Exercícios de tradução em torno da poesia amorosa chinesa

No mês da Primavera falemos de amor, e quem melhor para o fazer do que os poetas? Não quaisquer poetas, mas sim os da idade de ouro da poesia chinesa, aqueles que viveram na dinastia Tang (唐,618-907), grande em tudo, mas sobretudo no encontro de culturas e na poesia. Pela sua capital, Chang´an (长安) passeava-se todo o tipo de gente, nacionais e estrangeiros, incluindo estudantes. Eram tantos os que acorriam à capital chinesa que o governo Tang criou gabinetes especiais para acolher os residentes internacionais. Esta dinastia foi a única tão aberta e liberal, a viabilizar a chegada ao poder de uma imperadora, Wu Zetian (武则天, 624-705), e conheceu grandes imperadores como Xuanzong (玄宗皇帝, 685 762).

É a dinastia de Li Bai (李白,701-762), Wang Wei (王维,701-761), Du Fu (杜甫,712-770), Bai Juyi (白居易,772-846) e tantos outros ilustríssimos poetas que entoaram as alegrias e penas do amor como este merecia ser cantado.

Nesta idade de ouro literária, há, como em tantas outras manifestações artísticas, um estilo antigo gutishi ou gufeng (古体诗gǔtǐshī ou 古风gǔfēng) e um estilo moderno jintishi ou gelüshi (近体诗 Jìntǐshī ou 格律诗gélǜshī), sendo o mais moderno característico da dinastia Tang, onde abundam quadras de 5 ou 7 caracteres, denominadas jueju (绝句Juéjù), sendo as quadras de cinco caracteres as wujue (五绝wǔjué) e as de sete caracteres as qijue (七绝qījué), há ainda uma outra forma poética popular constituída por poemas de 8 versos, os lüshi( 律诗lǜshī), também eles de 5 caracteres, os wulü (五律Wǔlǜ)ou de 7 caracteres os qilü (七律Qīlǜ ), seguindo esquemas rimados rigorosos, em que normalmente as sílabas finais rimam. Nas estrofes de oito versos, é habitual as 2ª, 4ª, 6ª e 8ª linha rimarem, ao passo que nas quadras são os 2ºs e 4ºs versos, incluindo por vezes o primeiro verso, sem que tal seja um requisito obrigatório. A rima pode ainda incluir jogos tonais, com alternância entre o 1º e o 2º tons, por um lado, e o 3º e o 4º por outro. Nos lüshi é frequente que os 3ºs e 4ºs versos entrem em relação complementar ou antitética com os 5ºs e os 6ºs. Com a utilização destes recursos estilísticos, no fundo o que se pretende, como nos explicam Wang Guozhang e Wang Anlu (1995, 143): “é tornar os poemas musicais, encantadores, fluentes e fáceis de ler em voz alta”

Recorda-nos Zerbo Freire na sua tradução das Quadras Chinesas (2022) que a poesia Tang conheceu vários períodos, um inicial (618-713) sob a influência da Dinastia do Sul (420-589) repleto de sensibilidade e leveza, seguido de um período ascendente (713-766), no qual o desenvolvimento económico e cultural da dinastia se repercute em vários estilos poéticos e temáticas, encontrando no mesmo período, poetas “românticos” como Li Bai e realistas como Du Fu, ou de espírito ecológico como Wang Wei. Há ainda um período médio (766-836) onde desabrocham vários estilos individuais e um período de declínio (836-907), no qual a poesia acompanha a instabilidade dos tempos, provocada pelas guerras e crises políticas, que Bai Juyi, por exemplo, pôde experimentar.

Certo é que em todos estes períodos foi cantado o amor, correspondido, perdido, achado, distanciado, desaparecido, renovado, abandonado, fatal. Enfim, qualquer expressão amorosa pôde encontrar eco no sentimento fixado na escrita dos poetas, que tão bem souberam apresentar as tonalidades do coração humano.

Comecemos por um poema de Wang Wei, poeta do período ascendente, nascido numa família de mandarins, mas que teve alguns reveses na sua carreira oficial pelo que optou por terminar os seus dias em retiro, enquanto meditava sobre o sofrimento e transitoriedade do mundo, apoiando-se nas escrituras budistas e dedicando-se na sua eremitagem à pintura. Como era um bom pintor, conseguiu conjugar com grande mestria poesia e pintura, angariando fama na tradição chinesa de pintar poeticamente e realizar uma poesia pictórica. (Foreign Language Press, 2008: 109)

Em muitos casos, pode-se pensar no amor terreno como uma flor, dura pouca, desponta, é belo e murcha, ou pior, desparece deixando os amantes infelizes, muito embora seja uma maravilha enquanto dure, mas Wang Wei nesta quadra de cinco caracteres recorda o quanto faz sofrer, já que nos traz uma mulher que chorou sob uma árvore até morrer, após ter perdido o marido em combate, tendo das suas lágrimas em contacto com a terra despontado a ervilha do rosário, abrus precatorius, que é vermelha e redonda:

相思

红豆生南国,

春来发几枝?

愿君多采撷

此物最相思

(Freire, 2022: 22)

Apresento a minha tradução:

Saudoso padecer

Nas terras do Sul cresce a ervilha do rosário,

Quantos ramos despontaram na primavera?

Colhe até mais não poder,

Eis o meu saudoso padecer.

Ainda que não pertença à dinastia Tang, não resisto a apresentar, como complementar a esta quadra, um dos mais belos poemas de amor chineses. Este pertence a Su Dongpo (苏东坡), heterónimo que significa “A Encosta do Leste”, tendo como nome próprio Su Shi (苏轼, 1037-1101). Foi um poeta da dinastia Song (宋朝, 960 – 1279). Este mandarim teve uma carreira oficial muito problemática, porque, como nos recorda Graça de Abreu em Su Dongpo, Poemas (2023: 20) foi honesto e tolo, esquecendo-se de aplicar a si próprio a máxima confucionista de dizer a verdade, mas não toda. Tal imprudência valeu-lhe o epíteto de “Mandarim nómada”, já que passou grande parte da vida a viajar, impelido pelos ventos que sopravam contrafeição da corte.

Eis ao poema de 8 versos e sete caracteres, qilü (七律) em memória da sua terceira mulher, 王朝云(1062年—1096年)deixando o poeta cá na terra sempre triste:

《悼朝云》

苗而不秀岂其天,不使童乌与我玄。

驻景恨无千岁药,赠行惟有小乘禅。

伤心一念偿前债,弹指三生断后缘。

归卧竹根无远近,夜灯勤礼塔中仙。

Em Memória de Zhaoyun

Se o broto não for excelente como poderá ser digno do Céu?

É para mim um mistério tanta virginal pureza.

Ofereço-me a pequena via do meditar,

Por não encontrar na paisagem remédio para o meu mal.

Pago um karma passado com tristeza,

Em futuro de terceira vida interrompida,

Regresso ao repouso da próxima e distante raiz do bambu,

No templo à noite, presto culto diligente à bela imortal.

Bai Juyi, que já viveu nos tempos conturbados da dinastia Tang, foi um mandarim, erudito e eremita, dedicado aos estudos do budismo e do taoismo, que sabia amar a vida. Ele, como refere António Graça de Abreu em Poemas de Bai Juyi foi o poeta mais no coração do povo chinês” (1991: 13). Apresenta uma das mais belas canções de amor da dinastia Tang, triste já que relata os amores fatais do imperador Xuanzong pela concubina, Yang Guifei (楊貴妃, 719-756). Esta intitulada 《长恨歌》foi traduzida para português por Graça de Abreu sob o título de “Canto do Remorso Perpétuo” (1991: 78-84). O amor foi fatal a ambos, porque o imperador negligenciou os assuntos do império em benefício da companhia da concubina. Coincidindo o romance com o início das turbulências na dinastia Tang, mais especificamente, com a revolta do general An Lushan (安禄山), entre 755-763. Esta mergulhou o país numa guerra civil e o imperador viu-se obrigado a abandonar a capital, levando com ele Yang Guifei. Porém, as tropas amotinaram-se, pedindo a morte da amada do soberano, à qual atribuíam todos os males da China. Na sequência da morte da beldade, o imperador abdicou em favor do filho, passando o que restavam dos seus dias entre delírios e esperança de reencontrar a amada no reino dos imortais.

Há mil e uma formas de amar, positivas e alegres, negativas e dolorosas, imaginadas, reais, mas todas sinalizam a presença do amor. Os versos destes grandes poetas sucedem-se, muitos deles dedicados ao amor triste, saudoso, abandonado, descurado e ressentido.

Leia-se esta quadra de cinco versos que nos traz o amor não correspondido e o ressentimento que provoca, tão bem captado na sensibilidade poética, quando alguém gosta de uma outra pessoa, sem o/a excluídos possam entender a razão de tal opção, que nada tem de racional, já que se trata de sentimentos, genuínos na sua espontaneidade. Acompanhemos o eu poético proporcionado por Li Bai:

怨情

美人卷珠帘

深坐颦蛾眉。

但见泪痕显,

不知心恨谁。

(Freire, 2022: 29)

Proponho a seguinte tradução:

Ressentimento

Beldade pregueada, entre cortinas,

Alheada, de sobrancelhas franzidas,

Embora note os vestígios de suas lágrimas,

Desconheço quem lhe provoca as feridas.

Ao queixoso não lhe basta amar, gostaria de ser amado, possivelmente para concretizar uma relação amorosa, desejada, que satisfizesse o seu coração, pelo que ao reconhecer a agitação da dama, lastima-se por não ser ele o alvo das atenções da amada.

Daqui não se segue que Li Bai possua um eu poético ressentido, pelo contrário, era um espírito livre, cavaleiro errante, que pouco aqueceu o lugar na corte como redator da Academia de Hanlin, por não suportar os jogos de poder, inclinado a uma profunda comunhão com a natureza, à maneira taoista, o seu nome próprio Bai (白), “branco” mereceu-lhe o epíteto de Taibai (太白), que significa “muito branco” ou iluminado, relacionando-o com a Estrela da Manhã, o nome que os chineses encontraram para Vénus, que ele honrou à sua maneira, casando quatro vezes e vivendo com escassos bens materiais mas repleto de aventuras e riqueza espiritual.

A Primavera é a estação do despertar de toda a natureza e, por isso, também dos sentimentos amorosos que um outro poeta Tang Liu Fangping (? – 782刘方平) descreve com subtileza associando-os com suavidade e discrição à brisa e ao luar primaveris:

《月夜》

更深月色半人家,

北斗阐干南斗斜,

今夜偏知春气暖,

虫声新透绿窗纱。

(Freire, 2022: 62)

Sugiro a seguinte tradução para esta quadra:

Noite de luar

Noite alta, o luar, quase sem vivalma,

As estrelas da Ursa Maior na sua trajetória bela,

Noite inclinada à suave brisa de Primavera,

Escutando os insetos cantando de novo junto à janela.

O poeta Liu Fangping relata a vontade de amar que surge na primavera, nas noites de luar onde insetos e brisa dedilham as cordas sensíveis do eu poético, que encontra na natureza o seu parceiro amoroso, e não precisa de mais para sentir o calor das sensações a despontar tão juvenis como a quadra natural.

Todos os poetas chineses aqui trazidos têm um traço comum, a subtileza sensível no canto amoroso, figurando-o com o auxílio de elementos naturais, seja a lua, as flores, os pássaros, particularmente os patos mandarim, que simbolizam a relação amorosa, ou as aves que entram em comunhão de alma com o eu poético, como os papa-figos, mensageiros de um amor distante, ou ainda outros seres mitológicos, as fénix. As declarações, as saudades, alegrias e amarguras nunca são apresentadas de uma forma direta, mas através dos elementos da natureza que melhor se conjugam com o sentir poético.

Hoje, tempo de grande exposição de sentimentos, holofotes e espetáculo, poderá ser um bálsamo e um consolo para o mundo termos à disposição este reservatório poético clássico chinês, onde se pode comungar de pequenos gestos criativos que recordam e acompanham, com imenso gáudio, a paisagem primaveril do coração. Termino a partilha do amor de antigos poetas chineses com o homem de estado, poeta e letrado Tang, Zhang Jiuling (张九岭678-740), que expressa a saudade amorosa através de uma amada distante pela força das circunstâncias, comunicando os seus sentimentos em comunhão com a lua:

《望月怀远》

海上生明月,天涯共此时。

情人怨遥夜,竟夕起相思。

灭烛怜光满,披衣觉露滋。

不堪盈手赠,还寝梦佳期。

Pensando no Amado ao Luar

A lua brilhante sobre o mar,

Distantes, mas a partilhar o mesmo olhar.

Sofrem os amantes com a separação,

Toda a noite o mesmo penar no coração.

Ao apagar a vela, surge a lua cheia apiedada,

Envolta em roupa, sinto-a orvalhada,

Sem conseguir ofertar uma mão cheia de lua,

Regresso ao quarto, sonhando contigo de alma pura.

Bibliografia

Freire, Zerbo. 2022. Quadras Chinesas. Macau: Livros do Meio.

Foreign Language Press. 2008. Quick Access to Chinese History. Beijing: Foreign Language Press.

Graça de Abreu, António (Org. Trad. ). 1991. Poemas de Bai Juyi. Macau: Instituto Cultural de Macau.

______________1993. Poemas de Wang Wei. Macau: Instituto Cultural.

______________.2023. Su Dongpo, Poemas. Lisboa: Grão-Falar.

Su Shi (苏轼). 2024.《悼朝云》(Em Memória de Zhaoyun). Baike.Baidu.com

Wang Guozhang, Wang Anlu. 1995. 《唐诗60首今语浅译》. Sixty Annoted Tang Poems. Beijing: Sinolingua.

Zhang Bingxing (Trad.). 2002. 英译中国古典诗词名篇白首 100 Best Chinese Classical Poems.北京:中华书局.

Zhang Jiuling. 2024.《望月怀远》(Pensando no Amado ao Luar) Baike.Baidu.com

21 Mar 2024

A Simbologia do Dragão na Cultura Chinesa

I – A Simbologia do Dragão

O Ano do Dragão inaugura a 10 de fevereiro. Será de Madeira Yang.
Traz prosperidade, sucesso, poder e felicidade.
Serão privilegiadas a imaginação, a criatividade e a responsabilidade.
A cor da sorte será o verde e o elemento a Madeira, que expandirá a energia e o poder criativo do dragão.
Serão privilegiados artistas e profissionais independentes e criativos.
Onde encontrar então a génese da leitura simbólica do Dragão na cultura chinesa? Por um lado, nos mitos, por outro, na caligrafia.
O dragão tem uma existência lógica, que desagua num longo caminho ontológico, já que a sua descrição física conjuga o melhor de todos os animais existentes, como nos revelam as representações da dinastia Tang, nas quais surge com cabeça de camelo, uma pérola mágica na boca, donde se solta por vezes uma nuvem que se transforma em água, outras em fogo, para mostrar que ele controla os poderosos reinos do céu e da água. Tem olhos de coelho, orelhas de vaca, corpo de cobra, patas de tigre, barriga de sapo, escamas de carpa, garras de falcão, e assim por diante. Ele é a máxima potência natural, já que reúne o que há de melhor no reino animal, sendo ainda a máxima entidade sobrenatural, ao apresentar-se como comandante supremo das águas do céu, dos mares, dos rios e até das que correm subterrâneas na terra.
O dragão chinês não se limita a possuir o poder supremo natural e sobrenatural, ele é ainda a máxima entidade humana, o rei-sacerdote, que governa a terra, porque foi investido para tal pelo céu, como nos indica a leitura realizada pelo Dr. Ong Hean- Tatt (1996), a partir do caracter 龍 (Lóng):

No lado esquerdo do carácter observa-se a forma de um guardião humano, que encarna o poder divino e protege as coisas sagradas, ao passo que o lado direito não surgia nas escritas mais antigas como a Oracular (1400-1100 a. C) ou a de Bronze (1100-300 a.C), tendo sido acrescentado no período do Pequeno Selo (300 a. C) à figura humana . Este ostenta em ambas as mãos algo de sagrado. À direita vemos uma longa linha, simbolizando a veste santificada do sacerdote, onde figuram os três traços característicos da água, porque o dragão é a divindade das chuvas e dos rios.
Nos mitos chineses, o dragão surge associado ao primeiro imperador mítico chinês, Fuxi (伏羲) e a sua irmã ou consorte, conforme as versões. Fuxi é considerado o pai de todos os chineses, o Dragão Azul, como lhe chamam. Simboliza o maior dos homens, o patriarca da grande nação espiritual chinesa, o dominador do Cavalo-Dragão (龍馬 lóng-Mǎ), que emergiu das águas do Rio Amarelo (黃河 Huáng Hé) , tendo-lhe concedido a possibilidade de decifrar os oito trigramas fundamentais da cultura chinesa, que formam a base do Clássico das Muações ( 《易經》 Yìjīng), por entre o emaranhado da sua crina.
Fuxi e Nüwa (女媧) eram metade humanos, metade dragões, como se pode verificar pelas representações deles. Por isso, foram os criadores supremos: Fuxi da cultura chinesa e Nüwa dos seres humanos (女媧造人Nǚwā zào rén) .

