Rosa Coutinho Cabral, cineasta: “Prémios dão um novo alento”

Filmado em Macau em 2018, “Pe San Ié”, longa-metragem documental sobre a vida de Camilo Pessanha, recebeu, em Fevereiro, quatro distinções no festival New York Movie Awards. Mas a realizadora Rosa Coutinho Cabral não tem parado. Depois do lançamento no ano passado de “A Casa da Rosa”, está na forja um projecto de filme e peça de teatro sobre Natália Correia, que poderá ser apresentada em Macau

 

A longa-metragem documental de 2018 “Pe San Ié” continua a ganhar prémios. Como encara esta longevidade da obra?

Fico muitíssimo satisfeita, sobretudo porque foi um trabalho que eu gostei muito de fazer na companhia do Carlos Morais José e apoio da produtora Inner Harbour. Contou ainda com a colaboração de muitas pessoas, tal como Susana Gomes e Pedro Cardeira na fotografia e José Carlos Pontes na música. Estes quatro prémios [Melhor Longa-metragem Documental, prémio Prata para Melhor Música Original, Melhor Edição e Melhor Cinematografia] dão um novo alento ao filme. No fundo, um filme vive do seu reconhecimento e da sua projecção, e se não for visto é, de alguma maneira, um arquivo morto. O facto de estar a ser desarquivado, digamos assim, e procurado [é bom], porque são muitos destes festivais que nos procuram, convidando-nos a enviar o filme para concurso. Não há dinheiro envolvido, mas estes prémios trazem o reconhecimento. Saber que fizemos um objecto artístico e cultural com interesse que vai além do momento em que a produção termina, o facto de continuar a ser solicitado depois destes anos traz uma revitalização muito grande. Dá uma grande importância ao tema, passado em Macau, algo que também está muito presente no imaginário das pessoas, bem como a figura de Camilo Pessanha.

Passaram alguns anos desde que fez o filme. Como olha hoje para o projecto?

Tive a oportunidade de rever o filme muito recentemente. É muito raro ver filmes meus já terminados e, muitas vezes, nem os vejo quando passam nos festivais. No entanto, vi-o num outro dia e considero que continua muito actual no propósito que tinha. Não mudaria nada. Acho que a escolha do Carlos Morais José para personagem aglutinadora faz com que o documentário seja ficcional, um misto de detective com Pessanha, da nossa própria condição de português no Oriente, é muito importante. Isso faz com que o filme ganhe um trajecto temporal entre aquilo a que se refere, que é o tempo de Pessanha, e o tempo que vivemos hoje em dia, que é o tempo em Macau. Esta actualidade que se prende com o tempo anterior está muito bem resolvida no filme e não mudaria nada. Ainda hoje recebi um convite de outro festival [para apresentar o filme a concurso]. Há ainda outro aspecto que queria sublinhar: sempre considerei que isto era um ensaio cinematográfico que colocava o olhar de um morto num sítio vivo. Acho que isto foi conseguido e, passados estes anos, ainda acho que é isso que está no filme: um contrato com a pessoa que morreu e com o seu olhar sobre um espaço que ele escolheu viver e morrer e onde escreveu grande parte da sua obra. Confesso que esta ideia de ter um espaço que vacilava entre o campo, que é o olhar dele, e o contracampo, que é o presente, ainda lá está no filme e fico contente com isso. Ainda consigo achar o que tinha proposto e não fiquei zangada comigo. Quando acabo os filmes fico sempre um pouco zangada, com a sensação que não era aquilo que queria.

Venceu também outros prémios neste festival, nomeadamente com o recente documentário “A Casa da Rosa”. Fale-me desse projecto.

É um projecto sobre a perda, o outro e tem a ver comigo, com aquilo que perdi ao longo da vida, que foi bastante trágico, e que acaba por culminar com a perda de uma casa. Quis filmar todo o processo de saída, de ser obrigada a sair de uma casa que era o meu lugar, um sítio onde tinhas as minhas memórias e onde tinha tudo aquilo de que não me queria afastar, mas que fui obrigada. Na verdade, não tinha dinheiro para pagar a renda e fui despejada. Fiquei um pouco espantada com o facto de o filme ter tido todo este reconhecimento, o que é interessante para um filme muito íntimo, muito sincero, muito honesto sobre o que senti. Foi totalmente feito por mim: gravei, fiz o som, filmei-me continuamente, tive de me encenar a mim, colocar a câmara, criar um espaço. Foi uma espécie de auto-encenação, uma coisa muito intensa e feita sem dinheiro nenhum, com o meu dinheiro e de pessoas amigas. A música foi oferecida pelo José Carlos Pontes. Acho que, cinematograficamente, é um filme de grande honestidade sobre a perda. A minha pergunta é como se filma a perda, o luto, algumas situações muito trágicas. Consegui fazer o filme porque me deixei arrastar pelo meu sentimento e honestidade, de nada esconder. É uma pessoa que se despe e mostra o que é. Não sei se voltarei a fazer isso, mas dessa vez, fi-lo.

Foi uma maneira para lidar com várias situações difíceis, portanto.

Sim, pode-se dizer que sim. Este lado trágico e que culmina com o processo da catarse… possivelmente, sim. Fui muito obsessiva na filmagem, gostei bastante de a fazer, mas usei o método que quase me levou a enlouquecer com essa obsessão. Já estava farta da casa e de filmar. Andava sozinha pela casa e pelo telhado de um edifício de Lisboa sozinha, à noite, porque queria sentir tudo o que tinha a ver com aquela casa. Houve uma altura em que quase raiou a loucura, uma certa desrazão. Mas foi um processo do qual não me arrependo. Ainda bem que o fiz.

Como é ver revelado algo tão pessoal em festivais de cinema?

Não foi difícil. A primeira exibição foi no DocLisboa, foi bem recebido, segundo consta esteve muito perto de receber o prémio [principal], mas houve outro filme de que gostaram mais. As coisas são assim. Depois tive um contacto com uma curadora italiana que quis levar o filme para o festival “8 1/2”, baseado no [Federico] Fellini, e aí o filme começou a circular e recebemos convites para outros festivais. Nunca recebemos dinheiro, o que me teria dado muito jeito (risos). Houve pessoas que acreditaram no filme e ajudaram na montagem.

Está a trabalhar num documentário sobre Natália Correia. Quando termina esse projecto?

Em Setembro. Na próxima semana vou estrear uma peça de teatro, também sobre a Natália Correia, intitulada “Colheres de Prata”, que, se tudo correr bem, poderá ir até Macau.

Porquê Natália Correia?

Por várias razões: eu sou açoriana, ela é açoriana. Viemos para Lisboa praticamente com a mesma idade, não porque quiséssemos vir, mas porque a família veio. Tivemos de sair de uma ilha de que ambas gostávamos bastante para um lugar ainda desconhecido. Natália foi sempre uma mulher do lado da liberdade e da defesa dos direitos humanos. Foi uma anti-fascista. Toda a vida foi dedicada a defender estes propósitos, quer na literatura, quer na política, quer nas campanhas que apoiou, nomeadamente a de Humberto Delgado. Foi uma mulher bastante intransigente e muitos livros dela foram apreendidos pela censura. Sempre defendeu a figura da mulher, sem o feminismo um pouco bacoco da época. Ela fazia, para mim, a defesa de um feminismo mais actualizado e interessante. Ainda hoje concordo com ela. Nunca teve a ideia disparatada de as mulheres terem de substituir os homens ou de homogeneizar formas de poder. Achava que o mundo tinha de ser habitado por homens e mulheres em igualdade de circunstâncias sociais, políticas e económicas e já falava na igualdade de género. Depois do 25 de Abril de 1974, foi uma voz importante e fez um movimento crítico em relação ao seguimento da Revolução. O que também acho interessante. Nunca perdeu as características da sua voz e isso fez dela uma mulher que muita gente quis reduzir a anedota, numa mulher de direita, desbragada. Nunca foi contra as instituições democráticas e as críticas que fez foram proféticas, com coisas que hoje vemos que são verdade. Sou uma pessoa de esquerda e sempre me identifiquei com ela, por ser uma voz discordante numa época em que era difícil sê-lo, pois ser discordante era ser de direita. Mas ela nunca se inibiu, e acho isso notável. Foi ainda uma mulher extraordinária na literatura, e luto, nestes projectos que estou a fazer, contra a redução dela a uma anedota e a uma ideia política que não corresponde à verdade. Foi sempre anti-fascista, antes e depois do 25 de Abril.

14 Mar 2023

Maria do Rosário Pedreira, autora e editora: “Ou escrevia, ou ia ao psiquiatra”

Acaba de ganhar o prémio do festival literário “Correntes D’Escritas” com o novo livro de poesia “O meu corpo humano”, editado no ano passado. Na obra, Maria do Rosário Pedreira faz um exercício de reflexão sobre o mundo, mas também sobre si própria, depois do sofrimento gerado pela pandemia. A autora encara a publicação espaçada de poesia como um momento catártico

 

Regressou agora do festival “Correntes D’Escritas” onde o seu último livro, “O meu corpo humano”, foi premiado. Imagino que a distinção tenha produzido uma óptima sensação.

Claro (risos). Primeiro porque tenho um especial carinho pelo festival, que existe há mais de 20 anos e que não tem ainda nenhum equivalente em Portugal. Foi importantíssimo ganhar este prémio por ser um festival de que gosto especialmente e por ser de um livro que é especialmente duro, que tem a ver…

Consigo, mas não só…

Sim. É talvez o meu primeiro livro que fala do outro quase de uma maneira suplicante, porque, na verdade, fala do corpo no sentido de ser frágil, vulnerável ao tempo, à doença, à idade e ao envelhecimento, e humano no sentido humanista, ou seja, é um corpo que sofre e ao qual é preciso prestar atenção e ter compaixão, é preciso ter empatia pelo corpo do outro. Ainda há dias aconteceu um terrível naufrágio ao largo da costa italiana em que morreram uma data de pessoas, muitos deles crianças. Temos pena nesse dia em que passa a reportagem e depois nunca mais se fala disso. Quis, no fundo, com estes poemas, chamar a atenção para a indiferença perante as grandes questões. Por exemplo, esta história de retirarem palavras como “feio” e “gordo” de livros de um autor clássico juvenil [Roald Dahl] é ridícula ao pé de problemas como tentar resolver a questão da fome ou das migrações que não estão minimamente resolvidos.

Vivemos na era do politicamente correcto que está a deturpar conceitos e ideias com os quais fomos crescendo?

Estão-se a radicalizar questões que, de facto, são muito importantes, como o racismo, a xenofobia. A nossa relação em relação às lésbicas, gays e transsexuais têm de mudar, de facto. Não pode continuar como no tempo dos meus pais, em que era tudo um escândalo e andava tudo escondido. Acho é que são questões que não estão a ser tratadas da maneira certa, porque se confunde muito “língua” e “linguagem”, ou seja, acham que por se dizer “presidenta” já estão a respeitar a mulher que detém o cargo. Não tem a ver com isso. Não estou a ofender uma mulher se a chamar de “presidente”. Muitas vezes torneiam-se as questões sérias com um tratamento que é radical e quezilento e que só vai criar anticorpos. Em relação à retirada de nomes como “feio” e “gordo” há, de facto, coisas menos boas e não devemos poupar os miúdos ao que existe. Não os podemos esconder do mundo real. Estudos demonstram que uma das razões pelas quais o QI está a baixar na Europa desde o ano 2000 é, justamente, pela falta de linguagem, pela falta de capacidade de construir argumentos. Estamos a ver em toda a Europa os partidos de extrema-direita a crescer, porque falam preto no branco. O problema reside em que, se quem ouve, só percebe o básico. O problema da esquerda hoje em dia é, em vez de tentar resolver os grandes problemas dos países, [focar-se noutros]. Temos de ir à base e resolver os problemas maiores.

Publicou livros infantis numa época diferente [colecções “O Clube das Chaves” e “Detective Maravilhas”], quando não havia internet. Já aí tinha a preocupação de transmitir o mundo real?

Sim. Aliás, os textos sobre as colecções que fiz dizem sempre que os livros tentam transmitir valores humanos que estão em declínio e, ao mesmo tempo, transmitir informação que não é dada nas escolas. Isso já era uma preocupação minha, nem era tanto fazer um objecto literário. Queria ganhar leitores e trazer miúdos para a leitura, atraindo-os com temas como as injustiças que se passam no mundo, na escola, as coisas que não sabem como resolver ou o conflito entre gerações. Penso que o máximo problema hoje em dia é, justamente, a dependência juvenil da tecnologia e o afastamento da leitura, porque esta sempre ajudou as pessoas a serem mais empáticas, por haver uma identificação com as personagens. Além disso, a leitura desenvolve capacidades que o audiovisual não desenvolve, como o pensamento crítico ou a imaginação. Esta é uma geração dependente do audiovisual.

Voltando ao seu livro, o júri do “Correntes D’Escritas” destacou “a ousadia como a obra aborda a experiência do corpo humano nas dimensões do desejo, morte, memória e na relação com o outro”. Não é só um livro de poemas sobre si, como mulher, na relação com o seu corpo, é também um exercício de reflexão sobre o mundo onde habita?

Claro. Acho que nos meus livros anteriores era sempre o sofrimento pessoal do sujeito poético que estava à mostra. Eram sempre os poemas do “Eu”. Perdi algumas pessoas na pandemia e o sofrimento alheio passa a ser um pouco o nosso. Já tenho uma vida equilibrada e, se calhar, não precisava de sofrer tanto pelas minhas questões pessoais, mas a verdade é que ficámos com mais tempo para olhar para nós, porque ficámos sozinhos, não podíamos sair nem estar com os outros. Percebemos também que o tempo que estava a passar, para pessoas mais novas, não tem eco no futuro, mas para uma pessoa na minha idade sim. Eu estava, na pandemia, quase com 60 anos, o que significa que os anos que vêm aí são preciosos, e que chatice não podemos vivê-los. Há também uma influência no corpo físico. Olhamos para trás e percebemos o que não podemos voltar a fazer. Já não nos vamos apaixonar como o fizemos em jovens, já não nos podemos voltar a vestir com coisas que, se calhar, gostaríamos. Percebemos que o nosso corpo é vulnerável e não volta a ser o que era. O que acontece a partir de certa idade é um arrependimento pelas coisas que não fizemos. O meu livro reflecte esse olhar para o espelho e a reflexão do que já se fez e não se vai a tempo de fazer e, por outro lado, perceber que com a vida minimamente equilibrada em termos sentimentais, olhamos para os outros e percebemos que estão piores que nós. Nós, com esta vulnerabilidade do tempo, temos a obrigação de fazer alguma coisa, muitas vezes pelos jovens. Na questão dos migrantes, vemos pessoas, que são jovens, mais sujeitas a que o seu corpo sofra. Portanto, este é um livro sobre até que ponto não devemos ser compassivos, empáticos e atentos aos que estão a sofrer.

Arrepende-se de alguma coisa que não tenha feito?

Quando era miúda fiz teatro e sempre pensei que gostava de fazer teatro, mas não é aos 63 anos que me vou pôr a fazer isso. Poderia fazê-lo, mas não seria a mesma coisa. Há pouco tempo, por exemplo, pensei em fazer um herbário, mas com esta idade já não se justifica andar a recolher plantas de ruas e jardins, talvez fosse melhor ter feito isso antes. Há montes de livros que não li que gostava de conseguir ler até morrer e se calhar já não vou conseguir, porque o nosso cérebro já não processa a informação da mesma maneira. Não tenho filhos, mas nunca senti muito o apelo maternal e casei com quarenta e tal anos. Mas escrevo num dos poemas do livro que gostava de ter tido netos.

A relação que tem hoje com o seu corpo é mais tranquila?

Não é nada tranquila! Esse é o problema, porque acho que o envelhecimento físico é uma coisa muito complicada. Oiço mal e lido muito mal com o facto de ir ver uma peça de teatro e não conseguir ouvir tudo. É limitativo, lido mal com isso. Acho que as pessoas têm de gostar de si e não é fácil o facto de um corpo envelhecer. Não tenho uma relação pacífica com isso. Como tenho uma vida muito activa, foi o período da pandemia que me fez parar e se calhar está associado a coisas que não gostei de ver. Não acho que seja pacífica a relação com o meu próprio corpo. Queria gostar mais de mim.

Disse numa entrevista que a poesia já a salvou de momentos de angústia, até de uma depressão? É como uma catarse constante?

Digamos que os meus livros são sempre terapêuticos, e por isso escrevo pouco. Se não publico até é bom sinal, porque não preciso de o fazer.

Não publicava poesia desde 2012, quando editou “Poesia Reunida”.

Sim. A minha poesia escreve-se pouco. Se calhar, se não tivesse sido um momento especialmente mau nesta pandemia, com a perda de pessoas amigas e o envelhecimento, muito provavelmente não teria voltado. Defino sempre um livro de poesia como: ou o escrevia, ou ia ao psiquiatra. Na verdade, prefiro escrever o livro, porque cada poema que sai faz-me sentir bem e o eco no leitor é muito gratificante. Isso acaba por curar, se calhar, o mal que estava antes do livro. É uma terapia.

Já foi ao psiquiatra, ou recorre sempre aos livros?

Já fui ao psiquiatra, sim, mas foi há muitos anos (risos).

É também editora, e no grupo Leya é responsável pela descoberta de novos autores. O que um romance tem de ter para lhe chamar a atenção?

É muito difícil de responder a isso porque nunca é a mesma coisa. É mais uma coisa de sentir do que de descrever. Hoje em dia publica-se toda a espécie de porcaria que existe. Discordo muito disso porque quem tem talento tem, quem não tem deve fazer outra coisa. Devíamos dar um espaço de destaque ao verdadeiro escritor. Quando comecei, com vinte e tal anos, a edição de livros era uma actividade muito menos industrial do que é hoje. Há livros editados que são maus formadores de leitura e levam a que as pessoas pensem que também podem publicar. Temos o mercado pejado de coisas verdadeiramente más. O material que usamos para escrever um livro é aquele que usamos nesta entrevista, para pedir um café ou insultar alguém. Combinar isso [bem, num livro] é cada vez mais raro, e é isso que me faz escolher um livro. Na nova geração, então, é raríssimo.

Recebe muitos livros?

Muitíssimos. É difícil encontrar um bom livro porque a geração educada pelo audiovisual não só escreve pior como escreve como se fosse um guião, em tempo real, no presente do indicativo, sem discrições.

E na poesia, há maus poemas?

Há péssimos. Mas sempre houve, e ninguém os edita. A diferença entre a poesia e a prosa é que, como a poesia se vende pouco, não há empresas interessadas em fazer os livros às pessoas. A má poesia não se vende, mas a má prosa sim, porque há empresas especializadas em afagar o ego das pessoas que não têm talento, e estas pagam para ter o seu livro publicado. Mas depois o livro nunca aparece em lado nenhum. Isso baralhou o mercado e hoje quando entramos numa livraria não conseguimos distinguir o bom do mau.

14 Mar 2023

Paul French, escritor: “Macau era uma ‘Casablanca da Ásia'”

Assume-se como “um escritor diferente da China”. O fascínio pelo Oriente nasceu da aprendizagem do mandarim. Autor de obras como “Midnight in Peking” ou “City of Devils: The Two Men Ruled the Underworld of Old Shanghai”, bestsellers do New York Times, Paul French estará hoje na Livraria Portuguesa, a partir das 18h30, para falar da sua obra e das “estranhas histórias da velha Macau” que contribuem para que o território mantenha ainda uma aura de mistério

 

Há muito que escreve sobre a China e vai hoje à Livraria Portuguesa falar do seu trabalho. O que podemos esperar desta conversa?

Vou contar algumas histórias sobre Macau e os portugueses em Macau. Quando escrevi o livro sobre os gangsters estrangeiros em Xangai nos anos 30 [City of Devils: The Two Men Ruled the Underworld of Old Shanghai], com histórias reais, eu próprio, mesmo conhecendo muito sobre a história de Xangai, fiquei surpreendido com o facto de haver tantos portugueses envolvidos no mundo do crime da cidade. Geriam clubes nocturnos, investiam dinheiro no jogo. Outra coisa curiosa, é que eles aprenderam técnicas de jogo em Macau, levaram slot-machines para Xangai a partir de Macau. Essa é uma ligação interessante que existe entre Macau e Xangai que não é conhecida. Sempre que falamos de Macau falamos de missionários, diplomatas, mas houve muitas outras pessoas que viajaram para Macau. Era como um lugar de escape para quem tivesse problemas em Portugal, era um sítio onde se falava a mesma língua [português] e em que se podia escapar à polícia.

Como teve o primeiro contacto com estas histórias?

Lendo jornais antigos. Claro que a maior parte destas histórias foram publicadas pelos jornais de Hong Kong ou de Xangai nas edições internacionais. Muitas destas histórias simplesmente caíram no esquecimento. Encontrei uma delas numa edição do South China Morning Post de 1936, que dizia que o Japão ofereceu dinheiro a Lisboa para comprar Macau. Não é uma história muito conhecida, mas é um pouco estranha. O Japão pensou que Lisboa poderia dizer sim [à venda do território]. Nos anos 30 Macau rendia muito dinheiro a Lisboa e Portugal não estava ao mesmo nível do Reino Unido. O Reino Unido jamais venderia Hong Kong. Para o Japão seria uma forma mais fácil de conquistar território na Ásia [caso comprasse Macau].

Há ainda muito a descobrir sobre a história e as pessoas de Macau? Persiste um certo mistério?

Há muitas coisas por descobrir em Macau, é um território com essa reputação. Se olharmos para o caos da China nos anos 20 e 30, e para Hong Kong, pouco policiado pelos britânicos na qualidade de colónia, Macau era um sítio muito fácil nesse sentido, era permitido fazerem-se muitas coisas. Muitos ficavam satisfeitos com isso, os chineses e as pessoas de Hong Kong, por causa dos negócios. Na II Guerra Mundial Macau passa a ser importante por causa da sua neutralidade e torna-se numa espécie de “Casablanca da Ásia” em termos da presença de espiões, por exemplo. Macau era o lugar onde os nazis, os japoneses e os chineses se misturaram durante o conflito. Fiz também muito trabalho sobre os judeus refugiados em Macau. Durante a II Guerra Mundial, Macau era um lugar fascinante e teve um papel muito importante.

Porque ficou tão fascinado por este mundo?

Penso que é fascinante para muitas pessoas, mas no meu caso foi devido à língua chinesa. Estudei chinês no Reino Unido e em Xangai. Comecei a investigar mais sobre a história dos estrangeiros em Xangai, mas também em Macau e Pequim, e claro Hong Kong despertou sempre um interesse em mim por ser uma colónia britânica na Ásia, e também pela transição. Mas as histórias de Macau sempre me apareceram sem eu estar à procura delas. Sempre procurei mais por registos de Hong Kong, e de repente deparei-me com a história de um grupo de portugueses que viveu em Macau nos anos 20 e que tentou começar uma revolução em prol da independência, para criar uma espécie de “República de Macau”, separada de Lisboa. Era uma operação relacionada com acções de chantagem. Chegaram ao Governo e disseram: “Vamos começar uma revolução. Dêem-nos dinheiro”. E até foram bem-sucedidos, puseram notícias nos jornais e tiveram apoio de algumas pessoas. Havia um sentimento de rebelião no ar, sobretudo no seio dos militares e da marinha devido às condições de trabalho e de estadia, por isso surgiu a ideia de independência, mas toda a operação não passou de uma acção de chantagem. Esta história apareceu-me assim, do nada…. Há também a história de um refugiado polaco que tentou nadar até Macau e as autoridades portuguesas tentaram empurrá-lo para o lado da China, enquanto ele lutava por chegar ao território português. Acabou depois por ser enviado para o Brasil.

A história de Macau está cheia destes episódios. É um território que terá sempre esta ideia de ser “fora da lei”?

Está certa. Sempre houve um certo mistério e exotismo. Macau não é como as outras antigas colónias, nomeadamente as britânicas, como Hong Kong ou Singapura, por exemplo. Lisboa não tinha muito interesse em Macau, tal como não tinha com Goa ou Timor. Não fazia uma série de coisas, não enviava muitos soldados. Deixava o território andar ao seu ritmo. Acabei de reeditar o livro sobre os escritos de Harry Harvey [Where Strange Gods Calls, editado nos anos 20], e o estilo com que descreve a Macau da altura é sempre com ligação aos casinos, diferente de tudo o resto, com a presença do catolicismo. Isso aparece também em muitos outros escritores, como Ian Fleming nos livros de James Bond, nos anos 60. Ele descreve Macau quase no mesmo estilo. O que podemos retirar daqui é que Macau era, de facto, um lugar onde podíamos, de certa forma, escapar às autoridades. Havia jogo, prostituição, e Lisboa não estava, de facto, a prestar muita atenção.

