Entrevista MancheteAntónio Antunes, cartoonista: “Às vezes considero-me um artista” Andreia Sofia Silva - 12 Dez 2024 Chama-se António Antunes, mas assina os seus cartoons simplesmente como António. Há 50 anos que caracteriza a actualidade com recurso ao desenho e humor, grande parte deles no Expresso. Em entrevista, o cartoonista, que desenhou os tempos do pós-25 de Abril, lamenta que hoje os jovens cartoonistas não tenham tantas oportunidades de singrar na carreira Já vai longa esta sua aventura de 50 anos dedicados ao cartoon. Alguma vez pensou que ia fazer isto durante tantos anos? Não. As coisas foram acontecendo, e o resultado é este. Nem sequer havia perspectivas para haver um plano. Portugal não tem sido um país que favoreça muito este tipo de actividades. Fez formação na Escola António Arroio ainda durante o período do Estado Novo. Como era aprender artes numa altura em que o país [Portugal] era tão cinzento, com limites à criatividade? Aprendíamos sobretudo técnicas, de trabalho ou de composição. Agora a criatividade é outra coisa. Não só ela estava muito limitada, mas também não é algo que se venda. Não há cursos para fazer artistas, há cursos que nos dão noções sobre composição ou técnicas de pintura, ou cores. Mas só isso não chega. Depois é preciso que haja qualquer coisa além daquilo que é académico. Nas artes há sempre qualquer coisa que escapa mesmo que se aprenda tudo. A criatividade é uma coisa estranha, porque não há uma regra. O António considera-se um artista? (Hesita) Às vezes considero. Já teve muitos cartoons polémicos, nomeadamente do Papa João Paulo II com o preservativo no nariz. Quais foram os cartoons que o obrigaram a fazer maior jogo de cintura ou a lidar com mais pressões? Se calhar é uma felicidade minha, mas os meus problemas nunca são a priori, mas sim à posteriori. Até agora não tenho sido muito limitado naquilo que posso fazer no jornal [Expresso]. Agora, quando as coisas saem, às vezes têm consequências. Em Portugal foi a questão do preservativo no Papa, internacionalmente foram outras coisas. Esse cartoon continua a mexer. Como foi lidar com toda essa polémica? Esse cartoon [do Papa João Paulo II] foi polémico porque quiseram que assim fosse. Aquilo saiu muito bem e não gerou nenhuma algazarra. Depois houve um movimento conservador no seio da Igreja que quis fazer daquilo uma polémica, três semanas começaram a empolar aquilo, a fazer um abaixo-assinado. O homem que liderava as forças católicas disse esperar um milhão de assinaturas, mas, felizmente, conseguiu apenas 29 mil, e a diferença fez com que a montanha nem um rato parisse. Chegou a ser discutido na Assembleia [da República]. É uma polémica um bocado pífia, mais ainda, 30 anos depois, quando a própria Igreja está a mudar o seu ponto de vista sobre essa matéria, nomeadamente com este Papa [Francisco], felizmente. Perante o que me levou a fazer esse cartoon, voltava a fazê-lo. As declarações do Papa na altura foram públicas, não foram sequer ocultas, dentro de muros, e falou para todo o mundo, portanto, também para mim. Senti-me lesado, que aquilo não fazia sentido nenhum. Acho que a atitude do Papa, naquele momento, foi criminosa, no pico da Sida e, em África. Foi de uma insensibilidade e insensatez enormes. O cartoon é uma arma de arremesso, uma forma de expressão? Arma de arremesso é uma expressão dura de mais, mas o cartoon é, de facto, a forma de eu me expressar. Há colegas meus que fazem artigos, mas eu faço desenhos. Que outros cartoons destaca, por aquilo que lhe trouxeram? O primeiro que me sensibilizou foi aquele que me fez ganhar o maior Salão do mundo de cartoon na altura [Grande Prémio do XX Salon International de Cartoon, Montreal, 1983], a partir deste cantinho que é Portugal. Um Salão que tinha mais de mil participantes, e ter ganho foi muito bom. Fiquei mais seguro, confiante, porque a partir daí podiam continuar a fazer-se coisas. Esse primeiro cartoon também deu polémica, o “Gueto de Varsóvia em Shatila”, em que utilizo a fotografia conhecida do gueto, de