Violência doméstica | Associação organiza workshops com sobreviventes

Cecília Ho, académica e conselheira da Associação de Apoio Mútuo às Vítimas de Violência Doméstica de Macau, relata ao HM o mais recente projecto da entidade: ensinar sobreviventes de violência doméstica a relatar histórias de vida e traumas vividos. Já foram realizados dois workshops

Qual a importância deste projecto em Macau? Parece ser algo inovador.

Em Macau, a ideia de envolver os utentes na prática e educação em torno do trabalho social é algo pouco popular. A maioria dos utentes são encarados como “beneficiários de serviços”, enquanto as vítimas de violência doméstica são tidas como “frágeis” e “vulneráveis”. Estas vítimas podem mais facilmente ser afectadas pela exposição das suas experiências publicamente. Assim, envolver os sobreviventes de violência doméstica na educação do público e dos profissionais envolvidos no combate e prevenção deste tipo de crime é uma abordagem inovadora e progressista. O lema da nossa associação é “Nada sobre nós, sem nós”, e, assim, o conceito de envolvimento dos utentes pode relacionar-se com as ideias de democracia, capacidade e desenvolvimento de serviços. Na Associação de Apoio Mútuo às Vítimas de Violência Doméstica de Macau (MDVVMS, na sigla inglesa) temos conseguido envolver diferentes voluntários e mentores de diferentes origens. Somos todos iguais e respeitamo-nos mutuamente no intuito de ouvir as vozes dos sobreviventes de violência doméstica que nos relatam as histórias pelas quais passaram. Mas também reconhecemos o conhecimento e sabedoria destes utentes durante o período de sobrevivência em contexto de relações abusivas. As suas experiências e conhecimentos são preciosos e podem constituir um grande contributo para que a nossa sociedade compreenda o problema social, com raízes profundas, que é a violência doméstica, e que ainda é um tema estigmatizado. Daí termos criado a série de workshops “Formação em Biblioteca Humana”, destinada a sobreviventes de violência doméstica.

Na prática como funcionam estes workshops?

Recorrendo a diferentes meios artísticos, como o desenho de auto-retratos, a dramatização interactiva com outras pessoas, a escrita de uma linha cronológica da história de vida e o diálogo conversacional, o nosso workshop visa, em primeiro lugar, permitir que as mulheres sobreviventes cuidem de si. Em segundo lugar, pretende-se que se curem do trauma, ouvindo a sua voz interior, para que possam exprimir emoções profundas como a raiva, tristeza ou tranquilidade. Depois, queremos que as vítimas explorem a sua força interior com o apoio dos nossos mentores e apoiantes. Finalmente, iremos oferecer alguns workshops públicos de formação contra a violência doméstica para que sobreviventes de violência doméstica partilhem as suas histórias, utilizando o formato de biblioteca humana.

Concretamente, como pode este formato ser aplicado em Macau, tendo em conta as características da sociedade?

O conceito de “Biblioteca Humana” cria um espaço seguro para o diálogo, em que diversos temas são discutidos abertamente entre os nossos “livros humanos” e os “leitores”. As sobreviventes de violência doméstica são um grupo frequentemente sujeito a preconceitos, estigmatização ou discriminação, especialmente as esposas recém-migradas da China continental para Macau. Não é fácil implementar este modelo, mas eu, como educadora de trabalho social, tenho vindo a implementar este modelo há mais de 17 anos, pelo que já faz parte da minha abordagem de ensino, especialmente no meu curso de “Trabalho social e diversidade” e “Estudos de género”. Tenho já uma rede, ou “colecções de livros humanos” relacionados com diferentes temas sensíveis e com pessoas alvo de estigma, como as minorias sexuais, toxicodependentes, trabalhadores domésticos estrangeiros e sobreviventes de violência doméstica.

Essa rede participou neste projecto?

Convidei-os a assistir à minha aula para partilharem a sua experiência e dialogarem cara a cara com os alunos de serviço social. Falaram brevemente sobre as regras de leitura dos “livros humanos”, como garantir o respeito, privacidade e o não julgamento, mediante a ideia de que não se deve “julgar o livro pela capa”. Assim, precisamos de mergulhar para compreender as histórias de vida. Combinando o conceito de “Biblioteca Humana” com a comunidade chinesa local, treinamos as nossas sobreviventes e deixamo-las sentir-se seguras e confortáveis para partilhar. Damos-lhes todo o apoio e respeitamos o nível de revelação e participação. As suas histórias devem ser complicadas e precisam de ser organizadas com alguns incidentes significativos, por isso, aprendemos com algumas experiências no estrangeiro, nomeadamente o Centro Nacional de Recursos sobre a Violência Doméstica, nos Estados Unidos da América, que concebeu um guia para ajudar os sobreviventes a explorar a jornada de partilha da sua história com o público. Em suma, a nossa associação tem explorado oportunidades para que sobreviventes partilhem as suas histórias, como realizar discursos para membros do Governo, dar entrevistas aos meios de comunicação, de forma anónima, ou simplesmente dar encorajamento a vítimas durante uma sessão de grupo. Também prestamos formação a assistentes sociais, e no ano passado, por exemplo, demos formação a cerca de 50 conselheiros escolares da Caritas. A resposta foi muito encorajadora e positiva, os participantes sentiram-se muito tocados e compreensivos em relação aos livros dos sobreviventes de violência doméstica, que também se sentiram fortalecidos após o diálogo presencial.

A associação está também a promover um debate público com consultores jurídicos sobre violência doméstica que decorre este domingo. Quais são os principais objectivos deste evento?

Queremos fazer com que o público oiça as vozes dos sobreviventes de violência doméstica, especialmente os seus pontos de vista e a sua experiência no encontro de muitos obstáculos no processo judicial, tais como a inexistência de aconselhamento jurídico adaptado para as vítimas de violência doméstica. A maioria dos casos foram arquivados, por serem tratados como ofensas à integridade física, que um crime semi-público que depende de queixa da vítima, em vez de violência doméstica. Hoje realizamos um primeiro workshop sobre a questão legislativa, e ouvimos também as opiniões dos sobreviventes.

Continua a ser complexo um processo judicial para uma vítima?

As vítimas de violência doméstica enfrentam muitas questões jurídicas relacionadas com divórcio, direitos parentais, pensão de alimentos. Por exemplo, os ex-maridos não pagam a pensão de alimentos regularmente, como podem as mulheres ir a tribunal? Mas os profissionais, nomeadamente os assistentes sociais, têm de ter consciência de que têm a atitude de culpabilizar as vítimas, o que os impede de mostrar empatia e compreensão para com os sobreviventes. Isso cria desconfiança entre profissionais e vítimas, o que não ajuda no processo de intervenção e cura. Esperamos, em última análise, apoiar as mulheres que são vítimas ou sobreviventes a lutarem pelos seus direitos e a ajudarem-se mutuamente, especialmente se viveram experiências de violência doméstica semelhantes. Os nossos workshops têm como missão transformar as experiências abusivas e traumáticas das vítimas em força, conhecimento, sabedoria e paixão pela área dos direitos humanos. A partilha pode, sem dúvida, ser útil para motivar mais pessoas com experiências semelhantes a ganharem coragem para acabar com o ciclo de violência. Também nos preocupamos muito em acabar com a transmissão intergeracional da violência, ou seja, cenários de exposição à violência familiar nas crianças. Para isso, colaborámos com uma organização não governamental e recrutámos adolescentes como voluntários para cuidarem e organizarem actividades para os filhos de sobreviventes de violência doméstica. Podemos testemunhar o impacto negativo sobre as crianças que testemunham a violência parental no grupo de crianças paralelo ao nosso grupo de mulheres.

23 Jul 2024

Augusto Nogueira, presidente da ARTM: “Esperamos que a lei da droga seja revista”

Depois de assinalar o Dia Mundial Contra a Droga e Tráfico Ilícito, a Associação de Reabilitação dos Toxicodependentes de Macau organiza hoje e amanhã na Universidade de Macau um painel de conferências intitulado “Tratamento de perturbações relacionadas com o consumo de substâncias”. Augusto Nogueira, presidente da associação, faz uma antevisão do evento e apresenta algumas sugestões

 

Quais os principais objectivos desta conferência na Universidade de Macau?

Queremos promover o tratamento em contexto de comunidade terapêutica como a opção de maior sucesso em termos de recuperação em detrimento de medidas mais punitivas. Também queremos mostrar os bons serviços que a ARTM tem prestado em termos de tratamento e modernização terapêutica graças ao apoio do Instituto de Acção Social e ao elevado conhecimento dos nossos colaboradores. Tal vai servir para um desenvolvimento das acções de intercâmbio e evidência dos sucessos de outras comunidades terapêuticas.

Um dos pontos deste painel de conferências passa pela entrega de um certificado por parte da ATCA [Australian Therapeutic Community Association] à ARTM. De que se trata e quais os principais benefícios para o vosso trabalho em Macau?

Fomos alvos de uma revisão por parte da ATCA durante uma semana em termos de todos os serviços que providenciamos ao nível da comunidade terapêutica, tratamento, regras e normas adoptadas, sem esquecer as formas de comunicação. Cumprimos com os requisitos e padrões da ATCA e demonstrámos um compromisso ao nível da qualidade e segurança. Este certificado irá fazer com que estejamos mediante revisão e análise constantes dos nossos serviços, o que vai exigir mais de nós para que mais pessoas possam recuperar dos seus problemas. Além disso, o certificado que nos foi atribuído vai constituir uma prova de qualidade e de credibilidade dos nossos serviços terapêuticos.

Irão participar no painel de conferências representantes de países da Ásia, incluindo a China, cujas realidades de tráfico e consumo são diferentes. A ideia é reunir consenso e aprendizagens?

Pretendemos partilhar aprendizagens, métodos e observar o que os outros fazem. Por exemplo, o representante da Vila Maraine, em Itália, vai explicar a cooperação que tem com o poder judicial, em que pessoas com problemas de toxicodependência e de tráfico em pequenas quantidades, ou seja, para sustentar o consumo, tem a possibilidade de poderem ser encaminhados para uma comunidade terapêutica após a condenação a prisão efectiva. Algumas pessoas com pulseira electrónica e outros não necessitam de o fazer, o que acho interessante.

A SARDA [The Society for the Aid and Rehabilitation of Drug Abusers] é uma associação com a qual a ARTM tem laços de amizade e de apoio há muitos anos. É uma associação que também segue os princípios de comunidade terapêutica, mas com outras vertentes, como serviços de metadona. A SARDA tem uma grande dimensão em Hong Kong. Teremos ainda uma mesa redonda sobre a prevenção, algo que na Europa caiu em desuso com consequências negativas bem visíveis, como podemos observar em Portugal. O maior consenso que poderá sair desta conferência é que a prevenção, tratamento e redução de danos têm de estar de mãos dadas. Nunca devemos esquecer que o grande objectivo é a recuperação da pessoa e não a continuidade na dependência.

De Portugal chega a representação de “Ares do Pinhal”, uma comunidade terapêutica. Quais as grandes diferenças e semelhanças com a ARTM em termos de métodos?

As duas instituições têm abordagens bastante semelhantes, embora a “Ares do Pinhal” esteja a desenvolver um trabalho de excelência e de uma maior dimensão a nível de redução de danos, bem como a prestação de apoio a pessoas em situação de sem abrigo. Trata-se de realidades diferentes em comparação com Macau e tenho a certeza que vamos todos aprender muito com eles. Muitas vezes as aprendizagens acontecem, mas as circunstâncias reais não permitem a sua aplicação. No entanto, nós, ARTM, estaremos preparados caso a situação mude com o aumento exponencial do consumo, ou o regresso ao consumo de heroína. Tanto a ARTM como a “Ares do Pinhal” têm um modelo holístico e isso é de valorizar, pois não há muitas instituições a trabalhar desta forma, em que se trabalha o problema da dependência como um todo. Juntam-se os cenários de prevenção, tratamento, reinserção e redução de danos.

Nesta conferência vai ser apresentado o projecto de integração social “Hold On To Hope”. Que balanço faz do trabalho feito até aqui?

Tem sido um balanço bastante positivo, pois já passaram pelo projecto 36 pessoas, sendo que 26 estão reinseridas com sucesso. O projecto “H2H” não visa apenas recolocar as pessoas no mercado de trabalho, mas sobretudo ensinar-lhes valores como a comunicação, pontualidade, responsabilidade e disciplina. Já fizemos quase 30 exposições, cerca de uma por mês. Estamos muito contentes com o projecto que tem sido alvo de grandes elogios a nível mundial na nossa área de trabalho. É pena o facto de continuarmos a ter dificuldades com a falta de estacionamento em Ka-Hó. Seria bom que o Governo resolvesse este problema para o desenvolvimento do projecto e da própria vila.

Que respostas novas para a RAEM podem sair desta conferência?

A resposta nova que pode sair deste evento é o começo de um maior encaminhamento de pessoas com problemas de adição para a ARTM e outras entidades equivalentes. Esperamos também que a lei da droga seja revista para exigir mais provas de tráfico, para que [as autoridades] não partam do pressuposto de que determinada quantidade de droga é para tráfico. Isso iria evitar que muitas pessoas fossem presas, podendo, em alternativa, obter um tratamento adequado.

A tendência mundial é de discriminalização do consumo de droga, mas em Macau a tendência parece ser oposta, e recentemente até uma técnica da Polícia Judiciária (PJ) defendeu, num estudo académico, a possibilidade de pena de morte. Qual o seu comentário sobre este panorama no território?

Não sei se a tendência mundial é mesmo essa, pois nos muitos países que antes tinham essa convicção estão neste momento a ponderar a situação de outra forma, muito devido ao consumo de Fentanyl, onde a redução de danos está a falhar redondamente. Além disso, existem muitos grupos de activistas consumidores que fazem uma comunicação muito agressiva, o que tem irritado alguns países. Estes grupos não pedem apenas descriminalização, mas sim a legalização de todas as drogas. Muita coisa está a mudar e muitas pessoas estão a morrer todos os dias. Muitos dos países estão de acordo com a necessidade de haver serviços de redução de danos com qualidade e o objectivo de incentivar essas pessoas a procurar ajuda, mas a descriminalizar como um direito é algo que está a perder força. Para se dar prioridade ao tratamento não é necessário mudar a lei na sua totalidade, mas fazer apenas alguns ajustes. Quanto ao comentário da técnica da PJ, não tem fundamento nenhum e nem merecer ser comentado.

Após a pandemia, que se reflectiu nas formas de tráfico e consumo, Macau mantém a mesma situação, ou verificaram-se alterações profundas na forma de comprar e consumir?

Julgava-se que iria existir um aumento exponencial após a pandemia, mas o que temos observado é o oposto. Existiu um aumento gradual, mas pouco significativo. Mesmo ao nível do tráfico tem sido pontual, o que pode ser sinal de um bom trabalho da nossa polícia e dos trabalhos de prevenção de diversas instituições, inclusive do nosso projecto “Be Cool”. No entanto, tudo isto pode mudar muito rapidamente e temos de estar atentos. É natural que exista consumo escondido, e será sempre escondido quando o consumo é criminalizado. Devemos estar contentes com a corrente situação e desejar que assim continue.

18 Jul 2024

Luís Bernardino, investigador e docente universitário: “Passagem de Macau para a China foi exemplar”

Luís Bernardino, docente da Universidade Autónoma de Lisboa, faz parte do recém-criado think-tank “Global Strategic Platform”, que irá organizar uma série de eventos centrados na China. O programa está a ser preparado e não deixa Macau de fora. Luís Bernardino fala ainda sobre o sucesso da transição de Macau

 

 

Foi apresentado, há dias, o projecto “China Sessions” no âmbito da “Global Strategic Platform”. Em que consiste esta iniciativa?

A “Global Strategic Platform” é uma plataforma virtual que liga professores que estão nos EUA, Angola e Portugal e que foi criada há cerca de dois anos para organizar eventos que sejam de carácter global nas áreas da geopolítica e geoestratégica, ou mesmo relações internacionais. Nessa altura, criámos as “Africa Sessions” que, de certa forma, nos últimos dois anos, tem feito um caminho no sentido de ter conferências sobre os temas da agenda africana. No ano passado surgiu-nos a ideia de ampliar este projecto, ou seja, criar dois outros pilares. Um deles é o “Transatlantic Sessions”, ou seja, estudar as relações transatlânticas, e começámos a fazer isso, e agora queremos criar uma terceira área de estudos sobre a China, com as “China Sessions”. Este segmento pretende ser um conjunto de eventos que procuramos criar online, embora alguns eventos sejam presenciais, com transmissão para todo o mundo, sobre a problemática da China no mundo. A ver pelo primeiro tema, e a adesão das pessoas, temos um bom acolhimento. Fizemos esta sessão de abertura no Centro Científico e Cultural de Macau e isso foi muito importante porque essa relação tem de estar ligada a Macau.

De que forma?

Macau desempenha um papel muito importante na relação da China com África, e se quisermos ser mais concretos, com os países de língua portuguesa. Isso parece-nos ser também um vector importante de análise. Portanto, queremos trazer essas temáticas para as “China Sessions”, cujo programa de actividades estamos agora a desenvolver.

Será uma espécie de think-tank?

Será um think-tank que pretende abrir a discussão ao mundo global utilizando as ferramentas digitais, congregando pessoas de todos os quadrantes, a nível mundial, num tema que nos parece muito actual por várias ordens de ideias. Desde logo porque a China já é um actor global e as dinâmicas do país têm impacto com todos os outros actores. É importante que este projecto possa realizar essa análise. Vamos ter vários campos. A primeira conferência foi sobre a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”, e vamos já fazer uma segunda sessão em que falaremos sobre os dez anos da mesma iniciativa, mas numa perspectiva mais económica. Depois queremos abrir espaço para falar sobre segurança, cultura, diplomacia. São esses os objectivos que temos. Vamos abrir este projecto a todos, embora tenhamos uma dificuldade acrescida quanto à língua, nomeadamente ao chinês e dos fusos horários. Se estamos a estudar, comentar e a analisar a China, também queremos ser ouvidos na China e que as nossas actividades cheguem ao país e a Macau. Temos algumas ideias nesse sentido e queremos encontrar um equilíbrio entre aquilo que são as necessidades de ajustamento de temas com os tempos e as horas.

Vão ser estabelecidas mais ligações a Macau?

Depende de cada um dos temas e de cada um de nós [participantes nas “China Sessions”]. Conheço relativamente bem Macau, a Fundação Rui Cunha, as universidades, e vamos tentar gerar oportunidades. Estamos disponíveis para nos associarmos na realização de conferências, por exemplo. Queremos aprofundar algumas das nossas experiências que já concretizamos nas “Africa Sessions” para as “China Sessions”. Vamos todos ganhar com isso porque teremos diferentes painéis com especialistas que nos vão mostrar aquilo que, de facto, a China está a fazer no mundo. É importante compreendermos essa dinâmica crescente da China nos vários vectores em que se posiciona, não apenas na “Faixa e Rota”, mas demais áreas conexas.

Que balanço faz dos dez anos da iniciativa lançada por Pequim?

Penso que há ainda muito a descobrir. Em dez anos não dá ainda para ver perfeitamente o alcance daquilo que são as dinâmicas de “Uma Faixa, Uma Rota”. Uma coisa me parece clara é a intenção da China de querer ser uma potência global, mas também penso que não há ainda uma ideia concreta de como isso vai acontecer. Para ser uma potência global tem de ser uma potência económica e militar, e também ao nível diplomático, e esses vectores todos têm de estar congregados numa estratégia nacional que às vezes me parece algo difusa.

Por definir?

Por definir em alguns aspectos. Obviamente que “Uma Faixa, Uma Rota” é um projecto global, de grande alcance, de longo termo, e creio que estes dez anos também serviram para a China aprofundar e desenvolver um pouco da sua estratégia de abordagem global. Terão de ser alinhados outros instrumentos do poder com a parte económica.

Macau tem também um certo posicionamento a cumprir nesta iniciativa. Considera que tem desempenhado o seu papel da melhor forma no âmbito de “Uma Faixa, Uma Rota”?

Penso que sim. Macau desempenha um papel muito importante, não apenas na relação com os países de língua portuguesa, mas também com a geografia global. Macau, obviamente, representa também para a China uma forma diferente de olhar para esta iniciativa. Eventualmente, da parte da CPLP [Comunidades dos Países de Língua Portuguesa] e países lusófonos não há, ainda, um completo entendimento e perspectiva de como isto pode ser benéfico na transacção comercial e na linha do que será a geopolítica do futuro. Portanto, há uma aprendizagem que deve ser feita, e Macau representa uma coisa interessante. Muitas vezes discutimos a questão das independências e a passagem de Macau [no que respeita à administração portuguesa] para a China foi, de facto, exemplar, permitindo criar estruturas, dinâmicas, consensos e projectar o território numa parceria que facilita quem está na China e em Macau. O território é agora uma porta de entrada para os países que querem apostar na China como entidade parceria, e também na construção de uma relação comercial. Esse é um activo estratégico de Macau na geopolítica da relação da China com o mundo. Vamos ver se a China consegue, efectivamente, perceber isso e potenciar esse instrumento de política externa que é e será Macau. De certa forma, o tamanho não conta, neste caso. Macau é um território de tamanho muito reduzido, mas tem uma dimensão geoestratégica muito grande. Essa é condição para que Macau seja vista pela China e pelo mundo como um espaço geoestratégico relevante no contexto global.

Celebra-se este ano o 25º aniversário da transição da administração portuguesa de Macau para a China. O balanço que faz do território é positivo? Macau tem sabido posicionar-se em todos estes contextos?

Sim. Há de facto muitas coisas positivas. Foi bom o facto de haver uma parte cultural, da lusofonia, da língua e cultura portuguesas que se mantém. Estive em Macau e gostei de ver o património, o Clube Militar, e sentimo-nos muito em casa em Macau, com tanta história que ficou num espaço tão longínquo e distinto. Portugal fez uma transição exemplar que é vista como um bom exemplo na transição entre Estados. A minha avaliação é positiva e veremos se temos capacidade de apostar e fortalecer esta relação e perceber que Macau é, de facto, importante nesta nossa ligação com a China e CPLP.

15 Jul 2024

João Graça Gomes, engenheiro e membro do Conselho Mundial de Energia: “Macau podia ser um caso de teste”

João Graça Gomes, engenheiro sénior numa joint-venture ligada à EDP e China Tree Gorges, e membro do Conselho Mundial de Energia, falou na terça-feira, em Lisboa, sobre o panorama do sector da energia na China e no mundo e de como o país irá liderar nesta área. Em entrevista ao HM, o também membro do Conselho da Diáspora Portuguesa avança algumas sugestões que podem tornar Macau um exemplo em matéria de políticas ambientais sustentáveis

 

Como descreve a evolução do sector energético na China nos últimos anos?

A China tem registado um aumento expressivo do consumo energético, o que reflecte o seu rápido crescimento económico. Nos últimos 20 anos, o consumo primário de energia na China cresceu de 11.800 TWh [Terawatt Hours, medida de consumo energético] em 2000 para 47.428 TWh em 2023. Este crescimento foi particularmente acentuado nas regiões costeiras do país. Houve uma redução na dependência do carvão, embora este ainda represente 54 por cento do consumo energético. Em contrapartida, houve um aumento significativo no consumo de gás natural e de fontes renováveis, especialmente energia eólica e solar. A dependência externa da China aumentou de cerca de seis por cento em 2000 para 22 por cento em 2020. Essa tendência é especialmente evidente nas importações de produtos petrolíferos e gás natural. A China importa principalmente petróleo da Rússia, Arábia Saudita e Iraque. Já nas importações de gás natural, destacam-se a Austrália, Países Baixos e Emirados Árabes Unidos como principais fornecedores.

E relativamente às exportações de energia?

A China destaca-se por uma presença robusta na “supply-chain” [cadeia de fornecimento] mundial das energias renováveis. O país é um dos maiores produtores e exportadores de aerogeradores, painéis solares, baterias eléctricas e electrolisadores. A China também se destaca pelas elevadas taxas de extração e processamento de terras raras, cobalto, lítio e outros minerais essenciais para o desenvolvimento e suporte da infra-estrutura eléctrica. O país tem-se consolidado como um líder global no fornecimento de tecnologia que possibilita a transição energética.

O processo de Reforma e Abertura, iniciado por Deng Xiaoping contribuiu para que o sector energético tenha crescido, em termos de segmento de mercado, no país?

Desde esse momento, em 1978, que o país tem experimentado um rápido desenvolvimento socioeconómico, que se traduziu num crescimento médio do PIB [Produto Interno Bruto] de nove por cento ao ano. Entre 1978 e 2023, o consumo energético primário cresceu impressionantes 924 por cento, passando de 4.632 TWh para 47.428 TWh. Várias previsões indicam que essa trajectória de crescimento continuará nas próximas décadas. Para ilustrar a magnitude desse avanço, podemos comparar a realidade chinesa com a portuguesa. Em 1978, o consumo energético per capita em Portugal era de 13.054 kWh, enquanto na China era de apenas 4.850 kWh, menos da metade de Portugal. Em 2023, o consumo per capita na China subiu para 33.267 kWh, superando o consumo per capita português de 25.709 kWh. Em termos de segmentos de mercado, a indústria é preponderante, correspondendo a quase 49 por cento do consumo energético total da China. Este é o sector que mais evoluiu, impulsionado pelas reformas económicas que estimularam a industrialização massiva. O segundo sector com maior crescimento é o dos transportes, que agora representa 15 por cento do consumo energético. O sector residencial representa cerca de 16 por cento do consumo energético e tem-se mantido relativamente estável ao longo do tempo.