II – O Dragão no Clássico das Mutações

Entre os oito trigramas que são o fundamento do Clássico das Mutações, e condição de possibilidade dos 64 hexagramas, o mais importante é o do Céu ( 乾 Qián), composto pela força conjugada dos dois trigramas do Céu. Vale a pena seguir a apresentação e desenvolvimento deste hexagrama, tal como nos é oferecido por John Blofeld . O Céu surge como o princípio criativo, cujas principais características são ser masculino e ativo. Este princípio é personificado pelo dragão, o sacerdote-rei, que une o céu e terra, por via da participação em ambos os princípios.
O primeiro hexagrama simboliza as forças celestiais em ação e o labor da pessoa superior sobre si própria. Aqui refere-se, numa leitura taoista, a pessoa superior, porque para os confucionistas e para a tradição chinesa, se menciona claramente um homem superior, representado por um dragão que voa nos céus. Eis então o texto de Qian (乾):

O Princípio Criativo. Sucesso Sublime! A persistência na causa certa traz recompensa. 9 para o lugar do fundo: o dragão escondido evita a ação. 9 para o segundo lugar: o dragão é visto a céu aberto; é vantajoso visitar um grande homem. 9 para o terceiro lugar: o Homem Superior ocupa-se o dia inteiro e a noite encontra-o completamente alerta. A desgraça ameaça – sem erro. 9 para o quarto lugar: é preciso saltar nas profundezas, sem erro! 9 para o quinto lugar: o dragão voa nos céus; é vantajoso visitar um grande homem. 9 para o lugar de topo. Um dragão voluntarioso – que desgraça! 9 para os seis lugares – Um bando de dragões sem cabeça – felicidade.
(乾卦《初九:元亨利貞/潛龍無用; 九二:見龍在田,利見大人; 九三:君子終日乾乾,夕惕苦厲,無咎; 九四或躍在淵,無咎;九五飛龍在天,利見大人。上九:亢龍有悔;見君龍無首,吉》)

A análise das linhas em consonância com a interpretação de Blofeld e com a tradição chinesa, mostra-nos o que se espera do dragão chinês quando este se identifica com o rei e/ou o homem superior. Ele é o governante por excelência: no céu, enquanto princípio divino; na terra por incorporação do mesmo. Há, porém, um trabalho de construção ética que deve ser realizado para que o dragão terreno, o governante sábio e santo, possa atuar. Assim, e como indica a primeira linha, o dragão está a construir o seu ser, trabalha sobre si próprio, oculto dos seus eventuais pares humanos. O diálogo é interior e as pontes para o exterior são feitas por meio da captação das suas raízes e cruzamento com as energias universais do céu e da terra. Após este trabalho a solo, o dragão na segunda linha, sai para o mundo dos seus pares, procurando a orientação daqueles cuja sabedoria é capaz de o iluminar. Depois regressa a si mesmo na terceira linha, de forma a realizar os princípios e ensinamentos recebidos do que escolheu para mestre.
Na quarta linha o dragão que almeja chegar a rei-sábio deve saltar nas profundezas. Este salto é importantíssimo. Através dele, separa-se do pior de si mesmo e, por isso, também se pode afirmar que se ultrapassa, salta sobre si e, simultaneamente, salta em si, conseguindo alcançar o mais profundo da sua natureza, o que lhe permitirá a fusão com a verdadeira realidade. A partir do momento em que dá o salto, a que no Ocidente chamaríamos de fé, libertou-se. No entanto, nesta altura volta a correr grandes riscos, porque uma iluminação à solta é, na tradição filosófica chinesa, algo de muito perigoso, por isso o dragão é aconselhado na quinta linha a procurar outra vez a orientação daqueles que escolheu para seus mestres, já que a finalidade não é expressar a sua criatividade e estilo próprios, mas integrar-se numa comunidade, a que deve servir de exemplo, sem se impor.
Na linha do topo adverte-se que um dragão voluntarioso pode provocar grandes dissabores a si e aos outros. Esta leitura política do primeiro hexagrama não é abusiva, sendo confirmada pela interpretação conjunta das seis linhas, onde somos informados que a felicidade é obtida quando um conjunto de dragões voa sem cabeça, ou melhor, sem cabecilha. Do ponto de vista político, a ditadura de um iluminado (usual na China antiga) é, no maior dos Clássicos da Filosofia Chinesa, fortemente desaconselhada. Nenhum sábio deve cultivar-se apenas para si próprio, nem acreditar que é dono absoluto da verdade. O que foi e o caminho que conseguiu percorrer até à sua libertação ética, política e espiritual ganha pleno sentido quando é conciliado e harmonizado com o conjunto de dragões nos quais se deve incluir. Este bando de seres superiores, chamemos-lhes assim, não tem líder, sendo essa a condição para haver boa sorte, já que segundo o conjunto das linhas um cabecilha traz má sorte.
Pode concluir-se nesta interpretação do Princípio Criativo, título para o primeiro hexagrama, que a nação espiritual chinesa, embora dependa de um primeiro dragão mítico azul, Fuxi, se constitui e desenvolve quando um conjunto de seres, que se trabalha eticamente para fins políticos, se reúne. Após o que se erguem nos céus espirituais em conjunto, contribuindo com o que de absolutamente próprio conseguiram alcançar, a fim de atingir uma postura equilibrada e exemplar. Esta deve servir de exemplo a todos os seres que os observam da terra e lhes contemplam o voo.
O conjunto de dragões «sem cabeça» pode ser visto como a primeira exigência ético-política do Clássico das Mutações para que se dê a transformação certa aos níveis social e político. Os governantes-sábios devem, por isso, empenhar-se no desenvolvimento das suas virtudes, entre as quais constam as quatro essenciais do governante: a bondade ou Humanidade (仁 Rén), a conduta perfeita, que depende da obediência aos Ritos (禮Lǐ ), a Justiça (義 Yì) e a Sabedoria (智Zhì).

III – O Dragão Alquímico e a Geomância

Onde ir procurar a raiz da leitura alquímica do dragão chinês? Há que regressar ao Clássico das Mutações para o fazer. Simplesmente não é possível recorrer ao apoio da linha confucionista, que nos transmite sobretudo uma leitura ético-política dos hexagramas, tal como a explorada no ponto anterior, encontrada em grandes sinólogos como Richard Wilhelm.
O dragão alquímico revela-se nos comentários da linha taoista ao Clássico das Mutações, por exemplo o de Thomas Cleary.
O dragão celestial é apresentado na explicação do autor como o representante do Céu criativo, que desenvolve e dá fruição. Ele é o princípio divino que na terra age através do sábio. É divino sem deixar de ser natural, é o poder máximo de transformação e criatividade. É a primavera celestial que comanda a telúrica. A título de criador, atua, iniciando e consumando os processos, sempre em ligação com a natureza exterior, representada pelas quatro estações; mas também com a nossa natureza interior e energia que nos percorre: esta energia enraizada no primordial permanece oculta no temporal. Não pertence mais aos sábios, nem menos às pessoas comuns (…) Fundamentalmente cria, desenvolve e traz fruição e consumação espontaneamente .
A energia alquímica surge logo na primeira linha yang (阳) do hexagrama celestial : Dragão escondido: não se usar .
O nosso dragão interior prepare-se em estado de retiro para o casamento com o tigre, porque nós, tal como a terra, possuímos duas energias, figuradas no tigre e no dragão. O tigre é o representante da energia feminina, telúrica e escura, pesada e opaca, e o dragão, o representante da energia masculina, celestial, leve e clara.
Ora o dragão não pode prescindir do tigre. Do ponto de vista geomântico e alquímico precisa absolutamente dele para complementar as paisagens exterior e interior. Na segunda linha, quando o dragão sai de si para o exterior, digamos para um passeio na campo ou na natureza, ele vai à procura de uma pessoa grande, um (a) mestre que o possa orientar para a criação do seu embrião espiritual, por meio de um trabalho realizado em conjunto sobre a sua força celestial, a fim de libertar o halo espiritual que o conduzirá à longevidade e à imortalidade. Por isso labora empenhadamente na terceira linha para a realização da união de forças feminina e masculina ao nível telúrico, isto é, abdominal. A fim de o casamento entre o tigre e o dragão seja bem-sucedido, nenhuma das forças pode prevalecer. Elas devem encontrar-se em perfeito equilíbrio, para que seja realizado novo encontro de forças no coração, situado na quarta linha, após o dragão ter saltado sobre o abismo em si mesmo . A partir daqui o dragão está na zona do espírito. Para realizar o salto, teve de espiritualizar o tigre, que o vai auxiliar a voar em céu aberto. Ele sente-se, na quinta linha bem, livre e planando totalmente iluminado. Na tradução de Cleary (1986:42) O dragão está no céu: é benéfico ver uma grande pessoa , que lhe facultará a continuação do trabalho sobre as energias e mais uma transmutação espiritual do yin em yang, um terceiro casamento espiritual, ao nível da mente, criador do corpo fora do corpo.
Sem orientação espiritual, o dragão corre o risco de se desequilibrar e cair na tentação mortal (porque o reconduzirá à terra), exposta na sexta linha, que é a da arrogância .
Se vencer esta última tentação, consegue conjugar, como nos indica a leitura conjunta do hexagrama, a sua imagem espiritual com muitas outras, inserindo-se harmoniosamente num conjunto de dragões que voa sem cabeça.

Bibliografia

Alves, Ana Cristina. 2022. Cultura Chinesa, Uma Perspetiva Ocidental. Coord. Carmen Amado Mendes Coimbra: Almedina e CCCM.
___________. 2004 Representações do Feminino na Cultura Chinesa. A Mulher nos Discursos Filosófico, Religioso e Sociopolítico (tese policopiada).
___________. 2004.Uma Viagem de Muitos Quilómetros Começa por um Passo. Macau: Cod.
Blofeld. 1965. The Book of Change. A New Translation of the Ancient Chinese I Ching (Yi King), with detailed Instruction for its Practical Use in Divination. London: Georg Allen & Unwin LTD.
Cleary, Thomas (trad.).1986. The Taoist I Ching. Boston & London: Shambala.
Legge, James (trad). 1990. The I Ching. The Book of China. Singapore: Graham Brash.
羅慷烈 (Luo Kanglie) 2005.«易經詳解與應用》香港三聯畫店.
Shi Zhengyu.1997. Picture Within a Picture. An Illustrated Guide to the Origins of Chinese Characters. Beijng: New World Press.
Tan Huay Peng. 1980. Fun with Chinese Characters. Singapore, Kuala Lumpur, Hong Kong: Federal Publications.
Wang Suoying, Ana Cristina Alves. 2009. Mitos e Lendas da Terra do Dragão. Lisboa: Caminho.
Wilhelm, Richard. 1989. I Ching or Book of Changes. Prefácio de C. G. Jung. London: Penguin Group.
張中鐸(ed) 1995《易經提要白話解》台南市:大孚.

11 Jan 2024

A Viagem com Características Chinesas

Ana Cristina Alves*

26 de dezembro de 2023

Os sábios da antiguidade chinesa foram grandes viajantes. As primeiras referências à viagem remontam à mais alta antiguidade chinesa e à primeira de todas as obras, O Clássico das Mutações (《易經》), atribuída ao lendário imperador Fuxi (伏羲), que terá vivido há cerca de 3 mil anos.

Recordo que ao meditar sobre a obra encontrei dois hexagramas contíguos, um deles completamente centrado no percurso, o 28º (大過卦 Dà Guò Guà) “Grande travessia”, o outro complementar, o 27º hexagrama “Cantos da Boca/Fornecendo Nutrição” (颐卦 Yí Guà). A complementaridade realiza-se a partir da conjugação dos trigramas Raio/Trovão (震 Zhèn) e Montanha艮 (Gěn) (27), Vento (巽Xùn) e Lago/Paul(兑 Duì) (28), porque entre os oito trigramas constitutivos deste livro, o Raio é oposto ao Vento e a Montanha ao Lago, numa habilidosa união entre elementos ativos, Raio e Vento, e elementos passivos, Montanha e Lago.

A transformação é operada pela ação do raio dinâmico na montanha tranquila e do vento silvante que percorre o lago silencioso. Em Visitações (2022) conjuguei estes dois hexagramas complementares numa interpretação poética que denominei “Nutrição da Grande travessia” (颐卦/大過卦), que passo a apresentar:

Um Raio no sopé da Montanha,

A boca aberta e moderadamente farta,

The corners of the mouth waiting for nourishment,

Quando se deixa escapar a tartaruga,

Ganha-se muita ruga,

十年無用,

利涉大川1

Crossing the great water

It´s a blessing,

Brings general happiness.

É preciso não reter,

Deixar-se ir,

Por todos distribuir.

Preponderance of the great,

Go away, don´t wait.

O Lago cresce sobre as Árvores,

O Vento sopra com delicadeza,

Apontando o caminho a seguir,

É avançar sem desistir,

Quem sabe mais à frente

Se casa a graça com a desgraça.

(Alves, 2022: 151)

Pode-se interpretar a viagem, “a grande travessia” como uma forma de nutrição e desenvolvimento à maneira da tradição proverbial chinesa em “Os Oito Imortais atravessam os mares, cada qual revelando os seus poderes mágicos” (八仙過海各顯神通Bāxiān guò hǎi gè xiǎn shéntōng), eles ao passarem pelo mundo, cruzam-no sobrevoando o oceano em despique para revelarem os seus dons espirituais: um tem uma espada mágica, o outro um leque, há ainda quem possua uma flor de lótus, um cesto de flores, uma flauta, uma cabaça, uma mula branca, mas atenção a um deles que ostenta castanholas e encarna a figura do viajante, ele é Cao Guojiu(曹國舅Cáo Guójiù). Viveu, variando as versões, na dinastia Song (Duane, Huichinson 1998:73) ou Yuan (Lai, 1977: 27), era o irmão mais novo da rainha. Seguindo a versão de T.C.Lai, Cao Guojiu ter-se-á saturado da vida palaciana e resolveu conhecer mundo, ajudado por uma medalha oferecida pelo próprio governante, com a inscrição «O imperador deseja que o seu cunhado seja tratado, vá onde for, sempre como se estivesse acompanhado por Sua Majestade» (Lai, 1977:27). Quando saiu do palácio, Cao Guojiu correu a terra, desejando cultivar o Tao, sempre protegido pela sombra influente do Imperador, até que um dia Lü Dongbin ( 吕洞宾Lǚ Dòngbīn), um dos patriarcas imortais, disfarçado de mestre taoista, lhe fez ver a incorreção do comportamento e ele imediatamente deitou fora o salvo-conduto, em troca das bênçãos imortais. As castanholas são o seu símbolo. Elas produzem um som celestial que silencia tudo o resto para as escutar. Em chinês chamam-se castanholas Yin Yang (陰陽板Yīn Yáng bǎn), tendo por isso o maior dos poderes criativos do ponto de vista espiritual. A verdade é que este imortal só conseguiu libertar-se da esfera humana, quando em viagem dispensou favores e proteções mundanas, devotando-se por inteiro ao seu aperfeiçoamento. T.C. Lai relata ainda um episódio em que o viajante é testado por outros dois imortais; que querem saber se já o podem considerar entre pares. Lü Dongbin, o imortal da espada mágica, e Zhong Liquan ( 鈡离權 Zhōng Líquán ), o imortal do leque que proporciona longa vida aos vivos e ressuscita mortos. Questionam-no sobre o que ele está a cultivar nas suas andanças pelo mundo terreno, ao que ele responde que se encontra a cultivar o Tao (道 Dào), a Via ou Caminho. E eles prosseguem, inquirindo pelo Tao, ao que ele responde apontando para o céu; os imortais continuam: “‘Onde está o céu’?” (Lai, 1977: 29) e ele aponta para o coração, passando o exame com brio, porque “tinha entendido o Caminho” (Ibidem).

Filósofos taoistas como Laozi (老子III. a.C?) ou Zhuangzi (莊子, c. 369 -286 a. C) possuem biografias muito semelhantes às de Cao Guojiu, sobretudo Zhuangzi, que recusa sistematicamente imiscuir-se na esfera mundana, rejeita propostas ministeriais ao serviço da ordem estabelecida, levando uma vida apagada e pobre, mas recompensadora do ponto de vista espiritual, já que faz a apologia do sábio modelar que se pauta pela quietude e afastamento da ordem político-social, deambulando livremente como uma pequena borboleta esvoaçando de flor em flor. Assim podemos ler, logo no capítulo inicial da obra homónima, intitulado “Vagueando em Absoluta Liberdade” sobre a metamorfose proporcionada pelo movimento que transforma peixes Kun (鲲) em pássaros gigantescos Peng (鹏), que voam do Mar do Norte ao Mar do Sul, também conhecido por Lago Celestial. A própria vida pode ser encarada como uma viagem de longa duração, e quanto mais longa melhor, sendo os percursos mais excelsos realizados por seres santos ou filósofos como Liezi (列子), também citado neste capítulo (Zhuangzi: 1999:7): “que viaja montando o vento de um modo livre e descontraído, volta à terra em quinze dias, nunca se deixando enredar na sorte mundana; porém, embora ele não tenha que andar, depende de algo.” (夫列子禦風而行,泠然善也,旬又五日而後反。 彼於致福者,未數數然也。 此雖免乎行,猶有所待者也。)

Com a mudança de escola filosófica para a confucionista, que atualmente continua a reger o mundo chinês, agora mais cosmopolita e dialogante através dos seus institutos Confúcio, a viagem ganha tonalidades terrenas e pragmáticas, como viria a suceder no caso de Confúcio, na esperança de conseguir interessar os governantes da época pelos valores morais. Confúcio, entre os chineses o Mestre Kong (孔子), viveu de 551 a 479 a. C. O seu nome próprio era Qiu (丘) e o seu cognome Zhongni (仲尼). Nasceu no Sul da província de Shandong em Qufu. Oriundo de uma família da pequena nobreza, trabalhou para vários senhores feudais e teve alguns cargos oficiais. Chegou a primeiro-ministro de Lu em 501, mas por pouco tempo, porque o duque trocou os seus ensinamentos pelos encantos de um grupo de bailarinas, presente do duque de Qi, interessado em enfraquecer o estado de Lu, já que se tornara bastante forte. Desiludido com o mundo, regressou à sua terra e passou a dedicar-se exclusivamente à atividade pedagógica, iniciada em 497, tendo chegado a reunir 72 discípulos. Viveu os três últimos anos em Qufu, na sua terra natal e faleceu em 479 a. C. No entanto, o movimento de viagem é enaltecido, na obra dialogada que nos deixou, registada através dos seus discípulos, os Analectos (論語 Lúnyǔ), que inaugura da seguinte forma (《論語 • I-1》):

子曰:「學而時習之,不亦說乎?有朋自遠方來,不亦樂乎?人不知而不慍,不亦君子乎?」

Confúcio disse: “É ou não um gosto poder praticar em tempo devido o que se aprendeu? É ou não uma alegria receber amigos vindos de longe? Será um cavalheiro aquele que se ofende quando não se é apreciado?”

Um cavalheiro (君子 Jūnzǐ), ou melhor, um futuro governante, só terá a ganhar com o confronto de ideias, que é possibilitado pela abertura do mundo e pelos viajantes que chegam desafiando com suas perspetivas diferentes. A viagem torna-se assim na tradição confucionista uma descida à terra, já não deambulam apenas os imortais e santos, cujas mentes vagueiam pelo cosmos, outros sábios mais pragmáticos encetam as suas travessias para dar a conhecer ao mundo princípios filosóficos e, no caso do Confucionismo, valores morais.

