Conto Fantástico ao jeito de Pu Songling

Ana Cristina Alves,

Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM

21 de outubro de 2024

Pu Songling (蒲松齡) viveu no início da dinastia Qing 清(qīng), entre 1640 e 1715, legando à posteridade uma das obras mais notáveis da literatura chinesa, traduzida para inglês como Strange Tales from a Chinese Studio e para português como Pu Songling Contos de Fantasia Chineses. O Título original é Liaozhai Zhiyi (聊齋誌異Liáozhāi zhìyì), sendo Liaozhai “o estúdio das conversas” onde o mestre-escola compunha as seus contos fantásticos; ele, que nunca conseguiu passar nos exames imperiais a nível provincial, apenas tendo adquirido o grau distrital de xiucai (秀才xiùcái), que significa numa tradução literal “talento cultivado”, viveu longo tempo no campo, onde pôde recolher os contos fantásticos, em circulação desde as dinastias Tang (唐Táng) e Song (宋 Sòng), aos quais juntou muitos da sua lavra, tendo legado 491 contos, de acordo com a informação da Library of Congress, reunidos em 16 volumes, que inicialmente não passariam de 6. O professor do campo levou uma existência obscura e pobre, mas feliz, no que à expansão da sua criatividade diz respeito. Malquistou-se, no entanto, com o sistema de exames imperiais, que falhou ao nível provincial, o que lhe daria acesso a uma vida confortável isenta de preocupações materiais. Tal talvez o tenha despertado para a revelação da injustiça do sistema, que deixava grandes talentos de lado, sobretudo quando estes vinham de famílias menos favorecidas, sem terem o que era conhecido por “privilégio sombra”, assim como sucedia ao escritor, oriundo de uma família da classe média empobrecida. O seu talento acabou, de algum modo, por ser reconhecido ainda em vida, quando aos 71 anos lhe foi concedido um título, mais pela obra literária, do que pelos feitos eruditos, “tributo ao estudante” (贡生 gòngshēng). Meio século depois da sua morte, o seu trabalho tornou-se muito popular sendo, publicado na segunda metade do século XVIII (1766) em chinês, em Hangzhou, e nos séculos XIX a XXI traduzido para inglês por Herbert A.Giles (1880); John Minford (2006); Sidney Sondergard (2008-2014), mas também para alemão, russo e português. Nesta última língua, surge numa edição ligada à Universidade de Macau, publicada na Editora Moinhos em 2022, tendo sido traduzida pelos alunos do Curso de Mestrado da Universidade de Macau: Zhang Mengyao, Chen Qu, Xiong Xueying, Lou Zhichang e Zhou Qian; contou também com tradução e revisão da docente Ana Cardoso.

Yao Jingming/ Yao Feng, na introdução à tradução intitulada Pu Songling. Contos de Fantasia Chineses, resume: “Pu Songling introduziu nos seus contos cerca de vinte tipos de animais, tais como o dragão, o tigre, o lobo, o macaco, o cão, a galinha, a cobra, o grilo, o rato, a borboleta, a abelha ou o corvo, dos quais se destaca a imagem da raposa, que surgiu em cerca de noventa contos” (Yao, 2022: 8). As “raposas-humanas” encarnam um ideal de mulher pouco comum à época, já que cortam com as submissões e obediências tradicionais às hierarquias e convenções sociais para assumirem papéis capazes de revolucionar em nome de sentimentos universalmente acarinhados, como o amor, a amizade ou outras tonalidades afetivas condensadas no conceito de “sentimento” (情 qíng), que se desdobram em paixão sexual, amor abnegado até à busca de bens por todos desejados, como a felicidade. O escritor mostra grande preferência por histórias de amor entre mulheres fantasmas e/ou raposas encantadas e intelectuais pobres, talvez por estas de algum modo refletirem a sua condição existencial. Explora ainda todas as variantes do mundo sobrenatural, de seres fantasmagóricos a verdadeiros demónios. Além disso denuncia, em vários contos, a corrupção e os oficiais ímprobos daqueles tempos, muito concentrados na satisfação de interesses egoístas, alheios às dificuldades do comum dos mortais.

Um conto biográfico ao estilo de Pu Songling

Pu Songling estava muito empobrecido, o que já vinha sendo um hábito na sua família. O seu pai nunca conseguira prosperar nos negócios, sofrendo concorrência acirrada dos colegas de profissão. Na verdade, os seus negócios mal davam para sustentar a família, por isso o filho ficou louco de alegria quando chegou a casa com a notícia de que havia sido bem-sucedido no exame imperial. Era um xiucai2. Se a vida lhe continuasse a sorrir e se preparasse com afinco para os próximos exames, poderia vir a obter o grau máximo nas provas, seria então um jinshi3. A partir daí, as portas da riqueza, abrir-se-iam para ele e sua família. Talvez fosse convidado pelo imperador para a Academia Hanlin, onde estavam reunidos os melhores intelectuais de toda a China. Teria assistentes, uma ou várias mansões luxuosas, carruagens com fartura, um séquito de serviçais e, por último, mas não na ordem das emoções, uma mulher belíssima à qual seria fiel até à morte, porque casaria apenas uma vez. Se ela não conseguisse dar-lhe descendência, então tomaria uma concubina só para efeitos de procriação. Para quê dispersar o seu amor? A sua consorte havia de ser tão bonita e mágica como uma raposa encantada.

Quanto maior é o sonho, mais dura é a queda. Três anos volvidos, Pu Songling falhava o exame para jinshi. Sentiu-se miserável. Com o coração envenenado, como o de uma mosca, dirigiu-se para Taishan, onde viveria como eremita. Não tinha nem coragem, nem vontade de enfrentar a família. No caminho, passou por Qufu, prestando homenagem a Confúcio. Sentia-se terrivelmente injustiçado. Tinha consciência de que o chumbo não fora merecido. Os examinadores eram incompetentes, um deles era ignorante, como poderia ele entender a sua excelsa prosa? O outro incompetente e facilmente subornável, já que a única linguagem que entendia era a do dinheiro. E com ele haviam-se candidatado tantos nobres e rapazes de famílias ricas… Ora ele, em termos de nome, infelizmente nada tinha para mostrar. A sua ascendência não era ilustre nem poderosa e quanto a riqueza, o seu progenitor suava-a a cada dia para colocar o arroz em cima mesa. Enfim, o seu coração transbordava de tristeza e ódio à medida que se dirigia para a terra do Grande Mestre. Mas se o coração estava envenenado, o espírito continuava vivo e curioso. Assim, como que a temperar-lhe a jornada, foi escutando os relatos de histórias fantásticas, muito antigas, que remontavam à grande dinastia Tang e até a posteriores, que o povo, com a sua memória prodigiosa ia retendo e lhe fazia o favor de contar.

Quando chegou a Qufu, já ia mais animado, pois pensava em registar os relatos de fantasia, naquele que havia de ser o seu “estúdio das conversas”, bem no meio da montanha, onde certamente teria o privilégio de receber a visita de fantasmas e raposas encantadas.

No templo, prestou homenagem a Confúcio, mas ia tão cansado, que se sentou, cerrando as pálpebras. De repente, tinha o Grande Mestre a seu lado, dirigindo-lhe a palavra:

– Não estejas tão desesperado. Poderás não ser rico nem famoso nesta vida, mas serás recordado pela humanidade para todo o sempre. Deixarás uma obra notável, que servirá de inspiração e alegria a muitas gerações.

– Grande Mestre, o que me diz não me deixa nem um pouco regozijado, pois prevejo uma vida dura e cheia de trabalhos para mim. Foi tão injusta a minha reprovação nos exames! Vi os outros candidatos. Muitos deles, nem sequer tinham lidos os Quatro Livros e os Cinco Clássicos, estavam lá porque compraram os examinadores.

– Pu Songling, sabes bem como me bati por uma verdadeira nobreza intelectual. Em vida, também não fui reconhecido, mas nunca deixei que os obstáculos criados me afastassem do verdadeiro Tao. A minha conduta foi sempre irrepreensível, orientada pelas Cinco Virtudes Constantes, por isso ainda hoje me respeitam no Império do Meio.

– Mestre, tem razão, não me posso deixar abater pelas circunstâncias adversas. Farei por honrar o meu destino, agora que mo revelou, enquanto estiver em Taishan, escreverei com afinco todas as histórias que fui aprendendo no caminho.

– Como disse nos Analectos há muito tempo, um cavalheiro deve possuir conhecimento vasto, não é um utensílio4. Serás um sábio na aceção mais alargada, reunirás mundos, o material e o espiritual, o visível e o invisível: terreno, paradisíaco e subumundo. Trarás alegria e beleza à vida das pessoas; contenta-te, pois, com a tua sorte, segue o teu caminho e não olhes para trás. Ainda nesta existência serás recompensado com um título honorífico em reconhecimento aos teus dotes literários.

Pouco depois, deixou de escutar Confúcio. O templo silencioso, indicava que estava sozinho, talvez a conversa entre ambos não tivesse passado de um sonho. Porém, parecia-lhe tudo tão real. Seguia esperançado, cheio de vontade de registar as suas histórias, já que era por elas que iria ser recordado. Não teria benesses em vida, mas muitas honras depois de morto, o que era bem melhor do que nada.

Escolheu bem o seu refúgio, ocupando uma cabana deixada por um eremita que o antecedera, quem sabe não teria também ele sido uma das vítimas dos exames imperais. Dedicou-se ao trabalho com afinco e foi esquecendo as misérias por que passava, ou até purgando-se delas quando as registava em contos. Ridicularizava, sempre que podia, os examinadores imperiais, denunciava desmandos e maus tratos, descrevia as penas e humilhações por que passavam os examinandos, coitados! Nos exames, à chegada pareciam mendigos, depois seguiam-se as apresentações em que recebiam tratos de prisioneiros, dentro dos horríveis cubículos eram vespas encurraladas e dormentes. Saíam daquelas gaiolas como aves doentes. Enquanto aguardavam pelos resultados comportavam-se como orangotangos. Depois, se eram rejeitados, os seus corações enchiam-se de veneno. Eram moscas envenenadas e sofredoras a digerir os péssimos resultados, até renascerem como pombos esperançosos em busca da construção de um novo ninho. Ele encontrava-se a libertar o veneno, à procura de um renascimento, não como pombo, já que não tencionava voltar a tentar a sua sorte nos exames imperiais, mas como melodioso rouxinol. O seu esforço era visível e a obra crescia de dia para dia. Os contos eram tantos que seriam necessários vários volumes para os registar.

Numa noite de tempestade, em que o vento soprava forte e o frio se fazia sentir, muito agreste, penetrando gelado até aos ossos, sentiu uma presença aromática no quarto. Cheirava tão bem, levantou os olhos e viu uma mulher estonteantemente bonita à sua frente. Parecia uma imortal, ou pensando melhor, uma deusa. Ela assim falou:

– Perdi-me na noite escura, não sou capaz de encontrar o caminho de volta para a minha aldeia. Importava-se que ficasse aqui consigo? Tenho tanto medo, está tanto frio…

– Receio que esta choupana não seja digna da presença de uma menina tão bela e fina, no entanto tenho muito gosto em recebê-la. Permita que lhe sirva um chá – disse ele, enquanto se afastava para o fundo da cabana. Quando regressou, deu com ela debruçada sobre os seus papéis.

– Que linda história está a escrever, é sobre um letrado solitário e uma raposa encantada. Pelo modo como descreve a rapariga parece uma deusa.

– Isso foi antes de a ver a si – disse ele estendendo-lhe a chávena de chá- agora vou refazer o texto, porque a sua imensa beleza me inspirou. Com toda a sinceridade, é a primeira vez que encontro uma mulher com a sua finura, graciosidade e leveza.

– Ora, ora, fala assim, porque se encontra aqui fechado há muito tempo. Precisa de se distrair um pouco. Não quererá ajudar-me a despir as luvas e o casaco. A minha indumentária, é muito complicada e infelizmente perdi-me das empregadas, umas joias de raparigas, mas devem ter-se assustado com a tempestade, talvez estejam para aí escondidas, o certo é que já as procurei e não há meio de dar com elas.

– Pu Songling não se fez rogado. Ajudou a bela donzela a despir o casaco e tudo o resto. A seguir foram para a cama e fizeram amor. A cabana tinha-se transformado num belo palácio. A cama onde estavam deitados, possuía agora finos lençóis de linho bordados e no ar pairava um agradável aroma a flores, talvez a rosas ou seriam peónias? Foi uma noite muito divertida e bem passada. Ela contou-lhe cenas fantásticas do sítio de onde vinha. Depois adormeceram. No dia seguinte, quando o letrado abriu os olhos, a donzela já tinha desaparecido. Deixara, no entanto, um pequeno lenço vermelho bordado aos pés da cama. A casa voltou a ser uma cabana, mas parece que a misteriosa beldade o visitou noutras noites ao longo de todo o inverno e sempre que aparecia espalhava graça e magia em seu redor.


Bibliografia

Alves, Ana Cristina. 2005. A Sabedoria Chinesa. Cruz Quebrada: Casa das Letras/ Editorial Notícias.
“論語》1994. Analects of Confucius. Tradução. para Inglês de Lai Bo (赖波) e Xia Yu He(夏玉和) e para Chinês Moderno de Cai Xiqin (蔡希勤) 北京,華語教學出版社.
Wang, Jeffrey. (2018),” The Strange Tales from Liaozhai” Library of Congress Blogs
https://blogs.loc.gov/international-collections/2018/10/the-strange-tales-from-liaozhai/, 2018, 29 de outubro.
Yao Feng (Org. ) 2022. Pu Songling. Contos de Fantasia Chineses. Belo Horizonte: Editora Moinhos.
Este conto é inspirado numa das muitas histórias de fantasia que o escritor nos legou, intitulada “O Erudito Wang Zian” e, particularmente no Comentário do Autor, no qual expõe, numa reflexão certeira, as sete facetas do calvário do xiucai.
Grau conferido pelo exame imperial de nível distrital.
Último grau atribuído pelo exame provincial.
Analectos de Confúcio, Fazer Política, II.12 論語•為政第二《子曰:君子不器》

23 Out 2024

Inundações no Huanghe e Rio Huai

A construção de embarcações na China começou por volta do ano de 9000 a.n.E. a partir de materiais existentes nas zonas de lagos e rios, sendo feitas jangadas de troncos unidos ou de canas de bambu, assim como largos cestos elaborados com caules secos entrelaçados de plantas, ou de bóias usando as peles interiores insufladas de gado ovino.

Já a aproximar-se do estilo da piroga, grossos troncos de árvores escavados como demonstra o enorme barco exposto em Yang Cheng, actual Changzhou. Na altura, as correntes das águas eram aproveitadas na locomoção. Depois começou a utilizar-se canas para, como alavanca e apoiadas no fundo do rio, mover com a força dos braços a embarcação e permitir assim orientá-la. Daí até aos remos serem concebidos foi um pequeno passo. Por volta de 5000 a.n.E. apareceram as velas a permitir aos barcos percorrerem maiores distâncias com a ajuda dos ventos.

Num estudo geográfico e geológico percebem-se as grandes mudanças ocorridas após a última glaciação, entre os vinte e dez mil anos antes da nossa Era, quando a comida oferecida pela Natureza rareava e houve necessidade de a plantar, iniciando-se assim há dez mil anos a Revolução Agrícola.

No período compreendido entre os anos 8000 e 1300 a.n.E., a China registou sete grandes inundações e as alterações climáticas acompanharam as ocorridas na placa continental euro-asiática. Com o degelo, as águas jorraram por todo o lado, tanto a Oriente como a Ocidente da placa euro-asiática e em 7600 a.n.E. formou-se em longitude um grande lago na Ásia. Desse enorme manto de água sobra hoje apenas alguns grandes reservatórios como os mares Negro, Morto, Cáspio e o Aral, assim como os lagos Baikal e Balkhash. As áreas de cultivo avançaram para Norte e famílias com rebanhos partiram para as estepes, a viver nómadas atrás dos pastos.

Na época dos Três Ancestrais Soberanos (San Huangs, 3000-2600 a.n.E.) e dos Cinco lendários Imperadores (Wu Di, 2600-2070 a.n.E.) ocorreram episódios de inundações descritas em anteriores artigos.

Segundo o livro Shui Jing Zhu [escrito por Li Dao Yuan durante a dinastia Norte no período do Reino Wei do Norte (386-534)], o Rei Yu (Da Yu, 2070-2035 a.n.E.) para resolver o problema das cheias do Rio Amarelo (Huanghe) rasgou canais a colocar a água a vazar para Sul e assim a distribuiu pelos nove rios da região afluentes do Huaihe, preparando o que mais tarde seria o Canal Honggou, a ligar esses dois rios.

No Noroeste da China, em Qinghai, na zona da Garganta Jishi ocorreu em 1920 a.n.E. uma grande inundação após um tremor de terra destruir importantes diques, dispersando muitos sedimentos pelo leito do Rio Amarelo na área de Xunhua [100 km a Oeste de Lanzhou], criando obstáculos às águas dificultando o seu percurso para a foz. Estas cheias afectaram dois mil quilómetros do leito do Huanghe, enterrando-o de sete a cinquenta metros abaixo do nível actual do rio. Ao longo dos tempos, o Rio Amarelo mudou de trajectória e provocou graves cheias, a inundar constantemente as povoações das margens. Em 138 a.n.E. registou-se inundação e fome na sua bacia baixa.

Em 1191, o Huanghe sofreu uma nova mudança de curso, dirigindo-se mais para Sul e nos 700 anos seguintes o seu trajecto mudou por diversas vezes. Em 1194, na província de Henan o Rio Amarelo abriu uma brecha no dique junto a Yuanyang, levando muita da sua água a transbordar para o Rio Huai, situado a Sul e daí a desaguar no mar.

A cidade de Kaifeng, capital de muitas dinastias com o apogeu na dinastia Song, situada a alguns quilómetros da margem Sul do Huanghe, durante a sua existência assistiu a uma série de grandes e graves inundações. Tal levou os governantes da dinastia Ming a construírem um sistema de diques para a proteger, com resultados eficazes. Mas não foi somente a vontade da natureza a provocar calamidades. Em 1642, encontrando-se há seis meses a cidade cercada por tropas de camponeses revoltados e liderados por Li Zicheng, na esperança de conseguir afastar os sitiantes o governador Ming de Kaifeng ordenou a destruição das secções dos diques que a resguardavam das cheias. Como resultado, as tumultuosas águas do Rio Amarelo rapidamente avançaram sobre Kaifeng e perto de um quarto dos 380 mil habitantes morreu. Abandonada a destruída cidade, só passados vinte anos foi mandada reconstruir pelo Imperador Kangxi. Mas este rio continuou a ser o grande problema de Kaifeng, pois em 1849 a cidade ficou enterrada aproximadamente a dez metros de profundidade e, por isso, não existem construções altas devido ao medo de destruir os vestígios dessa época e, assim, apenas dois ou três edifícios públicos, como bancos e hospital, hoje sobressaem do casario térreo, segundo informa Deng Shulin.

Entre 1851 e 1855 as inundações do Rio Amarelo de novo alteraram a sua trajectória, desviando-a para Norte e em 1852 assumiu parte do curso do Rio Ji [desaparecido desde então], voltando o Huanghe a passar por Shandong, mas trazendo muitos sedimentos.

“Em 1855, o Huanghe destruiu o dique em Tongwaxiang, na província de Henan, fazendo no distrito de Lankao mudar a trajectória do Rio Amarelo de Sul para Norte e ir desaguar no mar de Bohai, em Shandong. Desde então o Grande Canal deixou de ser navegável para Norte. Os sedimentos levados pelas enchentes assorearam o leito do rio Huai e o impacto dessas variações foi tão forte que em 1897 se produziu a última modificação do Huanghe”, refere Deng Shulin.

No ano de 1931, a maior parte dos rios na China registaram inundações provocando a morte de dois milhões de pessoas e a destruição de casas e das culturas agrícolas, a originar fome. Tal deveu-se a uma longa seca entre 1928 e 1930. O Inverno foi rigoroso nesse ano com muita neve nas montanhas, que acabou por derreter no início de 1931 e a água chegou ao curso médio do Changjiang (Yangzi), quando chuvas torrenciais contínuas na Primavera provocaram inundações nos rios Huai e Yangzi, afectando quase todo o território.

A partir de 1976, os governos das províncias construíram um paredão nas margens ao longo do Rio Amarelo para o guiar até ao mar, estabilizando assim as margens.

RIO HUAI

Localizado entre o Rio Amarelo e o Changjiang, o Huaihe é um dos sete maiores rios da China com 1110 km de comprimento. Nasce na montanha de Tongbai, em Henan, e nessa província corre pela cidade de Xinyang. Após os afluentes Hong [a Sudeste de Henan] e Yinghe [em Anhui] desaguarem no Huaihe, aparece a cidade de Huainan, seguindo o rio a banhar Bengbu [Pengpu, a Norte de Anhui]. Já em Jiangsu, com a ocupação do seu leito pelo Huanghe, o rio Huai foi obrigado a passar pelos lagos Hongze e Gaobao em Huai’an, desaguando depois no Changjiang em Yangzhou. O Huaihe entra no lago Hongze (cujo fundo está cinco a nove metros acima do nível da terra e para onde fluem outros oito rios), seguindo para a cidade de Huai’an, onde o governo da República Popular da China considerou como solução para o Huaihe a abertura de um canal rumo ao mar a fim de eliminar as inundações na zona. Em 1952, completou-se esse canal de irrigação no Norte de Jiangsu, que começa em Gaoliangjian, passando pelo distrito Huai’an e desagua no Mar Amarelo (Huanghai). Este canal de 168 quilómetros de comprimento necessitou apenas de oitenta dias para ser construído por oitocentos mil operários que removeram oitenta milhões de metros cúbicos de terra, segundo informa Deng Shulin.

Huaiyin [actual cidade de Huai’an na província de Jiangsu] está situada na zona onde passam os rios Huaihe [cujo maior afluente é Yinghe, com 557 km de comprimento e origem em Zhoukou, Henan, seguindo por Anhui onde no concelho de Shou, na cidade de Fuyang desagua no rio Huai em Zhengyang guan], o Yihe [com 333 km comprimento nasce na montanha de Lu em Yiyuan, (Zibo, Shandong), segue por Linyi e já em Jiangsu desagua no lago Luoma (a Noroeste de Suqian, lago de água doce com uma área de 375 km² e conectado com o Grande Canal)]. Em Huai’an passa ainda o Rio Shu (Shuhe) e o Sishui [com 159 km, tem origem na montanha Meng em Xintai, província de Shandong e até 1194 corria por Jiangsu, quando o Huanghe abriu uma brecha e as águas do Norte entraram no Huaihe. Essas inundações desviaram o curso do Rio Si, passando este por Qufu e Yanzhou até desaguar no lago Nanyang.

Segundo os registos históricos, de 1400 a 1900, durante quinhentos anos, no Rio Huai registaram-se 350 grandes inundações. A inundação de 1680 submergiu a cidade de Sizhou. No vale dos rios Yihe, Shuhe e Sishui, ocorreram, entre 1368 a 1948, quarenta inundações e 86 secas o que levou, em 1949, o governo a mobilizar 580 mil operários para os regular. Em sucessivas dinastias os governadores não tinham prestado nenhuma atenção à construção de obras hidráulicas e as calamidades naturais repetiam-se, ano após ano.