De que forma Macau pode contribuir para este desenvolvimento do setor energético na China?

Macau é uma região altamente urbanizada e com uma área bastante reduzida. Essas características limitam a instalação de grandes centrais de electricidade renovável. Mas Macau pode desempenhar um papel crucial no desenvolvimento do sector energético na China de diversas formas, especialmente na investigação e inovação.

De que forma?

Criando-se um laboratório urbano para comunidades sustentáveis, em que Macau poderia servir como um caso de teste para o conceito de comunidade energética sustentável e autónoma. A região poder-se-ia focar no desenvolvimento e criação de tecnologias ligadas a energias renováveis, como painéis solares e sistemas de armazenamento de energia com baterias. Essa abordagem pode transformar Macau num modelo de eficiência energética e autossuficiência. Pode-se também apostar na descarbonização dos transportes, reduzindo as emissões de carbono e aumentar a qualidade do ar. A implementação de veículos eléctricos e a construção de uma infra-estrutura de recarga robusta podem posicionar Macau como líder na mobilidade sustentável. Mas pode também ser feita uma aposta no desenvolvimento de tecnologias de dessalinização.

De que forma poderia ser feito?

Através da instalação de centrais de dessalinização abastecidas por energia renovável, que poderia garantir o abastecimento de água de Macau de forma sustentável, minimizando a dependência de recursos hídricos externos e contribuindo para a segurança hídrica.

A nível académico, o que poderia ser implementado nesta área?

Macau pode utilizar as suas universidades e instituições para estimular estudos avançados em sustentabilidade energética. A colaboração com países de língua portuguesa pode trazer novas perspectivas e tecnologias, fortalecendo a posição de Macau como um “hub” de inovação energética. Macau pode estabelecer parcerias para troca de conhecimentos e tecnologias no sector energético. Isso pode incluir projectos conjuntos de pesquisa, desenvolvimento de novas tecnologias e capacitação de recursos humanos. Usando estes princípios, Macau alcançar a neutralidade carbónica, servindo como exemplo inspirador para outras regiões da China e tornar-se um exemplo global de sustentabilidade urbana e inovação tecnológica.

Como descreve o futuro da China no mercado energético mundial?

O Governo da China anunciou em 2020 uma meta para alcançar a neutralidade carbónica até 2060, algo extremamente ambicioso considerando que o país é actualmente o maior emissor de dióxido de carbono do mundo. Estas emissões devem-se principalmente à elevada dependência do carvão para produção eléctrica. No entanto, se a China continuar no caminho da descarbonização, poderá tornar-se uma superpotência energética. O país já é o maior investidor em tecnologias de energia renovável, e essa tendência deve continuar a crescer. A China tem consistentemente superado as suas metas de integração de energias renováveis, estabelecidas nos planos quinquenais do Governo Central. Nos três últimos planos quinquenais, o país ultrapassou largamente as taxas de crescimento previstas para a capacidade instalada de fontes de energia de baixo carbono, tanto renováveis como nuclear. Se a China continuar neste caminho, não só alcançará os seus próprios objectivos ambientais, mas também definirá o futuro do mercado energético mundial. O seu compromisso com a expansão de energias renováveis e a redução de emissões de carbono poderá influenciar políticas energéticas globais.

A energia é, cada vez mais, um factor fundamental nas relações diplomáticas? A China, neste capítulo, tem-se posicionado da melhor forma?

Sim. Citando Henry Kissinger: “Quem controla a energia pode controlar continentes inteiros”. Neste contexto, a China tem se posicionado de maneira estratégica e eficaz. O país desempenha um papel crucial no futuro do sector energético mundial, evidenciado pelo facto de que, entre os dez maiores produtores de painéis solares, sete são empresas chinesas, e quatro dos dez maiores produtores de aerogeradores também são chineses. No mercado de carros eléctricos, que se correlaciona com a transição energética, a BYD, destaca-se como a maior produtora mundial. Além disso, nos últimos anos, a China tem assegurado a aquisição de minas de metais essenciais em diversos países, necessários para a manufactura de baterias eléctricas, microchips e outros equipamentos vitais para a transição energética. Actualmente, a China produz mais de 80 por cento do total global de metais raros, posicionando-se como líder incontestável no suprimento desses recursos críticos. Esta estratégia tem sido extremamente positiva para a China, demonstrando como o país tem investido em áreas-chave para o futuro do sistema energético mundial.

Têm sido evidentes os acordos e investimentos feitos com outros países nesta área?

A China tem investido além de suas fronteiras para aprender mais e facilitar a cooperação energética. Um exemplo claro é Portugal, onde algumas das maiores investidoras no sector energético são empresas chinesas. A maior accionista da EDP é a China Three Gorges, enquanto a maior accionista da REN é a China State Grid. Contudo, é importante lembrar que não é positivo criar uma dependência excessiva de qualquer país, incluindo a China. Os países devem trabalhar para assegurar a sua independência energética, diversificando as suas fontes de energia e fornecedores. A busca por uma matriz energética diversificada e segura é essencial para evitar vulnerabilidades económicas e políticas. Portanto, embora a China tenha se posicionado de maneira muito eficaz no sector energético global, oferecendo oportunidades de cooperação e desenvolvimento, é fundamental que outros países mantenham uma abordagem equilibrada e estratégica para garantir a sua segurança energética a longo prazo.

Acredita no estreitar de relações com Portugal na área energética?

Vejo de forma bastante positiva o investimento chinês no sector energético português. Tem sido duradouro, estável e permitido a várias empresas um crescimento acentuado. No entanto, nos últimos anos, a tensão geopolítica entre a China e os Estados Unidos tem, infelizmente, colocado algumas dificuldades na relação entre Portugal e a China.

Como vê, então, o futuro?

É difícil prever como evoluirá a relação entre os dois países. Espero que os governantes de ambos os países priorizem o realismo político sobre concepções ideológicas e procurem o melhor para ambos os países. Esse enfoque pode se traduzir numa relação mais estreita, com mais oportunidades de negócios e benefícios mútuos. Portugal deverá continuar a aproveitar o dinamismo e a capacidade de investimento da China no sector energético, enquanto a China poderá beneficiar da experiência e inovação de Portugal em energias renováveis e sustentabilidade.

10 Jul 2024

Manuel Palha e Salvador Seabra, Capitão Fausto: Música, a linguagem universal

Os Capitão Fausto actuam hoje no MGM Cotai Theatre às 20h, partilhando o palco com o músico chinês David Huang. Fica a promessa da partilha de sonoridades diferentes e dos grandes êxitos da banda. Em entrevista ao HM, os Capitão Fausto, pelas vozes de Manuel Palha, guitarrista e teclista, e do baterista Salvador Seabra, falam da sua essência, do início tímido e quase por acaso e da escalada até à construção coesa de um colectivo de músicos e amigos

 

Chegaram a Macau há poucos dias e actuam hoje. É a vossa primeira vez no território. Como está a ser a experiência?

Manuel Palha (MP): Chegámos muito curiosos para ver como é este sítio tão longe de Portugal, mas tão próximo ao mesmo tempo. Estamos a gostar imenso, ainda estamos a achar estranho este mundo diferente, mas de uma forma positiva, de andarmos pela calçada portuguesa, termos a cultura portuguesa e chinesa misturada. É uma experiência bastante fora do comum.

O que poderemos esperar do concerto com David Huang?

MP: Na primeira parte vai ser um concerto normal dos Capitão Fausto. Depois o David Huang a meio do espectáculo junta-se a nós e vai cantar uma música connosco, o “Amor, a nossa vida”, e nós iremos cantar uma música dele. Depois, o David Huang fecha o espectáculo com músicas dele.

Como vai a vossa música enquadrar-se com a de David Huang?

MP: São sonoridades bem distintas, mas, apesar disso, a parte que é divertida é que, apesar de estarmos em sítios completamente diferentes do mundo, com culturas diferentes, temos sons e abordagens diferentes, há muita coisa que nos liga. A música tem um lado universal, e esse é o lado que estamos a celebrar. Temos uma música que não é necessariamente o nosso estilo e tipo de som, mas rapidamente nos inteirámos dela. Ainda não tocámos com David Huang, mas tocamos amanhã [quinta-feira] e aí vamos poder trabalhar a ideia do que é a nossa vinda cá, de um certo intercâmbio e viver uma coisa que não é nossa. Essa é a parte divertida de tudo isto.

Têm um novo álbum, “Subida Infinita”, lançado em Março. O que há de novo neste trabalho?

MP: Sentimos sempre que, nem que seja em termos cronológicos, os nossos discos aparecem sempre em fases diferentes das nossas vidas. Este não foi excepção.

Salvador Seabra (SS): À medida que vamos crescendo inevitavelmente vamos mudando um bocado a maneira de fazermos as coisas, mas ainda bem. Para nós é mais interessante. Apesar de haver coisas que se mantêm de disco para disco, e processos de composição que se vão mantendo, há sempre coisas que mudam.

MP: Mudou muita coisa, apareceram filhos, o Francisco Ferreira saiu da banda. Todas estas coisas culminam neste disco, que acho que é diferente dos outros, de várias formas.

São uma das bandas mais sonantes do actual pop-rock português. Consideram que trouxeram uma nova sonoridade a este género musical que se faz em Portugal?

MP: Sabemos, pelo menos, que fizemos o nosso som. Ainda bem que as pessoas têm vindo a ouvir ao longo do tempo, mas é difícil avaliar o impacto que isso possa ter no panorama nacional. Sabemos que há uma verdade de nós os quatro. Sempre que nos juntamos sabemos que sai qualquer coisa que é nossa. O que é bom e interessante.

SS: Toda a nossa música é também influenciada por outra música portuguesa e outra coisa que já foi feita. Fazemos as coisas à nossa maneira e penso que não nos cabe a nós dizer se influenciámos, ou não [o panorama da música portuguesa].

Que influências são essas?

MP: Quando começámos a tocar havia editoras como a “FlorCaveira” e “Amor Fúria”, e havia bandas do norte de que gostávamos muito. Já tocávamos, mas não fazíamos canções em português e essas bandas até nos serviram de inspiração para fazermos canções em português. Quando começaram a haver bandas como os “2008”, “Peixe-Avião”, e em Lisboa tínhamos os “Diabo na Cruz” e o “B-Fachada”, isso levou-nos a ter vontade de fazer música em português e foi uma onda inspiradora.

Os “Capitão Fausto” têm letras que falam de amores, desamores, muitas vezes com um cunho de ironia. Os temas do dia-a-dia são as vossas grandes influências na hora de escrever?

MP: Sim. O Tomás [Wallenstein] é que escreve as letras, sempre. As letras são praticamente sempre sobre nós e a nossa vida, que é aquilo que conhecemos melhor. Sobre lidar com as coisas que nos acontecem. Mas há uma ideia que transparece bastante ao longo dos nossos discos que é o cantar a tristeza. A felicidade que está por detrás da tristeza, que vem depois, que se entrelaça com ela. As coisas que nos acontecem são fortes, mas há sempre qualquer coisa para cantar e a ideia de um novo dia a seguir. Isso tem estado patente nos últimos trabalhos.

Lançaram o primeiro disco em 2011 [“Gazela”]. O que sentiram quando lançaram esse trabalho?

MP: Foi uma fase diferente, éramos jovens na faculdade. Era muito divertido e gravar um disco era algo novo para nós.

SS: Era tudo novo e entusiasmante. Sempre foi, desde que começámos a tocar no liceu, um sonho lançar um disco. Quando aconteceu foi algo extraordinário.

Actuam em Macau no âmbito das celebrações do 10 de Junho. Sentem a responsabilidade de levar, com a vossa música, a cultura portuguesa?

MP: Independentemente do sítio onde vamos tocar, sentimos sempre alguma responsabilidade de darmos o nosso melhor e fazermos o melhor espectáculo possível. Não costumamos tocar fora de Portugal, é muito raro, e esse concerto é entusiasmante também por esse motivo. Sentimos alguma responsabilidade.

A internacionalização é um objectivo vosso?

SS: De certa forma sentimos que a palavra, o idioma, não deveria ser um entrave, porque a música é forte o suficiente para ultrapassar essa barreira da língua. Pelo menos, nós gostamos de pensar assim. Gostávamos de, eventualmente, quebrar essa barreira, sair de Portugal e tocar mais. Não sabemos se vai ser possível, mas o tempo o dirá.

Sempre houve um debate em Portugal sobre bandas portuguesas que cantam e compõem em inglês. Está nos vossos planos compor em inglês, por exemplo?

MP: Não faz parte dos nossos planos. Em inglês iríamos contra aquilo que pensamos e juntamos ao longo do tempo, de ao dizermos uma coisa ela ser verdadeira. Sabermos exactamente o que se está a dizer, com que nuances e palavras. A nossa língua-mãe é a única que nos permite fazer isso de forma que consideramos honesta. O Tomás [Wallenstein] estudou a vida toda num liceu francês, e por isso, quanto muito, teríamos algumas canções em francês, porque o Tomás teria algo de verdadeiro a dizer com aquelas palavras, mais do que em inglês. [Usar o inglês] só com vista à internacionalização, ou para chegar a mais pessoas, é uma coisa que nunca faremos.

Porquê o nome “Capitão Fausto”?

MP: É apenas um nome. Criámos a banda em 2009.

SS: Éramos miúdos e fizemos a banda para tocar no casamento de um tio do Tomás e tínhamos de arranjar um nome. Não há uma história associada ao nome.

MP: Não há uma mensagem propriamente dita, ela surge depois com os nossos discos.

Tendo em conta que têm alguns anos de carreira, como olham para a evolução da banda, como músicos, tendo em conta que saiu um elemento e atravessaram a pandemia?

SS: Fizemos o primeiro disco em 2011, mas já tínhamos a banda há mais tempo. Na verdade, nunca tivemos muitas mudanças, sempre foi uma coisa de nós os cinco a fazer música da mesma forma. Sempre tivemos os mesmos objectivos, que era fazer música e tocar ao vivo. Tivemos a grande mudança com a saída do Francisco, e quando isso aconteceu foi uma coisa muito forte. Ponderámos se a banda deveria continuar ou não, se fazia sentido continuarmos sem ele. Continuámos e ainda bem. Penso que a mudança não foi tão drástica como pensávamos. Fizemos bem essa mudança, todos a aceitaram bem, temos agora novos músicos connosco a tocar ao vivo e tem sido óptimo. A mudança faz parte e quando as pessoas crescem, às vezes dividem-se.

MP: A nossa história também tem a ver com a ideia de termos começado miúdos, cheios de sangue na guelra, a aprender a tocar juntos. Criámos as nossas primeiras bandas juntos. Fizemos um primeiro disco sem pensar muito bem no que estava a acontecer, houve uma recepção minimamente boa que nos levou a querer continuar. Fizemos o segundo disco, fomos para o terceiro e aí começámos a equacionar viver disto. Estávamos a acabar a faculdade e houve ali um momento em que todos nos atirámos e decidimos fazer isto até ao fim. Agora temos um percurso e o que nos liga é o facto de sermos só nós, e a nossa amizade, e como conseguimos meter o trabalho no meio de tudo isto.

7 Jun 2024

Diogo Pereira, académico: “O cargo de procurador jesuíta era muito polivalente”

Diogo Pereira defendeu recentemente a tese de mestrado “Procuradores Jesuítas em Macau: redes de contacto e transferências materiais na primeira metade do século XVII”. O académico da Universidade Nova de Lisboa refere que os procuradores, coordenando vastas redes de influências, foram fundamentais para o sucesso das missões no Oriente

 

Qual a importância da figura do procurador jesuíta no contexto das missões da Companhia de Jesus?

O cargo de procurador era muito polivalente em termos de funções. Há, inclusivamente, um perfil que se vai esboçando, com base nos documentos legais escritos para guiar linhas de actuação do procurador. Este deveria ser dedicado ao seu ofício, naturalmente, garantindo as condições materiais e financeiras das missões, além de ser capaz de trabalhar em múltiplos ambientes, nomeadamente na área de negócios e contabilidade da Companhia de Jesus. O procurador deveria ser também um homem de confiança para a administração, pois seria ele a coordenar o dinheiro das diversas províncias. Era uma figura central, embora tenha sido negligenciada nos últimos anos pela historiografia.

Os procuradores estavam mais próximos das autoridades portuguesas face aos restantes missionários jesuítas?

Em comparação aos missionários teriam, certamente, uma proximidade maior, até porque o procurador respondia a uma tipologia multifacetada. Os que estavam em Lisboa respondiam aos procuradores provinciais, sediados em Goa, Malaca, Macau e nas missões na China e Japão. Depois existiam os procuradores dos colégios que assumiam as responsabilidades materiais de cada residência. Esta era uma rede de carácter global, em que os procuradores estavam estreitamente ligados a Macau. A correspondência que existe prova que havia circulação de materiais e de cartas, bem como de produtos e pessoas, nomeadamente missionários, que passavam por Lisboa em direcção às missões para as quais tinham sido destacados.

Macau era fundamental e foi o ponto de partida para as missões jesuítas na China e Japão.

Sim. Em Macau o procurador jesuíta estava sediado no Colégio de Madre Deus, até 1620 [nas actuais Ruínas de São Paulo] e era alguém que lidava com todo um intercâmbio de cultura, tecnologia e materiais. Era a partir de Macau que tentava adquirir os produtos que vinham do Reino, de Lisboa ou de Malaca, e que iam para a China ou Japão. Dessa forma tentava-se mitigar as necessidades estruturais existentes ao nível das pessoas e do provimento financeiro e material para o sustento dos missionários. Houve uma adaptação em termos de organização, muito em resposta às necessidades que foram aparecendo, sobretudo no Japão, onde a missão jesuíta teve um grande peso até ao início do século XVII, mas que depois se deteriorou. No caso da China, a missão jesuíta estava ligada a Macau por terra, sobretudo a partir de Cantão. Essa missão foi sempre muito complicada, teve sempre actores importantes com contactos locais, tal como mandarins ou a população comum, que às vezes fazia contactos oficiais. [Os jesuítas] tiveram sempre de se adaptar e reger pelo que foi permitir actuar nesses territórios.

Havia, assim, um objectivo religioso e logístico com a actuação dos procuradores jesuítas.

O objetivo da Companhia de Jesus sempre foi a disseminação, à escala global, do catolicismo. A China e o Japão eram dois territórios com uma grande densidade populacional, bastante longínquos, e com um peso muito simbólico a nível geográfico. Os dois países representavam a chegada do catolicismo ao Oriente e a sua disseminação num lugar que, 200 anos antes, não teria sido possível.

Mais do que gerir trocas comerciais ou a própria missão religiosa, o procurador jesuíta também era importante para governar a província em consonância com os Governadores locais.

O procurador sediado em Macau foi fundamental. Um traço disso é o documento que analisei na minha tese que fala na procuratura de Macau instalada no Colégio da Madre de Deus e que saiu, em 1620, para um local exterior. A ideia era que se dissociasse na Companhia de Jesus as esferas espiritual e comercial. Esse documento, escrito pelo padre Manuel Barreto, mostra que havia uma grande interdependência estabelecida pelo procurador jesuíta com os Governadores ou Capitães-Mor de Macau, ou ainda com os próprios mercadores que ganhavam peso nas naus que saíam de Goa para o Japão. Em Macau havia, assim, uma grande estrutura e uma rede de interdependências a nível regional e global.

A sua investigação conclui que os procuradores jesuítas foram fundamentais para o alcance que as missões tiveram no século XVII.

Eu e a minha equipa de trabalho percebemos que os procuradores foram agentes fundamentais e coordenaram uma larga estrutura de produtos e materiais. Todas estas actividades eram estruturais para as províncias e vice-províncias. No Reino, as subvenções régias chegavam facilmente, mas o dinheiro enviado do Reino para Goa e Macau chegava poucas vezes, segundo vários relatos, e quando chegava era insuficiente para as necessidades que se sentiam à época. Cremos que o procurador jesuíta era o grande responsável pelas missões nas províncias.

A comunidade macaense era protagonista desta rede de apoio aos jesuítas?

Sim, sem dúvida, por falarem as duas línguas. Muitas vezes tinham contactos locais que ajudavam o procurador a estabelecer negócios, a conseguir produtos mais baratos e de melhor qualidade. Não podemos esquecer que estes procuradores eram também mercadores e não apenas padres, para que a Companhia conseguisse atingir o máximo dos objectivos das missões. Portanto, a comunidade macaense era imprescindível para o trabalho do procurador e era uma rede de apoio fundamental. Existem ainda referências a homens que enganaram o procurador em negócios, produtos, compras, nomeadamente de sedas ou outro tipo de mercadorias. Houve pessoas que ajudaram a Companhia, assumindo um papel de benfeitores, em Macau e em Lisboa. Em Lisboa funcionava a “casa-mãe” da Companhia de Jesus, mas no caso de Macau os procuradores eram agentes da companhia que tinham de se adaptar aos espaços e às especificidades desses locais desde há séculos.

Houve contacto destas figuras com a corte imperial chinesa?

Há o exemplo perfeito do padre João Rodrigues Tçuzu, que foi criado no Japão. Ele chegou, aliás, a afirmar que falava e escrevia melhor japonês do que português. Depois viveu na China. No Japão esteve na corte e foi próximo de um dos imperadores. João Rodrigues Tçuzu foi não apenas o procurador da Companhia em Nagasaki, mas também procurador da corte em Nanquim em diversos assuntos, neste caso dos assuntos materiais da corte. O padre acabou por ser expulso do Japão, e uma das razões foi por se intrometer demasiado, enquanto padre, nos assuntos seculares [do império]. Em Macau teve contacto permanente com as autoridades de Cantão e, já nos últimos anos de vida, faz três viagens a Pequim, entre os anos de 1620 até 1633, ano da sua morte. Certamente que reuniu com os imperadores.

4 Jun 2024

Pedro Costa Ferreira, Associação Portuguesa das Agências de Viagens e Turismo | No Oriente, o céu é o limite

O presidente da Associação Portuguesa das Agências de Viagens e Turismo (APAVT) fala da relação de enorme proximidade com as autoridades de Macau em promoção turística. Em entrevista ao HM, Pedro Costa Ferreira defende que Macau, como destino turístico para a Europa, tem mais a ganhar se for associado a regiões do sudeste asiático

 

Foi anunciada a realização do congresso da APAVT em Macau no próximo ano. O que poderemos esperar deste encontro?

Não lhe vou adiantar grandes detalhes porque ainda vamos ter o congresso deste ano em Huelva, Espanha. Mas posso dizer que escolhemos Macau para um congresso muito especial, sobretudo porque vai fazer de Macau o território que mais vezes acolheu o congresso da APAVT, em 1982, 1990, 1996, 2008 e 2017. Dá a ideia da solidez da nossa relação com o território ao longo deste tempo. Além disso, será no ano em que fazemos 75 anos de existência, além de ser o nosso 50º congresso. Queremos, assim, que este congresso seja especial a nível de conteúdos, figuras presentes, que costuma ser o sector do turismo português todo, e talvez europeu e espanhol.

Algumas linhas de cooperação especiais com Macau que serão lançadas no evento?

Mais do que termos algo específico a desenvolver, o congresso é o final de uma etapa importante no nosso relacionamento, tendo em conta que vamos desenvolver também outras etapas. Temos feito um trabalho metódico e plurianual com Macau. Julgo que Macau pode ser considerado, juntamente com a Madeira, o local que tem o melhor relacionamento e trabalho feito com as agências de viagens em Portugal. 2025 será certamente o ano de ouro para Macau no seio da APAVT. Vamos ter a presença de Macau na FITUR [Feira Internacional de Turismo], onde iremos aprofundar o nosso relacionamento com o mercado espanhol, depois teremos a presença da APAVT muito significativa na BTL [Feira de Turismo de Lisboa]. Teremos certamente uma presença multifacetada e dinâmica no MIT [Macau International Travel (Industry) Expo, ou Exposição Internacional de Viagens (Indústria) de Macau]. Tudo o que é liderança turística europeia vamos levar a Macau em 2025. Depois tudo culminará com o congresso, onde passaremos a uma nova agenda e acções.

Como explica essa ligação de Macau com as agências de viagens em Portugal?