Mas a China esteve sempre a prestar atenção e por vezes tirava vantagens disso.

Houve sempre boas relações e Macau manteve-se com administração portuguesa porque havia o interesse no comércio da parte da China. Temos o exemplo do comércio do ópio, no qual Portugal não estava envolvido. Era um negócio essencialmente americano. Todos comercializavam matérias-primas como prata e ouro. Macau era, para muitos, uma base para entrar em Guangdong.

Acaba de lançar três novos livros incluídos na colecção “China Revisited”, que contêm histórias de viajantes comuns que vieram para Macau, Hong Kong e sul da China entre os séculos XIX e XX.

Com a pandemia, e sem poder viajar, passei muito tempo na biblioteca de Londres que tem uma boa colecção dos escritos de antigos viajantes em todo o mundo, incluindo a China, na época vitoriana. Decidi prestar mais atenção a esses escritos, e cerca de 90 por cento são de viagens entre Xangai e Pequim e para a zona mais ocidental da China. Pensei que seria bom fazer algo com isto, sobretudo relacionado com Macau e a zona de Guangdong. Os relatos de missionários são, muitas vezes, aborrecidos, então o meu foco era ir além disso. Tenho o exemplo de Benjamim Harry, um missionário americano que viaja para Hong Kong e que é muito interessante, porque vai a Guangzhou e dá-nos grandes descrições da cidade, que claro que mudou muito, sobretudo nos anos 30. Foi também o primeiro ocidental a visitar e a escrever sobre a ilha de Hainão, que nessa altura era uma zona ligada à agricultura com plantações de cocos. Estava muito longe de ser o “Hawai da China” como hoje é conhecida a região.

O seu trabalho já foi reconhecido pelo jornal New York Times. Alguma vez pensou ter uma carreira internacional?

Penso que sou um escritor da China diferente. A maior parte das pessoas que escrevem sobre a China são académicos ou jornalistas que vivem algum tempo no país e querem contar o que viram com mais detalhe do que aquilo que publicam nos jornais. Eu tento fazer algo diferente. Quero escrever livros que muitas pessoas possam comprar no aeroporto para ler no avião ou na praia quando vão de férias, por exemplo. Têm acesso à história da China, mas também a boas histórias.

Está também a trabalhar num livro sobre Wallis Simpson, a mulher divorciada por quem Eduardo VIII abdicou do trono britânico, nomeadamente sobre o período em que viveu na China, de 1924 a 1925. Fale-nos mais deste projecto.

Claro que não é possível crescer no Reino Unido sem conhecer a história de Wallis Simpson. É uma boa história para mim porque me dá a oportunidade de escrever mais sobre os anos 20 na China e claro que será uma história interessante para as pessoas. Todos conhecem a história da abdicação do trono, ela sempre foi considerada a mulher mais detestada de sempre, dependendo da perspectiva. Mas ela é interessante porque há uma série de rumores e notícias falsas sobre o que lhe aconteceu na China. Wallis foi para lá com o marido da altura, um oficial da marinha americana, e passaram por Hong Kong e Xangai. Ele era uma pessoa horrível e batia-lhe. De Xangai ela vai para Pequim onde passa cerca de sete a oito meses num alojamento muito agradável. Depois Wallis Simpson regressa aos EUA, mas nesse ano em que esteve na China aprendeu muito sobre ela própria, percebendo que não tinha de estar casada com aquele homem, a ser agredida, e que podia ser independente e misturar-se com uma certa elite internacional e cosmopolita. Tornou-se então naquela mulher para a qual todos olham quando entram na sala, que se move nos círculos da realeza, e foi aí que Eduardo VIII olhou para ela. Mas o livro vai também contar um pouco sobre a história da China.

3 Mar 2023

António Pedro Costa, autor de “D. Paulo José Tavares – O bispo diplomata”: “Ele foi uma lufada de ar fresco “

D. Paulo José Tavares era bispo em Macau no período do movimento “1,2,3”, em 1966, ficando para a história como a figura que estancou a penetração do maoísmo nas escolas católicas. Lançado a 25 de Janeiro, o livro “D. Paulo José Tavares – O bispo diplomata” conta a história de vida do eclesiástico que saiu de Rabo de Peixe, nos Açores, passou pelo Vaticano e deixou uma marca no Oriente

 

Como começou esta aventura de escrever sobre a vida de D. Paulo José Tavares?

É uma figura muito conhecida aqui em Rabo de Peixe [Açores]. Temos uma estátua, uma escola e uma rua com o nome dele. No entanto, muita gente, sobretudo as actuais gerações, não conhece nada da figura que ele foi no seio da Igreja, apesar de ser uma figura que merece todo o destaque. Percebeu-se, aqui na paróquia, que as pessoas não tinham a verdadeira noção da importância da figura de D. Paulo José Tavares e foi assim que me foi lançado o desafio de escrever este livro. Percebi que não havia muita informação sobre ele e a própria família também não sabia muitas coisas, porque a irmã mais nova, que ainda é viva, era muito pequena [quando ele deixou os Açores]. Não foi uma pesquisa fácil, pois precisava de alguns dados do Vaticano, consegui falar com algumas pessoas que tentaram ajudar-me, mas não foi possível obter informação daí, nem de outros locais.

D. Paulo José Tavares esteve em Macau num período muito particular, nos anos 60, durante o movimento “1,2,3”. Chegou ao território com o objectivo de modernizar o clero local.

Ele tinha vários objectivos [com essa missão] e foi escolhido para ser o bispo de Macau porque era uma figura muito importante em termos de diplomacia. Esteve na Secretaria de Estado do Vaticano, tinha capacidade de lidar com situações complicada e o território estava precisamente a passar por uma situação complicada. Tentou abrir mentalidades e fez com que se implementasse em Macau a equiparação entre o clero chinês com o clero europeu. O clero de Macau era muito conservador e ele teve dificuldades aí. Ele equiparou os vencimentos dos padres locais com o clero europeu e isso proporcionou um salto qualitativo muito grande. Além disso, fez com que as pessoas de Macau vissem nessas atitudes alguém que vinha valorizar a população. Perante a ideia colonial que havia, de que a Europa era detentora de todo o saber, ele abriu-se às questões locais e fez com que houvesse uma proximidade muito forte [com a população]. Ele tinha as portas do gabinete abertas e era um bispo que não estava na sua cadeira pontifícia. Era um bispo que ouvia as pessoas e valorizava os locais. Teve um papel importante na dinamização religiosa da população e promoveu algumas iniciativas inéditas, como foi o caso da celebração dos 50 anos das aparições de Fátima [celebradas em 1967]. Isso fez com que, pela primeira vez, se tenha criado a “Festa do Doente” em Macau, que levou a uma grande mobilização das pessoas.

Foi, portanto, uma figura acarinhada pela comunidade chinesa.

Exacto. Essas atitudes de valorização da comunidade chinesa levaram a uma aproximação e ao estabelecimento de uma relação de confiança. Só assim conseguiu levar os seus objectivos adiante, pois percebeu que tinha de ter a população do seu lado. Mas isso trouxe-lhe muitos dissabores com o clero europeu, que não concordava com a postura de D. Paulo José Tavares. Fez com que a população tenha visto nele um aliado e não uma pessoa que vem de fora e que impõe as suas ideias.

Passando ao período do “1,2,3”. Ele é tido como a figura que impediu o maoísmo de penetrar nas escolas católicas.

Foi um período muito conturbado e ele soube lidar com a situação que era bastante complexa. A elite comercial e política local estava contra ele e os próprios estudantes. Tentaram afastá-lo e ele resistiu. Foi a sua habilidade diplomática que fez com que se contornassem todas essas situações. Chegaram a pintar o paço episcopal com letras vermelhas contra a religião e ele resistiu estoicamente a tudo isso, fazendo com que, nas escolas católicas, não se ensinasse o maoísmo. Temos de ser justos: ele foi a única personalidade do território com capacidade para estancar esse movimento, graças à sua capacidade diplomática. Se ele não tivesse tido o papel que teve na abertura das escolas, na melhoria do ensino e das estruturas, certamente que no “1,2,3” não haveria capacidade de estancar o movimento. O seu percurso é que lhe deu autoridade para lutar contra esta situação.

Como eram as escolas católicas na altura e o ensino religioso? Havia muita coisa a melhorar?

Macau tinha uma situação idêntica a Portugal, com um regime [político] muito fechado e conservador. Ele introduziu o inglês, chinês e português nas celebrações litúrgicas e isso trouxe uma grande abertura. Foi uma lufada de ar fresco. Via-se, nas festas que aconteciam nas escolas, a adesão das pessoas. Teve a capacidade de ir introduzindo [mudanças] e provocou uma abertura a uma prática colonial e conservadora da religião e do ensino.

Qual o aspecto do legado de D. Paulo José Tavares que lhe parece mais importante?

Ele passou por Macau e deixou um legado, que foi a emancipação das pessoas que viviam no território, indo contra as ideias coloniais. Atribuiu um papel aos locais e deu o mote que os locais tinham de ser valorizados, teve uma visão de futuro e marcou a vida da população. Muitos chineses eram católicos e isso foi importante para a própria emancipação do território.

No processo de pesquisa para este livro teve acesso à tese de doutoramento em Direito Canónico de D. Paulo José Tavares, a qual entregou ao académico Moisés da Silva Fernandes, que está a ultimar uma obra sobre ele.

Foi por acaso que a família obteve a tese. Muita da documentação que existia desapareceu e uma sobrinha de D. Paulo José Tavares tinha a tese em casa e jornais antigos de Macau que serviam para embrulhar cálices e outras peças. Foi um achado muito interessante, pois pude analisar esses pedaços de jornais e descobrir mais sobre o pensamento dele e a riqueza suas das obras. Queria ter tido acesso às cartas apostólicas que emitiu, mas acredito que este livro vai espoletar outras investigações. Tenho a convicção de que a partir daqui a figura de D. Paulo José Tavares vai passar a ser melhor conhecida.

Como olha para a presença do catolicismo em Macau ao longo destes anos, tendo em conta as especificidades políticas do território?

A Igreja sempre teve um papel determinante em Macau e acho que foi importante para modelar a sociedade. O cristianismo, com os seus valores, é uma mais-valia para o território. Mesmo sem ter relações diplomáticas com Portugal, a China olhava para Macau como um ponto de equilíbrio e uma ponte entre as duas nações. O humanismo do cristianismo foi, de facto, uma luz que surgiu e continuou em Macau depois de D. Paulo a modelar ao pensamento e cultura do território.

22 Fev 2023

Brasil vai implementar vários projetos de cooperação em Timor-Leste, diz embaixador

Entrevista por António Sampaio, da agência Lusa

 

O Governo brasileiro vai implementar este ano e em 2024 vários projetos de cooperação com Timor-Leste, nas áreas de educação, formação profissional e agroecologia, assinalando um renovar das iniciativas no país, disse o embaixador brasileiro em Díli.

Maurício Medeiros de Assis disse em entrevista à Lusa que os projetos incluem apoios adicionais a iniciativas já levadas a cabo no país, como o centro de formação de Becora, e novas iniciativas nas áreas de cooperativas e de formação em língua portuguesa de quadros da função pública. “São cinco projetos que estão no pipeline e que serão aprovados ainda este ano, podendo começar a ser implementados ainda este ano. Alguns arrancam ainda este ano, outros arrancam em 2024”, afirmou.

Maurício Medeiros de Assis disse que a eleição do Presidente, Lula da Silva, “mudou da água para o vinho o empenho na cooperação com Timor-Leste”, o que se evidencia com o envio este mês de uma missão para avaliar projetos a implementar este ano e em 2024.

“O Presidente, Lula, é um apaixonado pela cooperação sul-sul e ele não esconde isso. Faz parte das metas do seu Governo resgatar a presença do Brasil no resto do mundo principalmente nesse filão da cooperação sul-sul, que nada mais é que a cooperação entre países em desenvolvimento, sem fins lucrativo, geoestratégicos, genuína, desprovida de interesses que normalmente caracterizam a cooperação norte-sul”, afirmou.

“Apesar de não termos muito recursos, a cooperação brasileira no terceiro Governo Lula certamente voltará a Timor-Leste. Essa é a sinalização que o Presidente tem dado nos seus discursos, o da posse, e o discurso do meu novo ministro que vai priorizar, resgatar a cooperação sul-sul”, considerou.

Um dos maiores projetos levados a cabo em Timor-Leste tem a ver com o apoio à criação do que é hoje conhecido como Centro Nacional de Formação Profissional de Becora, em Díli, projeto que é “carinhosamente” conhecido como o SENAI de Becora, por causa da assistência dada por essa agência brasileira.

“Foi um projeto emblemático em Timor-Leste, que durou cerca de 14 anos, e que queremos resgatar”, explicou o diplomata.

O Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) é atualmente o maior complexo de educação profissional da América Latina e um dos 5 maiores do mundo, tornando-se referência no apoio à tecnologia e inovação em empresas industriais de todos os portes e segmentos.

Em parceria com a Agência Brasileira de Cooperação (ABC), o SENAI implementou nove Centros de Formação Profissional em Angola, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Guatemala, Jamaica, Peru, Timor-Leste e Paraguai.

Uma missão da ABC esteve recentemente em Timor-Leste para avaliar o projeto do centro de Becora e funcionários da Organização das Cooperativas Brasileiras e da CRESOL, uma das maiores cooperativas de crédito, analisaram um outro projeto com a Secretaria de Estado das Cooperativas.

“O Brasil também aprendeu sobre o cooperativismo com a cooperação internacional, com padres alemães a trazerem o conceito que deu resultados muito positivos nos últimos 20 anos. O cooperativismo, especialmente o cooperativismo de crédito, disparou. Hoje é tão grande que é regulamentado pelo Banco Central do Brasil, é um verdadeiro banco”, afirmou.

“Tem um efeito multiplicador que se torna essencial para o agronegócio. São experiências positivas que pretendemos passar a Timor-Leste com este projeto”, afirmou.

A visita recente da missão de avaliação brasileira surge depois de uma visita no ano passado de outra delegação da ABC, que analisou três outros projetos.

Tratam-se, explicou, da “criação de um mestrado em Educação na Universidade Nacional Timor Lorosa’e (UNTL), que deve ser assinado proximamente”, um projeto de agroecologia e um projeto, com a Comissão de Função Pública e com o Instituto Nacional de Administração Pública (INAP) “para a formação continuada de língua portuguesa para funcionários públicos”.

Estes novos projetos somam-se a outras iniciativas ainda em curso, como a cooperação na área militar, com dois oficiais, um do exército e outro da marinha, que são atualmente assessores do ministro da Defesa, “e que colaboram por exemplo na preparação da lei da programação militar”. Há ainda outro oficial envolvido na instrução da polícia militar das F-FDTL.

Continua ainda em curso o projeto de apoio à Defensoria Pública timorense, que está “na sua oitava etapa e completou já 12 anos de formação de defensores públicos e fortalecimento institucional da DP” de Timor-Leste, “criada à imagem da DP brasileira”.

Na área da língua, e nos primeiros anos, ainda antes da restauração da independência, o Brasil apoiou igualmente um grande projeto na área de formação, o Alfabetização Solidária, um outro relacionado com a formação de professores, o Pro-Formação, com a vinda de professores brasileiros e um terceiro, o Programa de Qualificação de Professores de Língua Portuguesa (PQPLP).

Sim às convergências

O Brasil quer encontrar convergências e sinergias com Portugal para projetos de apoio à promoção da língua portuguesa em Timor-Leste, complementando esforços e maximizando os recursos disponíveis, disse ainda o embaixador brasileiro em Díli. “O Brasil não quer criar uma competição com os projetos portugueses de formação nessa área, queremos complementar esforços. Que venham professores portugueses, brasileiros, cabo verdianos”.

Entre as iniciativas onde essa colaboração com Portugal seria positiva, o diploma destacou uma proposta do Ministério da Educação relativamente à criação de uma Escola Superior de Educação, uma “escola de raiz, que envolveria professores do Brasil para formar alunos ao nível de graduação, que serão futuros professores”.

“Atualmente temos muita formação continuada, dada a professores que já estão em funções. Este projeto é novo. Já tivemos uma reunião com o ministro da Educação e a minha sugestão foi que o projeto fosse aberto aos demais países da CPLP. Já falei sobre isso com a embaixadora portuguesa”, disse.

“É um projeto embrionário. Será submetido ao Brasil para análise e envolveria recrutar professores nas universidades publicas e nos institutos públicos para que venham para Timor-Leste para esse projeto”, explicou.

Medeiros de Assis disse ter já falado também com a embaixadora portuguesa em Díli, Manuela Bairos, sobre o principal projeto da cooperação portuguesa na área da língua, as escolas CAFE.

“Tenho interesse em conhecer o projeto, pensar em convergências, evitar que essa cooperação que pretendemos estabelecer como Timor-Leste seja carimbada como cooperação brasileira. Não interessa dizer que este é um projeto de língua portuguesa do Brasil, é um projeto de apoio à língua portuguesa par trazer a língua portuguesa para a comunidade timorense”, disse.

“Não vejo Portugal a resistir a esse tipo de iniciativa conjunta, mesmo porque ajudaria a aliviar as despesas de Portugal e maximizaria recursos”, considerou.

O diplomata explicou que há uma questão geracional que pode condicionar o uso e promoção do português em Timor-Leste, com a geração dos fundadores do país a verem a língua portuguesa “como um facto consumado”, algo que não ocorre com alguns dos mais jovens.

“Estamos a falar da próxima década ser crucial. É preciso ter em consideração que o envelhecimento da população acarreta necessariamente a perda da memória do sacrifício que foi a luta pela independência”, notou.

“O português está associado diretamente com a afirmação da identidade timorense e quem tem isso na cabeça, presente, é a geração que lutou pela independência. Percebe a língua portuguesa como elemento diferenciador. Um jovem de 18 anos já não tem essa perceção. Daqui a 10 ou 15 anos a importância da LP será diluída”, se nada mudar, disse.

Na administração pública, por exemplo, nota que muitos funcionários intermédios continuam sem conseguir usar a língua portuguesa, apesar dos avanços conseguidos nos últimos 20 anos.

“Não vejo que nas instituições os funcionários intermédios tenham essa capacidade. Qual é a razão de ser? Talvez a falta de formação, de incentivos para as formações. Encontro diretores-gerais que não falam português, talvez porque não houve incentivo para promoção”, afirmou.

“Não tenho conhecimento de que os sucessivos governos tenham investidos nisso. Tem a sua explicação também, a falta de recursos, de gente capaz no domínio da língua. Essa falta de domínio leva a uma dependência de consultores estrangeiros, às vezes apenas para a redação das próprias leis. O horizonte de 20 anos é muito curto, mas se essas pessoas não passam, vai-se perdendo”, considerou.

Maurício Medeiros de Assis disse que, apesar de reconhecer os desafios com que as autoridades timorenses se deparam no que toca à promoção da língua, e de sublinhar os progressos conseguidos, é essencial ter, em todas as iniciativas, “um maior engajamento do lado timorense”.

“O Governo tem que tomar uma decisão se realmente quer a língua portuguesa como realmente oficial, presente em todas as instituições públicas, na rede de ensino. São decisões políticas”, disse.

“Com a entrada de Timor-Leste na ASEAN, haverá forças centrífugas em relação à língua portuguesa. O inglês é língua de trabalho da ASEAN, com centenas de reuniões por ano em todas as áreas possíveis. Os futuros recrutamentos da Função Pública, certamente exigirão fluência em inglês, ainda que não substitua o português”, alertou.

O diploma deu como exemplo a comunicação do Governo com o público onde o português “é utilizado como bengala para a construção do tétum, que absorve da língua portuguesa o vocabulário de que não dispõe, científico, jurídico, e outro que é importado”.

Muitas vezes, porém, a comunicação acaba por ser feita em tétum e inglês, eventualmente devido a alguns projetos terem a colaboração de outros países, das Nações Unidas ou da União Europeia, “que querem a presença do tétum com inglês”.

“Duvido que um projeto da ONU na África francófona apareça em inglês. Diplomaticamente digo que não se trata de imposição, mas de um convencimento, de questionar porque não usar também o português para que os jovens possam fazer a correlação entre as duas línguas, tétum e português. Isso ajuda a reforçar”, disse.

“Entendo todos os constrangimentos financeiros, de se tratar de projetos de outros países. Entendo a Austrália preparar um cartaz de um evento ou uma brochura em tétum e inglês. Mas no caso da ONU e da UE, não vejo tanta razão de ser. Como política de incentivo as duas lingas oficiais porque não fazer nas duas línguas oficiais?”, questionou.

21 Fev 2023

Dora Nunes Gago, autora de “Palavras Nómadas”: Macau, “palco de constantes surpresas”

O novo livro de Dora Nunes Gago foi lançado em Portugal no festival Correntes D’Escritas. A ex-docente da Universidade de Macau assume querer dedicar-se cada vez mais à escrita, agora que atenuou um pouco o investimento na carreira académica. “Palavras Nómadas” resulta do somatório de crónicas sobre lugares que visitou, incluindo Macau

 

Porquê “Palavras Nómadas”? O título reflecte as palavras espalhadas por todos os sítios por onde passou?

Ainda estive indecisa e inclinada para um outro título, que era “Mundos Adentro”. A ideia era transmitir o que fui conhecendo e aprendendo ao longo das minhas vivências no estrangeiro e das viagens feitas por vários continentes. Paralelamente, também há a presença de muitos escritores que me vão acompanhando nas viagens e na vida. Talvez por isso, depois, acabei por preferir o título “Palavras Nómadas”, por ser simultaneamente mais poético e sintético. Sim, podemos dizer que contém as palavras espalhadas e espelhadas nos lugares por onde passei e aquelas que foram nascendo em mim, ao longo do tempo.

Como foi o processo de seleção de crónicas? Que mensagens quis passar ao leitor?

Os primeiros textos foram escritos pouco depois de chegar a Macau, em 2012, um pouco paralelamente ao livro “Floriram por engano as rosas bravas” [lançado no ano passado]. Estava novamente a viver uma experiência de emigração, embora muito diferente da anterior. Talvez por isso, senti vontade de escrever sobre coisas vividas no Uruguai, para relembrar outras situações e obstáculos ultrapassados. Fui fazendo alguns rascunhos, sem ter bem ideia do formato final que teriam. Foi apenas durante este último ano em Portugal, de licença, que lhes dei o formato definitivo, escrevi a maioria das crónicas e organizei-as. Queria que fossem 50, pois fiz 50 anos, e que percorressem as minhas vivências e travessias por múltiplos espaços pela vida. Aliás, o último texto talvez seja também esclarecedor. Quanto à mensagem que quero transmitir, creio que caberá ao leitor encontrá-la. Pode dar azo a várias mensagens e interpretações. O que quis, essencialmente, foi partilhar momentos, aprendizagens, a alegria e o interesse que sinto em descobrir novas realidades e universos diferentes.

Neste livro descrevem-se vários sentimentos sobre vários lugares. Qual é, para si, a crónica mais significativa?

Na verdade, não consigo eleger uma. Elas são variadas, há algumas mais divertidas, como é o caso de “O marido imaginário” ou “Pouca sorte com cabeleireiros”, mas outras mais sérias, embora em quase todas haja um bocadinho de humor, que considero um tempero essencial na vida. Todas foram baseadas em acontecimentos reais.

Ensinou português em vários lugares, nomeadamente na América do Sul e Macau. Como foi a experiência de ser docente em diferentes locais do mundo?

No Uruguai ensinei literatura portuguesa na Universidade da República Oriental e num centro de formação de professores. Foi uma experiência extraordinária. Nessa altura, tinha 29 anos, tinha acabado o mestrado, muitos dos alunos eram mais velhos que eu. Aprendi imenso com eles, eram muito cultos, alguns já tinham tirado outras licenciaturas. Lembro-me de lermos alguns cantos de “Os Lusíadas” e alguns citarem de cor partes da “Eneida”, de Virgílio, onde surgiam semelhanças. As discussões enveredavam sempre por novos caminhos e mais profundos do que aquilo que eu esperava. Era verdadeiramente aliciante. Em Macau, os desafios foram diferentes, muito exigentes. Dei aulas na licenciatura, no mestrado e doutoramentos, orientei muitas teses. Encontrei, claro, também alunos muito bons e interessados, outros menos, como sempre acontece. Se em Montevidéu havia a familiaridade do mundo ocidental, em Macau sempre me atraiu a diferença e o desafio que é estabelecer pontes entre culturas tão diferentes. Aliás, essa é a parte que mais encanta na divulgação do português no estrangeiro, sentir que em lugares distantes e universos culturais diferentes há interesse pela nossa língua e cultura e alimentar essa pequena chama. Acho que ensinar deve ser isso, tentar atear a chama do interesse, da curiosidade, pois sem ela ninguém aprende.