Para eliminar as causas das inundações em Huaiyin tiveram os rios de ser regulados, tarefa que governo popular tomou a seu cargo. A cheia de 1949 foi a maior e a mais grave, quando 9270 mil mu (15 mu = 1 hectare) entre 12600 mil mu de terras cultivadas foram submergidas pelas águas e 1950 mil habitantes das zonas afectadas tiveram de receber socorros do Governo, segundo Deng Shulin, que refere ser Huaiyin (Huai’an) designada por “Galeria de Inundações” devido a ali se reunirem as águas provenientes das províncias de Henan, Anhui e Shandong.

22 Out 2024

A carta da Imperatriz para o Papa no tempo da mudança

Li Zicheng (1606-1645), o rebelde, entrara em Pequim no dia 26 de Abril de 1644, o imperador Chongzhen percebeu que não havia saída, escolheu um árvore numa colina da Cidade proibida e terminou os seus dias e com ele a dinastia Ming (1368-1644). O princípe herdeiro é feito prisioneiro e a 6 de Maio os altos funcionários que fugiram para Nanquim, a capital do Sul, proclamam imperador Zhu Yousong, o Princípe Fu, que entra na cidade a 17 de Maio. Seria o primeiro de três reinos em desespero que, juntos, seriam conhecidos como Nan Ming, os Ming do Sul.

Além de Zhu Yousong, que reinaria durante um ano como Honguang «A grande luz», o Princípe Tang, Zhu Yujian (r.1645-46) e Zhu Youlang, o Princípe Gui (r.1646-62) procuraram recuperar o poder da família reinante durante quase trezentos anos. Desse breve tempo de resistência e inquietação emergiram factos olvidados que fizeram emergir a coragem e a perseverança de indivíduos que caracterizaram a extrema situação de aflição.

Um desses inéditos eventos ocorreu no seio da família de Zhu Youlang (Yongli), quando este estava no seu palácio temporário em Zhaoqing (Guangdong) e, com outros altos funcionários, a sua mãe honorária Wang Huiling (1600-54), a sua mãe, a imperatriz viúva Zhaosheng (1578-1669) e a sua esposa principal Xiaogangkuang (?-1662) se convertem ao Catolicismo, adoptando os nomes respectivos de Helena, Maria e Anna. Também baptizado, o filho do imperador recebeu o auspicioso nome de Constantino, o imperador romano (r.306-37) que triunfou com o símbolo de Cristo.

Em conjunto as senhoras assinaram uma carta dirigida ao papa Inocêncio X pedindo-lhe ajuda no seu combate aos invasores Manchus. A carta, escrita a tinta sobre seda, foi traduzida para latim e levada em mão própria pelo missionário jesuíta polaco Michal Boym (c.1612-1659) que, atravessando incontáveis obstáculos, só graças à pertinácia do portador conseguiu chegar ao destino seis anos depois. Entre os literatos leais aos Ming, face à traumática revolução designada bian, «transformação», a atitude foi firme.

Yang Wencong (1597-1646) de Guiyang (Guizhou) deixou na sua arte marcas dessa firmeza. Pintor e poeta, serviu no reino do Princípe Fu em redor de Nanquim. Num álbum de pinturas de 1644 (tinta sobre papel, 30,2 x 24,8 cm, no Museu de Arte de Indianápolis), notam-se casas vazias no meio da paisagem figurada em pinceladas enérgicas e facundas mostrando a natureza forte e constante como o seu carácter leal.

A mesma lealdade que o jesuíta Boym demonstrou enfrentando proibições e prisões, conseguindo finalmente entregar a carta de Helena Wang ao papa, que entretanto era já Alexandre VII. E embora a resposta fosse pouco mais que a oferta de orações ele trouxe-a e, encontrando tremendas dificuldades, atingiu Guangxi em 1659 mas era demasiado tarde, já tudo mudara.

21 Out 2024

A história triste de Liang Shanbo e Zhu Yintai

Em 1959 foi composto por He Zanbao e Chen Gang um belo concerto para violino e orquestra onde a música sinfónica ocidental se combina com os sons da ópera tradicional chinesa, obtendo-se um fabuloso efeito de suavidade e ritmo, do trinar do violino ao ressoar dos gongos, do alarido cavernoso das trompas ao martelar cadenciado das castanholas de bambu, do ímpeto galopante dos tambores ao rendilhado esfuziante do dedilhar da pipa, uma espécie de alaúde.

O concerto intitula-se Liang Shanbo e Zhu Yingtai 梁山伯 祝英台, e em língua inglesa tem o subtítulo The Butterfly Lovers. Além da espectacularidade da música, o nome inglês desperta a curiosidade de descobrir quem seriam estes amantes borboletas. Não é difícil, trata-se de uma das mais famosas lendas chinesas.

Há 1600 anos nasceu na China a história trágica de dois jovens apaixonados chamados Liang Shanbo e Zhu Yingtai cujo enredo resistiu a todas as investidas dos séculos e continua hoje — interligando o real, o maravilhoso e o fantástico –, a passar de pais para filhos, inspirando não só músicos, mas também poetas, bailarinos, dramaturgos e pintores da China moderna.

No século IV da nossa era, Zhu Yingtai, uma jovem bonita e talentosa, vivia com os seus pais, algures nas margens sul do rio Yangtsé. Zhu estava desesperada porque queria estudar, mas as dificuldades pareciam insuperáveis dado que o acesso de uma mulher a qualquer escola era, na época, rigorosamente vedado. Zhu Yingtai elabora então um plano para cuja execução obtém a concordância do pai. Irá estudar na clássica cidade de Hangzhou, disfarçada de rapaz. Durante a viagem para Hangzhou encontra Liang Shanbo, um moço simpático que se dirige para a mesma escola. Serão companheiros de estudo, ao longo de três anos e tornam-se grandes amigos. Liang Shanbo nunca suspeita que Zhu Yingtai é uma rapariga e ela não lho diz, embora esteja profundamente apaixonada por ele.

Um dia chega uma carta do pai de Zhu, pedindo-lhe que regresse imediatamente ao lar. Liang acompanha-a durante parte da viagem e a moça, através de subtis insinuações, belas metáforas e trocadilhos, tenta fazer compreender ao jovem que o ama, e sugerir-lhe qual é o seu verdadeiro sexo. Mas o ingénuo Liang acha o seu amigo (amiga!) demasiado romântico e sentimental, e não suspeita de nada.

De novo em Hangzhou, Liang Shanbo encontra a esposa de um dos mestres da escola de ambos que lhe conta, numa longa conversa, que Zhu Yingtai é afinal uma bela e inteligente rapariga que, disfarçada de rapaz para poder estudar, acabou por se apaixonar pelo seu melhor amigo. Louco de alegria, Liang Shanbo decide ir, outra vez, ao encontro de Zhu Yingtai mas, chegado à cidade onde ela vivia, tem a surpresa de saber que o pai da moça já a havia destinado a esposa de um rico comerciante local. Por isso, a mandara regressar com tanta urgência. Zhu Yingtai, lacrimosa, afundada em tristeza, pede ao pai que não pense em negócios, que respeite antes o amor e a felicidade da sua filha. Em vão! O pai não cede.

Na varanda da casa, uma varanda semelhante àquela onde Shakespeare, doze séculos mais tarde, colocaria Romeu e Julieta, os dois jovens despedem-se, jurando amor e fidelidade na vida e na morte.

Liang Shanbo adoece gravemente e morre pouco depois.

No dia aprazado para o casamento de Zhu Yingtai com o rico mercador, ela recusa o vestido de noiva, veste-se de luto e no meio de uma tempestade, dirige-se para o túmulo do seu amado Liang. Cai soluçando sobre a sua sepultura. A natureza em fúria partilha a sua dor e revolta, chove intensamente, os trovões atroam os ares, as faíscas rasgam o céu. Abre-se a tumba de Liang Shanbo que recolhe o corpo de Zhu Yingtai.

A tempestade passou. No horizonte surge um esplendoroso arco-íris e o sol começa a brilhar num céu agora azul.

Do túmulo, onde jazem para sempre os corpos dos amantes, saem duas lindas borboletas que esvoaçam alegremente entre as flores e brincam, beijando-se no ar. Liang Shanbo e Zhu Yingtai estão, por fim, unidos.

A nós portugueses, esta lenda não nos faz recordar, embora com um ainda mais tétrico desenlace, o poema O Noivado do Sepulcro, do ultra-romântico Soares de Passos que, por sua vez, foi buscar o tema à Leonore do alemão Gottfried August Burger (1747-1794)? Já no século XII, em plena Idade Média, encontramos o mesmo tipo de amores e paixões desventuradas na famosíssima história de Tristão e Isolda. É possível a extensão ou continuidade de lendas orientais para enredos medievais europeus. E existirão, com certeza, coincidências: as gentes são iguais em toda a parte, Liang Shanbo e Zhu Yingtai não nos são estranhos.

16 Out 2024

Os Barcos de Maravilhas da Dinastia Ming

Zheng He (1371-1433), no regresso da sua quarta grande viagem (1413-15) em que comandou a maior frota de navios de madeira jamais constituída para exposição do poder e grandeza do Império, trouxe, além de enviados de trinta Estados, como tributo ao imperador uma girafa.

Trouxe-a de Bengala (no actual Bangladesh), um lugar onde esse animal não existia. Tinha vindo de África, como seria de esperar, já como uma oferta do rei de Melinde (actual Quénia) para esse Estado. Depois de observada pelo imperador Yongle, habituado a receber invulgares animais exóticos, alguns olhando o estranho animal, espantados com o que viam, disseram reconhecer nele o imaginário qilin, a quimera que se dizia surgir para anunciar o advento de um sábio.

Da girafa, colocada nos jardins imperiais onde foi cuidada, foram depois feitas pinturas que guardaram o seu inusitado aspecto. Num rolo vertical conservado no Museu de Arte de Filadélfia (tinta e cor sobre seda, 80 x 40,6 cm) ela é apresentada junto do seu tratador e em cima, à esquerda, é identificada como um qilin.

Mas, se da perigosa navegação cortando ondas alterosas se podiam esperar eventos incríveis, capazes de estimular auspiciosas fantasias, a necessidade espiritual de navegar, descobrir lugares e pessoas desconhecidos, dominaria a imaginação de literatos durante a dinastia Ming.

Muitas vezes e de modo particular na arte da pintura, o antigo relato que Tao Yuanming (365-427) fizera de uma singular viagem solitária em que não eram protagonistas naves de alta proa sulcando os mares, enfrentando ondas colossais, mas um humilde esquife de madeira serpenteando na suave ondulação das águas de um rio, seria recontado e imaginado vezes sem conta.

A popularidade da história da Nascente das flores de pessegueiro (Taohua yuan) situada num lugar inacessível, alcançado por acaso com um pequeno bote, ficaria resumida no ditado (chengyu) shiwai taoyuan, «fora do Mundo há uma nascente de flores de pessegueiro».

Wang Shichang (1462- depois de 1531), um pintor literato de Jinan (Shandong) imaginou o momento em que um pescador, um «homem de Wuling que se esquecera das distâncias da rota», é recebido com afecto (rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 24,4 x 190,5 cm na Galeria de arte da Universidade de Yale).

A mesma cena que, no século XVIII, seria figurada no Longo corredor do Palácio de Verão em Pequim. Ao chegar, o pescador espantara-se com o que encontrara: árvores de flores cor-de-rosa prenunciavam o encontro com uma acolhedora comunidade pacífica. O veículo feito com um tronco de árvore que o transportara, discretamente preso na margem, tão comum quanto admirável fora muitas vezes tomado como metáfora por poetas como Zhao Ju, no século III: «Move-se mas não deixa rasto, Não cria raízes mesmo parando, Não tem pressa mas é rápido, É veloz como um cavalo galopando.»

13 Out 2024

Meditando com Han Shan

Ana Cristina Alves,

Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM

27.09.2024

I

António Graça de Abreu possui vasta obra poética publicada, entre os títulos destaco: China de Jade (1997), China de Seda (2001); Terra de Musgo e de Alegria (2005); China de Lótus (2006); Cálice de Neblinas e Silêncios (2008); A Cor das Cerejeiras (2010).

O poeta e sinólogo é ainda tradutor de poesia clássica chinesa, tendo traduzido para português os seis maiores poetas da China: Li Bai (1990); Bai Juyi (1991); Wang Wei (1993); Han Shan (2009); Du Fu (2015) e Su Dongpo (2023).

Lançou em setembro de 2024, em segunda edição, Han Shan Poemas寒山詩 (2024) com a Editora Grão-Falar, dirigida pelo Editor, Jornalista e Escritor Carlos Morais José.

Em Han Shan Poemas寒山詩, António Graça de Abreu convida a visitar o mundo poético deste budista Chan, Zen no Japão. O poeta, cujo nome significa “Montanha Fria”, talvez tenha vivido no século VIII, durante o período áureo da dinastia Tang (618-906), tendo-nos brindado com uma meditação existencial única sobre o vazio.

O Eremita da “Montanha Fria”, se acaso viveu no século VIII, ter-se-á cruzado, como sugere António Graça de Abreu no Prefácio à obra que traduziu, com os maiores vultos poéticos da dinastia Tang, quer dizer, Wang Wei, Li Bai e Du Fu. A verdade é que, tirando a lenda a seu respeito e do filho adotivo e irmão espiritual Shi De, pouco mais se sabe sobre ele. No entanto, a lenda tem a vantagem de nos alertar para o essencial quer da vida de Han Shan quer de Shi De, já que o poeta abandonou a mulher bonita que tinha, no sopé da Montanha Tai, na aldeia de Qinfeng, na província de Shandong, por acreditar que o coração dela pendia para o filho adotivo adolescente, Shi De; e este último ao perceber a confusão gerada foi procurar por muito tempo Han Shan até o encontrar no mosteiro budista de Han Shan em Suzhou para onde entraria também como monge. A atitude de ambos denota que o traço de união entre eles era a dedicação à religião Budista, dedicação essa vivida poeticamente por Han Shan. Este legaria um estilo poético budista Chan (禪 Chán), que seria transferido no Japão de Matsuo Bashô (1644-1694) para a forma Zen.

Já antes na dinastia Song, o primeiro-ministro, poeta e letrado Wang Anshi (1021-1086) se referira à imitação necessária para os estetas crentes mas quase impossível do estilo poético de Han Shan, nas palavras apresentadas por Graça de Abreu “Procuramos a água e apenas ele encontrou a nascente” (Han Shan, Apud Abreu, 2024, 23).

II

Dos 311 poemas de Han Shan, 15 foram traduzidos por Graça de Abreu, tendo anteriormente 25 sido por Jacques Pimpaneau, adaptados na versão poética de Ana Hatherly para português. Qual é então o estilo que inspirou tantos poetas e anima os poemas de “Montanha Fria”?

O estilo filosófico de Han Shan revela, antes de mais, o amor à natureza, que permite enquanto paisagem a concentração no essencial, o coração-mente (心 xīn), seguindo-se a par do elogio do vazio, contraponto a uma existência efémera, eivada de sofrimento, doença e morte, pelo que a meditação sobre o vazio, auxilia o coração-mente a cultivar uma atitude tranquila e desprendida das paixões e prazeres terrenos, bem como a suportar, com a paciência possível, às vezes com alguns desabafos, as dificuldades, limitações e desafios de uma vida curta, repleta de pobreza e frugalidade. O sentimento da brevidade da vida e o envelhecimento, magoam-no, sobretudo por comparação aos tempos de juventude. Apesar de toda a meditação, é perpassado por forças contraditórias, que expressa poeticamente, por exemplo, em as pessoas “São flores num dia de Primavera, /abrem de manhã, murcham ao entardecer” (Abreu, 2009, 12).

Satiriza e crítica gente poderosa, rica e avarenta, apontando o tal caminho frugal, cultivado por taoistas e budistas, revelando ainda estranheza por certos monges budistas se apegarem a atitudes mundanas, denotadoras de valorização de bens materiais em lugar de se concentrarem em desenvolver a força espiritual que os poderá aproximar do Dharma, a lei de Buda.

Os grandes oficiais, os ministros de estado, a quem os portugueses chamaram mandarins, são de igual modo satirizados e denunciados pela prepotência e injustiça com que exercem os seus cargos. Para chegar à conclusão de que “Hoje compreendo melhor: riquezas, honrarias, / o nome, a fama, tudo é inútil e vazio.” (Abreu, 2009, 16).

O prefácio à obra, primorosamente organizado, encontra-se dividido em: apresentação biográfica do poeta, intitulada “Do poeta e da bruma”; “Da Poesia”; “Da Tradução” e “Conclusão”. No que respeita à tradução, a poesia de Han Shan, segundo nos informa o seu tradutor, não é das mais complicadas de traduzir, porque, por um lado, não se encontra repleta de sentidos figurativos e alusões históricas, por outro, utiliza uma linguagem simples e coloquial de modo a que possa ser entendida por todos. Os poemas, sem título, são na sua maioria Lǜshī律詩, 8 versos regulares compostos por cinco ou sete caracteres. As rimas são paralelas e tonais, com alternância entre os tons uniformes, e oblíquos, sendo na concordância tonal que o poeta terá recebido maiores críticas por parte dos letrados, com pouco fôlego poético e muita atenção às convenções. Quanto ao tradutor, confessa-se a trabalhar num registo de sombra cujo silêncio o ilumina (Abreu, 2024, 37). Considera ainda que a empatia com o poeta marca decisivamente os poemas a traduzir (Abreu, 2024,38), bem como “a busca de identidade cultural e afetiva entre o tradutor e o poeta a traduzir” (Abreu, 2024, 39). Considera-se ainda grato pelo seu trabalho não ser um percurso solitário, mas realizado em companhia da consorte, Wang Haiyuan e do velho amigo tradutor ao jeito dos letrados, Zhang Weimin, ilustre tradutor de Fernando Pessoa e Luís Vaz de Camões para Chinês.

A rematar o Prefácio recorda como são importantes as traduções para manterem vivos os diálogos poéticos entre toda a humanidade. Assim, devido à tradução de Jacques Pimpaneau, com versão poética de Ana Hatherly, em 2003, e da sua própria tradução, publicada primeiro em 2009 e agora em 2024, o poeta Han Shan torna-se cada vez mais familiar dos leitores portugueses.

III

Esmiuçando a análise temática da poesia traduzida de Han Shan por António Graça de Abreu, comecemos pelo último poema da coletânea, o 155, uma quadra chinesa jueju (绝句 juéjù) sobre e, perdoe-se o paradoxo, vazio plenamente vivido pelo eremita na sua bela montanha fria:

Habito a montanha,

  ninguém me conhece.

  Entre nuvens brancas,

  o silêncio, sempre o silêncio.

我居山

勿人識

白雲中

常寂寂

(Abreu, 2024, 158/9)

Esta é a postura meditativa que todos os monges budistas procuram alcançar. Coexistir santamente na paisagem, com uma tranquilidade de espírito só possível pela fusão com a natureza, na contemplação silenciosa das nuvens brancas, tal como se ele próprio ao habitar na montanha tivesse incorporado as suas características, ao jeito do trigrama “Montanha” (艮gěn) do Clássico das Mutações (《易经》) fazendo crescer em si, a força, a solidez e a firmeza necessárias a uma postura exteriormente imóvel, mas que desenvolve a máxima energia a partir do seu interior, porque a viagem na montanha é mental. O corpo permanece no mesmo lugar, enquanto o espírito do eremita procura o domínio que lhe pertence e o vazio iluminante, recetivo e compreensivo de todos os males que afligem os seres vivos a nadar num mar de sofrimento até que a força da mente os liberte. Como adverte no poema numerado por Graça de Abreu 154, no qual declara ter mais de 100 anos, não se deve usar o coração para alcançar a “vã glória” mundana, já que ela arrasta inúmeros desejos fatais às pessoas “Quando se usa o coração para renome e fama/ entram no corpo cem diferentes desejos” (心神用盡為名利/百种貪婪進己軀) (Abreu, 2024, 158/9).

Aconselha o monge que o coração das pessoas seja tão vazio quanto possível, mas não indiferente aos outros, eis a grande distância entre as pessoas que vivem sem pensar, nem em si nem nos outros, e os monges, como o poeta, atentos ao fluir da existência e ao auxílio e libertação de todos das amarras que mantêm, segundo a filosofia budista Chan, os seres humanos prisioneiros sem de facto estarem encarcerados numa prisão física. Estes podem até mover-se, aparentemente de uma forma livre, mas na realidade são cativos dos múltiplos desejos com que enchem e enfrenesiam as suas vidas e as alheias, pelo que o melhor é o despojamento meditativo que conduz a uma existência simples e desprendida. Esta é a via certa, a da libertação das manchas e poeira do mundo, a única que apazigua o coração, em comunhão profunda com a falésia, a névoa, o arroio e porque o faz, sabemos o que sente no poema 154 “No meu corpo nem manchas, nem poeiras, /no meu coração nem traço de inquietude.” (身上無塵垢,/心中那更憂。) (Ibidem).

O poeta não é insensível à beleza feminina das meninas, das flores e dos elementos naturais, mas a consciência da efemeridade da felicidade, que não passa de breves momentos em longas existências, às vezes mais de cem anos, como talvez a dele, condu-lo ao distanciamento dos prazeres da vida, como nos informa no poema 152 relativamente à brevidade do riso e gozo, que encaminham inexoravelmente para o choro e sofrimento. Só por meio da meditação é então possível relativizar as forças positiva e negativa em ação, equilibrando-as de uma forma tensional, onde a ponderação da vacuidade da existência fenomenal é decisiva ao bem-estar espiritual do poeta, já que as necessidades e carências corpóreas são supridas pela harmonia no coração-mente em contacto com o incenso exalado pela resina do pinheiro e pelos rebentos do cipreste, de acordo com o poema 150, “Tenho fome, uma bolinha desta panaceia,/harmonia no coração, encostado às rochas” (飢餐一粒加陀藥,/

心地調和倚石頭) (Abreu, 2024, 156-157).

Pode e deve estar silencioso e tranquilo “o coração como a lua de outono/ reflexo imaculado num lago esmeralda” (吾心似秋月/碧潭清皎洁) (Abreu, 2024, 53).

O ideal de muitos eremitas, de Han Shan em particular, é conseguir afastar-se e descansar dos males do mundo, num lugar abençoado pela beleza natural, propício, por isso, à manifestação da força espiritual, na única companhia dos elementos naturais e dos textos sagrados, incluindo os dos poetas do passado e sobre imortais, assim alcança a energia, que se esconde se transferida para a sociedade humana, impelida pelos ventos fortes das paixões individuais. Aqui fica a confissão de bem-estar de Han Shan, no poema 8:

Desejei um lugar para descansar,

  a Montanha Fria deu serenidade.

  Um vento leve sopra entre os pinheiros,

  de perto ouve-se melhor a canção da brisa.