As agendas que são formadas, e que definem o relacionamento entre a APAVT e os diversos destinos turísticos, dependem da atenção que é dada por esses destinos às dinâmicas de relacionamento. O que tem acontecido com Macau, antes e depois da pandemia, é a existência de um historial importante e um relacionamento que se foi intensificando. No pós-pandemia tivemos uma etapa nova e muito produtiva. Julgo que há uma vontade muito grande de Macau de voltar à procura europeia e a internacionalização da procura turística pela região. Da nossa parte estamos sempre disponíveis e recebemos de braços abertos todos os destinos turísticos que queiram trabalhar connosco. Depende da iniciativa dos destinos. Madeira tem tido um trabalho de proximidade que só é, de facto, comparável, a Macau.

Considera que será desafiante a tentativa de internacionalização de Macau como destino turístico, uma vontade do Governo que persiste há muitos anos?

Não quero responder como algo que será difícil ou fácil. Há determinadas características no relacionamento das agências de viagens com o destino. Temos uma primeira dificuldade a recuperar, que é o facto de termos dado um grande passo atrás na pandemia e todo o Oriente foi a região que mais tarde abriu. Portanto, há um maior atraso, dos mercados emissores, em relação à recuperação de valores de antes de 2019 no Oriente do que no Ocidente. Há essa primeira dificuldade. Recuperámos mais cedo os fluxos turísticos no Ocidente. Depois, do ponto de vista do mercado português, temos de pensar que Macau nunca vai ser ‘mass market’ [mercado de massas]. Temos de olhar para o destino de acordo com as suas valências e capacidade de procura. Em relação a Portugal temos uma dificuldade acrescida, que é a inexistência de voo directo. Isso tem sido falado e parece-me importante. Vejo com bons olhos as notícias de uma eventual ligação da Air Macau a Istambul, uma excelente ‘gateway’ para o Oriente, e isso pode facilitar as viagens. Devemos perceber quais as valências de Macau e como as podemos desenvolver.

E quais são elas?

Existem valências específicas em Macau, que é um excelente momento de encontro de culturas, com uma oferta turística muito moderna. Macau tem excelentes condições de acolhimento, uma gastronomia que pode ser considerada das melhores do mundo, tem é de ser descoberta. É diversa e de grande qualidade. Tem ainda uma indústria de entretenimento que, não sendo a sua principal característica, não deixa de se desenvolver. Temos de acrescentar a capacidade de gerar produto mais global, que podem ser oportunidades para Macau. Para o mercado emissor ocidental, Macau tem de estar estruturado com mais alguma coisa. O mais óbvio é a China, mas também se pode juntar o território à Tailândia, Filipinas, Camboja mais o Vietname. Há muitas possibilidades. Os turistas quando fazem estas viagens de longa distância têm a apetência para ficar mais tempo e juntar as valências de Macau a mais destinos a Oriente pode levar a uma recuperação e desenvolvimento dos fluxos turísticos.

O turismo de Macau está gradualmente a transformar-se desde as novas licenças de jogo, que trouxeram novas exigências às operadoras.

Julgo que se está a diversificar e muitas das transformações recentes podem, eventualmente, ser associadas às novas concessões. Sentimos que há uma necessidade, vontade e óbvia estratégia de diversificação da oferta, e do ponto de vista dos mercados emissores ocidentais, é o que faz sentido. Portanto, a abordagem de Macau aos principais factores de desenvolvimento [do sector] é muito correcta e perceptível. Isso é bom para quem trabalha com destinos turísticos, porque dá confiança ao relacionamento.

Que análise faz à evolução do turismo do território desde o período da Administração portuguesa, quando a APAVT começou a fazer as primeiras acções em Macau?

Parece-me óbvio que os últimos anos foram de explosão em termos de desenvolvimento económico e de capacidades de acolhimento de turistas, disso não tenho dúvidas. É uma oferta mais complexa e diversificada, acompanhando também o desenvolvimento de várias ofertas e destinos. Talvez Macau estivesse mais centrada na história portuguesa, e agora parece-me mais evidente e importante para mercados emissores europeus, não portugueses, é que seja vendido como um local de encontro entre culturas, história, modos de vida ocidental e oriental.

O Chefe do Executivo esteve em Portugal em 2023. Como tem sido a comunicação com as autoridades de Macau desde a visita?

Essa visita foi, para nós, simbólica e muito motivadora. Expressou uma aposta do destino que sentimos no nosso trabalho diário e que acabou por nos ser transmitido a um nível superior. De resto, a relação com a Direcção dos Serviços de Turismo é quase perfeita. Temos uma comunicação próxima porque a agenda é complexa e dinâmica, além de contínua. Os nossos agentes de viagens sentem-se muito apoiados.

Macau está progressivamente a integrar-se na Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau e Hengqin. Como pode o mercado turístico português tirar partido disso?

Não se trata de um botão em que se carrega e começa a funcionar. É mais um processo e uma estratégia. Ganhamos todos com a clarividência e transparência da comunicação que é feita pela região. Fomos a Hengqin e observámos as novas oportunidades e interesse que Macau tem em criar novas capacidades de estruturação do produto [turístico] além do território. É alargar a região em termos de destino turístico. É preciso criar condições de acolhimento.

Tem gerado debate público o facto de a China ainda não ter incluído Portugal na lista de países isentos de visto. É um entrave ao turismo?

A abolição de vistos é sempre bem-vinda para quem trabalha em turismo. Aqui não é excepção. Há afirmações de responsáveis políticos que abrem a porta à nossa inclusão. Temos de nos concentrar na tentativa de sermos incluídos o mais cedo possível, e as vantagens são óbvias. Quando falamos em estruturação de produto, juntamente com outros territórios a Oriente, o mais natural é com a China. Necessitar de visto quando se vai de Macau para a China perturba a construção da oferta [turística]. Esperamos com optimismo.

Como é hoje o perfil do turista chinês que visita Portugal?

Neste momento, o mercado emissor chinês não é de elevada importância para Portugal, nem tem números que mostrem que seja um dos primeiros, ou mais importantes. O mercado chinês tem características que podem ser relevantes no futuro, por ser um mercado que não visita as regiões turísticas mais sazonais em Portugal, por não ser virado para a praia, por exemplo. Assim, é um mercado que nos pode ajudar a diminuir a nossa sazonalidade e a ter mais território turístico. É um mercado que trabalha bem com o Alentejo, centro do país, o Porto. O melhor estará para vir. Do que aprendi na relação com o Oriente é que o início é mais demorado, é preciso formar confiança, mas depois é um mercado em que o céu é o limite. Ainda estamos na fase de obtenção de confiança.

31 Mai 2024

J. Rentes de Carvalho gosta de cinema, mas livros permitiram-no sobreviver

O cinema era a ambição do escritor J. Rentes de Carvalho, mas o dinheiro não chegava para pagar as aulas que frequentou em França, então teve de “seguir a literatura”, como confessou em entrevista à agência Lusa

 

Perdeu-se um cineasta, ganhou-se um escritor. José Rentes de Carvalho, 94 anos, de ascendência transmontana, com raízes na aldeia de Estevais, concelho de Mogadouro, distrito de Bragança, vai ser alvo de um conjunto de homenagens em Portugal, com início na sexta-feira, promovidas pelo município de origem de seus pais, e que irão culminar em Julho durante a realização do Festival Terra Transmontana.

“Tudo isto é muito simpático”, confessou o escritor à Lusa, que diz ter sempre presente nos seus livros “um pensamento triste de quem gostaria de ter um país melhor e vai morrer sem o ver”. No seu percurso, porém, factor determinante é o cinema.

“O cinema foi durante muitos anos da minha vida tão importante ou mais que a literatura. Aprendi muito a escrever com os filmes que vi, durante os anos 40, 50 e 60 [do século passado]”, recordou o autor português, que assegurou ter transposto para sua obra literária muita da técnica apreendida com a sétima arte.

Em França, para frequentar as aulas, “tinha de pagar [a frequência de] um instituto de cinema e fotografia, mas o dinheiro não chegava e tinha de ganhar o pão nosso de cada dia”, o que obrigou “a dedicar-se à escrita”.

A entrevista de J. Rentes de Carvalho à Lusa realizou-se na aldeia dos Estevais, localidade onde o escritor passa metade do ano, alternado com Amesterdão, nos Países Baixos. É aqui, no concelho do Mogadouro, que as homenagens a Rentes de Carvalho vão ter início, promovidas pelo município. Das iniciativas fazem parte a colocação de um conjunto escultórico dedicado ao escritor, na sede do concelho, a realização de palestras, a atribuição do seu nome à Casa da Cultura.

Em Julho, o Festival Terra Transmontana, agendado para os dias 27 a 28, terá como tema “J. Rentes de Carvalho – Retratos da Nossa Gente”. Questionado sobre esta homenagem, Rentes de Carvalho disse que “há sentimentos que não são fáceis de exprimir”. “Trata de uma homenagem agradável. Tudo isto é muito simpático “, vincou.

O início na Holanda

No decurso da entrevista, o escritor falou sobre o seu percurso académico nos Países Baixos, onde durante quase de 30 anos, a partir de 1964, foi professor de Literatura Portuguesa e Brasileira, na Universidade de Amesterdão.

Enquanto professor universitário, percebeu que o interesse por parte dos estudantes neerlandeses e belgas em relação à literatura portuguesa se prendia em particular com a ditadura portuguesa, sobretudo durante a Guerra Colonial (1961-1974).
“Os alunos tinham interesse em aprender a língua e a leitura portuguesa, especialmente neste período da História de Portugal. Tratava-se de jovens ávidos de conhecimento, principalmente sobre a guerra colonial”.

Contudo, Rentes de Carvalho sublinha que além do interesse sobre o país da ditadura, a evolução da economia brasileira era à data o assunto chave, até porque sempre interessou aos neerlandeses.

O antigo professor universitário disse ainda que Fernando Pessoa (1888-1935) é uma referência para a poesia flamenga, a par do romancista Eça de Queirós (1845-1900), a par de vários autores brasileiros.

Raízes do norte

Filho de pais transmontanos da aldeia de Estevais, e neto de um avô sapateiro e de um avô guarda-fiscal, José Rentes de Carvalho nasceu em 15 de maio de 1930 em Vila Nova de Gaia. Frequentou o Liceu Alexandre Herculano, no Porto, e prosseguiu os estudos em Viana do Castelo e Vila Real. Foi na Faculdade de Letras e na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa que traçou o seu percurso académico, estudando Línguas Românicas e Direito.

Obrigado a abandonar o país por motivos políticos durante a ditadura do Estado Novo, viveu primeiro no Brasil, onde trabalhou como jornalista nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo e posteriormente em Nova Iorque e Paris. Escreveu para títulos como O Estado de São Paulo, Globo, Expresso, entre muitos outros.

O escritor acabou por se radicar nos Países Baixos em 1956, concretamente em Amesterdão, trabalhando na embaixada brasileira e licenciando-se na Universidade de Amesterdão, com uma tese dedicada a Raul Brandão.

A ascendência transmontana nunca foi negada pelo escritor, que passa largos períodos de tempo em Estevais, uma provação encaixada entre a serra do Reboredo e os rios Sabor e Douro.

A escrita depois do ensino

Depois do ensino, Rentes de Carvalho passou a dedicar-se exclusivamente à escrita para jornais e revistas literárias portugueses, brasileiros, belgas e neerlandeses.

A sua bibliografia soma livros como “Cravos e Ferraduras”, “Ernestina”, “A Amante Holandesa”, “Meças”, “Pó e Cinza e Recordações”, “Portugal à Flor da Foice”, “Mentiras e Diamantes”, “Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia”, “Com os Holandeses”, “La Coca” entre outros, atravessando géneros que vão da crónica ao diário, da opinião à pura ficção.

Estreou-se no romance em 1968 com “Montedor”, a história de um rapaz sem futuro, “com um passado apenas de sonhos, arrastando-se num presente que é uma verdadeira morte lenta”, num lugar perdido do Portugal da ditadura.

Sobre o livro, José Saramago garantiu que o autor oferece “o quase esquecido prazer de uma linguagem em que a simplicidade vai de par com a riqueza (…), uma linguagem que decide sugerir e propor, em vez de explicar e impor.”

Em 2011, Rentes de Carvalho recebeu o Grande Prémio de Literatura Biográfica da Associação Portuguesa de Escritores (APE), pelo livro “Tempo Contado” e, em 2013, o Grande Prémio de Crónica APE, por “Mazagran”. No ano passado, foi distinguido com o Prémio Personalidade do Norte, da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR-N).

O novo livro

“Cravos e Ferraduras”, o seu mais recente livro, lançado há cerca de um mês, reúne um conjunto de crónicas publicadas em vários jornais portugueses e neerlandeses, num retrato dos últimos anos da vida nacional, através de personagens “escolhidas a dedo”. “Este livro é o resultado de uma compilação de textos escritos desde há quatro anos para cá”, concretizou. Questionado pela Lusa de que forma as vendas estavam a correr, o autor disse que “não fazia a mínima ideia”.

“Os meus livros falam um pouco dos mesmos problemas de sempre e das mesmas situações, não havendo um específico que trate de Portugal. Há um pensamento triste de quem gostaria de ter um país melhor e vai morrer sem o ver”, afirmou.
Rentes de Carvalho disse que não era homem de escrever depressa, que o livro mais rápido levou sete a oito anos a ganhar forma. E dá o exemplo de “Ernestina”, romance que levou mais de uma dezena de anos a ser concluído, tendo sido publicado pela primeira vez nos Países Baixos, em 1985.

Segundo o autor, o livro que mais vendeu foi um “Guia de Portugal”, apenas publicado no país que o acolheu e que vendeu mais de 300 mil exemplares, com mais de 300 páginas, somando algumas dezenas de edições.

Na sequência deste trabalho, Rentes de Carvalho foi agraciado pelo Presidente da República Mário Soares com a Comenda do Infante D. Henrique. “Devido a este livro, centenas de milhares de holandeses visitaram Portugal”, concluiu com orgulho, Rentes de Carvalho.

30 Mai 2024

Joaquim Alves Gaspar, co-autor de “A Cartografia de Magalhães”: “A mais extraordinária viagem marítima”

Lançado em Abril, “A Cartografia de Magalhães”, de Joaquim Alves Gaspar, docente da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, e da académica Šima Krtalić, olha para a história da cartografia antes e depois da Circum-Navegação de Fernão de Magalhães. O autor realça a importância da viagem que provou ser possível navegar em torno da Terra

 

Este livro fala do panorama da cartografia antes e depois da Circum-Navegação de Fernão de Magalhães. O impacto da viagem foi grande nesta área?

Não foi o ponto de viragem mais importante na via náutica, pois este surgiu muito antes, com a expansão marítima dos povos ibéricos no Atlântico. Primeiro, com os portugueses ao longo da costa de África e depois os espanhóis, primeiro com Colombo nas Índias ocidentais, como eles chamaram, pois Colombo julgava ter chegado às Índias do reino de Castela. Depois houve as descobertas dos portugueses através do [oceano] Índico e até ao sueste asiático, e também no Brasil e na chamada “Terra Nova”. Esse final do século XV e início do século XVI foi, digamos, o maior ponto de viragem no que diz respeito ao conhecimento do mundo pelos europeus, que teve reflexos, primeiro, na cartografia náutica. A cartografia náutica era um instrumento de navegação e não uma imagem do mundo.

Não eram, portanto, mapas como hoje conhecemos.

Sim. No entanto, foram utilizadas como fonte para os mapas geográficos. Houve algum impacto da viagem de Magalhães no conhecimento da América do Sul, que só era conhecida e cartografada até ao Rio da Prata, que fica na fronteira entre o Brasil e a Argentina. A esquadra de Magalhães passou também pelas [ilhas] Molucas, que ficam na Indonésia, a sul das Filipinas, e depois pelo norte das Filipinas, onde um navegador foi morto, num conflito local. Os dois navios que restaram deambularam alguns meses pelas Filipinas antes de se dirigirem às Molucas. Aí carregaram os navios de cravo, que era aquilo que interessava. Um dos navegadores tentou voltar para trás através do Pacífico, como lhes tinha sido ordenado pelo rei de Castela, de Espanha, mas não conseguiu, voltando para trás. O navio sofreu avarias e acabou por se destruir e ficar com os portugueses nas Filipinas. O outro estava com Sebastian El Cano [navegador espanhol que acompanhou Magalhães], vindo para sul, passando por Timor. Fez depois aquilo que era proibido, que era voltar a Espanha atravessando o hemisfério português, pelo Índico. E quais foram os benefícios dessa viagem em termos de cartografia no sueste asiático?

Foram maiores?

Não. Os navios de Magalhães fizeram algum levantamento, precário, das ilhas das Filipinas, Molucas, Bornéu. Mas, entretanto, já os portugueses tinham recolhido informação cartográfica de melhor qualidade que depois foi vertida nas cartas naúticas. Estranhamente a Circum-Navegação não teve, de facto, um grande impacto na cartografia.

Porquê lançar esta obra?

Como todos os livros, este também tenta contar uma história. Existem muitas narrativas textuais da viagem de Magalhães, do que se passou antes e depois. Mas não menos importante é o papel da cartografia para contar essa história. Na realidade contamos no livro duas histórias complementares: o que era a cartografia antes da viagem e como propiciou a proposta de Magalhães.

E como era?

Era uma cartografia sobretudo portuguesa e baseada em fontes portuguesas. Magalhães, quando se dirigiu ao rei Carlos I de Espanha, não ia de mãos a abanar. Tinha acesso à melhor cartografia da época e das técnicas de navegação. Foi isso que convenceu o rei de Castela a aceitar a proposta de um projecto que já tinha tentado concretizar, sem êxito. Magalhães e os portugueses tinham atrás de si toda uma cartografia que tinham desenvolvido com bastante inovação, e que permitiu apresentar o mundo aos olhos dos europeus de uma forma bastante mais exacta face ao que se conhecia até à data. Essa é a primeira parte do livro.

E a segunda?

São os reflexos da viagem na cartografia, em particular nas disputas entre portugueses e espanhóis quanto à posse e localização das Molucas.

Esse conflito é outro ponto central da obra. Desmistificaram-se muitas ideias que havia em torno da localização das Molucas até essa data?

O Tratado de Tordesilhas foi um documento incrível que dividiu o mundo em duas partes, uma parte de influência portuguesa, e outra de influência espanhola. A linha divisória era de pólo a pólo que passava a 370 léguas a oeste de Cabo Verde. Para ocidente, era território espanhol, e para oriente, português. Na altura em que o tratado foi firmado, havia a preocupação com o que acontecia deste lado do mundo. Os portugueses queriam preservar o que tinham descoberto em África, sobretudo, o Atlântico, e os espanhóis queriam preservar o que tinham descoberto no Mar das Caraíbas, as Antilhas do reino de Castela. Já se sabia perfeitamente que a terra é redonda desde o século V a.C., mas nunca tinha existido a preocupação de saber como se passava para o outro lado da terra, até aos antípodas. Quando os portugueses chegaram a Malaca, a partir de 1519, e depois a conquistaram, todos acordaram, e em particular os espanhóis, que começaram a alegar que esses territórios lhes pertenciam, sem argumentos válidos. Valiam-se da velha imagem do mundo, de Cláudio Ptolomeu, de 400 anos antes. Para provar que aquilo era espanhol tinham de lá ir. Mas porquê essa suspeita? Este ponto é importante na nossa história: na cartografia náutica portuguesa, a melhor da época, as Molucas estavam do lado espanhol erradamente.

Porquê esse erro?

Devido à forma como as cartas náuticas eram feitas. Não eram mapas geográficos feitos com base em latitudes e longitudes, mas com base em rotas e caminhos seguidos no mar. Esse rumo era ditado pela agulha magnética, que cria desvios e levou a distorções nas cartas náuticas.

Não eram, então, muito fidedignas.

Eram, mas para navegação. A forma como se navegava era coerente com as cartas náuticas da época, em que África aparecia desviada para o Oriente, e todo o oceano Índico desviado, empurrando as Molucas para o lado espanhol. Fernão de Magalhães estava genuinamente convencido que as Molucas eram espanholas.

Em termos de inovação na navegação, esta viagem destacou-se?

A ideia, sobretudo propalada pela literatura anglo-saxónica, de que os portugueses iam à aventura, ao acaso, é absolutamente falsa. Como o nosso Pedro Nunes escreveu num tratado, anos depois, os portugueses já seguiam muitas regras matemáticas e astronómicas para melhor navegar. As viagens eram planeadas minuciosamente, do ponto de vista técnico e logístico. Um ponto inédito [na viagem de Magalhães] é que, pela primeira vez, a longitude de um lugar, a distância este-oeste, era importante para localizar as Molucas. Então, nesta viagem, foi um astrónomo a bordo, Andrés de San Martin, para tentar determinar a longitude das ilhas. Nessa época, a astronomia era convincente, tinha um enorme probatório. Este espanhol fez várias medidas de longitude ao longo da viagem, algumas delas relativamente perto do Estreito de Magalhães, com um rigor que hoje nos espanta. Essas medições reflectiram-se na cartografia, e nos relatos que nos chegaram sabemos que quem ia a bordo começou a ficar preocupado com as medidas de longitude, que davam a entender que as Molucas ficavam do lado espanhol. Andrés de San Martin fez ainda outras medições na chegada às Filipinas e observações astronómicas que colocaram então as Molucas no território português. Esse astrónomo, que morreu na viagem sem se saber muito bem como, deixou relatos sobre estas medições, que a coroa espanhola tentou esconder até onde foi possível.

Espanha estava mais preparada para acolher a proposta de viagem de Magalhães?

A Portugal não lhe interessava esta viagem, porque o que Magalhães propunha era viajar para as Molucas [Oriente] e nunca para o Ocidente. Os portugueses podiam chegar às Molucas pelo Oriente, que era mais perto. Ainda por cima, para irem pelo Ocidente, seria por território espanhol, pelo que era uma viagem que não lhes interessava de todo. Fernão de Magalhães entrou em conflito com o rei D. Manuel I, pediu-lhe um aumento do seu subsídio, à mercê dos trabalhos que tinha feito para a Coroa portuguesa até então, e isso foi recusado. Então aceitou a sugestão do seu amigo Francisco Serrão, que ficou nas Molucas e fez lá família, para apresentar a proposta a Espanha, dizendo que, assim, poderia enriquecer se o desejasse. Estas cartas enviadas por Serrão tiveram um grande peso na proposta de Magalhães.

Como descreve a figura de Fernão de Magalhães?

Sabe-se muito pouco sobre a figura humana dele. O que se sabe é através de relatos benignos de António Pigafetta, que tinha uma enorme admiração por Magalhães. Do lado espanhol só se disse mal do navegador. Nem se sabe bem onde ele nasceu, provavelmente terá sido no Porto. [A Circum-navegação] foi uma viagem importante para a cartografia e o conhecimento do mundo. Sabia-se há muito que a terra era redonda, mas não se sabia que era circum-navegável e isso foi fundamental para pôr os povos em contacto. O facto de Fernão de Magalhães ter conseguido comandar com êxito aquela que foi, provavelmente, a mais extraordinária viagem marítima de todos os tempos diz muito sobre as qualidades de liderança e de conhecimento técnico que tinha. Teve persistência na descoberta de uma passagem para o Pacífico e, pela primeira vez, atravessou-o em frágeis navios de madeira, as naus.

24 Mai 2024

Rem Urasin, pianista: “Tocar é sempre uma responsabilidade”

Natural da república russa do Tartaristão, Rem Urasin está desde 2022 em Portugal devido à guerra na Ucrânia. A saída do país obrigou-o a refazer a vida e a carreira. Conhecido internacionalmente como intérprete de Chopin, o pianista russo actuou no dia 9 de Maio no Centro Cultural de Belém, onde falou com o HM sobre a ligação especial à obra de Chopin

 

Que espectáculo podemos esperar esta noite?

Essa é uma questão interessante. Música de Chopin.

Sim, claro. Mas refiro-me ao ambiente do espectáculo, se traz algo de novo ao público que espera ouvi-lo tocar Chopin.

Já ouvi muitas vezes a pergunta sobre o tipo de mensagem que vou transmitir ao público. Mas quando começamos a falar de música e do seu significado, ou da mensagem que transmite, todas as palavras, por norma, falham. Isto porque a música pode expressar muito mais. É essa a sua questão da central. Quando não existe nada que seja suficiente para expressar algo, a música ajuda. Todas as mensagens que trago para este concerto podem ser ouvidas esta noite.

Para si, a música é e tem de ser suficiente.

Totalmente, porque é um tipo de arte muito particular. É muito abstracta às vezes, por isso podemos expressar, ao mesmo tempo, muitas coisas. Não gosto muito de falar antes dos concertos sobre a música e sobre o que expressa, ou sobre o que o público tem de esperar. Não ajuda e leva-nos a uma percepção errada. Para mim, é como estar fora do ritmo. As palavras são muito precisas, e a música é muito mais do que isso. Mas adoro quando alguns concertos têm um narrador. Costumava tocar em muitos concertos neste formato, mas aí era uma narração especial, com base em documentos, cartas, algumas memórias de contemporâneos. Era algo diferente, porque nesse caso ajudava-nos a sentir a época e a atmosfera desse tempo. Permitia-nos ver através do olhar desses contemporâneos.