As crónicas ajudam a arrumar interiormente memórias de viagens e o seu significado?

Sim, sem dúvida, as crónicas ajudam a arrumar as memórias das viagens e das vivências que fui tendo. São uma forma de compreender o mundo e a vida. Aliás, a última tem como título “um nó para atar a vida”. No fundo, também é isso, a linha com que se cose a manta de retalhos que é a vida.

Nas crónicas sobre Macau descobrimos a novidade, o sentido de descoberta de um lugar?

Esses textos foram a minha forma de ir desvendando e conhecendo aquele universo tão particular. Macau é um lugar único no mundo, não há nada de equivalente. Trata-se de um palco de constantes surpresas. Muitas vezes, há uma grande discrepância entre a casca da aparência e o caroço da essência. Macau, como refere a pintora e escritora Fernanda Dias, é um “mapa esquivo”. A realidade é muito fluída, tudo muda constantemente, há fortes contrastes, paradoxos. A escrita pode ser o modo de tentar encontrar um sentido, de criar um espaço que possa ser habitado.

Qual o significado de lançar esta obra no festival? É uma forma de assumir-se cada vez mais como escritora?

Foi uma oportunidade maravilhosa. A escrita foi algo que sacrifiquei durante muito tempo em detrimento do trabalho, da carreira académica. Mas, de repente, senti uma necessidade visceral de escrever. Ao mesmo tempo, outras coisas perderam a importância que tinham anteriormente. Escrevo desde sempre, comecei a publicar livros em 1997, há 26 anos. Este é o décimo primeiro, sem contar com a participação em obras colectivas, mas ainda tenho um certo pudor e cuidado no uso da palavra “escritora”.

Esta obra faz referência a vários autores, portugueses e estrangeiros. São referências ao acaso ou são autores fundamentais para si na hora de escrever, de quem retirou referências?

De entre os escritores citados, há realmente as duas situações. Há alguns que surgem ocasionalmente, e outros, a maioria talvez, são referências importantes, alguns trabalhados no contexto académico. O facto de ter um doutoramento em literatura comparada cimentou também o meu interesse por autores de outros países. Contudo, no contexto da literatura portuguesa, posso destacar, por exemplo, quatro autores que menciono. Miguel Torga, sobre o qual trabalhei na tese de doutoramento; José Rodrigues Miguéis, sobre o qual escrevi artigos e que li desde a adolescência; Maria Ondina Braga e Lídia Jorge. Estas duas últimas autoras, sobre as quais também trabalhei, abriram “clareiras” dentro de mim, a partir de duas dimensões: o olhar perante Macau e as outras culturas, no caso da Maria Ondina, e um reequacionar, um olhar mais profundo e analítico das minhas raízes, no caso de Lídia Jorge. Acredito que ninguém escreve sem ser antes um grande leitor, há sempre uma herança que integramos, assimilamos e transformamos depois.

21 Fev 2023

Maria Celeste Hagatong, presidente da Fundação Jorge Álvares: “Tenho obrigação de defender a diáspora macaense”

Nunca viveu em Macau, mas está emocionalmente ligada a uma terra que é sua. Presidente da Fundação Jorge Álvares desde Abril do ano passado, acumula o cargo com o da presidência do Banco de Fomento e tantas outras actividades de divulgação da cultura e comunidade macaense. Maria Celeste Hagatong diz que a Fundação está financeiramente estável, orgulhando-se da inauguração da nova biblioteca do CCCM

 

É presidente da Fundação desde Abril do ano passado. Que balanço faz deste período?

O senhor general [Garcia Leandro] já tinha o seu plano preparado e uma série de iniciativas em curso. Era já da nossa responsabilidade a aprovação do orçamento e do plano de actividades, mas grande parte dos compromissos já estavam assumidos. Neste primeiro ano o nosso grande objectivo foi fazer o que estava previsto e penso que não nos saímos mal em termos financeiros, ficámos abaixo do orçamento na parte operacional e global. Uma das coisas que estava prevista e que me deu muito prazer concluir foi a transferência da biblioteca [do Centro Científico e Cultural de Macau] (CCCM) que estava há 20 anos em instalações provisórias.

E era paga uma renda, o que financeiramente não compensava.

Não fazia sentido nenhum. É uma coisa importantíssima para quem está na área dos estudos sobre o Oriente e há documentos com histórias muitos interessantes sobre a vida de Macau e a sua história. Era algo que eu, como descendente de macaenses, gostava de ver preservado. Não houve, portanto, derrapagem orçamental. Temos um grande cuidado de que essas coisas fiquem bem feitas. Gosto de ver as coisas a acontecer e a serem concluídas dentro dos prazos e orçamentos, estou muito focada nisso. Um dos grandes objectivos da Fundação é, precisamente, apoiar o CCCM não só em obras deste género, mas em diversas iniciativas. Já temos um projecto previsto para este ano e outro para o próximo, mas não posso avançar já mais detalhes.

O papel e actuação do CCCM estão subvalorizados?

Por razões orçamentais que compreendemos, mas que são necessárias de ultrapassar, o CCCM precisa de ter um orçamento mais virado para a investigação e desenvolvimento de actividades. Isso é indispensável. Gostava muito que o Centro tivesse mais visibilidade além da comunidade científica, para o público em geral. Há muita gente interessada nos assuntos da Ásia e de Macau com curiosidade em saber mais sobre os seus antepassados, por exemplo. Aliás, da nossa ligação com a Casa de Macau e Fundação Casa de Macau (FCM), uma das coisas que gostávamos imenso era de convidar mais pessoas a darem os seus testemunhos, deixarem as fotografias e espólios para que sejam depositados no CCCM. Acho que há muito património cá [em Portugal] que podia estar ali.

Quais são os seus planos para a Fundação além do que já estava traçado?

Temos projectos que são feitos de ano para ano e que correm muito bem. Também não temos assim tanto dinheiro. Apenas recebemos uma dotação inicial e acabou. Entretanto, passámos por não sei quantas crises financeiras, é bom saber que vivemos apenas dos rendimentos do nosso património financeiro. Não temos dotações permanentes. A única doação que recebemos foi do maestro Filipe de Souza que tem uma propriedade em Alcainça, mas que não nos rende nada, e um dos projectos é encontrar uma solução que não seja um peso e para que esta moradia possa também ser uma imagem da Fundação.

Mas a Fundação, financeiramente, está estável.

Sim, no sentido em que só tem os seus fundos aplicados e só recebe dinheiro daí. Como calcula, com a volatilidade dos mercados financeiros é difícil garantir rendimentos para suportar uma Fundação. Por um lado, tivemos uma altura com taxas de juro baixas e depois apanhamos a crise do Lehman Brothers, da Troika e agora uma guerra. Mas temos feito o melhor que podemos com bastante razoabilidade. Portanto, a música é uma das áreas que nos interesse bastante. Temos essa ligação ao Centro e organizamos o festival anual e internacional de música e instrumentos musicais chineses, algo que chama a Portugal muitas pessoas e estudiosos ligados aos instrumentos musicais orientais. Na edição deste ano vamos esperar ter algo sobre o jazz em Xangai. O festival decorre habitualmente entre Lisboa e Mafra. Este ano tivemos e teremos até final de Março a exposição dos instrumentos musicais em Mafra que já teve mais de 20 mil visitantes. Temos algumas actividades culturais no campo da edição de livros, e temos uma parceria com duas autoras, Isabel Alçada e Ana Maria Magalhães. Já lançamos dois livros e este ano queremos lançar mais uma obra [destinada a um público infantil]. Mas o que vamos fazer na Fundação é continuar a actividade que temos vindo a desenvolver nas áreas que estão solidificadas.

Mas há alguma área da Fundação na qual gostaria de ver mais inovação?

Fizemos uma coisa que foi inovadora, a meu ver, que foi a assinatura do protocolo com a Casa de Macau e a FCM. Isso foi da minha iniciativa.

Essas entidades não estavam já ligadas entre si?

Não. Quem tem o património da Casa de Macau é a FCM, que também recebeu uma dotação inicial para suportar as despesas. Mas entre estas entidades e a nossa Fundação não havia nenhuma ligação, apesar de eu ser sócia da Casa de Macau e de o meu pai ter sido um dos fundadores. Sou curadora da FCM também. Agora queremos, com este protocolo, trabalhar em conjunto temas que sejam importantes para Macau e para os macaenses, e seguir as actividades de ambos.

Descende de uma importante e histórica família macaense. Como é hoje a sua relação com Macau?

Nunca vivi em Macau. Mas fui criada na casa de um macaense que é uma coisa fortíssima. Sempre vivi em Lisboa, o meu avô era oriental e a minha avó ocidental. Somos descendentes de três ou quatro famílias de Macau, os Oliveiras, do tempo das guerras Miguelistas. Depois há uma ligação com as famílias Almeida e Azedo. A minha avó era ocidental, com olhos azuis, e o meu avô nasceu em Macau, tendo sido educado em escolas portuguesas. Fez depois toda a sua carreira no Banco Nacional Ultramarino, alguém muito ligado ao meio económico e financeiro.

Vem daí a sua ligação à área da economia e da banca.

Fui presidente da COSEC, e uma tia disse-me: “Olhe, está como o seu avô, que criou os seguros em Macau”. Não fazia a mínima ideia. Mas a parte financeira está nos meus genes. Sempre adorei esta área e não há nenhum Hagatong que seja mau a matemática. A minha ligação a Macau vem do facto de ter sido educada em Portugal em casa de um macaense amigo de muitos macaenses.

É importante para si manter este vínculo emocional?

Tenho obrigação de defender a diáspora macaense e tenho pena que não se assuma mais, porque há muita gente como eu que mantém algumas memórias sobre Macau e isso não se pode perder.

Uma das grandes questões da diáspora macaense é, precisamente, como atrair jovens para desenvolver actividades. Como é que isso deve ser feito?

Sempre foi um problema. Temos de apanhar os jovens, mas também as pessoas que já estão na sua vida activa, e penso que há muitos “faltosos” que temos de conquistar, os que passaram ou não, por Macau. No meu caso, a vivência de Macau faz-se apenas pelas férias, mas eram umas férias fantásticas.

É actualmente presidente do Banco de Fomento. Como olha hoje para o desenvolvimento económico de Macau?

Acredito numa recuperação rapidíssima. Tomáramos nós [Portugal]. Basta ter à volta de 70 milhões de habitantes [Grande Baía] para ser mais fácil recuperar a economia, ainda para mais com uma actividade económica mais interessante e moderna.

Portugal tem sabido aproveitar esta relação privilegiada que tem com a China via Macau?

Há dois níveis de relação: a bilateral, Portugal-China, que tem corrido muito bem, mesmo apesar da pandemia. Os dois países têm uma relação muito forte que decorre do nosso passado. O maior investidor do PSI20 é a China e não há mal nenhum. Numa altura de maiores dificuldades quem nos deu maior apoio foi a China.

O investimento tem sido alvo de críticas. Não se justificam?

Não. Lançamos propostas no mercado e se mais ninguém vem… quem apresenta o preço maior [fica]. O que podemos fazer? Na altura, a Alemanha, que estaria interessada na EDP, apresentou um preço abaixo. O que podemos fazer? É o mercado a funcionar.

15 Fev 2023

Ivo Carneiro de Sousa, historiador: “Macau é um sítio privilegiado”

Acaba de ser editado “Memórias, Viagens e Viajantes Franceses por Macau – 1609-1900”, quatro volumes que reúnem mais de 200 textos de homens que navegaram de França até ao Oriente e que colocaram Macau no mapa. O autor Ivo Carneiro de Sousa, historiador e académico da Universidade Politécnica de Macau, analisou textos históricos que traçam um retrato da sociedade local dos séculos XVIII e XIX

 

Como surge este projecto?

Comecei em 2011 quando acabei o livro “A Outra Metade do Sangue”, que é sobre orfandade e escravatura feminina em Macau. Nessa altura, documentei que as embarcações francesas que vinham de Cantão no século XVIII, sazonalmente, carregavam escravos em Macau e depois, a partir de 1721, começam a transportar cules para as ilhas Maurícias. A partir daí interessei-me pela presença francesa em Macau.

A primeira embarcação de cules que saiu de Macau foi, precisamente, comandada por franceses.

Os franceses dominam 40 por cento do tráfico de cules até à sua extinção. Nessa altura [2011], escrevi um pequeno artigo sobre um escravo das Maurícias preso em França e que se apresenta como sendo de Macau. É enviado para a Bastilha, mas acaba por conseguir sair. Aí comecei a trabalhar as relações entre a França e Macau e a tentar recuperar todos os textos que descreviam Macau ou que tinham memórias sobre o território. Fiz o mesmo em relação aos viajantes espanhóis que passaram por Macau. Acabei esse trabalho, editando 78 textos de espanhóis.

Quando sai esse livro sobre as memórias de espanhóis?

Ainda este ano. Não publico a totalidade dos textos, apenas as memórias do primeiro feitor da Real Companhia das Filipinas em Macau. Este deixou 20 volumes escritos e fez vários mapas. Em 2024 publicarei o conjunto das memórias dos viajantes norte-americanos. Preciso ainda de trabalhar alguns textos que estão nos EUA, muitos em diários.

Em relação aos franceses, o que representa este trabalho?

Elogio a obra da Cecília Jorge e Rogério Beltrão Coelho porque a sua “Viagem por Macau” é um trabalho inédito [sobre os 100 viajantes estrangeiros que passaram por Macau], mas não é propriamente um trabalho de historiador. Em Macau, os historiadores contam-se pelos dedos das mãos e aqueles que publicam investigação científica são muitos poucos. O que encontramos é a repetição dos mesmos mitos, histórias e incidentes.

Também em língua chinesa?

Há dois problemas. Temos a herança da historiografia portuguesa, marcada por um nacionalismo analfabeto, muito ligada ao Salazarismo e à ideia do país que descobriu tudo. Essa ideologia selecciona e manipula a informação do passado, sendo geralmente muito ignorante em termos de capacidade de investigação documental. Depois temos a historiografia em língua chinesa que é muito factual e antiquada. O trabalho que fiz sobre os viajantes estrangeiros não é amador. Primeiro reconstruo, em termos de história global, as relações entre a França e Macau no domínio religioso, militar, económico e cultural. Só depois começo a recuperar obras, e temos algumas importantes para desconstruir mitos importantes de Macau.

Como por exemplo?

São os franceses que trabalham primeiro o mito da Gruta de Camões, muito antes de isso aparecer em 1824 nos textos de portugueses. Portanto, em tudo isto há um trabalho de historiador que foi feito com uma bolsa do Instituto Cultural (IC) de 200 mil patacas, mas que foi muito curta. Estou a promover ainda uma edição em francês destes quatro volumes. Estes quatro volumes permitem perceber, desde logo, que Macau só se pode investigar segundo uma perspectiva de história global. Macau era o verdadeiro “fim do mundo”, pois todas as rotas comerciais do século XVIII acabavam aqui. Muitos materiais e produtos eram aqui descarregados. Coisas raras, penas de aves, coisas vindas da Califórnia, do Canadá. Aqui, no século XVIII e XIX, havia um dos grandes comércios de animais raros. Temos a rota da prata da América do Sul que desaguava em Manila e entrava na economia chinesa através de Macau. No século XIX, por exemplo, bebia-se mais vinho de Bordéus do que qualquer vinho português. Daí eu dizer que é preciso ter esta perspectiva global e não chega trabalhar a documentação oficial portuguesa e a pouca documentação chinesa que existe. Era necessário ter programas mais sérios [de ensino e investigação em História], mas é difícil. Tenho procurado incentivar alunos a fazerem mais investigação histórica.

Reuniu mais de 200 memórias. Quem eram estes viajantes franceses? Missionários, escritores, comerciantes?

Os missionários escreviam pouco sobre Macau. Dos 90 a 140 missionários que passaram por Macau, alguns iam para a China e outros para o Vietname, apenas 27 escreveram sobre o território. Eram muito hostis ao Episcopado de Macau, ao bispo, sacerdotes e missionários portugueses. Eram contra o Direito do padroado. Nos textos denota-se essa hostilidade. Procura-se silenciar os problemas do clero e dos missionários portugueses. Temos muitos textos dos grandes navegadores que fazem no século XVIII concorrência aos britânicos pela exploração do Pacífico. Todos passaram por Macau e fazem textos extraordinários. Há muito pessoal da marinha, vários médicos navais que fazem descrições sobre o território. O livro explica que, entre 1857 e 1862, houve um hospital militar francês em Macau, parte do material desse hospital estará na origem da formação do São Januário [hoje Centro Hospitalar Conde de São Januário]. As relações entre Macau e França tornam-se muito importantes, oficiais e estratégicas a partir de 1844, quando se assina o primeiro tratado de amizade e comércio entre a França e a China. Temos textos que chegam a transcrever conversas em patuá. Nessa altura, a França decide estrategicamente que os embaixadores plenipotenciários para a China ficam instalados em Macau ou em Hong Kong e isso dura até 1859 quando os franceses obtêm a concessão em Xangai. Quando discuti com o IC a publicação disse que este livro é muito importante, pelo facto de Macau ser, provavelmente, a única cidade europeia na China e, ao mesmo tempo, uma cidade chinesa muito antiga. É um sítio privilegiado do mundo e que se vende não apenas com casinos, mas também pelo seu património. Macau é a única cidade deste tipo que não tem um centro ou instituto de estudos de literatura de viagens. Isso existe em todas as cidades.

Deveria ser o IC a criá-lo?

Não, as universidades. Vamos a Bordéus e temos uma entidade desta natureza, em Paris temos três ou quatro. Em portos pequenos como o da Bretanha também temos, em Cádis, Valência. Isso tem muita importância mesmo para a atracção do “turista de património” que quer aprender mais sobre o local que visita, que paga mais caro por isso. Publicar estas memórias é, por isso, importante. Mas voltando ao livro, digo, no quarto volume, que estes textos franceses relocalizam Macau, transformando o território numa coisa que chamam o “lugar do Extremo Oriente”, como o Mónaco do Extremo Oriente. Há textos divertidos, com descrições sobre as mulheres, as macaenses, textos satíricos sobre os macaístas. Alguns textos são capazes de fazer estatísticas da população e comerciais muito importantes. Descreve-se o peso do jogo, dos cules e do ópio na economia, sobretudo do século XIX. Alguns usam documentação que hoje não se conhece, como cópias dos censos militares à população que se perderam.

Pode avançar algumas conclusões relativamente ao seu trabalho com os textos dos navegadores espanhóis e norte-americanos?

São textos escritos em castelhano e não são todos escritos por espanhóis, porque existem alguns autores que já são hispano-americanos, nascidos no Perú ou México, por exemplo. Fazem comércio com Macau e deixam os seus textos impressos ou manuscritos, as suas impressões sobre a cidade e a sociedade. No caso dos textos de norte-americanos, entre 1756 e 1810, alguns são de pessoas oriundas de Irlanda, Escócia e Inglaterra para os EUA, e que estão ainda a transformar-se em cidadãos norte-americanos. Digo isto porque as nossas concepções de identidade e de nacionalidade não são as mesmas que eram nessa altura. No século XVIII chegam missionários do que é hoje a Bélgica com passaporte francês, e são tratados como franceses. Mas há também memórias dos que queriam visitar Macau e não conseguiram porque o barco naufragou em Hong Kong. [Mas sobre estes quatro volumes das memórias francesas, concluímos que] Macau era um lugar muito importante para a França e um espaço cultural fundamental para aceder ao conhecimento da China. Houve bibliotecas que se formaram no século XIX a partir de Macau. Macau tinha ainda o papel de informar a Corte imperial chinesa da revolução científica europeia, e muitos missionários e comerciantes franceses chegam à China e são aceites na Corte porque são bons astrólogos, matemáticos, fazem cristais e telescópios, por exemplo. Macau tinha também o reverso, que era informar a cultura europeia sobre a China.

15 Fev 2023

Paulo Duarte, académico: “China molda a economia mundial”

Paulo Duarte co-edita o mais recente livro sobre a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” com a chancela da Palgrave, intitulado “The Palgrave Handbook of Globalization with Chinese Characteristics – The Case of Belt and Road Initiative”. Em entrevista, o académico defende que a China já deveria ter estatuto de economia de mercado e que o país vive com a Rússia uma relação puramente estratégica com foco na questão de Taiwan

 

A iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” foi apresentada por Pequim em 2013. Como olha para a sua evolução até aqui?

É preciso reconhecer que a economia, sobretudo a chinesa, já não cresce como crescia. Passamos por uma situação menos positiva, não apenas devido à covid-19, mas também devido à guerra [na Ucrânia]. No caso da China, que é a fábrica do mundo, gerou-se muita ambição quando, na prática, a pandemia veio arrefecer esses investimentos e muitos deles ficaram parados. Outros estão em progresso. O que me fascina como investigador é ver como todos estes projectos à escala regional, nacional e transcontinental vão moldando a economia do mundo. Este livro ajudou-me a aprender mais sobre a capacidade de a China incorporar, no seu projecto terrestre e marítimo, a Rota da Seda digital. A China percebeu que não é só o mar que é importante para o comércio, mas as redes digitais também são uma fonte extraordinária de ganhos, tendo lançado, assim, a terceira componente da iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”, em 2015. O livro procura uma visão do todo que é essa interdependência entre terra, mar e digital. Focamo-nos se os projectos vão ou não demorar, mas tudo feito e planeado a longo prazo já mudou a fisionomia do mundo e das redes de comunicação, e vai continuar a fazê-lo.

De que forma concreta “Uma Faixa, Uma Rota” tem mudado a economia mundial?

A China esteve muito tempo fechada ao mundo. Foi Deng Xiaoping, justamente com a ideia de “Um País, Dois Sistemas” que a abriu ao mundo. Curiosamente, introduziu o capitalismo dentro do comunismo, de maneiras que temos hoje uma China voraz, não só em termos de recursos energéticos, mas de aquisição de grandes activos em grandes empresas. Esse é o comportamento tradicional do país, que raramente cria algo do zero e que prefere investir em empresas já existentes onde procura comprar grandes activos, como a EDP em Portugal. A empresa foi considerada um activo estratégico e só assim é que não passou para as mãos de chineses, mas não foi isso que aconteceu com o Porto de Pireu, na Grécia. Vejamos também o caso do porto de Hamburgo, na Alemanha. A China consegue, através do uso dual, fazer descargas e cargas em portos e, ao mesmo tempo, levar a cargo actividades de “intelligence” ao longo dos portos onde vai atracando. Falo de aquisição massiva de infra-estruturas, de recursos energéticos, consenso de Pequim, com a ajuda ao desenvolvimento dos países desprovida de condicionalidades, ao contrário do que é o modelo ocidental, em que primeiro se requerem reformas democráticas e depois ajuda-se ao desenvolvimento. Mas a China já está a aprender com situações que correram mal.

Tais como?

A queda de Khadafi, na Líbia, como por exemplo. O país vai-se distanciando do princípio da não interferência. O que vamos ver no mundo é uma China que compra muito, vende massivamente. Falávamos da globalização, e a China beneficiou bastante com o facto de ter aderido à Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2001. Por esta altura, já deveria ter o estatuto de economia de mercado, mas ainda não tem. Mas isso não impede o país de continuar a ser a fábrica do mundo. Portanto, a China beneficiou da globalização, investe massivamente um pouco por todo o mundo e vai construindo, em paralelo, uma rede portuária para apoiar a sua marinha mercante e servir de abastecimento à sua marinha de guerra. A par desta globalização com características chinesas é possível que vejamos a geoestratégia a acompanhar a geopolítica. A China está a fazer o que os EUA fizeram há muitas décadas, que é construir as bases, com calma, no mundo. A China percebeu que o mar é fundamental numa estratégia de globalização e de protecção das rotas marítimas.

Porque é que o país não tem ainda o estatuto de economia de mercado?

Para todos os efeitos, estamos a assistir a uma guerra comercial. Os produtos de qualidade média e alta têm dificuldade em competir com os produtos chineses, e a guerra tem essa razão de ser. É um conflito entre os EUA e a China que nos envolve a todos directamente. Se por esta altura a OMC desse o estatuto de economia de mercado à China, seria mais fácil ao país do que já é competir livremente com produtos dos EUA e de outras partes do mundo, nomeadamente da União Europeia, onde os produtos têm uma boa qualidade. Isso é uma espécie de travão que serve para mitigar esses efeitos colaterais do dumping, da competição muitas vezes desleal, as falhas em muitos produtos. A meu ver, é uma forma de proteger os produtos ocidentais. É isso que impede a China de ter neste momento uma economia de mercado enquanto o país não fizer as reformas que o Ocidente espera que faça, nomeadamente ao nível da protecção dos direitos de autor. A China tem vindo a implementar reformas aos poucos, mas acha-se que ainda não é suficiente.

De que forma o conflito na Ucrânia alterou a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”?

