Histórico, em 2005. Refiro-me à zona do Farol da Guia. Temo, porém, que quando os edifícios que estão a ser construídos na Zona A se perturbe a visualização do farol. Na Igreja da Penha a volumetria dos edifícios em volta veio a ser reduzida, o que mostra que a população está atenta, tal como o IC. Há também o caso de Lai Chi Vun e da preservação dos estaleiros. Elogio a visão do IC que tem dado voz a este incómodo sentido, e que depois vai respondendo de forma assertiva. Falou da pressão das alterações climáticas. O que deve ser feito para lidar com a subida da água do rio? Esse problema vem do século XIX, pois vários urbanistas vieram de Portugal para Macau e nunca conseguiram resolver o problema. O leito do rio foi sendo resolvido em virtude da construção dos aterros, e isso tem consequências. Devem ser feitos modelos conceptuais e diques de contenção. Mas esta situação engloba todo o delta, não é uma situação que deva ser pensada apenas em Macau. Um Fórum, dois dias O Fórum do Património Cultural da Zona da Grande Baía, organizado pelo Instituto Cultural, decorre hoje e amanhã. O tema principal dos debates será “Integração e partilha do património cultural na Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau”, tentando-se promover, com académicos e técnicos de várias cidades da região, um diálogo sobre o futuro da defesa do património. O evento terá lugar no Centro Cultural de Macau.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteRui Marcelo, novo conselheiro das comunidades portuguesas: “Quero ouvir as necessidades de todos” Rui Marcelo é o homem que sucede a Rita Santos no Conselho das Comunidades Portuguesas depois da eleição em Lisboa, há cerca de duas semanas. O responsável promete ouvir os portugueses e trabalhar de perto com as autoridades locais. O mote da acção como conselheiro mantém-se: “fortalecer a ligação entre as comunidades no estrangeiro e Portugal” Rita Santos deixou subitamente o cargo de conselheira que mantinha há muitos anos. Foi difícil aceitar o desafio de concorrer de forma repentina? Substituir Rita Santos num cargo de grande responsabilidade, como é o de Presidente do Conselho Regional da Ásia e Oceânia, do Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP), é uma tarefa que exige não apenas dedicação, mas também um profundo compromisso com as comunidades que representamos. No entanto, este tem sido um trabalho conjunto que temos partilhado ao longo dos últimos dois anos e meio, altura em que fui convidado a incorporar um projecto que desse sequência ao excelente trabalho desenvolvido por José Pereira Coutinho, Rita Santos, e pelos meus ex-colegas conselheiros Gilberto Camacho e Armando de Jesus, no CCP nas últimas duas décadas. [Este trabalho] culminou com a minha integração na lista ao sufrágio do CCP do Círculo da China, cujo acto eleitoral decorreu no dia 26 de Novembro de 2023, onde fomos eleitos para um novo mandato de quatro anos. Tive o privilégio de organizar e participar em reuniões do Conselho Regional da Ásia e Oceânia na qualidade de assessor, e de acompanhar Rita Santos, em 2023, numa visita de trabalho a Portugal no âmbito da reunião anual do Conselho Permanente do CCP. Rita Santos manifestou-me, no início deste ano, o desejo de se preparar para concorrer às eleições para a Assembleia Legislativa de Macau, em 2025, um facto que foi também anunciado na altura pelo deputado José Pereira Coutinho. Comunicou-me em Agosto a sua decisão de suspender o mandato de conselheira para prosseguir o seu desígnio. Que objectivos pretende cumprir na qualidade de conselheiro? Além do cargo de presidente do Conselho Regional do CCP, fui nomeado para o cargo de Secretário do Conselho Permanente do CCP, que coordena a execução do plano global de acção do Conselho e emite pareceres sobre as políticas relativas às comunidades portuguesas, além de assegurarem a comunicação, enquanto órgão consultivo, com o Governo português para as políticas relativas à emigração e às comunidades portuguesas no estrangeiro. Estas nomeações não são apenas o reconhecimento do trabalho desenvolvido até aqui pelo CCP do Círculo da China, mas também uma grande responsabilidade. O meu objectivo principal será fortalecer os laços entre as comunidades portuguesas nas regiões que representamos, que incluem Macau, Hong Kong, o Interior da China, Timor-Leste, Austrália, Banguecoque, Tóquio, Seul e Singapura, e promover a cultura, a língua e os interesses dos portugueses que nelas residem. Acredito que, juntos, poderemos enfrentar os desafios com que nos iremos deparar e aproveitar as oportunidades para enriquecer a nossa comunidade e potenciar as nossas capacidades. Que balanço faz da reunião em Lisboa? Que temas relacionados com a diáspora portuguesa foram abordados? Nesse plenário reuniram-se 76 conselheiros eleitos a 26 de Novembro de 2023 e foram eleitos os representantes dos Conselhos Regionais e das Comissões Temáticas, além de ter sido nomeado o novo presidente do Conselho Permanente do CCP [Flávio Martins]. Foram três dias de trabalho muito intensos, dos quais saíram propostas e iniciativas a serem implementadas nos próximos anos, que culminaram na apresentação do programa de acção para o novo mandato. O Conselho Permanente do Conselho das Comunidades Portuguesas já anunciou, entretanto, o programa de acção global aprovado para o quadriénio 2023-2027 [ver texto secundário]. Acha que o CCP, pela sua importância, deveria merecer maior atenção por parte das autoridades portuguesas? Como órgão consultivo junto do Estado português, compete-nos interpretar e exprimir, junto das autoridades portuguesas, os legítimos anseios e aspirações das comunidades de portugueses emigrados, para que estas possam corresponder às suas expectativas de uma forma mais eficaz. Os conselheiros, como seus representantes nos respectivos países de acolhimento, têm a responsabilidade de promover o diálogo entre os portugueses e lusodescendentes e as respectivas autoridades e instituições, facilitando uma integração harmoniosa e reconhecendo o valor da sua participação cívica. Considero, assim, que o CCP desempenha um papel fundamental na representação dos cidadãos portugueses no exterior, pelo que é fundamental o apoio das autoridades portuguesas para o fortalecimento da ligação entre as comunidades no estrangeiro e Portugal, promovendo uma maior participação cívica e cultural. Que problemáticas denota nas comunidades portuguesas na Ásia, ao nível dos serviços consulares e questões culturais, por exemplo, que gostaria de ver resolvidas? Nas atribuições e competências do Círculo da China e Conselho Regional da Ásia e Oceânia no CCP existem atribuições e competências que são um importante ponto de referência para a elaboração de uma série de questões reivindicativas, compreendendo a importância dos fenómenos avaliativos e evolutivos da integração local nas directivas do Conselho. Estes aspectos são essenciais para a resolução de diversos problemas das regiões que representamos, que envolvem uma extensa comunidade portuguesa, que possui uma importante actividade profissional, empreendedora e cultural. Esta desempenha um papel fundamental no desenvolvimento e na preservação de suas especificidades socioculturais, relativas ao património e simbólicas, devido ao longo processo histórico de presença portuguesa nestas regiões. Nas minhas novas funções, estou comprometido a ouvir as necessidades e preocupações de todos e a trabalhar de forma cooperante com os membros do Conselho, com os Consulados e Embaixadas das várias regiões, e também com as autoridades locais. Espero que, através deste trabalho, possamos construir um futuro mais próspero e coeso para todas as comunidades Portuguesas que representamos. Novo Plano de Acção do CCP com foco na cidadania e economia São muitos os pontos a desenvolver pelo Conselho das Comunidades Portuguesas até 2027 no âmbito da promoção da cultura portuguesa, fomento da participação cívica e melhoramento do funcionamento das representações consulares. Segundo o LusoJornal, um dos pontos do plano prende-se com a área “da cidadania e participações cívica e política”, pois “uma condição fundamental em qualquer sociedade democrática, respeitadora de princípios defensores do pluralismo, diversidade e igualdade é que os portugueses e lusodescendentes se sintam sujeitos activos nos processos decisórios a todos os níveis”. Propõe-se, assim, “promover uma política de requalificação dos consulados, assegurando uma prestação de serviços que verdadeiramente funcione e seja um eficaz elo de ligação às comunidades”. São também desejadas mais “medidas que visem aumentar a participação cívica dos cidadãos não residentes em todos os actos eleitorais para os quais forem convocados a exercer esse seu direito”, bem como a “revisão da Lei Eleitoral”. Sugere-se ainda “o aumento de deputados pelos Círculos da Emigração” na Assembleia da República em Portugal. Outro ponto no Plano de Acção diz respeito ao “ensino do português no estrangeiro, cultura, associativismo e comunicação social”. Desta forma, entende-se que “as políticas desenvolvidas no eixo da Língua e Cultura têm como principal destinatário a juventude lusodescendente”, sendo defendido um reforço “do movimento associativo das Comunidades portuguesas”. O CCP promete trabalhar para melhorar as transmissões da RTP, a rádio e televisão públicas em Portugal, defendendo que esta “tem que apostar em novas formas de distribuição de conteúdos e de canais”. Fica a promessa da concretização de acções que assegurem “a gratuitidade do ensino, com a revogação das propinas”, “apoiar a estruturação das escolas portuguesas e do ensino do português no estrangeiro” ou ainda “melhorar e ampliar os apoios ao associativismo”. Pretende-se também “apoiar a comunicação social de raiz portuguesa na diáspora”. Economia e companhia Finalmente, no terceiro e último eixo de acção, o foco faz-se nas “questões sociais, económicas e dos fluxos migratórios”. Para o CCP, “direitos e oportunidades são condições fundamentais para se chegar à igualdade de tratamento almejada pelas comunidades”. Assim, são propostas acções como a defesa “de um tratamento mais favorável ao regime do residente não habitual”, “propugnar um programa de atração e apoio aos jovens descendentes de emigrantes” ou ainda “aumentar o intercâmbio com as redes na Diáspora” nas áreas da cultura ou Câmaras de Comércio, sempre “na defesa dos fluxos sociais e económicos”. Pretende-se também “reformular o programa ‘Regressar'”, destinado a emigrantes que regressem a Portugal, através da criação de “incentivos fiscais mais amplos e outras medidas de apoio”. Defende-se também “a revogação da Portaria que alterou o direito de assistência à saúde gratuita em Portugal aos que vivem no estrangeiro”, e que veio retirar muitos utentes da base de dados do Serviço Nacional de Saúde.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteCláudia Ribeiro, autora: “A Europa parece um museu” Autora do livro “No Dorso do Dragão”, Cláudia Ribeiro viveu na China nos anos 80, fez investigações independentes no país e algumas traduções de chinês para português. Ao HM, explica que, para perceber a China, é preciso ir além do taoísmo e confucionismo. Cláudia Ribeiro abordou estes temas na última quinta-feira no Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa Como começou o interesse pelos estudos asiáticos, sobretudo pela China? Começou na mais baixa infância. O fascínio com os caracteres chineses começou quando os vi pela primeira vez nos créditos de um filme de animação japonês, “O pequeno príncipe e o dragão das oito cabeças”, de 1963. Devia ter cerca de seis anos e fiquei colada à cadeira, extasiada, a olhar para os caracteres dos créditos. Pouco tempo depois li “O Loto Azul”, a aventura de Tintim na China e, de novo, fiquei fascinada com os caracteres e com a China e os chineses. Mas, já antes dos caracteres, lembro-me de uma arca chinesa lacada na casa de uma velha senhora. Os objectos criados pelos chineses atraíam-me. E japoneses. Quanto aos Estudos Asiáticos enquanto área de conhecimento, era algo totalmente fora do meu radar na época em que ingressei na faculdade. Essa opção, simplesmente, não existia em Portugal e não existiu durante as duas décadas seguintes. Havia um curso livre de chinês na Faculdade de Letras, leccionado por Alexandre Li Ching. Claro que me inscrevi e com uma alegria louca. Nos anos 1980, era o único local em todo o país onde era possível aprender chinês. Quais as primeiras dificuldades que sentiu quando chegou à China? As normais com que nos deparamos quando se vai viver para um país diferente pela primeira vez. Encontrava-me numa universidade e, portanto, tinha colegas ocidentais e japoneses que já lá estavam há mais tempo e que transmitiam informação aos novatos. Depois, foi adquirir novos hábitos, estoicos. O que me custou foi o frio, sou africana. Foi desafiante o contacto com uma cultura e línguas tão diferentes? Fui para lá precisamente em busca desse desafio. Queria contactar com aquela língua e aquela cultura diferente. Nasci e cresci nos anos finais da Angola colonial, no Lubango. Quando vim para Portugal, durante o processo de descolonização, tive de me adaptar a um país e a um povo muitíssimo diferentes de Angola e dos brancos nascidos na Angola colonial. Sentia uma falta tremenda de viver com outros povos e culturas. Felizmente, Portugal tem-se vindo a tornar num país multi-étnico e multi-cultural, o que é muito mais interessante. No Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM) falou sobre a China como a conheceu, nos anos 80. Como era encarado o estrangeiro nessa época? Estive na China como estudante de chinês interessada em “viver” o país. Era a era de Deng Xiaoping, uma China a dar os primeiros passos para sair de um nível de vida muito humilde e a pressentir já um futuro diferente, pelo qual os chineses, em especial os jovens, ansiavam com impaciência. Era, por isso, uma época de esperança. Havia maior liberdade de expressão e muitas mudanças a terem lugar a nível económico e cultural. Como se denotava essa liberdade? Havia uma abertura, cautelosa, a actuações de músicos pop, como os Wham!, e exposições de artistas contemporâneos ocidentais, como Robert Rauschenberg. Foi a década em que floresceu a arte contemporânea chinesa e em que resmas de livros de filósofos, historiadores e escritores ocidentais eram traduzidas, publicadas e lidas com sofreguidão. Era também uma China onde os chineses ainda não podiam viajar livremente. O seu contacto com ocidentais tinha sido muito limitado e a maioria da população olhava-os como se fossem extraterrestres. A curiosidade por eles era desmedida, sobretudo se fossem americanos. Os chineses gostam da riqueza material e julgavam que todos os americanos eram ricos, como tinham visto na série televisiva “Dallas”. Queriam muito saber se tínhamos carro, frigorífico, televisão e quanto tinham custado. O frigorífico era ainda um luxo e o carro particular um bem muitíssimo difícil de adquirir. Os chineses moviam-se a bicicleta e transportes públicos. Publicou “No Dorso do Dragão” em 2001, que fala dessa experiência. Que diferenças destaca na China entre a data da publicação do livro e o período actual? Publiquei, entretanto, uma versão revista desse livro em 2023. “No Dorso do Dragão” foi escrito entre 1995 e 1998, e quando o estava a escrever a China já era diferente daquela em que eu tinha vivido. A China é sempre um mesmo-outro, desenvolve-se por camadas e, se raspamos um pouco, afloramos o seu passado. Há muitos aspectos em que permanece idêntica, e muitos outros em que se tornou diferente. É um país que retirou da pobreza 850 milhões de pessoas em quarenta anos, um feito absolutamente extraordinário e que nunca é demais frisar. Mas o germe da China de hoje, desse país vibrante, cheio de vida e de esperança, que caminha confiante rumo ao futuro, já estava presente nos anos oitenta. Nas cidades chinesas, basta sair para a rua e é palpável uma trepidação, um ímpeto avassalador. Por comparação com os chineses, os europeus parecem zombies, gente mole, refastelada, auto-complacente. E a Europa parece um museu que se exibe sem se renovar. Até que ponto a filosofia, ou correntes como o taoísmo e o confucionismo, podem ajudar a compreender o sujeito chinês e a sua forma de pensar? Para tentar compreender qualquer povo há que ter em conta os sistemas de crenças mais decisivos, religiosas e filosóficas, assim como outros factores, a geografia, a história política. É possível compreender os europeus sem compreender o cristianismo, o judaísmo e o islamismo? Não. No caso da China, não só o taoísmo e o confucionismo, como ainda o legalismo e a religião popular, que são autóctones; mas também sistemas de crenças estrangeiros, como o budismo, proveniente da Índia, e o marxismo, proveniente da Europa, e depois o maoísmo. Dominar tudo isso é uma tarefa ciclópica. A China é como um dodecaedro infinito de espelhos. Portugal continua a não ter muitos sinólogos. Como explica essa questão? Portugal não tem sinólogos. Um sinólogo é alguém capaz de ler e compreender fluentemente o chinês antigo, com um conhecimento muito profundo e alargado acerca da China clássica. Uma estirpe rara que possivelmente está em extinção no Ocidente. Na maioria das universidades adopta-se o termo Estudos Chineses ou Asiáticos, ou ainda da Ásia Oriental. A explicação pode vir da História, pois os sinólogos, como os cientistas ou os filósofos, não brotam da terra como os poetas populares, os pintores naïfs e os cantadores. Formam-se. A aprendizagem deve ser exigente, começar cedo e avançar sem interrupções. Mas Portugal tem sofrido de uma enorme instabilidade institucional e tudo quanto exige tempo e perseverança acaba por soçobrar. Portugal é um país que se tem esvaziado ciclicamente. Esvaziou-se de população com os Descobrimentos, tornando as instituições periclitantes durante um largo período de tempo. Esvaziou-se de população em Alcácer Quibir, esvaziou-se de população com a imigração e a ida para as colónias, esvaziou-se em extensão geográfica e, simbolicamente, com o desmoronar do império. Agora esvazia-se de jovens promissores. Esta ausência parece ter-se tornado endémica. Mas há um contacto com a China desde há séculos. O que ficou? Em matéria de obras científicas, o que resultou da era dos Descobrimentos foram uns poucos tratados dispersos e de cariz coleccionista, dependentes da observação: descrição de espécimes, história natural, botânica. Homens como Garcia da Orta, na área da botânica, Duarte Pacheco Pereira, na área da geografia, e D. João de Castro, na área do magnetismo terrestre, são excepções e não deixaram escola, embora tivessem deixado obra. Mas quem os leria? Só os estrangeiros e o punhado de portugueses que sabia ler. Certo é que o desamor pelos livros está profundamente arreigado nos portugueses. A ausência de livros nas casas dos nobres portugueses sempre chocou os forasteiros. Instalou-se uma desconfiança em relação ao saber teórico quando há problemas imediatos a ser resolvidos, por exemplo, de subsistência económica, como se fosse possível resolvê-los sem teoria. Há uma valorização da aplicação e das actividades práticas. Ora, a sinologia não se pode desenvolver sem um profundo amor pelos livros, desde logo porque os chineses são um povo da escrita e, portanto, da leitura e dos livros. Isto reflecte-se no que sucede aos estudantes portugueses que se deslocam ao estrangeiro munidos de bolsas para assimilarem o conhecimento que lá fora se faz, coisa que se pratica desde a Idade Média. Em que sentido? Os estudantes acabam por ficar lá devido às condições de vida e de trabalho superiores ou, por mais brilhantes que sejam, não correspondem às expectativas quando regressam ao país. E isso porque não encontram estruturas de apoio nem uma sociedade capaz de apreciar aquilo que estudaram. Já os estrangeirados do séc. XIX se debatiam com este problema, com a impossibilidade de aumentar e difundir o conhecimento numa sociedade atavicamente inculta e pouco receptiva ao saber. Também passou por isso quando voltou a Portugal? Sim. Nos anos 1980 as pessoas tomavam a minha decisão de estudar chinês e de ir para a China como uma esquisitice incompreensível. E, quando regressei, no início dos anos 1990, deparei-me, é claro, com o mesmo deserto de que partira. Até prosseguir o estudo da língua chinesa era difícil. Só havia aulas de níveis inferiores ao meu. A curiosidade das pessoas pela China era igual a zero. Perguntavam-me “Então, gostaste, não foi?” e tratavam era de falar da vida delas. Quanto aos Estudos Chineses, a questão do estado larvar em que se encontram em Portugal tem muito a ver com tudo isto. Além disso, estiveram subjugados pelo peso do estudo dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa que é limitado a uma Ásia contemplada através dessa perspectiva. Há cada vez mais estudos sobre a língua e cultura chinesas em Portugal, mas o que precisa verdadeiramente mudar? Há que resolver uma série de problemas para que se consigam desenvolver plenamente. O investimento na aprendizagem e na formação tem de aumentar, assim como o acesso a fontes de origem asiática e a colaboração com investigadores asiáticos. Em princípio, seria possível agora construir instituições estáveis, um ensino capaz e maduro. Mas, para tanto, é preciso vontade colectiva e quebrar o círculo vicioso da ignorância para que o povo valorize a cultura.