Como se sente por estar a tocar em Lisboa, numa sala de espectáculos como a do Centro Cultural de Belém?

Estou muito entusiasmado, porque é a primeira vez que toco em Lisboa e é muito importante para mim. Não é como a primeira vez que toquei em muitas cidades onde nunca estive antes. Portugal tornou-se quase a minha segunda casa, porque tivemos de deixar a Rússia há cerca de dois anos, quando começou a guerra na Ucrânia, e foi uma experiência muito estranha para mim porque nunca tinha estado em Portugal. Vim para viver. Claro que não foi bom para a minha carreira em termos de concertos, porque é tudo novo para mim. Senti-me estranho, como se estivesse numa segunda fase da quarentena [da pandemia], quando todos os artistas estavam fechados em casa. Mas de certa forma gostei desse período, porque me deu a possibilidade de tocar piano e pensar nas coisas. Tive tempo suficiente para isso. Mas foi um período em que os concertos se reduziram ao mínimo e foi uma experiência bastante estranha. Mas agora as coisas estão a voltar ao normal. Este será o meu primeiro contacto com o público de Lisboa, não português, porque vivo em Lagos.

Nesse período em que esteve mais parado, que sensações o dominaram? Vazio?

Não. O vazio é sentido por pessoas que não têm nada dentro. Sempre tive o suficiente dentro de mim para não me sentir vazio. Na verdade, senti o oposto, durante a quarentena e quando vim para Portugal. Senti falta de tempo para fazer tantas coisas. [A pandemia] foi um período trágico e dramático para a humanidade porque muitas pessoas estavam a morrer e a sofrer, mas também nos deu muito tempo, que é algo de precioso. Usei esse tempo para tocar novos programas para piano, para pensar em coisas para ler, não apenas relacionadas com música. É como na pintura, em que às vezes têm de se cumprir vários passos e olhar para outros ângulos.

Começou a ter aulas de piano aos cinco anos no Conservatório de Cazã [capital da República do Tartaristão]. Imagino que tenha sido difícil submeter-se a uma disciplina tão rígida desde muito cedo.

Não! Era divertido, sempre. Lembro-me de que o período em que ia para as aulas de música era incrível. Todas as manhãs acordava com o entusiasmo de que iria para a escola e fazer tudo o que adorava.

Quando percebeu que Chopin era o seu compositor preferido? Quando sentiu algo especial a ouvir o compositor?

A minha mãe conta que quando eu era bebé, com cerca de um ano, estava a brincar no chão e estava a passar um concerto de Chopin na televisão, e que eu meti os brinquedos de lado e comecei a ouvir com muita atenção. Claro que não me lembro disto. Mas a minha primeira professora, que era uma música extraordinária, também teve influência, pois descobriu a minha propensão para as composições de Chopin e transmitiu-me muitas coisas quando tinha cerca de 12 ou 13 anos. Na verdade, o meu primeiro recital de piano, quando tinha 13 anos, foi todo sobre Chopin.

Foi escolha sua estudar piano, ou foi influência da sua família?

Ambos. A minha mãe era geóloga e acreditava que eu iria ser geólogo também. Mas era uma grande fã de música e dava-me lições só por divertimento. Mas lembro-me de, desde sempre, ter a certeza de que queria ser músico profissional, com quatro ou cinco anos. Não tinha nenhumas dúvidas quanto a isso.

Em 1995 venceu uma competição internacional de interpretação de obras de Chopin em piano, que se realizou em Varsóvia. Foi um marco fundamental na sua carreira?

Claro. Foi muito importante para a carreira e em termos pessoais também, pois aprendi ainda mais sobre Chopin e a sua vida. Antes desse concurso ganhei uma competição juvenil em Moscovo, quando tinha 15 anos, e foi uma espécie de primeira fase para a competição de Varsóvia. Preparei-me para este momento durante muitos anos, foi um longo percurso. Foi uma sensação incrível porque esta competição em Varsóvia não é um evento local, toda a Polónia assiste, não apenas os músicos. O país vive muito a música de Chopin durante essas três semanas de Outubro. Quando se vence um concurso de Chopin ficamos com uma espécie de certificado (risos). Mas também é difícil porque ficamos com uma certa marca. É difícil convencer as pessoas de que faço coisas além de Chopin.

Ouve e trabalha em torno de outros compositores, então.

Sim, sem dúvida. Oiço compositores clássicos, e não apenas românticos, mas também contemporâneos. Também oiço compositores russos, por exemplo.

Não gosta de marcas.

Não penso que sejam uma coisa boa, talvez só para ajudar os ouvintes a saber o que podem esperar. Mas, ao mesmo tempo, é bastante limitativo numa série de coisas.

O que diferencia Chopin de outros compositores?

(Risos). Para mim é diferente porque o sinto de maneira diferente. É muito difícil explicar isso, porque é algo muito importante para nós e que nos é muito querido. Não gosto de colocar em palavras, o que sinto é suficiente. Prefiro tocar piano.

Temos pianistas portugueses que também são grandes intérpretes em Chopin, como Maria João Pires. Já teve oportunidade de a ouvir?

Ela é incrível. Ainda não tive a oportunidade de a ouvir ao vivo, infelizmente, mas ela é uma música extraordinária. Sinto que o que ela faz é muito semelhante do que faço. Ela é genial. Gostaria de assistir a um concerto dela, sem dúvida. Todos os grandes artistas devem ser ouvidos ao vivo, e sem dúvida que ela é uma grande artista.

Depois de tantos anos de palco, ainda se sente nervoso antes de actuar?

Claro. Sinto-me nervoso, às vezes, quando penso nos concertos que estão a chegar, porque é sempre uma grande responsabilidade. Quando nos tornamos… não digo famosos, porque é demasiado. Mas quando conseguimos ter alguma fama a responsabilidade aumenta porque as pessoas que vão aos concertos com algumas expectativas. Não gosto de pensar na fama demasiado, porque pensar muito nisso corrói. Há coisas mais importantes do que isso, como a genialidade da música que podemos atingir.

Agora que vive em Portugal está a recomeçar do zero, presumo. O que pretende explorar de novo no piano?

Fiquei chateado quando tive de suspender temporariamente o projecto que estava a desenvolver, intitulado “Great Romantics” [Os Grandes Românticos], devido à minha vinda para Portugal. Cheguei a fazer uma série de concertos dedicados a Chopin, toquei todas as suas composições. Este projecto consiste numa espécie de recital com um narrador. É muito interessante porque envolve o público para a atmosfera de época, e no caso da época romântica é bastante interessante. Trata-se de um projecto de larga escala porque envolve mais de 25 concertos, com diferentes compositores. Cada programa dedica-se a um compositor, sobre um particular período da sua vida. Comecei o projecto e fiz oito espectáculos, mas toda esta mudança obrigou-me a parar. Espero que, de alguma forma, possa concretizá-lo em Portugal porque gostaria de mostrar as minhas pesquisas e o resultado ao público.

19 Mai 2024

Nuno Fontarra, arquitecto: “Ocupamos o espaço que podemos”

Nuno Fontarra, arquitecto principal da equipa da Mecanoo que tem em mãos o projecto da nova biblioteca central, apresenta uma palestra hoje, às 19h, no Centro Cultural de Macau. O arquitecto irá falar da filosofia de do trabalho do atelier e de como o escasso espaço interior do edifício do antigo Hotel Estoril foi projectado

 

Vai hoje falar do projecto do Museu de História Natural que a Mecanoo está a desenvolver em Abu Dhabi. Até que ponto tem semelhanças com o projecto da Biblioteca Central?

Vou abordar este projecto por ser o mais importante que estamos a fazer e porque tem algumas parecenças [com o projecto da Biblioteca Central], nomeadamente ao nível dos materiais. Trata-se de um museu, e nesse aspecto não tem muito a ver com o que estamos a fazer em Macau, mas é importante por ser um edifício público. É um museu icónico que vai interagir com a cidade. A maior parte dos museus não é muito interactiva com a população porque as pessoas vão uma vez e não usam o espaço, mas vou mostrar como o nosso projecto faz com que o museu interaja com a cidade à volta e qual a filosofia do atelier Mecanoo em relação a isso, para que não seja um objecto morto na cidade.

Esta abordagem também foi pensada para a futura Biblioteca Central?

A filosofia é a mesma: tem de interagir com a cidade o mais possível. É isso que é uma arquitectura moderna, não se tratando de um mero arquivo de livros, porque é o que se passa com a actual biblioteca [do Tap Seac]. A preocupação com a nova biblioteca não é apenas com os livros, mas sim construir uma interacção com a comunidade completamente diferente, com educação e cultura. E é assim que o Museu de História Natural vai funcionar também.

Esta é talvez a primeira vez que a equipa da Mecanoo está no território, uma vez que o projecto da Biblioteca Central começou a ser feito à distância. Como está a ser este contacto presencial?

A primeira fase do projecto foi toda feita à distância e depois fomo-nos adaptando. Deveríamos ter vindo a Macau. Até já estive em Shenzhen, mas os colegas chineses da minha equipa não conseguiram visto para ir para Macau, o que atrasou a visita. Mas agora já houve contactos com o Instituto Cultural (IC) e foram feitas visitas ao local. Dois terços da equipa está sediada em Macau e só eu ainda não tinha vindo. O meu nível de experiência permite-me perceber como a Praça do Tap Seac funciona. Por exemplo, teremos de mover umas árvores de sítio, e essa é uma parte importante do projecto, e perceber essas coisas e sentir a praça [é importante]. Na palestra vou também abordar isso, o facto de não existirem projectos feitos no abstracto, pois todas as coisas têm um contexto, funcionando de forma diferente em relação ao desenho. Esta palestra não é o momento oficial para apresentar o projecto, pois ainda está a ser feita essa preparação. Creio que o IC já tem uma data para começar a obra.

Algumas particularidades do projecto que podem sobressair com esse contacto presencial com a Praça do Tap Seac e o espaço de construção?

Sobressai a relação da piscina [com o espaço em redor], por exemplo, porque existe uma certa proximidade. [O Tap Seac] é a praça mais importante de Macau, bastante central, e é um sítio difícil para construir a biblioteca, pois não temos muito espaço. Mas esse é um problema geral em Macau. A falta de espaço obriga a que a biblioteca venha a servir o público de maneira bem mais flexível. Temos de aproveitar o máximo de espaço possível para a realização de actividades. É isso que a nova biblioteca vai ser.

Em que fase concreta está o projecto? Têm enfrentado alguns desafios?

Não tem sido muito complicado. Nesta fase começaram a ser retiradas peças do edifício que vão ser reutilizadas na biblioteca, nomeadamente o mural. Será necessário tratar o terreno, mas é importante frisar que precisamos um pouco mais de tempo pois estamos numa área complexa da cidade. O básico do projecto está pronto. Já começámos a trabalhar na execução, apesar de ainda não haver um dia definido para o arranque das obras.

Até que ponto o projecto da biblioteca central se enquadra no espírito de trabalho da Mecanoo?

A nossa filosofia tem por base a ideia de que os espaços funcionam para as pessoas. Durante muitos anos as bibliotecas eram arquivos de livros que só recebiam pessoas. Nos últimos anos têm sofrido uma transformação nesse sentido, e nós fazemos parte dessa transformação. Deixaram de ser apenas arquivos para serem activos dentro da cidade, com funções educativas ou apenas de entretenimento. A biblioteca central terá essa responsabilidade em relação a Macau, pois não havia condições para isso. O único senão é que há uma rua bastante dinâmica [Avenida Sidónio Pais], e não será fácil tirar o trânsito dali. Sei que a praça tem muitas actividades e a biblioteca pode ser um extra. Esse tipo de eventos não existe na biblioteca antiga e as pessoas do IC estão ansiosas para que haja na biblioteca nova. Ainda que em pequena escala, pois não será um edifício grande. Por exemplo, a biblioteca central em Xangai é uma coisa enorme.

Mas na China os projectos de arquitectura têm outra escala.

Na China cumprem-se objectivos. Não há propriamente uma necessidade das pessoas. Essa é a grande diferença. A nova biblioteca [em Macau] vai complementar as necessidades das pessoas, mas na China cumprem números. Uma biblioteca lá tem de ter um certo tamanho para cumprir determinada escala. É tudo mais matemático. Em Macau ocupamos o espaço que podemos.

Pode avançar detalhes mais concretos de como será reaproveitado o interior do edifício?

Vamos tentar abrir o mais possível o espaço do rés-do-chão ao público. Temos poucos metros quadrados, mas temos uma área grande de alçado que depois conecta com a rua. É isso que nos vai permitir ter um pequeno auditório com um pequeno café e uma zona com vista. Terá também umas escadas com ligação à zona de leitura. O que fazemos muito no nosso atelier é usar espaços de maneira dupla, a fim de os maximizar. Então essa zona poderá também servir para pequenas apresentações, pois há uma escadaria que serve de auditório. À medida que se vai para os pisos superiores os espaços vão tendo usos mais privados, para exposições, ou ainda salas para workshops, por exemplo. Haverá ainda uma sala que se pode alugar para uso da tecnologia que não se pode ter em casa, como é o caso das impressoras 3D. Este espaço pode ser usado por estudantes ou profissionais. Todo o espaço de circulação poderá ser aproveitado para mostras temporárias. Os pisos de baixo serão, de facto, zonas mais públicas. O último piso já terá uma sala de leitura mais calma, destinada a investigadores, por exemplo. Há um hall da biblioteca virada a parte de trás, em frente a uma escola [para a Estrada da Vitória] em que há uma área destinada à juventude, para crianças dos 12 aos 14 anos. Haverá ainda uma pequena parte para serviços administrativos, pois o IC preferiu destinar mais espaço do edifício para zonas públicas. O grande desafio foi, de facto, encontrar espaço. Poderíamos fazer uma biblioteca maior se estivesse na periferia, mas não estaria junto às pessoas.

A localização da biblioteca central gerou bastante debate público e outras questões, como a concessão do projecto a um atelier estrangeiro. Sentiram pressão quando começaram a trabalhar?

Não porque, em primeiro lugar, não somos holandeses, somos um escritório internacional. E depois a equipa não é apenas a Mecanoo, existindo um escritório local em Macau a colaborar connosco, a Joy Choi, e depois profissionais em Hong Kong. Os engenheiros são todos de Macau, da PAL AsiaConsult, e têm 33 por cento do projecto, somos sócios. Diria que 65 por cento, ou mais, da equipa é local. Depois temos pessoal na Holanda e chineses de Guangzhou e Shenzhen a colaborar connosco. Era importante maximizar o pouco espaço existente, pois a localização é perfeita. Isso é uma coisa que aprendemos com os holandeses, pois com eles o espaço muda com frequência. O IC parece estar a ser dinâmico o suficiente para que depois haja uma relevância em termos das actividades que são organizadas.

Como vai funcionar a coordenação com a actual biblioteca e arquivo histórico?

O actual edifício vai continuar a ter biblioteca como tem actualmente. A nova biblioteca vai complementar a antiga, mas não sei como será feita a gestão dessa coordenação. As necessidades administrativas do IC não interferiram nas necessidades das pessoas no que diz respeito à biblioteca, e é essa a parte interessante. Noutros casos temos situações terríveis, em que os clientes são bastante inflexíveis.

16 Mai 2024

João Santa-Rita, arquitecto | As cidades invisíveis

João Santa-Rita trouxe ao Albergue SCM a exposição “Desenhar para Revelar”. A mostra, que termina amanhã, tem como epicentro o conflito entre o edificado e espaços vazios em tecidos urbanos imaginados. O arquitecto e antigo colaborador de Manuel Vicente não crê no desaparecimento da arquitectura portuguesa de autor em Macau

 

“Desenhar para Revelar” contém desenhos feitos nos últimos cinco anos. Que mensagens transmitem estes esboços?

A exposição inaugurou primeiro em Lisboa. Não é uma exposição sobre Macau, mas ao mesmo tempo é, no sentido em que não se reporta a nenhuma cidade em particular, mas, ao mesmo tempo, a todas. Por isso mesmo foi concebida para ser itinerante. É uma forma de celebrar o que é a cidade e o que são as suas componentes do espaço público e construído. São desenhos que traduzem esse diálogo do conflito entre o edificado e o não edificado. Macau é, como todas as cidades, um lugar que tem espaços para serem vividos pelas pessoas e outros que estão envolvidos por edifícios. Os desenhos são também sobre o papel que os edifícios desempenham numa cidade, se são de acompanhamento ou se marcam determinados lugares. São desenhos que não são do foro do real. De alguma forma implicam alguma pesquisa.

Mas são imaginados, ficcionais?

Sim, são desenhos ficcionais. A primeira série de desenhos da exposição é quase uma série de reflexão ou elogios sobre a forma como os espaços públicos foram evoluindo na sua forma, desde a Roma antiga até aos nossos dias. É uma sequência de 12 desenhos.

Sobre o Novo Bairro de Macau em Hengqin. Decerto percebeu que a integração regional de Macau está em marcha… são fundamentais estes projectos?

Das quais que mais me surpreenderam em Macau face a 2019 foi aperceber-me da actual envolvente do território. Passou de um conjunto de ilhas despovoadas para uma grande ocupação e desenvolvimento. Macau já não é um território isolado, que apenas tinha uma companheira, Zhuhai, e que hoje tem um desenvolvimento que se propaga além daqueles limites. Percebi que já existe alguma vida, com deslocações, por exemplo. Imagino que isso também possa modificar a própria vida de Macau neste relacionamento.

Em termos de planeamento urbanístico, a época em que fez arquitectura em Macau era uma fase de plena experimentação?

Nessa altura, e reporto-me aos anos 80, Macau vivia muito à conta dos planos que se iam fazendo. Não havia um plano director, e as coisas, no coração da cidade, eram feitas mediante a gestão urbanística corrente, com as regras de construção. Havia os planos, mas iam crescendo por agregação. Sei que o plano director foi uma questão bastante debatida, e foi certamente um grande passo na transformação de Macau. É um plano mais orientador e abrangente do que a fase em que se ia desenvolvendo plano a plano, sem nunca existir uma visão estratégica sobre o território. Planeava-se conforme as necessidades, mas não havia uma ideia conjunta de como o território se iria desenvolver ou relacionar com os territórios envolventes. Se pensarmos na dinâmica que têm estas áreas, em que as coisas se desenvolvem num instante, é fundamental ter essa visão abrangente sobre um território.

Considera que surgiram erros, difíceis de colmatar, saídos desse panorama?

Não lhe sei bem dizer, porque Macau, no período em que lá vivi, a ocupação [dos solos] era muito centrada no que já estava construído, nomeadamente a zona do ZAPE, pois não havia ainda sequer o NAPE. A zona desenvolvida terminava sensivelmente no Hotel Lisboa. Havia umas coisas dispersas na Taipa, umas torres onde habitavam muitos professores, funcionários do Governo e de outras instituições, e pouco mais do que isso. Creio que esse tipo de gestão não terá sido danoso para o território. Já apanhei o final do período em que estavam a ser planeados alguns projectos, mas não a sua implementação. Quando regresso a Macau, quase 20 anos depois, já estava muita coisa transformada, então não tenho a visão do que possa ter corrido melhor ou pior nessa altura.

Trabalhou com Manuel Vicente. Foi uma boa experiência, o que mais aprendeu com ele?

É difícil dizer que não se aprendeu nada com ele. Aprende-se sempre muito. Já tinha uma relação forte com ele, sobretudo porque o meu pai e Manuel Vicente partilharam trabalho durante muitos anos, num atelier conjunto. Não era alguém que me fosse estranho, mas era alguém com quem tinha muita vontade de trabalhar. Foi logo muito surpreendente a escala do que se fazia, que era completamente distinta de Portugal, muito maior. Manipulávamos programas e projectos completamente distintos, edifícios de escritórios, grandes edifícios de habitação. Em Lisboa experimentava trabalhar em projectos de edifícios com quatro ou cinco andares, mas quando cheguei a Macau trabalhámos logo um edifício com 17 andares, o World Trade Center. De alguma forma variava a própria velocidade com que era necessário que as coisas ocorressem em Macau. Em Portugal, os projectos podiam ser feitos no prazo de um ano ou dois, mas em Macau aquilo acontecia em dois ou três meses. Isso obrigava a uma forma de trabalhar e pensar o projecto muito distinta, a definir estratégias particulares para cada um e depois desenvolvê-las, sempre num processo muito participativo. Isso foi o que gostei em Macau e no atelier de Manuel Vicente. O seu imaginário tinha muito a ver com a experiência de vida e vivências no território, e isso era muito gratificante.

Considera que depois da transição as autoridades deram maior atenção à preservação do património do que nos anos 80?

A forte identidade de Macau sempre dependeu muito disso, da preservação de muitos traços do seu passado e da sua ocupação em diversos momentos. Aí reside a diferença, pois não se trata apenas de um território novo, tem um passado. A forma como o património foi protegido e tratado foi fundamental. Eram coisas que no final da minha estadia, quer da parte do Instituto Cultural ou de outras entidades do Governo começavam a ser abordadas, além de todo o trabalho de protecção que tinha sido feito no passado. Começava-se a fazer a ocupação desse património. Quando saí de Macau estavam em curso algumas obras como a biblioteca [no Tap Seac], o Arquivo Histórico, o edifício Ritz no Leal Senado. Aí já se ocupavam edifícios antigos para revitalização e abandonava-se a ideia de construir de novo. O bairro de São Lázaro, onde precisamente está a minha exposição (no Albergue SCM), é uma zona que foi preservada no seu todo, com partes mais ou menos vividas e ocupadas.

A arquitectura de Macau feita por profissionais portugueses tem vindo a desaparecer um pouco. Há o risco de desaparecimento dessa arquitectura de autor em língua portuguesa?

Quando estive em Macau qualquer obra sobressaía, porque o território era muito mais pequeno. Quando saí de Macau estava a começar a construção do edifício de Manuel Vicente junto à praça Lobo D’Ávila. Tinha evidência porque sobressaía na Macau da altura, e havia projectos de colegas que também tinham impacto, e destaco o do Banco Nacional Ultramarino. Sei que há colegas que continuam a actividade, que está mais espalhada e mais escondida, por tudo o que se passa à volta. É uma situação diferente, porque na altura só praticamente quem estava no território é que trabalhava aqui, havia poucos trabalhos que vinham do exterior, e hoje em dia há uma enorme pulverização dos gabinetes que trabalham em Macau. A escala, sobretudo, é outra. Há muitos arquitectos que estão mais ligados às empresas dos casinos, haverá certamente menos gabinetes a trabalhar, mas penso que haverá sempre a possibilidade de trabalho para os arquitectos radicados no território, não só da parte dos que cá estão há mais tempo, mas também da parte de jovens arquitectos. O Metro Ligeiro foi uma oportunidade, por exemplo, para alguns desses gabinetes terem intervenção. O World Trade Center, que foi um edifício marcante em Macau, hoje em dia está completamente diluído, por exemplo. Está escondido. Deixou de ter essa marca.

5 Mai 2024

Sérgio Proença apresenta hoje livro sobre planos urbanísticos de Macau, Índia portuguesa e Timor

“Macau, Índia e Urbanismo de Timor – Continuidade e Ruptura na Implantação do Planeamento Urbano entre 1934 e 1974” é hoje apresentado na Casa Garden às 18h30. A obra, da autoria de Sérgio Proença, partiu de um estudo a planos urbanísticos dos antigos territórios portugueses a Oriente. Em Macau, o planeamento intensificou-se a partir dos anos 70, apesar de constrangimentos financeiros

 

Que comparações podemos fazer, em traços gerais, aos planeamentos urbanísticos de Macau Índia portuguesa e Timor nestes anos? Verificamos desigualdades?

Os planos elaborados para os três territórios enquadram-se num contexto cultural arquitectónico e urbano comum em cada momento, permitindo-nos definir “grandes famílias”, ou seja, planos formalistas, modernos e planos da cidade-território. Ou seja, entre 1934 e 1974 os 26 planos podem ser enquadrados em quatro famílias conceptuais que partilham características comuns. O caso de Macau é particularmente rico, pois não havia apenas encomendas impostas ou feitas a partir de Lisboa, mas muitas das coisas foram produzidas por quem estava no território.

[Entre os três territórios] houve ritmos e intensidades próprias. O plano mais antigo e os mais recentes são de Macau, mas existe uma maior ausência nos anos intermédios. No caso do Estado da Índia, houve uma maior intensidade de elaboração de planos entre os anos de 1959 e 1960 para acentuar a presença portuguesa naquele território, mas com a passagem [de administração] para a União Indiana, naturalmente não se elaboraram mais planos. Em Timor existiu uma maior produção logo após a Segunda Guerra Mundial, aproveitando a presença no território do arquitecto coordenador do Gabinete de Urbanização do Ultramar. Macau teve as suas especificidades, com o período de maior intensidade de produção [de planos urbanísticos] a corresponder ao início da década de 70.

O Estado Novo começou em 1933. Porquê iniciar este estudo em 1934?