Qualquer conflito, na Ucrânia ou Síria, é importante. A Ucrânia por ter sido o celeiro da União Soviética e a Síria por questões energéticas. A questão alimentar preocupa a China, que não vai ao estrangeiro apenas à procura de recursos energéticos, mas também à procura de alimentos. Os chineses destruíram de forma massiva, ao longo das últimas décadas, o meio ambiente, e hoje temos 28 mil rios que desapareceram e o ar ainda muito poluído, embora a China esteja a adoptar práticas mais amigas do ambiente. Só sete por cento das terras na China são aráveis. A Ucrânia desempenha aqui essa função, como o Brasil e outros países, de grandes produtores alimentares, mas até vou mais longe. A Ucrânia é importante, neste caso pela negativa, pela desproporção das cadeias de abastecimento entre o Oriente e o Ocidente. A China, sendo parceiro da Ucrânia, não tem interesse nenhum nesta guerra que acaba por tocar na economia, mas é uma guerra, acima de tudo, geopolítica. A China precisa de um aliado na construção do mundo que passe por uma alternativa ao mundo ocidental. Esse aliado, para o bem e para o mal, é Putin. Seria um dos poucos que viria ao auxílio da China caso houvesse um confronto em Taiwan. Talvez também o Irão ou a Coreia do Norte. Além de comprarem petróleo mais barato à Rússia, os chineses sabem que, do ponto de vista geopolítico, precisam de aliados. Não é benéfico para ninguém que a guerra se arraste demasiado, inclusivamente para a própria Rússia. Também a China não é alheia a esta perturbação das cadeias de abastecimento.

A China está, portanto, a tentar equilibrar vários factores relativos ao conflito ucraniano, mantendo uma posição estratégica com a Rússia, com o foco em Taiwan.

Sim, sem dúvida, esse é o principal factor. A Rússia e a China desconfiam um do outro. Os multimilionários e turistas russos não vão propriamente para a China, vão para o Ocidente. É um casamento de conveniência. Que outra saída teria a Rússia se não fossem os chineses a subsidiar esta guerra, uma vez que os europeus fizeram cortes? Se não fosse a grande China a comprar, o que poderia fazer Putin, que está praticamente isolado em todo o mundo? Pouco. Mas essa desconfiança existe e encontra nesta crise uma oportunidade. Sabemos que esta ligação entre a Rússia e a China é meramente conjuntural porque, terminando esta guerra, e ninguém sabe quando vai acontecer, não temo dizer que Putin vai querer retomar os mercados ocidentais. A China, aqui, é meramente circunstancial.

É co-autor de um artigo, neste livro, sobre a presença do Atlântico-sul na política de globalização da China, onde se inclui Portugal. No contexto de “Uma Faixa, Uma Rota”, como descreve as relações entre os dois países? Há espaço para inovação?

Nesta relação, a questão de Macau é importante e temos também a CPLP. O único senão é o facto de Portugal pertencer ao Ocidente, à NATO, à União Europeia (UE) e com laços transatlânticos com os EUA. Tivemos uma espécie de lua-de-mel da China com Portugal a partir de 2012, na altura da troika, em que a China não tinha propriamente interesse num mercado como o nosso, mas foi investindo ao ponto de tornar Portugal num estudo de caso na UE pela grande receptividade que estávamos a mostrar face à China. Depois da visita a Portugal de Xi Jinping, cerca de 18 acordos foram assinados, fazendo de Portugal uma excepção. Desde emitir dívida pública portuguesa em moeda chinesa, a criar um laboratório com vista à produção de micro-satélites, à própria política dos vistos gold. Houve depois uma pressão intensa dos EUA e a pandemia, bem como a questão da guerra, que fez com que Portugal tenha voltado à sua política externa dita “convencional”, de apoio aos EUA. Todos esses factores levaram ao fim da lua-de-mel que parecia promissora.

O conceito de “Globalização com características chinesas” poderá ter influências nos próximos tempos, com o conflito na Ucrânia, por exemplo?

Se olharmos para a China como aquele actor que planeia a longo prazo, vão surgir sempre guerras e conflitos, ou crises, mas esse projecto de “Uma Faixa, Uma Rota” continuará no espaço e no tempo. É muito difícil parar a China, sendo que hoje em dia as famílias podem ter até três filhos. Isto não é uma brincadeira. Se o planeta já era escasso em recursos, veremos agora uma deslocalização da China para a zona do Atlântico-Sul, para aqueles países mais distantes, à procura de alimentos e energia. Não é por acaso que se houve falar do interesse da China numa base naval na Argentina ou na Guiné-Equatorial. A China vai negociar com esses estados para ter capacidade de introduzir a sua diáspora. Se há coisa que o país aprendeu é que não pode ter base apenas na China, mas sim em todo o mundo. A China tem de ter bases navais mais perto dos locais de risco.

 

Olhar global

“The Palgrave Handbook of Globalization with Chinese Characteristics – The Case of the Belt and Road Initiative” [Manual Palgrave da Globalização com Características Chinesas – O caso da Iniciativa Uma Faixa, Uma Rota” é uma edição conjunta de Paulo Duarte, académico da Universidade Lusófona do Porto, Francisco José Leandro, da Universidade de Macau, e Enrique Gálan, do Asian Development Bank. Com a participação de dezenas de autores de várias nacionalidades, o livro faz o retrato global da iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” nas vertentes diplomática, económica e política e dos vários polos de investimento que se foram formando desde 2013 graças à aposta chinesa em vários países. Destaque para a participação de vários académicos portugueses, como é o caso de Carmen Amado Mendes, Cátia Miriam Costa, Luís Tomé, Jorge Tavares da Silva, entre outros.

3 Fev 2023

Xanana Gusmão “triste e desiludido” com PM e acção do actual Governo timorense

Entrevista de António Sampaio, da agência Lusa

O líder da oposição em Timor-Leste mostrou-se hoje “triste e desiludido” com a acção do Governo e do primeiro-ministro, afirmando que se vencer nas próximas legislativas está empenhado em corrigir “vários erros”, dando prioridade à economia.

“Estou muito desiludido pelas violações à Constituição, por o próprio parlamento ter feito aquele assalto ao poder, por o Governo ter feito uma mudança brutal nos sistemas existentes, no sistema financeiro que está horrível, e pela própria justiça que não funciona”, disse Xanana Gusmão, em entrevista à Lusa. “Tudo isto fez recuar o país, no contexto da fragilidade”, disse.

Líder do Congresso Nacional da Reconstrução Timorense (CNRT), segundo maior partido no parlamento, Xanana Gusmão ambiciona chegar à maioria absoluta e recordou alguns dos momentos políticos do passado recente, incluindo a saída do seu partido do atual Governo, que acabou por ser viabilizado pela Frente Revolucionária do Timor-Leste Independente (Fretilin).

“A nossa saída do Governo ocorreu porque o primeiro-ministro não queria ouvir-nos. Dizíamos que algumas das coisas violavam as leis. Mas ele dizia: isto é do outro Governo, agora sou eu que governo”, disse.

Xanana Gusmão refere-se ao actual chefe do Governo, Taur Matan Ruak, líder do Partido Libertação Popular (PLP), que tem apenas oito assentos no parlamento, mas a favor de quem o líder do CNRT abdicou do cargo de primeiro-ministro.

O actual Governo saiu das eleições antecipadas de 2018 nas quais CNRT, PLP e o Kmanek Haburas Unidade Nacional Timor Oan (KHUNTO) concorreram com uma coligação pré-eleitoral, que obteve a maioria absoluta.

Várias questões, incluindo a decisão do anterior Presidente, Francisco Guterres Lú-Olo (da Fretilin), não dar posse à maioria dos membros do Governo do CNRT, e desavenças entre Taur Matan Ruak e Xanana Gusmão levaram à saída do CNRT do Governo, em 2020.

A Fretilin acabou por entrar no executivo tendo participado, em maio desse ano, numa polémica votação no plenário do parlamento que demitiu o presidente do parlamento, então do CNRT, e elegeu o actual, da Fretilin.

Questionado sobre como olha hoje para a acção de Taur Matan Ruak no Governo, Xanana Gusmão mostra-se bastante critico, mas faz algum ‘mea culpa’.

“Estou muito desiludido, mas em certo sentido compreendo. Não tem nada na cabeça. A minha desilusão seria muito maior se ele tivesse algum conhecimento sobre finanças, sobre administração. Mas conheço-o desde pequeno então fico desiludido comigo mesmo por lhe ter confiado isto”, afirmou.

Mostra-se igualmente crítico da atual liderança na gestão do importante sector do petróleo e gás, especialmente no quadro do processo de negociação sobre o projecto do Greater Sunrise.

“Neste capítulo, agradeço muito à covid-19. Porque atrasou as coisas. […] Tem sido horrível, mas teria sido pior e para corrigir teria sido muito difícil. Mas já está quase, vamos lá ver”, afirmou.

Xanana Gusmão disse que o seu partido deu apoio à eleição do atual chefe de Estado, José Ramos-Horta, exatamente para começar a corrigir “alguns erros” do passado recente.

“O meu partido deu apoio concreto e real ao doutor Ramos-Horta para ser Presidente, para facilitar que esta instituição superior do Estado comece também a rever os erros e falhanços cometidos e fazer a reaproximação ao povo”, explicou.

“Mas o Presidente não pode fazer isso sozinho, por isso estamos a preparar-nos para num futuro próximo podermos governar. Acreditamos que o povo esteja já com olhos abertos, para fazer a devida mudança, a correção, com o parlamento e com o Governo”, acrescentou.

Ex-Presidente e ex-primeiro-ministro, Xanana Gusmão disse que Timor-Leste continua a ser um país frágil, argumentando que essa condição se agravou nos últimos anos, e que há que assumir esse compromisso de fazer correções. Incluindo no sector da justiça, em que considerou ter havido perseguições políticas a ex-responsáveis sem que se persiga, com igual afinco, outras decisões de governantes.

Sobre a ambição de chegar aos 33 assentos que garantem a maioria absoluta – actualmente controla 22 – Xanana Gusmão admitiu que “é complicado”, mas que “nada é impossível”, explicando que tem vindo a dialogar com a população sobre exatamente qual é o papel dos partidos.

“Se um partido político apresenta uma visão, um princípio, significa que quando vai ao poder é para cumprir isso, não é para meter este ou aquele num cargo ou outro. Vai para trabalhar. Se um não serve, mete-se outro”, disse. E garantiu que o CNRT não voltará a escolher uma pessoa de fora do partido para primeiro-ministro.

“Está totalmente fora de hipótese ser outro PM que não do CNRT. Percorri o território e percebi que em 2017 perdemos por falhas do partido, que estava demasiado confiante, mas talvez 50% da causa da derrota foi ter entregado o cargo de primeiro-ministro a Rui Araújo da Fretilin em 2015”, disse.

“Não perceberam isso e o partido não explicou bem. Mas ainda acho que foi a melhor solução para [fechar a negociação das fronteiras marítimas com a Austrália) e de termos capacidade de unir as forças vivas da sociedade aqui, os maiores partidos, impedindo que a Austrália nos dividisse”, afirmou.

A aproximação hoje entre CNRT e a Fretilin “é difícil”, explicando que não perdoa àquele partido ter votado contra o acordo de fronteiras, e considerou que “o maior erro” foi ter avançado em 2018 com uma coligação pré-eleitoral que o “amarrou” a outras forças políticas.

“O maior erro que cometemos e nunca mais vamos cometer foi a coligação pré-eleitoral. Depois de ganharmos, estávamos atados. Até na distribuição de lugares. Doeu-me mais a cabeça ali do que noutros tempos mais difíceis do país. Pediam isto e pediam aquilo. Aprendemos essa lição”, afirmou.

31 Jan 2023

Joaquim Ng Pereira, académico e divulgador da cultura macaense: “Comunidade não se vai afastar de Macau”

Declama patuá e dá aulas no dialecto no Centro Científico e Cultural de Macau, mas Joaquim Ng Pereira é, acima de tudo, um divulgador da sua cultura. Na próxima quarta-feira apresenta, na Sociedade de Geografia de Lisboa, o colóquio “Mobilidade em Macau: vertentes do fenómeno migratório”. O académico lamenta que Portugal não preste atenção a Macau e teme a diluição da cultura macaense na chinesa

 

Decidiu organizar um colóquio sobre mobilidade em Macau. A comunidade macaense tem sido, ao longo da história, uma comunidade de emigrantes, com especificidades. Essa tendência migratória irá manter-se?

Antes da chegada do navegador Jorge Álvares à China, Macau praticamente não existia. Era uma zona meio árida que tinha lá alguns pescadores que vinham do Rio das Pérolas. O grande desenvolvimento que se dá em Macau é, precisamente, com a chegada dos portugueses e graças ao comércio que faziam. Os macaenses foram criando uma cultura muito própria, com o patuá e a gastronomia, mas o meu receio é que esta cultura se perca. Enquanto houve a Administração portuguesa, a cultura macaense foi sobrevivendo. Mas existe uma nova ameaça, que daqui a umas décadas a cultura macaense se perca e o desinteresse de Portugal em relação a Macau, que poderia ter feito mais nessa preservação. Macau é uma porta para a China e os portugueses tinham imenso a ganhar com isso.

Mas ainda relativamente à emigração. Macau está numa nova fase devido à pandemia, isso veio alterar a relação da comunidade macaense com o território, a sua própria terra? Os macaenses também podem sair, por exemplo?

Esse é um grande ponto de interrogação. Até agora, os macaenses têm sempre conseguido dar a volta e afirmar-se como macaenses pela sua própria cultura e história. Os portugueses que lá estão também. Os portugueses que gostam de Macau ficaram. Com a pandemia há uma nova ordem social, mas isso quer dizer que temos de nos habituar a viver com isso, com esta doença.

Mas acha que a comunidade macaense se vai afastar de Macau?

Depende. Mas penso que não. Macau sempre teve uma grande ligação ao jogo e na Ásia isso sempre foi muito importante. Macau continua a ser uma porta de entrada para o Oriente e as pessoas sentem-se seguras no território porque existe ali uma parte ocidental no Oriente. Esta conjunção de culturas é o que dá segurança a quem vai para lá. Ganha-se uma ligação afectiva porque existem as raízes ocidentais e orientais.

A China mantém no seu discurso a importância da preservação da cultura macaense. Apesar dos sinais desta presença do macaense na agenda política, sente que não se vai muito além disso?

O grande perigo é o de diluição da cultura macaense na comunidade chinesa. Portugal deveria ter aí um papel mais activo. Temos de respeitar a China, pois tem a soberania sobre Macau e isso estava acordado há muitos anos. Reconheço, como macaense, que as ligações entre Portugal e Macau não podem ser esquecidas e têm de durar, e tenho feito projectos para contribuir para isso.

Em termos concretos, o que as autoridades portuguesas deveriam fazer?

Não podemos contar muito com o apoio financeiro, mas alguma coisa poderá ser feita na divulgação da cultura macaense. Quem se interessa faz actividades e projectos mas não há um apoio do Estado. Muitas vezes nem é preciso muito dinheiro, basta haver mais encontros e maior divulgação. Talvez a China pudesse dar financiamento ou fazer parcerias com Portugal para que mais macaenses pudessem vir a Portugal e vice-versa. Temos, em Macau, eventos como o Festival das Artes ou o Festival da Lusofonia, e o que se conhece cá sobre isso? Muito pouco. Muitas vezes a divulgação não custa muito dinheiro.

É necessária mais ligação entre as associações de matriz macaense, em Macau, com a diáspora, no sentido de fortalecer a rede já existente?

Acho isso importantíssimo. Nós, na Fundação Casa de Macau [Joaquim Ng Pereira faz parte dos órgãos de gestão], atravessamos dificuldades com a crise económica que existe actualmente. Mas, dentro do possível, tentamos criar ligações com a diáspora. São essas ligações, e a rede no seu conjunto, que existe na diáspora, nas associações macaenses, que são fundamentais. Se todas as vozes se juntarem com a diáspora tornamo-nos numa voz activa perante os governos e aí conseguiremos fazer algo para que sejamos ouvidos enquanto macaenses.

Em Macau há falta de uma voz cívica da parte da comunidade macaense?

Fazem falta mais vozes da nova geração, isso é muito importante. O Miguel [Senna Fernandes] tem feito um trabalho espantoso com o patuá, por exemplo. Da minha parte, eu tento preservar as minhas próprias raízes, mas não só, as outras também. Existe uma outra vertente, para mim muito importante, que é a ligação de Portugal com Macau. Tenho estado a fazer, com o Miguel de Senna Fernandes, vários projectos, incluindo um de rádio na Junta de Freguesia de Belém [Lisboa], uma rádio online, para o desenvolvimento, conhecimento e divulgação de Macau. Ainda estou a fazer o genérico. Vai-se chamar “Vós está bom”.

Ensina patuá em Portugal e o dialecto também se ensina em Macau, e há outras formas de divulgação, como o teatro dos “Doci Papiaçam di Macau”. Considera que são necessárias novas fórmulas para que o patuá se mantenha vivo?

Sim. Esta parceria que tenho estado a fazer com o Miguel é muito importante. Estou a pensar fazer alguns videoclipes em que mostro a cidade de Lisboa em patuá. Já temos um vídeo sobre a Torre de Belém, em parceria com a escritora Maria Helena do Carmo e Raúl Gaião. Falamos sobre a Torre de Belém e as partidas para Macau tudo em patuá. Estou a pensar lançar este projecto no segundo semestre deste ano, e será lançado na plataforma YouTube, criando assim uma ponte cultural entre Macau e Lisboa.

Falar de Macau

São muitos os oradores presentes no colóquio promovido pela Comissão Asiática da Sociedade de Geografia de Lisboa, da qual faz parte Joaquim Ng Pereira. “Mobilidade em Macau: vertentes do fenómeno migratório”, agendado para o próximo dia 25 de Janeiro, conta com nomes que habitualmente falam, escrevem ou estudam Macau nas suas várias vertentes, como a escritora Maria Helena do Carmo, o antropólogo Carlos Piteira ou Miguel de Senna Fernandes, presidente da Associação dos Macaenses. Este último irá abordar o tema “Imigração e Cultura – Uma Perspectiva da Comunidade Macaense”. Maria Antónia Espadinha, ex-residente de Macau e ex-directora dos departamentos de português da Universidade de Macau e da Universidade de São José, também irá intervir na discussão com a apresentação do tema “Migração estudantil, outras percepções de quem aprende em outras geografias”. Destaque ainda para a presença do debate em torno do patuá neste colóquio graças à participação de Raul Leal Gaião, investigador, que vai falar da “Formação do crioulo de Macau e mobilidade social”. Álvaro Augusto da Rosa, académico e dirigente associativo a residir em Lisboa, fala do “linguajar do português de Macau”.

19 Jan 2023

Jorge Arrimar, autor de “Cuéle – O Pássaro Troçador”: “Fiz-me escritor de Macau”

Lançado no fim do ano passado, “Cuéle – O Pássaro Troçador” conta a história, com elementos ficcionados, de António José de Almeida, figura importante das zonas de Humbe e Chibia, no sul de Angola, entre meados do século XIX e finais do século XX. Autor de Macau e antigo director da Biblioteca Central de Macau, Jorge Arrimar sente-se cansado do formato do romance e com vontade de regressar à poesia

 

Quando conversámos, em 2020, disse-me que estava a trabalhar num romance histórico sobre Angola. Porquê um romance histórico?

O romance histórico, desta vez, não foi um começo. Antes já havia escrito e publicado três livros que fazem uma trilogia, “A Trilogia dos Planaltos”, de romance histórico que têm como matriz Angola, mais precisamente a minha zona de origem, que é no sul do país.

Fazia sentido contar a história de António José de Almeida, que é a personagem central do livro? O que lhe despertou interesse nesta personalidade, ao ponto de escrever um livro?

António José de Almeida é uma figura que aparece nessa trilogia. Mesmo antes já fazia referência aos pais dele e depois ao seu desaparecimento, pois António José de Almeida e o seu irmão ficaram órfãos muito cedo. Porém, ficaram com algo do pai, como a ideia de que Huíla seria uma terra promissora para a sua actividade. Eles então vão descendo e ficam no Sul, primeiro numa região chamada Humbe e depois Chibia. Esta família fez de Chibia a sua terra principal. Esta é uma figura muito importante porque marcou profundamente aquele tempo em que viveu, finais do século XIX e princípios do século XX. Morreu em 1924. Apenas conheci amigos e descendentes de António José de Almeida, mas ficou-me sempre na memória as histórias que o meu avô contava sobre ele. Dizia-me sempre que tinha sido um homem extraordinário, porque não era só poderoso em termos económicos como se tinha revelado um homem de grande magnanimidade, de uma ligação aos outros que não era vulgar. Marcou profundamente em termos económicos, sociais e familiares a terra onde viveu, e, apesar de toda a importância que teve na época, era pouco conhecido. E hoje também o é, pelo que este livro é como um resgate ao desconhecimento de António José de Almeida e de outras figuras que também aparecem no romance. Tinha a ideia da existência de figuras importantes do sul de Angola que estavam esquecidas e perdidas no tempo.

Não estão feitas as pazes com o passado colonial português. Permanecem muitas histórias desse tipo que não são contadas por causa do esquecimento que foi sucedendo após o 25 de Abril de 1974, como se estas histórias do quotidiano tivessem ficado no período colonial? Com este romance, pretende resgatar algumas delas?

De facto, é assim, porque Angola, com o 25 de Abril e a independência, envolveu-se numa terrível guerra civil e isso fez com que a sobrevivência estivesse em primeiro lugar. As histórias passaram a ser outras, de exílio, morte, fuga. É uma guerra que só termina em 2002 e que rompeu com o tecido social. Houve pessoas que passaram a viver noutras terras e houve um corte com as histórias contadas em contexto tradicional. Hoje, mais do que nunca, o português é falado porque representava sobrevivência na guerra civil. A guerra civil fez com que o português fosse mais falado em Angola do que no próprio período colonial.

“Cuéle – Pássaro Troçador”. De onde vem o termo “Cuéle”?

É uma palavra onomatopeica, porque o próprio pássaro canta assim, “cué…”. O “cué…” é “cuéle” na língua da zona, do Planalto de Huíla. Depois inscreve-se no português com uma ligeira adaptação e passa a ser “cuéle”. O pássaro aparece no título porque é um elemento que acompanha toda a trama romanesca. Ao longo do livro, de quando em quando, o Cuéle aparece no cimo de uma árvore a cantar. É um pássaro troçador, ele troça das nossas indecisões, dos nossos orgulhos, perdas e falhanços. É um bocado como o grilo falante, como um elemento da nossa consciência. Portanto, o Cuéle era muito conhecido entre os caçadores, porque quando um deles falhava o tiro aparecia logo o pássaro a cantar de forma trocista.

Tem formação em História. De certa maneira, com a edição deste livro, regressa à sua formação de origem.

Enquanto estudioso e homem da História, ela às vezes revela-se árida. Às vezes cansamo-nos porque tem de ser lida aos poucos, porque se pretende científica, e prendemo-nos a aspectos que não aligeiram a narrativa. Na História encontramos muito vazios porque temos de ter sempre certeza das fontes, porque elas têm de suportar a nossa tese. No género literário em que comecei, a poesia, sempre escrevi e sempre senti necessidade de ir mais além e só conseguia isso com a literatura. Todos os que escrevem romance histórico sentem que só com a literatura podem encontrar respostas. Também tenho escrito coisas que não têm a ver com o romance histórico, pois publiquei, não há muito tempo, um conto chamado “Catarina”, passado nos Açores. Os livros mais “pesados” foram entre a História e o romance histórico.

Que respostas lhe são dadas pela poesia?

A poesia dá respostas do sensível. Vivemos sempre tocados por coisas às quais só a poesia responde. Nunca parei de escrever poesia. O facto de estar a escrever prosa ou ficção não quer dizer que não escreva poesia, porque exige menos trabalho oficinal, pois os textos são mais curtos. Não quer dizer que sejam mais fáceis. Se calhar exigem menos tempo, posso escrever um poema num dia, mas não posso escrever um romance num dia, puxam-se a sentimentos diferentes e a poesia pode aparecer ao mesmo tempo que um romance. Eugénio de Andrade gostava muito de mostrar esse lado oficinal do poema, mais trabalhoso, para que as pessoas não pensassem que bastava que escrever poesia era assim fácil, só com inspiração. Eu, por exemplo, trabalho muito os poemas.

Conheceu pessoalmente Eugénio de Andrade. É uma das suas grandes referências?

Aí está Macau. Foi lá que o conheci. Eugénio de Andrade foi convidado pelo Instituto Cultural e foi visitar a Biblioteca [Jorge Arrimar foi director da Biblioteca Central de Macau], sendo um homem de livros. Aí preparei uma exposição com o que tínhamos sobre ele e editámos um catálogo sobre a sua obra. Falamos um pouco nessa ocasião. Mais tarde, passando pela foz do Douro, fui visitá-lo onde vivia e onde se criou depois a Fundação Eugénio de Andrade. Mas não privei muito mais com ele. É um poeta de que gosto muito e que me marcou bastante.