Atualmente, os chineses viajam à procura de melhor vida. Andam por dentro e por fora da China. Quando passam de umas províncias para as outras são considerados imigrantes, como se pode ler em Compreender a China Contemporânea: um dicionário (2009), dirigido por Thierry Sanjuan, no artigo de Isabelle Thireau, e têm bastantes problemas por causa do sistema de registo de residência (戶口簿hùkǒu bù) “São assim qualificados como imigrantes e considerados problemáticos os indivíduos que não residem onde estão oficialmente domiciliados” (Thireau, 2009: 183/184). Contudo, dadas as assimetrias entre o campo e a cidade, sobretudo das megapolis, como Xangai, Beijing, regiões administrativas especiais, etc., as pessoas migram para tentar uma melhor sorte, mas nem sempre assim sucede, quando possuem menores recursos económicos ou culturais, ficando à mercê de direitos de residência temporários, que as obrigam a frequentes deslocações fora do domicílio oficial, e a enfrentarem situações salariais e sociais mais precárias, suscitando esta mobilidade geográfica desconfiança por parte dos residentes permanentes. De qualquer modo, dado o declínio populacional na China, a imigração é necessária, ainda que os imigrantes nem sempre sejam bem acolhidos, pelo que se têm vindo a associar de modo a serem capazes de dar resposta à pressão social encontrada: “Agrupam-se em alguns quarteirões em função da origem geográfica comum, criando escolas para os seus filhos.” (Thireau, 2009: 185), tal como encontramos estabelecimentos de ensino para filhos de chineses em Portugal. Aqui há concentração de chineses em certas zonas do país, como Lisboa (Martim Moniz, Almirante Reis), Porto, Faro, Aveiro, Braga e Leiria.

Porém, mudou-se de registo, porque se passou da imigração para a emigração. O que tem trazido a segunda leva de emigração chinesa ao país é a mesma vontade de melhorar as condições de vida que impulsiona a migrar dentro de portas. Desta vez chegam-nos quadros qualificados, com cursos superiores, empresários e empreendedores que pretendem viver confortavelmente fora da terra de origem, de acordo com os melhores padrões das classes médias e médias altas da Europa desenvolvida ou dos Estados Unidos da América.

De acordo com os dados de Henley & Partners no Global Private Wealth Migration Report 2023, conta-se com 13 milhões e quinhentos mil chineses a emigrarem ao longo de todo este ano. Os chineses partem cada vez em maior número, talvez para realizarem o dito “nascer como um dragão, viver como um tigre” (生龙活虎 shēnglóng-huóhǔ), significando esta aliança do par biológico primordial chinês, muito aplicada na geomancia, cumprir um projeto existencial repleto de energia (do dragão) e vigor (do tigre), onde enriquecer não parece ser decisivo, já que muitos apenas emigram, porque é mais fácil viver-se fora uma vida comum (“很多人移民国外并不是为了活得大富大贵,只是为了在国外更好地做一个普通人”2).

Na realidade, a migração, seja dos que vêm de fora, como emigração, ou dos que são recebidos de dentro, a título de imigração, pode beneficiar os que migram, criando novas oportunidades de vida e riqueza para o país que acolhe esta força migrante, através das suas contribuições. As misturas fornecem ainda amplas possibilidades demográficas e culturais, favorecendo cenários multiculturais tão enaltecidos nos nossos dias; mas como é óbvio pode ter aspetos negativos, também muito enfatizados por determinados setores políticos, por causa do impacto negativo nos salários, da criação de desemprego, da pressão nos serviços públicos, do aumento das rendas e da potencial instabilidade social.

Para o que migra, emigra ou imigra é a abertura de um novo caminho, mesmo quando é forçada pelas circunstâncias, como sucedeu com o exílio de grandes homens na China antiga, por exemplo, o poeta Su Dongpo (蘇東坡, 1037-1101), que se transformou num Mandarim andarilho, menos por vontade própria e mais por ditame imperial. No entanto, muitas das províncias para onde imigrou revelaram-se verdadeiras oportunidades de vida, como quando esteve em Cantão. Pode ler-se no seu último poema:

廬山煙雨浙江潮,未到千般恨不消。

到得還來沒事,廬山煙雨浙江潮。

Aqui apresentado na excelente tradução de António Graça de Abreu (2023: 171):

Névoas de Lushan, marés de Zhejiang,

Antes da viagem, nostalgias mil,

Viajei muito, mas tudo muda, tudo permanece.

Névoas de Lushan, marés de Zhejiang.

O movimento de viagem é enaltecido, por ter um efeito terapêutico, é um espanta tristezas eficaz, mesmo que depois voltem os amargos de mente ou nunca tenham partido, a verdade é que o encontro com novas paisagens, vivências, e descobertas que vão sendo feitas ao longo do caminho, bem como as surpresas trazidas por novas relações, permitem uma mudança de cenário que atua positivamente no espírito e na vida de quem a realiza, ou até na nova terra onde se é recebido, ainda que o poeta viajante tenha plena consciência de que “tudo muda, tudo permanece”. Ontem e hoje assim se pensa no País do Meio, tudo se transforma na terra e nas gentes, mantendo-se, porém, a raiz que permite dizer sem contradição que o essencial fica na mesma, sendo a própria vida uma travessia de afastamento e/ou de completude, bem como de retorno num movimento regressivo ao fundamento. Para os chineses, estamos sempre a viajar, mesmo quando não saímos do lugar, à maneira do filósofo, do santo e do imortal nas suas caminhadas espirituais.

Bibliografia

@Aavest 美股预测.2023. 《移民的优点和缺点》 (Benefícios e inconvenientes da migração). Youtube. Disponível em: https://aavest.com/pros-and-cons-of-immigration/, acedido a 27 de dezembro de 2023.

Alves, Ana Cristina. 2022. Visitações. Fafe: Labirinto.

______________. 2005. A Sabedoria Chinesa. Cruz Quebrada: Casa das Letras.

Confucius «孔子».1994. Lun Yu «论语». Analects of Confucius. Ed. Bilingue, Beijing: Sinolingua.

Duane, O.B; N. Huichinson. 1998. Chinese Myths & Legends. London: Brockhampton Press.

Graça de Abreu, António (Org. e Trad.) 2023. Su Dongpo, Poemas. Lisboa: Grão Falar.

广东省 .2023.“不如换一个地方生活?2023年全球私人财富迁移报告发布”. Disponível em: https://www.sohu.com/a/716176593_120005859, acedido a 27 de dezembro de 2023.

Lai, T.C. 1977. The Eight Immortals. Hong Kong: Swindon Book Company.

Oliveira, Jorge Costa. 2023. “Declínio populacional e imigração – na China e noutros países”. Diário de Notícias. Disponível em https://www.dn.pt/opiniao/declinio-populacional-e-imigracao—na-china-e-noutros-paises-15879077.html:

Wilhelm, Richard (Trad.). 1989. I Ching or the book of changes. London: Arkana, Penguin Books.

Wong, Eva. 2001. Tales of Taoist Immortals. Boston & London: Shambhala.

Zhang Fengyang. 2016. Os Chineses em Portugal: as razões da sua vinda e a sua situação atual. Dissertação de Mestrado em Estudos Interculturais Português/Chinês, orientada por Manuel Gama e Sun Lam. Disponível em: https://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/44336, acedido a 26 de dezembro de 2023.

*Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM

10 anos sem sentido,/É vantajoso atravessar o grande mar.

广东省 2023“不如换一个地方生活?2023年全球私人财富迁移报告发布”. Disponível em:

https://www.sohu.com/a/716176593_120005859

4 Jan 2024

Sinologia e Tradução

Tudo muda, tudo é tudo, tudo é nada outra vez,

neste mundo a vida como um jogo de xadrez.

Su Dongpo, “Ao modo de Li Bai” 2023:144

Neste espaço se reflete sobre sinologia e tradução a partir da obra traduzida por António Graça de Abreu: Su Dongpo, Poemas, publicada em Lisboa, na editora Grão-Falar, 2023, estando também de parabéns o editor Carlos Morais José.

Antes de tudo o resto, o realce para as delicadezas de Graça de Abreu, o livro é dedicado ao seu pai chinês Wang Renlun (王仁伦, 1929-2023), cuja paternidade o poeta e tradutor herdou por via da mulher. António Graça de Abreu (1947-) não é um noviço nem na poesia, já que entre as suas criações poéticas se contam os livros de poesia: China de Jade, 1997, China de Seda, 2002, Terra de Musgo e Alegria, 2005, China de Lótus, 2006, Cálice de Neblinas e Silêncios, 2008, A Cor das Cerejeiras, 2010 e Lai Yong, Bernardo e outros Poemas, 2018; nem na tradução poética tendo editado as antologias Poemas de Li Bai (1990, 2022), Poemas de Bai Juyi (1991), Poemas de Wang Wei(1993), Poemas de Han Shan (2009), Poemas de Du Fu (2015) e Poemas de Su Dongpo (2023), publicadas em Macau e, esta última já em Portugal. Pela tradução dos Poemas de Li Bai, António Graça de Abreu obteve o Prémio Nacional de Tradução 1990, do PEN Clube Português/Associação Portuguesa de Tradutores.

Na obra Su Dongpo, Poemas começa por nos brindar, como é habitual nos seus trabalhos, com uma biografia do poeta em estudo, Su Shi (蘇軾1037-1101), cujo nome artístico é Dongpo(東坡), “A encosta do Leste” , enquadrada historicamente neste poeta da Província de Sichuan. A obra encontra-se ainda repleta de notas de Rodapé muito elucidativas sobre as circunstâncias de vida do “Mandarim nómada” (Graça de Abreu, 2023:16), de uma grande integridade que ao opor-se às reformas de Wang Anshi (王安石), terá transitado do “homem honesto a tolo” de acordo com a sabedoria confuciana (Graça de Abreu, 2023:20), que aconselha a dizer a verdade mas não a verdade toda, contra o que o poeta fez em memorandos ao imperador, pagando a sua frontalidade com o exílio e o degredo.

“No seu labor de mandarim local foi constante a luta de Su Dongpo para tentar diminuir o sofrimento do povo”, diz-nos Graça de Abreu (2023: 22) , pelo que os seus poemas circulavam por entre a população, já que, como nos recorda o tradutor, a poesia era uma das formas de comunicação da dinastia Song(宋朝, 960-1279), o que só lhe dificultava a vida a nível político, pelo que não se libertou do cárcere, nem do julgamento, tendo sido semi-ilibado com um pequeno cargo de intendente das águas e o posto de oficial de uma unidade de treino residual sem direito a honorários estatais. Em termos práticos, estava exilado em Hubei (湖北), na vila de Huangzhou(杭州), onde viveu por um tempo pobre e livre, como agricultor, cultivando uns “socalcos de terra” na “encosta do leste”, o nome que escolheria para o representar poeticamente. Até ser transferido para o burgo de Linju, onde começaria a sua reabilitação oficial, chegando a secretário do primeiro-ministro (翰林, Hanlin), encarregue de redigir os éditos imperiais, além de participar no processo de nomeação dos mandarins. Tinha voltado ao poder. Veio ao de cima a sua faceta mundana de bom cozinheiro, passando à história como um dos 4 cozinheiros famosos da China clássica, com o seu “porco estufado à Su Dongpo” (Graça de Abreu, 2023: 166, nota 120). Ele acreditava encontrar a alma também no vinho, aproveitando a vida como mandarim de corte, até que farto da patifaria citadina se mudou novamente para o campo, ocupando o cargo de governador de toda a província de Zhejiang (浙江) ocidental, que incluía a bela cidade de Hangzhou. Era agora o comandante militar do distrito, que ajudou a desenvolver, sendo de relevo os trabalhos mandados executar no belíssimo Lago do Oeste (西湖). Mas a sorte não dura sempre e teve de regressar à corte assumindo novamente o posto de Hanlin. Porém, desta vez com mais dificuldade, pois os seus inimigos estavam cada vez mais poderosos. É novamente destituído de todos os cargos e enviado para Huizhou em Guangdong (广东惠州), onde vive satisfeito, pelo que tal muito desagradaria aos poderosos inimigos que angariara na corte. Estes em breve o desterram novamente, desta feita para Hainan (海南), uma ilha chinesa nos confins do Sul em frente ao Vietname. Assentaria em Danzhou (儋州), onde à época as condições nada tinham de atrativo. Com a morte do lúbrico imperador Zhezong (哲宗) em 1100, terminaria o seu exílio, já que a imperatriz-viúva, reinando enquanto Huizong (徽宗) crescia, perdoou aos exilados e comutou sentenças. Na viagem de regresso levava o filho Guo e o cão “Focinho Preto”, as suas companhias ao longo de três duros anos. Já em Nanquim (南京) adoeceu, encaminhando-se suavemente para a morte. Faleceu em 1101.

António Graça de Abreu informa-nos ainda que Su Dongpo viveu nos tempos de apogeu da dinastia Song, na época em que “Apareciam os primeiros escritos sobre o fabrico da pólvora, inventara-se a bússola, pela primeira vez na história do mundo surgia o papel moeda, faziam-se rigorosos recenseamentos da população, importantes para o lançamento de impostos. Em 1030, o número de habitantes da China ultrapassava os cem milhões.” (Graça de Abreu, 2023: 13).

Acrescenta o sinólogo tradutor que a China Song prestava atenção aos poemas daquele mandarim nómada e excêntrico para tantos:

“Não podemos esquecer que a imprensa havia sido inventada na China, muito antes de, na Europa, Gutenberg ter metido as mãos a tal tarefa. Os chineses criaram pranchas de impressão onde agrupavam caracteres móveis em madeira, ou mesmo em metal que barrados com tinta eram depois prensados sobre papel de arroz, o que resultava em documentos de grande e fácil circulação. Os poemas, as gravuras, as folhas de livros eram impressos com facilidade e em grande quantidade, e ainda em vida de Su Dongpo as tiragens dos seus poemas chegaram a ser de milhares e milhares de exemplares.” (Graça de Abreu, 2023: 42)

Seguimos com interesse as alusões biográficas do próprio tradutor, completamente identificado com o poeta, pode-se então ler na nota 6 “Bafejado pela sorte, com a complacência dos deuses, este raro tradutor da poesia de Su Dongpo, desceu já por cinco vezes o rio Yangtsé, entre 1983 e 2018, antes e depois da construção da barragem das Três Gargantas. São lugares de uma grandiosidade asfixiante, de inefáveis espantos e de diálogos semi-proibidos, permitidos, de longe a longe, com singulares divindades que descem das montanhas para saudar os homens.” (Graça de Abreu, 2023: 14).

O Prefácio de Graça de Abreu é escrito por quem conhece muito bem a China tornando-se por isso numa extraordinária dupla narrativa de viagens, a do autor e a do tradutor, ambas descritas com grande mestria poética.

Quanto à obra, os sinceros parabéns, ficando a aguardar, tal como sucedeu com os premiados Poemas de Li Bai (1990, 2021), uma edição bilingue.

Quanto à tradução, o tradutor Graça de Abreu confessa “Quase nada sei, e contemplo o universo todo na arte abstrusa do tradutor. Uns pingos de clarividência, tentar conhecer umas resmas largas de caracteres, a sequência das palavras, passear pela língua chinesa, entender, não entender, espreitar cuidadosamente traduções inglesas e francesas.” (Graça de Abreu, 2023: 51). Confessa-se amigo do seu amigo poeta. Reflete sobre o trabalho de tradução, declarando que tem de comunicar na língua de chegada a “raiz original das palavras e um mesmo sentir” (Graça de Abreu, 2023: 52), ou seja, “a delicadeza, a suavidade, o encanto e a frescura da grande poesia clássica chinesa”(Ibidem). Apoia-se numa citação de Giorgio Sinedino para defender a coautoria do trabalho de tradução, feito a 4 mãos, as do autor e as do tradutor. Recorre também aos três grandes princípios de Yan Fu(嚴復1854-1921), a fidelidade (信 xìn), a fluência e legibilidade (达 dà) e a elegância (雅 yǎ)numa tentativa de procurar harmonizar as línguas de partida e de chegada. E adiante especifica, apoiando-se na especialista em Su Dongpo, Min Xiaohong (1963-), que a tradução deve apenas ser fiel ao sentido e, numa alusão a Nuno Júdice em nome de George Steiner, refere o ato de “contrabando” existente na tradução, onde para Nuno Júdice se verifica uma velada “traição”. (Graça de Abreu, 2023: 53) O tradutor conclui “No que me diz respeito, sei que no poema traduzido tem de estar a voz e o sentir do poeta chinês, mais a minha própria leitura poética, em língua portuguesa” (Ibidem). Expõe que se apropria do espaço poético dividindo-o com Su Dongpo, ombreando com nomes como o de Arthur Waley (1889-1966), António Feijó (1859-1917), Gil de Carvalho e Adelino Ínsua, mas o livro que aqui se traz conta com 160 poemas, sensivelmente metade da poesia de Su Dongpo ( Graça de Abreu, 2023: pp. 54/55).

Dá-nos o seguinte exemplo de tradução na forma de uma quadra (绝句 juéjù ) neste caso de sete sílabas (七绝Qījué),

中秋月

暮 云 收 尽 溢 清 寒

银 汉 无 声 转 玉 盘

此 生 此 夜 不 长 好

明 月 明 年 何 处 看

Lua do Meio Outono

Anoitece, novelos de nuvens desaparecem na limpidez fria do céu,

em silêncio, a Via Láctea dá a volta na abóbada de jade.

Se esta noite, no nosso existir, não fruímos prazeres,

no próximo ano estaremos onde, contemplando o luar?

Vai-se procurar analisar algumas das técnicas de tradução empregues nesta coautoria, menos de contrabando, mais de empatia, já que uma boa tradução implica um entendimento profundo do autor, uma partilha de sentires e ideias e, no que respeita à tradução poética, uma comunhão ou identificação estética, no entanto não são a mesma pessoa, ainda que autor e tradutor possam pertencer a idêntica comunidade espiritual. E isso nota-se por exemplo em aspetos formais. Su Dongpo recorre a rimas, sobrevoadas pelo tradutor (寒 rima perfeitamente com 盘 e imperfeitamente com 看 ). O ritmo da rima é substituído por um trabalho pictórico, vejamos então verso a verso. No primeiro verso, Anoitece, novelos de nuvens desaparecem na limpidez fria do céu (暮 云 收 尽 溢 清 寒) , “nuvens juntas”, recebem uma acréscimo linguístico figurativo, como que uma pincelada a salientar a ideia em “novelos de nuvens” e depois é introduzido o substantivo “céu”, evidenciando o forte trabalho criativo por parte do tradutor que conjuga a “limpidez fria” com o céu. No segundo verso da quadra, em silêncio, a Via Láctea dá a volta na abóbada de jade(银 汉 无 声 转 玉 盘) há uma apropriação metafórica, apresenta-se a leitura sugestiva da via láctea silenciosa, enquadrando-a no prato de jade, que é interpretado como a “abóbada celeste” onde gira a via láctea, numa outra interpretação de um qualquer outro tradutor no seu papel de coautor, a via láctea podia ser o próprio prato de jade a girar. No terceiro verso, Se esta noite, no nosso existir, não fruímos prazeres (此 生 此 夜 不 长 好), há um acréscimo de sentido, o poeta- tradutor interpreta a transitoriedade (不长) ligada aos prazeres, e não à noite e à vida (此生此夜)fazendo uma apologia do gozo e não da efemeridade da existência, tendo optado traduzir hao (好) por “fruímos prazeres” e não pelo adjetivo “boa”, ligando-o à noite e à vida, pelo que esteve lado a lado com o autor a compor um sentido, permitido sem dúvida, já que Su Dongpo tinha apreço pelos prazeres da vida, mas também pela transitoriedade da existência tão bem figurada na ideia de “nuvens passageiras”. No quarto e último verso, no próximo ano estaremos onde, contemplando o luar? (明 月 明 年 何 处 看) dá-se uma tradaptação, ou seja, a tradução do sentido do verso, adaptando-o à língua portuguesa com a introdução do sujeito: estaremos onde (何处看).