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteJosé Drummond, curador de “Aqui e Agora” | Histórias de um “espaço intermédio” Que arte se faz em Macau 25 anos depois da transição? Que mensagens os artistas passam? A exposição “Aqui e Agora”, patente até 20 de Dezembro em Lisboa na União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa, dá algumas respostas. José Drummond, um dos curadores da mostra, considera que o Governo da RAEM devia mudar o foco das políticas culturais e prestar apoio ao desenvolvimento de galerias de arte Esta exposição celebra o aniversário da RAEM. Quais as grandes mensagens reveladas nesta mostra? Até à data, que se saiba, é o único evento que fala sobre o 25º aniversário da RAEM em Portugal, o que é estranho, ou não, mas que demonstra o modo como os sucessivos Governos portugueses foram olhando para Macau antes e depois da transferência. “Aqui e Agora” é um título que remete para o estado deste momento, 25 anos depois. Graficamente temos 25 bolas [prateadas, colocadas na imagem oficial da exposição], em que cada uma corresponde a um artista, sendo que há a questão de funcionarem como espelhos. Porquê estes elementos? Remetem, no fundo, para a própria vivência em Macau, pois as pessoas, da comunidade chinesa e portuguesa, acabam sempre por viver num espaço intermédio. Nesse espaço as comunidades, apesar de relativamente separadas uma da outra, as coisas continuam a acontecer e a influência mútua de ambas as comunidades é muito intensa. A exposição, e os trabalhos que seleccionámos, falam um pouco sobre esse espaço híbrido que Macau é muito naturalmente, seja em termos arquitectónicos, com os monumentos, começando logo pelas Ruínas de São Paulo, que é um ícone da presença portuguesa, mas que continua a ser o ponto máximo do turismo da RAEM. Estes trabalhos que mostramos aqui falam, portanto, sobre identidade, esse potencial encontro entre duas culturas que, não diria opostas, acabam por se completar em Macau e têm uma presença muito particular, contribuindo em termos artísticos. Acho completamente notório que os artistas de Macau são completamente diferentes dos de Hong Kong, Taiwan ou Interior da China, exactamente pela existência dessas duas culturas e reflectirem sobre esse espaço onde vivem. Fale-me um pouco dos artistas escolhidos para esta mostra. Trata-se de 25 artistas que nunca expuseram em Portugal com a AFA – Art for All, que não é a primeira vez que expõe em Lisboa. Metade destes artistas pertencem à chamada nova geração, e, numa boa descrição do que é Macau, temos artistas chineses, que já nasceram no território, mas depois temos referências muito interessantes de artistas de Macau que deixaram o território para viver noutros lugares, como é o caso do Season Lao, que vive há muito tempo no Japão, ou o caso contrário, da MJ Lee, sul-coreana que passou por Macau e acabou por se tornar numa artista de Macau. Também o caso do Felix Vong, que tendo nascido em Portugal decidiu vir viver para cá estudar na ESBAL [Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa], depois de viver em Macau. Temos também o Rui Rasquinho, que é português, mas que vive em Macau há muitos anos, e Alexandre Marreiros que é macaense. Esta é a realidade de Macau, a variedade, um lugar de permanência e impermanência também. Porquê tão poucos nomes portugueses, por exemplo? São os artistas com obras mais recentes. No caso de Alexandre Marreiros foi uma referência quase imediata, no caso do Rui [Rasquinho] também, que tem estado bastante activo com várias exposições em Macau. Como descreve o “Aqui e Agora” da área cultural, em Macau? No fundo queremos perceber o que mudou ou não, e será que mudaram assim tantas coisas, e acentuar esse marco temporal, a ideia de que “25 anos depois é isto”. A cultura em Macau mudou superficialmente, com mais casinos ou coisas que os casinos estão a fazer, porque ao nível simbólico a cultura de Macau permanece muito própria. Continuamos a ter os temas essenciais da cultura de Macau, como a identidade, a construção, o passado, o futuro, as questões urbanas, e essas questões já existiam há 25 anos, apesar da cidade estar fisicamente diferente. É isso que vemos também nestes trabalhos. Mas sinto que os trabalhos destes artistas são obviamente diferentes dos trabalhos de pessoas da minha geração, dos anos 90. Hoje há mais formação superior, também. Isso influenciou a nova geração na forma de fazer arte? As opções continuam a ser mais ou menos as mesmas para estudar, como Paris, Portugal, Taiwan, Cantão ou Pequim. Mas a maior parte destes artistas fizeram formação em Pequim ou Taiwan. As coisas acabaram por ser relativamente mais fáceis do que poderiam ser há 25 anos, no sentido de potenciar estes talentos e poderem ambicionar estudar. Há 25 anos talvez a sociedade de Macau não estivesse tão preparada para aceitar que um filho quisesse estudar artes como hoje. Claro que isso também é fruto de uma série de associações que foram criadas nos últimos 25 anos, não foi apenas a AFA, e que acabaram por dinamizar a cultura e as artes plásticas dentro do território. Havendo mais estruturas, também mais jovens querem seguir esse caminho, e nesse sentido Macau está diferente. Não sei se o papel do Governo não será também importante aqui. Em que sentido? Há 25 anos o Governo operava de outra forma. No período da administração portuguesa, o Museu de Arte de Macau apareceu no último ano da administração [1999], pelo que não é apenas uma coisa da sociedade e das associações, até porque estas são largamente apoiadas por entidades governamentais. Em 25 anos não surgiram mais mecenas nas artes, por exemplo, um verdadeiro sector cultural com um importante movimento de compradores? O Governo tem tentado. Não sou completamente crítico nesse sentido, mas penso que é um erro pensar que as artes são uma indústria cultural, porque não podem ser. O que se faz a seguir, com os livros ou as t-shirts, isso é que são produtos. O objecto artístico em si não, a sua tendência natural é serem objectos únicos. Penso que é esse entendimento que falta ao Governo, perceber que a arte não pode ser tratada como um sector como é a área do design, por exemplo. Mas há meios que são criados em Macau que, em Portugal, os artistas adorariam ter, nomeadamente ao nível dos apoios. Apesar de ter havido mais interesse por parte das operadoras de jogo, como a MGM que faz exposições, e que apresentou obras de Joana Vasconcelos, continua a faltar entre aquilo que é promovido nos casinos e pelo Governo, um modelo económico que possa apoiar galerias comerciais. Aí sim poderíamos falar de uma indústria. Que são muito importantes para mostrar os trabalhos artísticos. A arte, em qualquer lado do mundo, vive dessa confluência de energias na qual as galerias comerciais são absolutamente necessárias porque são elas que irão dar independência ao artista, no sentido que ele não precisa de ter outro trabalho para viver ou comprar materiais. As galerias comerciais tornam mais fácil a existência de um artista que não está dependente dos subsídios, passando a depender do contrato com a galeria e as suas vendas. Aqui é que o Governo deveria realizar um estudo de viabilidade de apoios a galerias comerciais, que não são, forçosamente, indústrias culturais. Qual a obra mais marcante desta nova geração que o público poderá ver? Podemos falar do trabalho de Kay Zhang, que no fundo fala sobre as mulheres dos pescadores de Macau, que, quando os barcos desapareciam, guardavam os restos dos barcos. É um trabalho com uma grande carga emocional, muito directa sobre uma profissão que praticamente desapareceu em Macau. Podemos também falar do trabalho do Felix Vong, contrário ao da Kay, com mensagens mais directas, mas que falam essencialmente da solidão, de um certo voyeurismo, o querer fazer parte de qualquer coisa, continuando solitário, mas estando atento aos barulhos dos vizinhos, por exemplo. Temos o trabalho do Rui Rasquinho, muito abstracto, mas com uma clara inspiração na pintura tradicional chinesa. Passamos depois para o trabalho do Season Lao, que vive no Japão. Se no Rui Rasquinho há uma energia de Macau, num traço mais nervoso, no Season, que também tem a ver com a pintura tradicional chinesa, ele apresenta fotografias imprimidas por si que cola sobre papel de parede. É um processo mais trabalhoso que exige uma calma maior do que os livros do Rui, sendo que partem também de uma certa inspiração da pintura tradicional chinesa, com as montanhas e a paisagem. No mesmo espaço apresenta-se ainda outra exposição, “Ensemble”, da qual também fez a curadoria. De que se trata? É uma mostra que já esteve patente em Paris e Roma. Foi uma questão de oportunidade de mostrar a exposição em Lisboa, apresentando-se três artistas que, em teoria e visualmente, poderão não ter nada a ver uns com os outros. Daí nasceu a ideia de “Ensemble”, em que cada instrumento tem um som diferente, mas que juntos criam uma composição musical. A ideia da exposição passa por aí também, pois temos, por exemplo, os trabalhos do Eric Fok, com grande detalhe, extremamente figurativos, com uma alusão à memória, carregados de humor também. Mais de duas décadas de arte “Aqui e Agora” é uma exposição colectiva com artistas contemporâneos de Macau co-organizada pela Art for All Society (AFA) e com a curadoria de José Drummond e James Chu. O foco acabou por recair nos artistas da nova geração, que estudaram fora, que regressaram ou que partiram, com destaque para dois nomes portugueses. É o caso de Catherine Cheong, Rui Rasquinho e Alexandre Marreiros, e outros mais jovens, como Angel Chan, Chiang Wai Lan, Felix Vong, Ieon Man Hin, Karen Yun, Kuok Hou Tang, Kun Wan Tou, Lai Sut Weng, Lei Chek On, Lei Hio Lam, Kit Lei, Leon Chi-Mou, Leong Chon, Leong Fei In, Leong Man Teng, MJ Lee, Season Lao, Sisi Wong, Wong Hio-Chit, Xixia Wu, Yao Mou In e Kay Zhang. Na exposição “Ensemble”, que pode ser vista também na UCCLA, contam-se trabalhos de James Chu, Eric Fok e Kit Lee.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteDuarte Drumond Braga, co-coordenador do projecto “PortAsia” | Uma porta para as letras Lançado na quinta-feira, o livro “Literatura e Vida Intelectual em Língua Portuguesa na Ásia e no Índico” é um catálogo bibliográfico, editado pelo Centro Científico e Cultural de Macau em parceria com a Universidade de Macau, que vai além da ideia “nacionalista” dos escritos em português produzidos entre Goa, Macau e Moçambique. O académico Duarte Drumond Braga revela ao HM detalhes sobre o projecto “PortAsia” Com o projecto “PortAsia”, de onde nasceu o livro “Literatura e Vida Intelectual em Língua Portuguesa na Ásia e no Índico”, são propostas ideias em torno de uma nova escrita asiática em língua portuguesa e de uma nova forma de literatura. Pretendem criar novos rumos nesta área? O “PortAsia” começou em 2021, sendo coordenado por mim e por Marta Pacheco Pinto, ambos ligados ao Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. É um projecto exploratório financiado pela Fundação para as Ciências e Tecnologia e este livro é o resultado principal deste projecto, bem como um website. No que diz respeito à literatura em língua portuguesa, percebemos que sobre Portugal, Brasil e África já existem imensos estudos, ao contrário das escritas e literaturas da Ásia, que estão ainda pouco estudadas, nomeadamente Goa, Macau e Timor. Preferimos falar em escritas do que em literaturas, porque há muitos textos e obras manuscritas que não são propriamente literatura como romances, poesia ou contos. Não entrámos no mundo dos jornais, e analisámos apenas cinco bibliotecas. Destaco que incluímos também o Arquivo Histórico de Macau, o Arquivo Histórico de Moçambique, o que constitui uma novidade. Porquê? Trazemos Moçambique para este estudo, daí falarmos no Índico. África Oriental tem ligações com Goa, com todo o mundo índico, e pareceu-nos que Moçambique poderia constar nesta obra. Falamos [com este livro] de um catálogo, uma obra bastante árida, não é algo para ler, é uma obra de consulta. Temos aqui um conceito de literatura mais aberto, e por isso chamamos a este livro “Literatura e Vida Intelectual”, pois incluímos produção cultural em língua portuguesa na Ásia. Falamos em estudos religiosos, crónicas, escritos etnográficos. Sim. São escritos que nascem, sobretudo, das rotas comerciais que existiam à época. Sim. Estes escritos centram-se sobretudo entre os séculos XIX e XX, de 1820 a 1955, quando foi a Conferência de Bandung. Há uma série de publicações que surgem a partir de 1820, e até a própria imprensa se desenvolve. Por isso escolhemos esse período temporal. Tentámos incluir coisas que não sejam muito coloniais, por assim dizer. A ideia de escrita asiática tem a ver também com a escrita por asiáticos, não é apenas por representantes coloniais. Embora no caso de Macau isso seja bastante complexo. Escolheram sobretudo autores portugueses, da então metrópole. Sim, porque foi mesmo impossível não os escolher. No caso de Goa foi mais fácil, pois temos uma comunidade intelectual etnicamente indiana forte, e em Macau não temos praticamente uma comunidade chinesa a publicar em português. Nunca tivemos. E o que se publicou da comunidade macaense é muito pouco. Sim, sendo que muitas vezes é difícil distinguir, ou mesmo impossível. E falo dos jornais em que se assinava com pseudónimos, por exemplo, é difícil distinguir quem é e não é macaense. É referido no livro que a Conferência de Bandung lançou a Ásia “como um sujeito de pleno direito”. Discute-se a descolonização, emergiram novos escritos e figuras? A questão é que não há propriamente uma questão comum para Macau, Goa e Timor relativamente ao fim do império colonial na Ásia. Temos 1975, uma data que claramente não servem, porque é mais para as antigas colónias portuguesas em África, e depois na Ásia temos 1961 para Goa, Damão e Diu, 1974-1975 para Timor e depois 20 de Dezembro de 1999 para Macau. E assumo aqui que há uma história colonial em Macau. Muitos autores afirmam que Macau nunca foi uma colónia, mas tenho muitas dúvidas sobre isso. Pelo menos até 1972 [data da retirada de Macau da lista dos territórios colonizados na ONU] foi. Pois. Ou até mesmo até 1974. Há um período colonial da história de Macau, mas o que me parece é que há muitas pessoas que falam com a negociação com a comunidade chinesa para justificar que Macau não fosse uma colónia, mas negociações com as comunidades locais há em todo o lado, até em Angola. Parece-me um argumento fraco, mas que salta à vista em muitos textos sobre o assunto. Estamos então perante um catálogo com referências bibliográficas para apoiar investigadores e académicos. É também um teste, porque, para já, são apenas cinco bibliotecas que pesquisámos. As bibliotecas em Lisboa talvez nem sejam as mais significativas em termos do número de obras [com referências asiáticas], teríamos de ter ido para a Biblioteca Nacional, que não consta aqui. Trata-se de um projecto de pequeno porte e é uma espécie de ensaio para ver se esta ideia funciona. É um projecto que pode continuar, se existir financiamento. Que autores constam neste catálogo com referências a Macau? Fizemos uma separação por locais de publicação, pois entendemos que era significativo. Em relação aos livros publicados em Macau, importa perceber quais são os livros que estão em determinadas bibliotecas e porquê, e quais são. É uma investigação que ainda se pode fazer. Temos, por exemplo, o Joaquim Bastos, que é um macaense interessante do século XIX; há o padre Manuel Teixeira, um autor português metropolitano, mas entendemos que deveria constar nesta lista; temos o Jack Braga. Há muitos macaenses nesta selecção e que acabam por suprir essa falta, porque, de certa forma, os macaenses são aqueles que melhor correspondem à comunidade dos chamados “naturais”, isto é, da comunidade macaense a escrever em português. Não há um grande avanço em relação a Macau, mas esse avanço dá-se no conjunto, criando-se uma visão ampla. Mas há muitas obras sobre Macau que nunca foram trabalhadas. A surpresa existe, precisamente, na comparação com Goa e Timor e com Moçambique, com referência ao Índico. Muitos destes textos foram transferidos para outros locais ao longo dos anos. Temos o exemplo de uma obra de 1912 de L. O. Shirley que foi publicada em Macau, mas que acabou por ir parar ao Arquivo Histórico de Moçambique. É algo importante e uma investigação que pode ser feita a partir deste livro. Quem levou as obras para os locais de destino, e porque foram publicadas em determinados sítios. Há esta migração de intelectuais dentro do império que importa ainda estudar. O livro chama a atenção para isso e constitui um instrumento para futuras investigações. A vossa equipa tratou também três espólios, além das obras dispersas em arquivos e bibliotecas, de personalidades como Moniz Barreto, Sebastião Rodolfo Dalgado e do padre António da Silva Rêgo. Porquê inclui-los? Analisámos estas bibliotecas sem saber que existiam estes espólios. Percebemos que havia bibliotecas dentro das bibliotecas, por exemplo na Academia das Ciências foi a professora Marta Pinto que trabalhou a biblioteca, já identificada, de Pedro Dalgado, um importante intelectual goês. Entendemos que deveria ser tratada à parte por constituir uma doação e um legado do próprio Dalgado que nunca foi integrado na restante biblioteca. É um legado muito interessante porque ele era linguista, estudioso do sânscrito, estudava os crioulos de base portuguesa da Ásia e deixou uma biblioteca muito actualizada na altura em que foi doada, no início do século XX. Isto vai contra aquela ideia que aparece em muitos lados que os estudos orientais e orientalistas em Portugal sempre foram fracos, insipientes. Se fosse feita mais investigação não se diria tanto isso. Não quero parecer arrogante, mas é algo que tenho de dizer. Descobrimos vários exemplos de que isso não é tanto assim. Assumem também que este livro contradiz a “ideia nacionalista da língua”. Em que sentido? Essa é a parte mais complexa do livro, pois a área das literaturas em língua portuguesa está muito ligada ao modelo “Nação”, de uma literatura nacional. Só havia literatura portuguesa, brasileira e ultramarina, era assim que se chamava a tudo o resto. Quando as literaturas africanas aparecem a partir da independência [das antigas colónias], continuam a estar ligadas ao modelo nacional. O modelo de literatura nacional, que vem desde o Romantismo, a Filologia, a ideia de que há um génio pátrio que depois se manifesta na história e literatura, como manifestações de uma espécie de génio nacional. Na Ásia não se pode colocar dessa forma. Macau e Goa são regiões que sempre foram de outros países, o modelo nacional aí não cai bem. Os estudos portugueses, focados nas literaturas de língua portuguesa, não sabem lidar com as literaturas não nacionais. Nesta lista surgem, por exemplo, obras em inglês e até outras línguas. No caso do Jack Braga [macaense], escrevia muitas obras em inglês. Porque só se podem incluir os escritos dele em português? A cegueira linguística não favorece um projecto como este. Textos em outras línguas também têm de ser incluídos. Andreia Sofia Silva Pernas para andar O “PortAsia – Asian Writing in Portuguese: Mapping Literary and Intelectual Archives in Lisbon and Macau (1820-1955)” tem o objectivo de “criar um arquivo dentro dos arquivos”, por se tratarem de “livros e documentos que são marcadamente marginais, quer no contexto dos arquivos portugueses, quer no da Ásia, quer ainda no do império português”. Assim, a ideia é criar um catálogo, apoiado por um website, que possa servir “como importante ferramenta de trabalho bem como bibliografia fundamental dessa produção, permitindo a análise comparada”. Este catálogo e website irão constituir “uma recolha coerente de referências, congregando a localização material de espólios de modo a permitir o estudo em conjunto destes materiais dispersos”, descreve-se no portal da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. O livro “Literatura e Vida Intelectual em Língua Portuguesa na Ásia e no Índico”, talvez o primeiro passo deste projecto com grande amplitude, foi lançado na quinta-feira no Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteJosé Ferreira Pinto, académico: “Vivemos um período de transição” O professor da Universidade Cidade de Macau, José Ferreira Pinto, lançou este ano o livro “From Efficiency to Well-being”, um guia prático de gestão com base em cinco critérios: classificação, organização, limpeza, padronização e sustentação. O académico considera fundamental a elaboração de um estudo aprofundado sobre as PME locais Porque decidiu editar este livro e quando será o lançamento oficial? Este livro tem por objectivo apoiar os gestores de equipas e criar um local de trabalho que reflecte as relações humanas em harmonia com as necessidades do trabalho a desenvolver. O livro aparece na transição da minha carreira para a vida académica e como forma de contribuir para os profissionais de hotelaria em Macau. O lançamento oficial será feito até ao final deste ano. Ainda estou a decidir onde e quando será o lançamento. Estou a procurar apoio local e internacional para as despesas que já tive na criação da primeira edição de autor. O livro será apresentado na Conferência Mundial de Bem-Estar da OCDE que se realiza em Roma durante os dias 4 e 6 Novembro deste ano. Procuro agora apoio para esta conferência. Quais as grandes regras para uma maior eficiência das empresas, sobretudo as operadoras de jogo e resorts? A coexistência de diferentes modelos de negócios parece-me ser o maior desafio interno. Outro advém da pressão que existe nos resultados financeiros trimestrais das empresas que são cotadas na bolsa no actual contexto social, político e económico. Há depois a complexidade acrescida da dimensão das operadoras e o que elas representam para a sociedade