um miúdo judeu de mãos levantadas, acossado por soldados nazis, e no cartoon o miúdo é palestiniano e os soldados israelitas. [A polémica deu-se] com todas as vozes dos judeus, que são peritos nisso, a fazer muito barulho, com um certo tom de vitimização, mesmo que sejam eles a atacar. Um director do Salão disse que tentou alterar a votação, tal é o peso do lobby judaico, mas não conseguiu. Esse cartoon poderia ser hoje desenhado novamente. Já o publiquei novamente. Infelizmente não está desactualizado. Mas sente que muito do que desenhou, sobre a actualidade, se repete, num sinal de que a História é cíclica? Há uma resistência à mudança. Um dos méritos do cartoonista é ser capaz de ver antes do tempo, ou em cima do tempo, se quiser. Tenho a invasão da Crimeia feita em 2014, e assumo aquela visão. Foi em cima, e outros fizeram mais tarde. Há outros exemplos. Começa a fazer cartoon a seguir ao 25 de Abril de 1974, ali um pouco no rescaldo da Revolução. Sente que, de certa maneira, inaugurou a disciplina do cartoon político em Portugal? Talvez. Mas não sou muito claro em relação a isso, porque antes de mim houve um grande desenhador, o João Abel Manta, um gráfico fantástico, que tinha uma diferença enorme em relação a nós, pois éramos miúdos e ele já tinha uma cultura que lhe permitia isso. Mas há um lado menos bom, pois ele fazia propaganda política. Era um homem do Partido Comunista Português (PCP), e fez essa propaganda até onde a Revolução o permitiu. Depois quando as coisas se estabilizaram, ele saiu e foi fazer outras coisas. Isso não lhe retira a qualidade, mas não é a minha noção de cartoon. Respondo aos vários estímulos dos acontecimentos de outra forma. O cartoon permite-me expressar as opiniões, mas ser capaz de o fazer em diferentes sentidos da vida, perspectivas, sem estar prisioneiro, como ele ficou prisioneiro do PCP, foi uma coisa que me ajudou muito. Alguma vez sentiu alguma pressão da parte dos jornais onde colaborou? (Hesita). Algumas coisas, mas não são importantes. Uma coisa que consegui, sem grande esforço, foi fazer com que as pessoas pensassem que eu tenho um mau feitio danado, e que era melhor não se meterem comigo. Isso ajudou, porque pensavam duas vezes antes de falar comigo. Uma vez no Expresso, um tipo do desporto encomendou-me uma capa, e começou a dar dicas de como eu devia fazer o desenho. Até que lhe perguntei se alguma vez eu lhe tinha dito como escrever uma notícia. Isso deve-lhe ter ficado na memória muitos anos, e deve ter repercutido essa conversa noutras pessoas. Não frequentava o Expresso, sempre estive no meu canto e não me desgastava com o dia-a-dia, com amizades e inimizades. Costuma desenhar aqui, no atelier? Aqui. Mas isso [a imagem de mau feitio] de facto ajudou-me. E há também a história de eu ter outra profissão. Costumo dizer que tive mesmo duas profissões, pois era cartoonista e designer gráfico, e aí tinha clientes meus que também o eram do Expresso, nomeadamente A Tabaqueira. Era amigo do director comercial, um tipo comodista, que me metia a negociar contratos com o jornal em nome de A Tabaqueira. Portanto, eu transmitia uma imagem efectiva de poder que, na verdade, não tinha. Se juntar um tipo que tem mau feitio a um tipo que, aparentemente, tem poder, é uma chatice (risos). Quando lhe pergunto sobre as pressões, penso no período logo a seguir ao 25 de Abril, anos de 1974-1975, em que tudo era politizado. Aí eram maiores? Consegui lidar com isso. Nesse período do PREC (Processo Revolucionário em Curso) tinha mesmo um cartoon sobre o PREC que durou dois anos. Foi uma espécie de fuga para a frente. Havia uma grande confusão, e, acho eu, isso interessava ao meu jornal [Expresso], embora isso nunca tenha sido dito. Dava uma ideia de frescura do jornal em relação a um período complexo, mas nunca me disseram isso. Tenho a ideia dessa utilidade do cartoon, era a forma de consolidar a independência do jornal em relação aos acontecimentos, mesmo quando às vezes não havia essa independência. Estamos hoje numa era do politicamente