Via do MeioFilosofia Popular da Peregrinação ao Oeste Ana Cristina Alves - 6 Jun 2025 Ana Cristina Alves, Investigadora Auxiliar e Coordenadora do Serviço Educativo do Centro Científico e Cultural de Macau 20 de maio de 2025 Introdução e comparação cultural Qual é a filosofia popular implícita na obra Peregrinação ao Oeste《西遊记》 de Wu Cheng´en (吴承恩) 1500 – 1582? Esta foi redigida durante a Dinastia Ming e publicada em 1570, mais ou menos pela altura em que os Lusíadas de Luís Vaz de Camões, o épico camoniano, seria editado, em 1572. Na Peregrinação ao Oeste procura-se através de uma recriação imaginária de um grupo de peregrinos, encabeçado pelo monge da dinastia Tang Xuanzang (唐玄奘 Xuánzàng), conquistar um novo mundo espiritual, o da religião budista, ao qual os chineses deveriam aderir de modo a garantir uma melhor conduta ético-moral para uma população já há muito desviada dos bons ensinamentos e conduta apropriados. Quem lidera a iniciativa de libertar os chineses do sofrimento é, como não poderia deixar de ser, a Divindade da Compaixão, Guanyin (观音Guānyīn), sempre atenta a todas as almas aflitas, pronta para se lançar no socorro delas. Já no caso de Os Lusíadas, compostos por Luís Vaz de Camões (1524/5-1580), narra-se igualmente uma viagem, só que é real, indissociável de aspetos espirituais e religiosos, porque feita em nome da universalidade da fé cristã, sendo, porém, indissociável da viagem concreta, que implica a conquista bem humana e renascentista de um mundo melhor para as gentes, no qual os portugueses possam não apenas sobreviver, mas comandar e imperar, por serem dignos de uma história antiga e guerreiros muito valorosos. Canta-se, portanto, o heroísmo dos descobrimentos, radicados na fé cristã, mas acompanhados e protegidos pelo alento renascentista que recupera o espírito e divindades clássicas, como sejam a protetora Vénus, divindade amorosa que vela pelos portugueses, e o agressivo e ciumento Baco, o deus do vinho que os quer perder. A Peregrinação ao Oeste pelos chineses é realizada em nome da libertação e salvação coletivas, através do contacto com os sutras budistas; a “Peregrinação” portuguesa ao Leste é igualmente em nome de uma coletividade, salva as almas e estende-se a toda a terra, dada a vocação proselitista do Cristianismo e globalizante dos mercadores, bem como dos navegadores, Camões seu arauto poético deseja a propagação da fé por um grande império construído pelos heróis portugueses, como se lê na primeira estância do Canto Primeiro: As armas e os Barões assinalados Que da Ocidental praia Lusitana, Por mares nunca de antes navegados Passaram ainda além da Taprobana, Em perigos e guerras esforçados, Mais do que prometia a força humana, E entre gente remota edificaram Novo reino, que tanto sublimaram; Que viria a ser traduzida para chinês por Zhang Weimin 张维民 em 19981 da seguinte forma: 威武的船队,强悍的勇士, 驶离卢济塔尼亚西部海岸, 越过自古茫无人迹的海崖, 甚至跨越塔普罗瓦那海角, 经历千难万险、无穷战争, 超出人力所能承受的极限, 在那荒僻遥远的异域之帮, 将灿烂辉煌的新帝国拓建。 张维民(译) 《卢济塔尼亚人之歌 •第一章,一》 Ambas as peregrinações são verdadeiros romances de aventura em estilo poético, Os Lusíadas em poesia, a Peregrinação ao Oeste em prosa poética e poesia. Neste último, A Bodhisattva Guanyin subjugará 4 monstros que serão os companheiros do Monge Xuanzang. A Bodhisattva leva consigo uma sotaina bordada e um anel de nove voltas para entregar ao monge. Este último, se cumprir eficazmente a sua missão de 14 anos, escapa à roda da reincarnação (Jenner, 1994:60), e os seus discípulos, forças divinas desobedientes em queda no mundo humano, poderão regressar ao Céu, onde voltarão a ocupar cargos divinos. Guanyin entrega também uma banda, que provoca terríveis dores de cabeça ao desobediente Rei Macaco (Jenner, 1994:60). Apresentem-se os monstros e espíritos indomáveis. Primeiro Sun Wukong (孙悟空Sūn Wǔkōng ), de Rei Macaco desobediente transita a obediente guardião da religião budista. Guanyin libertará este espírito indomável, prisioneiro na Montanha dos Cinco Elementos (五行山 Wǔxíng Shān), como castigo pelas desobediências que não têm conta. Depois um Marechal Celestial que passará a Porco. Ele é o Marechal Tian Peng (天篷Tiān Péng ) da Via Láctea, tentou