Resumindo nesta tradução poética o tradutor por sua autoria acrescentou termos, interpretou metáforas, optou por sentidos e adaptou o estilo da poesia clássica chinesa à portuguesa. E andou bem? Com certeza porque na realidade é um coautor de pleno direito.

Refere Su Dongpo citado por Graça de Abreu a propósito de um outro poeta clássico chinês, Wang Wei (王维,701-761), “Os seus poemas são pinturas, as suas pinturas são poemas” (2023:35), este também foi traduzido pelo sinólogo na obra Poemas de Wang Wei (1993). Vejamos um exemplo retirado desta obra (Graça de Abreu, 1993: 128/129):

渡河到清河作

汎舟大河裏

積水窮天涯

天波忽開拆

郡邑千萬家

行復見城市

宛然有桑麻

回瞻舊鄊國

淼漫連雲霞

Ao atravessar o rio, chegando a Qinghe1

Atravesso o rio num barco de junco,

 vastas águas estendendo-se até aos confins do céu.

De súbito, abre-se o céu, rasgam-se as ondas,

 eis a cidade, centenas de lares.

Avança o barco, o povoado diante de mim,

como tufos de amoreira ou prados de cânhamo.

Olho para trás. Lá longe, o meu país natal,

 a imensidão das águas entre brumas e nuvens.

Neste belo quadro poético, volta-se a encontrar a mesma coautoria empática por parte do tradutor, que vai pintando palavras com o poeta chinês ao longo da folha portuguesa. Esquecem-se rimas perfeitas e imperfeitas (涯/麻; 拆/家/霞), privilegiando a visualidade musical, acrescentam-se palavras como pinceladas a enfatizar os elementos pictóricos, por exemplo, “junco” a “barco” no primeiro verso Atravesso o rio num barco de junco (汎舟大河裏); reduzem-se sentidos no quarto verso, optando por centenas em vez de milhares eis a cidade, centenas de lares (郡邑千萬家); introduz-se o sujeito, ausente na poesia nos quinto e sétimo versos Avança o barco, o povoado diante de mim (行復見城市) e Olho para trás. Lá longe, o meu país natal (回瞻舊鄊國); escolhem-se significados no oitavo verso de acordo com o sentir poético do autor em conjugação com o do tradutor, quando em lugar de “nuvens róseas” (霞)se opta por brumas a imensidão das águas entre brumas e nuvens (淼漫連雲霞). E tudo funciona às mil maravilhas para quem lê: capta-se a ideia, há musicalidade nas palavras, e somos transportados para uma paisagem sublime.

Su Dongpo é comparado a Bai Juyi (772-846), por Arthur Waley, mas ultrapassa-o em mestria de acordo com António Graça de Abreu (2023:56). Podemos encontrar exemplos de tradução do poeta que viveu entre o século VIII e IX em Poemas de Bai Juyi (1991), onde se nota que há mais tradução e menos coautoria empática (Abreu, 150-151):

花非花

花非花,

雾非雾,

夜半来,

天明去。

来如春夢幾多時

去似朝雲無覓處

Flor, não há flor.

Bruma não há bruma.

Noite vem,

A aurora vai.

Vem o sonho da breve Primavera

E vai, nuvem da manhã, sem deixar rasto.

Este é um trabalho de tradução bem-feito, mas não de transformação (o que poderia ter dado: flor sem flor/bruma sem bruma…) como tantas vezes sucede nos poemas traduzidos de Wang Wei e Su Dongpo, para estes últimos casos de coautoria gosto de pensar que o poeta António Graça de Abreu se apropriou devidamente de um espaço espiritual que naturalmente lhe pertence.

Conclui-se com o poema de Su Dongpo que espelha bem as dificuldades sentidas por este mandarim nómada, num mundo oficial chinês tantas vezes avesso à sensibilidade poética, que Graça de Abreu primorosamente nos soube transmitir (Graça de Abreu, 2023: 64):

Para o meu irmão Su Zhe, recordando o passado

em Mianchi

Semelhante a quê, a vida dos homens?

Gansos selvagens pisando a neve e a lama,

deixando suas pegadas, ao acaso,

e levantando voo, outra vez. Para leste, para oeste?

Falecido o velho monge, suas cinzas sob o pequeno pagode,

caiu o muro onde outrora gravámos um poema.

Nesses tempos, tão difícil a viagem, ainda recordas?

Longa a caminhada, imenso o nosso cansaço,

oiço ainda o zurrar da mula coxa.

Bibliografia

Graça de Abreu, António (Org. e Trad.). 2023. Su Dongpo, Poemas. Lisboa: Grão-Falar.

_______________________________2021. Cem Poemas de Li Bai 李白诗一百首. Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim.

__________________. 1991. Poemas de Bai Juyi. Macau: Instituto Cultural de Macau.

___________________. 1993. Poemas de Wang Wei. Macau: Instituto Cultural de Macau.

No sul da província de Shanxi

21 Dez 2023

Panda: Um importante símbolo chinês

Ana Cristina Alves, Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM

O Panda (熊猫 Xiōngmáo), numa tradução literal “urso-gato”, ou Grande Panda (大熊猫Dàxiōngmáo), é um importante símbolo da China. A sabedoria proverbial diz muito sobre ele. Comece-se pelo nome que nos apresenta um urso ou de um grande urso, com o qual os chineses se identificam, não apenas do ponto de vista geográfico, já foi preservado e guardado por eles como um tesouro de valor inestimável, mas porque tem uma aparência física com a qual os descendentes do Dragão imediatamente se identificam do ponto de vista afetivo, já que é grande, fofo e redondo, recebendo por isso o epíteto de “Rolante”(滚滚 Gǔngǔn).

Ele é “brincalhão e ingénuo” como indica a expressão proverbial (憨态可掬hāntài-kějū), portanto o melhor amigo que as pessoas podem ter na pândega. Além disso, a sua atitude é uma verdadeira lição de vida, já que está sempre satisfeito com o seu destino, como se lê numa outra expressão proverbial, na qual se afirma que é “tranquilo e satisfeito” (悠然自得 yōurán-zide); somam-se a estas, novas características que distinguem o seu carácter: “autocontrolado e vigilante” (泰然自若 tàirán-zìruò), não entra em pânico, permanecendo sempre alerta, o que é associado, do ponto de vista cromático, à conjugação do preto e do branco no seu pelo.

Como relata Wolfram Eberhard em A Dictionary of Chinese Symbols (1986:35), nos tempos em que Mao Zedong (毛泽东) se quis dissociar da antiga União Soviética, corria na China que havia dois tipos de mascotes, o bom panda chinês e o urso mau soviético, ao ponto de terem surgido versões da história do Capuchinho Vermelho, nas quais o lobo mau era substituído por um urso pardo russo.

O Panda proverbial é ainda “vagaroso e deliberado” (慢条斯理màntiáo-sīlǐ), mas essa lentidão pensada confere-lhe a postura correta na vida. O passo estugado, o querer fazer muito em pouco tempo, o estar constantemente a produzir e em crescimento, seja por que motivo for, material ao espiritual, conduz à morte prematura.

A deliberação deste urso na redução da velocidade, não implica excesso de racionalidade, como se pode verificar pela atitude espontânea e humilde, transmitida no modo oscilante e despreocupado como se move, “abanando a cabeça e o rabo” (摇头摆尾yáotóu-bǎiwěi).

Recebe ainda muita simpatia entre as gentes do País do Meio por ser tão “desajeitado e fofo” (笨拙可爱bènzhuō-kě’ài). Num outro dito é descrito como “inteligente e vivo” (聪明伶俐cōngmíng-línglì), vivacidade esta que deixa transparecer nos saltos, manifestando a vigorosa alegria com que atravessa a existência “aos pulos” (活蹦乱跳huóbèng-luàntiào) .

Aliás, ele vive sem qualquer atenção à sua “imagem social”, “movendo-se como se não houvesse ninguém por perto (旁若无人pángruò-wúrén), numa falta de cuidado pelo retrato, que se irá encontrar em muitos chineses.

Enquanto urso, o panda simboliza “a fecundidade masculina, a virilidade e a força” (Steens, 1980: 354). Acrescenta Wolfram Eberhard (1986: 34) que ao representar o homem, quando alguém sonha com ursos terá filhos do sexo masculino, encontrando-se ainda ligado a um imperador mítico chinês, o Grande Yu (大禹Dàyǔ), que era, tal como o seu pai, multifacetado: aquele que soube dominar o dilúvio na China, abriu canais e conduziu as águas dos rios até ao mar, a fim de os dragar, podia transformar-se num urso.

Dayu casou com Nujiao (女娇), a quem matou de susto quando assumiu o aspeto de urso, numa das suas metamorfoses essenciais, para mais facilmente abrir um túnel na montanha Xuanyuan. Ora a mulher que lhe ia levar a comida, quando viu um enorme mamífero atrás de si com a voz do cônjuge, morreu de susto: “Nujiao ouvia a voz do marido, mas quando voltava a cabeça só via um urso em sua perseguição. Apavorada, correu até à montanha Song (Songshan 嵩山), onde caiu exausta, transformando-se numa estátua de pedra” (Wang, Alves, 2009: 86). Teve ainda a gentileza de lhe deixar o filho que transportava no ventre, a pedido dele, abrindo-se a estátua por milagre celestial.

O Panda não é apenas a mascote da China, que simboliza o homem, remete ainda para importantes símbolos astrológicos, as duas Ursas, a Maior e a Menor, e dentro destas constelações de sete estrelas para cada, pode ser visualizada na Ursa Menor a Estrela Polar. O Norte, a orientação suprema, irmã da Maior, onde se firma o trono do Imperador Celestial (上帝Shàngdì).

Portanto, o Panda da terra está ligado aos seus ancestrais astrológicos, as Ursas, que conferem a orientação correta a seguir nos céus, mas como firmamento e terra pertencem a um mesmo cosmos, este animal pode e dever conferir o caminho a seguir no nosso planeta, onde foi eleito modelo filosófico existencial pelos chineses, sobretudo quando os protagonistas dos nossos dias surgem um tanto desnorteados, à procura de uma guia, como é o caso da narradora de “Ursa Maior”, um conto de Macau contemporâneo na voz artística feminina de Mong Shi “O tempo em que eu via a Ursa Maior parece-me agora completamente remoto (…) Escondo-me na colina do Monte, escondo-me debaixo das árvores desta pequena cidade, com os olhos enevoados, com os olhos perdidos, oriente, ocidente, sul e norte, todas as direções em confusão; mas continuo a guardar o hábito de erguer os olhos no céu à noite à procura da Ursa Maior, a constelação que tenho no meu coração…” (Mong: 1998: 183/4).

Por que razão o Panda é ainda modelo existencial na China? Antes de mais, porque nos primórdios, tal como os outros mamíferos da espécie, era carnívoro, mas progrediu em direção a uma nutrição vegetariana, alimentando-se essencialmente de bambu. Tal significa no oriente chinês um caminho de vida mais simples e despojado, revelando ainda grande tenacidade e adaptabilidade na luta pela sobrevivência. Além disso, é um importante símbolo de preservação da biodiversidade nesta nova era do socialismo ecológico chinês. Quase em vias de extinção, aquele que um dia andou por terras asiáticas e muito recentemente só podia ser encontrado na China, estava a perder-se não fosse o esforço constante da nova política verde assumido pelas autoridades políticas e científicas do país.

É ainda um excelente representante zoológico da cultura chinesa pela configuração cromática. A aliança entre o preto e o branco no seu corpo transporta logo a dois dos principais símbolos da filosofia chinesa, o Yin (阴 Yīn) feminino e Yang (阳 Yáng) masculino, que vemos também representados no emblema do Taiji (太极 Tàijí ), o “Supremo último” com que o país se exporta em termos de Soft Power pelo mundo. Ora o emblema, que surgiu no âmbito da Alquimia Interior, revela a via espiritual para obtenção do autodomínio, controlo espiritual, longevidade e até imortalidade. Um dos representantes mais destacados da escola alquímica foi Chen Tuan (陈抟, c. 906-989), o autor do Taiji (Alves, 2007:81), que ao simbolizar o autodomínio, se cruza não apenas nas cores com as características atribuídas ao urso chinês.

Se o panda adulto representa o homem, é natural que os chineses encontrem grandes semelhanças entre as crias de pandas e humanas, o que de facto sucede, sobretudo no que respeita a emissão de sons vocálicos. Mas podemos ir mais longe nas analogias em termos filosóficos. O modelo existencial encarnado pelo panda aproxima-o do estilo de vida proposto pelos taoistas. Ele é ingénuo, brincalhão, porém, ao mesmo tempo, alerta na sua espontaneidade. Oferece-se à existência despojado de artifícios. O seu vegetarianismo remete-nos para os três tesouros taoistas: a compaixão, a frugalidade e a simplicidade (《道德经•67》我有三宝 /持而保之/ 一曰慈/ 二曰俭/ 三曰不敢为天下先). E a maneira de estar na natureza deste mamífero recorda o modelo de recém-nascido oferecido pela experiência biográfica de Laozi (老子), inspirando assim silenciosamente os que o quiserem seguir, a partir do capítulo 20 do Clássico da Via e da Virtude (《道德经•20》), de cuja segunda parte apresento a minha tradução:

众人皆有余

Todos têm em excesso

而我独若遺

Só a mim me falta tudo

我愚人之心也哉

Sou completamente idiota!

沌沌兮

Tão obscurecido

俗人昭昭

As pessoas vêm claro

我独昏昏

Só eu sou confuso

俗人察察

Os outros são perspicazes

我独闷闷

Eu retraio-me

澹兮若海

Ondulante como o mar

恍兮若无止

Numa deriva sem fim

众人皆有以

Todos têm utilidade

而我独顽似鄙

Mas eu que estúpido e desprezível

我独异于人

Sou diferente dos outros

而贵食母

Alimento-me do seio da Mãe

Tal como um panda gigante, remato, rolando e vagueando pelos bambuais, agarrado ao seio da Mãe Natureza e ao sopro vital da terra, bamboleando-se redondo e pacífico.

Bibliografia

Alves, Ana Cristina. 2007. A Mulher na China. Lisboa Editorial Tágide.

Eberhard, Wolfram. 1986. D Dictionary of Chinese Symbols. Hidden Symbols in Chinese Life and Thought. Tradução de G. L. Campbell. Londres e Nova Iorque: Routledge.

Graça de Abreu, António. 2013. (trad.) Laozi. Tao Te Ching. O Livro da Via e da Virtude. Ed. Bilingue. Lisboa: Nova Vega.

Steens, Eulalie. 1980. Dictionaire de la Civilization Chinoise. Du neólitique au début de la dynastie Qing (XVIIe siècle). Prefácio de Alain Decaux. Editions du Rocher.

Mong Shi. 1998. “A Ursa Maior”. Sete Estrelas. Antologia de Prosas Femininas. Trad. Maria José Trigoso. Apresentação de Tong Mui Siu. Macau: Instituto Cultural de Macau.

Wang, Alves. 2009. Mitos e Lendas da Terra do Dragão. Lisboa: Caminho.

Webgrafia

形容熊猫的成语有哪些 (Quais são os provérbios descritivos do panda?). Baidu. https://zhidao.baidu.com/question/1179336365885654819.html

南宫问天2019熊猫的故事 The Story of Panda Taotao

IPanda- 《你不知道的大熊猫故事》大家的成就 (Sabes qual é a história do panda Chengjiu?) | CCTV纪录https://www.youtube.com/watch?v=DcEG2FxoDos

7 Dez 2023

Além da Grande Muralha

I Um Pouco de História

A Grande Muralha (长城 Chángchéng), estendendo-se por mais de cinco mil quilómetros entre Jieshi, Liaodong a Leste, e Lintao, atual distrito de Minxian em Gansu, a Oeste, nasceu em 214 a.C por ordem do Primeiro Imperador, Qin Shihuang (秦始皇), o unificador da China, que pôs termo ao período dos Estados Combatentes (战國, 476-221 a.C), fundando a dinastia Qin (秦, 221-206 a.C). Esta teve um propósito histórico-geográfico definido, separar os chineses, sobretudo os sedentários Han (汉), constituídos por uma população agrícola e pacífica, das tribos nómadas das estepes mongóis e da Manchúria.

Ergueu-se como uma enorme fortaleza, com tropas estacionadas em posições estratégicas. Muitos foram os chineses que pagaram com o seu sangue, a construção da muralha e por sinédoque do próprio país em cada guerreiro que caía no combate aos invasores vindos de além da Grande Muralha como os mongóis, que fundaram a dinastia Yuan (元, 1206-1368) ,e os manchus da dinastia Qing (清 1644-1911), apenas para citar os casos de invasão mais persistente.

A Grande Muralha tem o sentido figurativo imediato de inexpugnável, apesar de sabermos que não o foi. Representa ainda, pelo lado positivo, a heroicidade em louvor de todos os que contribuíram para este feito notável, que implicou a proteção da civilização e cultura chinesas por muito tempo, mas, pelo lado negativo, recorda quanto sofrimento e dor implicou a sua construção e a defesa da própria China. Por exemplo na expressão proverbial, aqui traduzida literalmente, “A Construção da Grande Muralha por Qin Shihuang será avaliada pelas gerações futuras” (秦始皇修长城-功过后人评Qínshǐhuáng xiū Chángchéng-gōngguò hòurén píng), surgindo este provérbio associado às lágrimas amargas da Menina Mengjiang (孟姜女Mèng Jiāng Nǚ), que protagoniza uma das mais belas e tristes histórias de amor da China.