Como está a relação da sua escrita com Macau?

Estive em Macau pouco tempo antes da pandemia. Fui convidado pela Universidade de Macau e participei num encontro sobre a literatura de Macau. Da minha parte, emocionalmente, estou muito ligado a Macau e devo-lhe muita coisa, foram tempos muito importantes na minha vida. Fiz-me escritor de Macau por aquilo que fui escrevendo, mesmo não sendo macaense. Sou de Macau pelos anos que lá vivi e pelo que fiz. Penso que me consideram um escritor de Macau. Costumo dizer que a geografia da minha escrita tem três pontos essenciais, Macau, Angola e Açores.

A literatura que se faz de Macau é, acima de tudo, saudosista, emotiva? É uma literatura que remete para algo que já não existe?

Haverá quem o faça, pois quem sai de Macau leva Macau consigo e há essa tendência de escrever sobre o que se passou lá. Aí, é natural que o saudosismo apareça. Mas há escritores que permanecem em Macau e que falam do presente.

Há uma grande mudança em Macau e nas comunidades portuguesas e macaense. Acha que isso levará a alterações na literatura de Macau?

Quando há mudanças sociais muito grandes isso reflecte-se a todos os níveis e a todo o tipo de arte. Afinal, vivemos em sociedade e prendemo-nos a muitos fios invisíveis que essa mesma sociedade cria e quando são cortados isso reflecte-se no nosso pensamento. No caso de Macau, todos sabem que a pandemia levou à saída de pessoas de origem não chinesa. São pessoas que marcavam a sociedade e a literatura, e aí é natural que a escrita e a literatura reflitam essa situação. Mesmo que a minha escrita tenha algo de oriental, eu não deixo de ser um escritor que vem de fora e que se tentou inscrever naquela sociedade, com os seus limites, e naquela cultura e forma de escrever. Claro que sou pessimista, porque se as pessoas saem, que lugar têm pessoas parecidas comigo em termos do que escrevem, do que falam e viveram? Se foi quase reduzido ao zero e se deixa de ter expressão, então posso dizer que sou pessimista.

Tem projectos novos para depois deste romance?

Neste momento, estou a descansar de uma escrita muito pesada como é a do romance, e sobretudo deste que vai quase às 500 páginas e tem uma mancha muito apertada, porque senão seria muito maior. É um livro muito pesado e o seu peso reflecte também muito tempo de trabalho. Foram quase dez anos a trabalhar neste romance. Estou agora mais ligado à poesia, porque é mais solta e etérea. Quando a abordamos de forma poética é sempre mais leve e isso descansa-me do trabalho que tive com “Cuéle”. Penso que durante algum tempo vou descansar da prosa.

Como é viver dez anos ligado a um romance?

Não vivo da escrita, não sou um escritor profissional e faço outras coisas. Não sou um homem solitário, tenho família. Gosto muito de viver com estas pessoas que me rodeiam. Coordeno a biblioteca de uma universidade e vou fazendo outras coisas. Fiz intervalos no romance e houve períodos em que tive mesmo necessidade de fazer intervalos e de me afastar da escrita, da trama, dos enredos para os perceber melhor.

18 Jan 2023

Rosa Bizarro e Edith Jorge, da Gerações – Escola Internacional: “Aposta na qualidade e diferença”

Vai nascer em Coloane uma nova escola internacional para alunos do ensino infantil ao secundário. Rosa Bizarro, directora académica da Associação do Colégio Sino-Luso Internacional de Macau (ACSLIM), e Edith Jorge, presidente do conselho de administração da entidade tutelar da Gerações – Escola Internacional, querem uma instituição inclusiva e trilingue, que forme cidadãos através do método educativo finlandês. O ensino do português será virado para o mundo lusófono

 

Já existe uma escola de ensino trilingue em Macau. Porquê criar outro projecto educativo desta natureza?

Edith Jorge (EJ) – Queremos responder à necessidade ou interesse que existe na aprendizagem das línguas. Sendo esta associação criada por macaenses, somos trilingues, pois nascemos e crescemos em Macau, e conhecemos todos esta realidade. Gostaríamos que, no futuro, o território fosse cada vez mais competitivo. Uma das principais vertentes dessa competitividade reside no domínio das línguas. Uma escola com estas três línguas ensinadas, a fim de permitir que os alunos sejam verdadeiramente fluentes, achámos que não era suficiente [a oferta educativa existente] e fomos também de encontro à política do Governo de ter diferentes tipos de escolas a funcionar, tal como escolas internacionais. Decidimos juntar as duas componentes.

A associação já existia ou foi criada só para este projecto?

EJ – Uma das razões pelas quais a associação foi criada foi a escola, mas não é a única. Temos interesse em continuar a investigar e a investir no domínio das línguas. Esta escola é um dos projectos mas temos outros planos.

Abrir uma nova escola, outro projecto educativo?

EJ – Sim, outras iniciativas ou parcerias com instituições locais e internacionais.

Falemos da Gerações e da colaboração com a professora Rosa Bizarro, que estava na Universidade Politécnica de Macau (UPM). Porquê abraçar este desafio como directora?

Rosa Bizarro (RB) – Fui professora na UPM de 2014 a 2021. Isso fez com que, durante meia dúzia de meses me tenha ausentado de Macau, e colaborei como docente na Universidade de Cabo Verde. Surgiu este convite da associação e como toda a minha profissão e currículo está ligado à docência e à formação de professores de todos os níveis de ensino, achei que seria uma oportunidade para ajudar esta equipa a implementar um projecto ambicioso, mas de grande qualidade. Tem muito de inovador e pretende-se que tenha frutos no presente imediato e no futuro. Estou muito ligada ao ensino das línguas e questões interculturais e achei que seria, de facto, uma oportunidade para pôr em prática aquilo que ao longo dos anos tenho defendido.

Pretendem, a partir de Setembro, abrir o ensino infantil a partir dos três anos e o ensino primário. Depois, no ano lectivo seguinte, querem abrir o ensino secundário. Neste momento, como está o processo de criação dos conteúdos programáticos?

RB – Este projecto tem-nos absorvido 24 horas por dia ao longo de vários meses. Quando a Direcção dos Serviços de Educação e Desenvolvimento da Juventude nos atribuiu o alvará, no final de Dezembro, garanto que o essencial da preparação académica já estava feito. Temos programas que receberam o contributo de alguns especialistas internacionais das áreas. Estabelecemos protocolos com instituições de Portugal e de várias origens. Uma delas dá-nos base da metodologia que vamos seguir, pois queremos apostar na qualidade e na diferença e ter professores internacionais que dominam essa metodologia, que respeitam os parâmetros de exigência locais, mas que trazem uma mais-valia com esse contributo. Queremos apostar no ensino colaborativo e acreditamos que vai ser possível apostar na metodologia de projecto com valores que, muitas vezes, estão arredados das escolas.

O modelo de ensino em Macau baseia-se muito na memorização de matéria e não incentiva à participação do aluno na sala de aula. O método finlandês vai acabar com tudo isso?

RB – Não queremos acabar com nada (risos). O que queremos é semear entre pais e alunos outras abordagens para aprender. Queremos promover valores universais, como o respeito pelo outro e pela diferença, a capacidade de compreender o real e projectar novas realidades, mas sem termos a presunção de fazer revoluções. Vamos tentar oferecer qualidade, fazer com que os nossos alunos sejam valorizados pelos conhecimentos que vão adquirir e competências, mas também dotá-los da capacidade de serem felizes. Tudo isto está devidamente estruturado e acreditamos que o ser humano pode ser melhor e aprender muito, mas de outro mundo.

Abrir uma escola num período pós-pandemia é um desafio.

RB – Não é tarefa fácil. Quando a associação começou a pensar nisso tudo sabia que os constrangimentos seriam enormes, mas nada é por acaso. A situação da pandemia está a mudar e vamos começar a funcionar verdadeiramente no ano lectivo de 2023/2024, e isso dá-nos tempo para contratar professores locais e internacionais e preparar todo o trabalho. Vamos apostar também na formação específica do pessoal docente e não docente.

Durante estes anos de pandemia os alunos tiveram longos períodos de ensino online. Que desafios enfrenta o ensino neste momento?

RB – Não posso ser porta-voz de todos os agentes de ensino, mas penso que temos de procurar corresponder às exigências que o mundo coloca a todos. Tem sido feito um grande esforço para que na educação prevaleça um valor indiscutível e estou convencida que a existência de ofertas alternativas não vem destruir o que existe, vem enriquecer. Compete-nos estar atentos ao desenvolvimento científico, tecnológico e cultural e fazer com que a escola possa formar cidadãos conscientes e preparados. Penso que o futuro vai ser diferente do que são os dias de hoje, mas isso não quer dizer que se esqueça o passado, e daí o nome da nossa escola, Gerações.

No ensino do português vão “competir” com a Escola Oficial Zheng Guanying e a Escola Portuguesa de Macau, por exemplo. Que diferença procuram trazer neste campo?

EJ – Sempre achámos que a língua teria de ser ensinada com a cultura, e a visão que tínhamos da língua portuguesa não se resumia a Portugal. Obviamente que tem o seu lugar, mas gostaríamos de olhar para o idioma como sendo de todos os países de língua portuguesa. A nossa escola terá a particularidade de apostar na ligação de Macau com os países de língua portuguesa, apostando no português e na cultura, mas também ensinar a economia ou cultura de Angola, por exemplo. Somos todos um mundo de língua portuguesa e é essa a nossa filosofia.

RB – Esta escola é diferente porque assume as três línguas como a base de todo o trabalho desenvolvido. Vamos procurar a imersão dos alunos nas diferentes culturas e temos uma especificidade que é criar currículos que procuram dar respostas locais e universais. Tudo isso não se vai materializar apenas na sala de aula, sendo que haverá muitas actividades extracurriculares ou de carácter cultural, em que os diferentes parceiros e intervenientes darão o seu contributo. Pretende-se que um aluno que venha do ensino infantil seja trilingue quando terminar o ensino secundário.

Esta escola, e a associação, são exemplos de como a comunidade macaense deve mexer-se e actuar?

EJ – Exactamente. O nosso lema é falar menos e fazer mais. Macau tem tido um ritmo de crescimento formidável nos últimos anos e acho que é uma coisa boa se todas as áreas da sociedade acompanharem esse dinamismo. A comunidade macaense tem todas as condições, mesmo a nível de tradição, formação, pois naturalmente somos trilingues e temos uma flexibilidade muito grande. Podemos pegar nessas qualidades e elementos e avançar, mas não podemos apenas falar e criticar. Esta experiência da escola tem sido maravilhosa. Quanto mais sucesso este projecto tiver, mais elevada será a imagem da comunidade macaense, e é esse o legado que queremos deixar. O Governo de Macau tem apoiado muito a comunidade, tal como o Governo Central, e por todas estas razões e aquilo que somos há séculos, somos capazes de oferecer algo.

17 Jan 2023

Bernardo Mendia, membro da Câmara de Comércio e Índústria Luso-Chinesa: “Há, finalmente, entusiasmo”

Assim que Portugal respirou liberdade, em 1974, e as autoridades reconheceram a República Popular da China como nação, foi criada a Câmara de Comércio e Indústria Luso-Chinesa, que celebra 45 anos de vida no próximo mês. Bernardo Mendia, secretário-geral, joga todas as cartas na recuperação do comércio com a China. Sobre o investimento chinês em Portugal, menciona preconceitos que devem ser combatidos

 

Que balanço faz de mais de 46 anos de actividade da Câmara de Comércio e Indústria Luso-Chinesa (CCILC) e que progressos destaca?

O balanço é extremamente positivo. Depois do 25 de Abril, logo em 1975, o Governo português faz uma declaração inicial a dizer que reconhecia a República Popular da China (RPC) como a única China e a representante do povo chinês, e depois na sequência disso, em 1976, surge o movimento que dá origem à CCLC, estabelecida em Fevereiro de 1978. Desde aí, temos acompanhado anos de bastante crescimento que nós próprios como país [Portugal], empresas e empresários temos todo o interesse em estarmos próximos, porque podemos vender e comprar muito para as nossas indústrias, com produtos mais competitivos. A nível de trocas comerciais foram anos muito ricos, mutuamente benéficos sempre com a vantagem de termos Macau, o que nos dá uma vantagem que, se calhar, outros países não têm, com mais de 500 anos de contactos. Passando à parte do investimento, também foi muito interessante para Portugal, se bem que apenas nos últimos 12 anos é que existe um verdadeiro movimento de investimento chinês em Portugal. O investimento português na China foi sempre muito residual, até aos dias de hoje. Houve uma série de circunstâncias para o crescimento do investimento chinês, nomeadamente as políticas chinesas que permitiram a expansão de muitas empresas, que coincidiu com as dificuldades financeiras das empresas em Portugal que obrigaram a abrir o capital de empresas públicas e privadas. Nessa altura, havia maior disponibilidade das empresas chinesas para investir em Portugal. Hoje em dia não se verifica o mesmo. Tivemos bastante sorte porque se tivéssemos dependentes dos investidores ocidentais, tradicionais, as nossas empresas não teriam sido tão valorizadas como foram. Respondendo a uma crítica que vem sendo feita, mas que não passa de um mito, de que existe um excesso de investimento chinês…

Não existe?

Na verdade, a maior parte do investimento chinês não controla na totalidade o capital das empresas portuguesas e onde controla mantém a gestão com quadros portugueses.

Esse mito, conforme diz, foi uma forma de descredibilizar o investimento chinês?

Sim, sem dúvida. É uma pena porque não corresponde à realidade e cria um preconceito que é injusto. Deveríamos valorizar [o investimento] e comunicar para ver onde há mais oportunidades. É verdade que hoje em dia há muito menos investimento chinês em empresas já constituídas, porque, de facto, ele aconteceu antes devido a circunstâncias históricas excepcionais e problemas financeiros ocorridos em Portugal. Mas existem ainda muitas oportunidades a nível de indústrias chinesas que podem ser desenvolvidas em países como Portugal, como é o caso da construção de fábricas, indústria automóvel. É esse o investimento que hoje em dia nos interessa. Temos interesse em sermos o país receptor desses investimentos onde depois pode ser feita a distribuição em toda a Europa.

Saiu uma notícia recente sobre o facto de empresas estatais e privadas chinesas serem das principais investidoras na Euronext Lisboa. É um sinal de que esse investimento tem vindo a solidificar-se?

Por um lado, mais uma vez, demonstra uma aposta em Portugal, e devemos mostrar isso a outros países que estão a ficar para trás. A nós interessa-nos colocar os países a competirem entre si para investirem mais em Portugal. A notícia fala de 8,5 mil milhões de euros em investimento, e esse valor é a esmagadora maioria do stock do investimento chinês em Portugal, que são cerca de dez mil milhões. O investimento chinês em Portugal é quase todo feito através de empresas cotadas em bolsa. É o investimento do mais regulado possível e isso é de salutar, desmistifica as origens do investimento.

Fala-se muito na questão dos vistos Gold, por exemplo. O perfil do investidor chinês por essa via também tem mudado?

Penso que nos últimos três anos não deixou de haver interesse, da parte dos chineses, nesse tipo de investimento. Mas nesse período houve imensa dificuldade em viajar. Estou convencido que vão voltar a investir bastante com a abertura das viagens. Não temos nada de criticar, no sentido em que tem sido um tipo de investidor que traz muito dinheiro para a economia portuguesa, pela via dos impostos, além de ter reactivado uma indústria e requalificado várias cidades em Portugal, nomeadamente Porto e Lisboa. Houve muita requalificação urbana que não teria acontecido se não houvesse a perspectiva destes investidores. Além disso falamos de investidores que acabam por criar uma ligação com o país, e muitas vezes criam negócios, de importação. Há quem venha viver para cá e traga os seus pais. Penso que há uma dinamização da economia com este investimento de qualidade.

Tantos anos após a criação da CCLC, o perfil das empresas que vos procuram mudou? A pandemia trouxe alterações maiores?

Nestes últimos três anos houve poucas delegações de empresas chinesas e portuguesas a deslocarem-se. Aqui na CCLC ajudámos empresas a obter vistos e a justificar perante as autoridades chinesas a necessidade de os ter. Os anos da pandemia foram terríveis porque tínhamos apenas o contacto online e isso não ajuda nada. Estamos com confiança para os próximos anos porque toda a gente está com vontade de fazer. Há uma série de eventos importantes para, que do ponto de vista económico, se possa re-activar a relação Portugal-China, como é o caso dos 510 anos da chegada de Jorge Álvares à China, entre outros. Teremos ainda a abertura de uma nova CCLC em Xangai, bem como a Câmara de Comércio e Indústria Hong Kong-Portugal. Apoiamos essa iniciativa que contará com o comendador Ambrose So e Gonçalo Frey-Ramos, que é vice-presidente da Câmara de Comércio e Indústria Portugal-Hong Kong, entre outros.

A China abriu as fronteiras de forma repentina. O número de casos tem aumentado, mas é uma boa notícia para a economia.

Sem dúvida nenhuma. Quem está nos negócios esperava ardentemente que isso acontecesse e esperamos que não haja nenhum retrocesso, e que avancem sem hesitação na abertura.

Até que ponto será possível recuperar da estagnação e retrocesso destes anos de pandemia?

Temos de trabalhar na confiança. A dimensão do mercado e capacidade de compra são os incentivos que os empresários precisam. Isso não se foi embora e agora o potencial virá de forma redobrada. É importante realizar mais missões e visitar o mercado o quanto antes. Queremos estar na China Import-Export Fair, em Novembro.

Esteve há pouco tempo em Hong Kong, como está o ambiente de negócios?

Visitei Hong Kong três vezes durante a pandemia e nota-se uma grande diferença no ânimo das pessoas. Há, finalmente, entusiasmo.

Com a abertura poderemos esperar uma nova era das relações Portugal-China?

É importante que se continue onde estávamos em 2019. Temos de fazer as viagens, garantir que as nossas delegações estão presentes nas feiras na China. Agora será rápido. Temos um período mais desafiante, que são estes primeiros meses com muitas infecções e mortes, mas depois as coisas voltarão à normalidade.

A guerra na Ucrânia e a inflação tem afectado o comércio mundial. Isso tem influenciado as exportações para Macau e China?

Falamos de mercados que não são muito expressivos e que não se deixam afectar por esses factores externos. Ao contrário das narrativas que se têm tentado comunicar, o mundo é multipolar. Todos temos interesses, valores e necessidades. Temos de promover o respeito e compromisso. Em alguns momentos temos de ceder, outros a cedência é da outra parte. Devemos serenar os ânimos políticos para que a economia possa funcionar.

Muito se tem criticado a ausência de um pleno funcionamento de Macau como plataforma. Concorda?

Essa plataforma depende de vontade política. Acho que há ainda muito potencial que está subaproveitado e que podemos aproveitar muito melhor. Há instrumentos criados, mas ainda não são explorados dentro das suas potencialidades. Compreendo essas críticas e compete aos empresários e câmaras de comércio tirar maior proveito desse potencial.

Há um potencial acrescido com a criação de iniciativas como a Grande Baía e a Zona de Cooperação Aprofundada? Como é que a CCLC pretende responder a estes desígnios?

Neste momento, devemos aproveitar a vontade política para tirar proveitos económicos. Este ano, a delegação que for à China, incluindo a Macau, irá concentrar a viagem nas visitas à Grande Baía para mostrar aos empresários portugueses a escala do mercado, pois isso não é muito falado. Temos ainda de os educar quanto a essa iniciativa. Agora é preciso visitar, conhecer e trocar cartões para ver o que está a acontecer.

12 Jan 2023

Manuel Carmo Gomes, epidemiologista: “Abertura foi desnecessariamente abrupta”

O epidemiologista português encara o fim da política de zero covid na China com alguma apreensão e argumenta que a abertura faseada teria sido mais prudente. Manuel Carmo Gomes acredita que a possibilidade de surgir uma nova variante “é baixa”, mas que a incerteza é um factor incontornável e motivo de cautela

 

Como encara a abertura súbita da China em relação à covid-19, eliminando de uma assentada praticamente todas as restrições?

A abertura da China a 7 de Dezembro pareceu-me desnecessariamente abrupta. A China teve grande sucesso na contenção da circulação do vírus até Outubro, apostando nos confinamentos e na testagem em massa. Em consequência, relativamente poucas pessoas foram infectadas. Em 2021, também houve uma boa aposta na vacinação: mais de 90 por cento da população recebeu duas doses da vacina chinesa. Contudo, a segunda dose foi tomada há, pelo menos, seis a 12 meses e as pessoas já não têm proteção contra a infecção. Houve um descuido com o reforço (terceira dose) vacinal, pois a cobertura dos maiores de 65 anos rondava 65 por cento e a dos maiores de 80 anos apenas 40 por cento. Estas pessoas estão desprotegidas contra a infecção e também contra a doença moderada a grave. A abertura repentina coloca todas estas pessoas à mercê de um vírus que é altamente transmissível. Em centros urbanos com alta densidade populacional, o vírus propaga-se como fogo na pradaria. Não percebi a razão de uma abertura tão repentina, mesmo que as autoridades reconhecessem que o vírus já circulava demasiado em Novembro.

Defende, portanto, que a abertura deveria ter sido gradual.

Sim, faseada, iniciada há muitos meses atrás quando o mundo ficou a conhecer as características da Ómicron: muito contagiosa e com capacidade de evadir os nossos anticorpos, mas menos patogénica. Uma abertura gradual poderia ter sido feita reduzindo os períodos de quarentena, colocando menos pressão sobre os assintomáticos vacinados, incrementando os requisitos de vacinação, permitindo espaços comerciais funcionar com menos ocupação, permitindo as escolas dos mais jovens funcionar, mantendo os transportes públicos a funcionar com menos passageiros, por exemplo. Tudo isto e muito mais foi feito no Ocidente.

Isso teria decerto um impacto no número de casos.

Se a China tivesse relaxado gradualmente, o número total de infecções não teria sido menor, contudo, esse número ter-se-ia diluído ao longo de muito mais tempo. Com uma abertura repentina, a Ómicron origina uma onda monstruosa (li na imprensa que o CDC-Chinês estima 248 Milhões só em Dezembro) concentrada num curto espaço de tempo. Mesmo que apenas dois a três por cento dos infectados vão ao hospital (estimativas de Pequim), nenhum sistema de saúde consegue responder a uma tal vaga. Uma abertura gradual permitiria também ter reforçado a tempo a cobertura vacinal da população. A vacina chinesa confere protecção contra a infecção durante alguns meses após a toma e isso teria minorado o impacto da abertura.

O elevado número de casos pode, de facto, originar novas variantes do vírus?

A resposta curta é sim, mas é mais complexo que isso. A probabilidade de surgir uma variante nova é baixa. Contudo, é um acontecimento com características aleatórias, e quanto mais vezes ‘rolarmos os dados’, maior a probabilidade de sair a pontuação máxima. Sempre que o vírus se multiplica ocorrem mutações e, quanto mais infeções houver, mais ele se multiplica. Pior do que isso, as situações como a da China são muito propícias a originar situações de coinfecção. Isto ocorre quando uma pessoa infectada com a subvariante A é infectada simultaneamente com a subvariante B. Os coronavírus têm grande propensão para a recombinação, isto é, pode surgir uma variante que tem uma parte de A e uma parte de B. Se A for muito contagiosa e B mais patogénica, podemos ter uma versão do vírus que se propaga depressa e causa doença mais grave (a subvariante XBB surgida na India é um exemplo de uma recombinante). Felizmente, este fenómeno e outros igualmente perigosos são muito raros. Contudo, com tanta gente a ser infectada, aumenta o risco de poder ocorrer.

Considera científica a posição da União Europeia de exigir testes à chegada para os viajantes da China, Macau e Hong Kong?

Tem mais de político do que de científico. Alguns países deram a entender (pelo menos um disse explicitamente) que iriam instituir o controlo porque a China não está a fornecer informação mínima necessária sobre a situação epidemiológica e as variantes que estão em circulação. Deixem-me ser claro: sabemos que os controlos aeroportuários não impedem a importação de variantes muito transmissíveis. Se, repito, forem aplicados de forma rigorosa, podem atrasar três ou quatro semanas um surto causado por casos importados. Esse atraso deve ser usado para um país se preparar para a chegada de uma nova variante (testes em massa, rastreio de contactos, quarentena…). Contudo, que o controlo rigoroso requer muitos meios humanos e laboratoriais: é caro e logisticamente pesado. Não me parece que os países europeus pretendam isto.

Poderá haver alguma segunda intenção nesta exigência de testes à chegada?