local ao empregar dezenas de milhares de funcionários. A zona do Cotai Strip tem evoluído à medida que os terrenos das concessões são ocupados com novos empreendimentos, crescendo no que diz respeito à variedade da oferta turística e oportunidades para os empregados. A zona do Cotai Strip passou por diversas fases. Quais? Uma de iniciação, em que o Venetian desempenhou um papel muito importante na atracção dos turistas pela novidade na oferta turística e dimensão dos edifícios, espaços e operações em geral. A segunda, de consolidação, em que as operadoras abrandaram o ritmo de abertura de novas propriedades e consolidaram essa oferta, agora mais focada no desenvolvimento da estrutura existente do que criar novas instalações. A terceira fase, em transição no momento, é o foco na sustentabilidade por iniciativa própria das concessionárias e também em conjunto com a direcção das entidades reguladoras. O Cotai tem vindo, neste contexto, a trabalhar nas várias dimensões de sustentabilidade, o que significa, de entre muitas coisas, desenvolver os 17 objectivos do milénio promulgados pela ONU. Como se verifica, na prática, este lado de sustentabilidade do Cotai? Criando-se espaço para a atracção dos turistas e também pelo facto de o Cotai continuar a ser uma zona atractiva para os trabalhadores pelas condições que oferecem aos empregados. No que diz respeito à eficiência, esta é gerida pelos princípios da criação de mais e melhor interacção entre as pessoas, e também entre elas e o local de trabalho. Foi director de recursos humanos numa operadora de jogo a partir de 2011, onde implantou o modelo Kaizen. Em que consiste e quais os impactos na empresa? A filosofia Kaizen define um conjunto de princípios que visam a melhoria do espaço de trabalho e o respeito pelos trabalhadores. Na sua essência, é apresentada como uma “melhoria contínua”, constituindo um universo de práticas focadas na evolução e melhoria incremental dos processos, produtos e serviços de uma organização que estão centradas na humanização do espaço de trabalho. Ela envolve o incentivo, material e imaterial, de todos os elementos da empresa e abrange duas ideias fundamentais, “de cima para baixo e de baixo para cima”, nas direcções e orientações gerais de suporte e incentivo e dos empregados que estão a interagir com os clientes da organização para os gestores. A percepção dos gestores é combinada com a perspectiva dos empregados, algo muito importante. O foco do modelo Kaizen é minimizar gastos desnecessários, mantendo-se satisfeitos o cliente e o empregado da organização. Na empresa onde trabalhei a influência foi de tal maneira importante que ainda consta dos relatórios financeiros da entidade. Pode dar exemplos do que foi feito? Posso referir, por exemplo, o envolvimento de quase todos os departamentos da empresa em evoluções de 8 a 12 semanas no desenho de protótipos, na apresentação de soluções alternativas e na exploração da ideia de “criatividade acima do uso de capital”. O esforço colectivo foi amplificado pelo facto de a empresa ter apostado na formação interna de “formadores Kaizen” em vez de se basear apenas na utilização de serviços de consultoria. Isso foi, sem dúvida, inovador em termos de hospitalidade, ainda para mais porque aconteceu há uma década atrás quando ainda não se falava tanto do modelo Kaizen. Tudo se deveu a circunstâncias que criaram sinergia e objectivos comuns de desenvolvimento. Houve chefias com imensa experiência em hotelaria e gestão dos recursos humanos a nível internacional, e, ainda, uma vontade de explorar e inovar processos de trabalho quase considerados sagrados na indústria hoteleira. Essa foi talvez a fase mais importante e interessante da minha carreira na indústria. Que desafios ao nível da eficiência enfrentam os resorts integrados de Macau? Há vários desafios de natureza interna que não são específicos do Cotai, mas a mais importante advém da dimensão das empresas e do número de pessoas que empregam. Quando uma equipa ou organização atinge um alto nível de eficiência, ela pode deparar-se com uma série de desafios e limitações significativas. A resistência à mudança e o pensamento de grupo podem impedir a inovação e a adaptação, enquanto o risco de burnout e a pressão constante para manter o desempenho podem afectar negativamente o bem-estar dos funcionários. O foco excessivo em métricas e eficiência pode levar à perda de flexibilidade e à negligência de aspectos importantes como a criatividade e a inovação. Além disso, a organização pode enfrentar retornos diminutos dos esforços de melhoria, dificuldades em manter o momento e limitações tecnológicas que impedem avanços adicionais. Equilibrar a busca pela eficiência com a necessidade de adaptabilidade, inovação e bem-estar dos funcionários torna-se, portanto, um desafio crítico para equipas e organizações que atingiram altos níveis de eficiência. O livro fala exactamente deste equilíbrio. Pode exemplificar? Tenho um capítulo em que apresento a “Well-being Canvas”, em que faço um exercício pessoal de reflexão e pode ser usado por uma pequena equipa também. A ideia é procurar na própria pessoa aquilo que contextualmente significa a noção de bem-estar. O modelo Canvas tem uma base teórica, mas as questões são práticas e enriquecedoras do diálogo que podemos estabelecer connosco de forma individual, e sobre o que é para cada um de nós a ideia de bem-estar. Acredito que a resposta está no exercício constante de reflexão individual e repetido, pois este conceito muda com o tempo e o contexto onde nos inserimos. A pandemia trouxe desafios a este nível de eficiência das empresas locais, sobretudo em matéria de recursos humanos? Como? As minhas funções terminaram no final de 2020 e os resorts implementaram várias medidas tendo em vista a solvabilidade dos negócios. O que posso adiantar é que os recursos humanos tiveram uma importância fulcral na minimização dos distúrbios ao normal funcionamento das operações, além de se ter tentado antecipar algumas das consequências operacionais das orientações fornecidas pelas autoridades com especial relevo em tentar assegurar empregos. Foram tempos de muita mudança e incerteza, disrupção e adversidade. Acho que ainda estamos todos a aprender sobre a extensão das consequências desse tempo. No que diz respeito às Pequenas e Médias Empresas (PME) de Macau as técnicas e modelos de eficiência tem de ser diferentes, por se tratarem de diferentes modelos de negócio? Certamente. A dimensão do negócio é um factor determinante, pois o número de pessoas é consideravelmente menor, mas os recursos em geral são escassos. Toda a gente está assoberbada de trabalho, mas há um contacto mais directo com a necessidade constante de melhorar, embora não haja muito tempo para pensar e discutir. As PME implementam por necessidade essas melhorias e encaram a inovação como uma parte integrante da necessidade de sobreviver como negócio, sempre num contexto de competitividade. Há um debate em torno da necessidade de bem-estar no trabalho junto de alguns grupos de trabalhadores, nomeadamente croupiers. Macau está ainda aquém das melhores práticas internacionais? Os desafios dos croupiers são bastante mais complexos e envolvem o contexto social, familiar e também o local de trabalho onde passam um terço do seu dia. Há cumprimento cabal dos requisitos da lei de Macau e uma preocupação constante com este grupo de trabalhadores, até porque por eles passa a maior fonte de receita das operadoras. Há questões relacionadas com a rotatividade de funções, tempos de descanso, equipamento de suporte à função que são acautelados pelos gestores de operações nos casinos. Há uma constante aprendizagem interna entre departamentos na partilha dos problemas e na procura colectiva de soluções. Trabalhou na Direcção dos Serviços de Turismo na área do licenciamento de negócios. É uma área que necessita de mais flexibilidade para que as PME se possam desenvolver? Estive nesse cargo até meados de 2011. Entretanto o Governo tem desenvolvido vários esforços para ir ao encontro dessas necessidades da população, em especial no domínio digital. As PME de Macau são maioritariamente organizações de estrutura de micro-empresa com características familiares. Apesar dos esforços das associações locais, há pouca informação sobre as PME em Macau. Como colmatar essa situação? Seria importante inovar para se ter um estudo alargado sobre as PME, com estatísticas periódicas, uma vez que elas são o motor da economia e factor determinante na diversificação regional no âmbito da política económica “1+4”. Os programas de apoios para as PME adoptados durante a pandemia desempenharam um papel fundamental, daí ser necessário avaliar o seu impacto efectivo nestas empresas e de que forma podem responder a novos contextos de incerteza [económica], disrupção e adversidade. Macau precisa de flexibilizar as políticas de recursos humanos? O momento que vivemos é de transição. Haverá sempre espaço para a adaptação, e acho que com a facilidade de circulação na Grande Baía, essa flexibilização regional será inevitável. Aliás, há exemplos de outros países que estão a apostar nessa flexibilização e que agora procuram captar profissionais que durante anos trabalharam em Macau. Contudo, vejo esforços para manter essa experiência valiosa nesta região tendo em conta que outros países como a Tailândia e o Japão estão a apostar forte no desenvolvimento dos conceitos de resort integrado, tão desenvolvido nas últimas duas décadas em Macau.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteEduardo Loureiro, advogado, sobre sector da aviação civil: “No início, o monopólio fez sentido” O advogado Eduardo Loureiro foi o orador numa palestra sobre aviação civil de Macau, promovida esta semana pela Câmara de Comércio França-Macau. Em entrevista ao HM, defende que as licenças, no processo de liberalização do mercado, poderão ser de 10 anos e que a aprovação da lei não deve ser demorada sob pena de ficar desactualizada A proposta de lei sobre a aviação civil está em análise na especialidade na Assembleia Legislativa. Há muito que o Governo pretende liberalizar o mercado. A demora deste processo tem prejudicado o mercado? Não. Todas as liberalizações que aconteceram em vários países demoraram até mais tempo. É preciso ver que Macau é um mercado muito pequeno, tem uma situação delicada pois tem um aeroporto em competição com, pelo menos, cinco na vizinhança, e todos eles internacionais. No Japão, nos anos 50, houve um processo de liberalização que demorou algum tempo, e foram apenas permitidas três empresas. Houve o cuidado de estabelecer rotas e tarifas. O mercado de Macau não está a ser afectado [por esta espera] porque várias empresas vêm para o território. A proposta de lei tem de passar ainda pela fase da especialidade e aí pode haver muitas mudanças. Deram mais três anos de concessão à Air Macau e, pelo que li, nas notícias penso que se quis ver qual era o prazo para as futuras licenças. Actualmente é de 25 anos, e não sei se se pretende criar um prazo que seja parecido com o sector do jogo, que na nova versão legislativa é de 10 anos. Foram apenas três anos [de extensão da concessão à Air Macau], o que dá tempo para uma adaptação para que novas empresas se possam preparar caso queiram vir para Macau. Depois haverá a distribuição das licenças por concurso, embora também esteja prevista a figura do ajuste directo, mas penso que será aberto concurso. Terá então de ser analisado quantas licenças comporta o mercado. E quantas pode comportar? Tendo em conta que o sector do jogo tem seis licenças, o mercado de aviação suporta mais ou menos? Depende das rotas que essas empresas vão comprar, digamos assim. Pode-se dizer que o mercado está saturado porque as pessoas podem apanhar um avião através de Hong Kong. Mas há aeroportos que servem cidades de nível 1, em termos populacionais. Todas as que estão logo abaixo, de nível 2, não estão servidas directamente por um aeroporto. Muitas vezes esse mercado pode ser lucrativo para várias empresas, que em vez de concorrerem numa rota de Hong Kong para Londres, por exemplo, vão de Hong Kong para Manchester. Servem cidades que surgem logo a seguir em termos de fluxo de passageiros e de carga. É difícil dizer quantas empresas vão entrar no mercado. Algumas simplesmente vão aparecer porque outras decidiram entrar. Há essa influência. Sim, muitas empresas funcionam assim. Apostam num mercado depois de terem conhecimento que empresas concorrentes vão entrar. Não sabem o que é o mercado nem o que vai existir nele, mas olham para a empresa concorrente e pensam que deve haver alguma coisa de atractivo para ela fazer essa aposta, e tomam essa decisão. Fazem-se estudos de mercado sobre a população que existe perto de determinado aeroporto, analisa-se as principais actividades económicas e o fluxo de pessoas por aeroporto, e aí analisa-se a possibilidade de atrair uma parte desse fluxo. Tudo isto está ligado ao número de licenças a atribuir. O Governo [de Macau] pode fazer uma auscultação para tentar perceber quantas empresas estariam realmente interessadas e depois então determinar um número de licenças que dê para comportar. Ou então, pura e simplesmente, decide atribuir três ou seis, ou até cinco mais discricionariamente. Pode ser usado qualquer método. Falando do período de atribuição das licenças. É melhor ser de 10 anos, ou de 25 anos? Pode ser de 10 anos porque normalmente as previsões das empresas são feitas a cada cinco anos. Isso corresponde a dois períodos, uma década. As empresas querem sempre saber se querem utilizar um aeroporto como destino de passageiros ou onde possam recolhê-los e viajar para outros lados. Não vejo qualquer problema que se atribuam licenças de 10 anos porque nesta área há um grande desenvolvimento tecnológico e pode mesmo ser necessário reduzir os prazos das licenças. Está a decorrer uma grande transformação em todo o sector do transporte aéreo internacional e há novos tipos de equipamento aéreo mais rápido, mais ecológico e que permitem ligar cidades ou pontos mais pequenos. O tráfego, em vez de se fazer por terra, faz-se por ar. Isso vai acontecer, porque as pessoas saem dos carros e passam a deslocar-se no ar. Há o potencial de Macau vir a ter o transporte por helicóptero mais desenvolvido, à semelhança do que acontece em São Paulo, por exemplo, nas deslocações para territórios vizinhos? Sim. Aí a própria noção de aeroporto também se modifica, porque um aeroporto tem pistas de aterragem, e com as novas tecnologias que estão a ser desenvolvidas, com os chamados aparelhos de descolagem vertical, deixa-se de ser necessário construir aeroportos ou equipamentos tão grandes. Neste momento, há um número reduzido de pessoas que viaja de helicóptero, e até carga, mas no futuro pode haver mudanças. Com uma descolagem vertical não é necessário ter uma pista de aterragem. Esse é o resultado da ligação da tecnologia ligada ao espaço e ao ar. Os aviões, para terem mais velocidade, vão subir mais alto do que sobem agora, e falamos de velocidades vertiginosas, maiores do que aquelas que existem agora. O normal actualmente é de cerca de 900 quilómetros por hora, e pode ultrapassar três a cinco vezes mais essa velocidade, e essa tecnologia já existe. Mas não existem ainda os acordos necessários para isto se efectivar e ser aceite. Tantos anos de monopólio da Air Macau tiveram impacto negativo no mercado local? Não, porque este monopólio coincidiu com a entrada em funcionamento do aeroporto. Para se criar uma indústria é necessário haver um certo nível de protecção, porque o mercado de Macau é mais pequeno e está em competição com outros, e essa foi a solução de momento. É claro que agora já se pode avançar para um outro nível. Mas, no início, o monopólio fez sentido. Caso contrário era quase impossível existir uma companhia de bandeira de Macau, pois imediatamente teria o mercado tomado por outras empresas de fora ou uma extensão de outra empresa com base nos aeroportos que estão à volta. O monopólio foi a solução encontrada para criar rotas e trazer passageiros. Corria-se o risco de o aeroporto não ter, sequer, movimento. Foi preciso criar mercado. Sim. Neste caso pretendia-se trazer um novo tipo de actividade económica para Macau e nem todos os territórios deste tipo têm isso. Há territórios demasiado pequenos para terem aeroporto, como é o caso do Mónaco, que recorre ao aeroporto de Nice. Gibraltar tem um aeroporto que está no meio de uma estrada, que funciona como estrada e pista de aterragem. Neste processo de liberalização haverá maior interesse de empresas chinesas ou do sudeste asiático? As empresas chinesas têm já muitas ligações com Macau, mas poderá haver uma ou outra que tenha interesse em estabelecer-se no território, por incentivos fiscais ou através da criação de outras rotas. A novidade vai ser empresas que venham de mais longe, talvez do Médio Oriente, que podem fazer voos entre o Ocidente e o Extremo Oriente, aterrando em cidades que ainda não estão servidas de rotas directas. Esta será a primeira internacionalização que prevejo. Depois poderá haver ligações directas para a América do Norte e depois para a América do Sul, em que não há nenhuma ligação. Tendo em conta os fluxos de comércio que já existem, faz sentido existirem essas conexões. Do que conhecemos da proposta de lei que está na Assembleia Legislativa, considera que tem um conteúdo inovador e equilibrado? É bastante extensa, inovadora onde pode ser. A aviação civil é uma área em que a inovação é muito rápida e em termos legislativos não se consegue estar completamente ao mesmo nível. Na área dos drones, por exemplo, há um desenvolvimento muito maior do que a possibilidade de se legislar sobre o assunto. É uma proposta de lei que abrange mais áreas, que estabelece alguns princípios a fim de evitar conflitos de interesses entre a Administração, que faz a supervisão, e possíveis empresas que estejam em contacto com a realidade da aviação. A proposta de lei cobre uma série de áreas e está bem integrada com os tratados e acordos multilaterais que estão em vigor. É bastante mais extensa e melhor do que a anterior. Se demorarem muito tempo na análise na especialidade a proposta de lei entra rapidamente em desactualização, porque é assim nesta área. Não se pode demorar muito tempo, se não há o risco de ficar desactualizada antes de ser publicada. Mas tenho a dizer que há um aumento previsto do mercado de aviação, tendo em conta alguns estudos que vi da Airbus e Boeing, e outras, são todos coincidentes a concluir o aumento do tráfego aéreo, há essa expectativa. Sei que é mais de 10 por cento por ano, e isso sustenta a liberalização do mercado, só esse factor. Mas a própria liberalização traz um aumento de mercado, porque as pessoas quando têm mais possibilidades vão experimentar. Há necessidades de transporte de pessoas e de carga que neste momento demoram mais tempo porque têm de usar outros pontos. Se houver uma concentração em Macau, isso pode ser concorrencial. Macau pode ser mesmo concorrencial se utilizar mecanismos, e estão previstos alguns, de incentivos fiscais, custos mais baixos e um bom sistema de escoamento de carga e pessoas. Em Macau aplicam-se todos os tratados internacionais à excepção de um, e em Hong Kong a mesma coisa. Trata-se de um acordo que só se aplica no Interior da China, que é a Convenção da Cidade do Cabo, sobre o que se pode fazer em caso de insolvência das empresas de aviação para poder recuperar os aviões que ficam parados. Portanto, em matéria de tratados internacionais não existe qualquer problema, nem no facto de a legislação ter demorado cerca de 20 anos a ser revista. Houve países em que se demorou mais tempo.