  Sob as árvores, um homem de cabelos brancos

  recita velhos textos taoístas.

  Não deixo este lugar há já dez anos,

  esqueci o caminho por onde vim.

欲得安身處

寒山可長保

微風吹幽松

近听聲逾好

下有斑白人

喃喃讀黃老

十年歸不得

忘卻來時道

  (Abreu, 2024, 54/5)

Que melhor sítio para envelhecer do que este entre montanhas e penhascos, rios e lagos, acompanhado pela suave brisa ou pelo canto dos pássaros, aprendendo a escutar a voz da natureza em todas as estações, das mais suaves e convidativas às agrestes, estas últimas, úteis para despertar a força de vontade e a resistência a um mundo ilusório que, apesar da sua inexistência em termos da verdadeira realidade, deixa marcas, que doem e transtornam os corações, tumultuando-os como se em lugar de ventos suaves soprassem no interior impiedosos tufões.

Enquanto os contrastes e oposições naturais produzem beleza, como as negras rochas e as nuvens brancas de que nos fala o poema ou, ainda, o salto imprevisível das estações da Primavera diretamente para o Outono, o certo é que os conflitos e oposições ao nível humano causam feridas profundas, por vezes insanáveis, pelo que o eu poético confessa a sua preferência por um fluir sossegado dos dias sem confrontos dilacerantes para o seu coração. Prefere então suportar os rigores de uma montanha de que o gelo não se aparta, nem mesmo no Verão. Dada a opção, terá de seguir uma vida frugal, satisfazendo apenas as necessidades alimentares básicas, pelo que sobrevive dos frutos que a dadivosa mãe-natureza coloca ao seu dispor, por isso explicita no poema 10, “Retirado na Montanha Fria, /Alimento-me de frutos da montanha” (一自遁寒山/養命餐山果) (Ibidem). Tal não significa que o eu poético não tenha momentos de desalento e de humana solidão, isso sucede quando se deixa vencer pelo cansaço e pelo sentimento da fugacidade da existência, como confessa no final do poema 27: “O tempo foge, os cabelos brancos, tão brancos,/ o ano acaba e eu velho triste, tão triste”( 時催鬢颯颯/歲盡老颯颯) (Abreu, 2024, 70/1)

Já no tempo de Han Shan, presumivelmente o século VIII da dinastia Tang, o mais importante para muitos senhores de então era o dinheiro, como explica nos últimos verso do poema 41: “mais importante que tudo é o dinheiro (愿君似今日/錢是急事爾)(Abreu, 2024,80/1)”, a valorização dos bens materiais que o eu poético constata parece ser uma constante de todos os tempos em pessoas apenas concentradas nos interesses mundanos, que não conseguem entender que existem outras necessidades para além das físicas, tão importantes como estas e apenas alcançáveis pela via da meditação. Pois para lutar contra os vãos desejos do mundo, o conselho dado ao sábio é: “como arma, leva apenas a espada da sabedoria,”( 常持智慧剑) (Abreu, 2024, 82/3), ele sabe que tudo o que é necessário para se viver bem se encontra nos cinco elementos Wu Yin (五陰Wǔ Yīn ) do Budismo Mayahana (Grande Veículo) : a forma, a sensibilidade, a perceção, a vontade e a consciência, essenciais na compreensão da pobreza e do vazio existenciais, mas ainda de uma certa leveza de um corpo tornado quase espírito na Montanha Fria, como se lê nos últimos versos do poema 63 “Um vento cortante, a lua fria como gelo,/ o meu corpo, um grou solitário voando” (寒月冷颼颼/身似孤飛鶴) (Abreu, 2024, 94/5).

Por fim, um conselho de estética religiosa que o eu poético deixa a todos os seus leitores no poema 64, naturalmente a seguir, porque a poesia é a música das palavras que vai direta ao coração-buda:

Em casa, ter poemas de Han Shan

  é melhor do que ler sutras.

  Escrevam os poemas num biombo

  e olhem-nos, de vez em quando.

家有寒山詩

胜汝看經卷

書放屏風上

時時看一遍

  (Ibidem)

Bibliografia

Abreu, António Graça de (Org. e Trad.). 2024. Han Shan Poemas寒山詩. Lisboa: Grão-Falar.

Hatherly, Ana (Adapt.). O Vagabundo do Dharma. 25 poemas de Han-Shan. Tradução do chinês de Jacques Pimpaneau, versões poéticas de Ana Hatherly e caligrafias de Li Kwok-Wing.

10 Out 2024

As Flores Estrangeiras do Imperador Qianlong

Pierre Nicolas Le Chéron d’Incarville (1706-57,) o missionário jesuíta botânico estava em Pequim há já treze anos quando finalmente conseguiu uma audiência com o imperador Qianlong (r.1736-1795) e lhe apresentou uma pequena planta tropical, oriunda das Antilhas, tão surpreendente e sensível que, quando uma folha era tocada com um dedo imediatamente se recolhia e todas as outras em sucessão se recolhiam.

Numa carta datada de 27 de Outubro de 1753 dirigida a Bernard de Jussieu (1699-1777), eminente botânico que seria professor no Jardin des Plantes do rei de França, ele recorda esse dia em que apresentou a mimosa pudica ao imperador: «Como novidade devo dizer-lhe que dois pés de sensitiva que ofereci ao imperador lhe agradaram deveras. Ele deseja muito que elas produzam sementes (…) O monarca divertiu-se bastante, rindo com vontade. Precisamos muito delas. Tenho ordem de as ir visitar com frequência. Nessa ocasião o imperador perguntou-me se não tinha outras flores ou plantas da Europa e eu disse-lhe que há vários anos semeava mas elas não cresciam. Respondeu-me que se eu desejasse podia semear em outros lugares.»

Esse pequeno gesto de «diplomacia botânica» significava uma grande abertura para o paciente labor do botânico Francês que noutra carta escrita dois anos depois de chegar a Pequim, em 20 de Setembro de 1742, parecia queixar-se: «Herborizo num parque que temos aqui e no espaço do nosso cemitério: é aqui que colecciono algumas sementes, há poucas que sejam muito especiais, a maioria são as mesmas que temos na Europa.»

Com o tempo e a permuta de sementes de e para a Europa ele viu desabrochar, algumas só brevemente, flores estrangeiras dentro da Cidade Imperial. Cumpria assim o projecto de Matteo Ricci de fazer com que se notasse, como num espelho imperfeito, que entre os estranhos também luzia a alegria do entendimento. O imperador mostraria o seu apreço pela natureza pedindo a pintores, alguns Europeus como Catiglione, que fizessem símiles da imensa variedade da flora observável.

Guan Huai (1749-1806), em cujo nome está a palavra huai, que é a designação da árvore que Lineu denominou sophora japonica, também conhecida como «árvore dos pagodes» que foi uma das espécies que o jesuíta d’Incarville deu a conhecer à Europa em 1747, pintou para o imperador um pequeno álbum portátil com o qual Qianlong podia passear, reconhecendo as flores no jardim do seu exótico Retiro de montanha em Chengde.

Em cada uma das oito páginas de Crisântemos estrangeiros (tinta e cor sobre papel,13,6 x20,4 cm, no Museu do Palácio Nacional em Taipé) sobre cada flor o imperador escreveu no Outono de 1786, um poema louvando a beleza efémera. Então, ele já sabia por experiência o que diz o «provérbio» (chengyu) jinghua shuiyue, «flores no espelho, a lua na água»: há coisas que se podem ver mas não tocar.

9 Out 2024

Deuses da Água e do Solo

Na História da China aparecem como lendas e mitos duas grandes inundações no período de vida de Fuxi e da meia-irmã Nuwa, no início do terceiro milénio antes da nossa Era. A primeira criou um oceano e foi iniciada por uma imensa tempestade com chuvas torrenciais sem parar e uma súbita subida da água a não deixar terra à vista. Levados separadamente pela corrente, os dois meios-irmãos seriam os únicos a sobreviver desse grande dilúvio e daí ficarem considerados os pais da humanidade chinesa. A segunda grande cheia decorreu, em relato mitológico, da luta entre Gonggong (deus da Água) e Zhurong (deus do Fogo), saindo Gonggong derrotado e humilhado suicidou-se, atirando-se contra a Montanha Buzhou, quebrando um dos quatro pilares da abóbada Celeste. Um tal abalo abriu fendas na terra, de onde saíram torrentes de água a inundar as zonas baixas do mundo, precisando Nuwa de erguer uma enorme argamassa feita com a mistura de cinco seixos de diferentes cores para reparar os estragos do Céu, ficando desde então este inclinado para Noroeste.
No reinado de Zhuanxu, Taitai já trabalhava a regularizar os rios, com o Imperador Diku a promovê-lo a chefe do controlo das águas. Taitai chefiava a tribo Jintian (Jintian shi) em Shanxi, pois inicialmente ela vivia em Shandong e descendia de Shaohao [conhecido também por Jintian, ou Xuanxiao e segundo o Shu Jing – Livro da História, ou de Documentos, um dos Cinco Ancestrais Imperadores]. Shaohao (c.2597-2514 a.n.E.) era o filho mais velho de Leizu e Huangdi (Imperador Amarelo), sendo o seu irmão Changyi pai de Zhuanxu. Changyi nascera no ano 29 do reinado de Huangdi e no 77.º ano foi para Sichuan, casando-se com Changpu (Jingpu), do clã Shushan, e dessa relação nasceu o filho Gaoyang, conhecido depois por Zhuanxu, o segundo dos Cinco Ancestrais Imperadores. Bai Shouyi refere, em Shandong habitava a tribo Shaohao, com os chefes Xiu e Xi, e por serem especialistas no controlo de inundações colocaram os filhos e netos a realizar esse trabalho e assim se transformaram em Deuses da Água.
Na região de Shanxi, a tribo Jintian teve chefes como Mei e o filho Taitai, especialistas na construção de diques e no controlo das cheias dos rios. Conhecidos por geração Mei (昧), os dois foram oficiais da Água (Shuiguan, 水官), ficando Taitai (台骀) encarregue especificamente dos rios Fen (汾) e Tao (洮). Deslocando-se com muita gente para o ajudar, criou as bases onde instalou os trabalhadores enquanto dragavam o rio Fen (Fenshui), construindo uma represa a originar o lago Daze e assim, os habitantes da área de Taiyuan puderam ter uma vida mais estável, passando a designá-lo por Taisheng (deus Tai).
Zhuanxu ofereceu a Taitai a governação da área de Fenchuan (mais ou menos a actual província de Shanxi) onde existiam quatro reinos tribais: Shenguo (沈国), Yaoguo (姚国), Ruguo (蓐国), Huangguo (黄国), e em cada um deles realizou sacrifícios às quatro direcções. Daí Taitai ser o Deus do Fengshui e receber oferendas por parte desses quatro reinos governados pelos seus descendentes. As informações deste parágrafo provêem do livro (左传-昭公元年).
Durante o reinado dos dois últimos Ancestrais Imperadores, Yaodi e Shundi, a população sofria graves inundações e para resolver esse problema contrataram Gun, pai de Yu, que trabalhou em conjunto com a tribo de Gonggong. Sem conseguir resultados, foi Gun despedido por Yaodi e substituído no cargo pelo filho Yu. Yaodi registou esse período de inundações, ficando o relato transcrito no Livro de Documentos (Shu Jing).
No Norte de Henan encontrava-se a tribo Gonggong, com o chefe Houtu especialista nos trabalhos de controlo das águas, sendo a tribo a inventora do método da construção de diques para prevenir as cheias. Segundo o Clássico das Montanhas e Mares [Shanhai Jing – haineijing (山海经-海内经)] Gonggong (共工) é filho de Zhurong (祝融) e pai de Houtu (后土). No entanto, sofreram graves inundações quando alguns dos diques cederam e daí ter sido a tribo Gonggong banida por Shundi, mudando-a para a prefeitura You. Houtu tornara-se o Deus do Solo e a tribo mais tarde passou a representar o deus da Água. Os Gonggong viriam a ajudar Dayu no controlo das águas e depois usaram com bons resultados o método de Yu para evitar inundações.
Yu, o Grande, também considerado Deus do Solo, além de adquirir conhecimentos com o pai Gun, fez a aprendizagem enquanto andava por diferentes regiões a ajudar a resolver os constantes problemas. Estudou as características das águas, a topografia dos terrenos e assim abriu muitos canais para controlar as cheias, conseguindo desbloquear os leitos dos rios, ou alargando-os, e conduzi-los a um fácil desaguar.
Certa vez, Yu não estava a realizar bem o trabalho de levar as águas do rio Amarelo para o mar, pois mandara escavar o canal na direcção errada. Então Houtu, como rainha deusa da Terra fez o Mapa do Rio Amarelo (Hetu) e enviou um pássaro mensageiro com instruções específicas a Yu, dizendo-lhe dever o canal ser aberto para Leste, para permitir um correcto escoamento.
Dayu reunia-se na montanha de Kuaiji com os senhores da terra (da tribo dos Gonggong), que o ajudaram no controlo das inundações, para lhes entregar o prémio segundo o contributo dado.

YU O GRANDE

A uns cinco quilómetros do centro de Shaoxing, na província de Zhejiang, um complexo envolve a montanha Kuaiji, onde no cume uma enorme estátua de Dayu domina a cidade. Para aceder ao recinto paga-se um bilhete de 25 yuans e junto a um canal proveniente da cidade está a entrada do templo e mausoléu de Dayu, onde prestamos homenagem ao fundador da dinastia Xia.
Desde criança Yu tinha um pequeno tigre como companheiro com quem se deu pela vida fora e o protegia quando trabalhava sobre as ordens de Yaodi, acompanhando-o sempre e devido a ser grande, bravo e forte ajudava-o a guiar os outros animais e a vencer demónios.
Segundo a mitologia, Gun depois de morrer em Yushan transformou-se num Urso Amarelo e a sua alma tornou-se Huang Neng, a tartaruga de três patas, passando a viver na água. Numa noite, estava Yu sem soluções para domar as águas dos rios da montanha Huanyuan [a Sul da província de Anhui], quando viu surgir o espírito do pai na forma de urso amarelo e com a cabeça mover a montanha. [O totem do povo Qiang, antepassados de Yu, era o urso amarelo.]
Aos trinta anos Yu ainda não se tinha casado, andando atarefado no trabalho de controlar as águas dos rios turbulentos das montanhas de Tu (Tushan ou Dangtu em Anhui), quando foi visitado por uma raposa branca de nove caudas. Ao vê-la Yu pensou: “branca é a minha roupa e nove caudas significa vir a ser rei” e começou a cantar: “uma raposa branca com nove caudas apareceu ao meu lado. Como estaria contente com esta beleza para minha esposa. Quando marido e mulher trabalham juntos com um só coração, então a harmonia reina entre o Céu e o Ser Humano”. Ao acabar a canção a raposa transformou-se numa bela mulher e Yu com ela casou, chamando-lhe Nujiao. [No tempo de Wudi da dinastia Han do Oeste, a Rainha Mãe do Oeste era esposa do imperador Yu (o Imperador do Leste) e ambos presidiam à corte do Céu.]
Sima Qian refere, que pouco tempo Dayu passou com a esposa pois, logo após casarem, foi chamado para resolver inundações e durante mais de uma dezena de anos atarefado com o trabalho, por três ocasiões passou em frente a casa, mas aí não se deteve.
Devido à sua sabedoria, Yu em 2070 a.n.E. tornou-se rei e governou durante 45 anos, fundado a dinastia Xia, a primeira na China. Até aí, eram os Imperadores e chefes escolhidos pela inteligência na capacidade de resolver os piores problemas a afectar as populações e a conseguir evitar desastres.
Dando início ao período das dinastias, a dinastia Xia (2070-1554 a.n.E.) viveu no curso médio do rio Amarelo (Huang he) entre os afluentes Yishui e Luoshui e dava ao território o nome de Hua Xia. Próxima do Monte Song, entre os rios Wudu e Ying, a cidade Yangcheng foi construída por Yu e tornou-se a primeira capital da dinastia Xia, hoje a povoação de Gaocheng, em Dengfeng Henan.
Já rei, Da Yu tentava controlar as cheias do rio Longo (Changjiang, ou Yangzi) no lugar das Três Gargantas, quando da Garganta Wu começou a jorrar água. Da Yu não podendo cortar montanha dentro para controlar a inundação, realizou uma oração à deusa Yaoji, a viver em Wushan. Esta ordenou à vaca, uma das 28 constelações, para vir à Terra ajudar Da Yu e com os cornos furou a rocha, desviando assim as águas do monte de Wu(shan), conseguindo desobstruir a passagem ao rio.
O cavalo-dragão só é visto por um imperador sagaz e quando Da Yu encontrando-se em imensas dificuldades para controlar o rio Luo, afluente do Huanghe, viu emergir das águas uma tartaruga e na carapaça encontrou o Livro do Rio Luo (Luoshu) com a Teoria do materialismo dos Cinco Elementos a representar a Ordem do Universo Manifestado. Ao ler o Mapa do Rio, Da Yu entendeu-o e por fim conseguiu com sucesso estabilizar o rio Luo e controlar as águas do rio Amarelo.
Quando Dayu morreu foi sepultado na base da montanha de Kuaiji e sucedeu-lhe como segundo rei da dinastia o filho Qi, nascido de Nujiao. Iniciava-se o período das dinastias com sucessão de poder transmitido normalmente de pai para o mais velho dos filhos, perpetuando-se no trono a família reinante.
O Templo Ancestral de Yu foi construído durante a dinastia Liang (502-557), mas o local tinha sido já oferecido por o sexto rei da dinastia Xia, Shao Kang (Du Kang, 1943-1922 a.n.E.), aos descendentes de Yu, o clã Si do povo Qiang, que aqui viveram mesmo depois da dinastia ser substituída em 1600 a.n.E. por a Shang. O templo mausoléu é composto por diferentes partes: rodeado por um muro de quatro metros de altura, encontra-se dentro o pavilhão Memorial e a Porta Wu, estando a estátua de Yu no pátio central. Acima, o monte da sepultura marcado por um bei.
Partimos depois de visitar a ponte do Dragão, por onde as águas do canal correm, com embarque no bote a remos em frente ao Palácio de Yu, no parque do mausoléu, para navegar até ao centro da cidade de Shaoxing.

26 Set 2024

O nome poético de Macau em Português

Ana Cristina Alves, Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM

O nome poético de Macau encontra-se ligado a grandes poetas que estiveram em Macau, como Luís Vaz de Camões (1524?-1580), com toda a certeza poética que o amor por uma Dinamene confere e confirmam os biógrafos como Eduardo Ribeiro; ou a Manuel Maria du Bocage (1765-1805), ou a Camilo Pessanha (1867-1926),ou a Manuel da Silva Mendes (1867-1931), entre outros mais recentes como António Graça de Abreu (1947-) e Carlos Morais José (1963 -). Neste espaço, gostaria de destacar os contributos para os nomes e relação com a Península de Macau de Maria Anna Acciaioli Tamagnini (1900-1933); Beatriz Basto da Silva (1944-), Manuel do Couto Viana (1923-2010); José Augusto Seabra (1937-2004); Rui Rocha (1948 -), Cecília Jorge e António Mil-Homens (1949-).

Maria Anna de Magalhães Acciaioli Tamagnini, a linda princesinha da poesia escolhida para consorte de Artur Tamagnini Barbosa, deixou-nos além de obra benemérita e socialmente empenhada, uma coletânea poética intitulada Lin Tchi Fá – Flor de Lótus, publicada em 1925, cujo tema principal são as flores, humanas e naturais e, entre estas, a rainha de Macau, a flor de lótus, lin tchi fá, que na sua perspetiva simboliza esteticamente a cidade como nos revela na segunda quadra do poema “Folhas de Lótus”

 Sobre folhas de lótus desenhei

  O mais risonho trecho da cidade;

 E esse leve desenho que tracei

  Dir-se-ia uma paisagem feita em jade

 (Tamagnini, 1991, 15)

Maria AnnaTamagnini cruza-se no tempo de vida com António Manuel Couto Viana, que nasceu em Viana do Castelo em 1923, vindo a falecer, já no século XXI em 2010. Homem multifacetado foi poeta, dramaturgo, ensaísta, memoralista e ainda se dedicou à escrita de contos para crianças. Foi também ator, encenador e empresário teatral, dirigindo a companhia especializada em espetáculos infantis, Gerifalto, bem como a Companhia Nacional de Teatro. Viveu em Macau entre 1986 e 1988, tendo exercido funções no Instituto Cultural. Entre as suas obras poéticas, gostaria de destacar Até ao Longínquo China Navegou (1991), sobretudo pelo primeiro capítulo, intitulado “Nome de Deus Deusa no Nome”, dedicado a Macau, incidindo os restantes sobre a China, a Formosa, o Sião (Tailândia) e o Reino da Malásia. Com ele, se acompanha “Um Sabor a Saudade”, que a terra lhe deixou, bem como a dedicatória ao nome central da literatura macaense, Henrique de Senna Fernandes, através do poema “A-Li a Tancareira”, que recorda as raízes piscatórias de Macau e dos seus habitantes, muitos deles, da etnia Tanga (蛋家Dànjiā), vivendo em pequenas embarcações, os tancares, oriundos das zonas ribeirinhas de Cantão, Fujian e Guangxi. O autor apresenta a tancareira “Como a descer sem pressa/ Ao túmulo impassível do passado” (Viana, 1991,21). Num outro poema, dedicado a João Sales e à Cidade, confessa-se totalmente identificado, sobretudo com a história da terra, “Na Pousada de Mong Há”, cuja derradeira quadra é deveras tocante:

 Memorial de mim em cada muro

 Grava os versos do fim em que me vês:

 - Aqui viveu enquanto foi futuro,

 O último poeta português!

 (Viana, 1991, 23)

Após um outro poema à Festividade da Lua, intitulado “Na Lua do ‘Bate-Pau’” em homenagem ao Padre Benjamim Videira Pires,S.J.(não consigo deixar de me interrogar sobre o que saberia da biografia do Padre), segue-se um soneto em honra da festividade do Ano Novo Chinês, intitulado “Kong Hei Fat Choi” (saudação à prosperidade) soprado pelos ventos de mais uma primavera. O último terceto encerra num desabafo tocante, onde se patenteia e entrelaça o seu sentir pessoal com o do inconsciente coletivo de muitos portugueses e macaenses da sua geração:

 Foi-se-me o tempo e a arte. O que me resta?

 Teu coração, Macau, pra fim de festa,

 No ano que começa e me acabou.

 (Viana, 2010,27)

Para muitos dos nossos compatriotas mais antigos, Macau tem ainda um sabor imperial de conclusão de ciclo, a par de Timor. Porém, Macau é um caso único. A Cidade do Nome de Deus, que haverá de se transformar-se na Região Administrativa Especial da China, foi entregue aos chineses de um modo exemplar, sem sobressaltos nem guerras; simultaneamente marca o fim de uma era europeia, a partir da qual já não são admissíveis colónias. Desta forma, encerra um período histórico, feliz para os que se identificavam com imaginação de que Portugal ia de Lisboa a Timor, sendo igualmente reconfortante para o eu poético que tanto se identificou com o lugar a ponto de lhe sentir o bater do “coração” em período de desfecho, por osmose.