A segunda utilidade dos controlos é conhecer melhor que subvariantes estão a circular na China. Para isso, pode-se por exemplo fazer uma amostragem aleatória dos passageiros e também analisar as águas residuais do avião. Contudo, se houver uma variante mais patogénica do vírus, é mais provável que ela esteja nos hospitais da China do que nos aviões. Nestes últimos, há principalmente pessoas com sintomas leves ou sem sintomas. A maioria dos países europeus inclinou-se para a exigência dos testes antes de embarcar e a análise das águas residuais. No que respeita aos testes, julgo que terá de haver colaboração das autoridades chinesas, mas o Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês deu sinal de discordância, por isso não sei como pretendem proceder. Além de tudo isto, a China, na última semana, disponibilizou 724 sequências do vírus que nos permitiu ter melhor ideia das variantes em circulação. Bem sei que 724 é uma gota de água, mas é um sinal de que muito mais pode estar para chegar. Até agora, não vemos nada de ameaçador nas variantes em circulação na China: estão já no resto do mundo também. Penso por isso que as medias de controlo só são justificáveis e úteis se surgir uma nova variante que se apresente muito transmissível e mais patogénica do que temos visto até aqui.

Como analisa o actual panorama da covid-19, tendo em conta a abertura tardia da China?

Se não surgir na China uma variante mais patogénica e muito transmissível, estou tranquilo. Vamos certamente ter casos importados. Contudo, na Europa e em particular em Portugal, temos uma barreira imunitária que nos deve salvaguardar de voltar a ter a montanha-russa de grandes picos e vales epidémicos. Vamos continuar a ter infecções todos os dias, provavelmente ao longo do Verão também, mas a pressão hospitalar não deve ser mais preocupante do que a que é causada por outras infeções respiratórias. Estou, portanto, num estado de cautela optimista. Não nos vamos ver livres deste vírus, mas a Ómicron tem tido uma evolução gradual, mais de acordo com o que sabemos dos coronavírus que infectam humanos. Os vírus estão a evoluir para fugir aos nossos anticorpos, mas não se têm tornado mais patogénicos. Na verdade, a maior patogenicidade, só por si, não lhe dá vantagem evolutiva. O que lhe dá vantagem é evoluir para nos reinfectar repetidamente e isso provavelmente vai acontecer nos próximos anos. Vamos manter-nos atentos, não só à China, mas a todo o mundo, acompanhando a evolução do vírus e o desenvolvimento de novas vacinas.

11 Jan 2023

Turismo | Associação diz serem necessárias mais agências chinesas em Portugal

Yong Liang, presidente da Associação de Turismo Chinês em Portugal, acredita que a tendência é para que haja cada vez mais turistas chineses no país, sendo, por isso, necessárias mais agências estabelecidas em Portugal. Numa altura em que a China e Macau eliminam progressivamente as restrições contra a covid-19, a palavra de ordem da associação é reforçar a cooperação e os contactos, aproveitando também o potencial estratégico da RAEM

 

Países com históricas ligações, Portugal e China têm estado a navegar em diferentes mares em matéria de turismo, no contexto da pandemia. Se, por um lado, Portugal recuperou há vários meses o sector do turismo, a China só agora começa a abrir as fronteiras e a eliminar as restrições contra a pandemia. Será, talvez, a fase ideal para uma maior recuperação económica e do próprio sector turístico, um mercado em que a China se assume cada vez mais como líder.

Em entrevista ao HM, Yong Liang, presidente da Associação de Turismo Chinês em Portugal, fala dos planos para a cooperação com Macau e China para que cada vez mais visitantes se desloquem a Portugal. Nesse sentido, o responsável acredita que Portugal necessita de ter mais agências de viagens chinesas para dar resposta a esta tendência.

“Sem dúvida que as agências de viagens poderiam olhar mais para Portugal. Já existem algumas agências chinesas a trabalhar em Portugal e motivamos outras para que se estabeleçam por cá”, disse Yong Liang.

No que diz respeito à ACTEP, há disponibilidade “para ajudá-las nesse processo”. “No futuro, haverá mais turistas a chegar a Portugal e haverá necessidade de mais agências de turismo chinesas para os ajudar nas boas-vindas. Ao mesmo tempo, o número de turistas de Portugal para a China vai aumentar, por isso há muitas oportunidades em ambos os sentidos”, acrescentou o dirigente.

Yong Liang explica porque é que os seus conterrâneos gostam tanto de Portugal, que já se transformou “num grande destino”. “Tem cultura, uma grande combinação entre o clássico e o moderno, pessoas simpáticas, uma boa gastronomia, é um bom local para fazer compras, cenários naturais muito bonitos e é um destino barato. Acredito que as motivações [para viajar, da parte dos turistas chineses] não mudaram muito [com a pandemia]. Talvez o que tenha mudado é o facto de ser um destino cada vez mais popular e não apenas para grupos de turistas. Portugal é, cada vez mais, um destino para viajantes independentes e famílias”, frisou.

Desde a sua criação que a ACTEP pretende “desenvolver as relações de turismo entre Portugal e a China, em ambas as direcções”. “Queremos ver mais turistas chineses em Portugal e, claro, mais turistas portugueses na China. Acreditamos que o mútuo conhecimento dos povos é essencial para reforçar a amizade entre os dois países. Como sabemos, a pandemia trouxe algumas limitações, mas não deixámos de trabalhar em prol desses objectivos.”

Exemplo disso, é o projecto do pavilhão de Portugal na Expo de Yangzhou, no ano passado, que “atraiu dezenas de milhares de visitantes e vários prémios”, nomeadamente o de pavilhão com mais baixas emissões de carbono e o “Prémio Internacional de Intercâmbio Cultural”.

Este ano, Yong Liang foi também responsável pela organização e gestão do pavilhão de Portugal em Pequim no certame mais importante do país, a Feira Internacional de Comércio e Serviços da China. O dirigente associativo só tem perspectivas positivas face ao futuro do sector. “A China era, antes da pandemia, o segundo maior mercado de turismo do mundo e será o primeiro mercado turístico a nível mundial em menos de dez anos.”

Papel de Macau

Estando às portas da China, Macau não deixa de ser estratégico para a ACTEP, tendo em conta “o seu sucesso como destino turístico e o posicionamento no Delta do Rio das Pérolas, bem como as históricas relações que possui com Portugal e o facto de ser uma porta de entrada para a China, como destino e mercado”.

Os contactos com entidades do território têm sido desenvolvidos. “Já estabelecemos contactos com a AAVM – Associação das Agências de Viagens de Macau, uma organização com quem estamos dispostos a trabalhar, e com a Direcção dos Serviços de Turismo. Estamos particularmente numa boa posição para ajudar a promover Macau em Portugal, bem como promover Portugal em Macau. Esperamos que no próximo ano possamos promover várias acções neste sentido.”

Tendo em conta “a boa relação da ACTEP com o Turismo de Portugal, há condições para garantir uma boa promoção [de Macau como destino] em Portugal”. No contexto da pandemia, “todo o esforço promocional que a ACTEP tem feito será positivo para fazer com que Portugal fique bem posicionado para esta recuperação, e por essa razão queremos envolver as autoridades portuguesas nacionais e regionais e as agências de viagens portuguesas neste esforço.”

Yong Liang diz ainda que tem vindo a ser desenvolvida “uma boa relação com agências chinesas de turismo”. “A China é um importante mercado para Portugal e é nisso que estamos a trabalhar. Macau tem também um grande potencial”, rematou.

Desde o abandono gradual da política de casos zero de covid que a China tem permitido que cada vez mais os turistas estrangeiros comecem a considerar a possibilidade de viajar para o país. A partir do dia 8 de Janeiro, deixa de ser obrigatória a quarentena para quem chega de fora. No entanto, esta quarta-feira, o Ministério dos Transportes da China fez um apelo para que as viagens no mercado interno, no período do Ano Novo Chinês, ou seja, entre os dias 21 e 27 de Janeiro, sejam feitas “de forma escalonada” a fim de evitar infecções massivas.

De acordo com um guia do Ministério chinês, os testes de PCR e passaportes covid-19 não serão exigidos para viajar e as autoridades competentes vão desmantelar quaisquer postos de controlo anteriormente instalados para restringir a passagem de veículos nas estradas.

Esta terça-feira a China anunciou a retoma da emissão de passaportes para o turismo, medida suspensa desde o início de 2020. Os pedidos para os vistos podem ser apresentados a partir do dia 8 de Janeiro.

30 Dez 2022

Maria Fernanda Ilhéu, economista: Uma Rota de “aprendizagem conjunta”

Conversámos com a presidente da Associação Amigos da Nova Rota da Seda (ANRS) por ocasião da celebração do sexto aniversário da instituição. A economista Maria Fernanda Ilhéu acredita que os casinos vão continuar a ser fundamentais, enquanto o país assim o entender, e que serão criadas alternativas em prol do “equilíbrio” económico

 

São seis anos de existência da ANRS. Que balanço faz?

Registámos a associação no dia 21 de Dezembro de 2016, e foram 21 os sócios fundadores. Começámos a trabalhar com o objectivo de dar a conhecer o projecto da nova rota da seda e tentar identificar áreas de cooperação entre Portugal e China no âmbito desta iniciativa. Logo em 2017 produzimos um documento de trabalho utilizando várias áreas de cooperação. Foi um pontapé de saída para a reflexão. Fizemos variadas conferências sobre esse tema. Queríamos que as pessoas entendessem o que estava patente nesta iniciativa, como efectivamente ela se financiava e quais as áreas de interesse. Todos os anos fazemos uma grande conferência que vai focando em várias áreas desta Iniciativa. Queremos que as pessoas e as empresas se consciencializem da importância do relacionamento com a China e da forma de trabalho conjunto com diversas entidades de Portugal, China e terceiros mercados, de forma a conseguirmos um desenvolvimento sustentável global.

Como encara a evolução da Iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” ao longo dos últimos seis anos?

Evidentemente que com o contexto da pandemia e, mais recente, da desestabilização que a guerra na Ucrânia tem provocado, dificultou ou atrasou alguns projectos, mas a Iniciativa continua a funcionar do ponto de vista das entidades envolvidas. Há dias vi que a Argélia aderiu. Nos últimos anos, foi sempre agregando mais vontades no sentido de cooperação. Neste momento, 141 países e 32 organizações internacionais assinaram acordos de cooperação com a China no âmbito da Iniciativa, e foram assinados cerca de 207 projectos de grande envergadura. A nova rota da seda, além dos grandes projectos de cooperação, tem também uma posição de cooperação entre a China e os parceiros que engloba várias áreas. Em Portugal, verificamos o bom relacionamento que continua a existir com a China e que proporciona diálogo que continua a existir com essas parcerias.

No entanto, a Iniciativa tem sido criticada pela dependência financeira, em relação à China, da parte de alguns países.

Há aí uma série de pontos que são politizados de uma forma que não tem uma análise racional da situação. Temos de ver que esta Iniciativa e as políticas de financiamento ao longo do tempo. Quando surgiu a Iniciativa, constituíram-se, na China, fundos de investimento, nomeadamente o “Fundo Rota da Seda” e outro ligado ao Banco de Desenvolvimento chinês. Foi-se vendo, aos poucos, que esses projectos não podiam ser feitos sem uma análise financeira que permitisse concluir se o país que queria desenvolver determinado projecto tinha capacidade financeira para explorá-lo de forma sustentável. A primeira grande ideia, e que marcou, de certa forma, a ideia que as pessoas tinham dessa Iniciativa, é que eram, sobretudo, infra-estruturas de comunicação, nomeadamente comboios. Esses países tinham necessidade disso, na via-férrea, portos ou barragens. O que aconteceu é que não foi feita uma análise inicial séria desses países. A China não acautelou algumas situações, nomeadamente a construção de um porto no Sri Lanka, uma vez que o país não tinha capacidade nem de investimento nem de exploração do porto. Estes investimentos não são ofertas. No caso do Sri Lanka, a entidade financiadora teve de assumir a gestão do porto por cerca de 100 anos. Nesse consórcio estavam também entidades francesas, pelo que não foram apenas financiadores chineses. Ao longo do tempo algumas coisas se concluíram.

Tais como?

Em primeiro lugar são projectos que se pagam a longo termo e é necessário ter análises sérias financeiras e económicas para a sua sustentabilidade. Depois são investimentos muito grandes e a China não é o grande investidor. Há cada vez mais o recurso às multilaterais financeiras e já foi feito o apelo para a participação de entidades privadas. Há uma evolução, que é de análise racional e económica, com efeitos de progressão do relacionamento entre países. Há movimentação de pessoas, equipamentos e conhecimento, e há uma interligação entre entidades. O país que está à cabeça destes projectos tem sido a China, mas o país vê com muitos bons olhos parcerias trilaterais. A estrita politização da análise da Iniciativa pode ser, de certa forma, tendenciosa para servir determinados fins e objectivos políticos.

Portugal tem sabido tirar partido da nova rota da seda, ou há ainda um grande desconhecimento de empresas e outras entidades?

Esta é uma Iniciativa de longo prazo e de aprendizagem conjunta, e o pontapé de saída foi muito orientado para a construção de projectos de comunicação, como disse. Mas tem evoluído. Hoje em dia fala-se da Rota da Seda digital, por exemplo, da saúde e bem-estar, na Rota da Seda Cultural. Há várias áreas em que se pode cooperar e algumas nem exigem um investimento muito avultado. Em relação às parcerias com Portugal, elas têm existido em várias áreas, nomeadamente na área da saúde e bem-estar, bem notória quando começou a covid-19 na China. Várias entidades portuguesas disponibilizaram-se a apoiar a China e depois vimos o reverso. Não há um grande projecto de infra-estruturas a decorrer, mas há investimento chinês que tem sido bastante importante na sustentabilidade e desenvolvimento das empresas onde foi feito. Relativamente ao Porto de Sines, a forma como o concurso público [para a sua exploração] foi feito não atraiu nenhum investidor, e não apenas os chineses. É sempre num contexto de concurso público internacional que as infra-estruturas se desenvolvem. Não há uma situação em que o Governo chinês vem falar com o Governo português para desenvolver algo, nunca será por essa via.

A China está a relaxar gradualmente as restrições no âmbito da pandemia. Isso poderá criar uma nova fase para a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”?

Sem dúvida. Por muito que funcionem as relações online não há nada como o contacto e diálogo com diversos agentes económicos. Falamos de relações de cooperação que são muito dinâmicas e que estão em permanente alteração. O que era importante há três anos hoje terá outra perspectiva. Em 2019 essas relações estavam a sofrer um boom enorme, e vimos a quantidade enorme de entidades chinesas que vieram a Portugal em várias áreas. Esperemos que em 2023, com estes sinais de abertura, esses contactos possam recomeçar lá mais para meados do ano.

A Iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” está muito presente no discurso político de Macau. O território está a aproveitar devidamente esta matéria ou poderia ser um actor mais activo?

Temos sempre dificuldade em fazer esse tipo de análise. É certo que em Macau existem as plataformas certas para desenvolver essa parceria, mas se podem ser melhoradas, podem. Porque é que a sua dinâmica, às vezes, não é tão profunda? Porque uma coisa são políticas, outra coisa são os tecidos empresariais. É necessário que os tecidos de Macau e de Portugal se acertem, e penso que isso ainda não aconteceu. As empresas podem não ter tido ainda os diálogos certos. Aí podemos tentar apostar em mais plataformas, e isso tem sido fomentado pelos Governos, mas talvez da parte das empresas não tenha ainda a dimensão necessária. A ANRS quer participar nisso.

Macau está numa fase de transição, com as novas licenças de jogo, enquanto o Governo mostra sinais de querer menos dependência dos casinos. É o desígnio certo para que o território possa corresponder à Iniciativa?

Sim. Esse é o grande desafio de Macau, mas não é de agora, é de há muitos, muitos anos. Quando fui para Macau, em 1979, fui precisamente para desenvolver o Fundo de Desenvolvimento Industrial e de Comercialização, cujo objectivo era apoiar a economia para não depender do jogo. A minha função era apoiar a internacionalização das empresas de Macau e reforçar as suas vantagens competitivas. Mas encontrámos uma série de obstáculos.

Quais?

Muitos foram resolvidos enquanto esteve lá a Administração portuguesa. Até 1999 houve surtos de desenvolvimento, construção, formação de pessoas, criação de universidades… tudo se passou no caminho certo. Mas temos de perceber que o jogo é avassalador, traz rendimentos enormes. Quando temos uma actividade que, de repente, permite às pessoas viver bem economicamente, as pessoas perguntam porquê fazer outra coisa.

Isso aconteceu consigo?

Sim. Cheguei à Universidade de Macau e o meu papel era trazer jovens para estudarem no ISEG [Instituto Superior de Economia e Gestão], onde era professora. Os professores que falaram comigo disseram-me que os alunos não queriam vir para Portugal, queriam acabar os cursos e começar a trabalhar porque em Macau tinham muitas solicitações de emprego. Vamos ter sempre essa situação, o jogo vai ser sempre a grande centralização económica e as pessoas vão sempre ter uma grande dependência do jogo. Mas podem-se criar áreas alternativas, e penso que a Grande Baía e a expansão de Macau para Hengqin são grandes oportunidades, porque trazem dimensão, o que Macau já não tem, e outros activos humanos. Enquanto houver jogo em Macau essa área vai ser sempre importante, pode é ser equilibrada e não haver uma substituição. São precisos apoios e entidades empresariais nessas actividades.

O desemprego aumentou e têm-se verificado situações sociais graves devido à pandemia. Isso pode mudar o paradigma que falou?

Acredito que empresas e jovens vão começar a olhar mais para fora. Os jovens estavam muito acomodados e tranquilos com o seu futuro. Este foi um grande acordar para a realidade. Daqui para a frente vamos assistir uma grande evolução em Macau.

Ontem celebrou-se mais um aniversário da transição. Que olhar traça relativamente à Macau de hoje?

A economia sempre foi dominada pelo jogo, mas quando fui para lá havia um sector fabril muito interessante que se desenvolveu mais a partir de 1979 e meados dos anos 80. O sector de exportação foi importante e viveu de vantagens competitivas externas, da existência de quotas de exportação do sector têxtil. Os empresários de Macau aproveitaram essas oportunidades e isso deu azo a uma actividade industrial interessante que proporcionou também um grande desenvolvimento da área urbana. Em função das novas zonas industriais foram construídas mais infra-estruturas de saneamento básico e comunicações. Acredito que se podem criar dinâmicas que equilibrem o peso do jogo, mas não acredito no total desaparecimento dos casinos enquanto a China decidir que eles têm de estar ali. Enquanto existir aval político o jogo não vai desaparecer e até se pode reforçar. Penso que esta lição de crise foi também para o jogo e não apenas para os jovens. Os casinos perceberam que têm de criar novas formas de expansão. Mas com a integração de Macau na China vão-se potenciar oportunidades de investimento noutras actividades. Mas respondendo à sua pergunta, Macau vai ser sempre uma plataforma entre a China e os países de língua portuguesa e penso que isso poderá ser reforçado. O país tem feito bastante esforço para que isso continue. O jogo vai continuar, mas serão criadas outras actividades e outros modos de vida. Macau estava confinado à sua dimensão física e humana, e não podem ser feitas omeletes sem ovos.

21 Dez 2022

Rosa Ribeiro: “Ninguém vai para o consulado para ser rico”

A secretária-geral do Sindicato dos Trabalhadores Consulares, das Missões Diplomáticas e dos Serviços Centrais do Ministério dos Negócios Estrangeiros diz que os trabalhadores do Consulado-geral de Portugal em Macau e Hong Kong sofrem uma pressão acrescida devido ao número de utentes, sendo penalizados com as taxas de câmbio nos salários. A “greve histórica” destes trabalhadores começa dia 5 de Dezembro

 

 

É a primeira vez que funcionários de consulados e embaixadas portuguesas organizam uma greve desta dimensão. Qual será a adesão em Macau?

Só contabilizamos os números da adesão no primeiro dia de greve, pois não contamos as intenções de participação. Tem razão quando diz que é uma greve histórica, pois é a primeira vez que dentro do sindicato se processa uma greve para todo o mundo. Já houve uma greve de cinco semanas, mas apenas na Suíça. Esta será uma greve de seis semanas e acontece devido ao agravamento da situação e à inércia para a resolução de várias questões. Os problemas não são de hoje.

No caso de Macau, quais são os mais prementes?

Os trabalhadores do Consulado estão sujeitos a uma grande pressão e os salários estão sem revalorização há muitos anos. Há um empobrecimento constante, além de que em Macau há trabalhadores que não têm protecção social nem vão ter direito a reforma relativamente a todos os anos de prestação de funções. Essa é uma situação absolutamente inadmissível e, infelizmente, Macau é um posto fora da zona Euro e tem as questões da degradação cambial. Tem o problema, semelhante a todos os outros trabalhadores de outros postos consulares, que é estarem sem aumentos desde 2009. Quando têm aumentos, como foi o caso de 2020, foi de 0,3 e de 0,9 por cento este ano, sem que tenham em conta a realidade local. É um conjunto de situações que nos faz crer que o pessoal de Macau vá aderir em força a esta greve.

Neste momento um funcionário do Consulado ganha quase tanto como um empregado de um hotel.

Exactamente. Os trabalhadores em Macau estão praticamente a ser pagos a níveis quase semelhantes aos do pessoal pouco qualificado. Mas todos os trabalhadores têm qualificações elevadas sobre todas as matérias, pois em Macau tanto tratam de matérias de registo civil como renovam passaportes, cartões de cidadão ou emitem vistos. Temos trabalhadores com um leque de funções extremamente variado e uma polivalência que é rara. Têm uma capacidade de trabalho invejável porque passam de um sector a outro sem problema, e têm um conhecimento profundo da realidade em que vivem. Como são todos funcionários públicos, estão sujeitos ao regime de Administração pública portuguesa e podem estar 11 anos sem aumentos de salários. Um trabalhador assim de certeza que está mais pobre. Ninguém vai trabalhar para o Consulado para ser rico. Pedimos apenas que os trabalhadores não empobreçam e que tenham ânimo e direito a carreira. Se estão durante anos congelados naquela carreira sem perspectivas de evolução é algo altamente frustrante. Temos as variações cambiais que jogam contra eles, e neste momento tem um factor de correcção cambial de 5,34 por cento, quando deveria estar nos 12,95 por cento. Perdem muito dinheiro todos os meses e isso também não é aceitável.

Além de desempenharem muitas funções, são também profissionais bilingues devido à especificidade de Macau.

Isso mostra que o nível de competência deles tem de ser elevado. Pessoas perfeitamente bilingues como eles deveriam ser técnicos superiores em vez de serem apenas assistentes técnicos. Todos os dias estão ali a trabalhar com duas línguas. Esse problema também existe noutros postos, mas Macau tem, de facto, essa especificidade. São trabalhadores extremamente empenhados que têm amor pela camisola de Portugal, porque podiam trabalhar noutro lado, a trabalhar no Governo de Macau, por exemplo, com outro desenvolvimento de carreira.

Quantos funcionários faltam no Consulado neste momento para que o serviço funcione em pleno?

Há a necessidade de nove a dez trabalhadores suplementares, porque temos de compreender que os que saem não são substituídos e há um acréscimo de trabalho para os restantes. Os trabalhadores estão exaustos fisicamente e desgastados moralmente com os problemas que não têm resolução à vista. Neste momento somos 1.200 trabalhadores em todos os postos consulares e embaixadas portugueses de todo o mundo, o que mostra que estamos depauperados. Somos uma ninharia no contexto dos funcionários públicos portugueses. Destes 1.200 temos ainda os trabalhadores das residências oficiais. Trabalhadores operacionais e técnicos ao serviço das comunidades temos cerca de 850. Estes números não correspondem ao nível de representação que Portugal deveria ter tendo em conta a extensa rede diplomática. Macau é um grande posto tendo em conta o número de trabalhadores que tem. Dissemos na Assembleia da República, quando interpelados na Comissão dos Negócios Estrangeiros, qual seria o número de reforço global, e falamos em 500 com base num estudo feito. O ministro [João Gomes Cravinho], numa reunião, disse-nos que não era bem este o número que tinham pensado, mas que não estaria muito longe disso. Para nós, não era contratar 500 trabalhadores em quatro anos, mas sim já. Há um tempo de aprendizagem para cada trabalhador. Se queremos chegar ao fim da legislatura com reforço de pessoal temos de os recrutar de uma vez só, para estarem operacionais daqui a três ou quatro anos. Também queremos uma garantia, de que quem vai para a reforma seja substituído, sem que estes trabalhadores entrem no novo recrutamento. Isto porque temos verificado que há substituição das saídas sem novas contratações. Há 100 saídas, mas depois há 100 entradas, pelo que é falsa a ideia de reforço de trabalhadores. Esta deveria ser uma tarefa prioritária do Governo, porque sem isso estamos sempre ao lado da questão e as comunidades vão continuar extremamente insatisfeitas. Somos nós que somos confrontados com os utentes e somos muitas vezes confrontados e agredidos. Agressões verbais são mais que muitas.