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteViolência doméstica | Associação organiza workshops com sobreviventes Cecília Ho, académica e conselheira da Associação de Apoio Mútuo às Vítimas de Violência Doméstica de Macau, relata ao HM o mais recente projecto da entidade: ensinar sobreviventes de violência doméstica a relatar histórias de vida e traumas vividos. Já foram realizados dois workshops Qual a importância deste projecto em Macau? Parece ser algo inovador. Em Macau, a ideia de envolver os utentes na prática e educação em torno do trabalho social é algo pouco popular. A maioria dos utentes são encarados como “beneficiários de serviços”, enquanto as vítimas de violência doméstica são tidas como “frágeis” e “vulneráveis”. Estas vítimas podem mais facilmente ser afectadas pela exposição das suas experiências publicamente. Assim, envolver os sobreviventes de violência doméstica na educação do público e dos profissionais envolvidos no combate e prevenção deste tipo de crime é uma abordagem inovadora e progressista. O lema da nossa associação é “Nada sobre nós, sem nós”, e, assim, o conceito de envolvimento dos utentes pode relacionar-se com as ideias de democracia, capacidade e desenvolvimento de serviços. Na Associação de Apoio Mútuo às Vítimas de Violência Doméstica de Macau (MDVVMS, na sigla inglesa) temos conseguido envolver diferentes voluntários e mentores de diferentes origens. Somos todos iguais e respeitamo-nos mutuamente no intuito de ouvir as vozes dos sobreviventes de violência doméstica que nos relatam as histórias pelas quais passaram. Mas também reconhecemos o conhecimento e sabedoria destes utentes durante o período de sobrevivência em contexto de relações abusivas. As suas experiências e conhecimentos são preciosos e podem constituir um grande contributo para que a nossa sociedade compreenda o problema social, com raízes profundas, que é a violência doméstica, e que ainda é um tema estigmatizado. Daí termos criado a série de workshops “Formação em Biblioteca Humana”, destinada a sobreviventes de violência doméstica. Na prática como funcionam estes workshops? Recorrendo a diferentes meios artísticos, como o desenho de auto-retratos, a dramatização interactiva com outras pessoas, a escrita de uma linha cronológica da história de vida e o diálogo conversacional, o nosso workshop visa, em primeiro lugar, permitir que as mulheres sobreviventes cuidem de si. Em segundo lugar, pretende-se que se curem do trauma, ouvindo a sua voz interior, para que possam exprimir emoções profundas como a raiva, tristeza ou tranquilidade. Depois, queremos que as vítimas explorem a sua força interior com o apoio dos nossos mentores e apoiantes. Finalmente, iremos oferecer alguns workshops públicos de formação contra a violência doméstica para que sobreviventes de violência doméstica partilhem as suas histórias, utilizando o formato de biblioteca humana. Concretamente, como pode este formato ser aplicado em Macau, tendo em conta as características da sociedade? O conceito de “Biblioteca Humana” cria um espaço seguro para o diálogo, em que diversos temas são discutidos abertamente entre os nossos “livros humanos” e os “leitores”. As sobreviventes de violência doméstica são um grupo frequentemente sujeito a preconceitos, estigmatização ou discriminação, especialmente as esposas recém-migradas da China continental para Macau. Não é fácil implementar este modelo, mas eu, como educadora de trabalho social, tenho vindo a implementar este modelo há mais de 17 anos, pelo que já faz parte da minha abordagem de ensino, especialmente no meu curso de “Trabalho social e diversidade” e “Estudos de género”. Tenho já uma rede, ou “colecções de livros humanos” relacionados com diferentes temas sensíveis e com pessoas alvo de estigma, como as minorias sexuais, toxicodependentes, trabalhadores domésticos estrangeiros e sobreviventes de violência doméstica. Essa rede participou neste projecto? Convidei-os a assistir à minha aula para partilharem a sua experiência e dialogarem cara a cara com os alunos de serviço social. Falaram brevemente sobre as regras de leitura dos “livros humanos”, como garantir o respeito, privacidade e o não julgamento, mediante a ideia de que não se deve “julgar o livro pela capa”. Assim, precisamos de mergulhar para compreender as histórias de vida. Combinando o conceito de “Biblioteca Humana” com a comunidade chinesa local, treinamos as nossas sobreviventes e deixamo-las sentir-se seguras e confortáveis para partilhar. Damos-lhes todo o apoio e respeitamos o nível de revelação e participação. As suas histórias devem ser complicadas e precisam de ser organizadas com alguns incidentes significativos, por isso, aprendemos com algumas experiências no estrangeiro, nomeadamente o Centro Nacional de Recursos sobre a Violência Doméstica, nos Estados Unidos da América, que concebeu um guia para ajudar os sobreviventes a explorar a jornada de partilha da sua história com o público. Em suma, a nossa associação tem explorado oportunidades para que sobreviventes partilhem as suas histórias, como realizar discursos para membros do Governo, dar entrevistas aos meios de comunicação, de forma anónima, ou simplesmente dar encorajamento a vítimas durante uma sessão de grupo. Também prestamos formação a assistentes sociais, e no ano passado, por exemplo, demos formação a cerca de 50 conselheiros escolares da Caritas. A resposta foi muito encorajadora e positiva, os participantes sentiram-se muito tocados e compreensivos em relação aos livros dos sobreviventes de violência doméstica, que também se sentiram fortalecidos após o diálogo presencial. A associação está também a promover um debate público com consultores jurídicos sobre violência doméstica que decorre este domingo. Quais são os principais objectivos deste evento? Queremos fazer com que o público oiça as vozes dos sobreviventes de violência doméstica, especialmente os seus pontos de vista e a sua experiência no encontro de muitos obstáculos no processo judicial, tais como a inexistência de aconselhamento jurídico adaptado para as vítimas de violência doméstica. A maioria dos casos foram arquivados, por serem tratados como ofensas à integridade física, que um crime semi-público que depende de queixa da vítima, em vez de violência doméstica. Hoje realizamos um primeiro workshop sobre a questão legislativa, e ouvimos também as opiniões dos sobreviventes. Continua a ser complexo um processo judicial para uma vítima? As vítimas de violência doméstica enfrentam muitas questões jurídicas relacionadas com divórcio, direitos parentais, pensão de alimentos. Por exemplo, os ex-maridos não pagam a pensão de alimentos regularmente, como podem as mulheres ir a tribunal? Mas os profissionais, nomeadamente os assistentes sociais, têm de ter consciência de que têm a atitude de culpabilizar as vítimas, o que os impede de mostrar empatia e compreensão para com os sobreviventes. Isso cria desconfiança entre profissionais e vítimas, o que não ajuda no processo de intervenção e cura. Esperamos, em última análise, apoiar as mulheres que são vítimas ou sobreviventes a lutarem pelos seus direitos e a ajudarem-se mutuamente, especialmente se viveram experiências de violência doméstica semelhantes. Os nossos workshops têm como missão transformar as experiências abusivas e traumáticas das vítimas em força, conhecimento, sabedoria e paixão pela área dos direitos humanos. A partilha pode, sem dúvida, ser útil para motivar mais pessoas com experiências semelhantes a ganharem coragem para acabar com o ciclo de violência. Também nos preocupamos muito em acabar com a transmissão intergeracional da violência, ou seja, cenários de exposição à violência familiar nas crianças. Para isso, colaborámos com uma organização não governamental e recrutámos adolescentes como voluntários para cuidarem e organizarem actividades para os filhos de sobreviventes de violência doméstica. Podemos testemunhar o impacto negativo sobre as crianças que testemunham a violência parental no grupo de crianças paralelo ao nosso grupo de mulheres.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteAugusto Nogueira, presidente da ARTM: “Esperamos que a lei da droga seja revista” Depois de assinalar o Dia Mundial Contra a Droga e Tráfico Ilícito, a Associação de Reabilitação dos Toxicodependentes de Macau organiza hoje e amanhã na Universidade de Macau um painel de conferências intitulado “Tratamento de perturbações relacionadas com o consumo de substâncias”. Augusto Nogueira, presidente da associação, faz uma antevisão do evento e apresenta algumas sugestões Quais os principais objectivos desta conferência na Universidade de Macau? Queremos promover o tratamento em contexto de comunidade terapêutica como a opção de maior sucesso em termos de recuperação em detrimento de medidas mais punitivas. Também queremos mostrar os bons serviços que a ARTM tem prestado em termos de tratamento e modernização terapêutica graças ao apoio do Instituto de Acção Social e ao elevado conhecimento dos nossos colaboradores. Tal vai servir para um desenvolvimento das acções de intercâmbio e evidência dos sucessos de outras comunidades terapêuticas. Um dos pontos deste painel de conferências passa pela entrega de um certificado por parte da ATCA [Australian Therapeutic Community Association] à ARTM. De que se trata e quais os principais benefícios para o vosso trabalho em Macau? Fomos alvos de uma revisão por parte da ATCA durante uma semana em termos de todos os serviços que providenciamos ao nível da comunidade terapêutica, tratamento, regras e normas adoptadas, sem esquecer as formas de comunicação. Cumprimos com os requisitos e padrões da ATCA e demonstrámos um compromisso ao nível da qualidade e segurança. Este certificado irá fazer com que estejamos mediante revisão e análise constantes dos nossos serviços, o que vai exigir mais de nós para que mais pessoas possam recuperar dos seus problemas. Além disso, o certificado que nos foi atribuído vai constituir uma prova de qualidade e de credibilidade dos nossos serviços terapêuticos. Irão participar no painel de conferências representantes de países da Ásia, incluindo a China, cujas realidades de tráfico e consumo são diferentes. A ideia é reunir consenso e aprendizagens? Pretendemos partilhar aprendizagens, métodos e observar o que os outros fazem. Por exemplo, o representante da Vila Maraine, em Itália, vai explicar a cooperação que tem com o poder judicial, em que pessoas com problemas de toxicodependência e de tráfico em pequenas quantidades, ou seja, para sustentar o consumo, tem a possibilidade de poderem ser encaminhados para uma comunidade terapêutica após a condenação a prisão efectiva. Algumas pessoas com pulseira electrónica e outros não necessitam de o fazer, o que acho interessante. A SARDA [The Society for the Aid and Rehabilitation of Drug Abusers] é uma associação com a qual a ARTM tem laços de amizade e de apoio há muitos anos. É uma associação que também segue os princípios de comunidade terapêutica, mas com outras vertentes, como serviços de metadona. A SARDA tem uma grande dimensão em Hong Kong. Teremos ainda uma mesa redonda sobre a prevenção, algo que na Europa caiu em desuso com consequências negativas bem visíveis, como podemos observar em Portugal. O maior consenso que poderá sair desta conferência é que a prevenção, tratamento e redução de danos têm de estar de mãos dadas. Nunca devemos esquecer que o grande objectivo é a recuperação da pessoa e não a continuidade na dependência. De Portugal chega a representação de “Ares do Pinhal”, uma comunidade terapêutica. Quais as grandes diferenças e semelhanças com a ARTM em termos de métodos? As duas instituições têm abordagens bastante semelhantes, embora a “Ares do Pinhal” esteja a desenvolver um trabalho de excelência e de uma maior dimensão a nível de redução de danos, bem como a prestação de apoio a pessoas em situação de sem abrigo. Trata-se de realidades diferentes em comparação com Macau e tenho a certeza que vamos todos aprender muito com eles. Muitas vezes as aprendizagens acontecem, mas as circunstâncias reais não permitem a sua aplicação. No entanto, nós, ARTM, estaremos preparados caso a situação mude com o aumento exponencial do consumo, ou o regresso ao consumo de heroína. Tanto a ARTM como a “Ares do Pinhal” têm um modelo holístico e isso é de valorizar, pois não há muitas instituições a trabalhar desta forma, em que se trabalha o problema da dependência como um todo. Juntam-se os cenários de prevenção, tratamento, reinserção e redução de danos. Nesta conferência vai ser apresentado o projecto de integração social “Hold On To Hope”. Que balanço faz do trabalho feito até aqui? Tem sido um balanço bastante positivo, pois já passaram pelo projecto 36 pessoas, sendo que 26 estão reinseridas com sucesso. O projecto “H2H” não visa apenas recolocar as pessoas no mercado de trabalho, mas sobretudo ensinar-lhes valores como a comunicação, pontualidade, responsabilidade e disciplina. Já fizemos quase 30 exposições, cerca de uma por mês. Estamos muito contentes com o projecto que tem sido alvo de grandes elogios a nível mundial na nossa área de trabalho. É pena o facto de continuarmos a ter dificuldades com a falta de estacionamento em Ka-Hó. Seria bom que o Governo resolvesse este problema para o desenvolvimento do projecto e da própria vila. Que respostas novas para a RAEM podem sair desta conferência? A resposta nova que pode sair deste evento é o começo de um maior encaminhamento de pessoas com problemas de adição para a ARTM e outras entidades equivalentes. Esperamos também que a lei da droga seja revista para exigir mais provas de tráfico, para que [as autoridades] não partam do pressuposto de que determinada quantidade de droga é para tráfico. Isso iria evitar que muitas pessoas fossem presas, podendo, em alternativa, obter um tratamento adequado. A tendência mundial é de discriminalização do consumo de droga, mas em Macau a tendência parece ser oposta, e recentemente até uma técnica da Polícia Judiciária (PJ) defendeu, num estudo académico, a possibilidade de pena de morte. Qual o seu comentário sobre este panorama no território? Não sei se a tendência mundial é mesmo essa, pois nos muitos países que antes tinham essa convicção estão neste momento a ponderar a situação de outra forma, muito devido ao consumo de Fentanyl, onde a redução de danos está a falhar redondamente. Além disso, existem muitos grupos de activistas consumidores que fazem uma comunicação muito agressiva, o que tem irritado alguns países. Estes grupos não pedem apenas descriminalização, mas sim a legalização de todas as drogas. Muita coisa está a mudar e muitas pessoas estão a morrer todos os dias. Muitos dos países estão de acordo com a necessidade de haver serviços de redução de danos com qualidade e o objectivo de incentivar essas pessoas a procurar ajuda, mas a descriminalizar como um direito é algo que está a perder força. Para se dar prioridade ao tratamento não é necessário mudar a lei na sua totalidade, mas fazer apenas alguns ajustes. Quanto ao comentário da técnica da PJ, não tem fundamento nenhum e nem merecer ser comentado. Após a pandemia, que se reflectiu nas formas de tráfico e consumo, Macau mantém a mesma situação, ou verificaram-se alterações profundas na forma de comprar e consumir? Julgava-se que iria existir um aumento exponencial após a pandemia, mas o que temos observado é o oposto. Existiu um aumento gradual, mas pouco significativo. Mesmo ao nível do tráfico tem sido pontual, o que pode ser sinal de um bom trabalho da nossa polícia e dos trabalhos de prevenção de diversas instituições, inclusive do nosso projecto “Be Cool”. No entanto, tudo isto pode mudar muito rapidamente e temos de estar atentos. É natural que exista consumo escondido, e será sempre escondido quando o consumo é criminalizado. Devemos estar contentes com a corrente situação e desejar que assim continue.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteLuís Bernardino, investigador e docente universitário: “Passagem de Macau para a China foi exemplar” Luís Bernardino, docente da Universidade Autónoma de Lisboa, faz parte do recém-criado think-tank “Global Strategic Platform”, que irá organizar uma série de eventos centrados na China. O programa está a ser preparado e não deixa Macau de fora. Luís Bernardino fala ainda sobre o sucesso da transição de Macau Foi apresentado, há dias, o projecto “China Sessions” no âmbito da “Global Strategic Platform”. Em que consiste esta iniciativa? A “Global Strategic Platform” é uma plataforma virtual que liga professores que estão nos EUA, Angola e Portugal e que foi criada há cerca de dois anos para organizar eventos que sejam de carácter global nas áreas da geopolítica e geoestratégica, ou mesmo relações internacionais. Nessa altura, criámos as “Africa Sessions” que, de certa forma, nos últimos dois anos, tem feito um caminho no sentido de ter conferências sobre os temas da agenda africana. No ano passado surgiu-nos a ideia de ampliar este projecto, ou seja, criar dois outros pilares. Um deles é o “Transatlantic Sessions”, ou seja, estudar as relações transatlânticas, e começámos a fazer isso, e agora queremos criar uma terceira área de estudos sobre a China, com as “China Sessions”. Este segmento pretende ser um conjunto de eventos que procuramos criar online, embora alguns eventos sejam presenciais, com transmissão para todo o mundo, sobre a problemática da China no mundo. A ver pelo primeiro tema, e a adesão das pessoas, temos um bom acolhimento. Fizemos esta sessão de abertura no Centro Científico e Cultural de Macau e isso foi muito importante porque essa relação tem de estar ligada a Macau. De que forma? Macau desempenha um papel muito importante na relação da China com África, e se quisermos ser mais concretos, com os países de língua portuguesa. Isso parece-nos ser também um vector importante de análise. Portanto, queremos trazer essas temáticas para as “China Sessions”, cujo programa de actividades estamos agora a desenvolver. Será uma espécie de think-tank? Será um think-tank que pretende abrir a discussão ao mundo global utilizando as ferramentas digitais, congregando pessoas de todos os quadrantes, a nível mundial, num tema que nos parece muito actual por várias ordens de ideias. Desde logo porque a China já é um actor global e as dinâmicas do país têm impacto com todos os outros actores. É importante que este projecto possa realizar essa análise. Vamos ter vários campos. A primeira conferência foi sobre a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”, e vamos já fazer uma segunda sessão em que falaremos sobre os dez anos da mesma iniciativa, mas numa perspectiva mais económica. Depois queremos abrir espaço para falar sobre segurança, cultura, diplomacia. São esses os objectivos que temos. Vamos abrir este projecto a todos, embora tenhamos uma dificuldade acrescida quanto à língua, nomeadamente ao chinês e dos fusos horários. Se estamos a estudar, comentar e a analisar a China, também queremos ser ouvidos na China e que as nossas actividades cheguem ao país e a Macau. Temos algumas ideias nesse sentido e queremos encontrar um equilíbrio entre aquilo que são as necessidades de ajustamento de temas com os tempos e as horas. Vão ser estabelecidas mais ligações a Macau? Depende de cada um dos temas e de cada um de nós [participantes nas “China Sessions”]. Conheço relativamente bem Macau, a Fundação Rui Cunha, as universidades, e vamos tentar gerar oportunidades. Estamos disponíveis para nos associarmos na realização de conferências, por exemplo. Queremos aprofundar algumas das nossas experiências que já concretizamos nas “Africa Sessions” para as “China Sessions”. Vamos todos ganhar com isso porque teremos diferentes painéis com especialistas que nos vão mostrar aquilo que, de facto, a China está a fazer no mundo. É importante compreendermos essa dinâmica crescente da China nos vários vectores em que se posiciona, não apenas na “Faixa e Rota”, mas demais áreas conexas. Que balanço faz dos dez anos da iniciativa lançada por Pequim? Penso que há ainda muito a descobrir. Em dez anos não dá ainda para ver perfeitamente o alcance daquilo que são as dinâmicas de “Uma Faixa, Uma Rota”. Uma coisa me parece clara é a intenção da China de querer ser uma potência global, mas também penso que não há ainda uma ideia concreta de como isso vai acontecer. Para ser uma potência global tem de ser uma potência económica e militar, e também ao nível diplomático, e esses vectores todos têm de estar congregados numa estratégia nacional que às vezes me parece algo difusa. Por definir? Por definir em alguns aspectos. Obviamente que “Uma Faixa, Uma Rota” é um projecto global, de grande alcance, de longo termo, e creio que estes dez anos também serviram para a China aprofundar e desenvolver um pouco da sua estratégia de abordagem global. Terão de ser alinhados outros instrumentos do poder com a parte económica. Macau tem também um certo posicionamento a cumprir nesta iniciativa. Considera que tem desempenhado o seu papel da melhor forma no âmbito de “Uma Faixa, Uma Rota”? Penso que sim. Macau desempenha um papel muito importante, não apenas na relação com os países de língua portuguesa, mas também com a geografia global. Macau, obviamente, representa também para a China uma forma diferente de olhar para esta iniciativa. Eventualmente, da parte da CPLP [Comunidades dos Países de Língua Portuguesa] e países lusófonos não há, ainda, um completo entendimento e perspectiva de como isto pode ser benéfico na transacção comercial e na linha do que será a geopolítica do futuro. Portanto, há uma aprendizagem que deve ser feita, e Macau representa uma coisa interessante. Muitas vezes discutimos a questão das independências e a passagem de Macau [no que respeita à administração portuguesa] para a China foi, de facto, exemplar, permitindo criar estruturas, dinâmicas, consensos e projectar o território numa parceria que facilita quem está na China e em Macau. O território é agora uma porta de entrada para os países que querem apostar na China como entidade parceria, e também na construção de uma relação comercial. Esse é um activo estratégico de Macau na geopolítica da relação da China com o mundo. Vamos ver se a China consegue, efectivamente, perceber isso e potenciar esse instrumento de política externa que é e será Macau. De certa forma, o tamanho não conta, neste caso. Macau é um território de tamanho muito reduzido, mas tem uma dimensão geoestratégica muito grande. Essa é condição para que Macau seja vista pela China e pelo mundo como um espaço geoestratégico relevante no contexto global. Celebra-se este ano o 25º aniversário da transição da administração portuguesa de Macau para a China. O balanço que faz do território é positivo? Macau tem sabido posicionar-se em todos estes contextos? Sim. Há de facto muitas coisas positivas. Foi bom o facto de haver uma parte cultural, da lusofonia, da língua e cultura portuguesas que se mantém. Estive em Macau e gostei de ver o património, o Clube Militar, e sentimo-nos muito em casa em Macau, com tanta história que ficou num espaço tão longínquo e distinto. Portugal fez uma transição exemplar que é vista como um bom exemplo na transição entre Estados. A minha avaliação é positiva e veremos se temos capacidade de apostar e fortalecer esta relação e perceber que Macau é, de facto, importante nesta nossa ligação com a China e CPLP.