Beatriz Basto da Silva (1944 -), casada com um macaense, historiadora, professora, poetisa portuguesa, nesta última qualidade o que diz sobre o tema da transição de Macau para a China em Silêncios (1996), no poema “Macau 99”?

 Tenho os olhos rasos de angústias futuras

 por isso me parece tudo

 paisagem de nocturno e final canto…

 infiel é o Sol

 que deixou de vir em cada dia

 aquecer-me

 como dantes fazia.

 (Silva, 1996, 59)

Ensombra este poema datado de 1991 um grande pessimismo, impregnado de sentimento desagradável frio e de fim de história, pelo menos imperial, porque, entretanto, Macau continuou o seu caminho e hoje, mesmo os mais pessimistas reconhecem que sobreviveu de novo aos imprevistos da história. Passou de mãos, mas está vivo, próspero e sempre em transformação. É mesmo um caso exemplar de encerramento feliz, ainda que deixando um travo nostálgico em muitas pessoas que na última década do século XX não podiam prever o que as esperava. Foi um mistério até deixar de o ser.

Perdeu-se o império, ficou o sagrado colado ao nome de Macau, como bem notou o professor, ensaísta e poeta José Augusto Seabra (1937- 2004), nascido em Vilarouco, São João da Pesqueira. Licenciado em Direito, conheceu o exílio em França, doutorando-se em letras na Sorbonne. Regressado a Portugal em 1974, faz o seu caminho no ensino até chegar a professor catedrático na Faculdade de Letras do Porto e diretor literário da revista portuense Nova Renascença. Também sentiu e ressentiu o passado histórico, o sonho de grandeza e a perda traumática do império, bem psicanalisada por Eduardo Lourenço em Labirinto da Saudade (1972). Poemas do Nome de Deus (《神的名字》) é uma obra bilingue de 1990, onde se lê em jeito de breve e incisiva introdução/inscrição pela boca do autor que vamos entrar na leitura de “um livro de Amor, Terceira Pessoa da Trindade. Amor com todas as letras, elevado ao infinito, em rigor indizível” (1990,13).

Desta forma, tudo o é dito na obra surge filtrado por este sentir, mesmo a saudade, o sentimento de perda e todos os outros parceiros negativos que costumam acompanhar estes dois. No poema da abertura “Do Nome” vislumbramos o movimento dos nautas pelos mares reais e imaginados até alcançar o horizonte do afeto pleno pela cidade:

 De vir chegando, ao longo de ficar

 mais perto do partir, atravessando

 o lugar infinito de não estar

 na presença a fugir do onde ou quando

 que é só pura memória de chegar,

 eis quase no horizonte o sinal pando

 a tremular ao sol de nau em nau:

 o teu nome sem nome, Ó Deus, Macau.

 (Seabra, 1990, 15)

 Aventureiros do ideal, como é dito no poema sugestivamente intitulado “Dos Nautas”, são “(…) os nautas perdidos/ dando três vezes a volta às margens do vago,/imaginando (…) (Seabra, 1990, 75). Ainda assim, para a história mundial fica uma certeza científica no meio de tanta paisagem onírica, apresentada em “Da Rota”. Esta é com todo o estudo e merecimento “a glória de sabermos/ a rota da viagem” (Seabra, 1990, 77). A relação amorosa do eu poético com a cidade é totalmente justificada no mistério do nome de Deus, afeto proporcionado não apenas pela terra como ainda pela palavra sagrada da pátria, em “Da Lealdade”:

 Ó pátria da palavra

 dada: pátria amada

 que da pátria resguarda

 a palavra sagrada.

 (Seabra, 1990, 33)

 真實

  嘔,語詞的國度

 被賦予的稱呼:可愛的國度

 從這個國度

 保護神聖的詞匯

(Tradução de Lu Ping Yi 吕平義)

Que belo elogio à “Cidade do Nome de Deus, não há outra mais leal”. O amor verdadeiro surge assim do mistério, aliado ao reconhecimento da virtude da lealdade, pois se foram os portugueses os primeiros a chegar a Macau, era justo que nenhuma outra bandeira fosse hasteada a não ser a portuguesa, mesmo quando “se mudam os tempos e as vontades”, bem como as alianças que provocam alterações no panorama político com consequências dinásticas.

Retém José Augusto Seabra os momentos mais belos e significativos da história de Macau, sem, no entanto, esquecer o papel humano dos portugueses, vagabundando num panorama onírico em que por vezes conseguiam concretizar os seus sonhos, sobretudo quando recorriam à perícia tecnológica e ao pensamento científico.

Já em pleno século XXI, transição concluída da Cidade do Nome de Deus para a Região Administrativa Especial de Macau, serão os sentires poéticos talvez outros, a par dos novos tempos, tornando-se mais concretos e laicos?

Rui Manuel de Sousa Rocha (1948 -) nasceu em Lisboa, de ascendência portuguesa e macaense. Foi habitante de Macau por três décadas, onde desempenhou o cargo de diretor do Instituto Português do Oriente, convivendo de perto e em harmonia com as culturas e poesias chinesa e japonesa, oriundas do Budismo Chan (Zen). Na obra poética A Oriente do Silêncio (2012) enquadra lucidamente Macau numa “China antiga”, imperial, na qual o governante se ligava diretamente às forças celestiais através do “mandato do céu” (Rocha, 2012, 11) até ao momento da despedida, num poema cujo título é substituído por uma data “Macau, 20 de dezembro de 1999”, em que sobressai o desejo de partir, acompanhado pelo movimento de diáspora. Aqui fica a primeira estrofe:

 para que o tempo não fuja

 como uma pérola na ponta de um fio

 para que o amor não naufrague

 nas noites escuras dos mares da china

 colarei o meu corpo a um qualquer mapa

 dos lugares por onde andares

 e elevarei o meu coração

 sobre os céus desses lugares.

 (Rocha, 2012, 101)

Ficar e acompanhar os novos tempos, pautados por uma nova administração, ou partir, encetando um outro caminho de vida, mais uma aventura? Tomar qualquer das opções implica coragem e muita energia, mas se as decisões forem realizadas em nome do amor, isso ajuda. Fique-se ou parta-se por sentimento, porque depois, haja o que o houver, que seja em nome da melhor das causas, “para que o amor não naufrague”.

Cecília Jorge, macaense, de famílias antigas da terra, foi jornalista e investigadora muito ativa na cultura de Macau, tendo partilhado com Rogério Beltrão Coelho, português com quem é casada, uma editora, a dos Livros do Oriente. Tem várias obras consagradas ao encontro de culturas, ponto essencial da identidade cultural macaense, concentrando-se em muitas delas na apresentação da matriz chinesa de Macau. De regresso a Portugal, trouxe na bagagem entre os diversos títulos publicados, um livro de poesia dedicado a Macau, Poemas para Macau (2020), no qual vai descrevendo em verso o encontro de culturas como o mais típico da identidade macaense, tantas vezes unida nos corpos e dividida nas mentes de quem transporta muitas matrizes diferentes, sendo duas mais evidentes, a portuguesa e a asiática. São muitas as interrogações de quem se sente puxado por diversos lados, como nos explica em “Mestiçagem”, de que aqui se registam alguns versos, datados de 1991:

 Quem sou?

 Donde venho? De que lado

  do mundo?

 E para onde vou?

 Quanto sangue se misturou

 até me chegar às veias confuso?

 (…)

 Corsário reinol…aventureiro

 antepassado e pai foste

  e num abraço me geraste

 no ventre de mãe asiática

 (Jorge, 2021, 31)

Há então um momento em que chega a hora da partida, justificado pela desidentificação com a cidade contemporânea, onde o eu poético, apesar das suas raízes asiáticas não consegue encontrar o conforto de um espaço idêntico ao das suas memórias de infância e de adolescência, como se lê no poema “Macau”

 Poema que (mal) escrevo

 lápis e papel virtual

 em cada noite de insónia

 memórias que se perdem

 no despertar

 desta urbe travestida que se arrasta

     que grita

 (Jorge, 2021,36)

É o sinal da partida, com a consciência de que no caminho seguirá consigo “a humana partilha/solidariedade/e amizade” (Ibidem), perto ou longe, será transportada até Macau pelo afeto macaense em torno de uma chávena de chá, pelo que afirma em “Lembra-te da cor do ‘mar’”, poema datado de 1991

 Macaenses

 nossa gente

 Ainda que em volta de

 uma só

 taça de chá.

(Jorge, 2021, 47)

Se em Maria Anna Tamagnini é-se conduzido até Macau belíssimo espaço de jardim, já com António Manuel Couto Viana se sente vibrar na sua obra a dimensão histórico-poética, não apenas do eu poético, mas do povo português, sendo este domínio aprofundado por José Augusto Seabra, que lhe confere uma aura amorosa sagrada e consagrada pela palavra, da terra e dos seus virtuosos habitantes, empenhados na sua lealdade. A complementar a zona onírica, surgem os depoimentos poéticos muito reais e saudosos de Beatriz Basto da Silva e Rui Rocha. Este último, com Cecília Jorge, acentua o momento histórico da viragem de macaenses que optaram pela diáspora. Em Cecília Jorge a partida será realizada sem nunca perder de vista a dimensão comunitária da partilha de raízes em torno dos momentos festivos, sempre acompanhados pela gastronomia, hoje património cultural da humanidade, culminando numa simples chávena de chá.

Macau espaço de convívio físico, mas também espiritual, será cantado ainda em Poemografia de Macau (2019), na obra trilingue mais recente de António Duarte Mil-Homens (1949-), com prefácio do atual embaixador Vítor Sereno, à época cônsul de Macau. Este poeta é profissional de fotografia desde 1984, cuja atividade iniciou em 1974, tendo vivido por longo tempo no território, onde exerceu a profissão e a par desta começou a desenvolver a faceta poética. Regressado de Macau, trouxe consigo a sua Poemografia da terra, na qual perpassa o sentir de muitos portugueses que fizerem deste porto abrigo temporário. Para o eu poético nos primeiros versos de “Macau é seio” a terra é a mãe dadivosa, que o alimentou e lhe permitiu a existência, em tempo de migração a que poderia sucumbir:

 Macau é seio

 Macau é ventre

 Macau é mudança,

 (Mil-Homens, 2019,26)

Ao longo da Poemografia, percebe-se o quão único é aquele pequeno espaço, com a China logo ali ao lado, mas separado, por uma ligeira fronteira, como explica em “Portas do Cerco”, o posto transfronteiriço sucessor do muro erguido pela primeira vez em 1573 a dividir Macau e a China em “A entrada noutro mundo/outra lei” (Mil-Homens, 2019,34). E, ainda hoje, depois da criação da Região Administrativa Especial de Macau, formalizada na transferência de poderes a 20 de dezembro de 1999, se verifica a existência de uma Lei Básica de Macau, que alinha em muitos pontos pelo direito português e garante um estilo de vida ocidental à população por cinquenta anos, ou seja, até dezembro de 2049.

Porém, é no encontro dos sentidos com um espaço radicalmente outro que o fotógrafo/poeta se sente desperto na certeza de que este lhe faculta o acesso a um mundo diverso. Leiam-se as suas palavras em “Nesta Macau me endoido”:

 Nesta Macau me endoido,

 Neste retiro me mereço

 Neste covil me entesoiro

 E sem querer me esqueço.

 (Mil-Homens, 2019, 84)

Porém, só por breves momentos se esquece da sua herança portuguesa, já que a memória imagética e fotográfica é constantemente avivada pela presença do património histórico e afetivo português, como se lê em “Molhada, esta calçada portuguesa” (Mil-Homens, 2019, 88). Sofre ainda fisicamente de um sintoma que o recorda da presença em terra não estranha, mas em transformação frenética, distante do seu sossegado país. Nela se mantém constantemente ativo, estimulado, vigilante, por causa “Desta Macau que me provoca/ Insónia prenhe, vontade pouca/ De desligar, de adormecer” (Mil-Homens, 2019, 92). Constata que em terra oriental chinesa e de Macau muito mais é o vivido imaginado do que o real, num mapa disperso, impressionista criado pelos sentidos no seu confronto com uma cultura distinta, que dá origem a uma esplendorosa geografia mental, como sugere “Nesta geografia/sem mapa” (Mil-Homens, 2019, 102). Assim, o seu sentir é confuso, regozijante, atento à procura de uma resposta existencial, como declara em “Exílio ou opção”:

 Mantido à tona

 Desta demanda

Em comunhão?

Aqui Macau,

Além China,

Almejo ainda salvação…

(Mil-Homens, 2019, 105)

Macau é durante parte do caminho a resposta existencial certa para o eu poético, pelo menos até ao momento da despedida: não física, mas mental. Porque se o sinal de partida foi dado e o poeta regressou Portugal:

 Não sei onde te encontrar,

 Procuro onde me rever,

 Em torno tudo a mudar,

 A velha Macau a morrer

 (Mil-Homens, 2019, 142)

isso não significa que tenha de facto abandonado aquele espaço que lhe proporcionou a vida, ou melhor, a energia para continuar a viver, já que afirma em “Irei reinventar-te no regresso” a incapacidade de esquecer a terra que o viu nascer como pessoa e agora, longe, renascer:

 Da memória já renasces,

 Como se naufragado tivesses,

 Macau

 E, à vista do que recresce,

 Me condenes ao redito,

 Da água brotando do Lilau.

 (Mil-Homens, 2019,122)

 澳門,

你從記憶裏重生,

就如曾遭遇海難。

而審視再次生成的東西,

你會逼我重新描述,

阿婆井流出的水。

(Tradução de Xu Caiyan 徐彩燕, 2019,124)

E como se diz de quem bebeu da água dessa Fonte do Lilau nunca mais esquece Macau, também António Mil-Homens, à semelhança de todos os outros poetas e poetisas aqui trazidos, ficará para sempre ligado à misteriosa e sagrada Terra do Nome de Deus.

Bibliografia

Jorge, Cecília. 2021. Poemas para Macau. Prefácio de Vera Borges. Macau: Livros do Oriente.

Mil-Homens, António Duarte. 2019. Poemografia de Macau. Macao Poemography. 《澳門詩像》.Macau: Instituto Cultural do Governo da Região Administrativa Especial de Macau.

Rocha, Rui. 2012, A Oriente do Silêncio. Lisboa: Esfera do Caos Editores.

Seabra, José Augusto. 1990. Poemas do Nome de Deus. 《神的名字》Macau: Instituto Cultural de Macau.

Silva, Beatriz Basto. 1996. Silêncios. Macau: Edições Mar-Oceano.

Tamagnini, Maria Anna Acciaioli. 1991. Lin Tchi Fá. Flor de Lótus. Macau: Instituto Cultural de Macau.

Viana, António Manuel Couto. 1991. Até ao Longínquo China Navegou. Macau: Instituto Cultural de Macau.

25 Set 2024

Ancestrais Imperadores no rio Amarelo

Um dos berços da civilização chinesa encontra-se no curso médio e baixo do rio Amarelo e afluentes. Os seus férteis vales, eleitos pela abundância de alimentos e animais, foram locais privilegiados de uma rápida fixação de famílias agricultoras, assim como na sedentarização de caçadores e pescadores, tornando-se lugares densamente povoados. Nas suas margens evoluíram há oito mil anos, a cultura Peiligang, a cultura Yangshao [na parte Leste do curso médio do Huanghe e vale do rio Wei, a produzir potes de argila pintados com figuras geométricas] e na parte do curso baixo do rio Amarelo, em Shandong a cultura Longshan [onde se plantava já arroz, milho miúdo e talvez trigo, sendo os potes pretos levantados em roda de oleiro] e dois milénios mais tarde a Cultura Dawenkou (4300-2500 a.n.E.).

Foi essencialmente nas áreas do Huanghe que os Cinco Ancestrais Imperadores (Wudi) percorreram em constantes viagens vastas regiões do Norte e Centro da China, desenvolveram os territórios e situaram as capitais, estendendo-se alguns deles nas regiões até ao Changjiang, demonstrando uma mobilidade de espantar.

Huangdi (黄帝, 2550–2450 a.n.E./2704-2595 a.n.E.), o primeiro dos Cinco Ancestrais Imperadores, nasceu no monte Xuanyuan, onde hoje será Xinzheng, a fazer parte da cidade de Zhengzhou na província de Henan e tinha o apelido Ji, o nome da sua tribo, também conhecida por Xuanyuan. Antes de se tornar o Imperador Amarelo, a tribo era matriarcal e chamava-se Tian Yuan e ainda nómada vagueava por Zhuoxian, em Hebei.

Já como chefe da tribo Ji, também na província de Hebei fez a capital em Fanshan, no concelho Zhuolu e para Sudeste, em Banquan os Ji derrotaram os Jiang [provenientes do rio Wei e cujos ancestrais eram Yandi e Fuxi] e as duas tribos em aliança juntaram-se; na altura era comum as tribos guerrearem-se para tomarem terras, animais e fazerem escravos. Com Huangdi, parte das tribos a viverem no Norte e Centro do território da actual China ficaram unidas, formando o povo Huaxia, hoje conhecido como Han. O Imperador Amarelo teve mais de cem filhos. Com uma grande experiência, devido ao muito viajar, patrocinou inúmeras invenções para tornar a vida quotidiana muito mais fácil.

No monte Jing, hoje no concelho de Lingbao em Henan, Huangdi deixou a vida terrena e foi levado por um dragão divino. Enterraram-no em Qiaoshan, conhecida como “Montanha da Ponte”, mas o seu túmulo foi encontrado em outras províncias como Gansu, Hebei e Henan. No entanto, é na Montanha da Ponte em Huangling (prefeitura de Yan’na, província de Shaanxi) onde se presta oficialmente homenagem ao Imperador Amarelo no dia do Qingming.

Aí passa o rio Luo (Luohe) proveniente do Norte e a desaguar no rio Wei pouco antes deste afluir no Huanghe.
Neto de Huangdi, Zhuanxu (颛顼, 2450-2372 a.n.E.) com o nome de Gaoyang era filho de Changyi e o avô indicou-o para lhe suceder como o segundo dos Ancestrais Imperadores. Ocupou o trono durante 78 anos, começando por manter a capital em Fanshan (concelho Zhuolu, Hebei) e depois mudou-a para Shangqiu, em Henan. Daí rumou ao Norte e passou a capital para Diqiu [hoje na área de Puyang] em Henan, fronteira com Anyang, a Norte do rio Amarelo.

Zhuanxu colocou como oficiais para administrar o território dois dos netos: Zhong, responsável pelos ofícios e sacrifícios ao Céu e Li, a tomar conta das ordens administrativas na Terra. Tal incrementou a união de cada vez mais tribos ao povo Huaxia e a unificação a dar molde ao país. Zhuanxu morreu com a idade de 98 anos e tem o mausoléu junto ao de Diku (seu primo), a quilómetro e meio da aldeia de Sanyangzhuang, em Liangzhuang, 30 km a Sul da capital do distrito Neihuang, em Henan, na estrada Anyang-Puyang. Zhuanxu é festejado no 18.º dia do terceiro mês lunar.

Diku (帝喾, 2372-2297 a.n.E.), conhecido por Gaoxin, era bisneto de Huangdi e filho de Ku, primo de Zhuanxu. Foi o terceiro dos Cinco Ancestrais Imperadores da China e reinou 75 anos, continuando com a capital de Zhuanxu em Shangqiu. Ambos têm o mausoléu na mesma localidade, próximo da aldeia de Sanyangzhuang em Liangzhuang, sendo Diku celebrado no dia 14 do quarto mês lunar.

Sucedeu-lhe Yao de Tang (尧帝, 1179-1061 a.n.E. ou 2297-2179 a.n.E., Tang Yao), filho de Diku, de nome Fangxun e apelido Qi da tribo Taotang, nasceu em Yi Fangxun ou Yi Qi [Guoyou em Jiangsu, ou Tianchuang em Anhui]. Com vinte anos tornou-se o quarto dos Ancestrais Imperadores e provêm do seu reinado os primeiros registos de instituições organizadas para administrar o território. No 70.º ano de reinado, Yao passou o trono a Shun, para quem abdicou ao se aperceber não ter descendência à altura, apesar dos nove filhos. Continuou a sua existência por mais 28 anos e ficou creditado como o inventor do jogo go (weiqi).

O seu território compreendia desde o rio Amarelo ao Changjiang, tendo mais tarde ao reino de Tang conquistado Taosi [Xiangfen sob jurisdição da prefeitura de Linfen, em Shanxi, onde se desenvolvera a última fase da cultura Longshan (2300-1900 a.n.E.)] e aí fez a capital Linfen, situada nas margens do rio Fen, no Sudoeste de Shanxi fronteira com Shaanxi, próximo da viragem para Leste do Huanghe. Yao morreu com 118 anos e o seu mausoléu encontra-se na capital Linfen, sendo celebrado no Qingming (entre os dias 3 e 5 de Abril). Yao é o ancestral da dinastia Han e Liu Bang dizia-se descendente de Huangdi.

CONTROLAR AS INUNDAÇÕES

O reinado de Yao foi marcado por desordens sociais e graves inundações, relatadas pelo próprio Imperador e registadas no Livro de História (Shu Jing). Yaodi ordenou a Xihe para realizar observações astronómicas e daí fazer um calendário; a Qi, um mestre na agricultura, a ensinar às pessoas a cultivarem cereais; e a Gun (um príncipe de Chong, descendente de Huangdi) para controlar as águas e evitar as cheias, mas após nove anos de esforço nada conseguiu e Yaodi mandou-o prender, tendo morrido em Yushan, já no reinado de Shundi.

O Imperador Yao conhecera Shun com vinte anos e colocou-o ao seu serviço como Ministro das Instruções e chefe das Quatro Montanhas (siyue), dando-lhe quatro anos para organizar o país. Após três anos, Shun executara todos os trabalhos ordenados por Yao e como prova de reconhecimento este escolheu-o para seu sucessor, por ser uma pessoa íntegra e de grande inteligência. Shun tinha 30 anos quando Yao lhe deu em casamento as duas filhas, Nu Ying e É Huang e após 70 anos de governação passou a liderança a Shun. Este com a idade de 53 anos recebeu o trono e fez a capital em Yuncheng, concelho de Yongji [conhecido nos antigos livros por Puban] na província Shanxi.

O quinto dos Ancestrais Imperadores, Yu Shun, (舜帝, Shun de Yu, 2255-2207 a.n.E., data de Lu Xun, 2287-2208 a.n.E., ou 1153-1061 a.n.E.), nasceu em Yongji na prefeitura de Yuncheng, a Sudoeste de Shanxi fronteira com Shaanxi. O seu pai Gu Sou afirmava ser descendente de Zhuanxu, mas este Imperador entregara o trono a Diku, filho preferido de um segundo casamento. Shun era diligente, modesto e carinhoso e tivera uma infância madrasta, valendo-lhe a irmã, a Senhora Keshou, a salvá-lo da fúria do pai cego Sou e de Xiang, o irmão mais novo, pessoa de mau carácter, sempre a conspirar por ciúmes contra ele, tentando-o matar para ficar com o seu lugar. No entanto, nunca conseguiu os seus intentos e Shun desculpou-o sempre. Durante o seu reinado [que segundo Sima Qian durou 39 anos] viveu numa casa humilde e teve um casamento muito feliz com as duas filhas de Yao. Além de investir na educação, na música e ensinar os Ritos, foram no seu reinado divulgadas à população as máximas do comportamento humano, usadas mais tarde por Kongfuzi.