seduzir a Divindade da Lua, foi punido pelo Imperador de Jade com duzentas machadadas e condenado ao exílio na terra. A Bodhisattva batizou-o com o apelido de Zhu Bajie (猪八戒Zhū Bājiè ), que significa «Porco das Oito Abstinências,» e deu-lhe o nome budista de Zhu Wuneng (猪悟能Zhū Wǔnéng ), ou seja, «Porco Desperto para o Poder» (1994:63). Haverá um ogre que será dominado e transformado em Monge Areia. Foi castigado por ter sido um general celestial distraído. Pagou a distração com 800 chicotadas, tendo sido exilado para a terra, onde devora viajantes escondido nas águas do Rio das Areias Flutuantes. Guanyin liberta-o, batizando-o com o apelido de «Areia» (沙Shā ) , e o nome budista de Wujing (牾净Wǔjìng), que significa «Desperto para a Pureza». Segue-se o filho do Rei Dragão do Mar do Oeste que será metamorfoseado em Cavalo Branco. Foi denunciado pelo próprio pai por ter queimado as pérolas brilhantes do palácio. O imperador de Jade castigou-o, suspendendo-o no ar. Deu-lhe 300 chicotadas, deixando-o a aguardar a morte. O príncipe dragão é liberto para se transformar no Cavalo Branco do monge Xuánzàng, ou como é conhecido em chinês, no Cavalo-Dragão Branco, (白龙马Bái Lóng Mǎ ). No termo da peregrinação, Zhu Wuneng espiritualizado, ascende ao Céu, sendo recompensado com o cargo celestial de Limpa-Altares. Mas há mais honras para o grupo de peregrinos vitoriosos que levaram os sutras até à China: o Monge Areia receberá o título de Santo (Arhat) Dourado, o Macaco será nomeado Buda da Luta Vitoriosa e o Monge Sanzang receberá o título de Buda do Mérito (buda candana-punya.) Assim como o Cavalo Branco ascenderá a Dragão Celestial. Filosofia Popular Proverbial Entre os peregrinos encontram-se, como se sabe, o Macaco e o Porco que escoltam na viagem ao Oeste o grande monge e tradutor budista Xuanzang [ 唐玄奘 Xuánzàng (c. 602 – 664) ou Sanzang (三藏Sānzàng), o Monge dos Três Tesouros budistas (o próprio Buda, os Ensinamentos ou Dharma, a Ordem Monástica ou Sangha), mandatado pelo Imperador Imperador Táng Tàizōng (唐太宗, r. 626-649) para ir buscar as escrituras sagradas à Índia. Estas serão entregues pelo Buda Histórico que reside no Pico do Abutre, porque «há muitas criaturas gananciosas e malvadas no Leste, que se comprazem em provocar sofrimento aos outros, matando e lutando sem parar.» (Jenner, 1994: 58). Por isso, Buda quis distribuir as escrituras pelo mundo chinês. Na filosofia popular e proverbial, que hoje corre de boca em boca, chama-se a atenção para o duelo existencial, travado entre dois dos cinco peregrinos, muito semelhante ao da obra Dom Quixote, de Miguel de Cervantes (1547-1616), composta entre 1605 e 1615, na qual o autor coloca em diálogo duas personagens opostas e complementares, Dom Quixote e Sancho Pança: o primeiro extremamente idealista, romântico, sonhador e mesmo utópico, quase só pele e osso, por ser como que um espírito encarnado; o segundo, materialista, realista, pragmático, um “pés na terra” muito forte e rechonchudo. Mutatis mutandis Zhu Bajie, o Porco das Oito Abstinências, e Sun Wugong, o Macaco Desperto para o Vazio, da Peregrinação a Oeste têm muitas das características opostas e complementares que encontramos em D. Quixote e Sancho Pança. A confirmá-lo, atente-se em alguns dos ditos proverbiais associados ao Rei Macaco: 1) As Setenta e Duas transformações do Rei Macaco (七十二变qī shí èr biàn) 2) Infindáveis Mutações (千变万化qiān biàn wàn huà) 3) Grande Confusão no Palácio Celestial (大闹天宮dà nào tiān gōng) 4) Infinitos Poderes Mágicos (神通广大shéntōng- guǎnggdà ) 5) Aparece e Desaparece Misteriosamente (神出鬼没shénchū-guǐmò) Ele possui uma infinita capacidade espiritual, que lhe permite acompanhar o movimento universal e estar em permanente transformação. Tem inúmeros poderes mágicos, aprendidos com o melhor dos mestres taoistas, o que o capacita a interferir com sucesso tanto na ordem celestial como na terrena, razão pela qual virá a ser castigado e apenas subjugado pelo próprio Buda, que ao domá-lo revela pertencer a uma ordem espiritual e religiosa superior. Após um castigo de quinhentos anos, infligido pelo patriarca do Budismo, ficará apto a integrar o grupo dos