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteJoão Graça Gomes, engenheiro e membro do Conselho Mundial de Energia: “Macau podia ser um caso de teste” João Graça Gomes, engenheiro sénior numa joint-venture ligada à EDP e China Tree Gorges, e membro do Conselho Mundial de Energia, falou na terça-feira, em Lisboa, sobre o panorama do sector da energia na China e no mundo e de como o país irá liderar nesta área. Em entrevista ao HM, o também membro do Conselho da Diáspora Portuguesa avança algumas sugestões que podem tornar Macau um exemplo em matéria de políticas ambientais sustentáveis Como descreve a evolução do sector energético na China nos últimos anos? A China tem registado um aumento expressivo do consumo energético, o que reflecte o seu rápido crescimento económico. Nos últimos 20 anos, o consumo primário de energia na China cresceu de 11.800 TWh [Terawatt Hours, medida de consumo energético] em 2000 para 47.428 TWh em 2023. Este crescimento foi particularmente acentuado nas regiões costeiras do país. Houve uma redução na dependência do carvão, embora este ainda represente 54 por cento do consumo energético. Em contrapartida, houve um aumento significativo no consumo de gás natural e de fontes renováveis, especialmente energia eólica e solar. A dependência externa da China aumentou de cerca de seis por cento em 2000 para 22 por cento em 2020. Essa tendência é especialmente evidente nas importações de produtos petrolíferos e gás natural. A China importa principalmente petróleo da Rússia, Arábia Saudita e Iraque. Já nas importações de gás natural, destacam-se a Austrália, Países Baixos e Emirados Árabes Unidos como principais fornecedores. E relativamente às exportações de energia? A China destaca-se por uma presença robusta na “supply-chain” [cadeia de fornecimento] mundial das energias renováveis. O país é um dos maiores produtores e exportadores de aerogeradores, painéis solares, baterias eléctricas e electrolisadores. A China também se destaca pelas elevadas taxas de extração e processamento de terras raras, cobalto, lítio e outros minerais essenciais para o desenvolvimento e suporte da infra-estrutura eléctrica. O país tem-se consolidado como um líder global no fornecimento de tecnologia que possibilita a transição energética. O processo de Reforma e Abertura, iniciado por Deng Xiaoping contribuiu para que o sector energético tenha crescido, em termos de segmento de mercado, no país? Desde esse momento, em 1978, que o país tem experimentado um rápido desenvolvimento socioeconómico, que se traduziu num crescimento médio do PIB [Produto Interno Bruto] de nove por cento ao ano. Entre 1978 e 2023, o consumo energético primário cresceu impressionantes 924 por cento, passando de 4.632 TWh para 47.428 TWh. Várias previsões indicam que essa trajectória de crescimento continuará nas próximas décadas. Para ilustrar a magnitude desse avanço, podemos comparar a realidade chinesa com a portuguesa. Em 1978, o consumo energético per capita em Portugal era de 13.054 kWh, enquanto na China era de apenas 4.850 kWh, menos da metade de Portugal. Em 2023, o consumo per capita na China subiu para 33.267 kWh, superando o consumo per capita português de 25.709 kWh. Em termos de segmentos de mercado, a indústria é preponderante, correspondendo a quase 49 por cento do consumo energético total da China. Este é o sector que mais evoluiu, impulsionado pelas reformas económicas que estimularam a industrialização massiva. O segundo sector com maior crescimento é o dos transportes, que agora representa 15 por cento do consumo energético. O sector residencial representa cerca de 16 por cento do consumo energético e tem-se mantido relativamente estável ao longo do tempo. De que forma Macau pode contribuir para este desenvolvimento do setor energético na China? Macau é uma região altamente urbanizada e com uma área bastante reduzida. Essas características limitam a instalação de grandes centrais de electricidade renovável. Mas Macau pode desempenhar um papel crucial no desenvolvimento do sector energético na China de diversas formas, especialmente na investigação e inovação. De que forma? Criando-se um laboratório urbano para comunidades sustentáveis, em que Macau poderia servir como um caso de teste para o conceito de comunidade energética sustentável e autónoma. A região poder-se-ia focar no desenvolvimento e criação de tecnologias ligadas a energias renováveis, como painéis solares e sistemas de armazenamento de energia com baterias. Essa abordagem pode transformar Macau num modelo de eficiência energética e autossuficiência. Pode-se também apostar na descarbonização dos transportes, reduzindo as emissões de carbono e aumentar a qualidade do ar. A implementação de veículos eléctricos e a construção de uma infra-estrutura de recarga robusta podem posicionar Macau como líder na mobilidade sustentável. Mas pode também ser feita uma aposta no desenvolvimento de tecnologias de dessalinização. De que forma poderia ser feito? Através da instalação de centrais de dessalinização abastecidas por energia renovável, que poderia garantir o abastecimento de água de Macau de forma sustentável, minimizando a dependência de recursos hídricos externos e contribuindo para a segurança hídrica. A nível académico, o que poderia ser implementado nesta área? Macau pode utilizar as suas universidades e instituições para estimular estudos avançados em sustentabilidade energética. A colaboração com países de língua portuguesa pode trazer novas perspectivas e tecnologias, fortalecendo a posição de Macau como um “hub” de inovação energética. Macau pode estabelecer parcerias para troca de conhecimentos e tecnologias no sector energético. Isso pode incluir projectos conjuntos de pesquisa, desenvolvimento de novas tecnologias e capacitação de recursos humanos. Usando estes princípios, Macau alcançar a neutralidade carbónica, servindo como exemplo inspirador para outras regiões da China e tornar-se um exemplo global de sustentabilidade urbana e inovação tecnológica. Como descreve o futuro da China no mercado energético mundial? O Governo da China anunciou em 2020 uma meta para alcançar a neutralidade carbónica até 2060, algo extremamente ambicioso considerando que o país é actualmente o maior emissor de dióxido de carbono do mundo. Estas emissões devem-se principalmente à elevada dependência do carvão para produção eléctrica. No entanto, se a China continuar no caminho da descarbonização, poderá tornar-se uma superpotência energética. O país já é o maior investidor em tecnologias de energia renovável, e essa tendência deve continuar a crescer. A China tem consistentemente superado as suas metas de integração de energias renováveis, estabelecidas nos planos quinquenais do Governo Central. Nos três últimos planos quinquenais, o país ultrapassou largamente as taxas de crescimento previstas para a capacidade instalada de fontes de energia de baixo carbono, tanto renováveis como nuclear. Se a China continuar neste caminho, não só alcançará os seus próprios objectivos ambientais, mas também definirá o futuro do mercado energético mundial. O seu compromisso com a expansão de energias renováveis e a redução de emissões de carbono poderá influenciar políticas energéticas globais. A energia é, cada vez mais, um factor fundamental nas relações diplomáticas? A China, neste capítulo, tem-se posicionado da melhor forma? Sim. Citando Henry Kissinger: “Quem controla a energia pode controlar continentes inteiros”. Neste contexto, a China tem se posicionado de maneira estratégica e eficaz. O país desempenha um papel crucial no futuro do sector energético mundial, evidenciado pelo facto de que, entre os dez maiores produtores de painéis solares, sete são empresas chinesas, e quatro dos dez maiores produtores de aerogeradores também são chineses. No mercado de carros eléctricos, que se correlaciona com a transição energética, a BYD, destaca-se como a maior produtora mundial. Além disso, nos últimos anos, a China tem assegurado a aquisição de minas de metais essenciais em diversos países, necessários para a manufactura de baterias eléctricas, microchips e outros equipamentos vitais para a transição energética. Actualmente, a China produz mais de 80 por cento do total global de metais raros, posicionando-se como líder incontestável no suprimento desses recursos críticos. Esta estratégia tem sido extremamente positiva para a China, demonstrando como o país tem investido em áreas-chave para o futuro do sistema energético mundial. Têm sido evidentes os acordos e investimentos feitos com outros países nesta área? A China tem investido além de suas fronteiras para aprender mais e facilitar a cooperação energética. Um exemplo claro é Portugal, onde algumas das maiores investidoras no sector energético são empresas chinesas. A maior accionista da EDP é a China Three Gorges, enquanto a maior accionista da REN é a China State Grid. Contudo, é importante lembrar que não é positivo criar uma dependência excessiva de qualquer país, incluindo a China. Os países devem trabalhar para assegurar a sua independência energética, diversificando as suas fontes de energia e fornecedores. A busca por uma matriz energética diversificada e segura é essencial para evitar vulnerabilidades económicas e políticas. Portanto, embora a China tenha se posicionado de maneira muito eficaz no sector energético global, oferecendo oportunidades de cooperação e desenvolvimento, é fundamental que outros países mantenham uma abordagem equilibrada e estratégica para garantir a sua segurança energética a longo prazo. Acredita no estreitar de relações com Portugal na área energética? Vejo de forma bastante positiva o investimento chinês no sector energético português. Tem sido duradouro, estável e permitido a várias empresas um crescimento acentuado. No entanto, nos últimos anos, a tensão geopolítica entre a China e os Estados Unidos tem, infelizmente, colocado algumas dificuldades na relação entre Portugal e a China. Como vê, então, o futuro? É difícil prever como evoluirá a relação entre os dois países. Espero que os governantes de ambos os países priorizem o realismo político sobre concepções ideológicas e procurem o melhor para ambos os países. Esse enfoque pode se traduzir numa relação mais estreita, com mais oportunidades de negócios e benefícios mútuos. Portugal deverá continuar a aproveitar o dinamismo e a capacidade de investimento da China no sector energético, enquanto a China poderá beneficiar da experiência e inovação de Portugal em energias renováveis e sustentabilidade.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteManuel Palha e Salvador Seabra, Capitão Fausto: Música, a linguagem universal Os Capitão Fausto actuam hoje no MGM Cotai Theatre às 20h, partilhando o palco com o músico chinês David Huang. Fica a promessa da partilha de sonoridades diferentes e dos grandes êxitos da banda. Em entrevista ao HM, os Capitão Fausto, pelas vozes de Manuel Palha, guitarrista e teclista, e do baterista Salvador Seabra, falam da sua essência, do início tímido e quase por acaso e da escalada até à construção coesa de um colectivo de músicos e amigos Chegaram a Macau há poucos dias e actuam hoje. É a vossa primeira vez no território. Como está a ser a experiência? Manuel Palha (MP): Chegámos muito curiosos para ver como é este sítio tão longe de Portugal, mas tão próximo ao mesmo tempo. Estamos a gostar imenso, ainda estamos a achar estranho este mundo diferente, mas de uma forma positiva, de andarmos pela calçada portuguesa, termos a cultura portuguesa e chinesa misturada. É uma experiência bastante fora do comum. O que poderemos esperar do concerto com David Huang? MP: Na primeira parte vai ser um concerto normal dos Capitão Fausto. Depois o David Huang a meio do espectáculo junta-se a nós e vai cantar uma música connosco, o “Amor, a nossa vida”, e nós iremos cantar uma música dele. Depois, o David Huang fecha o espectáculo com músicas dele. Como vai a vossa música enquadrar-se com a de David Huang? MP: São sonoridades bem distintas, mas, apesar disso, a parte que é divertida é que, apesar de estarmos em sítios completamente diferentes do mundo, com culturas diferentes, temos sons e abordagens diferentes, há muita coisa que nos liga. A música tem um lado universal, e esse é o lado que estamos a celebrar. Temos uma música que não é necessariamente o nosso estilo e tipo de som, mas rapidamente nos inteirámos dela. Ainda não tocámos com David Huang, mas tocamos amanhã [quinta-feira] e aí vamos poder trabalhar a ideia do que é a nossa vinda cá, de um certo intercâmbio e viver uma coisa que não é nossa. Essa é a parte divertida de tudo isto. Têm um novo álbum, “Subida Infinita”, lançado em Março. O que há de novo neste trabalho? MP: Sentimos sempre que, nem que seja em termos cronológicos, os nossos discos aparecem sempre em fases diferentes das nossas vidas. Este não foi excepção. Salvador Seabra (SS): À medida que vamos crescendo inevitavelmente vamos mudando um bocado a maneira de fazermos as coisas, mas ainda bem. Para nós é mais interessante. Apesar de haver coisas que se mantêm de disco para disco, e processos de composição que se vão mantendo, há sempre coisas que mudam. MP: Mudou muita coisa, apareceram filhos, o Francisco Ferreira saiu da banda. Todas estas coisas culminam neste disco, que acho que é diferente dos outros, de várias formas. São uma das bandas mais sonantes do actual pop-rock português. Consideram que trouxeram uma nova sonoridade a este género musical que se faz em Portugal? MP: Sabemos, pelo menos, que fizemos o nosso som. Ainda bem que as pessoas têm vindo a ouvir ao longo do tempo, mas é difícil avaliar o impacto que isso possa ter no panorama nacional. Sabemos que há uma verdade de nós os quatro. Sempre que nos juntamos sabemos que sai qualquer coisa que é nossa. O que é bom e interessante. SS: Toda a nossa música é também influenciada por outra música portuguesa e outra coisa que já foi feita. Fazemos as coisas à nossa maneira e penso que não nos cabe a nós dizer se influenciámos, ou não [o panorama da música portuguesa]. Que influências são essas? MP: Quando começámos a tocar havia editoras como a “FlorCaveira” e “Amor Fúria”, e havia bandas do norte de que gostávamos muito. Já tocávamos, mas não fazíamos canções em português e essas bandas até nos serviram de inspiração para fazermos canções em português. Quando começaram a haver bandas como os “2008”, “Peixe-Avião”, e em Lisboa tínhamos os “Diabo na Cruz” e o “B-Fachada”, isso levou-nos a ter vontade de fazer música em português e foi uma onda inspiradora. Os “Capitão Fausto” têm letras que falam de amores, desamores, muitas vezes com um cunho de ironia. Os temas do dia-a-dia são as vossas grandes influências na hora de escrever? MP: Sim. O Tomás [Wallenstein] é que escreve as letras, sempre. As letras são praticamente sempre sobre nós e a nossa vida, que é aquilo que conhecemos melhor. Sobre lidar com as coisas que nos acontecem. Mas há uma ideia que transparece bastante ao longo dos nossos discos que é o cantar a tristeza. A felicidade que está por detrás da tristeza, que vem depois, que se entrelaça com ela. As coisas que nos acontecem são fortes, mas há sempre qualquer coisa para cantar e a ideia de um novo dia a seguir. Isso tem estado patente nos últimos trabalhos. Lançaram o primeiro disco em 2011 [“Gazela”]. O que sentiram quando lançaram esse trabalho? MP: Foi uma fase diferente, éramos jovens na faculdade. Era muito divertido e gravar um disco era algo novo para nós. SS: Era tudo novo e entusiasmante. Sempre foi, desde que começámos a tocar no liceu, um sonho lançar um disco. Quando aconteceu foi algo extraordinário. Actuam em Macau no âmbito das celebrações do 10 de Junho. Sentem a responsabilidade de levar, com a vossa música, a cultura portuguesa? MP: Independentemente do sítio onde vamos tocar, sentimos sempre alguma responsabilidade de darmos o nosso melhor e fazermos o melhor espectáculo possível. Não costumamos tocar fora de Portugal, é muito raro, e esse concerto é entusiasmante também por esse motivo. Sentimos alguma responsabilidade. A internacionalização é um objectivo vosso? SS: De certa forma sentimos que a palavra, o idioma, não deveria ser um entrave, porque a música é forte o suficiente para ultrapassar essa barreira da língua. Pelo menos, nós gostamos de pensar assim. Gostávamos de, eventualmente, quebrar essa barreira, sair de Portugal e tocar mais. Não sabemos se vai ser possível, mas o tempo o dirá. Sempre houve um debate em Portugal sobre bandas portuguesas que cantam e compõem em inglês. Está nos vossos planos compor em inglês, por exemplo? MP: Não faz parte dos nossos planos. Em inglês iríamos contra aquilo que pensamos e juntamos ao longo do tempo, de ao dizermos uma coisa ela ser verdadeira. Sabermos exactamente o que se está a dizer, com que nuances e palavras. A nossa língua-mãe é a única que nos permite fazer isso de forma que consideramos honesta. O Tomás [Wallenstein] estudou a vida toda num liceu francês, e por isso, quanto muito, teríamos algumas canções em francês, porque o Tomás teria algo de verdadeiro a dizer com aquelas palavras, mais do que em inglês. [Usar o inglês] só com vista à internacionalização, ou para chegar a mais pessoas, é uma coisa que nunca faremos. Porquê o nome “Capitão Fausto”? MP: É apenas um nome. Criámos a banda em 2009. SS: Éramos miúdos e fizemos a banda para tocar no casamento de um tio do Tomás e tínhamos de arranjar um nome. Não há uma história associada ao nome. MP: Não há uma mensagem propriamente dita, ela surge depois com os nossos discos. Tendo em conta que têm alguns anos de carreira, como olham para a evolução da banda, como músicos, tendo em conta que saiu um elemento e atravessaram a pandemia? SS: Fizemos o primeiro disco em 2011, mas já tínhamos a banda há mais tempo. Na verdade, nunca tivemos muitas mudanças, sempre foi uma coisa de nós os cinco a fazer música da mesma forma. Sempre tivemos os mesmos objectivos, que era fazer música e tocar ao vivo. Tivemos a grande mudança com a saída do Francisco, e quando isso aconteceu foi uma coisa muito forte. Ponderámos se a banda deveria continuar ou não, se fazia sentido continuarmos sem ele. Continuámos e ainda bem. Penso que a mudança não foi tão drástica como pensávamos. Fizemos bem essa mudança, todos a aceitaram bem, temos agora novos músicos connosco a tocar ao vivo e tem sido óptimo. A mudança faz parte e quando as pessoas crescem, às vezes dividem-se. MP: A nossa história também tem a ver com a ideia de termos começado miúdos, cheios de sangue na guelra, a aprender a tocar juntos. Criámos as nossas primeiras bandas juntos. Fizemos um primeiro disco sem pensar muito bem no que estava a acontecer, houve uma recepção minimamente boa que nos levou a querer continuar. Fizemos o segundo disco, fomos para o terceiro e aí começámos a equacionar viver disto. Estávamos a acabar a faculdade e houve ali um momento em que todos nos atirámos e decidimos fazer isto até ao fim. Agora temos um percurso e o que nos liga é o facto de sermos só nós, e a nossa amizade, e como conseguimos meter o trabalho no meio de tudo isto.