correcto, em que tudo parece ofender? Não sinto, porque não quero sentir. Cheguei a uma fase da minha vida em que se não me quiserem aturar, não aturem. É fácil. Tudo o que foi uma luta para impor um nome e um ponto de vista, uma carreira, já foi feito. Pode ser melhorado e consolidado, mas se não for, não é. Se me tornar muito inconveniente para o jornal onde trabalho, e quero acreditar que isso não acontece… Mas em termos gerais, às notícias, comentários nas redes sociais, sente que há o politicamente correcto? Claro que há. A minha situação é de excepção. Os mais novos, no mundo do cartoon, não têm oportunidades nenhumas. Têm menos do que quando comecei. Por vários acasos da vida tenho uma posição que se solidificou, mas isso não é exemplificativo do que se passa ao redor. Os novos cartoonistas estão cheios de problemas, não há espaço para eles, não há meios de pagamento. São empurrados para sair dos jornais, e não para entrar. O cartoon não tem lugar nas redes sociais? (Hesita) Pode aparecer, mas não me parece… diz-se que o jornalismo está a morrer e nós, cartoonistas, vamos primeiro. Acho que essa é a tendência. O jornalismo tem vindo a perder poder face às redes sociais, com a opinião anónima, que não se pode escrutinar, é muito mau e medíocre. E isso vai crescer. E a Inteligência Artificial (IA)? Pode substituir o cartoonista. Essa nem falo porque não conheço os limites, mas intuo que devem ser terríveis. Pode de facto substituir o cartoonista, mas aí subverte-se a criatividade. Há alguma figura pública que goste particularmente de retratar em cartoon? Outro dia disse que, em relação ao Trump, tinha dois sentimentos antagónicos: como cidadão, acho o homem detestável; mas como cartoonista é a minha matéria prima. O Putin também é bom. Todos os homens com muitas narrativas e muito poder são susceptíveis de dar boas coisas do ponto de vista da análise de um cartoonista. São políticos com um discurso muito claro sobre o que pretendem e o que querem, e isso pode ser bom para o cartoon. Como se sente por ir a Macau novamente? A exposição [no Clube Militar] vai ser diferente das outras, com 160 trabalhos. Ainda é muita coisa. É uma viagem por estes anos, pela política portuguesa e internacional também. Estou cheio de curiosidade, promover a mostra, ver o que me perguntam, mas isso faz parte do jogo. A imprensa de Macau não tem uma grande presença do cartoon, à excepção do Rodrigo [Rodrigo de Matos]. Conheço-o, dou-me bem com ele. Mas devo dizer que o fenómeno é parecido com Portugal. O que é que temos aqui? Eu, no Expresso; a Cristina Sampaio no Público; o André Carrilho saiu do Diário de Notícias; o António Maia no Correio da Manhã e pouco mais. Essa é uma tendência geral. Às vezes, e acho que isso aconteceu comigo, há momentos em que um cartoonista pode representar uma mais valia para o jornal, mas são apenas alguns momentos em que isso pode acontecer. No meu período mais complicado no Expresso, no final da década de 70, um jornal de referência que, à época, estava num país em convulsão, com alguma “irresponsabilidade” pude ir à frente, e tenho a percepção que ajudei o jornal a desembaraçar-se dessas limitações. Mas tal acontece em períodos muito específicos. Nessa fase [do pós-25 de Abril], cheguei a fazer desenhos à noite que, de dia, estavam já desactualizados. Tem mesmo mau feitio ou é só para disfarçar? Sou tímido, mas ando a tratar-me. (risos) Nunca foi algo que me tivesse bloqueado, falo bem em público. Sou um tipo que não gosto de correr riscos estúpidos. Estou neste prédio há vários anos e conheço apenas a porteira porque tem de ser, e não quero ter o risco de ter uma pessoa antipática a quem dei confiança. Faço isso com a maior naturalidade. Exposição no Clube Militar Depois da palestra na Fundação Rui Cunha, esta quarta-feira, António estará hoje na Universidade de São José a falar com alunos no workshop “Desenho Cartoon: Criação de Ideias”. Segue-se esta sexta-feira a inauguração da exposição no Clube Militar, que ficará patente até 2 de Janeiro.