Esse ano corresponde à publicação de um decreto que obrigava à elaboração de planos para todas as cidades com um número de população acima de determinado limite. Falamos de capitais de distrito ou cidades com algum movimento turístico e económico. Isto gera em Portugal e nos territórios ultramarinos a necessidade de produção de planos urbanísticos e a sua implementação. O livro trata mais da parte de concepção destes planos. Conseguem traçar-se algumas semelhanças porque existiam influências de cultura urbana portuguesa, mas também de uma cultura internacional. Em cada um dos períodos históricos existiam correntes ou princípios que iam determinar paradigmas.

Como se verificavam estas semelhanças no caso de Macau?

Não se verificavam tanto na arquitectura, na concepção de edifícios, mas mais no modo de conceber a cidade. No caso de Macau havia uma particularidade, por se notar uma influência do que se passava em Hong Kong. Hong Kong terá influenciado, em parte, o plano urbanístico do Porto Exterior, nomeadamente na criação de passagens aéreas entre quarteirões e edifícios, com uma espécie de circulação pedonal que podia ser feita longe do chão. Falamos já na década de 60, neste caso. Acabava por haver uma espécie de cultura global que vai influenciando, mas sempre com adaptações locais. Atrevo-me a dizer que estes territórios não tinham para Portugal a mesma importância ao nível de investimento como tinham os territórios da África portuguesa, que, no fundo, eram mais exigentes e maiores, onde os recursos extraídos também eram outros. O número de cidades aí também era maior, o que obrigava também a mais investimento. Tal obrigava que as propostas urbanísticas tivessem uma certa consciência e fossem, até certo ponto, mais parcimoniosas. Tratava-se de planos formados segundo os mesmos princípios, mas havia a noção de que, para serem implementados, precisavam de ser conscientes face ao contexto em que se fazia a intervenção. Em alguns casos não podiam ser assim tão intuitivos. Aliás, os que foram não chegaram a ir para a frente, e isso acabava por ser contraproducente.

Que tipo de profissionais locais intervieram no urbanismo de Macau?

Existia uma certa mobilidade de profissionais. Naturalmente que os processos continuavam a ser produzidos pelos gabinetes em Lisboa, mas existiam serviços locais que, muitas vezes, apoiavam de forma intensa espaços de caracterização e de análise dos territórios, mas depois faziam parte das equipas que implementavam os planos, sobretudo nas fases mais tardias. Inicialmente a elaboração de planos era muito controlada pelos profissionais de Lisboa, a partir da década de 60 [isso muda]. Os planos mais tardios acusavam uma certa necessidade de flexibilização, uma adaptação ao tempo e a estes territórios. No caso de Macau nota-se que há uma consciência de que os planos, para serem elaborados, precisam de suporte económico, não bastava apenas o conhecimento técnico.

Esse suporte financeiro vinha dos Planos de Fomento.

Neste caso dependia muito do investimento privado, para efeitos de execução das fases de construção, que não eram totalmente suportadas pelo poder público. Há um plano para o desenvolvimento turístico de Coloane que chegou a ser feito por fundos privados.

No caso de Macau, que planos urbanísticos destaca?

Falamos de uma fase em que não se tinha dado a expansão maior do território, e a pouca que havia não era tão rápida como a que assistimos nas últimas décadas. No início do século XX há um plano de arruamentos na zona do Porto Interior e da baixa, de 1925, que propunha a criação de ruas à semelhança do que tinha sido feito em algumas cidades europeias, ainda no século XIX. A maior parte destes projectos não foi para a frente. Hoje teríamos uma Macau substancialmente diferente se todos os projectos tivessem sido feitos.

Houve falta de investimento, estavam em causa interesses?

Era necessário, para começar, uma administração forte e que se sobrepusesse a eventos privados. Depois era necessária capacidade financeira para conseguir expropriar. Não existia nem uma coisa, nem outra. O plano de 1935 não era complexo, não passava, no fundo, de uma planta, mas tinha um sentido operativo muito grande. Na década de 60 já era completamente diferente, pois existiam arquitectos que tinham trabalho noutros territórios, como João Maria do Carmo, que tinha trabalhado em Moçambique. Foi ele que coordenou o plano para a nova zona central de Macau, o Porto Exterior, e dentro desse plano havia um outro, parcelar, que correspondia ao que é hoje em torno do casino Lisboa, antes de se criar a zona do NAPE. Esse plano teve várias fases e correspondeu a um planeamento mais estruturado, consubstanciado em fases de análise e caracterização, tentando responder a expectativas económicas que pudessem existir para esta zona. Eram planos que, apesar do seu arrojo, eram muito conscientes.

Eram também inovadores?

Mais do que inovação, acompanhavam o espírito da época. Uma das grandes qualidades era a aplicação dos princípios que estavam em voga adequados a um sítio, isto para a grande maioria dos planos. Sempre existiu essa capacidade de leitura, e não falamos de sítios que não tivessem memória, com décadas e séculos de história.

Os projectos na zona da Baía da Praia Grande, ou de desenvolvimento da Taipa, foram também fundamentais?

O plano de 1971 contém uma série de definições que acabaram por ser consubstanciadas nos anos seguintes. Houve a capacidade de projectar no tempo coisas que acabam por acontecer de uma maneira diferente do que se previa, e aí reside a capacidade de adaptação, com os planos a serem menos deterministas. Os planos das décadas de 30 e 40 baseavam-se muito naquela imagem do que iria ser feito. Depois, quando chegamos a fases mais tardias, o planeamento já era mais abstracto. As infra-estruturas de mobilidade continuaram a ser importantes para a definição formal de uma estrutura já em movimento. O plano de 1971 propunha, por exemplo, parcelamentos, infra-estruturas rodoviárias em Coloane e as bases para o aeroporto.

Macau poderia ser hoje um território mais moderno em termos urbanísticos?

Há cerca de 20 anos que não vou a Macau e, pelo que vejo, é hoje uma cidade bastante diferente. A última vez que a visitei não achei, de todo, que não fosse uma cidade moderna. Penso que se conseguiu obter um equilíbrio das diferentes velocidades [de desenvolvimento]. A capacidade que uma cidade tem de incorporar tempos diferentes é, para mim, uma qualidade, e esta é tanto maior se não abdicarmos de nenhuma das partes [velocidade de construção e zona antiga da cidade].

3 Mai 2024

25 Abril | A revolução que passou despercebida em Macau e que chegou através de um cantor

Quando há 50 anos Portugal saiu à rua para celebrar o fim da ditadura, foi um músico do regime que revelou a novidade em Macau, onde o alcance do Estado Novo não se sentia da mesma forma.

Rui de Mascarenhas atuava no Mermaid, um clube noturno no Hotel Lisboa, em Macau, quando a Revolução dos Cravos derrubou a ditadura a mais de dez mil quilómetros. E foi através deste “cantor do regime”, nascido em Moçambique, que a notícia chegou ao centro do poder do território, conta à Lusa o investigador da história de Macau João Guedes.

Mascarenhas deu a novidade ao então diretor da Emissora de Radiodifusão de Macau (atual Rádio Macau) Alberto Alecrim, que a transmitiu ao governador José Nobre de Carvalho. Só mais tarde a informação da liberdade chegou a todos, através de um noticiário da rádio britânica BBC, “retransmitido pelas estações de rádio de Hong Kong”.

Esta é a “história corrente” de como abril de 1974 alcançou Macau. Mas e como é que a notícia foi comunicada a Mascarenhas?

“Eu só vejo uma hipótese que é a seguinte: ninguém tinha telefones para ligar para Lisboa, a não ser a tropa. Terá ido aos correios telefonar para alguém?”, sugere.

Nobre de Carvalho abandonou o posto nesse mesmo ano, mas não imediatamente após Abril, “ao contrário dos outros governadores das colónias”, provavelmente pelo caráter “não extremista” e por não ter sido “ostensivamente defensor de Salazar”, analisa o investigador.

Mas este facto é também reflexo das raras transformações produzidas no imediato pela revolução em Macau. Não mudou nada no dia seguinte, “nem nos muitos dias seguintes”, declara João Guedes, até porque “Portugal estava tão longe, e os problemas que preocupavam Macau e que deram origem à Revolução de Abril não se sentiram de forma alguma” na cidade.

“Alegria zero, porque ninguém sabia o que se queria, o que é que era a democracia e essas coisas. Os chavões daquele tempo [do Estado Novo] eram quase desconhecidos aqui e, portanto, isto era a China, não tinha nada a ver com a propaganda salazarista”, diz Guedes, salientando que alguns investigadores são unânimes em dizer que Macau foi sempre “uma colónia muito especial, porque tinha sempre um governo português de Macau e um governo sombra chinês de Macau”.

Sinal também de que os tentáculos da ditadura nem sempre se estenderam ao território foram as barreiras criadas à polícia política portuguesa. Conta João Guedes que Macau foi o único território ultramarino onde não existiu PIDE.

Mas anos antes desse Abril, deu-se uma tentativa de abrir uma delegação em Macau. “Não fazia sentido que houvesse em todos os outros lados e não houvesse em Macau e de maneira que [Portugal] mandou dois ou três agentes da PIDE para cá. Quando chegaram a Hong Kong, foram recebidos no [antigo] aeroporto de Kai Tak por oficiais da polícia (…) que lhes disseram ‘os senhores não são bem-vindos a Macau e têm de embarcar de novo rumo a Portugal, porque a China não vos deixa entrar em Macau'”, conta.

Mais tarde, já com o novo governador José Garcia Leandro, também militar, sinais de maior abertura sentiram-se na região, embora Guedes sublinhe que “não se ganhou democracia nenhuma”, apenas se “distendeu um pouco a asfixia política”.

Dois anos depois, em 1976, a criação do Estatuto Orgânico de Macau atribuiu mais poderes ao governador e levou à remodelação da Assembleia Legislativa, com mais membros, mas permanecendo uma minoria o número de eleitos por sufrágio direto.

Alguns destes episódios são abordados por João Guedes no documentário “25 de Abril: A Revolução a Partir de Macau”, exibido na terça-feira no Consulado-Geral de Portugal em Macau.

25 Abr 2024

Jorge Prado, músico chileno: “A nossa democracia é imperfeita”

Era adolescente quando o referendo no Chile deu o “Não” à ditadura de Pinochet, instaurada com o golpe de Estado de 1973. Meses depois, a 25 de Abril de 1974, Portugal ficava livre desse regime. Na luta dos dois países foram muitas as influências. Hoje, Jorge Prado considera-se um precursor da guitarra portuguesa e do fado no Chile, tendo musicado para fado poemas de Gabriela Mistral

 

Optou pela música em vez do futebol. O que havia na música que lhe despertou mais a atenção?

Tinha de ter muita disciplina para fazer as duas actividades, até pelo momento que vivíamos no Chile, os anos 80. Aí a música era algo distinto, e gostava da música que os chilenos faziam no exílio. Tinham uma mensagem, e aí comecei a explorar os instrumentos que tocavam. O resultado de fazer música era distinto do resultado de jogar futebol.

Tinha mais prazer a fazer música.

Claro. Se a minha decisão tivesse passado por ser jogador do futebol, depois dos 35 anos não poderia continuar a jogar. Provavelmente teria muito dinheiro. Nunca me arrependi da decisão.

A sua decisão de se tornar músico profissional foi muito influenciada pela situação política no Chile. Viveu o período do referendo para acabar com a ditadura de Pinochet. Foi fundamental essa politização?

Claro. Antes disso eu ouvia música inglesa pop, gostava muito de grupos como os Queen, por exemplo. Gostava de ouvir, mas não de tocar. E depois quando conheci a canção de intervenção, queria cantar e tocar. Foi assim que decidi fazer esse caminho.

Encontra semelhanças entre as canções de protesto portuguesas e chilenas?

Há muitas coisas em comum. Muitos músicos e grupos chilenos gravaram a “Grândola, Vila Morena” depois de 1974. Depois tive a sorte de os conhecer quando regressaram ao Chile do exílio. Eram os meus super-heróis e agora são meus amigos e colegas. Tenho um grande amor por Portugal e conhecíamos José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, José Mário Branco. Os cantores portugueses de protesto tinham muita solidariedade com o que se passava no Chile.

O que é que uma boa canção de intervenção tem de ter?

A letra é muito importante e deve ter poesia também, não deve ter só a parte do protesto. Também gosto que tenha metáforas. Se for directa é bom, mas tem de ter sempre algo artístico. Claro que os arranjos também são importantes. Tem de ter lindas melodias.

Como foi o início da sua carreira?

No momento em que tomei a decisão de ser músico estava ainda na escola e tinha um grupo. Fazíamos música juntos e foi assim que começámos. Vivia em Talca e para estudar música a única possibilidade era ir para Santiago, e eu não queria. Não queria deixar o meu grupo porque tinha fé de que iríamos conseguir fazer coisas importantes. Então fiquei mais um ano em Talca. Estudei durante um semestre algo que não tinha nada a ver com música e depois vim para Santiago para estudar música. Deixei os meus companheiros com muita dor, mas a vida é assim. A minha ideia sempre foi trabalhar em torno dos instrumentos, ser um intérprete. Não sabia era de quê, mas o destino quis que fosse multi-instrumentista. Consegui ser polígamo na música.

Começou no tango?

Não. A música que fazia na adolescência tinha uma grande ligação à canção de protesto, mas tinha mais raízes da zona do norte do Chile, semelhante ao do sul do Perú e da Bolívia, a chamada música altiplânica, com instrumentos de sopro feitos de bambu, por exemplo. Já em Santiago queria continuar a fazer esse tipo de música e tocava flauta. Comecei por estudar música clássica, mas o caminho não era por aí, queria explorar outras linguagens musicais, e entrei numa escola chamada “ProJazz”. Esse caminho levou-me ao tango, porque não queria tocar jazz, mas sabia que a sua linguagem é importante para toda a música, nomeadamente a improvisação e a harmonia. Depois estudei com dois maestros de jazz em Buenos Aires, no tempo em que a Argentina estava numa crise como está agora. Foi um momento lindo da minha vida. Além de aprender jazz fazia um caminho próprio na composição, gostava muito de escrever música instrumental. Com a linguagem do jazz queria potenciar esse tipo de música e ter um trabalho distinto. Só depois é que comecei no tango.

Depois há uma altura em que se apaixona pela cultura e língua portuguesas, tendo vivido um período no país.

Em 2008 tive a oportunidade de acompanhar um grande músico chileno, Patrício Castilho, que não voltou do exílio, tendo ficado em França. Fez um concerto em Barcelona nesse ano e tive a sorte de o acompanhar fazendo o que sabia fazer, tocar flauta traversa. Aproveitei para trabalhar como músico de tango na Catalunha, onde estive dois meses. Depois tive um convite de um amigo chileno para ir à Galiza, mas não gostei da Galiza. Não estava a acontecer nada, não estava animado, até que recebi um convite para ir a Guimarães da parte de um guitarrista, e fui. Essa é a magia da minha vida. E aí tudo mudou. Decidi viver em Portugal depois disso. Comecei a pesquisar onde se podia tocar tango e, finalmente, escrevi para Lisboa. Responderam-me que contavam comigo para tocar às sextas e sábados. E fui viver para uma pensão na Praça do Chile. Comecei depois a tocar todas as noites. Isso em 2009.

Foi aí que começou a ouvir fado.

Sim, e foi amor à primeira vista. Adorava. Terminava de tocar tango e, no Bairro Alto, havia sempre algum lugar onde conseguia ouvir fado. Perguntava a amigos onde podia ouvir fado tradicional.

Tango e fado têm algo em comum? A melancolia, por exemplo?

Claro. Têm muitas semelhanças, mas como Amália disse uma vez, o tango é uma tristeza de desamor, e o fado é uma tristeza de vida. Ambos têm muita melancolia e são também semelhantes na harmonia.

Como descreve o português e a sua cultura?

O português é muito alegre, mas claro que tem momentos de melancolia. Conheci a Europa e acho que os portugueses são os mais sul-americanos de todos. Culturalmente, Chile e Portugal são países de poetas.

Quais os seus poetas portugueses favoritos?

Além de Pessoa, conheci e gosto muito da poesia de Florbela Espanca. Penso que é uma poesia parecida com a de Gabriela Mistral, que também estava atrás de um homem importante e não era reconhecida. As temáticas da Florbela e Gabriela são ambas profundas e intensas. No Chile, até aos dias de hoje, existe uma grande dívida para com Gabriela Mistral e há quem defenda que Florbela Espanca deveria ter maior reconhecimento no Chile. A ligação entre as duas poesias poderia ser um ponto de partida para esse maior reconhecimento.

Musicou poemas de Gabriela Mistral com fado. Como foi esse projecto?

Foi algo muito intenso e lindo. No Chile só os estudiosos conhecem bem a história de Gabriela Mistral, sobretudo como diplomata. Conheci a história dela em 2009, tendo-me deparado com a frase dela de que em Portugal conheceu a felicidade. Também encontrei. Soube que ela também não gostou de Espanha, saiu de lá de forma meio escandalosa devido a declarações que fez sobre os espanhóis. Em 2009 voltei ao Chile, até porque em Portugal a situação não estava boa. A minha dúvida era se comprava ou não uma guitarra portuguesa. Pensei que no Chile ninguém conhecia o fado, mas cheguei cá e todos me diziam que o fado era lindo e que o devia tocar. Comecei a conhecer a comunidade portuguesa em Santiago, pequena, e também a tocar guitarra portuguesa. Comecei a aprender sozinho. Em 2014 dei início ao projecto “Fado al sur del mundo”, com quatro músicos chilenos de estilos distintos. Depois surgiu a oportunidade de desenvolver um projecto para o programa de actividades do Centro Cultural Gabriela Mistral e pensei em fazer algo com o meu grupo de fado, mas relacionado com a poesia melancólica de Gabriela e Portugal. Pensei que a sua poesia poderia ficar bem com o fado. Foi então aprovada a ideia de um espectáculo de fado com poemas de Gabriela Mistral.

Mas a pandemia trocou-lhe as voltas.

E não só. O concerto foi cancelado devido à agitação social que aconteceu no Chile em 2019. Houve recolher obrigatório, os protestos eram muito violentos. O que espoletou os protestos foi o aumento do preço do metro, mas depois as manifestações passaram a ser sobre todo o sistema. O Chile é um país muito desigual, com um péssimo sistema de saúde, em que quem não tem dinheiro não tem tratamento. Era um momento histórico. A polícia foi muito repressiva. Foi nessa altura que o projecto ganhou forma, mas o concerto teve poucas pessoas. Queria continuar quando as coisas acalmassem, e aí chegou a pandemia. Não havia trabalho e pensei em dar continuidade ao projecto, porque conhecia muitos músicos. Falei com o meu grande maestro da guitarra portuguesa, José Manuel Neto, sobre a possibilidade de gravar um disco. Concorri a um concurso ao Ministério da Cultura do Chile e ganhei, mas o financiamento era muito limitado para o orçamento. Aí falei com a Embaixada de Portugal no Chile e consegui o apoio para gravar “Saudades de Gabriela – Mistral y el Fado”. Sabia que se falasse com os melhores músicos portugueses o resultado seria espectacular.

Considera que é um dos grandes dinamizadores do fado no Chile?

Acho que sim. Quando tenho de fazer algum comentário sobre mim digo que sou o precursor do fado no Chile, porque dez anos depois de ter começado não há mais ninguém que toque guitarra portuguesa. Sinto da parte da comunidade portuguesa um grande respeito porque sabem que sou um chileno que tem amor pela sua cultura e gentes.

Os artistas chilenos continuam a trabalhar muito em torno do passado político do país e da ditadura. Sente que não foram feitas as pazes com esse passado?

Claro. São 50 anos. Penso que nunca haverá uma resolução. Os filmes têm sempre a temática do golpe de Estado. É como uma ferida aberta. Penso que isso acontece porque não tivemos justiça. O ditador [Augusto Pinochet] não cumpriu uma pena, ficou em casa até ao dia da sua morte. O que impede que consigamos virar a página é o facto de continuarmos a ter um sistema económico deixado pela ditadura. Se isso não mudar é difícil, porque a desigualdade é o centro das injustiças. Hoje temos pessoas novas de direita que dizem que Pinochet foi importante.

Viveu o referendo que deu a vitória ao “Não”. Recorde-me esse momento.

Parecia um filme. Tínhamos muita fé de que o “Não” pudesse ganhar. Tinha 14 anos, tinha já muita consciência do que significava viver em ditadura, e o que poderia significar voltar à democracia. Nasci um ano depois do golpe de Estado e não tinha nenhuma experiência de vida em democracia. Nesse dia fui jogar futebol e voltei depois a casa da minha mãe, sabendo depois o resultado na rádio, que Pinochet tinha sido derrotado, e fiquei muito feliz. A nossa democracia é muito imperfeita, por causa da desigualdade social e injustiça política, mas para mim esse período [revolucionário, associado à ditadura] acabou.

Os chilenos viram acontecer à distância a revolução em Portugal a 25 de Abril de 1974. Houve sempre uma influência desse momento na luta chilena.

Sim. Falava com a minha mãe outro dia porque nasci uma semana depois da Revolução dos Cravos, e perguntei-lhe o que se falava cá sobre isso. Não vivíamos em Santiago e as informações eram poucas.

Em Portugal criou-se o grupo musical Brigada Victor Jara, por exemplo.

Sim, há essa influência. Quase na mesma altura em que Portugal acabou com a sua ditadura o Chile começou a sua.

25 Abr 2024

Virgínia Trigo, académica e ex-presidente do IFT: “Não se pode hostilizar a China”

A académica do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa Virgínia Trigo estuda há anos a internacionalização de empresas chinesas desde que a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” se apresentou ao mundo. A também presidente do antigo IFT de Macau destaca a aposta actual na área das energias, em contraste com a “dispersão” das empresas portuguesas ao entrar na China

 

Como olha hoje para o processo de internacionalização das empresas chinesas, tendo em conta os diversos estudos que tem desenvolvido nos últimos anos?

Nos últimos 20 anos, o processo de internacionalização das empresas chinesas tem passado por várias fases. Tenho estudado esta questão há cerca de 15 anos graças ao trabalho de orientação de teses de doutoramento de alunos chineses, muitas delas ligadas a processos de internacionalização de empresas. Relativamente à iniciativa “Faixa e Rota”, houve uma primeira vaga de estímulos conduzida por empresas estatais chinesas na área das infra-estruturas. Uma vez terminada a enorme tarefa de construção dessas infra-estruturas na China, a capacidade instalada gerou um excesso de oferta, sendo a internacionalização o caminho natural para a absorver. A iniciativa Faixa e Rota ofereceu uma oportunidade para a absorção desse excesso. Nessa fase, o processo de internacionalização foi feito sobretudo pelas grandes empresas de construção, mas em fases posteriores já outro tipo de empresas, e também as pequenas e médias, aproveitaram o caminho aberto para se internacionalizar. Actualmente, assistimos a uma continuidade do interesse na Faixa e Rota, bem como um interesse cada vez maior em investimentos em economias desenvolvidas nas áreas da tecnologia e inovação. Tal acontece graças a fusões e aquisições, com destaque para as áreas da inteligência artificial, energias renováveis e biotecnologia.

Relativamente a Portugal, como descreve hoje a internacionalização e os investimentos das empresas chinesas? Mudaram-se os ramos de actuação, com maior aposta nas energias renováveis e telecomunicações, por exemplo?

O interesse por Portugal acontece já nesta última fase e sim, recai sobretudo nas energias renováveis, como a produção de baterias ou automóveis eléctricos, e outros sectores que, em determinado momento, representaram grandes oportunidades para as empresas chinesas. Uma das razões para as empresas chinesas terem investido em Portugal foi porque, em determinada altura, a compra constituiu uma grande oportunidade: Portugal tinha necessidade de vender e a China tinha disponibilidade financeira para comprar. Essas aquisições por oportunidade, porque na altura foram um bom negócio, podem ser vendidas em qualquer altura, como já está a acontecer com alguns investimentos que a Fosun fez em Portugal.

Que análise faz à internacionalização das empresas portuguesas na China? Continua a haver desigualdade e grandes dificuldades no acesso a este mercado?

Essa internacionalização é dispersa, pouco consistente e as empresas não se ajudam umas às outras. Em regra, ficamos muito entusiasmados com um sucesso e muito desanimados quando este se transforma em insucesso. A China é um mercado difícil que parece fácil. O que quero dizer é que nos podemos deixar encantar muito facilmente com a simpatia, com a grandeza dos números, com as recepções e por promessas que nos fazem e apostar no curto prazo. Na China não se faz nada sem uma rede de relações e a construção de confiança é o mais inestimável dos valores. Não há “negócios da China” e o retorno só acontece no longo prazo. Uma área que me diz particularmente respeito é a internacionalização da educação e o ISCTE tem dois doutoramentos na China oficialmente reconhecidos pelo Ministério da Educação do país e que funcionam com muito êxito já há 15 anos. Mas esses programas baseiam-se em redes de relações muito antigas construídas ao longo de mais de 30 anos e que jamais foram descuradas. Posso dizer-lhe que durante o período da covid-19 alguns programas sino-estrangeiros terminaram, mas foi uma excelente oportunidade para nos afirmarmos. Nos três anos em que a crise durou estive de quarentena 126 dias, é óbvio que me custou, mas os nossos alunos tiveram sempre um apoio presencial do ISCTE. Isso foi muito valorizado e não será esquecido.