Shundi constantemente se encontrava em viagem, umas vezes para inspecções, outras para resolver problemas ocorridos com o povo Huaxia e as outras tribos, ou para conquistar mais territórios em regiões cada vez mais remotas. Estava a população e as tribos a viverem em paz e harmonia, quando com 92 anos Shundi faleceu. Encontrava-se numa viagem de inspecção ao Sul, na região de Cangwu e após a morte foi canonizado como Yu Di Shun. É comemorado no oitavo dia do nono mês lunar no seu Templo-mausoléu no monte Jiuyi, também conhecido por monte Cangwu, a Sul do concelho de Ningyuan, província de Hunan, por onde passa o Xiangjiang [o rio principal do lago Dongting, e daí a ligação ao Yangzi].

Ainda no reinado de Yaodi, após despedir Gun por este não conseguir evitar as inundações, convidou Yu, com o mesmo ofício do pai, para substituir Gun no cargo. Yu trabalhou também para Shundi e ficou conhecido por conseguir controlar as cheias através da construção de canais, alargando os leitos dos rios e desviando as águas para as fazer correr até ao mar.

Devido à sabedoria de Yu, Shundi com 83 anos colocou-o rei e como Dayu governou durante 45 anos, fundando a dinastia Xia (2070-1600 a.n.E.), a primeira da China. Até Yu, os chefes eram escolhidos pelo seu saber e capacidade de resolver os problemas.

30 Ago 2024

Rio Amarelo

Conhecido em chinês por Huanghe (黄河), o segundo maior rio da China com 5464 km de comprimento atravessa nove províncias, tendo em Qinghai a nascente, a Oeste do rio Jinsha (outro dos nomes do Changjiang).

A Oeste da China, no planalto tibetano nasce o rio Amarelo na cordilheira Kunlun, nas montanhas Bayan Har (Bayankhar, na língua mongol) no planalto Yekulonglie em Chenduo, prefeitura Yushu, província de Qinghai, de onde parte para Leste com o nome mongol de Yekulongliechu.

Os tibetanos chamam-no Maqu, pois segundo eles o início do rio parece a cauda de um pavão devido ao leque formado por inúmeros lagos e rios que convergindo são a sua fonte. Essas provêm de três lagos (Gyaring, Ngoring e Xingxiuhai), que se juntam no cruzamento de um pequeno rio proveniente do Norte denominado Chacu e outro do Sul, mais longo chamado Karichu. Após serpentear pelas montanhas de Qinghai, o Rio Amarelo segue brevemente por Sichuan e regressando para Noroeste, passa para Gansu, onde banha a capital Lanzhou. Daí vai para Ningxia, onde subindo atravessa a capital Yinchuan e continuando para Norte entra na Mongólia Interior, passando por Baotou, a maior cidade dessa província e segue até Hekou (sob jurisdição de Togtoh), onde terminam os 3472 km do curso superior do Huanghe.

O rio Amarelo inicia o curso médio em Hekou e descendo para Sul em linha recta pela borda da província de Shanxi, fronteira com Shaanxi, quase no final recebe as águas do rio Fen.

Mais adiante, na área de Yuncheng (no Sul de Shanxi) o rio Amarelo deixa de correr para Sul e vira para Leste, fazendo de linha limite ao Norte de Henan.

Onde o Huanghe faz a viragem para Leste desagua o rio Wei [proveniente das montanhas Qinling ainda em Shaanxi], que em Xianyang [capital da dinastia Qin, a 25 km a Norte de Xian] recebera o afluente Jing e mais à frente o rio Luo, parecendo ser esse balanço de enxurrada a desviar o rio Amarelo para a fronteira entre a província de Shaanxi e Shanxi, levando-o a entrar em Henan. Aí, em Jixian (prefeitura de Linfen, Shanxi) a queda de água de Hukou, catarata com 15 m de altura e 20 m de largura, é a maior do rio Amarelo e a segunda maior da China.

É devida à fluição das águas provenientes do Grande Canhão de Jinxia, estando o rio Amarelo emparedado por montanhas a reduzir a sua largura, logo a correr mais veloz, ao encontrar-se com a montanha de Hukou, sem possibilidade de passar essa barreira, esgueira-se por uma estreita abertura e submerge numa queda de 15 a 20 metros de altura.

Sanmenxia é a prefeitura mais Oeste de Henan, fronteira com Shaanxi, e a cidade encontra-se no lado Sul do Rio Amarelo, havendo duas ilhas que dividem em três partes o rio, na altura de entrar na sua viagem para Norte pelo planalto de loesse, formado pelo depositar dos sedimentos férteis amarelados transportado pelas águas do rio.

Nos anos 60 foi construída a barragem Sanmenxia (Garganta das Três Portas), local ligado com um dos trabalhos de Da Yu, quando usou o machado divino para cortar a montanha em três partes, criando as Gargantas de Sanmenxia a prevenir inundações.

Atravessando o Norte de Henan, o Huanghe banha em Taohuayu a capital Zhengzhou, à frente da qual o rio Qin desagua e finaliza os 1206,4 km do Curso Médio de Huanghe, iniciado em Hekou na Mongólia Interior. A setenta quilómetros a Leste da capital Zhengzhou, aparece Kaifeng na margem Sul do Huanghe e o rio corre depois na província de Shandong pela capital Jinan e no distrito Kenli, em Dongying, desagua no mar de Bohai.

PASSEAR NO HUANGHE

A cor amarela a dar o nome ao rio deve-se à grande densidade de sedimentos transportados nas suas águas a provocar o empobrecimento dos solos nos planaltos de loess situados no Noroeste da China. Esses sedimentos vão-se depositando no médio e baixo curso do rio, provocando uma mudança do curso deste de dez em dez anos e as margens tornam-se muito férteis. No período das chuvas e do degelo, entre Maio e Agosto, o rio corre com um vigor inacreditável para quem o conhece no resto do ano, quando parece adormecido e parado.

Por ano, 50 mil milhões de metros cúbicos de água são drenadas por este rio no mar e irriga 750 mil quilómetros quadrados de terrenos.

O Curso Alto do Huanghe passa por Lanzhou, a primeira grande cidade e capital da província de Gansu. De Lanzhou ficou na memória de viajante o navegar sobre uma boia no rio Amarelo, as obras por toda a cidade, a construção de novas avenidas e a abertura de centros comerciais, cujas inaugurações eram feitas com a dança do leão e espectáculos coreografados por crianças das escolas, havendo ainda danças praticadas por diferentes etnias. No público, depreendidos pelas vestes e feições dos rostos estavam tibetanos, uigures, huis e dongxiang. Essas minorias trajando de cores aguerridas vinham à cidade e nas grandes avenidas contrastavam com as vestes cinzentas da população local muçulmana que se dirigia às inúmeras mesquitas.

Durante muitos séculos, os caminhos do comércio fizeram passar por esta cidade as caravanas de uma rota conhecida como a da Seda do Oeste. Parece estar esse tempo a ser apagado dos registos de Lanzhou e os habitantes, resignados, assistiam à destruição das antigas estruturas da cidade, provenientes do tempo de bastião avançado do País do Meio. Agora, com um novo planeamento urbanístico a merecer o acordo dos habitantes, a cidade está de novo a ser construída. Contentes, referem chegar a hora de com novas casas melhorar as condições de vida. Numa esquina do largo espaço da praça principal, protegidos do Sol, jogadores de xadrez ali se refugiam às dezenas. Refrescam-se de um calor seco, cobertos pela sombra de frondosas árvores e com uma pequena aragem a correr. Verdadeiras finais são ali disputadas entre tabuleiros.

A mesquita, que ao centro divide a avenida, dos altifalantes difunde o sermão para a rua e muita gente sentada à sombra de pequenas árvores escuta-o, enquanto vai preparando o cenário do seu trabalho, pois ali estão os que lêem as mãos, os que usam o Yi Jing e outros a trabalhar com o “Fengshui”.

O rio Amarelo corre em Lanzhou mansamente com uma cor barrenta, já sem a fúria característica depois das fortes chuvadas, que aparecem normalmente na altura do degelo das montanhas durante o Verão e provocam inundações por todo o vale. A paisagem mostra ainda campos de cereais calcados por recentes enxurradas de incontroláveis águas.

A areia fina das dunas de um amarelo acastanhado, trazida por o vento do deserto, escorre até ao Huanghe. Na borda do rio, jangadas feitas com boias da pele interior e inteira de carneiro, atadas na parte extrema de cada uma das quatro pernas e cosidas no lugar onde falta a cabeça e na pele da barriga, após desmanchado o animal. Cheia com ar serve de flutuador e levando em cima canas de bambu a fazer de estrado permite transportar famílias.

Por vezes essas jangadas usam mais do que uma boia, atadas umas às outras. O passeio proporciona algo raro para o rio Amarelo, o embarcar numa travessia do rio, ou uma descida por pequenos rápidos. Do outro lado, devido ao carácter pedregoso das montanhas uma fraca vegetação e no vale uma pequena aldeia junto ao rio, envolta por um verde agrícola onde se destaca uma enorme mesquita. Querendo visitar uns velhos moinhos de água, referenciados em antigos guias como monumentos da dinastia Han, é-me dito terem já sido desmantelados, talvez para reparar.

O rio Amarelo, subindo de Sul para Norte pela província de Ningxia, a meio passa pela capital Yinchuan [conhecida Xingqing quando foi capital da dinastia Xia do Oeste (Xixia, 1034-1227)] sendo as suas águas desviadas por inúmeros canais para irrigar os campos. Milho, arroz e trigo crescem em quantidades a ultrapassar as necessidades da região, fazendo de Ningxia uma província maioritariamente agrícola.

A província de Henan, situada na parte média do Rio Amarelo, é um dos berços da civilização chinesa, onde desde a antiguidade viveram ilustres personagens, como Fu Xi, o primeiro Ancestral da Civilização Chinesa e Nu Wa, ambos considerados o pai e mãe do povo chinês, assim como Sui Renshi, o primeiro a fazer fogo. Aí nasceu o Imperador Amarelo, Huang Di que, unindo as tribos, criou o povo chinês. Albergou ainda as capitais dos Soberanos Zhuan Xu e Di Ku e das três primeiras dinastias chinesas, a Xia, a Shang e a Zhou. Lao Zi, filósofo do Dao aqui viveu tal como Zhuang Zi, Hua Mulan – heroína do tempo da dinastia do Norte (386-581) e tantas outras personagens famosas da História da China.

Seguimos para Zhengzhou, a capital da província de Henan, onde termina o Curso Médio do Huanghe em Taohuayu. Situada na parte média do rio Amarelo foi no período Neolítico um local privilegiado, pois aí floresceu a cultura Peiligang há 8 mil anos, a cultura Yangshao um milénio depois e a cultura Longshan (3000-1900 a.n.E.). Ligada à cultura Erlitou (1900-1500 a.n.E.), a dinastia Xia (2070-1600 a.n.E.) em Zhengzhou fez a capital com o nome Yangcheng, sendo também depois a primeira capital da dinastia Shang (1600-1046 a.n.E.), relacionada no início com a Cultura Erligang (1600-1400 a.n.E.).

Por Zhengzhou passavam os barcos de transporte a navegar pelo rio Amarelo entre as capitais das dinastias situadas a nascente e o celeiro da China, a Leste.

23 Ago 2024

Os olhos do dragão oculto no traje da Imperatriz Zhang

Xuanren, mais conhecida como a imperatriz Gao (1032-1093), sendo regente entre 1085-93, tornar-se-ia um exemplo da flexibilidade do silente exercício do poder, tendo um papel decisivo e discreto no regresso do poeta Su Shi (1037-1101) do seu exílio em 1086.

O que seria recordado de modo elucidativo numa pintura atribuída ao pintor Zhang Lu (1464-1538) quando reinava uma outra formidável imperatriz. Nesse rolo horizontal, O regresso à corte de Su Shi (tinta e cor sobre papel,32,4 x 629,9 cm, no Museu de Arte de Berkeley, Universidade da Califórnia), o poeta é figurado a caminhar, rodeado de senhoras mas onde a imperatriz está significativamente ausente. E, se todos naquele tempo poderiam reconhecer essa ausência, a todos seria igualmente patente a coincidência do que então ocorria com a imperatriz viúva Xiaochengjing, mais conhecida pelo nome do seu clã, como imperatriz Zhang (1470-1541).

Num retrato póstumo (tinta e cor, 64,2 x 52 cm, no Museu do Palácio Nacional em Taipé) como era usual, feito antes de 1505 quando se dá a transição para o novo imperador seu filho, Zhu Houzhao (1491-1521) que reinaria como Zhengde, ela é mostrada com a sua imponente fengguan, a «coroa de fénix», no sebasto do seu vestido como era habitual, dois comuns e decorativos dragões bordados.

Porém do decote, nas vestes interiores notam-se como espreitando, oblíquos, dois grandes olhos de dragão que na sua assimetria denunciam o movimento, a poderosa e inquietante força do dragão. O nascimento desse seu filho fez parte da sua inédita trajectória de aquisição de poder, manifestada logo no facto singular de ser a esposa do único imperador adulto (Hongzhi, r. 1488-1505) que não teve outras esposas ou concubinas. Tendo casado em 1487, o filho de ambos só nasceria quatro anos depois, após ela ter participado em 1490 em elaboradas cerimónias propiciatórias dirigidas pelo quinquagésimo Mestre do Céu do Daoísmo, Zhang Guoxiang (c.1577-1612).

Zhang, a imperatriz, faria parte em 1493, de outro ritual em que como outros imperadores, foi ordenada sacerdotiza na Escola daoísta Zhengyi, do Tianshidao. A excepção será porventura, tê-lo feito seis anos antes do imperador seu marido.

Essa cerimónia de legitimação ficaria registada num longo rolo horizontal (tinta e cor sobre papel dourado, 54,6 x 2743 cm, no Museu de Arte de San Diego) que mostra, entre nuvens, uma procissão de seres celestiais, deuses, Zhang Guoxiang visto de frente e a figura da imperatriz vestida com as vestes adequadas mas estranhamente pintada sobre um papel diferente colado no rolo.

Numa longa inscrição refere-se Jiutian Xuannu, a «misteriosa Senhora dos nove céus», com quem se identifica a imperatriz e sobre quem uma fonte daoísta comenta; «De modo a sufocar o mal e fazer regressar a rectidão, foi preciso aprender a tornar-se invisível.»

12 Ago 2024

Poesia chinesa e psicanálise – Lacan em Pequim

Por M. Ângela Andrade

O que há de peculiar na forma na poesia chinesa, que leva Demiéville a comparar a sua tessitura com a arte de “fritar peixinhos sem destroçá-los”? Há uma alusão à sua leveza e subtileza. Mas esse savoir-faire implica ainda exercitar-se pela repetição, pois os chineses imitam e repetem sempre os códigos poéticos, os mitos e os ritos ancestrais.

Para além do saber fazer, da habilidade, o que confere à poesia charme irresistível é o estilo e a singularidade, tal como o demonstra a caligrafia chinesa. O que se apreende é que a repetição chama o novo. Na tessitura de uma poesia provisória, a apreensão do ser sempre escapa. Daí ser “poesia ténue, sempre prestes a se desfazer na via do apagamento, sempre capaz de evitar o desaparecimento, ameaçada de extinção e, no entanto, sempre renascendo. Afinal inextinguível, por tocar nos contrastes da língua em si, da qual se desprende a linguagem.”

Antes de prosseguir lendo como Albert Nguyen articula as relações entre poesia chinesa e psicanálise, cumpre notar dados historiográficos da relação de Lacan com a China, sua língua e pensamento: Jacques Lacan sempre fora atraído pelo Extremo Oriente e sabe-se que, durante a Ocupação, havia aprendido o chinês na Escola de Línguas Orientais. Em 1969, quando elaborava sua teoria do discurso a partir da divisão wittgensteiniana do dizer e do mostrar, voltou a mergulhar com paixão no estudo da língua e da filosofia chinesa.

Em outra ocasião procurei tratar aqui das referências sobre a língua chinesa nos seminários de Lacan, principalmente as do seminário XVIII. No presente trabalho busco apresentar aspectos das indicações de Lacan a respeito de poesia chinesa: “Se vocês são psicanalistas, verão que é o forçamento por onde um psicanalista pode fazer ressoar outras coisas, outra coisa que o sentido. (….) O sentido, isto tampona; mas com a ajuda daquilo que se chama escritura poética podem ter uma dimensão do que poderia ser a interpretação analítica. É absolutamente certo que a escritura não é aquilo pelo que a poesia, a ressonância do corpo, se exprime. É aliás completamente surpreendente que os poetas chineses se exprimam pela escritura e que para nós o que é preciso é que tomemos na escritura chinesa a noção do que é a poesia. Não que toda poesia… seja tal que a possamos imaginar pela escritura, pela escrita poética chinesa, mas talvez vocês sintam aí alguma coisa que seja outra, outra que aquilo que faz que os poetas chineses não possam fazer de outra forma senão escrever…”

A poesia chinesa, porém, só pode ser lida conhecendo o contexto em que brota, ou seja, os fundamentos filosóficos, particularmente daoístas em que está alicerçada. Ainda sobre o contexto: o solo em que florescem essas tradições gerou uma combinação particular de vertentes filosóficas heterogéneas que, no entanto, se revelam bastante assimiladas na cultura chinesa.

Nguyen indica ainda os trabalhos de Isabelle Robinet e François Julien que demonstram indiscutivelmente a incidência e força destas doutrinas, tanto na poesia como na estratégia e política da China. O artigo em questão destaca três grandes poetas chineses para ilustrar cada tradição: Wang Wei (budista), Li Po (taoísta) e Du Fu (confucionista). Escolhi para ilustrar a presente exposição, a poesia de Wang Wei.

Atalho pela velha floresta; nenhum vestígio

No coração do monte, um som de sino; vindo de onde?

À tarde, sobre o lago deserto, meditando,

Alguém aprisiona o dragão venenoso.

Em Televisão, Lacan fala do estatuto provisório da poesia, fazendo dela uma arte do desprendimento, como aquela que o poeta Wang Wei pratica. No encontro de poesia chinesa e psicanálise surgem interferências e diferenças. Nguyen destaca a ressonância, termo que equivale à interferência, como o alvo da interpretação psicanalítica. As interferências ou ressonâncias são:

1. A natureza, que na poesia chinesa indica o lugar do vazio, o furo. “Lugar de ressonância, lugar de interferência: nada pode ressoar sem um furo: aquilo que no saber constitui o sintoma analítico, aquilo que deixa o poema e o livro inacabados, aquilo da ruptura da tradição que provoca a rã de Bashô, que se lança no poço, plof! e tantas outras indicações desta interferência da ressonância.”

2. A relação com o real. Essa segunda interferência assenta-se no lugar concedido ao real. A relação ao real é distinta na psicanálise. Na poesia chinesa, o real surge como realidade derradeira, sinónimo de Dao. Já a psicanálise confere ao sujeito o estatuto de separado, cortado definitivamente de todo o mundo e de toda cosmologia. Assim, separação, exclusão do sujeito, em oposição à integração daoísta. Poderíamos, talvez, aproximar essa relação ao real no taoísmo com a música tonal, enquanto que a relação ao real na psicanálise com a música atonal. Ou ainda com Badiou: “O real, para Lacan, se dá como ausência de sentido. Mas o que é preciso entender bem, é que ausência de sentido para Lacan, nunca quer dizer não-sentido. Há uma função de sentido do real, enquanto ausência de sentido. Há uma ausência no sentido, uma subtracção ao sentido que não é um não-sentido. É essencial compreender a diferença entre ausência de

sentido (ab-sens) e não-sentido (non-sens).”

3. A mistura, mestiçagem (métis) da linguagem ou do real com a linguagem do simbólico. É a que se contrapõe à linguagem unívoca do Um fálico; a mestiçagem favorece a maleabilidade de espírito.

Efeito de sujeito, afânise, ou o estatuto provisório, evanescente do ser? O sentido de “poesia provisória” diz respeito ao caminho no qual a apreensão do ser sempre escapa.

O analisante e o poeta seriam, nesta perspectiva, um efeito poético. Nguyen conclui seu trabalho com o que nomeia de Lacan chinês. Diz ele, “Como situar esta possibilidade do passo suplementar que Lacan realiza sobre o taoísmo e a poesia? A resposta é dupla. Por um lado, Lacan, ao formular a estrutura, não deixa de examinar o registo da consequência (desenvolvida nesse mesmo seminário). A causa não porta somente efeito, mas consequências. E por outro lado, esse passo suplementar é autorizado pelo que nomeio de “Lacan chinês” para designar o lugar sempre marcado de referências chinesas em seu ensino, do início ao fim.

Lacan começa seu ensino com o Zen e todos conhecem a referência à Índia de Prajapati e o Deus Trovão dos Escritos, mas é principalmente a partir do seminário “A Angústia”, seminário sobre o afeto certeiro da angústia, central em sua elaboração da teoria da causa, que Lacan, a partir do vazio e do feminino – pois é também este um seminário sobre a abordagem do feminino juntamente a uma tentativa de visualizar um para além da rocha freudiana da castração para o final de análise – com Kuan Yin, a fêmea misteriosa da qual ele extrai o olhar como causa, olhar faltante, olhar vazio, começa a marcar aquilo que será uma insistência sobre as referências chinesas.”

9 Ago 2024

Cultura do Rio Azul

A maioria das culturas e civilizações começaram nas imediações de cursos de água e devido a ser este Elemento essencial, tanto para a vida biológica como ao quotidiano estar, aprendeu o Ser Humano a usá-lo como via de comunicação.

Na China, nas margens dos seus dois mais importantes rios, começou uma gloriosa História de Civilização, a legar grandes e bons inventos ao Mundo, assim como a perpetuar uma acausal maneira de pensar.

Dividida em três diferentes zonas geográficas, as culturas nelas germinadas desenvolveram-se paralelamente e ao serem absorvidas formaram um orgânico corpo cultural, cujos avanços no reconhecimento dos povos entre si, tanto da Planície Central, como do Vale de Sichuan e na Região de Lingnan, tornaram-se pólos irradiadores da Civilização Chinesa. Estava-se no período Neolítico, entre 8 mil a 2 mil a.n.E., quando se deu início à Agricultura e nas férteis áreas entre os rios Amarelo e o Yangzi a civilização chinesa rapidamente se desenvolveu.

A Norte, a cultura do milho desenrolou-se à volta do Rio Amarelo e no centro-Sul a do arroz, cultivado em torno do Changjiang (rio Azul, ou Yangzi), num período de grande avanço nas técnicas agrícolas e métodos de cultivo.