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteDiogo Pereira, académico: “O cargo de procurador jesuíta era muito polivalente” Diogo Pereira defendeu recentemente a tese de mestrado “Procuradores Jesuítas em Macau: redes de contacto e transferências materiais na primeira metade do século XVII”. O académico da Universidade Nova de Lisboa refere que os procuradores, coordenando vastas redes de influências, foram fundamentais para o sucesso das missões no Oriente Qual a importância da figura do procurador jesuíta no contexto das missões da Companhia de Jesus? O cargo de procurador era muito polivalente em termos de funções. Há, inclusivamente, um perfil que se vai esboçando, com base nos documentos legais escritos para guiar linhas de actuação do procurador. Este deveria ser dedicado ao seu ofício, naturalmente, garantindo as condições materiais e financeiras das missões, além de ser capaz de trabalhar em múltiplos ambientes, nomeadamente na área de negócios e contabilidade da Companhia de Jesus. O procurador deveria ser também um homem de confiança para a administração, pois seria ele a coordenar o dinheiro das diversas províncias. Era uma figura central, embora tenha sido negligenciada nos últimos anos pela historiografia. Os procuradores estavam mais próximos das autoridades portuguesas face aos restantes missionários jesuítas? Em comparação aos missionários teriam, certamente, uma proximidade maior, até porque o procurador respondia a uma tipologia multifacetada. Os que estavam em Lisboa respondiam aos procuradores provinciais, sediados em Goa, Malaca, Macau e nas missões na China e Japão. Depois existiam os procuradores dos colégios que assumiam as responsabilidades materiais de cada residência. Esta era uma rede de carácter global, em que os procuradores estavam estreitamente ligados a Macau. A correspondência que existe prova que havia circulação de materiais e de cartas, bem como de produtos e pessoas, nomeadamente missionários, que passavam por Lisboa em direcção às missões para as quais tinham sido destacados. Macau era fundamental e foi o ponto de partida para as missões jesuítas na China e Japão. Sim. Em Macau o procurador jesuíta estava sediado no Colégio de Madre Deus, até 1620 [nas actuais Ruínas de São Paulo] e era alguém que lidava com todo um intercâmbio de cultura, tecnologia e materiais. Era a partir de Macau que tentava adquirir os produtos que vinham do Reino, de Lisboa ou de Malaca, e que iam para a China ou Japão. Dessa forma tentava-se mitigar as necessidades estruturais existentes ao nível das pessoas e do provimento financeiro e material para o sustento dos missionários. Houve uma adaptação em termos de organização, muito em resposta às necessidades que foram aparecendo, sobretudo no Japão, onde a missão jesuíta teve um grande peso até ao início do século XVII, mas que depois se deteriorou. No caso da China, a missão jesuíta estava ligada a Macau por terra, sobretudo a partir de Cantão. Essa missão foi sempre muito complicada, teve sempre actores importantes com contactos locais, tal como mandarins ou a população comum, que às vezes fazia contactos oficiais. [Os jesuítas] tiveram sempre de se adaptar e reger pelo que foi permitir actuar nesses territórios. Havia, assim, um objectivo religioso e logístico com a actuação dos procuradores jesuítas. O objetivo da Companhia de Jesus sempre foi a disseminação, à escala global, do catolicismo. A China e o Japão eram dois territórios com uma grande densidade populacional, bastante longínquos, e com um peso muito simbólico a nível geográfico. Os dois países representavam a chegada do catolicismo ao Oriente e a sua disseminação num lugar que, 200 anos antes, não teria sido possível. Mais do que gerir trocas comerciais ou a própria missão religiosa, o procurador jesuíta também era importante para governar a província em consonância com os Governadores locais. O procurador sediado em Macau foi fundamental. Um traço disso é o documento que analisei na minha tese que fala na procuratura de Macau instalada no Colégio da Madre de Deus e que saiu, em 1620, para um local exterior. A ideia era que se dissociasse na Companhia de Jesus as esferas espiritual e comercial. Esse documento, escrito pelo padre Manuel Barreto, mostra que havia uma grande interdependência estabelecida pelo procurador jesuíta com os Governadores ou Capitães-Mor de Macau, ou ainda com os próprios mercadores que ganhavam peso nas naus que saíam de Goa para o Japão. Em Macau havia, assim, uma grande estrutura e uma rede de interdependências a nível regional e global. A sua investigação conclui que os procuradores jesuítas foram fundamentais para o alcance que as missões tiveram no século XVII. Eu e a minha equipa de trabalho percebemos que os procuradores foram agentes fundamentais e coordenaram uma larga estrutura de produtos e materiais. Todas estas actividades eram estruturais para as províncias e vice-províncias. No Reino, as subvenções régias chegavam facilmente, mas o dinheiro enviado do Reino para Goa e Macau chegava poucas vezes, segundo vários relatos, e quando chegava era insuficiente para as necessidades que se sentiam à época. Cremos que o procurador jesuíta era o grande responsável pelas missões nas províncias. A comunidade macaense era protagonista desta rede de apoio aos jesuítas? Sim, sem dúvida, por falarem as duas línguas. Muitas vezes tinham contactos locais que ajudavam o procurador a estabelecer negócios, a conseguir produtos mais baratos e de melhor qualidade. Não podemos esquecer que estes procuradores eram também mercadores e não apenas padres, para que a Companhia conseguisse atingir o máximo dos objectivos das missões. Portanto, a comunidade macaense era imprescindível para o trabalho do procurador e era uma rede de apoio fundamental. Existem ainda referências a homens que enganaram o procurador em negócios, produtos, compras, nomeadamente de sedas ou outro tipo de mercadorias. Houve pessoas que ajudaram a Companhia, assumindo um papel de benfeitores, em Macau e em Lisboa. Em Lisboa funcionava a “casa-mãe” da Companhia de Jesus, mas no caso de Macau os procuradores eram agentes da companhia que tinham de se adaptar aos espaços e às especificidades desses locais desde há séculos. Houve contacto destas figuras com a corte imperial chinesa? Há o exemplo perfeito do padre João Rodrigues Tçuzu, que foi criado no Japão. Ele chegou, aliás, a afirmar que falava e escrevia melhor japonês do que português. Depois viveu na China. No Japão esteve na corte e foi próximo de um dos imperadores. João Rodrigues Tçuzu foi não apenas o procurador da Companhia em Nagasaki, mas também procurador da corte em Nanquim em diversos assuntos, neste caso dos assuntos materiais da corte. O padre acabou por ser expulso do Japão, e uma das razões foi por se intrometer demasiado, enquanto padre, nos assuntos seculares [do império]. Em Macau teve contacto permanente com as autoridades de Cantão e, já nos últimos anos de vida, faz três viagens a Pequim, entre os anos de 1620 até 1633, ano da sua morte. Certamente que reuniu com os imperadores.
Andreia Sofia Silva EntrevistaPedro Costa Ferreira, Associação Portuguesa das Agências de Viagens e Turismo | No Oriente, o céu é o limite O presidente da Associação Portuguesa das Agências de Viagens e Turismo (APAVT) fala da relação de enorme proximidade com as autoridades de Macau em promoção turística. Em entrevista ao HM, Pedro Costa Ferreira defende que Macau, como destino turístico para a Europa, tem mais a ganhar se for associado a regiões do sudeste asiático Foi anunciada a realização do congresso da APAVT em Macau no próximo ano. O que poderemos esperar deste encontro? Não lhe vou adiantar grandes detalhes porque ainda vamos ter o congresso deste ano em Huelva, Espanha. Mas posso dizer que escolhemos Macau para um congresso muito especial, sobretudo porque vai fazer de Macau o território que mais vezes acolheu o congresso da APAVT, em 1982, 1990, 1996, 2008 e 2017. Dá a ideia da solidez da nossa relação com o território ao longo deste tempo. Além disso, será no ano em que fazemos 75 anos de existência, além de ser o nosso 50º congresso. Queremos, assim, que este congresso seja especial a nível de conteúdos, figuras presentes, que costuma ser o sector do turismo português todo, e talvez europeu e espanhol. Algumas linhas de cooperação especiais com Macau que serão lançadas no evento? Mais do que termos algo específico a desenvolver, o congresso é o final de uma etapa importante no nosso relacionamento, tendo em conta que vamos desenvolver também outras etapas. Temos feito um trabalho metódico e plurianual com Macau. Julgo que Macau pode ser considerado, juntamente com a Madeira, o local que tem o melhor relacionamento e trabalho feito com as agências de viagens em Portugal. 2025 será certamente o ano de ouro para Macau no seio da APAVT. Vamos ter a presença de Macau na FITUR [Feira Internacional de Turismo], onde iremos aprofundar o nosso relacionamento com o mercado espanhol, depois teremos a presença da APAVT muito significativa na BTL [Feira de Turismo de Lisboa]. Teremos certamente uma presença multifacetada e dinâmica no MIT [Macau International Travel (Industry) Expo, ou Exposição Internacional de Viagens (Indústria) de Macau]. Tudo o que é liderança turística europeia vamos levar a Macau em 2025. Depois tudo culminará com o congresso, onde passaremos a uma nova agenda e acções. Como explica essa ligação de Macau com as agências de viagens em Portugal? As agendas que são formadas, e que definem o relacionamento entre a APAVT e os diversos destinos turísticos, dependem da atenção que é dada por esses destinos às dinâmicas de relacionamento. O que tem acontecido com Macau, antes e depois da pandemia, é a existência de um historial importante e um relacionamento que se foi intensificando. No pós-pandemia tivemos uma etapa nova e muito produtiva. Julgo que há uma vontade muito grande de Macau de voltar à procura europeia e a internacionalização da procura turística pela região. Da nossa parte estamos sempre disponíveis e recebemos de braços abertos todos os destinos turísticos que queiram trabalhar connosco. Depende da iniciativa dos destinos. Madeira tem tido um trabalho de proximidade que só é, de facto, comparável, a Macau. Considera que será desafiante a tentativa de internacionalização de Macau como destino turístico, uma vontade do Governo que persiste há muitos anos? Não quero responder como algo que será difícil ou fácil. Há determinadas características no relacionamento das agências de viagens com o destino. Temos uma primeira dificuldade a recuperar, que é o facto de termos dado um grande passo atrás na pandemia e todo o Oriente foi a região que mais tarde abriu. Portanto, há um maior atraso, dos mercados emissores, em relação à recuperação de valores de antes de 2019 no Oriente do que no Ocidente. Há essa primeira dificuldade. Recuperámos mais cedo os fluxos turísticos no Ocidente. Depois, do ponto de vista do mercado português, temos de pensar que Macau nunca vai ser ‘mass market’ [mercado de massas]. Temos de olhar para o destino de acordo com as suas valências e capacidade de procura. Em relação a Portugal temos uma dificuldade acrescida, que é a inexistência de voo directo. Isso tem sido falado e parece-me importante. Vejo com bons olhos as notícias de uma eventual ligação da Air Macau a Istambul, uma excelente ‘gateway’ para o Oriente, e isso pode facilitar as viagens. Devemos perceber quais as valências de Macau e como as podemos desenvolver. E quais são elas? Existem valências específicas em Macau, que é um excelente momento de encontro de culturas, com uma oferta turística muito moderna. Macau tem excelentes condições de acolhimento, uma gastronomia que pode ser considerada das melhores do mundo, tem é de ser descoberta. É diversa e de grande qualidade. Tem ainda uma indústria de entretenimento que, não sendo a sua principal característica, não deixa de se desenvolver. Temos de acrescentar a capacidade de gerar produto mais global, que podem ser oportunidades para Macau. Para o mercado emissor ocidental, Macau tem de estar estruturado com mais alguma coisa. O mais óbvio é a China, mas também se pode juntar o território à Tailândia, Filipinas, Camboja mais o Vietname. Há muitas possibilidades. Os turistas quando fazem estas viagens de longa distância têm a apetência para ficar mais tempo e juntar as valências de Macau a mais destinos a Oriente pode levar a uma recuperação e desenvolvimento dos fluxos turísticos. O turismo de Macau está gradualmente a transformar-se desde as novas licenças de jogo, que trouxeram novas exigências às operadoras. Julgo que se está a diversificar e muitas das transformações recentes podem, eventualmente, ser associadas às novas concessões. Sentimos que há uma necessidade, vontade e óbvia estratégia de diversificação da oferta, e do ponto de vista dos mercados emissores ocidentais, é o que faz sentido. Portanto, a abordagem de Macau aos principais factores de desenvolvimento [do sector] é muito correcta e perceptível. Isso é bom para quem trabalha com destinos turísticos, porque dá confiança ao relacionamento. Que análise faz à evolução do turismo do território desde o período da Administração portuguesa, quando a APAVT começou a fazer as primeiras acções em Macau? Parece-me óbvio que os últimos anos foram de explosão em termos de desenvolvimento económico e de capacidades de acolhimento de turistas, disso não tenho dúvidas. É uma oferta mais complexa e diversificada, acompanhando também o desenvolvimento de várias ofertas e destinos. Talvez Macau estivesse mais centrada na história portuguesa, e agora parece-me mais evidente e importante para mercados emissores europeus, não portugueses, é que seja vendido como um local de encontro entre culturas, história, modos de vida ocidental e oriental. O Chefe do Executivo esteve em Portugal em 2023. Como tem sido a comunicação com as autoridades de Macau desde a visita? Essa visita foi, para nós, simbólica e muito motivadora. Expressou uma aposta do destino que sentimos no nosso trabalho diário e que acabou por nos ser transmitido a um nível superior. De resto, a relação com a Direcção dos Serviços de Turismo é quase perfeita. Temos uma comunicação próxima porque a agenda é complexa e dinâmica, além de contínua. Os nossos agentes de viagens sentem-se muito apoiados. Macau está progressivamente a integrar-se na Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau e Hengqin. Como pode o mercado turístico português tirar partido disso? Não se trata de um botão em que se carrega e começa a funcionar. É mais um processo e uma estratégia. Ganhamos todos com a clarividência e transparência da comunicação que é feita pela região. Fomos a Hengqin e observámos as novas oportunidades e interesse que Macau tem em criar novas capacidades de estruturação do produto [turístico] além do território. É alargar a região em termos de destino turístico. É preciso criar condições de acolhimento. Tem gerado debate público o facto de a China ainda não ter incluído Portugal na lista de países isentos de visto. É um entrave ao turismo? A abolição de vistos é sempre bem-vinda para quem trabalha em turismo. Aqui não é excepção. Há afirmações de responsáveis políticos que abrem a porta à nossa inclusão. Temos de nos concentrar na tentativa de sermos incluídos o mais cedo possível, e as vantagens são óbvias. Quando falamos em estruturação de produto, juntamente com outros territórios a Oriente, o mais natural é com a China. Necessitar de visto quando se vai de Macau para a China perturba a construção da oferta [turística]. Esperamos com optimismo. Como é hoje o perfil do turista chinês que visita Portugal? Neste momento, o mercado emissor chinês não é de elevada importância para Portugal, nem tem números que mostrem que seja um dos primeiros, ou mais importantes. O mercado chinês tem características que podem ser relevantes no futuro, por ser um mercado que não visita as regiões turísticas mais sazonais em Portugal, por não ser virado para a praia, por exemplo. Assim, é um mercado que nos pode ajudar a diminuir a nossa sazonalidade e a ter mais território turístico. É um mercado que trabalha bem com o Alentejo, centro do país, o Porto. O melhor estará para vir. Do que aprendi na relação com o Oriente é que o início é mais demorado, é preciso formar confiança, mas depois é um mercado em que o céu é o limite. Ainda estamos na fase de obtenção de confiança.
Hoje Macau EntrevistaJ. Rentes de Carvalho gosta de cinema, mas livros permitiram-no sobreviver O cinema era a ambição do escritor J. Rentes de Carvalho, mas o dinheiro não chegava para pagar as aulas que frequentou em França, então teve de “seguir a literatura”, como confessou em entrevista à agência Lusa Perdeu-se um cineasta, ganhou-se um escritor. José Rentes de Carvalho, 94 anos, de ascendência transmontana, com raízes na aldeia de Estevais, concelho de Mogadouro, distrito de Bragança, vai ser alvo de um conjunto de homenagens em Portugal, com início na sexta-feira, promovidas pelo município de origem de seus pais, e que irão culminar em Julho durante a realização do Festival Terra Transmontana. “Tudo isto é muito simpático”, confessou o escritor à Lusa, que diz ter sempre presente nos seus livros “um pensamento triste de quem gostaria de ter um país melhor e vai morrer sem o ver”. No seu percurso, porém, factor determinante é o cinema. “O cinema foi durante muitos anos da minha vida tão importante ou mais que a literatura. Aprendi muito a escrever com os filmes que vi, durante os anos 40, 50 e 60 [do século passado]”, recordou o autor português, que assegurou ter transposto para sua obra literária muita da técnica apreendida com a sétima arte. Em França, para frequentar as aulas, “tinha de pagar [a frequência de] um instituto de cinema e fotografia, mas o dinheiro não chegava e tinha de ganhar o pão nosso de cada dia”, o que obrigou “a dedicar-se à escrita”. A entrevista de J. Rentes de Carvalho à Lusa realizou-se na aldeia dos Estevais, localidade onde o escritor passa metade do ano, alternado com Amesterdão, nos Países Baixos. É aqui, no concelho do Mogadouro, que as homenagens a Rentes de Carvalho vão ter início, promovidas pelo município. Das iniciativas fazem parte a colocação de um conjunto escultórico dedicado ao escritor, na sede do concelho, a realização de palestras, a atribuição do seu nome à Casa da Cultura. Em Julho, o Festival Terra Transmontana, agendado para os dias 27 a 28, terá como tema “J. Rentes de Carvalho – Retratos da Nossa Gente”. Questionado sobre esta homenagem, Rentes de Carvalho disse que “há sentimentos que não são fáceis de exprimir”. “Trata de uma homenagem agradável. Tudo isto é muito simpático “, vincou. O início na Holanda No decurso da entrevista, o escritor falou sobre o seu percurso académico nos Países Baixos, onde durante quase de 30 anos, a partir de 1964, foi professor de Literatura Portuguesa e Brasileira, na Universidade de Amesterdão. Enquanto professor universitário, percebeu que o interesse por parte dos estudantes neerlandeses e belgas em relação à literatura portuguesa se prendia em particular com a ditadura portuguesa, sobretudo durante a Guerra Colonial (1961-1974). “Os alunos tinham interesse em aprender a língua e a leitura portuguesa, especialmente neste período da História de Portugal. Tratava-se de jovens ávidos de conhecimento, principalmente sobre a guerra colonial”. Contudo, Rentes de Carvalho sublinha que além do interesse sobre o país da ditadura, a evolução da economia brasileira era à data o assunto chave, até porque sempre interessou aos neerlandeses. O antigo professor universitário disse ainda que Fernando Pessoa (1888-1935) é uma referência para a poesia flamenga, a par do romancista Eça de Queirós (1845-1900), a par de vários autores brasileiros. Raízes do norte Filho de pais transmontanos da aldeia de Estevais, e neto de um avô sapateiro e de um avô guarda-fiscal, José Rentes de Carvalho nasceu em 15 de maio de 1930 em Vila Nova de Gaia. Frequentou o Liceu Alexandre Herculano, no Porto, e prosseguiu os estudos em Viana do Castelo e Vila Real. Foi na Faculdade de Letras e na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa que traçou o seu percurso académico, estudando Línguas Românicas e Direito. Obrigado a abandonar o país por motivos políticos durante a ditadura do Estado Novo, viveu primeiro no Brasil, onde trabalhou como jornalista nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo e posteriormente em Nova Iorque e Paris. Escreveu para títulos como O Estado de São Paulo, Globo, Expresso, entre muitos outros. O escritor acabou por se radicar nos Países Baixos em 1956, concretamente em Amesterdão, trabalhando na embaixada brasileira e licenciando-se na Universidade de Amesterdão, com uma tese dedicada a Raul Brandão. A ascendência transmontana nunca foi negada pelo escritor, que passa largos períodos de tempo em Estevais, uma provação encaixada entre a serra do Reboredo e os rios Sabor e Douro. A escrita depois do ensino Depois do ensino, Rentes de Carvalho passou a dedicar-se exclusivamente à escrita para jornais e revistas literárias portugueses, brasileiros, belgas e neerlandeses. A sua bibliografia soma livros como “Cravos e Ferraduras”, “Ernestina”, “A Amante Holandesa”, “Meças”, “Pó e Cinza e Recordações”, “Portugal à Flor da Foice”, “Mentiras e Diamantes”, “Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia”, “Com os Holandeses”, “La Coca” entre outros, atravessando géneros que vão da crónica ao diário, da opinião à pura ficção. Estreou-se no romance em 1968 com “Montedor”, a história de um rapaz sem futuro, “com um passado apenas de sonhos, arrastando-se num presente que é uma verdadeira morte lenta”, num lugar perdido do Portugal da ditadura. Sobre o livro, José Saramago garantiu que o autor oferece “o quase esquecido prazer de uma linguagem em que a simplicidade vai de par com a riqueza (…), uma linguagem que decide sugerir e propor, em vez de explicar e impor.” Em 2011, Rentes de Carvalho recebeu o Grande Prémio de Literatura Biográfica da Associação Portuguesa de Escritores (APE), pelo livro “Tempo Contado” e, em 2013, o Grande Prémio de Crónica APE, por “Mazagran”. No ano passado, foi distinguido com o Prémio Personalidade do Norte, da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR-N). O novo livro “Cravos e Ferraduras”, o seu mais recente livro, lançado há cerca de um mês, reúne um conjunto de crónicas publicadas em vários jornais portugueses e neerlandeses, num retrato dos últimos anos da vida nacional, através de personagens “escolhidas a dedo”. “Este livro é o resultado de uma compilação de textos escritos desde há quatro anos para cá”, concretizou. Questionado pela Lusa de que forma as vendas estavam a correr, o autor disse que “não fazia a mínima ideia”. “Os meus livros falam um pouco dos mesmos problemas de sempre e das mesmas situações, não havendo um específico que trate de Portugal. Há um pensamento triste de quem gostaria de ter um país melhor e vai morrer sem o ver”, afirmou. Rentes de Carvalho disse que não era homem de escrever depressa, que o livro mais rápido levou sete a oito anos a ganhar forma. E dá o exemplo de “Ernestina”, romance que levou mais de uma dezena de anos a ser concluído, tendo sido publicado pela primeira vez nos Países Baixos, em 1985. Segundo o autor, o livro que mais vendeu foi um “Guia de Portugal”, apenas publicado no país que o acolheu e que vendeu mais de 300 mil exemplares, com mais de 300 páginas, somando algumas dezenas de edições. Na sequência deste trabalho, Rentes de Carvalho foi agraciado pelo Presidente da República Mário Soares com a Comenda do Infante D. Henrique. “Devido a este livro, centenas de milhares de holandeses visitaram Portugal”, concluiu com orgulho, Rentes de Carvalho.