Resumindo, a menina de nascimento mágico, já que vem ao mundo dentro de um melão, é partilhada por duas famílias vizinhas muito amigas, a família Meng e a Jiang, do Sul da China, de Songjiang (松江). Ostenta no próprio nome a junção das duas famílias, cresce feliz por entre carinhos e abastanças até certo dia se cruzar com um garboso rapaz, Fan Xiliang (范喜良), estudante dedicado que procurava escapar ao triste destino de recrutamento para trabalhar na construção da Grande Muralha, que já havia sacrificado muitas vidas, dadas as péssimas condições de trabalho. Foi recebido pelo casal Meng e em breve conquistava toda a gente da família, incluindo a Menina Mengjiang. Denunciado por um criado ambicioso que almejava à mão de Mengjiang, vieram os soldados que o forçaram a ir trabalhar para a Grande Muralha. Mengjiang viu-o partir inconsolável e, adiante, conseguiu convencer os pais a visitar o marido para lhe levar agasalhos, a fim de o proteger do agreste Inverno do Norte. Quando chegou à Passagem de Shanghai (山海关), contaram-lhe que o marido sucumbira aos trabalhos forçados, engrossando assim o número de mortos. O seu desgosto foi tal, que o Céu se compadeceu: “De repente, ouviu-se um enorme estrondo, a que se seguiu o desmoronamento de uma parte da muralha, numa extensão de 400 quilómetros, revelando o cadáver do noivo, entre muitos outros” (Wang, Alves, 2009:119). Enfim, o imperador ficou muito zangado com o sucedido, mas logo quis perdoar à donzela, ao ver a sua beleza, transformando-a em concubina. Ela não aceitou e acabou por se deitar ao mar, morrendo afogada.

Se a história nos fala de tanto sacrífico por amor ao país, o provérbio aponta também para uma outra dimensão, em que serão as gerações vindouras a julgar os aspetos positivos e negativos desta obra imperial, na qual os seres humanos são sacrificados à comunidade, ou melhor, ao labor em prol da colectividade. De acordo com a tradição da China, a Grande Muralha deu confiança aos chineses, sobretudo da maioria étnica Han, sentiam-se protegidos por ela, muito embora tivessem consciência do que era pedido a quem a construísse e aos que continuaram pelos séculos a defendê-la, pelo que ela se transformaria num dos símbolos fundamentais da civilização chinesa ao longo dos tempos: para os nacionais, ela representa positivamente a nação e a condição de possibilidade do próprio país; para muitos estrangeiros, figura negativamente a China como um espaço fechado, hermético, cujos habitantes são muito difíceis de entender.

2 Literatura relativa à Grande Muralha

Note-se o sentimento de muralha que nos é transmitido por Wang Wei ( 王維701-761) poeta, pintor, calígrafo, músico e eremita, traduzido por António Graça de Abreu em 1993. Na obra intitulada Poemas de Wang Wei, pode ler-se “Subindo à torre da muralha de Hebei”, um dos troços da Grande Muralha (Abreu, 1993: 46/47):

Na aldeia, sobre a falésia de Fu

o Pavilhão dos viajantes, entre bruma e nuvens.

Do alto da muralha, contemplo o sol poente,

o rio distante espelha as montanhas verdes.

Nas águas uma luz brilha em barca solitária,

anoitece, pescadores e aves de regresso.

Adormecem os espaços do céu e da terra

e meu coração em paz, como o grande rio.

登河北城樓作

井邑傅巌上

客亭雲霧間

高城眺落日

極浦映蒼山

岸火孤舟宿

漁家夕鳥遠

寂寥天地暮

心與廣川閒

A paisagem do alto da muralha transmite uma sensação de imenso bem-estar e paz ao poeta. Este sente-se bem e protegido, embora nunca utilize a primeira pessoa, como é de regra na poesia clássica chinesa, mas nós podemos intuir o seu sentir por meio dos traços que empresta à paisagem, ele é como a barca solitária deslizando suavemente pelo rio, e todo este cenário é recolhido, como que cuidado atentamente por aquele espaço fechado, onde até há lugar para os viajantes poderem descansar, eles próprios em movimento e transformação como o rio, que flui incessantemente sob o olhar fixo e vigilante das pedras que constituem a muralha.

Já Li Bai ( 李白,701-762), o grande contemporâneo de Wang Wei, também traduzido por António Graça de Abreu, prefere destacar o simbolismo guerreiro da Grande Muralha em “Lutámos a sul das muralhas” (战成南)1 (Abreu, 2021: 184/185) : a sua história de violentas batalhas, os Qin que a construíram, os Han e os imensos combates, o sangue dos soldados, os cadáveres, terminando com o pensamento, citação do capítulo 31 do Clássico da Via e da Virtude (《道德經》) obra fundante do Taoismo atribuída a Laozi (老子):

Para quê generais sem exército?

Abomináveis e cruéis as guerras!

O homem de bem só obrigado as faz.

(士卒涂草莽,将军空尔为。

乃知兵者是凶器, 圣人不得已而用之。)

Pela mesma linha vociferante contra guerras e muralhas se ergue Du Fu (杜甫, 712-770), outro dos expoentes poéticos da China, ainda traduzido por António Graça de Abreu, muito embora reconheça na Grande Muralha um dos principais marcos da civilização chinesa e por isso a refere, lingando-a a uma das grandes festividades do calendário lunar chinês, a da Pura Claridade em poema homónimo ( 清明 Qīngmíng), no qual o poeta se declara cansado, triste, velho, doente em viagem pela “Grande Muralha”, pelo “reino de Qin”, pelo “Império Han”. Neste poema, a imponente construção a simboliza a memória coletiva e a ligação aos antepassados, pelo que apresento a segunda parte do mesmo (Abreu, 2015: 464/465):

O regresso pela estrada da Grande Muralha púrpura,

Um dos meus acende o lume com ramos verdes do ácer.

Nas vilas do reino de Qin, pavilhões, pagodes entre flores e fumo,

No império Han montanhas e rios de brocado,

Chuva da Primavera, mais cheio o lago Dongting,

Claros os trevos de água, triste o coração do velho de cabelos brancos.

(旅雁上雲歸紫塞

家人鑽火用青楓

秦城耬閣烟花裏

漢主山河錦繡中

風水春來洞庭闊

白頻愁殺白頭翁

Foram rolando os tempos até chegarmos ao aforismo hoje por todos os chineses conhecido, aqui numa tradução direta: “Só é um verdeiro Han, quem foi à Grande Muralha” (不到长城非好汉Bù dào Chángchéng fēi hǎohàn). Este surge no poema de Mao Zedong (毛泽东) escrito em outubro de 1935, significando que um verdadeiro chinês, representado pela maioria étnica Han, tem espírito de luta, é herói, já que é capaz de percorrer passo a passo os cerca de cinco mil quilómetros de muralha, que se estende no Norte da China, sendo este e outros feitos de carácter sobre-humano que o distinguem, em prol de ideais maiores. Não é inocente a alusão à Grande Muralha, já que constitui historicamente o marco de uma nova era, a de uma China unificada.

《清平乐·六盘山》

天高云淡,望断南飞雁。

不到长城非好汉,屈指行程二万。

六盘山上高峰,红旗漫卷西风。

今日长缨在手,何时缚住苍龙?

Eis a minha tradução:

Serenata à Alegria Pacífica na Cordilheira Liu Pan2

No Céu claro surgem nuvens auspiciosas,

à distância, vislumbram-se gansos rumo ao Sul.

Só é herói quem percorra de lés a lés a Grande Muralha.

nos picos altaneiros da Cordilheira Liu Pan,

Bandeiras vermelhas agitam-se ao vento Oeste.

Agora que a Revolução é tecida pelo Partido comunista,

não será altura de enrolar o Partido Nacionalista?

A Grande Muralha, símbolo da defesa do país, contra forças estrangeiras e/ou nacionais aliadas a estrangeiros, teve lugar de destaque durante o Maoísmo mais exacerbado. Hoje em tempos de Reforma e Abertura, que foram inaugurados por Deng Xiaoping (邓小平,1904-1997), o presidente da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês entre 1978 e 1983, lançou o plano de Reforma e Abertura da China (改革开放Gǎigé kāifàng), e manifestou uma vontade política muito diferente da expressa por Mao Zedong. Esta linha foi continuada por Xi Jinping (1953 -), nomeadamente no programa da Nova Rota da Seda (新丝绸之路 Xīn sīchóu zhī lù), que se viria a impor com a subida deste ao poder em 2013. É então introduzido um princípio directivo, “Uma Faixa, Uma Rota ” (一带一路Yīdài yīlù) que para se concretizar integralmente depende do sucesso de modernizações e de invenções, bem como da ligação entre a China e o resto do mundo, por onde se escoam pessoas e se comunicam conhecimentos, através de corredores terrestres e marítimos.

É neste novo tempo que o poeta Yao Jingming (姚京明, 1958 – ), cujo nome artístico é Yao Feng (姚風), nascido em Beijing, mas a viver há muitos anos em Macau, onde é professor catedrático da Universidade de Macau, se tem distinguido por uma vasta obra poética e pela ligação entre as culturas e línguas portuguesa e chinesa, o que lhe valeu prémios e distinções como a Ordem Militar de Santiago da Espada. Na sua poesia mostra-se filho de um novo tempo, porém sem esquecer a importância do peso da história para a civilização chinesa. Em 長城隨想及其他, obra traduzida para inglês em 2014 por Kit Kelen (客遠文), Karen Kun (管婷婷) e Penny Fang Xia (房霞), sob o título de Great Wall and Other Poems, dedica alguns poemas inteiramente à Grande Muralha, logo no início do livro, recordando a sua importância enquanto esforço coletivo, que exigiu tanto aos chineses enquanto pessoas, conduzindo-os ao sacrifício extremo de pagaram com a sua própria vida a manutenção do país. Após lembrar repetidamente o papel deste importante símbolo nacional na história, na guerra e como monumento vivo à união nacional, e ao sofrimento causado nos que o construíram e por ele lutarem, termina com um poema muito bonito, numerado a 8, sinal de prosperidade na China e de infinito em todo o lado, onde se coloca junto aos arautos do novo tempo, que ultrapassam a Grande Muralha rumo às portas abertas, à liberdade (Yao, 2014: 25) e ao sentimento de pertença ao mundo inteiro, sem muros nem quaisquer divisões:

太陽脫掉夕陽

再次升起

我醒来了

從群山中醒来

從石頭中醒来

從一個個夢境中醒来

從一個個“我”中醒来

我再次开始行走

沿着這條起伏的大道

向著山海關

向著東方

我要走出長城

我要走向大海

走向遼闊自由的世界

Aqui fica a minha tradução para este belíssimo poema

O sol deita-se

Para de novo se erguer

Eu despertei

De cada cordilheira acordo

De cada pedra acordo

De cada sonho acordo

De todos os eus acordo

E torno a avançar

Acompanhando as voltas do caminhar

Rumo à Passagem de Shanhai3

Rumo ao Oriente

Quero ir além da Grande Muralha

Quero ir em direção ao mar

E ao vasto mundo da liberdade

Referências Bibliográficas

Graça de Abreu, António (Trad.) 1993. Poemas de Wang Wei. Macau: Instituto Cultural de Macau.

__________________2021. Cem Poemas de Li Bai 李白诗一百首. Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim.

__________________2015. Poemas de Du Fu 杜甫詩選. Macau: Instituto Cultural da R.A.E. de Macau.

Baidu. 2023. “不到长城非好汉

”https://baike.baidu.com/item/%E4%B8%8D%E5%88%B0%E9%95%BF%E5%9F%8E%E9%9D%9E%E5%A5%BD%E6%B1%89/3556008, acedido a 14 de novembro de 2023.

Wang Suoying, Ana Cristina Alves. 2009. Contos e Lendas da Terra do Dragão: Lisboa: Caminho.

Yao Feng (姚風).2014. 《長城隨想及其他》Great Wall and Other Poems. Tradução de Kit Kelen(客遠文), Karen Kun (管婷婷) e Penny Fang Xia (房霞) .

Respeita-se o registo escrito em que nos são oferecidos os poemas, de modo que este artigo apresenta poemas em chinês simplificado e tradicional, de acordo com os textos originais.

Cordilheira Liupan no Norte da China.

Passagem de Shanhai no Extremo Oriental da Grande Muralha.

2

21 Nov 2023

O mal

Existe o mal? Porque é que há gente má para si própria, para os amigos e para os outros em geral? Problemas como este diz-nos a filosofia pertencem ao domínio da ética. No oriente chinês os problemas éticos foram tratados com especial cuidado primeiro pelos pensadores confucionistas e numa fase posterior pelos neo-confucionistas.

Se Confúcio nunca se pronunciou abertamente sobre a origem do bem e do mal na natureza humana, já o mesmo não se pode dizer sobre os seus dois maiores discúpulos: Mengzi e Xunxi. Este último terá vivido, tal como Mâncio, durante o conturbado período dos Estados combatentes (475-221 aC), mas ainda é questão controversa as datas da sua biografia.

Estes dois filósofos são, e pela ordem exposta, o segundo e terceiro maiores filósofos confucionistas. Ambos elegeram, como não podia deixar de ser, sendo discípulos de quem eram, as questões ético-políticas para o centro das suas filosofias. Mâncio fez da benevolência o pilar da sua filosofia e, por isso, defendeu sempre que a natureza humana é boa. Nós possuímos duas virtudes universais, ou inatas, a benevolência e a rectidão ou justiça: “amar os pais é benevolência e respeitar o irmão mais velho é justo.

Só estas duas virtudes, a benevolência e a justiça, virtudes universais” (Mencius, Sinolingua, Jinxin, 1ª Parte, 11, 1999). Aliadas às duas virtudes surgem outras, quase em pé de igualdade: a propriedade ou os ritos, e a sabedoria, porque muito embora todos nós possuamos a virtude inata da benevolência, explica o filósofo, ela é como uma semente, que precisa de amadurecer para dar os seus frutos, ora o amadurecimento faz-se precisamente através dos ritos e da sabedoria (Gaozi, 1ª Parte, 19).

Muitos são aqueles que discordam desta teoria e, por isso, o filósofo vê-se forçado a defendê-la em vários passos da sua obra, como aquele onde explica o mal e compara da bondade natural do homem à natureza da água: “A natureza humana tende para o bem como a água tende para baixo. Não há natureza humana que não seja boa, assim como não há água que não corra para baixo. Claro que se batermos na água esta pode saltar até à nossa testa e se escoarmos a água ela pode correr em sentido contrário ou fluir até às montanhas. Mas até que ponto podem estes fenómenos ser atribuídos à natureza da água? A causa são as forças exteriores. O homem pode fazer mal porque a natureza, tal como a água, pode ser modificada por forças exteriores” (Gaozi, 1ª Parte, 2).

Para Mengzi, nós somos bons, não podíamos ser melhores. A bondade é, como tal, uma virtude inata, que nos acompanha desde sempre e que, correctamente desenvolvida, a saber através dos ritos e da sabedoria, prepara e fortalece o nosso ser interior, no combate que este se vê forçado a travar contra as forças exteriores: os outros, enfim, todos os menos bons, mas, especialmente, aqueles que voltaram costas ou recusaram cultivar-se, e, também, como é óbvio, contra as circunstâncias. Diz-nos o filósofo que em anos de crise estatal os jovens tendem a ser rebeldes e em períodos de bonança, preguiçosos, não por causa da sua natureza, mas sim devido a influências exteriores, agudizadas por um grande desleixo no desenvolvimento do bem, a semente que todos transportamos.

Como já tive oportunidade de referir num outro artigo, para qualquer filósofo que parta da defesa do bem inato ficará sempre por explicar a origem do mal, porque a tese das causas exteriores não justifica a entrada do mal no mundo. E a inversa também é verdadeira, quem parta da defesa de uma natureza humana má, tal como Xunzi, não conseguirá avançar com um argumento sólido para a origem e presença do bem entre nós.

Xunzi faz um ataque cerrado a Mâncio, no que respeita às características originais da natureza humana. Para este filósofo, como viria a suceder mais tarde com Hobbes, somos inatamente maus. Não há nada a fazer de início. Começamos egoístas e em estado de guerra permanente, pois só pensamos no nosso próprio umbigo ou benefício. Além disso, somos invejosos e odiamo-nos uns aos outros.

Por isso “quando cada um segue a sua natureza e liberta as suas inclinações naturais, a agressividade e a ganância desenvolvem-se. O que é acompanhado pela violação das distinções entre classes sociais e pelo lançar da ordem natural em anarquia, donde resulta uma tirania cruel” (Xunzi, Human People´s Publishing House, Foreign Languages, Press, 1999, A Natureza do Homem é má, 23.2).

São, portanto, necessários modelos, regras, leis, princípios e ritos estabelecidos pelos reis-sábios e bons professores para transformar a maldade inata em bondade adquirida ou social. Daí também que seja preciso um bom tirano, um sábio, claro, a quem todos devem obedecer incondicionalmente, para pôr ordem no mundo.

Chegamos à ordem social e política, aos princípios e valores morais pelo exercício da razão. Todos nascemos com uma matéria, que nos é dada através do corpo: os desejos e as emoções e com uma mente, ou poder formal, que tem a capacidade de criar modelos, regras ou leis tanto naturais como morais e, por isso, se define como a capacidade de distinguir entre o virtuoso e o baixo e, também, entre o certo e o errado.

Xunzi considerava que vivia num período onde reinava incondicionado o mal, porque faltavam professores sérios, ninguém seguia as boas teorias ou modelos dos reis-sábios, logo os homens portavam-se de um modo perverso, rebelde, desordenado. Poucos eram os que escapavam. Ainda assim havia alguns.

“Os homens de hoje que são transformados pelos seus professores e pelo modelo, que acumulam uma boa forma e aprendizagem e que são guiados pelo Caminho dos princípios rituais e pelo dever moral tornam-se homens de bem (junzi).” (A Natureza Humana é Má, 23.3).

O homem de bem de Xunzi é capaz de operar o milagre, com a ajuda do sábio, de transmutar uma matéria má numa obra boa, à maneira do oleiro, como adianta o filósofo, que faz do barro um bela vasilha por causa da sua arte (23.7), sem que isso signifique que possua quaisquer virtudes inatas.

O problema é essencialmente o mesmo que se coloca a Mengzi. Mas para Xunzi a pergunta é diferente: Como é que os primeiros modelos de bem surgiram no mundo? Ora esta pergunta só surge porque ambos os filósofos tentam explicar as origens daquilo que lhes interessa, a um, o bem, a outro, o mal.

Na verdade, é difícil explicar como começou o bem ou o mal na natureza humana. Pela minha experiência pessoal, posso garantir, que, ao nível meramente fenomenal, nunca lidei nem com os anjos de Mâncio, nem com os demónios de Xunzi. Somos todos mais ou menos e eu não me excluo do rol. Sem abandonar o critério da minha experiência, há pessoas com quem me dou melhor e que, por isso, tendem a desenvolver o meu lado virtuoso e há criaturas com quem me dou pior, essas provocam-me grandes alterações de humor, sabe deus, e a idade, controladas com que esforço.