Como encara a posição da Comissão Europeia em termos de fiscalização do investimento estrangeiro, onde se incluem os investimentos chineses?

A Comissão Europeia pretende uma maior reciprocidade, isto é, um acesso mais fácil ao mercado chinês por parte das empresas europeias, advogando a necessidade de maior equilíbrio nas relações. É uma posição razoável. Durante a covid-19 a Europa confrontou-se com a quebra das cadeias de abastecimento e com excessiva dependência de mercados terceiros. Bens essenciais como os ventiladores eram disputados pelos países ocidentais nos aeroportos chineses, mas não se pode, nem se deve, ignorar nem hostilizar a China. Um país que reocupa o seu lugar (central) na história é demasiado importante para ser hostilizado e é fundamental aprender a lidar com ele aceitando esta nova realidade através do diálogo e da cooperação activa, para se conseguir um ambiente de investimento mais estável e previsível.

“As armadilhas” da internacionalização

Um dos últimos estudos desenvolvidos por Virgínia Trigo sobre o posicionamento das empresas chinesas nos mercados intitula-se “State and private-led Clusters of Innovation in China” [Clusters de inovação liderados pelo Estado e pelo sector privado de Inovação na China], e foi desenvolvido em parceria com Chen Peng. O estudo foi publicado em livro com o nome “Clusters of Innovation in the Age of Disruption” em 2022.

Nesta obra, destaca-se o facto de, em 40 anos reforma e abertura do país, se ter acumulado “uma grande quantidade de tecnologia, capacidade, experiência, fundos e toda uma cadeia industrial que inclui a construção de infra-estruturas completas e avançadas”, sem esquecer outras “realizações em comunicações, portos, pontes, estradas, caminhos-de-ferro e túneis”. Contudo, e à semelhança do que Virgínia Trigo destacou nesta entrevista, este cenário gerou um “excesso de capacidade e uma enorme procura de recursos”. Estavam, assim, criadas condições para “uma forte necessidade de internacionalização”, das empresas, que levou “não só à ascensão das empresas multinacionais emergentes da China (das quais a Huawei e a China Communications Construction Company são apenas dois exemplos), mas também à construção do ambicioso projecto” da iniciativa Faixa e Rota.

Este capítulo fala ainda da cidade de Shenzhen como “um lugar para novas fontes de inovação e crescimento empresarial”, por ter “uma abordagem de baixo para cima, orgânica e não por projecto”. Tal faz com que se reúnam na cidade “muitos talentos vindos de todas as partes da China e do estrangeiro, atraídos pelo sucesso de grandes gigantes nacionais como a Tencent e a Huawei”. Shenzhen apresenta ainda como atractivo “políticas favoráveis às empresas e uma forte cadeia industrial local”.

Entre a cultura e a economia

O estudo de Virgínia Trigo e Chen Peng diz ainda que o actual caminho traçado pela iniciativa “Faixa e Rota” está “cheio de armadilhas”, pois a China tem de “abrir a procura a novos motores de crescimento, uma vez que precisa de transferir os seus excedentes de alta qualidade para o mundo”. Contudo, “ao fazê-lo, as empresas multinacionais têm de ultrapassar incertezas políticas, culturais, económicas e de outro tipo que caracterizam a maioria dos países ao longo das rotas” integrantes da iniciativa de Xi Jinping.

Nesse processo, “empresas multinacionais dos países desenvolvidos ainda detêm a posição dominante no sistema global de redes empresariais”, pois “as suas capacidades de integração de recursos globais e de controlar o sistema de rede global continuam a afectar todos os padrões de negócio”.

Os autores consideram que, anos depois do início de “Uma Faixa, Uma Rota”, “temos ainda de avaliar qual o balanço entre o Estado e as empresas privadas presente na economia chinesa”.

16 Abr 2024

China-Portugal | Embaixador chinês em Lisboa prevê isenção de vistos

Falando num processo “gradual”, o embaixador da China em Portugal, Zhao Bentang, considera que não deve faltar muito para Portugal integrar a lista dos países isentos de visto para entrar na China. Em entrevista à Lusa, o diplomata revelou optimismo quanto às relações comerciais entre os dois países

 

O embaixador chinês em Lisboa, Zhao Bentang, prevê que Pequim inclua Portugal na próxima fase de isenção de vistos, um processo gradual baseado no volume de trocas comerciais, intercâmbios pessoais e projectos de cooperação entre os dois países.

“Na próxima fase, com a ampliação, acho que Portugal vai integrar a lista de isenção de vistos [de entrada na China]. Para promover uma medida, uma política, é sempre necessário um processo gradual”, justificou o diplomata à agência Lusa, notando que os primeiros países na lista de Pequim “têm maior quantidade de intercâmbios pessoais e de negócios ou têm mais projectos de cooperação”, e logo maior necessidade de deslocações à China. Esta é uma política implementada “de acordo com as necessidades reais”, frisou o diplomata.

Actualmente, desconhece-se a próxima data para rever os países isentos de vistos, mas Zhao Bentang garantiu que o relacionamento entre Portugal e a China “não tem problemas, nem obstáculos” e que foram implementadas várias medidas para facilitar a obtenção de vistos.

Depois de conhecido o recente alargamento de isenção de vistos para estadias de até 15 dias, o embaixador português em Pequim, Paulo Nascimento, disse “não entender” o critério de deixar Portugal de fora.

O diplomata lembrou que a China está no direito de decidir a sua política de vistos de forma autónoma, mas admitiu que vai pedir uma consulta específica sobre esta decisão às autoridades do país. “Não acredito que haja aqui discriminação negativa, no sentido de dizer que a China está a fazer isso para sinalizar alguma coisa a Portugal, não acho que seja esse o caso”, afirmou à Lusa.

Questionado pela Lusa, o Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês defendeu que a China “sempre se mostrou aberta à expansão dos intercâmbios interpessoais com os países estrangeiros” e que está disposta a reforçar a comunicação com Lisboa para “aumentar a facilidade dos intercâmbios interpessoais bilaterais”.

Sobre a ausência de Portugal nos primeiros dois grupos de países europeus, o diplomata frisa que as escolhas tiveram por base a “frequência de intercâmbio interpessoal e comercial entre a China e esses países” e que “gradualmente (a lista) será cada vez mais aberta”.

Partilha de valores

Em entrevista, Zhao Bentang fez questão de destacar os valores partilhados por Portugal e China, como o multilateralismo ou uma economia mundial aberta, além dos “consensos e cooperação” em sectores como desenvolvimento sustentável e combate às alterações climáticas.

“A parte chinesa gostaria de trabalhar com Portugal para, por um lado, aumentar o nível de relações bilaterais, e ao mesmo tempo enfrentar conjuntamente os grandes desafios e questões” para “dar mais certeza e energia positiva neste mundo de incertezas”, referiu.

Da parte chinesa, há ainda a garantia de querer continuar o trabalho para facilitar vistos, depois de se agilizar também as formas de pagamento no país.

“Também esperamos que os países estrangeiros possam oferecer medidas de facilitação ao povo chinês”, afirmou o diplomata, acrescentando que “depois da pandemia, a necessidade de intercâmbio pessoal e comercial tem aumentado”, pelo que são necessárias “políticas para oferecer conveniências e facilitações”.

“E agora, quando os amigos portugueses querem viajar ou fazer negócios na China, eu posso dizer que não existe nenhum obstáculo” quanto à obtenção de vistos para cidadãos de “um país amigo e parceiro estratégico”, afirma o diplomata.

Venham mais cinco

Relativamente aos investimentos chineses em Portugal, Zhao Bentang declarou que pelo menos cinco empresas chinesas estudam implantar fábricas em Portugal, incluindo fabricantes automóveis. O embaixador disse esperar a “criação de um ambiente justo e indiscriminado” para investidores pelo Governo português.

“Actualmente algumas empresas chinesas como a Tederic, Ningbo David Medical Device, Shyahsin estão a preparar-se para construir fábricas em Portugal e outras empresas na área de veículos electrónicos como a Chery e a XEV também demonstraram o seu interesse em construir fábricas em Portugal, estando a fazer investigações no mercado”, afirmou Zhao Bentang.

A CALB já está a planear construir uma fábrica de baterias de lítio e recebeu luz verde da APA (Agência Portuguesa do Ambiente), informou ainda Zhao Bentang, notando que a construção desta fábrica se deverá reflectir na “localização da cadeia industrial de veículos com novas energias e também para a transição de baixo carbono de Portugal”.

O embaixador previu ainda que o empreendimento Parque de Oeiras, projecto conjunto da China State Construction Engineering Corporation e da Teixeira Duarte, possa começar a ser construído ainda este ano, criando, assim “condições para atrair mais investimentos estrangeiros e criar condições mais favoráveis para a economia de Oeiras”.

Dado o envolvimento de uma empresa chinesa no projecto de Oeiras, poderão, no futuro, ser atraídos “investimentos das empresas chinesas na área das novas energias”, considerou o diplomata, que também tem expectativas sobre Portugal manter o ambiente para a realização de negócios e investimentos.

“Esperamos que o Governo português possa continuar a criar um ambiente aberto, justo, igual e indiscriminado para empresas estrangeiras. Para proteger os direitos legítimos dos investidores estrangeiros e oferecer um ambiente de desenvolvimento seguro e estável a longo prazo”, assim como de forma a “atrair mais empresas chinesas a investir e fazer negócios em Portugal”, o que também ajuda o “desenvolvimento socioeconómico” do país, defendeu.

À Lusa, o embaixador recordou que Portugal é um dos “países mais amigáveis da China na União Europeia e um parceiro estratégico global, compartilhando boas relações nas áreas da política, do comércio e também de amizade entre os dois povos”.

Aquele amigo

Portugal, referiu o entrevistado, é também um dos principais destinos de investimento de empresas chinesas, e no ano passado o investimento directo da China ultrapassou os 386 milhões de euros, um aumento homólogo de 34,52 por cento.

Já o stock de investimento directo ultrapassou os 3,6 mil milhões de euros, um aumento homólogo de 12,2 por cento. Quando se inclui o investimento de empresas chinesas através de Portugal para países terceiros, o stock de investimento ascende a 12,3 mil milhões de euros, um aumento homólogo de 10,16 por cento, disse o diplomata.

São investimentos pautados pelo princípio de “benefícios mútuos e ganhos partilhados”, frisou, dando vários exemplos de sucesso e de parcerias, como a construção do NESTER – o Centro de Investigação Energética de Portugal, numa altura em que a economia portuguesa está virada para a transição energética, digital e inovação, tal como a chinesa, empenhada em “promover o desenvolvimento de alta qualidade com as forças produtivas”.

“Podemos dizer que os dois países compartilham os conceitos de desenvolvimento e têm óbvias vantagens complementares e um futuro de cooperação mais amplo”, concluiu.

Palavras da Fosun

Depois de a Fosun ter reduzido recentemente parte da sua participação no Millennium BCP, e face a incerteza quanto à preparação de novas reduções, o diplomata indicou que, em reunião recente, o director-geral do grupo chinês lhe transmitiu muita satisfação com a “colaboração em Portugal, na Fidelidade, no Banco Comercial e no hospital (Luz Saúde)”.

“Estão muito satisfeitos nesses projectos de cooperação e decidiram continuar o desenvolvimento da sua empresa em Portugal e não planeiam abandonar o investimento”, afirmou.

“Mas, às vezes, a empresa vai ajustando as suas medidas de acordo com a situação de mercado. E quando os títulos crescem, a empresa vai comprar mais para ganhar mais. E quando os títulos descem, também mudam a sua medida de negócios. E normalmente vai ter mudanças dentro de um limite, de uma quota”, disse.

A polémica Huawei

O embaixador chinês em Portugal avisa também que afastar a empresa de telecomunicações Huawei do 5G, por motivos de segurança, pode interromper o processo, implicando custos que “podem ultrapassar mil milhões de euros”.

Zhao Bentang recordou que a empresa chinesa está presente em Portugal há mais de 20 anos, com uma “relação muito boa de benefícios partilhados” e contribuindo para o “desenvolvimento das telecomunicações”. Porém, no ano passado foram impostos limites a empresas de fora da União Europeia, da NATO e da OCDE que “não assinaram o documento de protecção de conhecimentos de Portugal”.

“Durante os 20 anos de negócios da Huawei em Portugal não existiram nenhuns riscos ou problemas na tecnologia e segurança. O parceiro português da Huawei também está muito satisfeito com os resultados. Por isso, o documento (de limitação de participação no 5G) aumenta a incerteza e mudança para a Huawei para fazer negócios em Portugal”, notou o diplomata, que fez eco das preocupações de “amigos portugueses”: “Se a Huawei não puder fazer negócios de 5G em Portugal”, este processo “será influenciado e até parado”.

Nesse cenário, “Portugal precisa de trocar para outras tecnologias, outros projetos, outros produtos na área do 5G, e isso vai causar muito prejuízo”, que “pode ultrapassar mais de mil milhões de euros”, disse ainda o embaixador, manifestando a “muita preocupação” com o caso.

Zhao Bentang frisou que o “assunto causa choque para as empresas portuguesas e até para os clientes portugueses”, uma vez que “muitas empresas precisam dos negócios” do 5G da Huawei para se desenvolver e face a incerteza também sobre o desenvolvimento das tecnologias.

25 Mar 2024

FAM | Espectáculo de “Os Três Irmãos” com coreografia alterada para evitar nu integral

Victor Hugo Pontes, coreógrafo: “A alteração não desvirtua o espectáculo”

Apresentado no Festival de Artes de Macau a 18 de Maio, o espectáculo “Os Três Irmãos”, com coreografia de Victor Hugo Pontes e texto de Gonçalo M. Tavares, teve de ser adaptado a pedido do IC para evitar o nu integral em palco dos três bailarinos. O coreógrafo diz compreender e não querer fazer imposições do foro cultural às autoridades de Macau

 

“Os Três Irmãos” foi apresentado em 2020 em Portugal, em plena pandemia. Foram feitas algumas adaptações na transposição do espectáculo para Macau?

Não. O espectáculo é, essencialmente, o mesmo. Foi criado exclusivamente para estes três intérpretes, com um texto original de Gonçalo M. Tavares, e escrito concretamente para estes três bailarinos, Válter Fernandes, Paulo Mota e Dinis Duarte. Nesta apresentação em Macau são os mesmos três intérpretes, pois para mim não fazia sentido substituí-los, uma vez que a peça foi escrita para eles. A única alteração que existe tem a ver com uma das cenas. O espectáculo trata da relação entre estes três irmãos e da sua proximidade, intimidade e conflitos, à medida que vão desenrolando o passado. Uma das cenas de intimidade é quando tomam banho juntos e se lavam uns aos outros. Nesta versão de Macau não existe nudez integral. Essa parte terá de ser adaptada, quando em Portugal os três intérpretes ficam completamente nus. Isso não vai acontecer em Macau.

Essa alteração foi feita a pedido do Instituto Cultural (IC)?

Sim, a pedido do IC.

Quais foram os argumentos apresentados?

Penso que existe uma quota para nudez nos espectáculos e, no nosso caso, essa quota já tinha sido ultrapassada. Parece que tem de ser feita uma certa gestão em todos os espectáculos em que há nudez. Acredito que tenha a ver com a questão cultural, extremamente forte, em que a nudez não é ainda um lugar-comum, e que, para não criar demasiados constrangimentos entre a plateia e a programação, tenham de fazer uma certa selecção.

Como coreógrafo incomoda-o ter de fazer essas alterações?

Tento perceber o contexto cultural em que estou inserido. Há quem diga que a dança é uma linguagem universal, mas não acredito que seja, porque há códigos específicos que querem dizer coisas diferentes, dependentemente se estivermos no Oriente ou Ocidente. A dança não é, portanto, uma linguagem universal como tantas vezes é dito. Quando apresento um espectáculo numa outra cultura, gostaria que essa cultura pudesse aceitá-lo como é, mas não quero de forma nenhuma fazer imposições. Sinto que essa alteração não desvirtua o espectáculo, é pura e simplesmente simbólica sem ser estrutural. Sinto que vou ao encontro [do pedido], tentando sempre compreender o outro lado, embora nem sempre concorde, no sentido em que a minha cultura é outra e estou habituado a uma série de hábitos a que Macau não estará, e tenho de respeitar. Temos de criar uma sociedade mais una, e para isso teremos de esbater algumas barreiras, mas temos depois as questões de identidade, que têm a ver com as pessoas e a forma como se relacionam com o corpo, a nudez, a intimidade ou privacidade.

Gonçalo M. Tavares escreveu este texto com base numa encomenda. Como decorreu o processo criativo deste espectáculo?

Fomos discutindo os temas que queríamos abordar em conjunto. Foi escrito nesse sentido, tendo como ponto de partida estes três intérpretes. Chegámos à conclusão de que poderiam ser irmãos. Interessava-me explorar as relações da família nessa peça, e dada a proximidade etária, sentimos que a relação mais próxima que poderiam ter seria sempre de irmãos, ou de pais e filhos, mas aí teriam de estar no campo da representação, um acto que não me atrai. No teatro gosto deste lado da verdade, em que os actores têm a mesma idade dos personagens, sem que haja a ideia de que estou a fazer de conta que sou outra pessoa e outro corpo.

Porquê abordar relações familiares? Neste espectáculo parecem ser relacionamentos tensos.

Isso tem a ver com o universo do próprio Gonçalo M. Tavares. É uma escrita densa, sombria, e o espectáculo caminha também nesse sentido. Quando partimos da ideia de família não foi dada nenhuma indicação de que teríamos de ir por aí. Interessava-me falar da família porque era uma questão que vinha sendo abordada de forma ligeira noutros projectos. Trabalhei antes, por exemplo, com crianças que estavam institucionalizadas e que, por isso, não tinham família, e aí dei-me conta da sua importância na estruturação de um indivíduo. Depois fiz “Drama”, que se baseia numa família disfuncional. Interessava-me continuar a pesquisar sobre a ideia de quais as relações que temos uns com os outros e que laços nos unem, se são de sangue ou de proximidade.

E os três irmãos deste espectáculo estão, precisamente, em busca dos antepassados e de compreender as suas origens.

O Gonçalo [M. Tavares] coloca-os num não-lugar, à procura dos pais, que não sabem onde estão. O texto foi escrito durante a pandemia, em que muitas pessoas perdiam os familiares e não podiam despedir-se deles, muitos elementos da família ficavam sem esse elemento de luto. Juntaram-se, assim, esses dois universos, em que estes três irmãos estão nesse não-lugar e, enquanto procuram os pais, quase que escavam o seu passado e vêm à tona todos os conflitos, tensões e proximidade que têm nesta relação que é muito de amor-ódio. Isso faz com que tenham um final trágico. É um espectáculo bastante forte nesse lado familiar. Eles fazem uma série de sacrifícios perante o pai, como figura de autoridade máxima.

Como foi transpor esse universo denso para a coreografia?

O Gonçalo M. Tavares escreveu um texto dramatúrgico, semelhante a uma peça de teatro, e começamos exactamente por aí, por tentar fazer o espectáculo como se fosse teatro, tendo havido a memorização de texto por parte dos intérpretes e uma análise cena a cena, tentando perceber quais os conflitos e discussões entre os personagens. Depois tentámos ir abandonando o texto, deixando a acção por detrás desse conflito. No espectáculo há o plano do texto projectado em legendagem, e depois o texto que não é dito, mas sim interpretado pelos bailarinos. Esses dois planos existem ao mesmo tempo. Esta dança, estas qualidades físicas, os episódios de tensão, foram criados a partir das imagens geradas pelo texto e pelas próprias acções descritas no texto.

Já com o distanciamento temporal face à estreia do espectáculo, em 2020, como olha hoje para esse processo criativo?

Parece que foi numa outra vida, porque o ser humano tem capacidade de se adaptar muito rapidamente às circunstâncias mais adversas, e também a novas circunstâncias. Partimos de um universo em que não nos podíamos tocar e, em dois anos, voltámos à normalidade, em que imaginar um tempo em que usávamos máscara e não nos podíamos cumprimentar com um beijo parece fazer parte de um filme de ficção. O espectáculo foi construído num contexto muito próprio, em residência artística comigo e os três bailarinos. Portanto, não se nota que foi feito durante a pandemia, pois feitos os testes ficámos a trabalhar numa equipa muito pequena e retomámos essa proximidade. O espectáculo foi construído sem consciência de pandemia. Os laços dos próprios intérpretes ficaram muito fortes devido a essa convivência.

É a primeira vez que “Os Três Irmãos” é apresentado fora de Portugal. Que expectativas tem no seu acolhimento em Macau?

Sim, é a primeira vez. O espectáculo circulou mesmo muito em Portugal, foi bastante apresentado. Penso que pode ser bem recebido em Macau. É um espectáculo duro, que deixa o público em apneia durante 1h30, porque fica muito ligado a ele, mas depois consegue descomprimir dessa tensão no final. De certa forma, potencia o universo do escritor Gonçalo M. Tavares, com a materialização das palavras em cena, um elemento muito forte. Penso que pode interessar muito ao público em Macau.

21 Mar 2024

António Monteiro, presidente da Associação dos Jovens Macaenses: “É necessário dar lugar às novas caras”

Decorre hoje, na Fundação Rui Cunha, o debate que pretende ir além da questão comum do lugar da identidade macaense e antes olhar para o papel ou o contributo desta etnia no Macau dos nossos dias. “Creative Dialogues & Discovery with Macanese” é organizado pela Associação dos Jovens Macaenses. O seu presidente, António Monteiro, considera fundamental chamar as novas gerações e tentar fazer diferente para que a comunidade não se dilua

 

Que objectivos pretendem atingir com este evento?

Anteriormente foi promovida, por diversas vezes, a discussão sobre a identidade macaense, mas desta vez achámos mais pertinente mostrar novas caras, falar sobre os macaenses, e também falar da situação corrente de Macau, pois decorreram muitas alterações depois da pandemia e surgiram novas abordagens no território, com as ideias de [construção] de um centro mundial de turismo e lazer, a plataforma comercial que Macau é entre a China e os países de língua portuguesa, mas há agora novas vertentes como a cidade criativa de gastronomia, a integração de Macau em Hengqin, e a ligação de Macau como centro de espectáculos e de desporto, além de toda a riqueza patrimonial que já existe. Gostava que, através da sessão, promover novos diálogos e fazer um brainstorming que pode levar a novas abordagens e dúvidas sobre a forma de os macaenses contribuírem para a sociedade. É importante que o público participe para que haja uma maior interacção de ideias, incluindo as comunidades portuguesa e chinesa. Queremos abranger todo o tipo de público, para que se possa fomentar todo o tipo de ideias e medidas.

Uma das grandes questões é o lugar que a comunidade macaense terá face a todas estas alterações que Macau está a sofrer. Como é que esta se pode ir adaptando, sobretudo no que diz respeito às novas gerações?

É um grande desafio. Não posso obrigar as pessoas a fazerem parte do associativismo, mas é preciso que as pessoas compreendam que este pode levá-los a projectar não apenas a comunidade, através da gastronomia ou do teatro em patuá, que são reconhecidos pela República Popular da China e por Macau, mas existe um networking [rede de contactos] bastante abrangente dos macaenses, desde a música, às artes, a literatura. A comunidade mais jovem tem de perceber que esse contributo é muito relevante. Recorrendo a várias associações podem elevar a contribuição da comunidade macaense a um outro patamar, e têm de estar integrados e expor-se, devem propor-se ideias diferentes para esta Macau que está cada vez mais evoluída. A questão do macaense centrou-se sempre na adaptação à realidade, e, ao mesmo tempo, propor novas celebrações que não sejam apenas viradas para o passado. Convidámos o Giulio Acconci por ser uma figura presente na música, e depois temos o Fernando Lourenço, que é professor assistente do Instituto de Formação Turística. Procurámos ter um debate entre os dois que conseguem transmitir perspectivas sobre a actual situação de Macau, sem que se aborde muito a questão identitária. É necessário ter uma partilha mais objectiva e concreta do que eles querem ou desejam de Macau.

Quando a comunidade macaense organiza eventos para falar de si mesma, recorre sempre aos elementos do patuá ou gastronomia. É necessário inovar também na afirmação da comunidade?

Relativamente à parte linguista, fomos sempre os mediadores das culturas em Macau, sobretudo a chinesa e a portuguesa. Com o desenvolvimento de Hengqin e da Grande Baía, temos de ter em conta que não nos podemos apenas focar no lado de Macau, pensando também nas vertentes desse outro lado. Devemos usar a cultura para a diversificação económica que o Governo deseja. Temos de fazer parte, mas não podemos deixar de reflectir que a cultura é importante, que faz a diferença em Macau. A existência da diáspora macaense, e felizmente temos este ano o Encontro dos Macaenses, que vai voltar a trazer novas componentes e pessoas, para fomentar a existência de uma comunidade que não se fixa apenas nos avós e nos pais.