Segundo a História, ainda a mim contada, a Civilização da China nascera no rio Amarelo e afluentes, e nas margens do seu curso médio e baixo ocorreu, devido ao saber e conhecimento do Imperador Amarelo (2704-2595 a.n.E.), a união de muitas das tribos, englobadas inicialmente nos Huaxia. Huangdi (Imperador Amarelo) foi o primeiro chefe patriarcal, pois do social retirou o domínio matriarcal a reinar havia 45 mil anos. Os Huaxia mais tarde passaram a ser o povo Han. As tribos que se recusaram a integrar esse povo, como parte dos Dongyi, migraram e vamos encontrá-los noutras paragens, divididos entre Miao, Qiang e Yi.

Nas margens do rio Amarelo e seus afluentes muitas das primeiras dinastias fizeram as capitais. Agora, ao longo dos anos foram-se descobrindo as culturas neolíticas do Changjiang (rio Longo, ou Yangtzé), a permitir perceber no vale desse rio a herança de há 5 mil anos iniciada por intercâmbios das culturas Majiabang e Liangzhu e da mesma altura com a cultura Shu (2800-800 a.n.E.), proveniente da província de Sichuan a abarcar os povos Ba e Qiao. Abria-se assim um azul estar a escoar o espírito da cultura Wu Zhu (巫祝) do povo Shu pelo Changjiang até à foz.

Nesse longo curso de água, também conhecido por rio Azul, Laozi em contemplação banhou-se no Dao de onde respira a energia do Universo e em alta avaliação do momento teorizou a Filosofia do Dao, ligada ao animismo da una idade Celeste (天, Tian), deixando-nos escrito o Dao De Jing (道德经, A Via da Virtude do Universo). Sichuan era também a porta para os caminhos do Sudoeste, de montanhas e rios até à Ásia Central e Índia, de onde provinham muitas novidades e novos produtos das outras Civilizações, a indiana e a egípcia.

Para a trindade de consciência, simbolizada nas três cores primárias, se o rio Amarelo tem a cor imperial do Soberano, o rio Azul conecta a contemplação no momento do estar e existe ainda a complementar o rio Vermelho (红河, Honghe), com 1150 km de comprimento. Nasce nas montanhas Hengduan, em Yunnan na China, e já no Vietname segue por Hanói para desaguar no Golfo de Tongkin, enquanto o Lancangjiang (澜沧江, rio Mekong, com 4350 km), proveniente do planalto Qinghai-Tibete, passa a Oeste da nascente do rio Vermelho em Yunnan e tem a foz a Sul do Vietname.

Devido à expansão para Sul da dinastia Qin, o Changjing tornou-se o rio a dividir Zhongguo (中国, País do Meio, China), ficando a via fluvial do centro, pois o território chinês passou a estender-se para Sul até meio do Vietname. Nessa zona corre o rio Vermelho habitada por nómadas tribos, conhecidas por as Cem Tribos Yue (BaiYue, 百越), descendentes da migração saída do Corno de África há 100 mil anos, e apareceu na China como Homo sapiens Denisovans, os Neandertalensis da Ásia, já com feições do homem moderno chinês.

Na caminhada desses grupos para Norte, em Yunnan foram os primeiros a desviar por o rio Vermelho para Leste até ao mar. Os últimos dessa peregrinação, antes de chegar ao gelo das estepes do Norte, seguiram por o curso do rio Amarelo, no actual Gansu, de onde há cinco mil anos os saberes de Fuxi, o primeiro Ancestral da Civilização Chinesa, se transmitiram para Leste.
Na província de Jiangsu, situada a Sul do rio Yangzi está a zona de Jiangnan, densamente povoada devido a ser privilegiada em lugares bafejados de Vento e Água (Fengshui) e por isso, favoravelmente escolhida por a riqueza do viver.

INUNDAÇÕES DO VALE DO YANGZI

As águas do Changjiang, das nascentes descem abruptamente cinco mil metros em altitude e correndo entre estreitas e altas paredes montanhosas durante milhares de quilómetros, encontram-se em Hukou (Jiujiang) no início dos 938 km do Curso Baixo do Changjiang (长江下游). De zonas planas com um sem número de lagos, conhecida por as “Infindáveis Terras Alagadiças”, aí as águas do rio amansam e tornam-se mais lentas, mas na altura dos degelos, em finais da Primavera e durante o Verão, com as imensas chuvas da monção a ajudar, as cheias são uma constante, varrendo tudo à frente.

No historial das inundações do vale do Yangzi regista-se as maiores de sempre há 4 mil anos. Entre 7000 e 2000 a.n.E., a cada quinhentos anos havia uma grande inundação e catastróficas foram sete entre 8000 e 1300 a.n.E..
Da Yu, fundador em 2070 a.n.E. da dinastia Xia, já como rei veio ao vale do Changjiang tentar controlar as cheias do rio no lugar das Três Gargantas, conseguindo, com ajuda das divindades, desobstruir as águas ao abrir um furo no monte de Wu(shan), voltando elas a escoar até ao mar.

Desde a dinastia Han até à Qing, durante dois mil anos houve à volta de duzentas inundações na bacia do Yangzi, ocorrendo uma a cada dez anos, ficando registada a de 160 a.n.E., mas especialmente grandes foram duas, em 1860 e 1870. No século seguinte, devido às cheias, em 1931 morreram 145 mil pessoas, em 1935 sucumbiram 142 mil e em 1954 faleceram 33 mil. Quando por aí viajamos, assistimos em 1991 a uma grande cheia.

ATÉ SHANGHAI

Regressados a Nanjing, daí embarcamos para a última parte do percurso a levar-nos até Shanghai, numa viagem de 18 horas, tendo o ponto de interesse focado no cruzamento do Grande Canal com o rio cujo nome junto a Yangzhou é Jiang Yangzi. Estamos na província de Jiangsu e pouco tempo depois de deixar Nanjing aparece na mesma margem esquerda Yangzhou e no lado oposto do rio está Zhenjiang, cidades onde as águas do Grande Canal se misturam às do Changjiang, conectando-as.

De barco fizera a viagem por o Grande Canal, de Sul para Norte, de Hangzhou a Suzhou, mas por ser já noite pouco deu para perceber como as suas águas se cruzavam com as do rio. Sentiu-se uma maior ondulação e a mudança de direcção ao navegar um pouco num estreito canal junto à margem paralelo ao Yangzi, até verdadeiramente ser confrontado na travessia com a corrente de Oeste para Leste a baloiçar o barco. A calma voltou ao chegar à margem esquerda do rio e retomar o Grande Canal a Leste de Shiqiao, a Sul da cidade de Yangzhou.

Na parte final do Curso Baixo do Changjiang encontra-se na margem direita Jianbi, cidade ligada à metalurgia pesada pertencente à prefeitura de Zhenjiang, por onde passam os barcos no Grande Canal a caminho de Hangzhou.

Segue-se, ainda em Jiangsu, já no delta do Changjiang a ilha ocupada por a cidade de Yangzhong, aparecendo para Leste, na outra margem, Binjiang em Taixing, administrada por Taizhou. Continuando rio abaixo, na margem esquerda Jingjiang e no outro lado Jiangyin, cidade administrada por Wuxi e muito importante como porto de mercadorias.

Por fim Nantong, na margem esquerda quase no final de um dos ramos do Yangzi, pois este rio termina em delta. A embarcação navegou durante uma hora no mar da China, entrando depois no rio Huangpu, que banha Shanghai, até atracar no cais em frente ao Peace Hotel.

Olhando para o outro lado, terrenos áridos a serem terraplanados onde está planeado construir Pudong, o pólo financeiro de Shanghai. Há quatro anos ocupados por velhas fábricas a cair, prepara-se agora para aí nascer uma nova e dinâmica cidade. Dois prédios de uns vinte andares ali vão sendo construídos e no lugar ainda sobrevivem dois casebres, com horta em frente. Tão longe estamos de imaginar o que virá a acontecer àqueles vastos terrenos naquela ilha.

De Shanghai, a embarcação essencialmente de mercadorias, tinha duas cabines de dois beliches abertas para turistas, fazendo a viagem duas vezes por semana por mar, passando por Xiamen e chegou ao porto de Guangzhou após navegar à noite no Zhujiang. Regressamos a Macau também de barco e no rio Xi aportamos no Porto Interior, alvorecia o dia.

8 Ago 2024

Olímpicos

E entramos numa musculada semana de força e beleza, treino e competição, um momento muito afeito a marcas de perfeito domínio, mas já desfeito daquelas singularidades por onde os deuses expressam a sua confiança na humanidade. Estamos expectantes, atentos, e até com alguma preocupação, que o seio da Europa não é uma competência com que possamos contar, e o momento bastante difuso, instável, e França um palco mundial para o Ólympos (grego romanizado) mostrar grandiosidade.

Vamos então para a cidade Luz que o inferno também ilumina os que transgridem para a direção do fogo, e pensar no Monte das distantes colinas onde o ponto mais alto dava pelo nome de Miticas. Já vimos aquela animação exemplarmente bem-feita onde os arquétipos funcionam na medida grande num florescente panteão na esperança de que ” esse assento etéreo” nos inspire e acalente no tempo inqualificável do mundo.

«Os deuses tiram quanto dão. Ter é tardar.» Olímpia já não mora aqui, e todo o nosso jogo é um plasma a ser visto sem altar, que o mundo não altera nada à sua natureza de vórtice em busca de diversão em escalada, que ao passar para Delfos mais nenhum mistério acrescentou aos desígnios singulares dos heróis. Eles começaram em Olímpia no ano 776 a.C., tendo por designação Olimpíada – que um monte, é só um monte, e Olimpo uma morada. Agora Páris volta para o seu jogo de Tróia, onde Paris por estas horas já é uma cidade sitiada. Vamos assistir. É Verão e os corpos transluzem, tornam-se formidáveis, e mostram que os deuses habitam ainda dentro deles e a chama já está acesa para o momento. Outra vez a velhice a cobrar danos entre as Nações ocidentais, que um Papa veio há um ano a Portugal, velho e feliz, para uma jornada de juventude onde ninguém reparou na idade e com tal pugilismo que remetemos até para a face apolínea da era estival. Em nossa escala foi apoteótico, podendo ser designada como uma Olimpíada inesperada tão súbita quanto os milagres.

Todos gostaríamos muito de estar em Paris vestidos de branco com coroas de flores e ramos de oliveira assistindo a tão memorável evento, que Paris, por pior que esteja o mundo, é a Cidade. As vilas deram os vilões, as aldeias, os aldeões, mas agora de tão unidos que estamos, sabemos que não nos poderemos esconder no Olimpo que fora outrora forte cidadela, e que em Paris estarão como na primeira festa em Olímpia a mesma humanidade dando um espectáculo para que as tochas sejam distribuídas como fogo sagrado. – Parísios, esse povo gaulês que nunca deixou jamais de mostrar o que neles sempre ardeu de intempestivo e cruente… mas estamos mais com Píndaro de Tebas, o maior poeta grego, o das Odes Olímpicas: (…) nem trovaremos torneio mais nobre que Olímpia… ele estará presente em espírito em todas as Olimpíadas do mundo pois acreditava na sua glória eterna.

Aquilo de que um corpo é capaz, a alma não espelha, mas ele, animado, total e grandiloquente qual poema helénico, nos vai ainda maravilhar pelo espírito. É um distintivo da nossa inteligência, e veículo de dança que só mesmo os deuses concedem. A literatura amante dos jogos tinha certa predileção pela água, e todos pareceram fiéis ao mote de Píndaro.

“O que me encanta é a linha alada

das tuas espáduas, e a curva que descreves…

tua fina, ágil cintura…pássaro de água”

Cecília Meireles

31 Jul 2024

Os estranhos penhascos e colinas de Jiang Shen

Mi Fu (1051-1107), pintor, calígrafo e coleccionador de arte e de pedras caprichosamente formadas pela natureza, foi elogiado pelo modo como escrevia, concentrado no movimento elevado do cotovelo e não do pulso que segura o pincel, na expressão e não na perfeição dos caracteres.

As suas sugestivas pinturas de aspecto enevoado também não ficavam marcadas pelo curso do pincel na superfície pintada (wubiji). Em tudo parecia responder ao que está escrito no Zhuangzi sobre «esquecer as palavras depois de entender o seu significado». Na originalidade do seu estilo porém, se não havia explícitas marcas das obras do passado, muitas delas da sua própria coleção particular, reconhecia-se nelas um honesto estudo.

Um modo de proceder próprio dos pintores da dinastia Song, cujas pinturas são o resultado singular de uma informada combinação de elementos aparentemente fortuitos e contrastantes, cujo espelho era a própria natureza. E como ela, com trechos coincidentes e aspectos dissonantes, dependendo da experiência individual do homem que caminha consciente da riqueza de tudo o que o rodeia.

De modo elucidativo isso está manifesto na famosa pintura de Fan Kuan (c. 960-c.1030) Viajantes através de rios e montanhas (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 206,3 x 103,3 cm, no Museu do Palácio Nacional em Taipé). A grandiosa majestade do espaço natural, contrastando vivamente com a minuciosa delineação dos pequenos vajantes e mulas carregadas, é parte desse vocabulário.

Outras especifidades resultam de uma cuidadosa atenção às possibilidades expressivas da mutável paisagem ao longo das estações do ano e estão presentes na impressionante pintura de Guo Xi (1020-90) conhecida como Árvores velhas, distância plana (rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 35,6 x 104,4 cm, no Metmuseum). Aí se notam os ramos retorcidos como «pinças de caranguejo», que traduzem a emoção que desperta a queda das folhas das árvores no Outono.

Jiang Shen (c.1090-1138), um pintor que nasceu em Xinan (Zhejiang) e que frequentava a casa de família de Mi Fu quando este vivia em Wuxing, cerca de 1136, e adoptando embora algumas das inovações do mestre, como os célebres pontos de tinta de Mi Fu (Mi dian), acabou criando algo novo e estranho. Em dois rolos horizontais que lhe são atribuídos; Montanhas verdejantes (tinta sobre seda, 33,6 x264, 1cm, no Museu Nelson-Atkins, Kansas) e Espaço Infindável de rios e montanhas (tinta sobre seda, 46,3 x 546,5 cm, no Museu do Palácio Nacional em Taipé) também são visíveis características associadas aos pintores do século X, Juran e Dong Yuan, parte da sua síntese. Muitos anos depois, quando o influente Dong Qichang (1555-1636) expôs a sua própria grande síntese (dacheng) escreveu: «Para pintar colinas em contínuo e cordilheiras penhascosas há que aprender com Jiang Guandao (Jiang Shen)».

29 Jul 2024

Curso Médio do Changjiang (长江中游)

Nos 6363 km, o rio Longo (Changjiang), também conhecido por Yangtzé ou Yangzi, está dividido em três secções, o Curso Superior do Changjiang (长江上游) com 4504 km de comprimento, desce das nascentes da montanha de Tanggula (唐古拉山) nos planaltos de Qinghai-Tibete e termina em Yichang (宜昌), província de Hubei. Aí se inicia o Curso Médio do Changjiang (长江中游), com 955 km de comprimento até Hukou (Jiujiang, no Jiangxi), tomando o rio o nome Jingjiang entre Yichang e Yueyang.

A viagem de barco de Yichang a Wuhan leva 22 horas e passa por Yidu, onde o rio Qing desagua no Jingjiang, depois aparece na margem esquerda Jingzhou, cidade antiga muralhada, centro militar com muita história e na mesma margem está Shashi, directamente controlada por o governo provincial de Hubei. Servira já no Período dos Reinos Combatentes (475-221 a.n.E.) de porto ao reino Chu e foi um dos quatro portos abertos aos japoneses em 1895.

Navegando para Sul em Hubei chegamos a Yueyang, na parte Leste do Norte da província de Hunan, onde o rio toma a direcção Nordeste e de novo por Hubei vai à capital Wuhan, a meio da parte navegável do Changjiang. Daí, até chegar à pequena cidade industrial de Jiujiang, são treze horas.

Desde Wuhan, o curso das águas desce para Sudeste, passa por Huanggang, Huangshi e ainda em Hubei por Wuxue (武穴市, até 1987 Guangji), tendo na margem oposta, já na província de Jiangxi, Niuguanji (牛关矶), em frente às quais o Changjiang regista a sua maior profundidade natural com 103m, considerada como as águas mais profundas de um rio no mundo.

De novo a Norte da província de Jiangxi, agora em Jiujiang, localizada na margem direita do rio, onde pouco depois se encontra a boca do lago Poyang [este, com 3585 km² de superfície é o terceiro maior da China, sendo de água doce].

Na península em frente à de Jiujiang fica Hukou, considerado um bairro nos arredores da cidade, onde se iniciam os 938 km do Curso do Baixo Changjiang (长江下游) até desaguar no Mar do Leste da China, Oceano Pacífico.

DE BARCO ATÉ NANJING

Numa viagem de cerca de vinte horas, na continuação da descida feita de barco desde Chongqing, em Jiujiang rumámos para Nanjing.

O navio de grande calado está dividido por andares e zonas, mediante o número de camas por cabine. Assim a segunda classe, a corresponder à primeira devido à não existência dessa categoria, é de cabines para duas pessoas com todo o tipo de conforto, alcatifa, televisão, quarto de banho privativo, mesa, poltronas e varanda com as melhores vistas para o exterior. Mediante o tamanho do barco, nessa classe podem existir duas, quatro, ou seis cabines, mas então raramente ocupadas pois o preço dobra em relação à classe seguinte. Já na terceira classe, o número também varia, podendo dispor de cabines de seis, oito, ou doze camas em beliches. Um lavabo e uma televisão juntam-se a uma mesa e à garrafa termos, constituindo o mobiliário de cada um desses cubículos, onde uma pequena janela redonda dá acesso a uma das margens.

A quarta classe é de cabines sob a forma de corredores entre dezasseis a trinta e duas camas em beliche, tendo além do lençol, uma toalha, almofada e um cobertor. A quinta classe dá simplesmente acesso ao barco, com bancos corridos num amplo compartimento, mas sem cama as pessoas dispersam-se pelos corredores e locais de mercadorias, ou ainda no convés, quando o clima permite.

Os vários quartos de banho e retretes compartimentadas por paredes baixas são constantemente limpos à mangueirada. Existem dois restaurantes de classes distintas, embora ambos com preços acessíveis, sendo o de melhor qualidade transformado à noite em sala de karaoke e discoteca.

Pouco tempo depois, apareceram os paquetes de luxo a fazer cruzeiros, elevando a qualidade às excursões turísticas. Arrumadas as malas, vamos à varanda e percebendo poder ter outra vista, subimos as escadas até ao andar superior.

Do outro lado do rio, um imenso número de grandes batelões passa e é quando na margem nos apercebemos de um porto de carga. Os estaleiros mais à frente, assim como o porto da marinha chinesa só verdadeiramente os vemos já o barco navega Rio Longo acima. Comboios de barcos cruzam vagarosamente, pois mais de uma dezena de barcos atrelados são puxados por um rebocador com o mesmo tamanho, deixando-os livres para o transporte de carga.

Após Jiujiang, o Wanjiang [assim chamado o rio entre Jiujiang e Wuhu] vira agora para Nordeste e já na província de Anhui, na margem esquerda os lagos vão até Anqing. Na margem direita aparece Guichi e no lado esquerdo Tongling, seguindo-se Wuhu e por fim Ma’anshan, na fronteira entre Anhui e Jiangsu.

Chegados a Nanjing ao cabo de vinte horas, atracamos junto à ponte rodoviária e de comboios construída em 1968. Está Nanjing (a Capital do Sul) em total remodelação, com as grandes avenidas, anteriormente cobertas por árvores, escavadas para a construção de modernos viadutos e mais tarde, de novo para o metro. As pessoas mais velhas olham tristes a demolição das casas, sentindo-se órfãs da cidade que lembra os 50 anos da invasão japonesa. Prepara-se agora afincadamente para o século XXI.

Sem atenção prestada ao trajecto desde Jiujiang, após visitar Nanjing, com vontade de sentir a experiência do lento navegar rio acima, rumamos de volta, para ter o deslumbre do sulcar as águas numa lassidão sem relógio.
Saindo de um dos cais a jusante da ponte rodoviária e de comboios de Nanjing, o barco passa primeiro por uma povoação da qual não sabemos o nome e alguém depois informou ser Ma’anshan, já a Leste da província de Anhui, pois ali termina Jiangsu.

Após 90 km de viagem aparece a povoação de Wuhu, seguindo-se Tongling na margem esquerda e Guichi [desde 2000 Chizhou], onde o barco atraca. Dão-nos meia hora para visitar terra, o tempo necessário para descarregar a mercadoria trazida a abastecer a região. Do cais, subindo as escadarias de pedra a levar à pequena povoação, somos atraídos por um som de altifalante. Em cantata, sem nenhum instrumento musical a tocar senão a voz, a atenção é chamada para uma ruela em frente ao muro do porto.

Seguimos atrás daquela música estranha e encontramos um aglomerado de pessoas concentradas em torno de uma figura tauísta, personagem de aspecto descuidadamente rural, com um gravador. Virado para um pano colocado no muro canta enquanto aponta com uma vara os caracteres escritos. Traz um acto de ópera teatralizado pela dicção dada, sonoridade cuja língua de uma melodia fora da do mandarim vibra ao coração, apesar de nada ter de terno. No chão, um plástico retira da lama o gravador e as cassetes vendidas a 5 yuan.

Gostamos da música e a cena fica-nos na mente. Daí comprar a k7 e sem pedirmos desconto cobra-nos 4 yuan. Anos mais tarde ouvimos este músico na rádio, cujo nome não sabemos, pois a caixa da cassete nem capa traz.
De novo no barco, as pessoas sem dele saírem compram laranjas a uma pequena embarcação nele encostado. Seguimos viagem e após Anqing, deixando Anhui entramos na província de Jiangxi. No cruzamento destas duas com Hubei e pouco antes de chegar a Jiujiang, o Changjiang toma o nome de rio Xunyang.

Em Jiujiang, à saída do porto encontramos as ruas transformadas em feiras, sendo o número de restaurantes elevado. Por estar perto a cidade da porcelana, Jingdezhen, resolvemos voltar a visitá-la e de autocarro partimos para percorrer os 150 km feitos em seis horas de estrada. A viagem é interrompida a meio, pois temos de mudar para uma barcaça afim de atravessar o lago Poyang, próximo da foz com o rio Yangtzé.

Um cabo aéreo conduz o barco, mais parecido com um grande contentor sem tampa, permitindo a travessia a pessoas e carros. Na outra margem, um autocarro espera para nos levar a Jingdezhen. Daí, a porcelana era escoada pelo rio Chang em pequenos barcos até ao Yangzi, de onde entrando pelo Grande Canal desde o século XV seguia para a capital Beijing. Agora [imagem de 1991 a 1995] o rio Chang serve de refúgio aos barcos-casa onde famílias inteiras habitam, alguns abrigados por a ponte. Falta agora percorrer o Curso do Baixo Changjiang (长江下游) até Xangai.