peregrinos que introduzirá com sucesso os sutras e os ensinamentos budistas na China. Sun Wugong revela ser uma personagem complexa e multifacetada, retendo e potenciando o melhor e o pior da natureza humana na sua portentosa inteligência, desafiante e desobediente. Tem imensa dificuldade em lidar sobretudo com Zhu Bajie, pela estupidez e concupiscência do parceiro, sempre pronto a preguiçar e a entregar-se a prazeres exclusivamente carnais. Zhu Bajie encarna alguns dos defeitos típicos da natureza humana que são bem revelados na filosofia proverbial popular, como se pode verificar por alguns dos ditos aqui referidos: 1) Zhū Bájiè Falha e Nunca Assume as suas Responsabilidades (豬八戒上陈Zhū Bájiè Shàng Chén) 2) Zhu Bajie Enfeita-se com Flores (豬八戒戴花Zhū Bájiè Dài Huā). 3) Zhū Bájiè vê-se ao Espelho (cZhū Bájiè kàn Jìngzi) 4) Zhū Bájiè Partiu de Avião (豬八戒坐飞机Zhū Bájiè zuò fēijī). No primeiro provérbio, nota-se a dificuldade do porco em assumir culpas sempre que erra, e como errar é humano, não têm contas as vezes em que sacode as responsabilidades; já no segundo é denunciado um defeito muito característico por entre as gentes, a vaidade, ou seja, a necessidade constantes de enfeites, e não só do ponto de vista físico, porque aqui não apenas contam as indumentárias como também os títulos, cargos e honrarias, numa total incapacidade de se autoavaliar com rigor. No terceiro dito, está em causa a fealdade física e moral, que atrai queixas dos outros, pela falta de compostura e, por fim, emprega-se esta expressão quando alguém parte desta para a melhor, mas de uma maneira pior, ou seja, sem dignidade. Para terminar, aqui ficam alguns provérbios de sentido mais geral, retirados da Peregrinação ao Oeste, que chamam a atenção para os males gerais do mundo através das aventuras dos peregrinos, já que, com exceção de Sun Wugong, os outros se deixam enganar muito facilmente, por todo o tipo de monstros, demónios, espíritos sedutores, etc., tendo grande dificuldade em desvendar comportamentos hipócritas nos quais vão tropeçando ao longo da jornada, onde encontram “muitas caras às quais não conseguem ver o coração” ou, por outras palavras, abundante hipocrisia, como refere o dito (虚情假意 xū qíng jiǎ yì). Por isso, estão constantemente envolvidos em sarilhos ou situações que “não têm pés nem cabeça”, o que é traduzido literalmente em chinês por “tamanhos desiguais” (七长八短 qī cháng bā duān). Ora num mundo enganador, os peregrinos são aqueles que com boas intenções vão seguindo com o objetivo maior de salvar a China, assim o grupo se vê na situação de “grande nau, grande tormenta”, ou como é dito em chinês, de “grande árvore que atrai o vento” (树大招风 shū dà zhāo fēng ) num mundo em que quando a virtude cresce alguns centímetros, logo a maldade aumenta vários metros (道高一尺,魔高一丈 dào gāo yī chǐ, mó gāo yī zhàng). Apesar de todas as advertências, vindas da sabedoria popular e das aventuras romanescas, a Peregrinação ao Oeste e Os Lusíadas terminam com o sucesso dos seus protagonistas, já que os portugueses se expandem pelo mundo, o Budismo é introduzido na China e todos os personagens da novela poética dão origem a um pedagógico manancial proverbial. Referências Bibliográficas Alves, Ana Cristina. 2022. Cultura Chinesa, Uma Perspetiva Ocidental. Coord. Carmen Amando Mendes. Coimbra: Almedina e Centro Científico e Cultural de Macau. 蔡志忠 (编绘)2014《西游记》北京:现代出版社. Camões, Luís de. 1971. Os Lusíadas. Lisboa: Imprensa Nacional de Lisboa. Camões, Luís de. 1998. 《卢济塔尼亚人之歌》. Beijing: Fundação Oriente e Federação das Associações Artísticas e Literárias da China. Jenner, W.J.F. 1994. Wu Cheng’en. Journey to the West. «西遊記». Hong Kong: The Commercial Press. 吴承恩2015《西游记》. 全三册.长沙:岳麓书社. “Histórias Proverbiais relativas a Zhu Bajie”:《描写猪八戒的成语》 http://wenwen.soso.com/z/q314030363.htm “Histórias Proverbiais relativas a Sun Wukong”: 《关于孙悟空的成语》http://zhidao.baidu.com/question/95335747.html Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, sendo as opiniões expressas no artigo da inteira responsabilidade dos autores” https://www.cccm.gov.pt Beijing: Fundação Oriente e Federação das Associações Artísticas e Literárias da China.