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteJoaquim Alves Gaspar, co-autor de “A Cartografia de Magalhães”: “A mais extraordinária viagem marítima” Lançado em Abril, “A Cartografia de Magalhães”, de Joaquim Alves Gaspar, docente da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, e da académica Šima Krtalić, olha para a história da cartografia antes e depois da Circum-Navegação de Fernão de Magalhães. O autor realça a importância da viagem que provou ser possível navegar em torno da Terra Este livro fala do panorama da cartografia antes e depois da Circum-Navegação de Fernão de Magalhães. O impacto da viagem foi grande nesta área? Não foi o ponto de viragem mais importante na via náutica, pois este surgiu muito antes, com a expansão marítima dos povos ibéricos no Atlântico. Primeiro, com os portugueses ao longo da costa de África e depois os espanhóis, primeiro com Colombo nas Índias ocidentais, como eles chamaram, pois Colombo julgava ter chegado às Índias do reino de Castela. Depois houve as descobertas dos portugueses através do [oceano] Índico e até ao sueste asiático, e também no Brasil e na chamada “Terra Nova”. Esse final do século XV e início do século XVI foi, digamos, o maior ponto de viragem no que diz respeito ao conhecimento do mundo pelos europeus, que teve reflexos, primeiro, na cartografia náutica. A cartografia náutica era um instrumento de navegação e não uma imagem do mundo. Não eram, portanto, mapas como hoje conhecemos. Sim. No entanto, foram utilizadas como fonte para os mapas geográficos. Houve algum impacto da viagem de Magalhães no conhecimento da América do Sul, que só era conhecida e cartografada até ao Rio da Prata, que fica na fronteira entre o Brasil e a Argentina. A esquadra de Magalhães passou também pelas [ilhas] Molucas, que ficam na Indonésia, a sul das Filipinas, e depois pelo norte das Filipinas, onde um navegador foi morto, num conflito local. Os dois navios que restaram deambularam alguns meses pelas Filipinas antes de se dirigirem às Molucas. Aí carregaram os navios de cravo, que era aquilo que interessava. Um dos navegadores tentou voltar para trás através do Pacífico, como lhes tinha sido ordenado pelo rei de Castela, de Espanha, mas não conseguiu, voltando para trás. O navio sofreu avarias e acabou por se destruir e ficar com os portugueses nas Filipinas. O outro estava com Sebastian El Cano [navegador espanhol que acompanhou Magalhães], vindo para sul, passando por Timor. Fez depois aquilo que era proibido, que era voltar a Espanha atravessando o hemisfério português, pelo Índico. E quais foram os benefícios dessa viagem em termos de cartografia no sueste asiático? Foram maiores? Não. Os navios de Magalhães fizeram algum levantamento, precário, das ilhas das Filipinas, Molucas, Bornéu. Mas, entretanto, já os portugueses tinham recolhido informação cartográfica de melhor qualidade que depois foi vertida nas cartas naúticas. Estranhamente a Circum-Navegação não teve, de facto, um grande impacto na cartografia. Porquê lançar esta obra? Como todos os livros, este também tenta contar uma história. Existem muitas narrativas textuais da viagem de Magalhães, do que se passou antes e depois. Mas não menos importante é o papel da cartografia para contar essa história. Na realidade contamos no livro duas histórias complementares: o que era a cartografia antes da viagem e como propiciou a proposta de Magalhães. E como era? Era uma cartografia sobretudo portuguesa e baseada em fontes portuguesas. Magalhães, quando se dirigiu ao rei Carlos I de Espanha, não ia de mãos a abanar. Tinha acesso à melhor cartografia da época e das técnicas de navegação. Foi isso que convenceu o rei de Castela a aceitar a proposta de um projecto que já tinha tentado concretizar, sem êxito. Magalhães e os portugueses tinham atrás de si toda uma cartografia que tinham desenvolvido com bastante inovação, e que permitiu apresentar o mundo aos olhos dos europeus de uma forma bastante mais exacta face ao que se conhecia até à data. Essa é a primeira parte do livro. E a segunda? São os reflexos da viagem na cartografia, em particular nas disputas entre portugueses e espanhóis quanto à posse e localização das Molucas. Esse conflito é outro ponto central da obra. Desmistificaram-se muitas ideias que havia em torno da localização das Molucas até essa data? O Tratado de Tordesilhas foi um documento incrível que dividiu o mundo em duas partes, uma parte de influência portuguesa, e outra de influência espanhola. A linha divisória era de pólo a pólo que passava a 370 léguas a oeste de Cabo Verde. Para ocidente, era território espanhol, e para oriente, português. Na altura em que o tratado foi firmado, havia a preocupação com o que acontecia deste lado do mundo. Os portugueses queriam preservar o que tinham descoberto em África, sobretudo, o Atlântico, e os espanhóis queriam preservar o que tinham descoberto no Mar das Caraíbas, as Antilhas do reino de Castela. Já se sabia perfeitamente que a terra é redonda desde o século V a.C., mas nunca tinha existido a preocupação de saber como se passava para o outro lado da terra, até aos antípodas. Quando os portugueses chegaram a Malaca, a partir de 1519, e depois a conquistaram, todos acordaram, e em particular os espanhóis, que começaram a alegar que esses territórios lhes pertenciam, sem argumentos válidos. Valiam-se da velha imagem do mundo, de Cláudio Ptolomeu, de 400 anos antes. Para provar que aquilo era espanhol tinham de lá ir. Mas porquê essa suspeita? Este ponto é importante na nossa história: na cartografia náutica portuguesa, a melhor da época, as Molucas estavam do lado espanhol erradamente. Porquê esse erro? Devido à forma como as cartas náuticas eram feitas. Não eram mapas geográficos feitos com base em latitudes e longitudes, mas com base em rotas e caminhos seguidos no mar. Esse rumo era ditado pela agulha magnética, que cria desvios e levou a distorções nas cartas náuticas. Não eram, então, muito fidedignas. Eram, mas para navegação. A forma como se navegava era coerente com as cartas náuticas da época, em que África aparecia desviada para o Oriente, e todo o oceano Índico desviado, empurrando as Molucas para o lado espanhol. Fernão de Magalhães estava genuinamente convencido que as Molucas eram espanholas. Em termos de inovação na navegação, esta viagem destacou-se? A ideia, sobretudo propalada pela literatura anglo-saxónica, de que os portugueses iam à aventura, ao acaso, é absolutamente falsa. Como o nosso Pedro Nunes escreveu num tratado, anos depois, os portugueses já seguiam muitas regras matemáticas e astronómicas para melhor navegar. As viagens eram planeadas minuciosamente, do ponto de vista técnico e logístico. Um ponto inédito [na viagem de Magalhães] é que, pela primeira vez, a longitude de um lugar, a distância este-oeste, era importante para localizar as Molucas. Então, nesta viagem, foi um astrónomo a bordo, Andrés de San Martin, para tentar determinar a longitude das ilhas. Nessa época, a astronomia era convincente, tinha um enorme probatório. Este espanhol fez várias medidas de longitude ao longo da viagem, algumas delas relativamente perto do Estreito de Magalhães, com um rigor que hoje nos espanta. Essas medições reflectiram-se na cartografia, e nos relatos que nos chegaram sabemos que quem ia a bordo começou a ficar preocupado com as medidas de longitude, que davam a entender que as Molucas ficavam do lado espanhol. Andrés de San Martin fez ainda outras medições na chegada às Filipinas e observações astronómicas que colocaram então as Molucas no território português. Esse astrónomo, que morreu na viagem sem se saber muito bem como, deixou relatos sobre estas medições, que a coroa espanhola tentou esconder até onde foi possível. Espanha estava mais preparada para acolher a proposta de viagem de Magalhães? A Portugal não lhe interessava esta viagem, porque o que Magalhães propunha era viajar para as Molucas [Oriente] e nunca para o Ocidente. Os portugueses podiam chegar às Molucas pelo Oriente, que era mais perto. Ainda por cima, para irem pelo Ocidente, seria por território espanhol, pelo que era uma viagem que não lhes interessava de todo. Fernão de Magalhães entrou em conflito com o rei D. Manuel I, pediu-lhe um aumento do seu subsídio, à mercê dos trabalhos que tinha feito para a Coroa portuguesa até então, e isso foi recusado. Então aceitou a sugestão do seu amigo Francisco Serrão, que ficou nas Molucas e fez lá família, para apresentar a proposta a Espanha, dizendo que, assim, poderia enriquecer se o desejasse. Estas cartas enviadas por Serrão tiveram um grande peso na proposta de Magalhães. Como descreve a figura de Fernão de Magalhães? Sabe-se muito pouco sobre a figura humana dele. O que se sabe é através de relatos benignos de António Pigafetta, que tinha uma enorme admiração por Magalhães. Do lado espanhol só se disse mal do navegador. Nem se sabe bem onde ele nasceu, provavelmente terá sido no Porto. [A Circum-navegação] foi uma viagem importante para a cartografia e o conhecimento do mundo. Sabia-se há muito que a terra era redonda, mas não se sabia que era circum-navegável e isso foi fundamental para pôr os povos em contacto. O facto de Fernão de Magalhães ter conseguido comandar com êxito aquela que foi, provavelmente, a mais extraordinária viagem marítima de todos os tempos diz muito sobre as qualidades de liderança e de conhecimento técnico que tinha. Teve persistência na descoberta de uma passagem para o Pacífico e, pela primeira vez, atravessou-o em frágeis navios de madeira, as naus.
Andreia Sofia Silva EntrevistaRem Urasin, pianista: “Tocar é sempre uma responsabilidade” Natural da república russa do Tartaristão, Rem Urasin está desde 2022 em Portugal devido à guerra na Ucrânia. A saída do país obrigou-o a refazer a vida e a carreira. Conhecido internacionalmente como intérprete de Chopin, o pianista russo actuou no dia 9 de Maio no Centro Cultural de Belém, onde falou com o HM sobre a ligação especial à obra de Chopin Que espectáculo podemos esperar esta noite? Essa é uma questão interessante. Música de Chopin. Sim, claro. Mas refiro-me ao ambiente do espectáculo, se traz algo de novo ao público que espera ouvi-lo tocar Chopin. Já ouvi muitas vezes a pergunta sobre o tipo de mensagem que vou transmitir ao público. Mas quando começamos a falar de música e do seu significado, ou da mensagem que transmite, todas as palavras, por norma, falham. Isto porque a música pode expressar muito mais. É essa a sua questão da central. Quando não existe nada que seja suficiente para expressar algo, a música ajuda. Todas as mensagens que trago para este concerto podem ser ouvidas esta noite. Para si, a música é e tem de ser suficiente. Totalmente, porque é um tipo de arte muito particular. É muito abstracta às vezes, por isso podemos expressar, ao mesmo tempo, muitas coisas. Não gosto muito de falar antes dos concertos sobre a música e sobre o que expressa, ou sobre o que o público tem de esperar. Não ajuda e leva-nos a uma percepção errada. Para mim, é como estar fora do ritmo. As palavras são muito precisas, e a música é muito mais do que isso. Mas adoro quando alguns concertos têm um narrador. Costumava tocar em muitos concertos neste formato, mas aí era uma narração especial, com base em documentos, cartas, algumas memórias de contemporâneos. Era algo diferente, porque nesse caso ajudava-nos a sentir a época e a atmosfera desse tempo. Permitia-nos ver através do olhar desses contemporâneos. Como se sente por estar a tocar em Lisboa, numa sala de espectáculos como a do Centro Cultural de Belém? Estou muito entusiasmado, porque é a primeira vez que toco em Lisboa e é muito importante para mim. Não é como a primeira vez que toquei em muitas cidades onde nunca estive antes. Portugal tornou-se quase a minha segunda casa, porque tivemos de deixar a Rússia há cerca de dois anos, quando começou a guerra na Ucrânia, e foi uma experiência muito estranha para mim porque nunca tinha estado em Portugal. Vim para viver. Claro que não foi bom para a minha carreira em termos de concertos, porque é tudo novo para mim. Senti-me estranho, como se estivesse numa segunda fase da quarentena [da pandemia], quando todos os artistas estavam fechados em casa. Mas de certa forma gostei desse período, porque me deu a possibilidade de tocar piano e pensar nas coisas. Tive tempo suficiente para isso. Mas foi um período em que os concertos se reduziram ao mínimo e foi uma experiência bastante estranha. Mas agora as coisas estão a voltar ao normal. Este será o meu primeiro contacto com o público de Lisboa, não português, porque vivo em Lagos. Nesse período em que esteve mais parado, que sensações o dominaram? Vazio? Não. O vazio é sentido por pessoas que não têm nada dentro. Sempre tive o suficiente dentro de mim para não me sentir vazio. Na verdade, senti o oposto, durante a quarentena e quando vim para Portugal. Senti falta de tempo para fazer tantas coisas. [A pandemia] foi um período trágico e dramático para a humanidade porque muitas pessoas estavam a morrer e a sofrer, mas também nos deu muito tempo, que é algo de precioso. Usei esse tempo para tocar novos programas para piano, para pensar em coisas para ler, não apenas relacionadas com música. É como na pintura, em que às vezes têm de se cumprir vários passos e olhar para outros ângulos. Começou a ter aulas de piano aos cinco anos no Conservatório de Cazã [capital da República do Tartaristão]. Imagino que tenha sido difícil submeter-se a uma disciplina tão rígida desde muito cedo. Não! Era divertido, sempre. Lembro-me de que o período em que ia para as aulas de música era incrível. Todas as manhãs acordava com o entusiasmo de que iria para a escola e fazer tudo o que adorava. Quando percebeu que Chopin era o seu compositor preferido? Quando sentiu algo especial a ouvir o compositor? A minha mãe conta que quando eu era bebé, com cerca de um ano, estava a brincar no chão e estava a passar um concerto de Chopin na televisão, e que eu meti os brinquedos de lado e comecei a ouvir com muita atenção. Claro que não me lembro disto. Mas a minha primeira professora, que era uma música extraordinária, também teve influência, pois descobriu a minha propensão para as composições de Chopin e transmitiu-me muitas coisas quando tinha cerca de 12 ou 13 anos. Na verdade, o meu primeiro recital de piano, quando tinha 13 anos, foi todo sobre Chopin. Foi escolha sua estudar piano, ou foi influência da sua família? Ambos. A minha mãe era geóloga e acreditava que eu iria ser geólogo também. Mas era uma grande fã de música e dava-me lições só por divertimento. Mas lembro-me de, desde sempre, ter a certeza de que queria ser músico profissional, com quatro ou cinco anos. Não tinha nenhumas dúvidas quanto a isso. Em 1995 venceu uma competição internacional de interpretação de obras de Chopin em piano, que se realizou em Varsóvia. Foi um marco fundamental na sua carreira? Claro. Foi muito importante para a carreira e em termos pessoais também, pois aprendi ainda mais sobre Chopin e a sua vida. Antes desse concurso ganhei uma competição juvenil em Moscovo, quando tinha 15 anos, e foi uma espécie de primeira fase para a competição de Varsóvia. Preparei-me para este momento durante muitos anos, foi um longo percurso. Foi uma sensação incrível porque esta competição em Varsóvia não é um evento local, toda a Polónia assiste, não apenas os músicos. O país vive muito a música de Chopin durante essas três semanas de Outubro. Quando se vence um concurso de Chopin ficamos com uma espécie de certificado (risos). Mas também é difícil porque ficamos com uma certa marca. É difícil convencer as pessoas de que faço coisas além de Chopin. Ouve e trabalha em torno de outros compositores, então. Sim, sem dúvida. Oiço compositores clássicos, e não apenas românticos, mas também contemporâneos. Também oiço compositores russos, por exemplo. Não gosta de marcas. Não penso que sejam uma coisa boa, talvez só para ajudar os ouvintes a saber o que podem esperar. Mas, ao mesmo tempo, é bastante limitativo numa série de coisas. O que diferencia Chopin de outros compositores? (Risos). Para mim é diferente porque o sinto de maneira diferente. É muito difícil explicar isso, porque é algo muito importante para nós e que nos é muito querido. Não gosto de colocar em palavras, o que sinto é suficiente. Prefiro tocar piano. Temos pianistas portugueses que também são grandes intérpretes em Chopin, como Maria João Pires. Já teve oportunidade de a ouvir? Ela é incrível. Ainda não tive a oportunidade de a ouvir ao vivo, infelizmente, mas ela é uma música extraordinária. Sinto que o que ela faz é muito semelhante do que faço. Ela é genial. Gostaria de assistir a um concerto dela, sem dúvida. Todos os grandes artistas devem ser ouvidos ao vivo, e sem dúvida que ela é uma grande artista. Depois de tantos anos de palco, ainda se sente nervoso antes de actuar? Claro. Sinto-me nervoso, às vezes, quando penso nos concertos que estão a chegar, porque é sempre uma grande responsabilidade. Quando nos tornamos… não digo famosos, porque é demasiado. Mas quando conseguimos ter alguma fama a responsabilidade aumenta porque as pessoas que vão aos concertos com algumas expectativas. Não gosto de pensar na fama demasiado, porque pensar muito nisso corrói. Há coisas mais importantes do que isso, como a genialidade da música que podemos atingir. Agora que vive em Portugal está a recomeçar do zero, presumo. O que pretende explorar de novo no piano? Fiquei chateado quando tive de suspender temporariamente o projecto que estava a desenvolver, intitulado “Great Romantics” [Os Grandes Românticos], devido à minha vinda para Portugal. Cheguei a fazer uma série de concertos dedicados a Chopin, toquei todas as suas composições. Este projecto consiste numa espécie de recital com um narrador. É muito interessante porque envolve o público para a atmosfera de época, e no caso da época romântica é bastante interessante. Trata-se de um projecto de larga escala porque envolve mais de 25 concertos, com diferentes compositores. Cada programa dedica-se a um compositor, sobre um particular período da sua vida. Comecei o projecto e fiz oito espectáculos, mas toda esta mudança obrigou-me a parar. Espero que, de alguma forma, possa concretizá-lo em Portugal porque gostaria de mostrar as minhas pesquisas e o resultado ao público.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteNuno Fontarra, arquitecto: “Ocupamos o espaço que podemos” Nuno Fontarra, arquitecto principal da equipa da Mecanoo que tem em mãos o projecto da nova biblioteca central, apresenta uma palestra hoje, às 19h, no Centro Cultural de Macau. O arquitecto irá falar da filosofia de do trabalho do atelier e de como o escasso espaço interior do edifício do antigo Hotel Estoril foi projectado Vai hoje falar do projecto do Museu de História Natural que a Mecanoo está a desenvolver em Abu Dhabi. Até que ponto tem semelhanças com o projecto da Biblioteca Central? Vou abordar este projecto por ser o mais importante que estamos a fazer e porque tem algumas parecenças [com o projecto da Biblioteca Central], nomeadamente ao nível dos materiais. Trata-se de um museu, e nesse aspecto não tem muito a ver com o que estamos a fazer em Macau, mas é importante por ser um edifício público. É um museu icónico que vai interagir com a cidade. A maior parte dos museus não é muito interactiva com a população porque as pessoas vão uma vez e não usam o espaço, mas vou mostrar como o nosso projecto faz com que o museu interaja com a cidade à volta e qual a filosofia do atelier Mecanoo em relação a isso, para que não seja um objecto morto na cidade. Esta abordagem também foi pensada para a futura Biblioteca Central? A filosofia é a mesma: tem de interagir com a cidade o mais possível. É isso que é uma arquitectura moderna, não se tratando de um mero arquivo de livros, porque é o que se passa com a actual biblioteca [do Tap Seac]. A preocupação com a nova biblioteca não é apenas com os livros, mas sim construir uma interacção com a comunidade completamente diferente, com educação e cultura. E é assim que o Museu de História Natural vai funcionar também. Esta é talvez a primeira vez que a equipa da Mecanoo está no território, uma vez que o projecto da Biblioteca Central começou a ser feito à distância. Como está a ser este contacto presencial? A primeira fase do projecto foi toda feita à distância e depois fomo-nos adaptando. Deveríamos ter vindo a Macau. Até já estive em Shenzhen, mas os colegas chineses da minha equipa não conseguiram visto para ir para Macau, o que atrasou a visita. Mas agora já houve contactos com o Instituto Cultural (IC) e foram feitas visitas ao local. Dois terços da equipa está sediada em Macau e só eu ainda não tinha vindo. O meu nível de experiência permite-me perceber como a Praça do Tap Seac funciona. Por exemplo, teremos de mover umas árvores de sítio, e essa é uma parte importante do projecto, e perceber essas coisas e sentir a praça [é importante]. Na palestra vou também abordar isso, o facto de não existirem projectos feitos no abstracto, pois todas as coisas têm um contexto, funcionando de forma diferente em relação ao desenho. Esta palestra não é o momento oficial para apresentar o projecto, pois ainda está a ser feita essa preparação. Creio que o IC já tem uma data para começar a obra. Algumas particularidades do projecto que podem sobressair com esse contacto presencial com a Praça do Tap Seac e o espaço de construção? Sobressai a relação da piscina [com o espaço em redor], por exemplo, porque existe uma certa proximidade. [O Tap Seac] é a praça mais importante de Macau, bastante central, e é um sítio difícil para construir a biblioteca, pois não temos muito espaço. Mas esse é um problema geral em Macau. A falta de espaço obriga a que a biblioteca venha a servir o público de maneira bem mais flexível. Temos de aproveitar o máximo de espaço possível para a realização de actividades. É isso que a nova biblioteca vai ser. Em que fase concreta está o projecto? Têm enfrentado alguns desafios? Não tem sido muito