26 Jul 2024

Sobre a pintura mil quilómetros de rios e montanhas de Wang Ximeng

Xi Chuan, China (1963)

trad. Jorge Sousa Braga

As cores verdes e as cores azuis fluem juntas e formam montanhas vazias. Embora algumas pessoas caminham por elas, continuam a ser montanhas vazias, como se as pessoas que caminham por lá não tivessem rostos. Mesmo assim são pessoas. Ninguém deveria tentar reconhecer-se nessas figuras ou tentar ver as verdadeiras montanhas e águas deste mundo, nem deveria pensar em tentar obter elogios casuais de Wang Ximeng. Wang Ximeng conhece essas pequenas figuras e nenhuma delas é ele mesmo.

Estas não são as suas figuras e ele não pode citar nenhuma delas pelo nome. As figuras adquirem as montanhas e as águas, assim como as montanhas adquirem a esmeralda e o lápis-lazúli, assim como as águas adquirem vastidão e barcos.

O imperador Huizong contratou Wang Ximeng aos dezoito anos, sem saber que Wang morreria logo após terminar estes milhares de quilômetros de rios e montanhas. As montanhas e as águas não têm nome. Wang Ximing percebe que as pessoas sem nome são apenas figuras decorativas nas montanhas e nas águas, assim como os pássaros que voam sabem que são insignificantes para os jogos dos homens. Os pássaros encontram-se no céu.

Entretanto, as pessoas que caminham nas montanhas têm os seus próprios itinerários e os seus próprios planos. Essas pequenas figuras de branco caminham, sentam-se à vontade, vão pescar, negociar, rodeadas de cores verdes e azuis, assim como hoje as pessoas de preto vão a banquetes, concertos e funerais, rodeadas de cores douradas e mais cores douradas.

Estas pequenas figuras vestidas de branco nunca nasceram e, portanto, nunca morreram; tal como a utopia paisagística de Wang Ximeng, são imunes à poluição e à invasão e isso merece uma consideração cuidadosa. Assim, as pessoas que estão longe dos controlos sociais não têm necessidade de ansiar pela liberdade e as pessoas que não foram destruídas pela experiência não estão preocupadas com o esquecimento.

Wang Ximeng permitiu que os pescadores tivessem um número infinito de peixes para pescar, permitiu que águas ilimitadas corressem das montanhas. Segundo ele, felicidade significa a quantidade exata de bênção para que, imersas no silêncio entre montanhas e águas, as pessoas possam construir pontes, azenhas, estradas, casas e viver tranquilamente, como as árvores que crescem nas montanhas, ao longo das margens dos rios ou ao redor de uma aldeia e das pessoas que a habitam.

Ao longe as árvores parecem flores. Quando elas se agitam é o momento em que se intensifica o vento claro. Quando o vento claro se intensifica é a altura de as pessoas cantarem. Quando as pessoas cantarem é a altura de uma montanha vazia se tornar numa montanha vazia.

24 Jul 2024

Apresentando Yu Xuanji, poeta chinesa da dinastia Tang

Por Ricardo Primo Portugal

Traduzimos a obra completa da poeta chinesa, da Dinastia Tang, Yu Xuanji, nascida em 844 e falecida, provavelmente, em 869. São 50 poemas, mais 5 fragmentos que restaram de uma obra que terá sido mais extensa.

A produção poética da Dinastia Tang (618-915), considerada o ápice da poesia clássica chinesa, surpreende pela quantidade e qualidade, com formas fixas altamente codificadas. A popular antologia Poemas completos da Dinastia Tang, compilada posteriormente, no século XVII (Dinastia Qing), por ordem imperial, contém aproximadamente 50 mil poemas, escritos por 2200 autores.

Terá havido mais escritores importantes e muitos textos se perderam. Há 190 mulheres entre esses autores, dentre as quais Yu Xuanji é um dos nomes de proeminência. Seus poemas foram publicados em vida em uma coleção chamada Fragmentos de uma Terra de Sonhos ao Norte, que se perdeu. Os 50 poemas que sobreviveram para nossa época foram recompilados na Dinastia Song (960-1279).

Há uma extensa linhagem de poetas mulheres na China, a qual percorre as diferentes fases de uma literatura milenar quase sempre como corrente paralela ou específica em relação ao tronco principal. Na Dinastia Tang, período histórico de intensa vida urbana culta, a situação da mulher era bastante mais favorável que em outros momentos da história da China. A elas era atribuída uma posição social mais livre e igualitária em relação aos homens. Ainda que excluídas do sistema dos exames imperiais que selecionavam a elite dominante e impedidas de exercerem funções relevantes, muitas filhas de famílias abastadas podiam adquirir educação e conhecimento literário.

As cortesãs e as monjas taoístas, como Yu Xuanji, formavam grupos sociais intercambiáveis (cortesãs tornavam-se monjas e vice-versa), com uma inserção particular nessa sociedade. As mais talentosas eram versadas nas artes clássicas (música, poesia, caligrafia, pintura) e eram tratadas como iguais em discussões e concursos de poesia.

A vida, a obra e a lenda

Yu Xuanji é uma das poetas mulheres chinesas mais afamadas, inclusive por sua biografia, não obstante pouco se conheça de fidedigno de sua história pessoal, além da obra considerada emblemática de uma consciência feminista precursora em relação à modernidade. De grande beleza, culta e dotada de uma inteligência viva, casou-se como concubina aos 16 anos, com Li Yi – jovem funcionário provincial e, como ocorria aos membros da elite confuciana selecionada pelos exames públicos, também poeta, a quem dedica diversos poemas pelo nome Li Zi’An, com quem teve uma relação intensa, alternando momentos de relativa separação e união. Separou-se definitivamente ou foi abandonada pelo marido, por exigência da “primeira esposa” três anos mais tarde, convertendo-se em monja taoísta e cortesã.

A propósito, Yu Xuanji é seu nome de monja, tomado no mosteiro; “Xuanji” significa “mistério profundo”. Seu nome original era Youwei; “Yu” (Peixe) é o sobrenome, que, em chinês, precede o nome atribuído.

Desde criança, era conhecida como talento poético precoce em Chang’An (hoje Xi’An), então a capital imperial. Aos 12 anos, foi tomada como discípula por Wen Tingyun (a quem chamava Feiqing), um dos mais importantes poetas da Dinastia Tang, de quem, em algum momento, poderá ter sido também amante. A ele dirigiu e dedicou vários de seus poemas.

Morreu cedo, entre os 26 e os 28 anos de idade, executada por assassinato, em um caso polêmico e duvidoso. Ficou não apenas uma obra notável, mas também a lenda de uma mulher rebelde, irridenta, de vida livre para os padrões de sua sociedade e crítica da condição feminina. Por sua história de vida, Yu Xuanji acabou sendo assimilada à literatura, também, como personagem em obras de outros autores chineses e estrangeiros, em romances, contos, teatro e cinema; porém, nem sempre com apreciação valorativa.

De fato, a lenda acompanhou os séculos seguintes, através de períodos, muitas vezes, mais conservadores da sociedade chinesa. Dos episódios que se contam de sua vida, há fabricações moralistas e difamatórias, retratando-a, amiúde, como personagem libertina, mesmo em produções mais recentes por exemplo, nos anos 80, foi lançado em Hong Kong um filme sobre sua vida; não o vimos, mas os comentários são de que se trata de um filme erótico ruim.

Também há quem a apresente como uma “típica poetisa” da China, que, como todas, falariam sobretudo do amor e da solidão, temas então considerados “femininos por excelência”. Essa visão quanto ao que possa ser uma característica voz feminina na literatura não procede quanto a Yu Xuanji, nem às tantas outras poetas mulheres chinesas ou brasileiras.

A leitura de sua obra completa apresenta uma poeta elegante, mas capaz de ousadias e provocações; corajosa e desafiadora das convenções sociais, na afirmação franca da sensualidade e do desejo; que demonstrava consciência da tradição e do público a que dirigia sua poesia; bastante crítica da condição feminina.

É certamente uma voz feminina, e fala também, sim, da solidão, do amor e do desejo de um ponto de vista de mulher (como se os homens não falassem também disso). Mas gostaríamos de ressaltar em sua obra, mais simplesmente ou antes de qualquer consideração de gênero, a poeta refinada, que dominava os recursos e modelos requeridos à poesia clássica chinesa, nada devendo a outros poetas de seu tempo em técnica, domínio formal e diálogo com a tradição literária.

Yu Xuanji, monja-poeta taoísta

Quanto à inserção na tradição, um aspecto importante que ressalta em muitos de seus poemas é a referência à filosofia taoísta. A monja Yu Xuanji tinha, como modelo, os filósofos e poetas dessa confissão religiosa, como Li Bai (Li Tai-Po). Não é nosso objetivo aqui tentar apresentar a filosofia e o modo de vida dos mestres taoístas, nem descrever a enorme influência que exerce no imaginário dos chineses esta que é uma das correntes fundamentais de pensamento daquela civilização e que, na época em que vivia a poeta, era a religião oficial do Estado.

Em linhas gerais, assinalemos, apenas para situar uma importante referência da obra da poeta correndo o risco de uma boa dose de simplismo que os mestres taoístas atribuíam ao vinho a inspiração para o exercício da poesia e dedicavam-se a uma vida não necessariamente de reclusão, mas, sobretudo, de meditação, contemplação da natureza e dissolução na experiência do “Tao”, na vivência de uma espiritualidade intensa, panteísta, que se colocava em busca da imortalidade. Relativa a esse objetivo de transcendência, há a busca do “elixir da imortalidade”, em certas histórias associado com o vinho.

Na poesia de Yu Xuanji, há, entre outros temas taoístas, a exaltação do vinho e da festa; a ideia recorrente de que “tudo na vida acontece como sucessão de pares opostos” alegria e tristeza, prazer e dor…; a referência à imortalidade.

Uma comparação – pouco acurada, mas não desprovida de pertinência – da opção de vida daqueles mestres com a tradição ocidental estaria, por exemplo, na proposta da “dissolução de todos os sentidos para fazer-se vidente”, de Rimbaud, ou na entrega a experiências com drogas, jazz, viagens e uma relação inconvencional com a sociedade “instituída”, da geração beatnik. O monge taoísta fazia uma espécie de “drop-out” à chinesa (a comparação é aproximativa, adequada só até certo ponto: o monge é um “marginal- instituído”; seu lugar social é reconhecido).

Há boas traduções do Dao De Jing, de Lao Zi, em português, além de muitos livros sobre a filosofia taoísta em línguas ocidentais. Sobre a relação entre taoísmo, confucionismo, budismo e poesia, vale a leitura do mestre franco-chinês François Cheng.

23 Jul 2024

Três Procissões Pintadas Durante a Dinastia Tang

Wu Daozi (c.680-759) foi um pintor da dinastia Tang cujo nome evoca a habilidade de criar em pinturas murais cenários tão credíveis, «ousados e livres como as ondas que se desenrolam no mar» num dos quais ele, na presença de um imperador, entrou e desapareceu por entre volutas de nuvens.

Se é certo que hoje originais das suas obras ainda se não encontraram e, como ele, há muito tempo desapareceram, aqueles que as viram não esqueceram. Zhang Yanyuan escrevendo em 847, exclamou com admiração que «os deuses devem ter-lhe dado uma mão; porque a sua obra sondou a criação até ao extremo» (Lidai Minghua ji).

Para além de Wu Daozi, outros executaram pinturas murais ou para serem penduradas nas paredes de templos e são hoje testemunho do espanto e do valor que tiveram naquele tempo e para diferentes religiões, certas atitudes e práticas.

Alguns fizeram-no agindo para a corte da dinastia Tang e por isso reflectiram o sofisticado gosto dos soberanos e aristocratas. Um tema, no entanto, parece ser comum a vários delas. Para o Daoísmo, que mais do que em textos se exprime numa ortopraxia, olhar essas figuras entendíveis no contexto da prática religiosa é ao mesmo tempo deslumbrante e misterioso.

Como se vê no rolo vertical Divindade daoísta da terra (tinta, cor e ouro sobre seda, 125,5 x 55,9 cm, no Museu de Belas Artes de Boston) que já foi atribuído a Wu Daozi representando Diguan, o que perdoa os pecados numa procissão, possui a gravidade com que os soberanos impressionavam os súbditos quando passavam, ocupando e dignificando o espaço que percorriam.

Como também faz o Buda das luzes resplandecentes (tinta e cor sobre seda, 80,4 x 55, 4 cm, no Museu Britânico) que mostra a figura do Buda Tejaprabha deslocando-se num carro acompanhado de cinco planetas e que tem o mesmo efeito de sacralizar os lugares por onde transitavam.

Zhang Huaiqing o discípulo que doou a pintura em 897, colocou nela o seu nome mostrando assim a eminência dos doadores e encomendadores no complexo de Dunhuang (Gansu) de onde provém esta invulgar representação. Pintores de outras religiões figuraram um mesmo desfile sagrado com o sentido próprio da sua tradição.

Raras pinturas murais datadas dos séculos VII-IX, descobertas no início do século XX nas ruínas da antiga cidade de Qocho (Gaochang, Xinjiang) nas fronteiras do deserto de Taklamakan revelaram a antiguidade ali da presença da religião de Cristo. Uma delas mostra a procissão de Domingo de ramos (no Museu de Arte Asiática de Berlim) como se deduz por três personagens empunhando ramos de palmeira que se viram para uma figura maior (um sacerdote?) que traz na mãos um recipiente para a água e um turíbulo de onde se soltam volutas de incenso evocando o espírito, esse real invisível a que o pincel do poeta ou do pintor é capaz de dar um nome e uma aparência local.

22 Jul 2024

Notas poéticas de uma visita ao Templo de A-Má

Por Cheong Kin Man

Chio Tong I (falecido antes de 1777) foi um homem de letras confucianista natural de Macau, descendente de Zhao Yanfang (Chio In Fong), que tomou posse como Mandarim de Hèong-Sán (hoje Zhongshan) em 1386. Argumenta-se que o imperador Taizong (939-997) da dinastia Song (960-1279) é um seu antepassado.

Passou uma vida modesta e deixou vários poemas em chinês clássico. Apelidado respeitosamente como “Senhor do Rio do Espelho”, o poeta só foi reconhecido quase um meio século depois da sua morte. No fim de 1828, o seu neto Chio Wan Sin, que exerceu funções na administração provincial, mandou gravar numa pedra do Templo de A-Má um dos poemas deixados pelo seu avô.

Eis mais uma tentativa de transpor um poema clássico chinês, desta vez com versos heptassilábicos, num texto dodecassílabo em português:

A terra vê a água, fim do sudeste

À procura do Zen, vi gemas no portal

Portas-Tigre, mil velas, um branco veste,

Em Pescoço-de-Galo, jamais é o sol mortal

Nas vias sinuosas, sapatos tiveste.

Colina esculpida, nome imortal.

Flores de ameixeiras, sob rochedo,

A primavera r’vem, sem saber mais cedo.

O título do poema é “Ascender ao Templo da Percepção do Mar no Mês do Sacrifício às Divindades” (臘月登海覺寺). Pondo-o numa tradução menos literal, aqui falamos de uma “Visita ao Templo de A-Má no Último Mês do Ano (Lunar)”. “Ascender”, porque não se trata de uma visita desierarquizada. É uma ida com respeito, provavelmente também com a intenção de homenagear as divindades. É, sobretudo, uma caminhada à Colina da Barra.

Neste artigo estudamos este relato poético cantonense com traduções literais de cada verso, a fim de mais aprofundadamente apreciar uma pitoresca paisagem de Macau do século XVIII. Revelamos algumas curiosidades, da toponímia cantonense analógica sobre os animais, ao uso metafórico da língua clássica chinesa, e daremos um salto a um género de sapatos antigos “flexíveis” feitos para as caminhadas.

Percepção do “mar”

Os dois grandes caracteres vermelhos “海覺” (Hoi-K’ok), que o Monsenhor Manuel Teixeira se referia como “Percepção do Mar” em português, estão gravados numa grande rocha dentro do templo.

O Templo de A-Má não é o único que tem a referência a “Hoi-K’ok” ou “Percepção do Mar”.

Um templo com o mesmo nome, mas fundado quase um milénio mais cedo do que o ex-líbris de Macau, na capital histórica da China, Chang’an, onde o mar não se vê, desperta em mim um outro significado ao ler estes dois ideogramas: “o estado de ficar infinitamente iluminado”.

Por sua vez, nos primeiros versos do poema que aqui lemos, está destacado um mar de Macau que o templo contempla:

地盡東南水一灣

嵌寶奇石向禪關

A terra vê a água, fim no sudeste

À procura do Zen, vi gemas no portal

[As terras terminam com uma baía de águas do sudeste

O tesouro inserido (no Templo), as (suas) extraordinárias pedras indicam a casa de guarda que acede à iluminação budista (Zen)]

O primeiro verso refere-se à localidade do templo. “Sudeste” é uma referência geográfica face a Hèong-Sán, sede do governo imperial (e provincial) chinês que tutelou Macau: a península é sita na direcção sudeste desta cidade chinesa.

O segundo verso tem referências mais metafóricas.

Compreendemos, aqui neste verso, que os dois caracteres 禪關 (sim kuan em cantonense ou chán guān em mandarim) são uma referência metafórica ao “acesso” ou “passagem fortificada” à “iluminação” religiosa ou espiritual. Nada tem isto a ver com uma fortificação, mas com o facto que a essência do Zen não é algo fácil de aceder.

Os mesmos ideogramas, parece-me que, podem indicar igualmente a entrada do templo.

Enquanto a magnificência do Templo de A-Má é constatável nos desenhos do quase contemporâneo do poeta em questão, George Chinnery (1774-1852), as rochas, muitíssimo referidas nos documentos sínicos e que ainda hoje vemos, verificam a autenticidade do segundo verso como uma descrição poética da vista e da arquitectura desse templo.

Topónimos e animais

虎門雪送千帆白

Portas-Tigre, mil velas, um branco veste

(Fu-Mun despede o tão branco de mil velas como neve)

Luís Gonzaga Gomes traduz, na primeira versão portuguesa da “Monografia de Macau” de 1950, que o topónimo Fu-Mun (ou Humen em mandarim, a 70 km de Macau) significa “Porta do Tigre” ou, como se constata ao ler os documentos históricos, é também conhecido em português “Boca do Tigre”.

“門” (pronunciado “mun” em cantonense) significa não apenas porta(s), mas também, como vemos na toponímia clássica chinesa, uma hidrovia estratégica.

O nome “Porta do Tigre” é algo abreviado de “Passagem da Cabeça do Tigre” (traduzida igualmente pelo grande sinólogo macaense). Ainda segundo a mencionada “Monografia de Macau”, as duas Montanhas do Pequeno Tigre (Xiǎohǔ Shān) e do Grande Tigre (Dàhǔ Shān), “parecem-se com duas pérolas incrustadas no seio do mar”. A tradição cantonense diz que estas duas elevações foram imaginadas como um tigre sentado, daí os nomes. Ambas as montanhas, que são igualmente os cúmulos de duas ilhas, testemunham, na observação poética do natural de Macau, a muita circulação de transporte fluvial do século XVIII.

Roda veicular: alusão ao sol e à lua

雞頸輪升萬壑殷

Em Pescoço-de-Galo, jamais é o sol mortal

[Em Pescoço-de-Galo, a roda (o sol) leve (e faz com que) vermelha uma miríade de vales]

No quarto verso, destacamos o caracter 輪 (lon em cantonense ou lún em mandarim), que significa efectivamente roda(s) de um veículo. Para além de ter o significado de sol no chinês clássico, este ideograma designa igualmente a lua (cheia).

Isso tem a ver, justamente, com a forma de uma roda “desenhada” na escrita mais antiga chinesa e vê-se mesmo no componente à esquerda do caracter: o radical 車 representa uma tal roda, embora esta, na escrita impressa moderna, tenha a forma de um quadrado.

É de notar que, quanto este ideograma visualizador foi inventado, o mais tardar no século XI a.C., a palavra tinha pelo menos duas rodas (redondas) nas suas diversas variantes, 䡛. Não foi até no Século VIII a.C., o mais tardar, que o caracter se foi simplificando, de com duas rodas a uma só roda.

O chinês moderno tem, apenas com algumas excepções, símbolos redondos. Entretanto, como a escrita chinesa evoluiu para uma escritura quadrilátera, o caracter 車, representando originalmente uma roda, naturalmente redonda, foi ganhando a forma de quadrângulo igualmente o mais tarde no Século VIII a.C.

Onde fica o Pescoço de Galo?

Continuamos o tema de nomes de animais na toponímia clássica cantonense. Aqui na tradução do poema, “Pescoço-de-Galo” é um antigo nome cantonense menos conhecido na língua portuguesa. Gonzaga Gomes explica literalmente o termo “雞頸”, Kài-Kèang como “Pescoço da Galinha” ou Kâi-Kêang como “Pescoço do Galo, ou da Taipa” – Sabemos que o ideograma 雞 (kai) não manifesta o género gramatical.

“Pescoço-de-Galo” é mais um exemplo de como os cantonenses denominam as localidades ao comparar as suas formas com as imagens de animais. É, segundo a tradição de Macau, uma elevação da ilha da Taipa que se localiza a este, ou melhor a desaparecida ilha que se integrou na Grande Taipa. Originalmente uma ilha à parte, “Pescoço-de-Galo” está ainda hoje nos nomes cantonenses de vários locais na Taipa.

A cena das “velas (vistas) de Pescoço-de-Galo” era conhecida, entre a comunidade cantonense, como uma das “dez paisagens” nomeadas pelo co-autor da “Monografia de Macau”, Iân-Kuông-Iâm (1691-1758). Aqui, nos terceiro e quarto versos do poema em causa, o autor Chio Tong I evoca o hoje desaparecido cenário de muitíssimos juncos que passavam pelas águas de Macau, num vermelho do amanhecer.

Numa Macau do século XVIII

迴磴人拖單齒屐,

摩崖徑勒有名山。

此來不覺春歸早,

笑指梅花試一攀。

Nas vias sinuosas, sapatos tiveste.

Colina esculpida, nome imortal.

Flores de ameixeiras, sob rochedo,

A primavera r’vem, sem saber mais cedo.

[Sinuosos caminhos de pedra! O homem usa sapatos de um só dente

Penhascos com (textos de) estudos gravados, vias com inscrições, a famosa colina tem

Assim, sem se reparar que a primeira cedo volta

Rindo, aponto às flores de ameixeiras, prova-se uma caminhada]

Cheong Mei I, vice-presidente da Associação da Literatura Moderna de Macau, e Tang Chon Chit, especialista local de mérito em matéria de poesia clássica cantonense, publicaram em 2020 um livreto em mandarim, “Inscrições em Pedra no Templo de A-Má de Macau” (título português constante na capa). A estudiosa, juntamente com o professor da Universidade de Macau, interpreta que Chio Tong I expressa uma certa identificação com a terra ao relatar o templo e os seus arredores com precisão.

No quinto verso, parece que o poeta sobe à colina com um tipo de calçado em madeira, possivelmente tamancos, com dois “dentes” – isto é – dois pedaços de madeira para manter os pés acima do solo. Referidos como chinelos de um só dente no poema, julgo que se trata de antigos calçados com estes dois “dentes” de colocar e retirar: ao subir, sem o pedaço de suporte de frente; ao descer, com a peça de atrás retirada. Explicando-o à minha companheira polaca Marta, ela diz, “eine tragbare Treppe (que uma escada portátil)!”