Por isso, e abandonando a tentativa de explicar as origens do bem e do mal, ou refugiando-me numa perspectiva filosófica mais moderada, e mais à maneira do que sabemos que o próprio Confúcio defendeu, temos um corpo e uma mente, enfim, somos seres com faculdades, ou antes, acrescento, dotados de energia inteligente. Essa energia permite-nos, pela sua própria especificidade, desenvolver teorias, modos de ser, comportamentos quer bons, quer maus. Logo podemos sempre optar por praticar o bem ou o mal.

Se calhar, e voltando às origens – essa grande tentação metafísica – somos neutros à nascença. Daí que, em primeira e última análise, a responsabilidade seja nossa, porque acredito que temos liberdade para ser aquilo que quisermos e é essa liberdade, apesar de todos os condicionalismos, que nos dá o direito de optar, tornando-nos diferentes dos outros seres naturais.

16 Nov 2023

Contos, Histórias e Ecologia

Coordenadora do Serviço Educativo do CCCCM

Desde há muito nos habituámos a que a humanidade ocupa lugar de destaque na tradição cristã. Deus criou o homem (e a mulher) para que pudesse reinar sobre toda a natureza e ao sétimo dia descansou. Ao nível dos contos de fadas e populares mantém-se a mesma tradição. A estética coloca a figura humana como padrão modelar, assim através de contos como “A Cara de Boi”, “A Noiva do Corvo” ou o “Príncipe Bezerro” se transmite que os protagonistas com cara de boi ou de bezerro ou, ainda, corpo de corvo receberam castigos, foram amaldiçoados até se libertarem de um encantamento que os arrastou para uma posição degradante, negativa, mesmo má, da qual serão libertos por outras personagem cujas virtudes são inabaláveis, como a fidelidade, a bondade, etc., verdadeiros antídotos para a maldição que paira sobre as suas vidas.

Vejamos alguns exemplos. Em “A Cara de Boi” a linda menina de longa trança abandona a sua mãe, que a fechara numa casa alta e murada, sem qualquer porta, praticamente inexpugnável,- não fora a trança desta Rapunzel portuguesa, servir de acesso à mãe, mas ainda assim, quando foge com o príncipe é castigada pela velha maga, que lhe chama filha cruel e a acusa de a abandonar, enfeitiçando-a com cara de boi. Ela, depois de muito sofrer, casa com o príncipe e recupera a sua linda aparência humana, preparando-se para ser a futura rainha. Seria impensável o conto terminar com uma rainha com cara de boi.

A situação é semelhante com “A Noiva do Corvo”, aqui a menina é levada a casar com um corvo, o que lhe provoca grande tristeza. Pensou que o marido estaria encantado e, por isso, lhe chamuscou as penas, dobrando-lhe o encantamento, que apenas seria quebrado se ela rompesse sapatos de ferro, ou seja, se fosse de uma fidelidade absoluta à sua causa, que era encontrar o corvo entretanto de asa em fuga. Correu muito até romper os sapatos, finalmente conseguiu chegar a uma fonte perto da casa onde estavam muitas gaiolas com aves encantadas, ao libertar os pássaros, eles transformaram-se em príncipes. Ora entre eles encontrava-se o rei, já humano, que era o seu marido com o qual havia de viver feliz para sempre.

Em “O príncipe Bezerro” somos transportados até tempos muito remotos, onde vivem num reino poderoso um rei e uma rainha sem descendência. A situação faz com que a rainha em desespero profira o desejo de ter um filho “ainda que fosse bezerro” (Gomes, 2000: 53). Tal era a sua aflição por não cumprir as funções de mulher, de acordo com a mundividência tradicional, que já se sujeitava a ter um animal por descendência. A sua voz foi escuta e o desejo prontamente realizado. O príncipe crescia, e com ele a bondade e inteligência, mas não a formosura, já era considerado horrível por ter aparência de bezerro. Surge então em cena uma menina muito linda e boa, que não se importa de casar com o animal. Como recompensa descobriu que ele estava encantado e, na verdade, era um belo rapaz quando à noite despia a pele de bezerro. Ela seguiu então os conselhos precipitados da mãe, sendo levada a queimar na noite seguinte a pele do animal, o que viria a multiplicar o encantamento dele por muito tempo. O príncipe foi forçado a desaparecer não sem antes a advertir que ela teria de romper sete sapatos de ferro se o quisesse voltar a ver. A futura rainha, mergulhada em mágoa, correu mundo em busca do marido, até que a sua persistência e sincero arrependimento foram recompensados, colocando fim a um mau encantamento. O príncipe recuperou a figura humana, a melhor, a mais bela e digna, devido à bondade e amizade da sua igualmente humana mulher.

Situação idêntica pode ser observada em “O Príncipe Sapo”, cujos pais não tinham filhos, a mãe proferiu a heresia de ter descendência nem que fosse um sapo, pelo que foi imediatamente castigada com o nascimento de um batráquio. Este foi criado por uma menina muito boa, que viria a ser sua mulher. Também ele à noite largava a sua aparência animal, transformando-me num belo homem, pelo que os pais e a rapariga acabaram por queimar as vestes, encurtando, segundo acreditavam o tempo de feitiço, mas aumentaram-no, pelo que também a mulher teve correr mundo até chegar ao Rio Jordão, onde, após muita persistência, com um beijo, conseguiu pôr termo a um fado negativo.

Franz Kafka (1883-1924) em A Metamorfose explora o inconsciente coletivo ocidental chegando por absurdo à pior das transformações, a que sucede quando as vidas se tornam tão absolutamente desinteressantes e sem qualquer sentido lógico que conduzem à transformação das pessoas em animais repugnantes, de acordo com a narrativa, tal como sucedeu ao caixeiro-viajante, protagonista da história: “Uma manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco insecto. Estava deitado sobre o dorso, tão duro que parecia revestido de metal e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou o arredondado ventre castanho dividido em rijos segmentos arqueados (…) As inúmeras pernas, que eram miseravelmente finas, comparadas com o resto do corpo agitavam-se desamparadamente perante os seus olhos.” (Kafka, 1975: 7)

No oriente chinês, desde os tempos mais recuados que existe uma íntima relação entre os seres humanos e os animais, digamos que assim sucedeu em muitas civilizações, incluindo o ocidental, só que a nossa cedo trocou as influências naturalistas pelas personalistas, logo acarinhando o ideal estético humano como o mais excelso, sendo todas as transformações em figuras animais, a menos que fossem animais imaginários, perspetivas como muito negativas. A tradição chinesa manteve a forte ligação à natureza, não esquecendo a sua ancestralidade totémica, na qual descendia de um dragão, ou melhor, de um imperador mítico meio humano, meio dragão. Se pensarmos no caso português, descendemos de heróis mitológicos, Ulisses, ou heróis mais próximos, o humano Viriato.

Também em muitos contos, incluindo populares e fantásticos, as mutações de humanos em animais são muito bem acolhidas, assim como os próprios animais quando penetram na esfera espiritual, revelam dons prodigiosos, inteligência, bondade e outras virtudes que raramente são concedidas a animais no mundo ocidental, se excluirmos o universo das fábulas de Esopo ou La Fontaine.

Recorde-se uma das mais belas histórias de amor do povo chinês, 梁山伯与祝英台 (Liáng Shānbó yǔ Zhù Yīngtái), conhecida no ocidente como “Os Amantes Borboleta”. Esta belo conto, a que muito chamam o Romeu e a Julieta da China, é na verdade um tratado de filosofia em versão condensada, portanto, ainda que se baseie numa relação amorosa, revela muito mais da mentalidade chinesa do que Romeu e Julieta o faz em relação ao ocidente europeu. Estes amantes contrariados mostram-nos uma protagonista extremamente decidida, Zhu Yingtai, pronta a disfarçar-se de homem por amor aos estudos, por volta do século V d.C, durante a dinastia Jin do Leste (东晋,317-420). Ela conheceria Liang Shanbo na escola, seriam companheiros de carteira, já que este último acreditava ter adquirido um grande amigo, que nunca revelou a sua verdadeira identidade, mas que se apaixonaria pelo colega. Um dia, a menina foi forçada a cumprir a palavra dada ao pai e teve de voltar à sua terra Natal para casar com um homem do seu nível social, como devia ser na China tradicional: os pais arranjavam os casamentos aos filhos procurando alianças ao mesmo nível social, ou até um pouco acima do seu estrato, de modo a receberem privilégios e a alargarem o seu património e zona de influências, como sucedeu com Zhu Yingtai que teria de casar com o filho do governador da terra, depois da interessante experiência escolar. Além disso, Liang Shanbo, de origem humilde, não era de modo algum elegível para consorte de uma filha única de uma família abastada de Zhejiang. Ele viria a morrer de desgosto quando percebeu que não podia casar com a menina e ela, a caminho do seu futuro casamento, pediu para parar na campa daquele que poderia ter sido o seu noivo se os tempos fossem outros.

É então que um fenómeno extraordinário sucedeu à beira do túmulo do amado, o céu escureceu, desencadeando uma imensa tempestade, por entre a qual se abriria o túmulo do rapaz. Ela aproveitando a ocasião, precipitou-se para dentro da terra. Logo, cessaram raios e trovões, o sol reapareceu e, antes da campa se fechar, escapavam duas borboletas, que rodopiaram livremente por entre as flores, uma branca, a força masculina yang, outra preta, Zhu Yingtai, a força feminina yin. Duas figuras libertaram-se da forma humana, numa transformação positiva em forças naturais, as borboletas, insetos que simbolizam a beleza, e muito mais, já que também indicam a transformação no sentido correto de bichos da seda em seres que voam e representam a evolução espiritual e a liberdade, além, de a partir desta história, passarem também a simbolizar o amor. “Quem eram elas? Sim, eram Liang Shanbo e Zhu Yingtai, metamorfoseados pelo amor” (Wang, Alves, 2009: 131).

É o sentido das transformações positivas que muitos animais sofrem, especialmente as raposas, enquanto espíritos encantados, que Pu Songling (蒲松齡, 1640-1715), um escritor e intelectual dos finais da dinastia Ming primórdios da Qing comunica, nos seus Contos de Fantasia Chineses (聊齊誌異), como revela Yao Feng na Introdução à obra. Esta, publicada na Editora Moinhos em 2022, foi traduzida pelos alunos do Curso de Mestrado da Universidade de Macau: Zhang Mengyao, Chen Qu, Xiong Xueying, Lou Zhichang e Zhou Qian e, ainda, teve a tradução e revisão da docente Ana Cardoso.

Como explica Yao Feng na introdução ao livro “Pu Songling introduziu nos seus contos cerca de vinte tipos de animais, tais como o dragão, o tigre, o lobo, o macaco, o cão, a galinha, a cobra, o grilo, o rato, a borboleta, a abelha ou o corvo, dos quais se destaca a imagem da raposa, que surgiu em cerca de noventa contos” (Yao, 2022: 8). Estas, esclarece o estudioso, metamorfoseiam-se em “raposas-humanas”, encarnando mulheres inteligentes, avançadas, corajosas, capazes de cortar com a tradição em nome de valores universais como o amor e a felicidade.

As “raposas-humanas” são animais que morreram e se transmutaram em espíritos encantados, mantendo as suas características essenciais do mundo animal. Vêm à terra para retribuir dívidas, favores, e auxiliar os humanos, normalmente muito conservadores e limitados. Em Xiao Cui – Uma raposa encantada retribui um favor ela casa com o filho de um mestre de cerimónias de um templo local, Wang Tai Chang. Ela era “incrivelmente bela” (Yao, 2022: 244) e aceita casar com o filho do mestre de cerimónias, Yuan Feng, que tinha fortes limitações intelectuais, dizia-se até que era retardado. A verdade é que esta filha do Imperador de Jade (Yao, 2022: 250), ou seja, do Imperador Celestial, equivalente a Júpiter na cultura chinesa, devolve a inteligência ao rapaz e promove toda a família, que lhe paga com a ingratidão habitual dos humanos, mas se ela aparece milagrosamente no seio daquela gente é para retribuir um favor, como explica quando é insultada por quebrar inadvertidamente um vaso: “Por que é que não podem mostrar alguma clemência? Para ser honesta, admito que não sou humana. A razão pela qual apareci para a sua família é que o seu pai protegeu a minha mãe quando ela fugia de uma tempestade, e eu quis pagar esta dívida de gratidão por ela.” (Yao, 2022: 252). A nobreza deste espírito de raposa é de tão elevado nível ético, que merece o seguinte comentário a Pu Songling no final do conto: “Até uma raposa encantada sabe pagar uma dívida de gratidão, apesar de ter sido protegida inadvertidamente. No entanto, Wang Tai Chang, que tanto recebeu de Xiao Cui, repreendeu-a duramente só por ter partido um vaso. Que desprezível era ele.” (Yao, 2022: 255)

Os contos e histórias aqui apresentados mostram bem que o espírito ecológico chinês vem de muito longe, ou melhor, nunca se perdeu. Os chineses mantiveram, através da sua literatura, um profundo respeito por toda a natureza, que se revela na atenção à diversidade natural. O universo é um cosmos interligado e inteligente, onde cada um ocupa o seu lugar e não deve sobrepor-se aos outros. Todos os seres comunicam entre si e podem transformar-se uns nos outros, porque estão imersos num universo animado, sempre vivo, eterno, ligados à mesma raiz. Quando os seres se metamorfoseiam tudo pode suceder, não o fazem necessariamente para pior. Umas vezes assumem formas positivas, outras negativas, consoante o grau da sua evolução espiritual. As transformações das pessoas em borboletas podem ser boas se os espíritos em jogo também o forem, assim como acontece com os das raposas ao assumirem a forma humana. Estamos imersos num todo manifestando infinitas potencialidades, que muito nos pode auxiliar se o soubermos escutar e respeitar, como nos ensinam as histórias tradicionais chinesas.

Bibliografia

Braga, Teófilo. 2000. Contos tradicionais do Povo Português. Frankfurt am Main: Texto Editora; TFM, Frankfurt am Main.

Coelho, Adolfo. 1995. O Príncipe Sapo. Contos Populares Portugueses. Prefácio de Ernesto Veiga de Oliveira. Lisboa Publicações Dom Quixote.

Gomes, José António (Org.)- 2000. O Príncipe Bezerro. Fiz das Pernas Coração. Contos Tradicionais Portugueses. Ilustrações de Danuta Wojciechowska. Lisboa Caminho.

Kafka. 1975 A Metamorfose. Mem Martins: Publicações Europa-América.

Wang Suoying, Ana Cristina Alves. 2009. Liang Sanbo e Zhu Yingtai. Mitos e Lendas da Terra do Dragão. Lisboa: Caminho.

Yao Feng (Org. ) 2022. Pu Songling. Contos de Fantasia Chineses. Belo Horizonte: Editora Moinhos.

7 Nov 2023

Etimologias médicas

Lê-se num artigo de Kan-Wen Ma, intitulado “Sun Yat-sen (1866-1925), a man to cure patients and the nation – his earlier years and medical career” a propósito do pensamento do médico, seguidor da medicina ocidental, que foi baptizado cristão, revolucionário e fundador da República da China, vindo a ser o seu primeiro presidente (1912), a seguinte defesa a partir de uma citação de um dos Clássicos, mais exatamente do Livro da História “O maior dos médicos cura primeiro a nação e depois o povo”.

Este revolucionário, cujo papel foi decisivo para a derrocada da dinastia Qing em Outubro de 1911, assumiu o cargo de primeiro presidente provisório da recém-fundada república chinesa, sendo rapidamente afastado do poder por outros mais ambiciosos do que ele, nomeadamente Yuan Shikai (袁世凱 Yuán Shìkǎi)

Sun Wen (孫文Sūn wén) ,nome de nascimento, que o liga à cultura e à escrita, sendo o nome de criança Di Xiang (帝象Dì xiàng) , que o relaciona com o poder imperial; teve como nome oficial, Sun Deming (孫德明 Sūn Démíng), que o caracteriza como virtuoso brilhante e, ainda, entre outros, os nomes literários começaram com Ri Xin (日新Rì Xīn), evocando um sol novo; e evoluíram para Sun Yat-sen, no registo de Cantão, ou Sun Yixian (孫逸仙 Sūn Yìxiān), na pronúncia do Norte, onde se alude a um transporte até à imortalidade ou, ainda, Sun Zhongshan (孫中山 Sūn Zhōngshān), com a carga geográfica da proximidade à sua terra natal na província de Cantão. Todos estes nomes descrevem bem a personalidade de Sun Yat-sen, o letrado revolucionário em busca da virtude e da imortalidade, com o corpo bem enraizado na sua terra natal.

Daí que não surpreenda que o pensamento deste médico, ao jeito ocidental, e cristão por nascimento, seja, quando expresso, bastante conservador, em busca da tradição chinesa, para que possam ser afastados certos males cosmopolitas, a fim de curar uma nação ferida por sucessivas levas de invasões estrangeiras, dos manchus às guerras do ópio e ao pensamento da Nova Cultura, refletindo valores ocidentais. Por isso, se por um lado, adere à necessidade de unir a teoria e a prática, bem como à defesa pragmática de que o bem e o mal se podem definir pelas suas consequências práticas, por outro num documento que serviu de base ao movimento nacionalista em 1924, na forma de uma série de lições, intitulado Os três Princípios do Povo, mais exatamente na Lição 6, defende o nacionalismo e a moralidade tradicional contra os valores “intoxicantes” da Nova Cultura: “Esta característica moralidade do povo chinês ainda não foi esquecida hoje. Primeiro vêm a lealdade e a piedade filial, depois a humanidade e o amor, a lealdade e o dever, a harmonia e a paz.” (Sun Apud Baskin, 1984: 650).

Aqui se assume a perspetiva do médico que tenta libertar o país e o seu povo de valores alienígenas, que adoecem ou contaminam os chineses, já que tão ou mais graves do que as maleitas do corpo parecem ser as do espírito.

Recuando uns bons séculos, mais concretamente, até por volta dos séculos V e IV a.C, vamos encontrar um dos quatro grandes médicos da antiguidade chinesa (四大名醫 Sì dà míng yī): ele é Bian Que (扁鹊 Biǎnquè), e tem nome de planta e pássaro, concretamente, de pega, um pássaro muito auspicioso, que une o mundo natural ao espiritual, às letras, a que pertence indissoluvelmente ligado enquanto componente do caractere tradicional da palavra “escrita” (寫 xiě), e lá está o pássaro na base, onde não vislumbramos a plumagem da pega, preta, branca e azul, mas acreditamos que sim, já que só uma ave tão palavrosa e conversadora poderia estar na origem do exuberante sistema escrito chinês. Especialmente relevante é o facto de a este médico do período dos Estados Combatentes (戰國 Zhànguó) serem atribuídos quatro métodos essenciais da Medicina Tradicional Chinesa (中醫 Zhōngyī): a observação (望診 wàngzhěn), a auscultação e o recurso ao olfato para a identificação dos cheiros (聞診 wénzhěn), a interrogação (問診 wènzhěn) e a medição das pulsações (切診 qièzhěn), sendo também a interrogação essencial no diagnóstico, ou melhor, a conversa de pássaro.