Há esse tipo de casos no Consulado em Macau?

Sim. Não há registo de agressões físicas, mas as pessoas quando entram para serem atendidas já vêm frustradas porque estiveram muito tempo à espera. Já se dirigem ao funcionário como se ele fosse o culpado. Não é verdade, porque os funcionários fazem horas extraordinárias sem qualquer compensação, unicamente por brio profissional.

Terminou, na última semana, a discussão na especialidade do Orçamento para 2023 em Portugal. Mais uma vez se verificou que não vai haver um reforço de verbas para resolver este assunto.

Queremos saber como, com quase o mesmo dinheiro, se vai fazer um recrutamento. Este ano ainda há concursos a decorrer. Parece-nos evidente que não há uma prioridade neste sector da Administração pública. É muito simples: somos tratados à parte, apesar de sermos funcionários públicos. Somos esquecidos. Os trabalhadores nestes postos não são uma prioridade. Apresentamos a todos os grupos parlamentares [na Assembleia da República], para que fosse consagrado o princípio de respeitar a inflação dos países onde estão os trabalhadores para calcular a percentagem da sua actualização salarial. Este ano deram-nos uma percentagem de 0,9, baseada na inflação em Portugal entre Janeiro e Dezembro de 2021. Temos países com inflações muito superiores [no caso de Macau, a inflação está a 1,12 por cento]. Queremos rever o estatuto profissional para resolver esta questão.

Os embaixadores e cônsules pouco podem fazer para minimizar estes problemas.

Fazem o seu trabalho, que é reportar o que se passa ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. Muitos estão preocupados por terem os trabalhadores nessa situação. Simplesmente as decisões não estão nas mãos deles, mas não se coíbem de enviar alertas muito sérios para o Ministério. Temos colegas com dificuldades físicas e que vêm tratar-se a Portugal, a quem damos ajuda. Demos um aparelho ortopédico a uma colega que tinha um custo de três mil euros [cerca de 25 mil patacas], o Ministério deveria pagar e não pagou, porque não tinha seguro.

Além dos salários, há outras questões que precisam de ser alteradas?

Neste momento focamo-nos mais na questão dos salários, recursos humanos e protecção social. Há uma portaria de seguros de saúde que se aplica aos diplomatas, mas não aos trabalhadores. Há filhos e enteados no Ministério. Se querem ser tratados, têm de adiantar as despesas. Haverá uma segunda fase de rever o sistema de protecção social e o estatuto. Com esta norma travão, que impede que os nossos aumentos sejam superiores aos da Administração pública em Portugal, a nossa situação específica não é reconhecida. E isto também está nos planos de negociação.

O que pode desbloquear a greve?

Que nos sejam comunicadas as tabelas e que haja o aval do Ministério das Finanças, e que sejam publicados os textos que já foram negociados. Muitas vezes é difícil chegarmos a acordo face a um texto, e depois demora a ser publicado, mais de dois anos muitas vezes. É absolutamente incompreensível.

A situação no Consulado de Macau é mais ou menos grave face a outros locais?

É mediamente complicada a situação. Há mais pressão de trabalho em Macau do que em Pequim, veja-se pelo número de utentes. A situação não é das piores nem é das melhores, sendo que nenhum consulado ou embaixada está bem neste momento.

2 Dez 2022

Rita Santos, membro do Conselho das Comunidades Portuguesas: “Só se lembram de nós quando aqui estamos”

Conversámos em Lisboa com Rita Santos, representante máxima da Ásia e Oceânia no Conselho Permanente das Comunidades Portuguesas, sobre a importância e influência do organismo nas decisões do Governo português e sobre a polémica das pensões, que tem marcado a agenda mediática. Quanto à perda do estatuto de residente dos delegados do Fórum Macau, Rita Santos diz que o Governo de Macau “não fez por mal”

 

Está em Portugal pela segunda vez num espaço de poucos meses. Que balanço faz das várias reuniões de trabalho desta viagem?

No passado mês de Julho, o Conselho Permanente das Comunidades Portuguesas (CPCP) reuniu em Portugal, e um dos objectivos era discutir a revisão da lei do Conselho. Na altura o PS [Partido Socialista] tinha dito que iria apresentar em Outubro a proposta de revisão ao Parlamento. Pensámos que nesta fase de revisão orçamental [a discussão do Orçamento para 2023 terminou na semana passada] poderíamos apresentar as nossas opiniões. A proposta em causa tem uma parte solicitada por nós, que é o aumento do número de conselheiros de 80 para 100, mas tanto o PS como o PSD [Partido Social-Democrata] propõem um aumento de 80 para 90. Tal deve-se ao aumento de eleitores por causa do recenseamento automático, tudo para que a comunidade portuguese fique mais bem representada.

Que outras propostas partiram dos conselheiros?

O aumento do nosso orçamento. Propusemos mais de 400 mil euros, mas só autorizaram 250 mil. Se houver reunião do plenário, todos os conselheiros do mundo têm de ter um orçamento adequado. O adiamento das eleições é alheio ao conselho. Inicialmente, foi dito que iria ser implementado o projecto piloto do voto electrónico nas nossas eleições, mas parece que isso não vai avante.

Porquê?

Não nos deram razões preponderantes. Ficámos com a sensação de que o projecto piloto do voto electrónico está suspenso. Reunimos com um representante do Ministério da Administração Interna (MAI) que diz que vai haver uma alteração substancial, de tal forma que, se os eleitores não conseguirem receber o voto postal, podem votar pessoalmente. Mas isso não resolve o problema, porque há países onde votar implica longas horas de viagem. Mas voltando à lei do CPCP, todos os partidos esperavam a proposta do PS, mas no dia da reunião o PSD disse que ia apresentar também uma proposta sobre a mesma lei, com novas ideias, a fim de dar mais dignidade aos conselheiros, incluindo a criação de um passaporte de serviço especial. Queremos que as eleições para eleger os membros do CPCP decorram no segundo semestre de 2023, mas está tudo dependente da alteração da lei para podermos marcar as eleições. Tanto o PSD como o PS concordaram ainda, por exemplo, que haja uma consulta obrigatória ao CPCP em matérias políticas relacionadas com a comunidade.

Isso não tem acontecido.

Não. No caso do pedido de nacionalidade dos netos de portugueses pediram. Mas queremos que seja sempre, pois somos um órgão consultivo. A nossa proposta de revisão passa também pela integração, da parte dos conselheiros nos conselhos consulares das regiões onde residem. No nosso caso, não temos problemas em Macau porque temos boas relações com o cônsul, mas noutros países e regiões, se não houver boa relação, as reuniões não acontecem. Queremos também maior paridade nos órgãos do CPCP. Pedimos também um gabinete de apoio, porque os conselheiros trabalham todos por sua iniciativa, queremos uma estrutura melhor, com mais funcionários para a emissão dos pareceres.

Acha que o papel do CPCP tem sido subaproveitado?

Da minha parte, em Macau, por causa da nossa boa relação com o cônsul, as coisas funcionam bem. Mas Portugal só se lembra de nós quando estamos aqui [em Lisboa]. Não é agradável dizer isso. Falamos com o Presidente da República e ele diz-nos que tem sensibilidade para com o assunto, e diz que somos os embaixadores de Portugal lá fora. Disse-lhe que as nossas associações de matriz portuguesa promovem a cultura e a gastronomia, inclusivamente na área dos negócios. Ele [Marcelo Rebelo de Sousa] disse que é bom continuar a apostar na diversificação económica, sem depender do jogo, continuando Macau a ser uma plataforma. Nós, conselheiros, somos da opinião unânime de que temos de ser ouvidos. Desta vez, com os grupos parlamentares, penso que estão mais sensibilizados. Focamos o nosso discurso no CPCP e não noutras áreas.

As associações de matriz portuguesa enfrentam dificuldades de financiamento. Acha que Portugal deveria dar-lhe uma atenção especial?

A Casa de Portugal é como uma miniatura de Portugal em Macau. Há o apoio ao associativismo, mas o valor é uma miséria e nem dá para pagar a electricidade. O dinheiro acaba por não conseguir abranger Macau. A Associação dos Macaenses também promove Portugal. Espero que o país mostre maior carinho para com essas associações que trabalham arduamente. Sem elas Macau não tem a sua especificidade, que é acarinhada pela República Popular da China. Eu sei disso porque tenho contactos. Eles querem que continuemos a trabalhar para esse efeito.

Com o projecto do voto electrónico para o CPCP suspenso, vai demorar bastante tempo até que os emigrantes possam votar online.

Não sei porque demora tanto tempo. Não sabemos o porquê de tanto tempo. Da reunião com o MAI entendemos que há mais vontade de continuar com o voto postal e presencial. Não se tocou uma palavra na questão do voto electrónico e não sabemos qual o calendário.

Sobre a questão do não pagamento do complemento de pensões a reformados fora de Portugal. Defende que foi um erro técnico do Ministério das Finanças.

Houve uma falha técnica que não partiu da vontade do primeiro-ministro [António Costa]. Não é possível que o universo dos pensionistas a viver fora de Portugal, que é reduzido, possa ficar de fora deste complemento extraordinário de pensões. Não é um valor significativo, não vejo razões para a discriminação. Simplesmente esqueceram-se que a palavra “nacional” abarca apenas os idosos que residem em Portugal. Os idosos em Macau perderam cerca de 30 por cento do valor real das pensões desde a transferência de soberania, não ganham as sete mil patacas todos os anos e temos ainda de considerar a inflação.

Reuniu com dirigentes da Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal. A situação que Macau vive relativamente à pandemia está a atrapalhar a vida aos empresários.

Cem por cento. O que é que os jovens chineses e macaenses pensam? Desenvolvem o comércio online e querem que que a população local conheça melhor os produtos portugueses através desta plataforma online para depois ser mais fácil entrar no mercado chinês. O segundo passo é resolver a inspecção e legislação sanitária. A única carne que é possível exportar para a China é a carne de porco, sem a parte da cabeça. O resto tem de ser submetido à inspecção sanitária e a um percurso grande. Pergunto: um empresário de Macau consegue fazer isto? Não, tem enormes gastos. Além do vinho e carne de porco, nada mais pode entrar. O mercado de Macau é muito pequeno.

Há muitos entraves de natureza burocrática para que a plataforma de Macau funcione em pleno?

Tem de haver, da parte de cada país, uma discussão sobre as questões de inspecção e higiene sanitária. O Brasil é o país mais avançado nesse aspecto, porque o açúcar e a carne de vaca podem entrar, por exemplo. Tudo depende da iniciativa do país que exporta, por isso Portugal tem de ter mais iniciativa nesse sentido.

Foi notícia a perda da residência dos delegados do Fórum Macau. O que pensa sobre isso?

Quando fizeram a nova lei da emigração não tiveram essa sensibilidade. Não alertaram o Governo, que não fez por maldade. Tenho acompanhado o processo e cruzo-me com os delegados, que falam comigo. É preciso resolver esse assunto, por uma questão de dignidade. Nesta fase, não deveria ter sido feita esta alteração, porque o Fórum Macau é reconhecido pela própria China e os países de língua portuguesa. Os delegados têm de ter qualidade de vida para fazer este trabalho.

Que balanço faz do mandato de Paulo Cunha Alves e expectativas para o novo cônsul, tendo em conta a progressiva redução da comunidade portuguesa?

Não temos nenhuma queixa do doutor Paulo Cunha Alves porque ele resolve pontualmente todos os nossos problemas, incluindo as emergências dos portugueses em Hong Kong e alguns pensionistas de Macau que ficaram retidos em Hong Kong e que tiveram de tratar da prova de vida. Ajudou na emissão de vistos para chineses viajarem para Portugal bem como outros assuntos. Conversámos sobre a saída gradual dos portugueses e o sentimento geral que se vive na comunidade.

30 Nov 2022

Maló de Abreu, deputado do PSD pelo círculo Fora da Europa: “Macau merece uma atenção redobrada”

António Maló de Abreu já visitou muitas comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo, mas Macau continua a não constar do roteiro devido à imposição da quarentena. O deputado social-democrata pelo círculo Fora da Europa na Assembleia da República está, no entanto, muito atento ao ensino da língua portuguesa, à falta de apoios às associações e à pouca atenção das autoridades portuguesas face ao território

 

O seu objectivo é ir a Macau duas vezes por ano. Ainda não lhe foi possível. Neste momento não sabe ainda quando visitará o território.

Tenho visitado as maiores comunidades portuguesas ou aquelas onde há mais dificuldades, como é o caso dos EUA, África do Sul, Venezuela. Espero que o mais rapidamente possível a situação da pandemia permita que a quarentena não seja tão extensa. Tenho feito alguns contactos, esperando que a situação melhore.

As dificuldades de que fala prendem-se com as dificuldades no voto, no funcionamento dos consulados e embaixadas?

Há de tudo um pouco. Temos locais em que as nossas comunidades estão muito envelhecidas, com questões sociais graves. Falo de dois casos, pelo envelhecimento e da situação política que se vive, que é o da Venezuela e África do Sul. O Estado português tem de estar muito atento a estas comunidades, sobretudo pelas questões sociais. Tem havido grande fuga de portugueses dessas comunidades. Mas há outras que também são importantes, como a dos EUA, onde a situação é mais estável, ou a do Canadá. Também dou especial atenção às comunidades que estão nos países de língua portuguesa. Estive em Timor-Leste, mas quero ir a Macau para conhecer melhor a comunidade portuguesa.

Dos contactos que tem tido quais são as grandes problemáticas endereçadas à comunidade de Macau?

No geral há um grande enfraquecimento dos consulados, sobretudo devido à perda de recursos humanos, não podendo dar resposta da melhor forma às solicitações que são feitas pelas pessoas. Anuncia-se até uma greve dos funcionários da rede consular e é a primeira vez na história que isto acontece. Seria grave para Portugal e está em causa o prestígio da própria instituição [Ministério dos Negócios Estrangeiros]. Tanto mais que já houve reuniões do ministro com os sindicatos e pareceu-me que tudo estava a ser resolvido. Mas percebi, pelo Orçamento de Estado, que nada está a ser resolvido, porque não existem verbas para a actualização dos salários ou a contratação de novos funcionários. Os consulados são o braço armado de Portugal junto das comunidades portuguesas. Não podem ser muito burocratizados nem muito formais, devem ser verdadeiras casas de Portugal. Infelizmente, a nossa rede consular tem sido depauperada e abandonada, e está hoje numa situação muito grave. Há promessas de que se irão resolver estes assuntos, mas não vejo solução à vista com a política que tem sido seguida.

O que pensa do ensino do português no estrangeiro, sendo esta uma questão das comunidades que também tem sido muito abordada?

Também está muito abandonado. É preciso um reforço, porque a língua é algo que nos deve unir a todos. O ensino do português é fundamental no estrangeiro e Macau terá especificidades que preciso de conhecer in loco. Admito que haja em Macau dificuldades acrescidas e penso que deveríamos marcar muito bem a nossa posição em Macau para não chegarmos um dia destes, pacientemente, ao fim da nossa presença em Macau, que é o que eu, infelizmente, acho que vai acontecer, em função de uma falta de política de apoio à nossa língua, cultura, associações, instituições e até à nossa comunicação social. No geral, na diáspora, a comunicação social é muito importante para manter a ligação entre as pessoas, há um investimento que deveria ser feito e que não se tem realizado.

Temos a Escola Portuguesa de Macau (EPM) que é totalmente financiada pelas autoridades locais. Também tem sido um dossier esquecido pelo Ministério da Educação em Portugal?

Interpelei, durante a discussão sobre o Orçamento de Estado, o ministro da Educação, sobre isso. Há duas escolas, Macau e Bissau, estão a zeros no Orçamento de Estado. Isso é muito estranho, e revela, no fundo, um afastamento do Estado relativamente à necessidade de reforço da nossa presença nessa área específica. Em Luanda há um grande reforço de verbas, e muito bem. Temos de ter uma rede pública em sítios estratégicos, capitais dos países de língua portuguesa ou sítios onde haja uma grande comunidade portuguesa deve haver, pelo menos, uma rede de escolas públicas financiada pelo Estado português. Temos de investir fortemente em Macau para que se aprenda o português nas condições necessárias. Não basta a EPM, penso que deveria haver uma grande plataforma do ensino do português, e essa é uma das falhas que existe.

O Instituto Camões tem falhado?

Tem sido absolutamente insuficiente. Deveria ser criada uma grande plataforma para o ensino da língua, numa espécie de telescola em que havia aulas, cursos e um canal dedicado exclusivamente ao ensino do português. Seria um canal difundido internacionalmente com conteúdos disponíveis em qualquer lugar, 24 horas por dia.

As associações de matriz portuguesa que existem em Macau vivem hoje com mais dificuldades financeiras. O Estado português tem de dar mais atenção a este ponto?

O apoio ao associativismo é fundamental e deve ser fortalecido. Estas são casas onde se mantém a cultura portuguesa que, de outra forma, morrerá, como tem morrido onde não se tem feito investimentos. Macau merece uma atenção redobrada, ainda para mais se quisermos manter ou intensificar as nossas relações com a China, que é um parceiro com quem temos de estabelecer laços mais fortes. O nosso local de eleição para estabelecermos as nossas plataformas de movimentos é a partir de Macau. É com portugueses em Macau, sentindo-se bem, com um conjunto de garantias, como a escola ou as associações, é fundamental.

O papel de Macau como plataforma está muito presente no discurso político, mas há vozes que dizem que essa função não está ainda devidamente aproveitada. Os empresários portugueses continuam a não desfrutar dessa plataforma como deveriam?

O nosso passado histórico em Macau é tão forte e intenso que a nossa presença naquela zona do mundo deveria passar por uma plataforma “logística” com base em Macau. Seria a partir dali que os nossos interesses seriam defendidos, incluindo para Pequim. Desvalorizar Macau como tem sido desvalorizado… não direi ainda abandonado. Mas é um grave erro de estratégia política se mudarmos a nossa direcção para Pequim em vez de instalarmos o nosso porta-aviões em Macau.

A integração regional de Macau no país acontecerá, a seu ver, ainda antes de 2049?

Espero que se cumpra o prometido, mas é uma questão que se prende com a nossa presença. Se os portugueses que vivem em Macau forem lentamente deixando o território, diria que é natural que antes dessa data não tenhamos nada a ver com Macau, o que é absolutamente lamentável. É como hoje não termos já nada na Índia, quando temos fortes raízes em Goa, onde deveríamos ter um consulado forte. Ou reforçamos fortemente a nossa presença em Macau, ou então é natural que os portugueses se sintam desiludidos e abandonem progressivamente o território, o que terá custos.

Macau terá um novo cônsul em breve, Alexandre Leitão, embora a confirmação oficial ainda não tenha chegado. Que expectativas deposita neste nome?

Se se confirmar, julgo que Macau terá um excelente cônsul-geral, com quem tenho afinidades pessoais. Espero que ele possa ajudar, trabalhando com a comunidade e com as autoridades locais. Será um excelente representante de Portugal e terá de lutar para melhorar as funções do seu consulado, motivando os portugueses que lá permanecem a manterem a sua presença.

Apresentou uma proposta para a retirada do termo “cidadão nacional” do projecto do Governo português que dá apenas o complemento excepcional de pensão apenas aos reformados que vivem em Portugal.

Vamos defendê-la publicamente em plenário amanhã de manhã [esta entrevista realizou-se um dia antes da sessão plenária de apresentação]. É a nossa grande proposta sobre as comunidades portuguesas, pois entendemos que não há portuguesas de primeira e de segunda, todos são iguais nos seus deveres, mas também o devem ser nos seus direitos. Não faz sentido que haja um suplemento de apoio às famílias em Portugal que não seja estendido aos portugueses que estão lá fora. É uma questão de igualdade de tratamento e de direitos.

Uma outra proposta feita pelo PSD prende-se com a alteração da lei do Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP). O que está a falhar neste campo?

Apresentaremos essa proposta até final deste mês. O CCP já ultrapassou largamente o seu prazo de eleição. Esperamos muitos meses pela proposta de alteração da parte do Partido Socialista, mas isso não aconteceu. Essa proposta tem muito a ver com as propostas já feitas pelos conselheiros, que estão no terreno e conhecem a realidade das comunidades portuguesas. Uma das ideias é alargar o Conselho, haver mais reuniões periódicas, fazer-se a experiência da eleição com o voto electrónico, serem mais ouvidos e ser obrigatório um parecer do CCP em algumas matérias. É também importante terem uma estrutura própria. Queremos que o CCP passe a ser escutado e tenha a dignidade que merece. Temos de acolher muitas das suas preocupações.

A ideia do projecto piloto do voto electrónico é para que depois se possa estender às restantes eleições.

Sou a favor do voto electrónico e acho que um dia destes todas as eleições decorrerão desse modo. É inevitável. Não vejo da parte do Governo vontade em trabalhar nesse sentido. Sabemos que a participação eleitoral da diáspora é lamentável, as cartas não chegam, há países onde os votos nem saem do correio. Também estamos muito disponíveis a alterar a lei eleitoral. Somos 1.500 milhões de portugueses na diáspora com direito de voto. Somos, no PSD, a uma maior representação de deputados no círculo da emigração, mas isso passa por uma maior participação dessas pessoas. Não temos de ter medo de encontrar as fórmulas necessárias para que haja uma maior participação nas eleições.

AR | Proposta votada

Foi esta quarta-feira que o deputado António Maló de Abreu apresentou a proposta do Partido Social Democrata de alteração do decreto-lei sobre o apoio extraordinário concedido aos pensionistas, no sentido da inclusão dos reformados que não residem em Portugal. A apresentação foi feita no âmbito da discussão, na especialidade, do Orçamento de Estado para o próximo ano. Na sua intervenção, o deputado disse que o Partido Socialista, no poder, “fez publicar um decreto-lei que abrange apenas os pensionistas residentes em território nacional”, acabando “por excluir liminarmente os que se encontram emigrados, tratando-se de uma manifesta injustiça, desprezando os mais velhos da nossa diáspora”. Disse ainda Maló de Abreu: “não pode haver portugueses de primeira e de segunda”. A proposta foi votada ontem na Assembleia da República, já depois do fecho da edição, não tendo sido possível saber de antemão o resultado.

25 Nov 2022

Wu Zhiwei apostou na exportação de vinho português que ele próprio produz na Quinta da Marmeleira

“Quero trazer turistas chineses para Portugal”

 

Wu Zhimei, empresário de Macau, hoje vice-presidente da Câmara de Comércio e Indústria China-Portugal, está presente na MIF para divulgar os vinhos portugueses que produz na Quinta da Marmeleira, perto de Alenquer, um espaço que comprou e desenvolveu, não apenas para a produção vinícola, mas também para explorar o enoturismo, sobretudo com turistas vindos da China, a quem pretende mostrar Portugal, a sua gastronomia e cultura

 

Por que razão escolheu Portugal para expandir os seus negócios?

Em 2014, resolvemos responder à chamada do Governo da China, a propósito da iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”. Como a China e Portugal, graças a Macau, têm um intercâmbio histórico de centenas de anos, escolhi Portugal como o país onde procurar oportunidades de negócio.

Resolveu então comprar uma quinta para a produção de vinho, entre outras actividades…

Na verdade, eu também gosto especialmente das paisagens portuguesas e de provar vinhos. Porque escolhi este negócio? De facto, experimentava os vinhos tintos portugueses em Macau e considerava que esses vinhos tintos portugueses apresentavam uma boa qualidade e um excelente rácio entre a qualidade e o preço. Parecia-me que a divulgação desses vinhos não era suficiente, por isso decidi para ir para Portugal e entrar no negócio do vinho. Assim, desde então que passei a importar vinhos portugueses para a China, também com o objectivo de responder aos desígnios da política nacional de fazer de Macau uma plataforma para os Países de Língua Portuguesa (PLP). Também considerei que se pode melhorar a capacidade de produção dos vinhos portugueses, em termos do rácio de qualidade-preço alto. Tenho passado mais tempo em Portugal do que em Macau, desde 2014, por posso dizer que sou um participante da iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”.

Porque decidiu comprar a Quinta da Marmeleira e não outra?

Como a Quinta da Marmeleira pertence à região de Lisboa, além de ser uma zona legítima dos vinhos, em 2018, a cidade de Alenquer, em que a quinta fica, foi classificada como Cidade Europeia do Vinho. Na verdade, trabalho no sector imobiliário, por isso tenho algum conhecimento na observação do sector, devido à minha experiência. A conveniência dos transportes também influenciou a nossa preferência. Por exemplo, do aeroporto de Lisboa até à quinta só gastamos 20 minutos de automóvel, e do centro da cidade para a quinta são apenas 40 minutos.