Que expectativas tem para a edição do Encontro este ano? Podem esperar-se ideias concretas?

O Encontro vai, certamente, dar um contributo importante, porque acho que vai marcar a retoma após os anos de pandemia, em que tudo ficou um pouco parado. Certamente este Encontro vai ser a prova da exigência do futuro e aquilo que o macaense pretende fazer daqui para a frente. Da minha parte, como presidente da Associação dos Jovens Macaenses, propus actividades para o programa, e de certa forma é uma interacção dos jovens com os mais séniores, e é importante procurar o passado, mas com palestras e convívios aparecerem novas perspectivas. O programa não está oficializado e não posso divulgar ainda [a versão final], mas levámos a nossa proposta ao doutor Sales Marques, e posso afirmar que vai continuar a haver sessões culturais que explicam o passado e o futuro.

Há uma falta de liderança cívica e associativa na comunidade macaense?

Não diria que há falta de liderança, mas creio que é preciso haver uma sensibilidade para começar a apostar em caras novas. Haverá o dia em que eu também vou começar a ficar velho, e é preciso haver a noção de que o associativismo é algo em constante mutação e que deve dar sempre lugar aos mais novos. Temos de preparar sempre essa geração nova para liderar. Estou convicto de que daqui a menos de uma dezena de anos me vou retirar [da liderança da AJM], e é preciso que os mais novos possam pegar nas associações e continuar a dar o contributo ao legado macaense. Existem já associações firmadas e estabelecidas ao nível da cultura e da gastronomia, por exemplo, e acho que é necessário começar a dar lugar às novas caras.

Considera que a identidade macaense estará devidamente protegida nos novos projectos de renovação dos bairros antigos desenvolvidos em parceria com as operadoras de jogo?

Vejo essa questão de uma maneira mais positiva. O Governo entende que tem de se estabelecer o encontro entre o oriente e o ocidente, que é, precisamente, o lado especial de Macau, incluindo a parte da cultura macaense. A parte essencial é como deve ser trabalhado tudo isto. Tem-se visto, aos poucos, que é necessário incluir a participação da sociedade civil, e temos o exemplo comum da interacção da tuna macaense, por exemplo, ou do grupo de folclore da Ana Manhão Sou, ou a presença da gastronomia macaense em muitos eventos. É, no entanto, muito cedo para falar sobre isto, porque só vimos os eventos na Rua da Felicidade e na Taipa. Teremos de ver o que vai acontecer, por exemplo, junto à Ponte 16. As concessionárias têm de contar sempre com as associações e a parte comunitária, porque eles é que conhecem a história de cada bairro, e podem depois introduzir-se novos elementos com a sua ajuda. Creio que o Instituto Cultural está bastante atento e deve manter esta identidade. Esperamos que continue a existir, para não que não se diluia a faceta histórica e identitária de Macau.


“Conversa entre macaenses”

Não é novo o debate sobre o lugar do macaense, mas da sessão que decorre hoje, a partir das 18h30, na Fundação Rui Cunha, esperam-se ideias diferentes quanto ao presente e futuro. Fernando Lourenço é professor do Instituto de Formação Turística, enquanto Giulio Acconci é um filho da terra e músico bem conhecido. Paula Carion, macaense, rosto presente no associativismo da comunidade e atleta, vai moderar a sessão. A nota de imprensa divulgada fala dos “desafios num futuro próximo” de uma Macau que quer afirmar-se como “Centro Mundial de Turismo e Lazer” ou “plataforma entre a China e os países de língua portuguesa”, e considerada Cidade Criativa de Gastronomia da UNESCO. Não se ignora a crescente integração do território na ilha de Hengqin e na Grande Baía, ou ainda a aposta em elementos como a “Cidade de Espectáculo” e “Cidade do Desporto”, com um “rico património material e imaterial”. “O que está por vir para Macau e para as gerações futuras?”, é a questão deixada pela organização.

12 Mar 2024

Pedro Steenhagen, académico: “Há interesse em manter a identidade híbrida na RAEM”

Académico na Universidade de Fudan, Pedro Steenhagen analisou em “Convergindo com a Pátria – O papel da identidade nas crescentes interações políticas entre Macau e a China continental” a ideia de maior convergência de Macau em relação aos ideais da China e à vontade da preservação de uma identidade híbrida no território. O trabalho foi apresentado este sábado no Centro Científico e Cultural de Macau no âmbito do ciclo “Conferências da Primavera”

 

Porque decidiu estudar estas questões da identidade nas duas regiões administrativas especiais chinesas?

Ao longo dos meus estudos sobre a China comecei a prestar mais atenção nas questões de Macau e do relacionamento do Brasil com os países de língua portuguesa. Concluí que o Brasil não olhava para Macau, e que havia um “gap” muito grande de conhecimento no Brasil sobre a China em geral e Macau em específico. Isso me instigou a iniciar mais investigações sobre Macau. No âmbito do doutoramento de política internacional que faço na Universidade de Fudan, decidi ver porque é que há tantos atritos entre Hong Kong e a China e não tanto no relacionamento político entre Macau e a China. Um dos factores com que me deparei foi a questão da identidade, o papel e o impacto que tem. Usei dados de inquéritos realizados pela Universidade de Hong Kong (UHK) e um desses dados é, precisamente, o de confiança política e identidade nas duas regiões administrativas especiais. Comecei a escrever este artigo em 2022 e decidi esperar mais um ano por uma actualização de dados devido à covid, para não colocar dados de 2019.

Fala, neste trabalho, de uma “identidade local, flexível e não exclusiva, o que proporciona uma maior continentalização e uma maior estabilidade política” em Macau. Que factores contribuíram para esta identidade? A Administração portuguesa contribuiu para isso, por exemplo, com a sua filosofia política e modos de governar?

Sem dúvida. De maneira consciente ou não, e por conta do processo histórico diferenciado que aconteceu em Macau, não houve uma nova localização de administração política como aconteceu em Hong Kong. Até do ponto de vista linguístico vemos isso, porque o inglês é mais presente do que o português. Claro que em termos de gastronomia e arquitectura Portugal está ainda muito presente [em Macau]. Um ponto fundamental dessa diferença, e que resulta nesta identidade híbrida e flexível, é o facto de, ao longo do processo histórico, não ter havido conflitos directos de grande escala entre Portugal e China. O que aconteceu em Macau foi que, na prática, houve uma governação dupla entre os dois países, nunca houve uma dominância total, da parte de Portugal, em relação a Macau. Mesmo a partir do século XIX, quando Macau se torna oficialmente colónia portuguesa, Portugal sempre manteve boas relações com a China, e os chineses sempre mantiveram uma grande relevância na região. O processo foi diferente em Hong Kong, pois o Reino Unido dominou mais na região e houve atritos [com a China] ao longo do percurso histórico. Isso fez com que a identidade [local] de Hong Kong se tenha tornado mais forte. Essa identidade flexível que se criou em Macau é observada até do ponto de vista do Governo macaense. Há uma busca para que as pessoas de Hong Kong se identifiquem mais com a China, mas não vemos isso em Macau, porque segundo o inquérito da UHK, os dados da identificação como chinês e como local de Macau são muito parecidos, daí essa ideia de identidade híbrida. Vemos essa abertura da parte da China para que as pessoas em Macau possam valorizar essa história colonial. Isso parte tanto da China continental como do próprio Governo macaense, legitimando-se, assim, essa identidade híbrida.

Fala também da existência de crescentes afinidades com a China, e do facto de Macau aceitar mais essa convergência com a política do país. Que exemplos pode dar?

O primeiro em relação à legislação da segurança nacional. Vimos que em Hong Kong isso gerou um grande debate, até do ponto de vista internacional. Isso não aconteceu em Macau. Há também o ponto de vista histórico, porque o povo local é considerado politicamente mais apático e menos participativo. Essas questões com a China continental são menos promovidas e cultivadas no âmbito político. Em Hong Kong, sempre houve um maior incentivo à participação política. Em 1997, a população de Hong Kong, um território já com presença internacional e com uma economia forte, depara-se com uma problematização, porque já se viam como um território com capacidade política, e vê-se aí a possibilidade de perda dessa participação política. Em Macau, viveu-se um momento contrário, pois desenvolve-se mais a partir de 1999, torna-se num hub importante a nível internacional devido aos casinos e vê muitos ganhos com o regresso da administração à China. Não é à toa que surge a ideia, da parte do Governo chinês, da criação do Fórum Macau, pois é uma legitimação como as relações entre Macau e China, com a valorização da história, é válida aos olhos da China. A Lei Básica trouxe direitos fundamentais que antes não estavam tão previstos na legislação local. Macau acabou se tornando num exemplo da política “um país, dois sistemas”, o que é muito importante para a China, promover essa ideia de sucesso.

Há, portanto, uma “incorporação e uma não repressão dos elementos locais e internacionais de identidade”. Isso passa-se também com a comunidade macaense?

Essa incorporação das variadas identidades, locais, regionais e internacionais, é extremamente relevante. A ideia é que Macau continue a valorizar essa diversidade de identidades que possui. Mas isso é também uma ideia política que não é apenas encarada do ponto de vista da identidade. É interessante politicamente, para Macau, que o território se venda como um local onde diferentes culturas se encontram, onde há uma identidade híbrida. Mesmo que parte da identidade portuguesa se perca, não deixamos de falar da importância de Macau na lusofonia. A questão da identidade não tem tanto como controlar porque faz parte do processo histórico, então o que o Governo central tenta fazer é dar abertura para que essas identidades se expressem e que permaneçam ao longo do tempo. O Governo tem interesses económicos e políticos para que se mantenha esta identidade híbrida na RAEM.

Como prevê 2049, nesse contexto de identidade híbrida?

Do ponto de vista de Macau penso que não haverá grandes problemas. Isso foi demonstrado nesse movimento de continentalização em relação à China. Haverá petições ou algumas questões, algo natural desse processo que já é esperado, pois haverá mudanças mais definitivas, mas não vejo problemas graves como aconteceu em Hong Kong. As pessoas em Macau mantiveram a estabilidade, não houve mudanças bruscas ao longo desse período. Estas continuam a identificar-se como chineses ou macaenses e são identidades que continuam a conviver em harmonia. A esperança é que a China continue a promover uma assimilação contínua para que se chegue a 2049 e não haja conflitos tão grandes. [Em relação ao futuro], a região da Grande Baía pode ser um ponto interessante para promover uma maior interacção nas relações entre o Brasil e Portugal com a China, nesse triângulo. Em 2024 celebram-se os 50 anos da relação entre o Brasil e a China e está mais do que na hora de Portugal e o Brasil começarem a falar mais sobre o país, e do Brasil dar mais atenção ao Fórum Macau. Macau passa muito por essa relação e tem um potencial ainda intocado nesse triângulo.

11 Mar 2024

Portugal-China 45 anos | Carmen Amado Mendes, presidente do CCCM

Há 45 anos, Portugal e a China estabeleciam relações diplomáticas. A data foi assinalada no Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM), em Lisboa, num evento que teve como oradores os ex-embaixadores portugueses na China, José Duarte de Jesus e Jorge Torres Pereira, e o embaixador chinês em Portugal, Zhao Bentang. Carmen Amado Mendes, presidente do CCCM, recordou ao HM episódios que levaram à estabilização das relações entre os dois países e o papel que Macau desempenhou no processo

Há 45 anos, Portugal e a China estabeleciam relações diplomáticas. A data foi assinalada no Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM), em Lisboa, num evento que teve como oradores os ex-embaixadores portugueses na China, José Duarte de Jesus e Jorge Torres Pereira, e o embaixador chinês em Portugal, Zhao Bentang. Carmen Amado Mendes, presidente do CCCM, recordou ao HM episódios que levaram à estabilização das relações entre os dois países e o papel que Macau desempenhou no processo.

Celebramos o 45.º aniversário das relações diplomáticas entre Portugal e a República Popular da China (RPC). Foi um processo fácil?
Não, pelo contrário. Foi um processo moroso e complicado. Na verdade, não estamos a falar do estabelecimento de relações diplomáticas com a China, mas sim do restabelecimento… ou, se quisermos, do estabelecimento de relações diplomáticas com a República Popular da China. As relações diplomáticas existiam há séculos, mas quando Mao fundou a RPC em 1949, o regime comunista esbarrou com o regime ditatorial de Salazar que, por motivos ideológicos, nunca aceitou formalizar o relacionamento com o regime comunista chinês, apesar das várias tentativas da parte chinesa, nomeadamente no seguimento do estabelecimento de relações diplomáticas sino-francesas em 1964. Depois de 1974, o novo regime português mudou radicalmente de postura e o Primeiro Ministro Mário Soares propôs o reatar das relações, mas nesta fase a China já não demonstrou grande receptividade.

Porquê?
A RPC ainda não tinha definido a política de reunificação nacional e não sabia bem como resolver a questão de Macau. Macau tinha um estatuto ambíguo desde os incidentes do ‘1,2,3’ de 1966… E havia expectativa sobre o processo de descolonização português e, principalmente, sobre a posição de Portugal em relação à União Soviética, numa altura de grande tensão nas relações sino-soviéticas. O início da guerra civil angolana no momento em que Pequim cancelou a ajuda militar aos movimentos de libertação e o apoio de uma das facções pela União Soviética, contribuiu para o alargamento da sua esfera de influência em África. O regime comunista chinês via com apreensão a influência soviética no nosso processo revolucionário e estava pouco disposta a normalizar relações com os comunistas portugueses. Os chineses não tinham informação suficiente sobre a esquerda portuguesa para conseguir entender a natureza da mudança de regime, mas com a formação da Aliança Democrática em 1979, perceberam que a União Soviética não tinha qualquer impacto no panorama político português. A candidatura portuguesa à CEE (1977) também ajudou, porque revelava as intenções de integração portuguesa na Europa Ocidental.

Referiu há pouco a questão de Macau. Teve, de facto, influência no processo?
Sem dúvida. O primeiro passo para a aproximação entre os dois países foi o reconhecimento, do Governo português, de que a questão de Macau poderia ser negociada quando ambos os governos considerassem apropriado. Nesta Nota Diplomática do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal de 6 de Janeiro de 1975, Portugal também reconhecia o Governo da República Popular da China como o único representante legítimo do povo chinês, sendo Taiwan uma parte integrante do território chinês. Foram duas concessões políticas unilaterais importantes, assumidas pelo novo regime português sem obter qualquer contrapartida chinesa, prova de que o estabelecimento de relações diplomáticas era bem mais importante do que a soberania de Macau. Não podemos esquecer que a posição chinesa da altura era que, sendo Macau parte integrante do território chinês, não deveria ser alvo de negociações com outro país. Zhou Enlai chegou a dizer que um dia a China iria libertar Macau dos portugueses. A RPC considerava-se soberana sobre Macau. Macau era território chinês e por isso não teria direito à descolonização. Mais tarde o processo seria descrito como uma transferência de administração.

Macau não deveria ser um obstáculo para o reatar de relações?
Exacto. Portugal não questionava a soberania da China sobre Macau: tratava-se de território sob Administração portuguesa. Isto é visível na Nota Diplomática que referi há pouco, mas também no Estatuto Orgânico de Macau, que foi aprovado no Conselho da Revolução em Lisboa em 1976, e na nova Constituição Portuguesa de 25 de Abril de 1976, que não considerava Macau como território português, mas sim “Território sob Administração Portuguesa”. O facto de não se debater a questão da soberania facilitou o relacionamento com a China. E, em bom rigor, convém dizer que Macau não era uma colónia. A retrocessão de Macau teria de passar sempre por alguma espécie de negociação e, naquele momento, a RPC não estava interessada em negociar.

Mas depois mudou de ideias, não foi?
O processo foi lento. A RPC confrontava-se com grandes mudanças internas. A crise de sucessão na liderança chinesa impedia a adopção de grandes iniciativas. Os líderes mais importantes, como Zhou Enlai e Mao, tinham falecido em 1976 e o Bando dos Quatro radicalizou a cena política chinesa. Hua Guofeng sucedeu a Mao e o Bando dos Quatro e outros Maoistas radicais foram presos. Só no final da década de 70 Deng Xiaoping traz a estabilidade, com uma postura mais pragmática e menos ideológica, pondo os objectivos nacionalistas acima de concepções marxistas ou maoistas. E delineou a estratégia para a retrocessão de Macau. Uma coisa é certa: a China não queria reatar relações diplomáticas com Portugal antes de ter a estratégia para Macau bem definida. Durante todo o processo negocial Macau foi considerada questão “prévia” pela parte chinesa, defendendo sempre a sua posição de princípio relativamente à soberania sobre o território. Portugal não se opôs, mas exigiu o reconhecimento da importância da história – Macau era “um problema herdado da história”. As duas partes chegaram a um entendimento: Macau era parte do território chinês, administrado pelos portugueses, e o status quo não poderia ser unilateralmente alterado; a questão seria unicamente resolvida pela via negocial. Este entendimento permitiu que as conversações para o estabelecimento de relações diplomáticas prosseguissem sem quaisquer condicionalismos, como se Macau não existisse. O comunicado conjunto sobre o estabelecimento de relações diplomáticas não faz qualquer referência directa ou indirecta a Macau, embora Macau fosse a questão mais delicada das negociações. As declarações sobre Macau foram impressas numa Ata, que, no fundo, foi um acordo entre dois Estados que reconheciam direitos e estabeleciam obrigações recíprocas, mas optou-se por usar a palavra “Ata” ao invés de “acordo” para minimizar a sua importância. A “Ata Secreta”, como ficaria conhecida na imprensa, permaneceria secreta por acordo de ambas as partes, invocando a manutenção da estabilidade de Hong Kong.

O que dizia a “Ata Secreta”?
Que Macau fazia parte do território chinês e seria restituído à China, no momento julgado oportuno, pelos governos dos dois países e por meio de negociações. Durante o período de negociações da Declaração Conjunta, entre 1986 e 1987, a existência da “Ata Secreta” gerou muita polémica, porque alguns dos líderes políticos nunca tinham tido acesso à Ata e alguns até duvidavam da sua existência. O próprio Governador de Macau Pinto Machado admitiu à imprensa que a Ata nunca lhe tinha passado pelas mãos. Só passado algum tempo se encontrou a Ata no Ministério dos Negócios Estrangeiros e o Primeiro Ministro Cavaco Silva decidiu revelar parcialmente o seu conteúdo, evidenciando as responsabilidades assumidas pelos anteriores governos em relação a Macau. De facto, a “Ata Secreta” foi a base negocial da retrocessão de Macau.

Voltando às negociações das relações diplomatas. Uma vez negociada a “Ata Secreta”, as conversações já decorreram sem sobressaltos?
Mais ou menos. Depois de três anos de reuniões informais, a China propôs a abertura de negociações oficiais para o reatamento de relações diplomáticas luso-chinesas ao nível de embaixador, em Janeiro de 1978, e decorreram em Paris – local privilegiado de negociações com a China na Europa desde que em 1964 o General de Gaulle reconheceu a RPC. De Janeiro a Junho de 1978 decorreram conversações formais entre os embaixadores Han Kehua e Coimbra Martins, e as negociações ficaram praticamente concluídas. Mas em Portugal, a instabilidade política interna levou à formação de três governos diferentes no espaço de um ano (liderados, respectivamente, por Mário Soares, Nobre da Costa e Mota Pinto). E Coimbra Martins aguardava em Paris pela definição da política portuguesa relativamente à normalização de relações diplomáticas com a RPC. O comunicado conjunto sobre o estabelecimento de relações diplomáticas só seria assinado a 8 de Fevereiro de 1979.

O Centro Científico e Cultural de Macau em Lisboa assinalou ontem o 45º aniversário das relações diplomáticas com um evento que moderou. Em que consistiu a sessão?
O evento teve entrada livre e, para além do Embaixador da República Popular da China em Portugal, contámos com intervenções de dois diplomatas portugueses. O tema da intervenção de José Manuel Duarte de Jesus, embaixador de Portugal na República Popular da China entre 1993 e 1997, foi “45 Anos de novas Relações Diplomáticas e 5 séculos de Relações Amigáveis”. Jorge Torres Pereira, embaixador em Pequim entre 2013 e 2017, apresentou a comunicação “2029: Perspectivas para a comemoração do Cinquentenário das relações Portugal-República Popular da China”. E o Embaixador Zhao Bentang falou sobre os “45 Anos de cooperação em mãos dadas: a amizade China-Portugal cresce com resultados frutíferos”. O encerramento esteve a cargo da Senhora Ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Professora Elvira Fortunato. Recordo que o Centro Científico e Cultural de Macau é um Instituto Público que pertence ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior e tem por missão divulgar em Portugal conhecimento sobre a Ásia, em particular sobre a China, com destaque para o papel de Macau.

10 Fev 2024

Hong Zhang, académica: “Não há uma crise chinesa iminente”

Hong Zhang, bolseira de pós-doutoramento em política pública da China no Ash Center da Harvard Kennedy School, defende que a economia chinesa poderá abrandar a curto prazo, embora uma possível crise económica não seja algo “iminente” nem comparável à crise do subprime de 2008. Sobre os investimentos no sector das infra-estruturas, Hong Zhang fala de um novo posicionamento das empresas chinesas como principais investidoras

 

 

O seu trabalho foca-se no estudo da política económica chinesa em torno dos investimentos em infra-estruturas e na relação com a diplomacia do país. Que análise faz à evolução desta relação nos últimos anos?

Na era maoísta, entre os anos 50 a 70, a China começou a recorrer a diversos projectos estrangeiros para construir ligações com países desenvolvidos ou com as nações que tinham obtido a sua independência recentemente. Depois da transição económica da China nas décadas de 70 e 80, alguns destes apoios concedidos no estrangeiro tornaram-se práticas comerciais, sendo que as entidades que concederam estes apoios tornaram-se nas primeiras a terem permissão para fazer negócios a nível mundial. Tal significa que foram as primeiras a terem presença noutros países e a desenvolverem projectos de construção de infra-estruturas, o que levou experiência estrangeira para a China, muito necessária na altura. De um ponto de vista histórico, esses projectos com ajuda [da China] tornaram-se próximas daquilo que temos hoje em dia. Nos últimos anos a China concedeu vários empréstimos para países em desenvolvimento, pretendendo promover a sua indústria nesses países. Traço também um olhar sobre a estrutura desta indústria [de infra-estruturas] porque é muito dominada por empresas do Estado que competem bastante entre si e que não estão muito coordenadas. Por isso é que, em muitos mercados estrangeiros, vemos empresas que, a fim de competir pela obtenção de contratos, se anulam mutuamente. Claro que os empréstimos concedidos pela China desempenharam um importante papel para que as grandes empresas chinesas pudessem ganhar projectos de infra-estruturas de larga escala, nomeadamente a construção de auto-estradas ou centrais de energia hidroeléctrica. São projectos que acarretam elevados riscos e, por norma, não são financiados por outras fontes, tal como o Banco Mundial ou outros apoios bilaterais. Isso tornou-se num nicho de mercado para as empresas chinesas, daí que tenhamos visto, nos últimos anos, tantos projectos de larga-escala apoiados pela China. Contudo, devemos ter em atenção que este modelo se baseia em empréstimos governamentais, muitos deles concedidos [directamente] entre Governos. Este modelo vai, provavelmente, chegar ao fim dado o elevado número de empréstimos concedidos nos últimos dez anos, pois muitos países em desenvolvimento terão atingido o seu limite de endividamento.

Pode assistir-se cada vez mais a processos de reestruturação de dívida?

A grande preocupação reside no facto de muitos países se terem endividado tanto que terão de reestruturar as suas dívidas. Vamos começar a ver cada vez mais modelos alternativos [de financiamento] da parte de algumas empresas líderes da China, com estas a irem directamente para os países investir o seu capital. Penso que o Governo chinês está interessado em trabalhar com empresas europeias ou instituições financeiras para promover [o know-how chinês em matéria de infra-estruturas] e para fazer esta indústria crescer em todo o mundo. Ter a fonte de financiamento é uma coisa, mas ter empresas com capacidade para construir estes projectos é outra coisa.

Este modelo alternativo de financiamento também existe na estratégia “Uma Faixa, Uma Rota”?

Esta estratégia depende de muita mobilização, e não funciona apenas se Pequim tiver uma ideia concreta, programas e linhas de financiamento para a promover. Só funciona se forem mobilizadas numerosas empresas e actores nacionais para trabalharem em conjunto nesta direcção. Claro que funciona porque há muitos interesses envolvidos e estas empresas têm interesse em ir para mercados estrangeiros, obter novos contratos e ganhar determinados projectos. Há uma espécie de modelo de negócio em torno da estratégia “Uma Faixa, Uma Rota”. Além disso, o novo modelo [de financiamento] que referi é relativamente novo neste sector [das infra-estruturas]. Hoje em dia só as grandes empresas chinesas podem passar para a posição de investidores em projectos de infra-estruturas e não apenas partes contratantes.

Porquê?