Um outro aspecto que desde muito cedo se distinguiu nos médicos chineses, e em Bian Que com grande destaque, foi a relação que estabeleceu entre ética e prática médica. Diz-nos Bai Jingfeng em Episodes in Traditional Medicine (1998) que o fundador dos quatro métodos de diagnóstico tinha preceitos muito rigorosos, que ficariam conhecidos como as seis regras (Bai, 1998: 69). Primeiro, não tratava aqueles que abusavam do seu poder, oprimindo terceiros; segundo, não tratava gente gananciosa e obcecada pela riqueza; terceiro, não se dispunha a colaborar com uma certa aristocracia dissoluta que se comportava extravagantemente; quarto, não recebia quem revelasse ter os princípios yin (陰) e yang (陽) em desequilíbrio; quinto, não procurava curar quem estivesse já demasiado fraco para receber tratamento; sexto, não tratava quem acreditasse em bruxarias.

Há uma história proverbial muito conhecida ligada à sua biografia, intitulada 《諱疾忌醫》(Huìjí-jìyī), que numa tradução à letra significa “evitar a doença para evitar a cura”, podendo encontrar uma correspondência pelo sentido em Português no provérbio “não há maior cego do que aquele que não quer ver”. A história ilustra na perfeição a aplicação da quinta regra, mas também algo essencial na medicina tradicional chinesa, como veremos adiante.

Resumidamente, o Rei do Estado de Cai (蔡國) , o Marquês Huan (桓侯) convida o médico Bian Que para o seu palácio. Bastou ao experiente médico observar a cor da pele do Marquês para logo lhe detetar o início de uma doença, apressou-se a avisá-lo, acrescentado, mas não se preocupe porque a sua maleita ainda está na fase inicial. O rei levou-a mal ao médico a franqueza do diagnóstico, recusando-se a admitir a doença: “Eu estou bem, não tenho qualquer doença (我很好, 没有病)” (北京语言学院编, 1984: 128), depois mal o médico virou costas, teceu comentários desagradáveis a respeito dele e sobre os médicos em geral. Passados dez dias, Bian Que voltou a encontrar o Marquês Huan, aconselhando-o novamente a que procurasse tratar-se enquanto era tempo, já que a doença tinha evoluído e estava então ao nível dos músculos. Passados mais dez dias, Bian Que voltou a cruzar-se com o rei, dizendo-lhe com um ar consternado que a doença se entranhara, estava então já ao nível dos intestinos e estômago, tornando-se muito perigosa. O Marquês voltou a ignorar os conselhos do médico. Houve ainda oportunidade para novo encontro, mais dez dias volvidos, mas dessa vez Bian Que já nada disse ao rei, voltou-lhe as costas e foi-se embora. Perante tal comportamento, o governante estranhou, mandando emissários para obter explicações. Ao que ele declarou já nada poder fazer pelo monarca. Houve um tempo em que o poderia ter salvo, quando a doença ainda era superficial, mas já era tarde demais, porque lhe tinha atacado a medula óssea. Passados cinco dias o rei sentiu-se mal, sem quaisquer forças, mandou então chamar o médico, que, seguindo o seu quinto preceito, nem sequer tentou curá-lo, aliás já nem se encontrava nos seus domínios.

Moral da história, não vale a pena “tapar o sol com a peneira”, procurando “enganar-nos a nós próprios” quando estamos doentes, porque tão má como a doença do corpo, ou até bem pior, pode ser a mental, que, mais ou menos conscientemente, nos leva a cometer erros muito graves que podem conduzir inclusive à morte, quando não das pessoas, das relações e das oportunidades. Há um tempo certo para tudo, mas saber reconhecê-lo depende da saúde do corpo inteiro, mente incluída. É essa ligação essencial e primordial entre o lado físico e o mental que tem conduzido gerações de médicos chineses a privilegiarem aquilo a que hoje chamamos diagnósticos diferenciados, dando relevo à observação de cada caso como uma história única, apenas captável através de um diagnóstico rigoroso que inclua a observação física atenta e a interrogação/conversa não menos concentrada, seja ao nível individual, seja ao nível dos estados, como bem viu Sun Yat-sen, pois de nada adianta a cura individual, quando não há uma transformação ética coletiva a acompanhá-la, já que quando países inteiros adoecem, serão poucos aqueles que conseguirão manter a sanidade mental.

Por fim, recorde-se a etimologia de “medicina e curar” (医 yī), no chinês simplificado é apenas constituída por uma seta (矢 shǐ) que se retira da aljava (匚 fāng) para atacar o demónio da doença; no chinês tradicional (醫 yī), conta também com o componente de vinho (酒 jiǔ), essencial na sua função de elixir.

O certo é que o médico só tem o poder de desferir uma seta certeira, aquela que realmente cura, com a ajuda do paciente, ou seja, quando este está em equilíbrio e revela abertura e disponibilidade para operar a transformação necessária que o conduza ao caminho da saúde. Se a mentalidade geral for adversa, se o paciente não quiser, ou se as circunstâncias não o permitirem nem vale a pena tentar atirar a seta, porque ela nunca acertará no alvo, já que este último é animado e comunicante e só existe em diálogo.

Bibliografia

Bai Jingfeng. 1998. Episodes in Traditional Chinese Medicine. Beijing: Chinese Literature Press
Baskin, Wade (ed) 1984. Sun Yat-sen. Classics in Chinese Philosphy. New Jersey: A Helix Book.
北京语言学院(编)1984《成语故事选》.北京:外文出版社.
Kan-Wen Ma. 1996. “Sun Yat-sen (1866-1925), a man to cure patients and the nation – his early years and medical career”. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/096777209600400309London: Journal of Medical Biography; 4, 161-170.

*Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM

5 Set 2023

A riqueza e os seus deuses

Desde os tempos mais recuados houve quem na China desprezasse a riqueza. Podemos encontrar entre estes os seguidores mais fiéis das filosofias confucionista, daoísta e budista. O cavalheiro confucionista ou o sábio daoísta pouco ligam aos bens materiais. Para estas filosofias, mais importante do que a riqueza material, são os bens espirituais, que cada um vai desenvolvendo como pode: os valores morais, no caso confucionista, e os existenciais, impregnados de espiritualismo, no caso daoísta. Também aos budistas interessa, sobretudo, a libertação dos desejos materiais, a fim de escapar à terrível roda das reincarnações.

Mas, o certo é que, desde os tempos mais recuados muitos, muitíssimos, mesmo, têm sido os que, entre os chineses, amam devotadamente a riqueza. Estes situam-se a um nível mais popular, são a grande maioria da população. Não obstante, neles se incluem muitos dos eruditos, capazes de suspender, no dia-a-dia, com admirável facilidade, os preceitos filosóficos que vão transmitindo nas aulas, conferências e outros momentos teóricos das suas actividades.

Enfim, para a maioria, a riqueza é um bem inestimável. Há até um deus, o da riqueza, ou vários, dependendo das versões, a que as pessoas prestam culto de modo a enriquecer rápida e prolongadamente.

A riqueza, na China, tem uma dimensão religiosa e, por vezes, até mística. Este povo adora com fervor religioso certos bens materiais, como o dinheiro, o ouro, e todos os metais preciosos, as pedras, também preciosas e, em suma, todos os objectos vulgarmente catalogados como tesouros materiais.

A relação dos chineses com a riqueza abre-nos as portas ao estudo de uma religião materialista, onde este mundo e os seus bens são o verdadeiro modelo para um mundo sobrenatural, que só é superior na medida em que copiar, sem quaisquer alterações, a ordem estabelecida na terra.

Nesta mundividência, há uma mensagem bem clara a reter: não basta actuar no mundo laico para se ser rico, é preciso ter fé e procurar o auxílio e a protecção das divindades ligadas à riqueza, caso contrário a sorte não será favorável.

O deus da riqueza, Cai Shen, desdobra-se, em muitas versões, em dois: um militar, representado por Guandi, também conhecido por deus da guerra, e um civil que, não raro, aparece representado pelo ministro da antiguidade, Bi Gan. Este no livro da História é descrito como um servidor leal e justo, que sofreu martírios inenarráveis às mãos de um monarca cruel.

O deus, ou os deuses da riqueza, são adorados com fervores redobrados entre os mais desfavorecidos, como é natural. São-lhes erguidos vários templos e altares, onde abundam oferendas, como vinho, frutas e bolos. As divindades são, também, muito apreciadas em zonas e cidades comerciais, como Cantão e afins.

O deus civil é venerado por pessoas ligadas a profissões, carreiras e negócios que nada tenham a ver com o mundo militar. Já o deus militar é o protector de todos os indivíduos que, de algum modo, se relacionem com a guerra, como cutileiros, ferreiros, militares…

Estes deuses vivem, como já se disse, segundo o modelo da existência terrestre. Têm mulher, família, riquezas sem fim e uma corte poderosa. Despertam um fervor intenso nos seus fiéis tanto eles, como os seus acólitos.

Entre estes, um dos mais conhecidos é Liu Hai, habitualmente figurado por um menino com um colar de moedas à volta do pescoço. O rapaz faz-se acompanhar por uma criatura fabulosa: um sapo de três pernas, que devora moedas. Liu Hai é muito importante, do ponto de vista simbólico, pois mostra bem como, para a mentalidade chinesa, se interligam os desejos de riqueza e descendência masculina.

Outros acólitos da divindade da riqueza são os gémeos da harmonia: He He Er Xian. Estes revelam mais uma característica importante da maneira de pensar dos descendentes do dragão – o espírito familiar. A verdadeira riqueza não surge com indivíduos isolados, mas em união e, especialmente, em família.

A história do par de gémeos chega-nos através de uma lenda. Esta fala-nos de dois irmãos, nascidos de pais diferentes (nessa altura ainda não eram gémeos!), que deitaram mãos à obra, lançando-se ao negócio. Fizeram uma grande fortuna. Com a riqueza a aumentar, acabaram por se desavir. Separaram-se e só na oitava geração os descendentes se voltaram a unir, recuperando todos os bens de que os ancestrais tinham sido senhores.

A harmonia e a união trazem a riqueza e, também, a longevidade e felicidade. Esta última é, muitas vezes, simbolizada num morcego, que congrega, por homofonia, a riqueza e a felicidade.

Associada aos deuses da riqueza e seus acólitos, costuma surgir uma panela preciosa, que terá sido pescada por um homem de Nanjing, no rio Yanzi. O pescador pensou que o utensílio vindo às redes, seria útil para fazer a comida do cão, de modo que resolveu ficar com a panela. Para grande surpresa dele e da mulher, o objecto era mágico, logo tudo o que se punha lá dentro multiplicava-se indefinidamente. Assim sucedeu com a comida do cão, mas, também, com o gancho dourado da mulher, que, inadvertidamente, lhe escorregou da cabeça.

Outros símbolos ligados ao culto da riqueza são: um cavalo precioso, provavelmente de origem budista, de cuja boca se escapam jade, moedas de todos os tipos e outros bens valiosos e que, além disso, transporta um taça repleta de jóias; um dragão-moeda, já que o seu corpo é formado por um longo cordão de moedas; uma carpa, que, por homofonia, representa a abundância, além de inúmeros cestos e caixas a transbordar de tesouros.

Este mundo religioso da riqueza, repleto de seres e objectos sagrados, dá acesso ao crente a todo o tipo de bens preciosos: lingotes de ouro e prata, pedras preciosas, árvores mágicas, donde também saem moedas, e riquezas sem fim. Um grande número de frases auspiciosas, de inegável eficácia mágica, remata e coroa este cenário.

Os possuidores das belas frases caligrafadas podem estar certos de obter o que elas indicam. Para citar algumas, “longa vida, riqueza e posição social”, ou, apenas, “riqueza e posição social, ou “a visita do Deus da Riqueza”…

Na China, e um pouco à semelhança do espírito que anima certas filosofias cristãs do Norte da Europa, para se ser rico há, antes de mais, que acreditar. Em seguida, deve-se cultivar, incessantemente, as relações com os deuses, seus acólitos e nunca esquecer de ter sempre à mão a vasta gama de amuletos aqui referidos. Estes tanto produzem efeito a duas como a três dimensões.

28 Ago 2023

Dai Zhen, a benevolência e o desejo

Andei a ler a PESQUISA SOBRE O BEM, de Dai Zhen (戴震 Tai Chen, em Gilles-Wade), um filósofo do século XVIII (1723-77), da escola confucionista da dinastia Qing. Este pretendeu regressar às origens, afastando-se propositadamente dos neo-confucionistas dos períodos Song e Ming, cujas teorias estão impregnadas de ideias daoístas e budistas.

Dai Zhen foi um filósofo que teve a felicidade de ser reconhecido no seu tempo, apesar de ter reprovado cinco vezes nos exames imperiais. Nunca chegou a mandarim, mas contribuiu decisivamente para a cultura do seu tempo, nos campos da matemática, geografia, fonologia e, naturalmente, da filosofia.

A obra PESQUISA DO BEM, como o próprio título indica, é muito influenciada pelas teorias de Mengzi, ou, à portuguesa, de Mâncio.

Para Mengzi (372-289 a.C), o homem é bom por natureza, por isso a bondade é a virtude-fundamento da humanidade. Ora Dai Zhen, já em pleno século XVIII vem contribuir para recuperar e desenvolver esta linha de pensamento avançada no século III a. C.

Para o filósofo, o bem é uma teia composta por três virtudes: a benevolência, a justiça e a propriedade. Só o homem bom, justo e correcto vive humanamente. Por isso, deve cultivar, antes de mais, a benevolência, que é a raiz de todas as outras virtudes. Esta define-se, ao nível corpóreo, como uma força criadora, que actualiza as forças criadoras do Céu e da Terra, também elas benevolentes. Estas conjugam-se entre si e com o homem numa harmonia pré-estabelecida.

Assim, o Céu é criativo, a Terra receptiva e “quem adquire a força produtiva do Céu e da Terra é benevolente. Quem obtém os princípios de ordem e da razão, é sábio” (Tai Chen’s Inquiry into Godness, Honolulu, East-West Center Press, 1971, p. 69).

Os princípios morais advêm da sábia conjunção da razão e da sensibilidade. Com Dai Zhen, a bondade passa a ser perspectivada em termos de força produtiva, mas sem prescindir de um enquadramento racional. Este é um grande avanço para o aparecimento de uma nova filosofia chinesa, que procurará colmatar o fosso criado por posições filosóficas extremistas, defensoras de idealismos e materialismos exacerbados.

Assim, papel de destaque conferido à bondade não leva o filósofo a esquecer que os desejos, sobretudo quando absolutizados, podem ser verdadeiramente perniciosos, por isso defende sempre a acção condutora e auto-controladora da mente nos assuntos humanos.

No entanto, a razão não entra em conflito com a sensibilidade, muito pelo contrário: a bondade, enquanto força – e força de amor – é a “virtude mais elevada”(p. 70), não se limita à esfera humana, estende-se a todo o universo: “a força produtiva do Céu e da Terra assenta na benevolência” (p. 71)

Mas em que consiste exactamente esta benevolência universal que o filósofo iluminista defende?

Ela é uma força e pode ser definida como desejo. Que os homens e toda a natureza tenham desejos, nada de mais natural para Dai Zhen, com uma ressalva: estes desejos para serem realmente bons, isto é, para estarem de acordo com a ordem da natureza, não podem ser egoístas. Diz-nos o filósofo: “ Quem tenha desejos sem egoísmo, é benevolente” (p.72).

Se pensarmos bem, o que tem dado ao desejo tão mau nome, apesar de todas as tentativas de salvação, vindas nomeadamente da área psicanalítica ocidental, é o facto de ele se expressar como uma força individual, poderosa, avassaladora mesmo, com tendência a assumir-se totalitariamente naquele em que faz a sua aparição.

Alguém cegamente possuído pelo seu desejo torna-se egoísta e insuportável para os outros. No entanto, já alguém que lide sabiamente ou racionalmente com a sua sensibilidade, é um sábio, porque deixou falar em si todos os aspectos da sua natureza.

O homem só é verdadeiramente superior quando faz com que “os seus desejos se conformem aos princípios da razão e da correcção “(p.97). Mais do que recalcar os instintos, interessa controlá-los e tirar o melhor partido deles, porque, não esqueçamos, é na sua força que se manifesta a virtude da benevolência.

Esta força tão boa, tão positiva, encontra-se um pouco por toda a parte, por exemplo: “no crescimento dos troncos, das folhas, dos botões e dos frutos das árvores(…), por isso a capacidade da actividade criativa é chamada benevolência”(p.74)

Segundo o filósofo, a natureza do homem – com os seus desejos, sentimentos e poder racional – não podia ser melhor. Há até um acordo básico entre toda a natureza, uma harmonia pré-estabelecida à maneira de Leibniz, que coopera para tornar a vida fácil àquele que, não só deixa falar a sua natureza benevolente, os seus desejos, como também procura desenvolver a sua pessoa, seguindo o exemplo dos sábios e o estudo aturado dos clássicos.

“O caminho de suster e manter a vida encontra a sua chave em desejos, o caminho da simpatia e profunda compreensão encontra a sua chave em sentimentos. Isto porque os desejos e os sentimentos são os signos do natural.”(p. 75) E, um pouco adiante: “Os desejos formam o caminho do Homem, estão enraizados na natureza humana e encontram expressão no dia-a-dia”(p. 76). Nada têm de vergonhoso ou pecaminoso, traduzem-se em expressões amorosas que temos para com os amigos, os familiares e os filhos. Para este filósofo tão inovador, quando expressamos a nossa natureza em equilíbrio, estamos a cultivar o caminho do Céu.

O pior inimigo da benevolência é, como já referi, o egoísmo e o seu maior amigo a lealdade. O Céu ao dar e a Terra ao receber estão a ser benevolentes. O homem, se proceder de acordo com eles, também dá e recebe. Logo, o melhor antídoto para o egoísmo, que mata a benevolência, é justamente o altruísmo. A natureza contém em si os princípios da razão e da bondade, há que segui-los sem medo, sendo fácil e simples como ela.