Mas o seu projecto não se limita apenas à produção e venda de vinho. Que outras áreas pretende desenvolver?

Naquele momento, em 2014, quando fiz este investimento, pensei em desenvolver turismo cultural na quinta, para atrair turistas chineses e outros. Achei interessante que experimentassem, conhecessem e provassem os vinhos in loco e que compreendessem como se produz o vinho. Na realidade, é um processo muito interessante, que pode atrair muita gente. Em vários locais de Portugal, já existe este tipo do chamado enoturismo, nomeadamente no Douro. Actualmente, estamos já a avançar com o projecto de um resort na quinta. Já há dois anos que temos preparados os autocarros para as excursões e outros aspectos complementares, incluindo também alguns elementos da cultura chinesa, tal como esculturas em pedra dos “Vinte e quatro exemplos filiais” e dos 12 horóscopos chineses.

Qual é a situação actual do seu projecto de resort? Já entrou em funcionamento?

A situação… não vou dizer que o Governo português trata lentamente dos pedidos, porque existem variados factores como, por exemplo, a pandemia. Mas estamos à espera da aprovação do Governo português.

Isso quer dizer que o projecto está parado?

Não. Há sempre muito para fazer, para melhorar. Desde o início deste ano que voltámos a arrancar com o projecto. Os trabalhos relacionados com as vinhas, os materiais de construção e os autocarros para as excursões estão preparados. A quinta tem uma história de 500 anos, por isso existem lá muitos engenhos antigos que faço questão de manter, esperando que os turistas possam ver a diferença entre os modos antigos e as técnicas modernas de produção de vinho. Temos, portanto, muitas coisas que vêm de longe e têm uma história de centenas de anos. A minha intenção é continuar a preservá-las, incluindo as paredes dilapidadas e antigas.

Quanto é a proporção dos compradores oriundos da China?

80 por cento dos vinhos da quinta são exportados para o Interior da China. Actualmente, as empresas estatais como a China Palace Hotel, o Grupo de Construção de Comunicações da China e muitos hotéis são os nossos clientes. Os nossos vinhos também estão disponíveis nas plataformas de negócio electrónico como, por exemplo, a JD.com. Acredito que, no futuro, a China pode vir a tornar-se no maior comprador dos vinhos no Mundo.

Pode dizer-nos qual o volume de negócio de venda dos seus vinhos?

Não fazemos a estatística sobre o volume de negócio. É difícil calcular um número porque a quantidade de uvas continua a aumentar e a colheita acontecerá nos próximos anos.

Quer dizer que não se trata de um negócio que implica um lucro imediato?

Não. Quando comprei a quinta, resolvi remover as espécies que achava más e plantei outras espécies. Naquele momento, muitas pessoas explicaram-me que ia perder muito dinheiro, porque o crescimento das vinhas leva o seu tempo e as uvas dos primeiros anos não são apropriadas para a produção de vinho, ou seja, era preciso esperar pelo menos três anos para que as uvas pudessem ser utilizadas com esse fim. Ainda assim, decidi a alteração, porque queria plantar as melhores espécies naquela região.

A pandemia também não veio ajudar…

Apesar de sofrermos com a pandemia, insistimos na produção de vinhos de qualidade. Enquanto exportadores de vinhos, a boa qualidade será sempre o conceito da nossa empresa. E tem mesmo de ser assim, porque não só os mercados do Interior da China, mas também os de outras regiões, têm requerimentos rigorosos e elevados. Actualmente, as pessoas do Interior da China têm um nível elevado de consumo de vinho.

Qual é o papel da filial do grupo em Macau?

A filial em Macau também serve como uma das empresas vendedoras do grupo. Em Hengqin, temos um armazém muito conveniente para colocar e manter os nossos produtos. Em Macau, os nossos vinhos já estão disponíveis nos supermercados e nos melhores hotéis.

Quais os melhoramentos que precisam de ser feitos para que Macau cumpra o seu papel da plataforma entre a China e os países lusófonos?

Na realidade, acho que o Governo de Macau já faz um grande esforço nessa área e as políticas nacionais também deram muitos apoios à importação de produtos dos países lusófonos. Por isso, não sinto que existam aspectos em que o Governo precise de melhorar, ou seja, na minha opinião, o Governo já desempenha bastante bem o seu papel.

Tem ideias para a Grande Baía ou para a zona da cooperação aprofundada de Henqin?

Sim, de facto, desejamos e estamos prontos para participar nesses projectos regionais e nacionais. No entanto, nesta fase não posso divulgar mais pormenores. Só os anunciarei quando os concretizar.

20 Out 2022

Mário Godinho de Matos, embaixador: “Macau será uma peça importante no ‘puzzle’ da Grande Baía”

Mário Godinho de Matos fez parte do Grupo de Ligação Conjunto Luso-Chinês entre 1989 e 1991 e recorda um processo diplomático que correu bem, mas que não é hoje estudado e lembrado como devia. Questionado sobre o actual esvaziamento da comunidade portuguesa, o embaixador diz tratar-se de um ponto negativo tendo em conta que as negociações visavam a fixação de chineses e portugueses no pós-1999

 

Falou do facto de as negociações sobre a transição de Macau terem sido bem-sucedidas, mas lamentou que esse ponto seja hoje desconhecido. É algo que caiu no esquecimento das autoridades portuguesas?

Seguramente que não caiu no esquecimento, porque todo este processo foi muito acompanhado aqui, naquele tempo, e é muito relevante no nosso relacionamento bilateral com a China. Creio que no plano académico, por exemplo, poderíamos ter muito a ganhar se falássemos mais nesses tempos. O processo é tão rico e tem tantos aspectos que podem ser agora bem estudados que merecia mais atenção.

Como olha para a postura das autoridades portuguesas em relação à RAEM ao fim de todos estes anos? Poderia haver uma maior proximidade?

Nos anos 2000 houve uma grande proximidade, sobretudo no plano económico, pois houve muita gente a fazer negócios e a dirigir-se a Macau. Creio que aí o processo de transição cumpriu a sua tarefa, que era garantir ao território o seu desenvolvimento e a modernização ou aperfeiçoamento. A partir de 2019, com a pandemia, houve uma travagem, que é geral, e que se veio a repercutir no território. Falamos de um aspecto particularmente sensível para a RPC que tem a política de zero casos covid, algo que é muito limitativo para a realização de actividades. Temos assistido a cidades paralisadas e isso, de facto, não é bom para o desenvolvimento económico, cultural e social do território. É uma questão universal e que aqui, talvez, tenha tido maior incidência.

Há um progressivo desaparecimento da comunidade portuguesa em Macau. É um ponto negativo tendo em conta as negociações que decorreram no âmbito da transição?

Sim. O grande objectivo das negociações, que se prolongaram durante 11 anos, e tudo o que serviu de base à Declaração Conjunta, era dar garantias à população, aos portugueses que quisessem ficar em Macau e os que sentissem vontade de lá ir, bem como de os fixar. Veremos se quando a pandemia estiver mais resolvida se tudo poderá ficar como na situação anterior ou até melhor. Mas o objectivo era mesmo o de fixar a população portuguesa e também chinesa e dar ao território todas as condições para se desenvolver e aperfeiçoar as relações no âmbito político.

Disse que houve falhas no processo de negociação, nomeadamente ao nível do pagamento das pensões dos funcionários públicos. Que outros aspectos menos bons pode apontar?

Nos três primeiros anos do Grupo de Ligação fizemos a adesão aos acordos internacionais, entre outras coisas. Estávamos numa fase muito inicial do processo e, digamos, o objectivo era criar condições para que tudo aquilo funcionasse. Lembro-me do gabinete de tradução jurídica, um departamento importantíssimo para casar duas legislações. Havia obstáculos de todo o tipo e questões que precisavam, às vezes, de ser clarificadas. A questão da data [para a transição] arrastou-se muito tempo, porque os chineses pretendiam um processo simultâneo com Hong Kong e isso, para nós, era uma questão de princípio. A questão da data foi difícil de negociar. Para os chineses a barreira era 2000, e por isso é que encontramos esta data [20 de Dezembro de 1999], que fosse perto do ano 2000 e não colidisse com a data de Hong Kong. Foi uma negociação intensa, com uma flexibilização da parte chinesa, que tinha interesse em que tudo corresse bem, sempre tendo Taiwan como objectivo final.

Nesse sentido, como olha hoje para a implementação do conceito “um país, dois sistemas”?

Vamos ter de acompanhar muito o que está para vir. No plano dos princípios o sistema continua vigente e esperamos que assim aconteça. Mas essa caminhada para Taiwan tem tido algumas dificuldades de percurso e não está claro que passos serão dados nesse sentido.

A integração de Macau na China, tendo em conta os vários projectos de cooperação regional, vai ser mais rápida do que se esperava?

Penso que sim, sobretudo no plano económico, porque o dinamismo da região é de tal ordem que me leva a crer que, na integração da zona da Grande Baía, Macau andará à frente e será uma peça importante nesse puzzle.

 

Aula aberta na UL para alunos de Ciência Política

O HM falou com Mário Godinho de Matos no contexto de uma aula aberta que o embaixador deu no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa na última sexta-feira. Perante uma plateia de alunos de Ciência Política, o responsável começou por dizer que o “processo de transição de Macau teve os seus altos e baixos, gerou críticas, mas a verdade é que foi um exercício diplomático específico, curioso, numa zona que nos dizia muito, pois estávamos ali há cinco séculos, e que se resolveu com algum êxito”.

“Isso é de assinalar e talvez mereça ser mais conhecido”, acrescentou ainda, lembrando que o caso de Macau foi em tudo diferente da restante descolonização portuguesa no pós-25 de Abril, um “processo totalmente descontrolado”.

Mário Godinho de Matos lembrou que houve três pilares essenciais neste processo de transição, nomeadamente a língua, os funcionários públicos e a legislação. Acima de tudo, “não faltavam meios, eu tinha luz verde para contratar o número de técnicos necessários para as negociações”.

“Os chineses queriam que a transição se fizesse ao mesmo tempo da de Hong Kong, mas não queríamos um processo igual, pois os territórios eram diferentes e havia especificidades que tinham de ser preservadas, tal como a boa relação com os chineses e a nossa presença histórica de 500 anos.”

Que futuro?

Mário Godinho de Matos afirmou que o caso de Macau poderá agora voltar a ser mais falando tendo em conta a questão de Taiwan, uma vez que o princípio “um país, dois sistemas”, pensado por Deng Xiaoping, foi estabelecido para tratar a situação da Ilha Formosa.

“Deng Xiaoping pensou que com a institucionalização deste conceito único haveria confiança, da parte das autoridades de Taiwan, e seria um passo importante para as negociações com a Formosa. O comércio entre a China e Taiwan é intensíssimo, mas, a verdade é que, no plano político e social, vemos que há uma cada vez maior desconfiança entre as duas partes e não sabemos muito bem como isto vai terminar. O que se esperaria é que alguma negociação fosse possível à semelhança do que aconteceu com Macau e Hong Kong”, adiantou.

O embaixador não deixou de destacar a existência do Fórum Macau que “envolve a China, Portugal e os PALOP” e que, além da ligação bilateral específica [entre a China e Portugal], traz “um desenvolvimento importante”. “É uma iniciativa exclusivamente chinesa e não deixa de ser curioso que a China tenha encontrado essa via para se relacionar com os países de expressão portuguesa e com Portugal”, concluiu.

17 Out 2022

José Leitão, representante do escritório da MdME em Portugal: “Continuamos convictos da retoma de Macau”

Depois de anos a operar em Portugal em parceria com um escritório de advogados local, a MdME estabelece-se agora no país por conta própria, apostando na assessoria jurídica ligada ao investimento entre Portugal e a China. José Leitão, responsável pelas áreas de compliance e Direito público, fala dos planos de expansão do escritório que aposta cada vez mais na internacionalização

 

A MdME abre agora oficialmente o escritório em Lisboa, mas já tinham presença em Portugal há algum tempo.

Tínhamos feito o trabalho preparatório e operamos desde que temos a licença da Ordem dos Advogados, há alguns meses. Mas estamos agora a fazer o lançamento [oficial] porque pudemos mudar de instalações e aproveitamos o facto de ter mais sócios em Portugal. Na realidade, já trabalhávamos há alguns anos com Portugal fruto de uma parceria que tínhamos com os escritórios da Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva & Associados. Agora operamos como escritório independente.

Quais os principais projectos que pretendem desenvolver a curto prazo?

Queremos recrutar mais profissionais, crescer e fazer o percurso normal de uma sociedade de advogados internacional em expansão. Temos planos a longo prazo, estamos aqui para ficar e esse é o passo seguinte para a nossa expansão, quer pela natureza das operações e a nacionalidade dos advogados, pois temos um ADN chinês e português, quer pela proximidade dos dois países e pelo fluxo de investimento que existe nos dois sentidos. Achamos que uma sociedade internacional nascida em Macau está tendencialmente posicionada nestes dois fluxos de investimento. O nosso plano é fazer crescer a nossa assistência e sermos a sociedade internacional de advogados que assiste os clientes nas suas necessidades jurídicas e nas suas relações entre Portugal e China.

Mais do que uma questão estratégica, o estabelecimento do escritório em Lisboa não é também uma questão de sobrevivência, tendo em conta a situação em Macau, com a redução da comunidade portuguesa, por exemplo? O passo natural para as sociedades de advogados em Macau é mesmo a internacionalização?

Acho que sobrevivência é uma palavra um pouco pesada. O plano de internacionalização com uma presença em Portugal é até do tempo pré-pandemia. Obviamente que a pandemia veio desacelerar o ritmo e obrigou-nos a gerir os nossos esforços de outra maneira. Já sentíamos esta necessidade. Independentemente das circunstâncias que acontecem neste momento em Macau, compreendemos que elas têm impacto na comunidade portuguesa, porque torna difícil as viagens, as pessoas não têm como tirar férias, e para nós faz sentido uma diversificação. Macau é o centro da nossa actividade, continuamos a ter um projecto de longo prazo para Macau. Continuamos convictos da retoma de Macau e do regresso à normalidade. Há aqui um elemento de diversificação e internacionalização. Não lhe chamo sobrevivência, mas [este passo] ajuda, evidentemente.

Esta estratégia em relação a Macau passa por Hengqin?

Estamos atentos a todos os desenvolvimentos que estão a ser feitos no âmbito do estreitamento da ligação de Macau com a China. Hengqin surge no contexto do estreitamento de relações com a China, tal como a Grande Baía, e queremos fazer parte desse projecto. Achamos que Hengqin está ainda numa fase de evolução e ainda se vai revelar num futuro próximo qual será o papel de Macau e dos profissionais como os advogados. Mas Hengqin faz, sem dúvida, parte dos nossos planos e é um horizonte para o qual olhamos com interesse.

Promovem actividades em diversas áreas como consultoria e alta finança. Que perfil traça dos vossos clientes?

São clientes que, ou querem fazer o movimento para a entrada no mercado português, seja a título individual ou colectivo, ou são clientes que estão cá em Portugal e que sentem necessidade de ter um serviço jurídico mais focado neles e ciente das especificidades culturais. É fundamental trazermos essa compreensão aos clientes. No fundo, somos a ponte entre estas duas culturas. Eu vivi quase 14 anos em Macau, temos advogados chineses, e temos uma polinização cultural que é um elemento diferenciador. O nosso perfil de cliente é aquele que já tem alguns investimentos no mercado português ou quer fazer investimentos com algum volume e têm necessidade de ter um maior apoio na área do Direito português e de um aconselhamento estratégico. A entrada no mercado com barreiras de língua, culturais e jurídicas pode ser um processo difícil. Nós fazemos a assessoria jurídica, mas também ajudamos os clientes a navegar nesta nova realidade.

A China investe em Portugal há muitos anos, houve a política dos vistos Gold. Como descreve hoje o investimento chinês em Portugal?

Portugal é um parceiro de negócios natural da China, e somos o mais antigo de todos. Achamos que a relação comercial entre Portugal e a China é estratégica para os dois países. Evidentemente quando se criam certas condições privilegiadas de investimento existe um ciclo de um maior investimento, menos focado e mais de oportunidades, e depois vai-se refinando até se tornar um investimento menos quantitativo e mais qualitativo. É isso que vai acontecer. Existe uma lente covid nos últimos dois anos que distorce todas as análises que se possam fazer, mas achamos que o apetite [pelo investimento] continua. O futuro vai ser marcado por investimentos mais estruturados e qualitativos, focados em áreas de interesse específicas.

Macau pretende desenvolver o seu sector financeiro…

E tem feito alguns desenvolvimentos, no âmbito do mercado das obrigações. Tem feito algumas reformas. A reforma do sistema financeiro tem sido feita e é uma área em que somos bastante activos.

Face a esse mercado de obrigações, há interesse da parte das empresas portuguesas, incluindo no projecto da plataforma comercial?

A questão da plataforma é uma discussão antiga.

Parece um slogan.

Não é um slogan, mas sim um desígnio. Como todos os desígnios demora tempo a ser implementado e depende de uma confluência de factores. Acho que estão a convergir mais. O mercado de obrigações é um sistema de capitalização de empresas interessante em Macau. Falta ainda, e achamos que temos um papel nisso, algum reconhecimento de parte a parte. Falta a sensibilização das entidades para o sistema jurídico que é semelhante ao português, o que oferece algumas garantias, nomeadamente o facto de as leis estarem em português. Em Macau, onde são emitidas e vendidas as obrigações, falta a sensibilização do mercado local para o que são as empresas portuguesas. Existe interesse, mas é preciso ainda algum trabalho de fundo de sensibilização e de um maior conhecimento das ferramentas dos dois mercados. É essa ponte que queremos fazer.

Há ainda um desconhecimento, junto das empresas portuguesas, do potencial de Macau?

É difícil dizer que há uma falta de conhecimento. Qualquer pessoa de qualquer empresa grande em Portugal reconhece que Macau é um mercado com potencial. Mas falta ainda o meio logístico na supressão da distância cultural que há entre as duas realidades. Macau continua a ser um mercado muito distante e que precisa de intérpretes que o conheçam bem para o auxílio nessa entrada [das empresas].

Até que ponto a política covid zero tem impacto nas relações comerciais entre os dois países e na vossa actividade em particular?

A paralisação da entrada de pessoas não faz com que as situações jurídicas do dia-a-dia não continuem a existir. Continuamos a ter muito trabalho [com o mercado chinês]. Sentimos a economia e as perguntas que os nossos clientes nos fazem virados para a ideia de que estas restrições são a prazo. A ideia é como pode haver uma melhor preparação para o ciclo que virá a seguir. Penso que estas restrições são temporárias e o comportamento dos agentes económicos e nós, como auxiliar de negócios, terá a ver com isso. Acho que nos próximos meses as medidas vão começar a ser progressivamente aligeiradas e confio que, a curto prazo, teremos algo parecido com a normalidade.

13 Out 2022

Paul Pun: “Problemas sociais tornaram-se mais complexos”

Recentemente escolhido para um novo mandato de três anos à frente do Conselho Profissional dos Assistentes Sociais, Paul Pun, que é também secretário-geral da Caritas, diz que há uma maior necessidade destes profissionais devido ao impacto da crise económica. Paul Pun fala da tendência de existirem mais jovens a escolher esta profissão e que, para já, não é a altura certa para flexibilizar o recrutamento ao exterior

 

Acaba de ser escolhido para um novo mandato de três anos à frente do Conselho Profissional dos Assistentes Sociais. Que planos tem para este cargo?

É a segunda vez que ocupo este lugar. Precisamos de seguir a missão principal segundo a lei, porque o Conselho tem como objectivo a promoção do desenvolvimento profissional dos assistentes sociais. Queremos manter bons contactos com a classe, ouvindo as suas ideias em prol do crescimento profissional. Temos cerca de dois mil assistentes sociais em Macau e há que garantir que seguem a direcção certa na prestação dos serviços à comunidade. Este não é o trabalho de uma só pessoa e todo o Conselho tem de trabalhar em conjunto. É apenas o meu segundo mandato e, para mim, é ainda uma novidade. Temos de respeitar as diferentes formas de pensar, é um trabalho de grupo. No meu dia-a-dia sempre servi os outros, e temos de continuar a fazer bem o nosso trabalho mesmo que os outros nem sempre tenham conhecimento disso.

Acha que são necessários mais assistentes sociais, tendo em conta as questões que surgiram com a pandemia, como o desemprego e maiores dificuldades financeiras?

Claro que hoje há uma maior procura por assistentes sociais, pois os problemas sociais tornaram-se mais complexos e é necessária mais ajuda para os que enfrentam maiores dificuldades. Esta é uma profissão que visa ajudar os que estão mais vulneráveis a encontrar esperança e um caminho por si próprios e junto das suas famílias. Claro que com mais recursos teríamos mais assistentes sociais para preencher esta lacuna. Se tivermos mais lares de idosos vamos necessitar de mais assistentes sociais. Actualmente, há um grande número de jovens interessados em fazer trabalho social, abraçando uma profissão em que podem ajudar a comunidade. Vejo, junto dos meus colegas, que há cada vez mais pessoas a aderir à área do serviço social, o que é uma boa tendência.

Porque é que há uma maior procura por essa área profissional? Os salários são suficientemente atractivos?

No passado, a profissão de assistente social não era muito atractiva, e muitos hesitavam na hora de a escolher. Mas agora esta área, não apenas por causa de uma maior estabilidade salarial, permite que os jovens conheçam mais pessoas e possam lidar com diferentes áreas, tendo um conhecimento mais profundo da sociedade. Os jovens procuram desafios e penso que este tipo de trabalho, apesar de ter muitas pressões e ser árduo, traz-lhes mudanças e melhorias. Sentem-se melhor se ajudarem o outro. Os assistentes sociais não têm um horário de trabalho fixo e têm, muitas vezes, de trabalhar muitas horas, prestando atenção às pessoas quando estas enfrentam problemas. Eu, quando faço trabalho social, não tenho pausas. Os jovens sabem que não é um trabalho fácil.

Como descreve a qualidade dos cursos superiores na área do serviço social?

Não basta olhar para as universidades locais e para a qualidade dos cursos que oferecem. O nosso Conselho já estabeleceu os critérios base para garantir uma prática de qualidade da profissão. Os cursos que temos em Macau estão num nível diferente dos do estrangeiro. As instituições do ensino superior de Macau têm a vantagem da sua localização. Mas claro que a profissão não pode ficar apenas restringida a Macau e temos de olhar para fora, para outras questões ligadas ao desenvolvimento do serviço social lá fora. Tudo para continuarmos a progredir na formação e captar mais profissionais. Não podemos dizer que somos melhores do que lá fora, ou que os cursos no estrangeiro são melhores do que os nossos. Temos de apostar no desenvolvimento dos nossos programas educativos. Eu estudei lá fora, mas também em Macau, portanto sei a diferença. Na verdade, gostei de estudar cá também.

É necessária uma maior flexibilidade para contratar assistentes sociais do estrangeiro?

Nós, como Conselho, não abordamos esse tema. Mas no trabalho de campo as pessoas pensam uma coisa diferente. Algumas pessoas podem defender que são necessárias oportunidades para profissionais de fora, mas há quem queira preservar as vagas para os locais. Não sabemos que progressos serão feitos a esse nível, mas penso que, actualmente, os locais precisam de emprego. Nesta fase, apenas os residentes podem ser assistentes sociais, mas se no futuro haverá maior abertura aos não residentes, tudo vai depender das necessidades do terreno. Posso dizer que, nesta fase, não é uma boa altura para recrutar profissionais lá fora. Será necessária uma discussão em prol de um ajustamento da legislação.

Houve críticas sobre a falta de transparência acerca da escolha dos vogais para este Conselho. Alguns profissionais disseram não se sentir representados com este órgão. Esses problemas estão resolvidos?

Temos toda a abertura para falar. O Conselho tem um papel único, temos membros propostos pelo Governo e outros pelo próprio Conselho. E da nossa parte temos uma total abertura, não queremos excluir ninguém, mas o número [de membros escolhidos pelo Conselho] é limitado. Respeitamos o desejo do Governo em recomendar membros para o Conselho. Há quem esteja satisfeito e quem não esteja, mas é a sociedade a expressar diferentes vozes. Respeitamos todos os contributos dados para a profissão de assistente social. Se um dia já não estiver no Conselho, não vou dizer que é uma injustiça. Foi um canal a que tive acesso para ajudar a desenvolver a profissão. Temos de respeitar o processo de decisão do Governo.

O trabalho de assistente social enfrenta hoje mais desafios do que antes?

Sem dúvida que é mais desafiante, embora ajudar os outros sempre tenha sido. Amanhã teremos mais desafios, mas isso não significa que os profissionais desistam ou deixem de ter ambições.

10 Out 2022