complicado. Nesta fase começaram a ser retiradas peças do edifício que vão ser reutilizadas na biblioteca, nomeadamente o mural. Será necessário tratar o terreno, mas é importante frisar que precisamos um pouco mais de tempo pois estamos numa área complexa da cidade. O básico do projecto está pronto. Já começámos a trabalhar na execução, apesar de ainda não haver um dia definido para o arranque das obras. Até que ponto o projecto da biblioteca central se enquadra no espírito de trabalho da Mecanoo? A nossa filosofia tem por base a ideia de que os espaços funcionam para as pessoas. Durante muitos anos as bibliotecas eram arquivos de livros que só recebiam pessoas. Nos últimos anos têm sofrido uma transformação nesse sentido, e nós fazemos parte dessa transformação. Deixaram de ser apenas arquivos para serem activos dentro da cidade, com funções educativas ou apenas de entretenimento. A biblioteca central terá essa responsabilidade em relação a Macau, pois não havia condições para isso. O único senão é que há uma rua bastante dinâmica [Avenida Sidónio Pais], e não será fácil tirar o trânsito dali. Sei que a praça tem muitas actividades e a biblioteca pode ser um extra. Esse tipo de eventos não existe na biblioteca antiga e as pessoas do IC estão ansiosas para que haja na biblioteca nova. Ainda que em pequena escala, pois não será um edifício grande. Por exemplo, a biblioteca central em Xangai é uma coisa enorme. Mas na China os projectos de arquitectura têm outra escala. Na China cumprem-se objectivos. Não há propriamente uma necessidade das pessoas. Essa é a grande diferença. A nova biblioteca [em Macau] vai complementar as necessidades das pessoas, mas na China cumprem números. Uma biblioteca lá tem de ter um certo tamanho para cumprir determinada escala. É tudo mais matemático. Em Macau ocupamos o espaço que podemos. Pode avançar detalhes mais concretos de como será reaproveitado o interior do edifício? Vamos tentar abrir o mais possível o espaço do rés-do-chão ao público. Temos poucos metros quadrados, mas temos uma área grande de alçado que depois conecta com a rua. É isso que nos vai permitir ter um pequeno auditório com um pequeno café e uma zona com vista. Terá também umas escadas com ligação à zona de leitura. O que fazemos muito no nosso atelier é usar espaços de maneira dupla, a fim de os maximizar. Então essa zona poderá também servir para pequenas apresentações, pois há uma escadaria que serve de auditório. À medida que se vai para os pisos superiores os espaços vão tendo usos mais privados, para exposições, ou ainda salas para workshops, por exemplo. Haverá ainda uma sala que se pode alugar para uso da tecnologia que não se pode ter em casa, como é o caso das impressoras 3D. Este espaço pode ser usado por estudantes ou profissionais. Todo o espaço de circulação poderá ser aproveitado para mostras temporárias. Os pisos de baixo serão, de facto, zonas mais públicas. O último piso já terá uma sala de leitura mais calma, destinada a investigadores, por exemplo. Há um hall da biblioteca virada a parte de trás, em frente a uma escola [para a Estrada da Vitória] em que há uma área destinada à juventude, para crianças dos 12 aos 14 anos. Haverá ainda uma pequena parte para serviços administrativos, pois o IC preferiu destinar mais espaço do edifício para zonas públicas. O grande desafio foi, de facto, encontrar espaço. Poderíamos fazer uma biblioteca maior se estivesse na periferia, mas não estaria junto às pessoas. A localização da biblioteca central gerou bastante debate público e outras questões, como a concessão do projecto a um atelier estrangeiro. Sentiram pressão quando começaram a trabalhar? Não porque, em primeiro lugar, não somos holandeses, somos um escritório internacional. E depois a equipa não é apenas a Mecanoo, existindo um escritório local em Macau a colaborar connosco, a Joy Choi, e depois profissionais em Hong Kong. Os engenheiros são todos de Macau, da PAL AsiaConsult, e têm 33 por cento do projecto, somos sócios. Diria que 65 por cento, ou mais, da equipa é local. Depois temos pessoal na Holanda e chineses de Guangzhou e Shenzhen a colaborar connosco. Era importante maximizar o pouco espaço existente, pois a localização é perfeita. Isso é uma coisa que aprendemos com os holandeses, pois com eles o espaço muda com frequência. O IC parece estar a ser dinâmico o suficiente para que depois haja uma relevância em termos das actividades que são organizadas. Como vai funcionar a coordenação com a actual biblioteca e arquivo histórico? O actual edifício vai continuar a ter biblioteca como tem actualmente. A nova biblioteca vai complementar a antiga, mas não sei como será feita a gestão dessa coordenação. As necessidades administrativas do IC não interferiram nas necessidades das pessoas no que diz respeito à biblioteca, e é essa a parte interessante. Noutros casos temos situações terríveis, em que os clientes são bastante inflexíveis.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteJoão Santa-Rita, arquitecto | As cidades invisíveis João Santa-Rita trouxe ao Albergue SCM a exposição “Desenhar para Revelar”. A mostra, que termina amanhã, tem como epicentro o conflito entre o edificado e espaços vazios em tecidos urbanos imaginados. O arquitecto e antigo colaborador de Manuel Vicente não crê no desaparecimento da arquitectura portuguesa de autor em Macau “Desenhar para Revelar” contém desenhos feitos nos últimos cinco anos. Que mensagens transmitem estes esboços? A exposição inaugurou primeiro em Lisboa. Não é uma exposição sobre Macau, mas ao mesmo tempo é, no sentido em que não se reporta a nenhuma cidade em particular, mas, ao mesmo tempo, a todas. Por isso mesmo foi concebida para ser itinerante. É uma forma de celebrar o que é a cidade e o que são as suas componentes do espaço público e construído. São desenhos que traduzem esse diálogo do conflito entre o edificado e o não edificado. Macau é, como todas as cidades, um lugar que tem espaços para serem vividos pelas pessoas e outros que estão envolvidos por edifícios. Os desenhos são também sobre o papel que os edifícios desempenham numa cidade, se são de acompanhamento ou se marcam determinados lugares. São desenhos que não são do foro do real. De alguma forma implicam alguma pesquisa. Mas são imaginados, ficcionais? Sim, são desenhos ficcionais. A primeira série de desenhos da exposição é quase uma série de reflexão ou elogios sobre a forma como os espaços públicos foram evoluindo na sua forma, desde a Roma antiga até aos nossos dias. É uma sequência de 12 desenhos. Sobre o Novo Bairro de Macau em Hengqin. Decerto percebeu que a integração regional de Macau está em marcha… são fundamentais estes projectos? Das quais que mais me surpreenderam em Macau face a 2019 foi aperceber-me da actual envolvente do território. Passou de um conjunto de ilhas despovoadas para uma grande ocupação e desenvolvimento. Macau já não é um território isolado, que apenas tinha uma companheira, Zhuhai, e que hoje tem um desenvolvimento que se propaga além daqueles limites. Percebi que já existe alguma vida, com deslocações, por exemplo. Imagino que isso também possa modificar a própria vida de Macau neste relacionamento. Em termos de planeamento urbanístico, a época em que fez arquitectura em Macau era uma fase de plena experimentação? Nessa altura, e reporto-me aos anos 80, Macau vivia muito à conta dos planos que se iam fazendo. Não havia um plano director, e as coisas, no coração da cidade, eram feitas mediante a gestão urbanística corrente, com as regras de construção. Havia os planos, mas iam crescendo por agregação. Sei que o plano director foi uma questão bastante debatida, e foi certamente um grande passo na transformação de Macau. É um plano mais orientador e abrangente do que a fase em que se ia desenvolvendo plano a plano, sem nunca existir uma visão estratégica sobre o território. Planeava-se conforme as necessidades, mas não havia uma ideia conjunta de como o território se iria desenvolver ou relacionar com os territórios envolventes. Se pensarmos na dinâmica que têm estas áreas, em que as coisas se desenvolvem num instante, é fundamental ter essa visão abrangente sobre um território. Considera que surgiram erros, difíceis de colmatar, saídos desse panorama? Não lhe sei bem dizer, porque Macau, no período em que lá vivi, a ocupação [dos solos] era muito centrada no que já estava construído, nomeadamente a zona do ZAPE, pois não havia ainda sequer o NAPE. A zona desenvolvida terminava sensivelmente no Hotel Lisboa. Havia umas coisas dispersas na Taipa, umas torres onde habitavam muitos professores, funcionários do Governo e de outras instituições, e pouco mais do que isso. Creio que esse tipo de gestão não terá sido danoso para o território. Já apanhei o final do período em que estavam a ser planeados alguns projectos, mas não a sua implementação. Quando regresso a Macau, quase 20 anos depois, já estava muita coisa transformada, então não tenho a visão do que possa ter corrido melhor ou pior nessa altura. Trabalhou com Manuel Vicente. Foi uma boa experiência, o que mais aprendeu com ele? É difícil dizer que não se aprendeu nada com ele. Aprende-se sempre muito. Já tinha uma relação forte com ele, sobretudo porque o meu pai e Manuel Vicente partilharam trabalho durante muitos anos, num atelier conjunto. Não era alguém que me fosse estranho, mas era alguém com quem tinha muita vontade de trabalhar. Foi logo muito surpreendente a escala do que se fazia, que era completamente distinta de Portugal, muito maior. Manipulávamos programas e projectos completamente distintos, edifícios de escritórios, grandes edifícios de habitação. Em Lisboa experimentava trabalhar em projectos de edifícios com quatro ou cinco andares, mas quando cheguei a Macau trabalhámos logo um edifício com 17 andares, o World Trade Center. De alguma forma variava a própria velocidade com que era necessário que as coisas ocorressem em Macau. Em Portugal, os projectos podiam ser feitos no prazo de um ano ou dois, mas em Macau aquilo acontecia em dois ou três meses. Isso obrigava a uma forma de trabalhar e pensar o projecto muito distinta, a definir estratégias particulares para cada um e depois desenvolvê-las, sempre num processo muito participativo. Isso foi o que gostei em Macau e no atelier de Manuel Vicente. O seu imaginário tinha muito a ver com a experiência de vida e vivências no território, e isso era muito gratificante. Considera que depois da transição as autoridades deram maior atenção à preservação do património do que nos anos 80? A forte identidade de Macau sempre dependeu muito disso, da preservação de muitos traços do seu passado e da sua ocupação em diversos momentos. Aí reside a diferença, pois não se trata apenas de um território novo, tem um passado. A forma como o património foi protegido e tratado foi fundamental. Eram coisas que no final da minha estadia, quer da parte do Instituto Cultural ou de outras entidades do Governo começavam a ser abordadas, além de todo o trabalho de protecção que tinha sido feito no passado. Começava-se a fazer a ocupação desse património. Quando saí de Macau estavam em curso algumas obras como a biblioteca [no Tap Seac], o Arquivo Histórico, o edifício Ritz no Leal Senado. Aí já se ocupavam edifícios antigos para revitalização e abandonava-se a ideia de construir de novo. O bairro de São Lázaro, onde precisamente está a minha exposição (no Albergue SCM), é uma zona que foi preservada no seu todo, com partes mais ou menos vividas e ocupadas. A arquitectura de Macau feita por profissionais portugueses tem vindo a desaparecer um pouco. Há o risco de desaparecimento dessa arquitectura de autor em língua portuguesa? Quando estive em Macau qualquer obra sobressaía, porque o território era muito mais pequeno. Quando saí de Macau estava a começar a construção do edifício de Manuel Vicente junto à praça Lobo D’Ávila. Tinha evidência porque sobressaía na Macau da altura, e havia projectos de colegas que também tinham impacto, e destaco o do Banco Nacional Ultramarino. Sei que há colegas que continuam a actividade, que está mais espalhada e mais escondida, por tudo o que se passa à volta. É uma situação diferente, porque na altura só praticamente quem estava no território é que trabalhava aqui, havia poucos trabalhos que vinham do exterior, e hoje em dia há uma enorme pulverização dos gabinetes que trabalham em Macau. A escala, sobretudo, é outra. Há muitos arquitectos que estão mais ligados às empresas dos casinos, haverá certamente menos gabinetes a trabalhar, mas penso que haverá sempre a possibilidade de trabalho para os arquitectos radicados no território, não só da parte dos que cá estão há mais tempo, mas também da parte de jovens arquitectos. O Metro Ligeiro foi uma oportunidade, por exemplo, para alguns desses gabinetes terem intervenção. O World Trade Center, que foi um edifício marcante em Macau, hoje em dia está completamente diluído, por exemplo. Está escondido. Deixou de ter essa marca.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteSérgio Proença apresenta hoje livro sobre planos urbanísticos de Macau, Índia portuguesa e Timor “Macau, Índia e Urbanismo de Timor – Continuidade e Ruptura na Implantação do Planeamento Urbano entre 1934 e 1974” é hoje apresentado na Casa Garden às 18h30. A obra, da autoria de Sérgio Proença, partiu de um estudo a planos urbanísticos dos antigos territórios portugueses a Oriente. Em Macau, o planeamento intensificou-se a partir dos anos 70, apesar de constrangimentos financeiros Que comparações podemos fazer, em traços gerais, aos planeamentos urbanísticos de Macau Índia portuguesa e Timor nestes anos? Verificamos desigualdades? Os planos elaborados para os três territórios enquadram-se num contexto cultural arquitectónico e urbano comum em cada momento, permitindo-nos definir “grandes famílias”, ou seja, planos formalistas, modernos e planos da cidade-território. Ou seja, entre 1934 e 1974 os 26 planos podem ser enquadrados em quatro famílias conceptuais que partilham características comuns. O caso de Macau é particularmente rico, pois não havia apenas encomendas impostas ou feitas a partir de Lisboa, mas muitas das coisas foram produzidas por quem estava no território. [Entre os três territórios] houve ritmos e intensidades próprias. O plano mais antigo e os mais recentes são de Macau, mas existe uma maior ausência nos anos intermédios. No caso do Estado da Índia, houve uma maior intensidade de elaboração de planos entre os anos de 1959 e 1960 para acentuar a presença portuguesa naquele território, mas com a passagem [de administração] para a União Indiana, naturalmente não se elaboraram mais planos. Em Timor existiu uma maior produção logo após a Segunda Guerra Mundial, aproveitando a presença no território do arquitecto coordenador do Gabinete de Urbanização do Ultramar. Macau teve as suas especificidades, com o período de maior intensidade de produção [de planos urbanísticos] a corresponder ao início da década de 70. O Estado Novo começou em 1933. Porquê iniciar este estudo em 1934? Esse ano corresponde à publicação de um decreto que obrigava à elaboração de planos para todas as cidades com um número de população acima de determinado limite. Falamos de capitais de distrito ou cidades com algum movimento turístico e económico. Isto gera em Portugal e nos territórios ultramarinos a necessidade de produção de planos urbanísticos e a sua implementação. O livro trata mais da parte de concepção destes planos. Conseguem traçar-se algumas semelhanças porque existiam influências de cultura urbana portuguesa, mas também de uma cultura internacional. Em cada um dos períodos históricos existiam correntes ou princípios que iam determinar paradigmas. Como se verificavam estas semelhanças no caso de Macau? Não se verificavam tanto na arquitectura, na concepção de edifícios, mas mais no modo de conceber a cidade. No caso de Macau havia uma particularidade, por se notar uma influência do que se passava em Hong Kong. Hong Kong terá influenciado, em parte, o plano urbanístico do Porto Exterior, nomeadamente na criação de passagens aéreas entre quarteirões e edifícios, com uma espécie de circulação pedonal que podia ser feita longe do chão. Falamos já na década de 60, neste caso. Acabava por haver uma espécie de cultura global que vai influenciando, mas sempre com adaptações locais. Atrevo-me a dizer que estes territórios não tinham para Portugal a mesma importância ao nível de investimento como tinham os territórios da África portuguesa, que, no fundo, eram mais exigentes e maiores, onde os recursos extraídos também eram outros. O número de cidades aí também era maior, o que obrigava também a mais investimento. Tal obrigava que as propostas urbanísticas tivessem uma certa consciência e fossem, até certo ponto, mais parcimoniosas. Tratava-se de planos formados segundo os mesmos princípios, mas havia a noção de que, para serem implementados, precisavam de ser conscientes face ao contexto em que se fazia a intervenção. Em alguns casos não podiam ser assim tão intuitivos. Aliás, os que foram não chegaram a ir para a frente, e isso acabava por ser contraproducente. Que tipo de profissionais locais intervieram no urbanismo de Macau? Existia uma certa mobilidade de profissionais. Naturalmente que os processos continuavam a ser produzidos pelos gabinetes em Lisboa, mas existiam serviços locais que, muitas vezes, apoiavam de forma intensa espaços de caracterização e de análise dos territórios, mas depois faziam parte das equipas que implementavam os planos, sobretudo nas fases mais tardias. Inicialmente a elaboração de planos era muito controlada pelos profissionais de Lisboa, a partir da década de 60 [isso muda]. Os planos mais tardios acusavam uma certa necessidade de flexibilização, uma adaptação ao tempo e a estes territórios. No caso de Macau nota-se que há uma consciência de que os planos, para serem elaborados, precisam de suporte económico, não bastava apenas o conhecimento técnico. Esse suporte financeiro vinha dos Planos de Fomento. Neste caso dependia muito do investimento privado, para efeitos de execução das fases de construção, que não eram totalmente suportadas pelo poder público. Há um plano para o desenvolvimento turístico de Coloane que chegou a ser feito por fundos privados. No caso de Macau, que planos urbanísticos destaca? Falamos de uma fase em que não se tinha dado a expansão maior do território, e a pouca que havia não era tão rápida como a que assistimos nas últimas décadas. No início do século XX há um plano de arruamentos na zona do Porto Interior e da baixa, de 1925, que propunha a criação de ruas à semelhança do que tinha sido feito em algumas cidades europeias, ainda no século XIX. A maior parte destes projectos não foi para a frente. Hoje teríamos uma Macau substancialmente diferente se todos os projectos tivessem sido feitos. Houve falta de investimento, estavam em causa interesses? Era necessário, para começar, uma administração forte e que se sobrepusesse a eventos privados. Depois era necessária capacidade financeira para conseguir expropriar. Não existia nem uma coisa, nem outra. O plano de 1935 não era complexo, não passava, no fundo, de uma planta, mas tinha um sentido operativo muito grande. Na década de 60 já era completamente diferente, pois existiam arquitectos que tinham trabalho noutros territórios, como João Maria do Carmo, que tinha trabalhado em Moçambique. Foi ele que coordenou o plano para a nova zona central de Macau, o Porto Exterior, e dentro desse plano havia um outro, parcelar, que correspondia ao que é hoje em torno do casino Lisboa, antes de se criar a zona do NAPE. Esse plano teve várias fases e correspondeu a um planeamento mais estruturado, consubstanciado em fases de análise e caracterização, tentando responder a expectativas económicas que pudessem existir para esta zona. Eram planos que, apesar do seu arrojo, eram muito conscientes. Eram também inovadores? Mais do que inovação, acompanhavam o espírito da época. Uma das grandes qualidades era a aplicação dos princípios que estavam em voga adequados a um sítio, isto para a grande maioria dos planos. Sempre existiu essa capacidade de leitura, e não falamos de sítios que não tivessem memória, com décadas e séculos de história. Os projectos na zona da Baía da Praia Grande, ou de desenvolvimento da Taipa, foram também fundamentais? O plano de 1971 contém uma série de definições que acabaram por ser consubstanciadas nos anos seguintes. Houve a capacidade de projectar no tempo coisas que acabam por acontecer de uma maneira diferente do que se previa, e aí reside a capacidade de adaptação, com os planos a serem menos deterministas. Os planos das décadas de 30 e 40 baseavam-se muito naquela imagem do que iria ser feito. Depois, quando chegamos a fases mais tardias, o planeamento já era mais abstracto. As infra-estruturas de mobilidade continuaram a ser importantes para a definição formal de uma estrutura já em movimento. O plano de 1971 propunha, por exemplo, parcelamentos, infra-estruturas rodoviárias em Coloane e as bases para o aeroporto. Macau poderia ser hoje um território mais moderno em termos urbanísticos? Há cerca de 20 anos que não vou a Macau e, pelo que vejo, é hoje uma cidade bastante diferente. A última vez que a visitei não achei, de todo, que não fosse uma cidade moderna. Penso que se conseguiu obter um equilíbrio das diferentes velocidades [de desenvolvimento]. A capacidade que uma cidade tem de incorporar tempos diferentes é, para mim, uma qualidade, e esta é tanto maior se não abdicarmos de nenhuma das partes [velocidade de construção e zona antiga da cidade].