Porque, por definição, os projectos de infra-estruturas acarretam elevados riscos. Qualquer investidor mostra–se reticente em investir neste tipo de projectos e espera, primeiro, que funcionem a longo prazo. Normalmente esse papel [de investimento] é do Governo, certo? Nas últimas duas décadas verificou-se, sobretudo nos países em desenvolvimento, a tendência global de apostar nas parcerias público-privadas. Tal implica que o Governo trabalha juntamente com investidores no financiamento e planeamento de projectos, existindo ajustes para que os privados se sintam mais seguros para investir e possam esperar um retorno a longo prazo. Isso está a acontecer com as empresas chinesas, que procuram aderir a esta tendência, mas é algo novo, não tendo ainda conhecimento suficiente ou ferramentas para operar como investidores. Isto é algo novo para quem estuda políticas económicas, como eu, porque vemos as empresas chinesas a desempenharem um papel diferente quando envolvidas em projectos de longo curso, podendo ter uma relação diferente com os accionistas locais, comparada com a que tinham sendo apenas partes contratadas de um projecto. Mas a percentagem de empresas chinesas que tem este novo papel a nível mundial é ainda muito baixa.

A China sofre o risco de uma crise económica com impacto mundial, tendo em conta o panorama verificado no sector imobiliário?

Se pensarmos numa crise como a que tivemos em 2008 na Europa e nos EUA, a situação na China é muito diferente. Provavelmente não iremos ver este tipo de crise, em que há uma grande instituição financeira a colapsar, com impactos a nível mundial. Na China há muitas questões económicas que são estruturais, ao contrário do que se passa nos EUA e Europa, em que algumas crises se relacionam especificamente com o sistema financeiro. O mais preocupante é que as empresas imobiliárias têm sido, nas últimas três décadas, um importante sector na economia chinesa, e isso está relacionado com inúmeras questões.

Quais?

Uma delas é que a urbanização da China tem estado muito ligada com o desenvolvimento do imobiliário de duas formas: uma delas é, claro, o facto de as pessoas irem para as cidades e comprarem e construírem casas. Outra, deve-se ao facto de grande parte da receita fiscal dos Governos locais ser oriunda da venda de terrenos, pois todos são do Estado. Para que os construtores consigam desenvolver algum tipo de projecto têm de adquirir terra às autarquias locais, sendo que no sistema fiscal chinês o Governo central fica com uma grande percentagem dessas vendas, deixando os Governos locais com uma pequena percentagem de receitas. As autarquias locais são responsáveis por disponibilizar uma série de serviços à população, como é o caso da educação, existindo um desfasamento entre as receitas obtidas e as suas necessidades de despesa. Por isso é que essas autarquias têm estado cada vez mais dependentes das receitas provenientes da venda de terrenos. Daí que os Governos locais promovam o desenvolvimento do sector imobiliário, o que explica a existência de muitas cidades-fantasma. É um problema estrutural, receando-se que, com o abrandamento do imobiliário, as autarquias locais não tenham receitas suficientes para salários ou outras necessidades sociais da população. Daí o sector imobiliário ser tão importante e gerador de tantas preocupações.

Não há também uma ligação à banca?

Claro que há um grande apoio dos bancos em relação ao imobiliário, pois os Governos locais apoiam-se em empréstimos. O abrandamento do imobiliário afectaria, sem dúvida, outras áreas da economia chinesa, mas como o sistema financeiro chinês não está tão interligado como o da Europa ou EUA, provavelmente não assistiremos a uma crise como a que se registou em 2008, do subprime, com a falência do Lehman Brothers, que levou ao colapso de outras instituições. Contudo, esta crise será um processo lento, pois as dívidas das autarquias locais vão sempre existir, mantendo-se o modelo da conexão estrutural entre o sector do imobiliário, as receitas dos Governos locais e o desenvolvimento económico em geral.

É necessário um novo modelo económico?

Sem dúvida que a China precisa de transitar para um modelo diferente do anterior, que é altamente insustentável e a origem de muitos problemas. Mas não vai aparecer uma solução rápida num ano ou dois. Sempre houve este apelo e o Governo sempre teve políticas de reestruturação económica em prol de uma menor dependência das exportações, que era o principal modelo de crescimento antes da crise financeira, ou de um menor afastamento dos investimentos em infra-estruturas ou desenvolvimento urbanístico. Daí que grande parte do que está em causa [a nível económico] se relaciona com o imobiliário. A grande preocupação reside no facto de, como este sector tem sido tão importante na economia, as autoridades não se dariam ao luxo de o deixar abrandar demasiado. Nos últimos anos, devido ao aumento dos preços da habitação, as autoridades adoptaram uma série de medidas para limitar a compra de novas casas, para tentar abrandar o sector. Mas agora que todos falam desta situação [o caso da Evergrande], existe a preocupação de que o Governo possa adoptar medidas de curto prazo que façam com que a economia regresse aos problemas estruturais que sempre enfrentou, e aí não haverá medidas suficientes para reestruturar a economia a longo prazo. A implementação de melhores políticas de reestruturação económica, com, por exemplo, a promoção do consumo interno, para que a economia não se baseie tanto num modelo de exportações e investimento, tem existido. Mas agora há restrições no consumo porque há falta de crescimento salarial e isso relaciona-se com o mercado de trabalho, sobretudo para os jovens que, hoje em dia, têm muita dificuldade em encontrar emprego. Daí que, provavelmente, possamos ver um abrandamento da economia chinesa nos próximos dois anos. Não é uma crise iminente, mas temos de nos preparar para esse abrandamento.

Como explica o elevado desemprego jovem no país? É consequência da pandemia ou é um cenário mais estrutural?

Penso que é mais estrutural. Claro que a pandemia atingiu as pessoas de forma muito dura, sobretudo as empresas, tendo em conta que as pequenas e médias empresas são principais criadoras de emprego. O nível salarial está a aumentar o que faz com que muitas destas empresas não possam contratar mais, e há um desajustamento, pois muitos jovens têm hoje formação universitária, mas esta pode não ser a qualificação certa para eles. São questões de longo prazo que foram aceleradas pela pandemia.

29 Jan 2024

Mark O’Neill, autor de “Zhou Youguang – Father of Pinyin Writing System” | Uma “vida extraordinária”

“Zhou Youguang – Father of Pinyin Writing System – The Man Who Made China a Literate Nation” é o novo livro do jornalista e autor Mark O’Neill focado na história do homem que inventou o sistema de romanização de caracteres chineses, permitindo a alfabetização de cerca de um bilião de chineses. Falecido em 2017, com 111 anos, Zhou Youguang viveu “cinco vidas numa só”

 

Fale-me do início deste projecto. Porque decidiu escrever a história de Zhou Youguang?

Quando estava em Pequim vivia muito perto do professor Zhou. Na altura, já tinha algumas coisas sobre ele nos jornais chineses. Ele era muito conversador, simpático, e tinha mais de 100 anos. Fiquei com uma forte impressão dele nessa altura, mas como o dia-a-dia era muito preenchido com o trabalho, nunca lhe dei a devida atenção. Só muito depois olhei para o que tinha feito, e descobri que a sua vida foi completamente extraordinária. Poucas pessoas chegam aos 111 anos, e mesmo durante a sua vida, teve cinco vidas diferentes. O sistema pinyin foi o maior e mais importante legado que deixou à humanidade, mas também teve outras vidas.

Outras profissões?

Foi bancário, trabalhou em Xangai, Nova Iorque e Londres. Durante a II Guerra Mundial esteve em Chongqing, que era a capital da nação. Aí desempenhou um trabalho muito importante, providenciando comida e roupa aos militares e à população. Depois, no período após 1949, foi professor de economia. [Zhou Youguang] sofreu muito no período da Revolução Cultural, e depois da sua reforma escreveu muitos livros. Nós temos apenas uma vida, fazemos apenas uma coisa. Mas o professor Zhou fez cinco ou seis coisas ao longo da vida, é incrível.

Zhou Youguang inventou o sistema pinyin que permitiu a muitos chineses e estrangeiros aprenderem mandarim. Foi o principal responsável por este sistema inovador? As autoridades chinesas reconheceram esse papel?

É uma questão complicada. Depois da Revolução de 1911, quando caiu a dinastia Qing e nasceu a República da China, muitos intelectuais perceberam que tinha de ser alterada a forma como se aprendia chinês. Se a única forma fosse aprender todos os caracteres que existem, apenas uma pequena parte da população teria essa capacidade, por ser algo estudado durante um longo período de tempo, por quem têm tempo livre. Por outras palavras, tinha de existir outro sistema. Então, a partir de 1911, passou a haver diferentes sistemas de romanização [dos caracteres], ou não era usado, sequer, o alfabeto romano. Podiam usar-se outras versões, de forma abreviada, e foram elaboradas muitas outras. Muitos chineses estudaram na União Soviética e desenvolveram outro sistema, afirmando que não eram necessários caracteres e que bastava usar o sistema romanizado. [O sistema pinyin] começou a ser desenvolvido a partir dos anos 30 ou 40, tendo sido publicados vários livros e jornais com este sistema. E os líderes comunistas, como Mao, mas não só, estavam muito interessados nele.

Se os sistemas de romanização eram muitos, como foi a escolha do mais adequado?

Quando os comunistas sobem ao poder em 1949, queriam escolher um dos sistemas em vigor, e teria de ser adoptado o melhor. Houve um intenso debate no Governo e entre intelectuais, como professores. Estes disseram que não poderiam ser abolidos os caracteres chineses por serem parte central da história e tradição da China, e também da religião. Então o novo sistema seria sempre adicional aos caracteres. Em 1956 o professor Zhou ensinava economia em Xangai e foi para Pequim onde passou a trabalhar na chamada Comissão para a Reforma dos Caracteres Chineses. Este órgão foi criado para conceber o sistema romanizado. Assim, não é justo dizer que o professor Zhou Youguang é o único autor deste sistema, porque não era o único membro do grupo. Antes dele muitos académicos fizeram pesquisas e escreveram estudos sobre a matéria. Ele chefiou o departamento que finalizou o sistema, e, nesse sentido, podemos de facto chamá-lo de “pai do pinyin”. Quando as pessoas o entrevistavam e o chamavam de “pai do sistema pinyin”, ele dizia que não tinha esse estatuto, que era, sim, o filho do pinyin. Era muito humilde, mas também reconheceu o quão difícil foi o trabalho feito pelos académicos antes dele, que o levou ao novo sistema. Quando [o pinyin] estava a ser concebido, o professor Zhou foi sujeito a intensas críticas.

Porquê?

Dentro do Partido Comunista havia moderados e pessoas mais à esquerda, e os que estavam mais à esquerda chamavam-no de escravo do Ocidente, questionando o uso do alfabeto romano, pois na União Soviética, por exemplo, havia o alfabeto cirílico. O professor Zhou disse que o alfabeto romano era o melhor por constituir um padrão global e por ser mais fácil para os chineses aprenderem. A sua visão prevaleceu até ao fim. Mas foi fortemente criticado por pessoas dentro do Governo chinês e pela comunidade intelectual.

É interessante a influência soviética neste processo. Houve pressão para usar o alfabeto cirílico no processo de reforma dos caracteres chineses?

A República Popular da China (RPC) foi estabelecida em 1949 e aderiu ao modelo económico e político da União Soviética, país que esteve muito envolvido com a RPC nos seus primeiros anos. Muitos líderes chineses estudaram na União Soviética, país que tinha centenas de especialistas e técnicos a trabalhar nos maiores projectos industriais da China. A União Soviética teve uma enorme influência no novo país, na nova China comunista. Quando o trabalho da comissão de reforma [do chinês] começou, o embaixador soviético teve contacto com o que estava a ser feito e sugeriu o uso do cirílico, pois era um alfabeto usado na Rússia, Ucrânia e em muitos outros países. Defendeu ainda que a União Soviética era um grande aliado da China. Politicamente, havia um forte argumento para usar o cirílico, mas o professor Zhou era um homem muito inteligente.

Em que sentido?

Para ele era mais importante ter o melhor sistema para os chineses. Não procurava agradar a americanos ou soviéticos, ou a qualquer outro Governo. Estou certo de que ele tomou a melhor decisão porque mais tarde muitos chineses começaram a estudar inglês. As principais línguas do mundo usam o alfabeto romano, então ele tomou a decisão certa para a China. Felizmente, a decisão teve o apoio dos seus superiores. Podemos, assim, afirmar que foi uma pessoa muito independente em relação a todos os círculos políticos e a todas as pressões políticas com que se deparou. Claro que trabalhou durante dois anos como bancário na América, e em Londres durante um ano. Quando esteve na América, conheceu muitos linguistas chineses a quem pediu opiniões. Em Nova Iorque, depois do trabalho e de jantar com a mulher em casa, costumava ir para a biblioteca pública quase todas as noites. Foi tantas vezes que chegou a ter um lugar especial reservado para ele, porque ficava lá muitas horas. Portanto, foi alguém que tirou vantagens desse tempo, foi um estudante muito diligente. Ele estava muito ligado ao conhecimento, não apenas sobre linguística, mas sobre vários temas. Poderíamos perguntar várias coisas ao professor Zhou que ele saberia responder. Não era membro do Partido Comunista ou de qualquer outro partido. Diria que era uma pessoa muito independente e um puro intelectual.

Porque era tão importante assegurar a literacia da população após a implementação da RPC, em 1949?

Diria que todos os Governos que se seguiram após a revolução de 1911 tentaram reduzir o nível de iliteracia da população porque era sinal de um Estado moderno. Para desenvolver um Estado era necessário que a população soubesse ler e escrever, para poder estudar e trabalhar melhor. Penso que esse foi o grande motivo por detrás da decisão do Governo da RPC e da comissão criada em 1956. Alguns dos objectivos [desta comissão] era simplificar os caracteres chineses e transformar o mandarim numa língua nacional. Isto porque antes o mandarim era o idioma mais importante do país, a língua oficial, mas a maioria dos chineses não a falava. Falavam a língua da sua cidade ou província, os dialectos. Por isso, o Governo da RPC queria que os caracteres fossem mais fáceis de aprender, para que as pessoas de Xangai, Sichuan ou Guangdong falassem a mesma língua.

Quais as grandes mensagens transmitidas por este livro?

Um dos aspectos do trabalho do professor Zhou que ainda não referi são os escritos da fase final da sua vida. Depois de se reformar da comissão em 1991, foi bastante produtivo durante 26 anos até à data da sua morte, em 2017. Escreveu muitos livros e artigos sobre diferentes áreas. A percepção que temos dele é que era uma pessoa independente, um intelectual objectivo, alguém com capacidade para discutir assuntos que outros intelectuais chineses não se atreviam a falar, por serem temas sensíveis. Ele discutiu temas como a Revolução Cultural, o regime do Presidente Mao ou o papel da União Soviética na China. Mas admiro-o por ter escrito sobre estas questões importantes para que os chineses possam compreender o que aconteceu. O Governo pode não ter ficado satisfeito com aquilo que escreveu, mas tinha uma certa protecção devido à sua reputação. Podemos lembrá-lo como um dos fundadores da opinião pública, mas também como um notável intelectual público, sendo que não havia muitos no país.

13 Dez 2023

Patrícia Ribeiro, directora do IPOR: “Queremos muito trabalhar na China”

Patrícia Ribeiro traça um balanço positivo dos quase cinco meses desde que assumiu a direcção do Instituto Português do Oriente, após um período difícil com perda de formandos e limitações. Para o futuro, a nova directora aponta à expansão das actividades do IPOR além do ensino do português dentro da sala de aula

 

Que balanço faz da actividade do Instituto Português do Oriente (IPOR), desde que tomou posso como directora no passado mês de Julho?

Estes primeiros meses têm sido muito trabalhosos porque estamos a tentar organizar o ano de 2024. Fizemos alguns pontos de situação dos últimos três anos, porque houve condicionantes bastante variadas em Macau para o nosso trabalho. Tentámos ver em que medida tudo o que fizemos poderá condicionar a evolução do IPOR para este mandato a partir de agora. Queremos também delinear uma acção para os três anos de mandato que vamos ter.

Quais são os grandes projectos que o IPOR quer desenvolver no próximo ano?

Apostamos sempre na formação. Vamos tentar fazer a divulgação dos cursos para recuperar um pouco os números dos anos da pandemia, porque foram três anos em que houve muitas dificuldades e tivemos sempre de reagir momentaneamente às mudanças, com o encerramento de instalações, cancelamento de cursos ou suspensão de aulas. Queremos recuperar esses números da oferta formativa. Para contrabalançar a diminuição do número de formandos, procurámos, em articulação com várias entidades, entrar noutras instituições e promover a língua portuguesa noutros âmbitos, através da assinatura de protocolos. Há ainda a possibilidade de os nossos professores poderem trabalhar noutras instituições e, assim, abranger mais a acção do IPOR em Macau. Queremos muito trabalhar na China, nomeadamente através do posto que criámos em Pequim, com a promoção de cursos junto da nossa embaixada, tanto online como presenciais, mas também na área da formação de professores. Temos ainda recebido vários pedidos de universidades e professores da China, e de outros países da região.

Pedidos em que sentido?

Estamos a planear fazer um programa de formação anual que se estenderá ao longo de três anos para responder a estes pedidos. Estamos a tentar, com estas instituições que nos têm contactado, assinar outros protocolos, não só na área do ensino, mas em termos de colaboração de actividades culturais e fazer alguns programas de intercâmbio.

A Universidade Politécnica de Macau (UPM) tem um centro de formação de professores, por exemplo. São projectos que vão trabalhar paralelamente?

As formações de que falo irão decorrer com universidades da China que nos têm procurado directamente. Não temos parcerias com outras instituições [de Macau], mas não é algo que esteja fora do nosso trabalho, porque o IPOR quer reforçar as colaborações com outras instituições do ensino superior, não só em Macau, mas noutros países.

A resposta que Macau dá ao nível do português deve ser mais unificada e global?

Penso que sim. Por isso o IPOR tem um protocolo com a Universidade de Macau e assinou um protocolo com a Universidade de São José. Também antemos bons contactos com a UPM.

Os cursos de português do IPOR deixaram de integrar o Programa de Aperfeiçoamento e Desenvolvimento Contínuo do Governo. Isso afectou o número de inscrições?

O novo regulamento do programa tem parâmetros que se diferenciam bastante da oferta formativa que o IPOR tem ao nível do curso geral de português como língua estrangeira. Os cursos intensivos, porque são de curta duração, ou cursos para áreas específicas, continuam a estar integrados no programa. Só o curso geral deixou de estar englobado, que é o maior que temos e que recebe, geralmente, o maior número de inscrições. O facto de não estar abrangido no programa e o facto de as pessoas não poderem usar o subsídio poderá ter influenciado o número de inscritos.

Como explica a retirada deste curso do programa?

A Direcção dos Serviços de Educação e Desenvolvimento da Juventude (DSEDJ) mudou o regulamento que tem outros critérios, nomeadamente a duração dos cursos. O nosso curso geral tem 150 horas e dura 10 meses, e neste momento já não é possível inscrever cursos desta natureza no programa. Já não era possível, mas nós conseguimos fazê-lo dividindo o curso em duas fases. Penso que não é uma alteração propositada para impedir a inscrição deste curso no programa. Foi uma diferente forma de organização.

Como encara esta posição? Não significa menor aposta do Governo na língua portuguesa?

A RAEM continua a apostar no ensino do português, continuamos a colaborar de muito perto com a DSEDJ, de onde nos chegam consultas escritas para a formação em português. As próprias escolas luso-chinesas procuram-nos para o desenvolvimento de actividades culturais e pedagógicas com crianças. Muito recentemente, o Chefe do Executivo alargou para mais quatro escolas o ensino do português. Por outro lado, o IPOR trabalha muito com os Serviços de Administração e Função Pública, organizando anualmente um programa de formação para funcionários públicos, destinado a áreas específicas e português como língua estrangeira de forma geral. Não vejo que exista um menor interesse por parte do Governo para que se mantenha o português.

Em relação à questão da não aceitação de novos pedidos de residência de portugueses fundamentados com o “exercício de funções técnicas especializadas”. Até que ponto afecta a contratação de novos docentes pelo IPOR?

Esta questão está a ser tratada ao mais alto nível e vamos ver em que medida o futuro nos poderá trazer outras alternativas. Para já, é esta, é este o mecanismo que está a ser utilizado para a contratação de professores [o bluecard].

O IPOR tem falta de docentes? Quais os desafios a esse nível?

Contratámos três professores de Portugal que iniciaram recentemente funções. Com o corpo docente que temos conseguimos responder a todos os pedidos e necessidades internas. Estamos a planear 2024 e em princípio não haverá mais dificuldades. Em Janeiro vamos contratar mais um docente. Tem acontecido uma rotatividade de docentes, e há duas épocas em que isso é significativo, sobretudo no Verão quando termina o ano lectivo, e depois no início de um novo ano lectivo. Mas, para já, estamos a responder.

O IPOR chegou a sofrer com a falta de salas de aulas. O problema está resolvido?

Está resolvido, as nossas instalações dão resposta. Negociámos a partilha de instalações com o Consulado-geral e a AICEP [Agência de Investimento e Comércio Externo de Portugal] e conseguimos mais duas salas para fazer face a essa necessidade. Tínhamos 9 e passámos a ter 12 salas.

Relativamente à Livraria Portuguesa, há muito que vinha sendo adiada uma nova concessão. Que balanço fazem do posicionamento da entidade e da estrutura de negócio?

Este era o segundo concessionário [Praia Grande Edições], porque o primeiro concessionário entrou em 2003, quando a Livraria Portuguesa passou a ser explorada por terceiros. O segundo concessionário começou a operar em 2011, e no final dos cinco anos a concessão foi renovada. Com a pandemia fomos renovando a concessão anualmente, até que surgiram condições para abrir este concurso. O balanço em si é positivo, porque a livraria continua a responder com aquilo para o qual o contrato foi feito. Claro que teve contingências nos últimos anos, como todos nós, mas divulgou os escritores de língua portuguesa e respondeu ao fornecimento de livros para a Escola Portuguesa de Macau. Esse é um dos itens obrigatórios que temos no contrato.

Fala-se que a Livraria Portuguesa nem sempre é um projecto economicamente viável. É possível alterar este modelo de negócio?

É algo que o novo concessionário terá de analisar da melhor forma. Da nossa parte há sempre outras formas de fazer outro tipo de acordos ou contratos com as editoras em Portugal, ou ter outros mecanismos de colaboração. Como a livraria está aqui, um dos maiores problemas é não haver a consignação de livros, que acontece em qualquer outra livraria em Portugal. Penso que há outros mecanismos que se podem accionar e explorar para baixar o preço dos livros. O concessionário pode diversificar a comercialização de outro tipo de produtos e fazer outro tipo de iniciativas para dinamizar a livraria, tendo em conta que o turismo está a regressar aos números normais. Isso tem sido feito pelo concessionário nos últimos anos, que tem diversificado a oferta de produtos para a área do turismo.

Com a redução da comunidade portuguesa qual será o papel da livraria e que posicionamento deve ter?

É verdade que a comunidade sofreu uma redução, mas está novamente a retomar a normalidade. Tenho verificado que há pessoas a regressar. Não nos podemos cingir apenas aos portugueses, pois Macau continua a promover e a ter a língua portuguesa como oficial. Continua-se a dar formação a quadros da Função Pública, a ter escolas onde se ensina o idioma. Não nos podemos centrar apenas na comunidade. Estes actores vão procurar a literatura e outros produtos que a livraria poderá disponibilizar.

Esperam um grande aumento do número de alunos para os próximos meses?

Esperamos sempre que sim, sobretudo depois destes anos em que sofremos uma diminuição bastante significativa. Em 2021 tivemos cerca de 4.500 alunos e em 2022 tivemos 3.500, em termos globais. No curso geral os números diminuíram muito mais. O que procuramos fazer neste momento, e é algo que serve para contrabalançar os próximos anos, mesmo não sabendo se vamos conseguir recuperar os números no curso geral, é fazer outros acordos para continuar a promover a língua portuguesa noutros âmbitos.

Pode dar exemplos?

Vamos fazer uma campanha de divulgação do IPOR de outra forma, com outro dinamismo, percorrendo as redes sociais, mas também outros mecanismos de divulgação. Vamos fazer um trabalho de proximidade com outras instituições de ensino, colaborando mais com as escolas, para levar a língua às crianças de uma forma mais prática, sem ser sempre na sala de aula. Essa é uma forma de os incentivar a procurar os cursos no IPOR. Nos próximos anos queremos trabalhar em rede com os outros postos e centros culturais da Ásia, não apenas na China, mas Japão, Malásia ou Coreia do Sul. Estamos a trabalhar no desenvolvimento de manuais para Kuala Lumpur, pois há uma universidade que ensina o português. Eles conhecem os manuais que desenvolvemos para o contexto de Macau e estamos a fazer uma adaptação dos livros. Já estamos avançados nesse trabalho, mas o manual não está concluído. Queremos fazer itinerância de artistas, escritores e companhias de teatro para optimizar recursos.

1 Dez 2023