Relativamente ao sexto verso, sabe-se que o mero ideograma 山 (san em cantonense ou shān em mandarim) não diferencia entre colina(s) e montanha(s). Assim, este verso evoca em mim uma vastíssima paisagem.

O poema, que parece até agora inédito na língua lusa, é concluído pelos últimos dois versos cuja ordem inverti na tradução poetizada. Ao imaginar o muito apreciado passeio numa primavera simbolizada pelas flores de ameixeiras, fico perdido entre mil vales e num reino de signos, gravados nas pedras da deusa A-Má.

* Artista de desconstrução linguística, têxtil e vídeo em colaboração com Marta Stanisława Sala

20 Jul 2024

Secção do curso Superior do Changjiang (长江上游)

O rio Longo, em chinês Changjiang (长江), conhecido também por rio Yangtzé, ou Yangzi (扬子), é o terceiro maior do mundo, depois do rio Nilo com 6690 km e o Amazonas de 6570 km. Designado por rio Azul, é o maior dos três grandes rios a atravessar a China, tendo 6363 km de comprimento, sendo ainda um dos cinco rios a cruzar o curso do Grande Canal.

As fontes de água do Changjiang encontram-se no planalto tibetano e nas montanhas Kunlun [a Leste da cordilheira dos Pamir e para Oeste do Vale de Sichuan marca o final Norte do Planalto Qinghai-Tibetano] de onde nascem os dois rios, Dangqu (当曲) e o Tuotuo he (沱沱河), que ao se juntarem formam o rio Tongtian (通天河), um dos muitos nomes do Changjiang ao longo do seu percurso.

As duas nascentes estão na montanha de Tanggula (唐古拉山, Serra Dangla): no lado da província de Qinghai, o rio Dangqu tem a fonte a 5170 m de altitude na montanha Xiasheriaba (霞舍日阿巴山, de 5395 metros); e na província do Tibete, o rio Tuotuo (ou Ulan Moron em tibetano) é formado na geleira a Oeste dessa mesma montanha de Tanggula, a Sudoeste do planalto tibetano, no seu mais alto pico Geladaindong.

O Dongqu após 234 km e o rio Tuotuo depois de 336 km, juntam-se e formam o rio Tongtian (通天), que ainda na província de Qinghai percorre 828 km antes de seguir para Sudeste e juntar-se em Yushu (quarta maior cidade de Qinghai) ao afluente rio Batang (巴塘河). Aí, de Yushu Zhimenda (玉树直门达) até Yibin (宜宾) em Sichuan percorre 2308 km e passa a ser conhecido por Jinshajiang (金沙江, rio das Areias Douradas), outro dos nomes do Changjiang. Como rio Jinsha atravessa as províncias de Qinghai, Tibete, Sichuan, Yunnan e volta a Sichuan, onde termina.

Na sua trajectória para Sul, alimentado por múltiplos afluentes, o rio Jinsha ao atingir a província de Yunnan envolve a cidade de Lijiang [localizada no planalto Yungui, ainda pertencente ao planalto Qinghai-Tibete] e pouco depois em Panzhihua, no extremo Sul de Sichuan, recebe as águas do rio Yalong (雅砻江), o mais comprido com 1637 km e principal afluente do Changjiang, proveniente das montanhas Hengduan [junção do planalto Qinghai-Tibete com o planalto Yunnan-Guizhou].

O rio Jinsha (金沙江) passa a correr para Nordeste por a província de Sichuan até Yibin (宜宾), onde termina a uma altitude de 305 metros. Após o afluente Minjiang desaguar em Yibin no Changjiang, este por atravessar Sichuan fica com o nome de Chuanjiang (川江) nos 1040 km até Yichang (宜昌), província de Hubei.

Nos 410 km de Yibin a Chongqing, em Luzhou desagua o rio Tuo proveniente de Leshan e já no extremo Leste da península colina onde o centro de Chongqing se encontra, o afluente rio Jialing junta-se ao Chuanjiang, encontrando-se próximo daí as docas Chaotianmen, onde vamos para embarcar. Após Chongqing, a altitude do Chuanjiang passa a ser de 40 metros, percorrendo 630 km até Yichang (宜昌), onde termina o Curso Superior do Changjiang (长江上游) com 4504 km desde as suas duas nascentes.

PERCURSO DAS TRÊS GARGANTAS

Em 1991 chegamos à segunda cidade mais importante de Sichuan, Chongqing com a intenção de realizar de barco a descida do Rio Longo até Wuhan, passando por o famoso cenário turístico das Três Gargantas, numa viagem de três dias. Na compra do bilhete de barco havia a possibilidade de escolha para desembarcar nos portos fluviais de uma série de cidades existentes a jusante do Yangtzé [assim chamado o rio por os estrangeiros].

Em Chongqing inicia-se a parte navegável do rio para navios de grande porte e a viagem até Shanghai (Xangai) dura cinco dias e em sentido inverso, para percorrer os 2400 quilómetros contra a corrente, leva sete dias.

Chongqing desde 1983 tinha já a parte financeira e económica sob o controlo do Governo Central, mas administrativamente os seus treze milhões de residentes pertenciam à província de Sichuan, então com 100 milhões, a mais populosa da China. Em 1997, devido à necessidade de construir a Barragem de Sanxia [三峡壩, das Três Gargantas] deixou de pertencer a Sichuan e tornou-se o Município Administrativo de Chongqing.

Aquando da nossa primeira viagem por o Changjiang em 1991 ainda não havia referência alguma à Barragem Hidroeléctrica das Três Gargantas (三峡大壩, Sanxiadaba), cuja decisão governamental ocorreu no ano seguinte, ficando a obra pronta em 2008, tornando-se a maior barragem do mundo.

Quando possível, o barco é um bom meio para viajar no centro e Sul (a parte mais populosa da China), sobretudo nas deslocações feitas por o interior. Apesar de vagarosas, são agradáveis viagens. Por água, [lembrar estarmos em 1991], conseguimos fugir às enchentes dos comboios e às más estradas do interior do país. Devido à lentidão deste transporte, a permitir repousadamente saborear a paisagem e a possibilidade de conviver com os chineses, faz dele um meio privilegiado. Esta vez o rio sofre uma cheia a inundar os campos, aumentando bastante a largura entre as margens.
O barco partiu de Chongqing às 7 horas da manhã e após parar em Fuling e Fengdu, ancorou na margem esquerda do rio às 18 h em Wanxian, um dos dez importantes portos do rio. [Chamado agora Wanzhou, devido à construção da barragem perdeu quase metade da sua área urbana.]
De Wanxian saímos às 4 horas para a partir das 8 da manhã navegar na zona das Três Gargantas e chegar a Yichang às 16 horas.

Pouco depois de Wanxian, na mesma margem aparece Yunyang, onde atravessando o rio, na margem direita se encontra o Templo de Zhang Fei.

Segue-se Fenhjie (Yong’an), antiga cidade capital do reino Kui durante a dinastia Zhou de Leste (771-256 a.n.E.), e para Leste após oito quilómetros inicia-se a Garganta Qutang. À sua entrada, na margem esquerda aparece a povoação-fortaleza de Baidi (Cidade do Imperador Branco, ou Celeste Dragão Branco).

Aí, há mais de dois mil anos teve origem o antigo reino Bashu [a cultura Bashu tardia terá começado nos finais do Período Primavera-Outono (770-476 a.n.E.) e com doze gerações de governantes durou até 316 a.n.E., quando o reino Qin eliminou os Ba]. Já no Período dos Três Reinos, Baidicheng foi o local para o governante do reino Shu, Liu Bei (161-223) se retirar após derrotado por o reino Wu e ao sentir-se muito doente, entregou o filho Liu Chan a Zhuge Liang, o seu primeiro-ministro, para o orientar na governação; episódio conhecido por “Confiar o órfão em Baidi”.
Navegando oito quilómetros entre altas falésias na Garganta Qutang, dizem-nos poder aí ver incrustados a meio da montanha caixões suspensos do povo Ba.

A seguir aparece a Garganta Wu com 45 km de comprimentos e falésias em ambos os lados, onde no ano de 208 terá sido firmada a aliança entre os reinos Shu e Wu contra o Wei. Esta segunda garganta termina em Badong, na margem direita do rio e onde vive a minoria Miao e Tujia, que no passado desde as margens puxavam com cordas os barcos rio acima.

Pouco depois, na margem esquerda do rio encontra-se Zigui (Maoping), o início da última das três famosas gargantas, Xilingxia, a mais comprida delas com 76 km. [No percurso desta garganta encontra-se construída em Sandouping, no distrito de Yiling, desde 2008 a Barragem Hidroeléctrica das Três Gargantas (三峡大壩, Sanxiadaba), onde a profundidade não natural, mas criada das águas do rio é de 320 metros.]

Por fim, após 38 km está a comporta Gezhouba a deixar a embarcação numa cota cinco metros mais abaixo. Nos 200 km entre Fengjie e Yichang a largura do Chuanjiang varia entre os 300 e menos de 100 metros, dependendo da estação do ano.
Em Yichang termina o Curso Superior do Changjiang e o barco faz a primeira grande paragem.

DE BARCO ATÉ WUHAN

De Yichang, a viagem de barco já no curso médio do Changjiang (长江中游) levou 22 horas até Wuhan. Ainda na margem do lado esquerdo do rio, agora chamado Jingjiang, apareceu pouco depois Jingzhou (província de Hubei).

Seguiu-se Yueyang (o único porto internacional de Hunan) situada na margem direita e onde o lago Dongting a Nordeste se liga às águas provenientes do rio Longo. A localização do lago criou o nome das duas províncias, Hubei (a Norte do lago) e Hunan (a Sul do lago). De Yueyang, o Changjiang corre para Nordeste e por a província de Hubei vai até à sua capital Wuhan, onde o rio Han após percorrer 1532 km se torna seu afluente.

O Hanshui (汉水) nasce na parte Sul das montanhas Qin (秦岭, Qinling) e percorrendo-as em longitude por o vale criado com a parte Norte das montanhas Daba [a separar Sichuan e Chongqing], passa na cidade de Hanzhong e do Sudoeste de Shaanxi flui para Leste, entrando na província de Hubei. Em Wuhan o Hanshui desagua no Changjiang, dividindo a cidade em três cidades: Wuchang (no lado direito do rio
Longo, situa-se à frente da foz do rio Han); na margem Norte do rio Han está Hankou e a Sul, Hanyang, banhando o Changjiang as margens destas três cidades, que formam a capital da província de Hubei.
De registar o enorme crescimento de Wuhan, quer populacional, quer em termos da criação de novas indústrias joint-venture com famosas marcas Ocidentais. A meio caminho entre Beijing (Pequim), Guangzhou (Cantão) e Shanghai, está Wuhan como centro do País do Meio, não sendo alheio o incremento dado por o governo central a esta zona especial. O desenvolvimento das vias rodoviárias ficou complementado em 1957 por a nova ponte de Wuhan, ainda então o orgulho dos chineses.
Atracado o barco em Hanyang, vamos à cabine de seis camas em beliches que nos coube no bilhete de terceira classe e recolhemos a bagagem. A espreitar do postigo, termina a primeira deambulação no rio Longo, por onde iremos navegar até à foz, entre novas zonas e outras cidades.

18 Jul 2024

Estilhaços

« …uma das suas cabeças parecia ferida de morte; mas a ferida de morte tinha sido curada. E maravilhados, todos os habitantes da terra foram atrás da Besta»

Apocalipse, 13

Um livro do fantástico encerrará sempre muitas casualidades adicionais e outras que vamos acrescentando, porém, e ressalvadas as devidas comparações, ainda se admitia que a segunda quinzena de Julho traria coisas assim como as relacionadas com a temível estrela Algol fazendo conjunção com Marte e Úrano numa área reservada a partir do pescoço, inclusive. Mas se é certo que a sorte protege os audazes, já o azar nos bate à porta com os fragmentos dos impactos balísticos, que as balas, vá-se lá saber porquê, atingem mais os idólatras, que esses sim, em horas descomunais dão lições de grande abnegação e pura valentia.

Acontece sempre a mesma estupefacção dianta da «Alice no País das Maravilhas» e do monumental livro do Apocalipse, faltando-lhes ali qualquer coisa de sustentabilidade humana, graça, leveza, e algum secreto amor. Mas nem por isso se deixam de revisitar como se fossem tratados das nossas próprias incompetências interpretativas, e não há que iludir a pouca capacidade e desconhecimento que a humanidade tem perante universos que escapam ao dom da sua própria sobrevivência. São dois livros brutais.

Mas o que aqui nos traz é o arrojo do não baleado tendendo a um reino bem mais protegido que aquele de uma rainha de Espadas, um reino trevoso, que tem certamente os seus guardiões e precisa dele para um grande ataque final ao reino dos adormecidos. Aliás, todo aquele reino é já uma derrocada, o amigo, o inimigo, figuras patéticas: exemplos terminais de um estado civilizacional num espectáculo moribundo e senil que não lembra ao diabo.

No entanto, a mal fadada estrela Algol preside à mais temível estrela de Perseus com cabeça de Medusa, essa Górgone que ele decapita com espada certeira tornando-se um semideus benigno e de grande coragem com referência mais tarde na Revolução Francesa – cortando tudo aquilo que ao corpo não pertencia. E as datas são as mesmas. Para os chineses ela foi considerada muito simplesmente como a esposa do diabo, mas a China parece muito distante destes confrontos mediterrânicos que galgaram o Atlântico até ao outro lado. Seja como for, estávamos já a festejar a Revolução Moderna da nossa civilização, mas eis senão quando interrompemos a Marselhesa.

Hoje 15 de Julho, era Júlio César a nascer – e é claro que ninguém faz Revoluções no Inverno – e pensar que nada de profundamente significativo mudou nas trincheiras da nossa humanidade causa em todos nós reflexão e desespero. Ele nasce da primeira cesariana – daí, o nome César – que nesta Algol transcendente, capciosa e total, vislumbramos essa injustiça que os homens não podem esquecer. Há grandes terrores subterrâneos, supremacias tresloucadas, jovens efebos atirando contra velhos decrépitos e malsãos, e punhados de homens amantes esquartejando-se.

Que Trump fosse ferido é sem dúvida de lamentar, mas isso não nos deve interessar; afinal, ele está aí para o que der e vier em todo este imbróglio, e que o outro esteja neurologicamente afectado pouco interesse também transmite, que a velhice se tornou uma constante com a qual todo o Ocidente tem de lidar, mas onde outros bem mais velhos parecem ainda muito mais respeitáveis, isso é um facto.

«Quem semelhante à Besta? Foi-lhe dada uma boca para proferir palavras eloquentes, e deram-lhe também o poder de agir durante quarenta e dois meses»

16 Jul 2024

Cidade de Xiamen厦门 (Amoy) mais a excelente ilha de Gulangyu鼓浪屿

No recuado ano de 1981, na Biblioteca Central de Xangai, onde não havia ainda ficheiros organizados numa língua estrangeira e os computadores estavam em absoluta gestação, pedi ao funcionário de serviço que me trouxesse livros e documentos em inglês ou em português sobre Aomen澳门, o nome chinês da nossa Macau.

O pressuroso empregado apareceu-me uns dez minutos depois sobraçando uma resma enorme de livros, todos referentes a Xiamen厦门, a cidade costeira no sul da província de Fujian. Na altura, na China Popular pouco ou nada se sabia sobre Macau, e quem ouvia o nome associava-o frequentemente a um bairro de Hong Kong.

O topónimo Aomen 澳门, que significa “porta da baía”, prestava-se a alguma confusão com Xiamen 厦门que se pode traduzir por “porta da mansão” dado que ambas as cidades são portos de mar situados no sul do império chinês.

Na altura, ainda com tanta China por conhecer, parecia-me improvável um dia desembarcar de comboio, barco ou avião em Xiamen, a velha cidade de Amoy. Aconteceu no ano de graça de 2013, tendo chegado de avião exactamente desde Taipé, Taiwan, logo ali do outro lado do estreito da Formosa, coisa impensável há uma dúzia de anos. Mas hoje tudo são facilidades, com as ligações aéreas entre a capital de Taiwan e as principais cidades da China Popular.

Xiamen ou Amoy – assim se leêm os dois caracteres厦门, primeiro em mandarim e depois no dialecto hokkien de Xiamen, variante do min do sul falado em Fujian –, é a segunda maior cidade da província de Fujian com 1,8 milhões de habitantes.

Cresceu sobretudo a partir do século XVI quando as duas grandes cidades portuárias de Zhangzhou e Quangzhou que lhe estão próximas começaram a diminuir de importância devido ao assoreamento dos rios que lhes davam acesso marítimo. Por volta de 1545, o porto, ou portos de Xiamen dado que a ilha engloba vários embarcadouros ou cais, chegou a ser usado pelos navegadores e mercadores portugueses nas suas deambulações ao longo da recortada costa chinesa, nesta região polvilhada por mil ilhas, baías, embocaduras de rios, mares amarelos e terras de todas as cores.

No século XIX, Xiamen era o grande porto por onde se escoava o chá, até então unicamente produzido na China. Após, a Guerra do Ópio (1839-1842), a sua importância cresceu dado ser um dos “Cinco Portos” abertos ao comércio internacional após a derrota chinesa na guerra às mãos dos ingleses e a assinatura do humilhante, para a China, tratado de Nanquim, em 1842. Os outros portos abertos foram Cantão, Fuzhou, Ningbo e Xangai.

Hoje Xiamem é uma cidade airosa, desempoeirada, acho que quase livre de poluição. A proximidade do mar, o clima subtropical com chuvas frequentes, a própria abertura do centro urbano para o litoral, a natureza da terra fazem de Xiamen um dos lugares com melhor qualidade de vida em toda a China. E a cidade mantém um interessantíssimo centro histórico, com ruas e construções coloniais europeias que datam de finais do século XIX.

Visita ao templo budista de Nanputuo. Inicialmente construído durante a dinastia Tang (618-907), o templo foi várias vezes arrasado e os pavilhões que tenho diante de mim são todos dos séculos XVIII e XIX. Resta a originalidade de terem sido construídos neste estilo chinês do sul da província de Fujian, com as extremidades dos telhados, às vezes sobrepostos, muito reviradas, os templos intensamente decorados e coloridos por fora e por dentro.

Nanputou estende-se para o céu, ascendendo pela montanha que lhe fica por detrás o que, em termos de feng shui 風水favorece a sua localização, um monte atrás, o mar em frente, o céu por cima. Vale a pena subir algumas centenas largas de degraus para, do alto, em plataformas aqui e acolá com motivos budistas, se ter uma desafogada vista sobre esta parte da cidade e sobre o mar.

Logo abaixo, encontramos o vasto campus da Universidade de Fujian, uma das mais famosas da China. Depois do templo, atravessei a pé todo o complexo universitário em direcção à praia que fica do outro lado. Últimos dias de Junho de 2013, as aulas e os exames estão a acabar, há novos doutores e doutoras que, academicamente paramentados à inglesa ou à americana tiram retratos e retratos junto ao lago central da sua Universidade. Nas janelas e varandas dos dormitórios dos estudantes há verdadeiros festivais de roupa a secar, mas a Universidade parece funcional, com departamentos e faculdades a ocuparem ora edifícios modernos, ora complexos dos anos vinte do século passado, bem conservados, tudo aparentemente bem equipado.

As praias de Xiamen são um extenso sufoco por causa da quantidade de porcaria e dejectos que se acumulam na areia grossa e que bóiam nas águas mansas do Oceano Pacífico. Ali nem deu para molhar os pés.

Em 1949, quando dos derradeiros combates entre comunistas e nacionalistas, antes da fuga definitiva destes últimos para Taiwan, os soldados de Chiang Kai-shek conseguiram segurar a pequena ilha de Jinmen金門, Kinmen ou Quemoy, no dialecto local, que se situa apenas três quilómetros a leste de Xiamen. Contra todas as expectativas ainda mantêm a ilha na sua posse, o que é motivo de interessada visita por parte dos turistas da República Popular da China que têm logo ali, ao alcance da mão ou de duas ou três braçadas, um território capitalista para comparar com a sua China de Mao Zedong e de Xi Jinping. Acabado de chegar de Taiwan, não fui à pequena ilha nacionalista de Jinmen.

O melhor de Xiamen, para turista ver, espairecer e se surpreender é a ilha de Gulangyu, 鼓浪屿 mesmo em frente do centro da cidade, a menos de um quilómetro de distância que se percorre em sete minutos numa espécie de cacilheiro, sempre apinhado de chineses. A partir de meados do século XIX, depois da abertura do porto de Xiamen ao mundo, os estrangeiros começaram a chegar e fixaram-se sobretudo nesta bonita ilha de Gulangyu, com cerca de dois quilómetros de comprimento por um de largura. A ilha tem água doce, praias, imensa vegetação, tudo o que é necessário para a vida.

Treze países, incluindo a França, a Grã-Bretanha e o Japão aqui estabeleceram os seus consulados e em 1903 Gulangyu passou a ser designada Território Internacional, tendo governo e polícia própria, a segurança era feita pelos shiks que, tal como aconteceu com os indianos que funcionaram como polícia em Xangai, os ingleses foram buscar ao norte da Índia.

Curiosíssima é a arquitectura colonial dos cerca de 500 edifícios que foram construídos em Gulangyu, sobretudo entre 1890 e 1920 e que, restaurados, ainda se conservam. Trata-se de mais um museu a céu aberto, um conglomerado de casas e grandes mansões, de igrejas e jardins, de palácios e hospitais, tudo numa mais do que heterogénea mescla de estilos, nada sínicos, de talhe e arquitectura ocidental, ao modo do que se construía na Europa no início do século XX.

Felizmente, e para satisfazer a multidão de turistas chineses — são tantos que diariamente chegam a atravancar o trânsito pedonal numa ilha que não autoriza veículos motorizados –, Gulanyu tem praias (também não muito limpas) e recantos sossegados onde se pode fruir a natureza, ou a nostalgia do encanto perdido do passado. E tem hotéis e pensões onde apetece ficar, sobretudo a partir de meio da tarde, após a saída da avalanche de turistas chineses.

Então Gulangyu fica por nossa conta e que prazer ouvir um piano — a ilha conta com um estupendo museu com mais de cem pianos e órgãos de várias épocas –, olhar o pôr-do-sol, imaginar, mui ao de leve, as fantásticas histórias dos velhos habitantes de Gulangyu quando chineses abastados se passeavam de riquexó, homens de negócios europeus, de colete, casaco e gravata caminhavam pelas ruelas junto ao mar, e damas chinesas, mais do que formosas nas suas cabaias de brocado e seda, inebriavam a brisa da tarde.

Numa das lojas de rua em Gulangyu, província de Fujian, República Popular da China, fiz uma compra absolutamente inédita em 36 anos de viagens e estadias no mundo chinês, uma peça em massa dura e pesada de plástico, com duas figurinhas, Mao Zedong e Chiang Kai-shek, ambos sentados num banco de jardim, abraçados e ternurentos, sorrindo para as gerações futuras. Malhas que o império tece…

16 Jul 2024