O homem de Dai Zhen, este todo sensível e racional, tem que lutar contra dois inimigos. Um deles já conhecemos, situa-se ao nível da sensibilidade e é o egoísmo, que se define como satisfação exclusiva de desejos privados; o outro, é a confusão que se apodera das mentes, ao entrarem em contacto com os outros e com o mundo. Ora um homem confuso torna-se facilmente iludível e estúpido, o remédio para contornar este obstáculo mental está na educação e no estudo.

Resumindo, libertamo-nos da confusão por meio do estudo e auxiliados pela virtude da fé e libertamo-nos do egoísmo através de acções leais e compassivas, atingindo assim o núcleo da teia de virtudes formada pelo bem: “sendo leais, podemos agir com benevolência, tendo fé podemos realizar a justiça e possuindo compaixão, no que diz respeito às outras pessoas, podemos praticar a propriedade”(p. 101)

Mas não esqueçamos que, para o filósofo, o “protótipo” das virtudes é a benevolência, esta força altruísta que pode ser desenvolvida com lealdade: “um homem que tem os seus próprios desejos e que também tem em consideração os desejos dos outros, é benevolente. Um homem que tem os seus próprios sentimentos e, também, tem em consideração os sentimentos dos outros, é sábio”(p.105).

Logo, depois das máximas humanas ‘amai-vos uns aos outros’ e ‘não faças aos outros o que não queres que te façam a ti’, creio que podemos avançar com nova, desta vez inspirada neste filósofo tão original: faz aos outros aquilo que eles benevolentemente desejem.

20 Ago 2023

Figuras femininas na mitologia chinesa

Na mitologia chinesa as deusas personificam virtudes e atributos tipicamente femininos. Retive algumas figuras, que me parecem particularmente importantes para um discurso sobre o feminino chinês.

A CRIADORA. Nu Wa , irmã ou esposa de Fuxi, o Primeiro Imperador, é a segunda na linha dos grandes imperadores míticos. Sobre esta força feminina, meia serpente, meia humana, há dois relatos famosos ligados à criação dos seres humanos. No primeiro, a deusa cria os seres a partir de um barro moldado pelas suas próprias mãos. Criou-os sozinha e porque, ao passear sobre a terra, sentia uma solidão imensa, já que apenas tinha por companhia a paisagem natural e os animais.
No segundo relato Nu Wa acasala com o irmão, depois de ter obtido licença prévia dos deuses, a fim de começar a humanidade. Em ambas as versões, e psicanálise à parte, parece-me importante frisar a ausência de um marido real. Na primeira versão, a deusa está completamente sozinha, na segunda é acompanhada por um membro da família no acto de criação, que não o seu marido de direito. Cabe exclusivamente à mulher chinesa tradicional, não só a concepção, como o acompanhamento e educação dos filhos. As criadoras solitárias sucedem-se na mitologia. Elas concebem pelo facto de comerem ovos de aves, tal como é o caso da Rapariga de Yousong que engole ovos de andorinha. Jian Di, a mais velha de duas irmãs muito belas, ficou grávida depois de ter engolido dois ovos de andorinha. E assim nasceu Xie, o patriarca do povo Yin. Ou, ainda, no mito da Criança Abandonada, Jiang Yuan, membro do clã Youtai, concebeu através do encontro com uma pegada de gigante. Deu à luz um filho, que primeiro abandonou e, depois, adoptou, após inúmeras peripécias. Este viria a ser o ilustre patriarca do povo Zhou.

A PACIFICADORA. É ainda Nu Wa quem nos apresenta uma das virtudes femininas mais apreciadas pelas “duas metades do céu”: a capacidade de harmonizar e até anular forças destrutivas. Em Nu Wa remenda o firmamento, a deusa surge a repor a ordem no mundo, após parte do céu ter desabado, muito possivelmente na sequência de um conflito entre os machos celestiais. Ela quer e consegue remendar o firmamento para que os seus filhos humanos possam voltar a viver bem.

A DUPLA. A figura da duplicidade é bem representada por Xi Wang Mu, ou seja, pela Rainha Mãe do Oeste. Esta deusa distante, que vive na Montanha de Jade, em Kunlun, é bastante masculina de aparência. Alguns investigadores chegam mesmo a levantar a hipótese de ela ter começado por ser um homem. A verdade é que, embora tenha forma humana, possui cauda de leopardo e dentes de tigre. Mas a sua duplicidade não se circunscreve ao domínio físico. Dela dependem as doenças, as calamidades e a própria morte, tanto na faceta positiva como na negativa. Assim, encontramo-la a espalhar pragas, mas também, a distribuir elixires e pêssegos da imortalidade. Recorde-se, a título de exemplo, o mito de Chang E voa para a Lua, onde a Rainha Mãe do Oeste recompensa com o elixir da imortalidade o arqueiro Hou Yi, pelo facto de ter abatido os nove sóis.

A ESTRANHA. É a figura típica da estrangeira, da mulher que não pertence ao povo chinês. As heroínas estrangeiras são sempre mais animalescas, mais bárbaras, mais selvagens, tal como aquelas fêmeas que pertencem ao Povo das Mulheres. São uma espécie de amazonas, que têm medo dos homens e morrem em contacto com os chineses. São altas e claras, possuem o corpo coberto de pêlos e ostentam uma farta cabeleira até aos pés. Não têm seios e amentam os filhos pela raiz do cabelo, que é branca. Quando dão à luz bebés masculinos, estes não conseguem ultrapassar os 3 primeiros anos de vida. Logo, estas mulheres, não podiam ser piores…

A TRABALHADORA. Também o mundo mítico se divide entre deusas que trabalham e deusas de enfeite. Nem todas as deusas trabalhadoras personificam o próprio trabalho. Há, no entanto, dois exemplos notáveis de criaturas míticas cuja função parece esgotar-se na acção laboral. O primeiro é o de Lei Zu, a mulher do Imperador Amarelo, que ensinou às chinesas a arte de fabricar a seda, o segundo é o da tecedeira. Recorde-se o trágica estória de amor do Vaqueiro e da Tecedeira. A tecedeira é filha do imperador celestial. Dela e das irmãs, mas sobretudo dela, dependem as belas cores das nuvens do céu. Numa visita à terra, a tecedeira acaba por se casar com um vaqueiro. Têm dois filhos e ela vive feliz, mas no céu, todo o panteão olímpico passou a andar muito mal vestido, porque a tecedeira deixou de trajar as nuvens com as lindas cores da manhã e do entardecer saídas dos seus dedos. Logo a deusa foi obrigada, pela sua família celestial, a regressar ao céu. O marido e os filhos foram atrás dela. No entanto, para que a tecedeira não seja distraída dos seus trabalhos, apenas se reunem uma vez por ano, no sétimo dia da sétima lua. O resto do tempo, ela, a estrela Vega, e ele, a estrela Altair, vivem separados pela via láctea.

A AMANTE. A figura da mulher que espera apaixonadamente o seu marido é admiravelmente representada por Nujia, a esposa de Yu, o Grande. Este foi o fundador da dinastia dos Xia. O imperador, ocupadíssimo e amantíssimo da sua terra mãe, lutou anos a fio para tornar a China um país viável. Atravessou montanhas, domou rios, e esteve tão ocupado nestas tarefas que durante treze anos não foi a casa. A mulher, ao expressar a sua dor profunda, compôs o primeiro poema de amor chinês: Ó homem que eu espero, saberás tu que o tempo é longo… ( Charles Meyer, in La FEMME CHINOISE, 4000 ans au Pouvoir, Lattes, 1986).

A MULTIFACETADA. Chang E é o melhor exemplo da deusa humana ou multifacetada. Ela é, dependendo das versões, curiosa, desobediente, insegura, ciumenta, amorosa, traída… A esposa de Hou Yi, que viria a ser a deusa da lua, a quem é dedicada a festa do Bolo Lunar, é humaníssima nos seus defeitos e qualidades. Sobre a sua história há inúmeras versões. Resumindo, tenho lido sobretudo a versão em que ela, movida pela curiosidade, descobriu o elixir que o marido havia guardado e o tomou às escondidas. Na versão de Huainanzi, compilada por Liu An, o arqueiro Hou Yi foi pedir o elixir da imortalidade à Rainha Mãe do Oeste para libertar a mulher da sua condição mortal. Mas Chang E não aguentou o tempo de austeridade e pobreza exigido para a purificação e bebeu o elixir sozinha, fugindo em seguida para a lua. No poema Tian Wen, composto por Qu Yuan, ela resolveu tomar o elixir, depois de ter descoberto que Hou Yi se havia enamorado pela mulher de He Po, divindade do rio. Num bailado mais recente, intitulado A Viagem à Lua, Chang E voou para o céu por ter sido enganada por Pang Meng, chefe de uma tribo e aprendiz de Hou yi, que para suplantar o mestre, não só lhe afastou a mulher, como acabou por o matar.

BELDADES PASSIVAS. A beleza é para os chineses um atributo essencialmente feminino. Os deuses escolhem deusas belas. Casam-se e vivem em sistema de concubinato numa harmonia perfeita. No relato das Damas de Xiang, as duas deusas do rio Xaing são de uma beleza inexcedível. As princesas da água, respectivamente Ehuang e Niuying , filhas de Yao, foram cedidas pelo pai a Shun, o quinto imperador. E foram todos muito felizes. Quanto Sun morreu as damas choraram abundantemente…

BELDADES ACTIVAS. Os chineses vivem deslumbrados e aterrorizados com beleza feminina. Abundam os relatos de perdição, por causa de belas megeras. Não têm conta as estórias de imperadores, nobres e até homens vulgares que “caíram nas garras” de damas muito sedutoras. Assim, cito dois entre os inúmeros casos famosos, Zouxin, o terceiro imperador Shang, distinguiu-se pelos seus actos malévolos. Tinha uma força extraordinária e adorava toda a espécie de prazeres. Possuía também uma concubina, Daji, a quem procurava satisfazer, através de suplícios horrorosos, que infligia aos que caíam em desgraça. Dizem que por ela se perdeu a dinastia Shang. Outro caso, este já na dinastia Zhou, é o do imperador You e da sua paixão por Baosi. Ela não ria e o imperador, que adorava a concubina, tentava que ela sorrisse. Até que um dia descobriu que o som do rasgar da seda lhe despertava um leve sorriso. Escusado será dizer que, a partir de então se rasgaram quilómetros de seda, por causa daquele sorriso. Mais tarde, You conseguiu que ela risse. Para tal mandava acender o lume numa torre tipo farol. Mas o fogo costumava chamar a atenção dos estados vassalos de Zhou para o facto do soberano necessitar de auxílio. Tantas vezes ele acendeu o lume só para ouvir o riso da sua concubina favorita quando os guerreiros acorriam em vão, que, certa vez, era mesmo preciso apoiar o imperador e ninguém se mexeu ao ver a fogueira. E assim se perdeu a dinastia Zhou.
A mais temida de todas as figuras femininas é a da bela activa, porque na China a bela não liberta o monstro, pelo contrário, revela o monstro…

14 Ago 2023

O calão chinês

O calão chinês é muito interessante. O seu estudo possibilita a compreensão de algumas características psicológicas fundamentais do povo chinês.

Os elementos tradicionais na cultura chinesa têm um sentido específico nesta gíria. Assim, a madeira representa a estupidez. Uma pessoa pouco dotada ou lenta é uma cabeça, ou pedaço, de madeira: mu dou ge da. O fogo e a água têm sentidos complementares, ou opostos, diríamos nós à maneira ocidental. O fogo, huo, simboliza a inteligência, o entusiasmo e o calor. Negócios em fogo, ou como um fogo vermelho, hong huo, estão muito prósperos, se fosse à portuguesa iam de vento em popa. A água, shui, representa a frieza, o excesso, a falsificação: a do mar é usada para referir algo de muito vasto. Um falador é uma boca de mar, hai kou, e de um grande beberrão, diz-se que aguenta um mar. Logo, uma chuva miudinha, mao mao yu, só podia ser um assunto sem importância. A água em geral, shui, é utilizada para significar a falta de qualidade. Shui huo é uma mercadoria de segunda e shui fen é um produto falsificado.

Possui um vento brilhante, feng guang, quem tem fama e posição social. Lei, ou o trovão, é usado como metáfora para todo o tipo de calamidades e catástrofes. Já o raio, zhen, tem melhor destino, pois significa sensações fortes, agitação, começo.

O ferro, quando aplicado às relações, significa intimidade e estabilidade. Um amigo íntimo é de ferro, tie ci, mas uma pessoa de ferro e, sobretudo, um galo de ferro, não tem bom sentido, refere alguém de natureza má e agarrada ao dinheiro. E, ainda, uma boca de ferro, tiezui, é um falador nato. A terra, tu, é o elemento da falta de sofisticação e ignorância. Um ser telúrico é rude e pouco trabalhado.

Os vegetais nem sempre têm um sentido muito positivo na gíria chinesa. Uns planos que vegetaram, caile, deram com os burrinhos na água. E ter cor de vegetal, aquela entre o verde e o amarelado, é um péssimo sinal, pois pode revelar doença. Porém, alguém que come vegetais, chi su de, revela uma natureza maleável e de trato fácil.

Por que motivo em calão chinês despedir alguém é fritar uma lula, chao you yu, é mistério digno daquele que foi o grande Império do Meio. A comida tem os seus riscos e os medicamentos também. Diz-se de quem tem um comportamento mal-educado, ou impróprio, que tomou o medicamento errado, chi cuo yao le. Também os que comem pólvora, chi qiang yao, são malcriados.

Para falar de relações sexuais, sobretudo quando aplicadas a mulheres, nada melhor do que o dou fu. Quem come dou fu, chi dou fu, está a deleitar-se sexualmente com uma mulher que não é a sua. E, ainda, um pequeno artigo ou obra publicada num jornal é um pedaço de dou fu – dou fu kuai.

O mamar doce significa na gíria comer algo tenrinho, chi ruan fan, e aponta especialmente homens que vivem à custa de mulheres.

Os que são desconfiados comem o (próprio) coração, chi xin. A personificação do egoísmo é dada pela expressão comer sozinho, du shi. Esta refere quem não gosta de partilhar comida ou outros bens.

La mei zi é uma rapariga com picante, quer dizer, corajosa e de língua afiada. E a comida é bonita, mei shi, se for deliciosa, porque os chineses têm uma alma estética verdadeiramente gastronómica. Assim, um bom garfo não é aquele que come muito, mas o que ingere comida bela: meishijia. A namorada, a amante, ou a mulher são puro mel, mi, tal como na tradição anglo-saxónica. Já a massa, especificamente no calão, porque no dia-a-dia simboliza longevidade, é usada como metáfora para indivíduos fracos ou moles. Os massas chineses são os nossos pastéis.

O branco umas vezes representa pureza, como quando é utilizado em bai shengsheng, a fim de referir a alvura da pele de uma mulher, no entanto pode, ainda referir o que é simples, vulgar e até traiçoeiro. Neste último caso, aparece frequentemente associado ao olho branco do lobo.

Uma pessoa muito famosa é da hong da zi, ou seja, muito vermelha e muito púrpura. Mas o encarnado nem sempre tem um sentido positivo, por vezes representa ciúme e ressentimento, como na expressão : ter a doença dos olhos encarnados.

O preto possui um sentido muito pejorativo, significa a ganância, a maldade e a esperteza velhaca. Quando se quer falar de alguém ganancioso e mau diz-se ter coração preto, hei xin, ou de lobo, lang xin .

O amarelo, na gíria, nem sempre simboliza o melhor. O tio amarelo, huang bobo, fala à toa, irresponsavelmente. Mas já uma flor amarela, até no calão, é usada para sugerir uma virgem, huang hua gui nu. Também os celibatários são identificados com a cor amarela, quer no masculino quer no feminino – huang hua hou sheng e huang niu. A revista pornográfica e outro material especificamente sexual é amarelo.

As costas, em estar de costas, traduzem o azar. Nós diríamos para situações deste tipo que acordámos de rabo voltado para a lua. Os olhos são as nossas janelas para o mundo no calão chinês. Algo ou alguém que não é chamativo não faz levantar os olhos, quando o é, pelo contrário, bate nos olhos ou fere a vista.

Os pés e os sapatos têm um sentido muito especial na cultura chinesa. Ninguém ainda esqueceu os famosos lótus de oiro, ou as damas de pés deformados. A quem pretende fazer a vida num inferno a alguém, diz-se que quer (levar a) calçar sapatos de cristal, isto é, muito pequenos e apertados: chuan shui jing xie.

O sangue anda associado ao sofrimento físico e psíquico. Sair sangue, chu xie, utiliza-se para aquele que tem de pagar uma soma avultada e vomitá-lo, tu xie, significa que alguém está, ou vai, vomitar o dito, por uma acção que terá ou não cometido.

Soprar, chui, é vangloriar-se no calão e os narizes grandes, da bizi, somos nós, os estrangeiros. Por isso, não temos grande beleza. Já um nariz velho, lao bi, é empregue para falar de excesso ou grande duração. Assim, muito tempo decorrido, ou uma grande quantia gasta são narizes velhos. Ainda em relação à idade, há algumas expressões particularmente grosseiras na gíria chinesa: os mais velhos são os que não há meio de morrer – lao bu si de. Os ignorantes e as pessoas do mundo rural também são velhos, ou saloios à portuguesa: lao maor.

Moer os dentes, mo ya, é uma metáfora empregue para falar horas a fio, ou sem nexo. Ter o coração barulhento, nao xin, é estar terrivelmente irritado. Um cabeçudo, tou da, é alguém que pode ter uma dor de cabeça física ou psíquica, neste último sentido porque se vê terrivelmente atrapalhado com algo. Um cabeça ou cabecilha, tal como em português, é um chefe, no bom ou no mau sentido. E gostar de brincar à maneira yin (feminina), wanr yin de, significa apreciar esquemas e jogos baixos. Mais uma leitura favorável do elemento feminino…

Tanto na gíria chinesa como portuguesa, há quem tenha a língua comprida. Para os descendentes do dragão, parece ser da mulher este atributo, assim diz-se chang she fu, ou mulher de língua comprida. Os chineses têm, ainda, o rabo comprido, wei ba chang, quando não fecham as portas e as coisas podem ir por água abaixo, ou melhor, por mar abaixo, no País do Meio, quando não correm bem. Há tábuas rasas, cuo banr, em Portugal e na China, só que aqui sair ao pai tem os sentidos acrescidos de fraqueza e fragilidade.

O nosso emprenha pelo ouvido possui uma certa correspondência em chinês. Aos influenciáveis chamam-lhes os orelhas moles – erduo gen zi ruan. A expressão febre para referir obsessões e fanatismos também é comum na China. É a fashaoyou, ou febre dos vídeos, dos telemóveis, etc..

Há estrelas, xing, sobretudo no mundo do espectáculo, a oriente e a ocidente.

Na China, as pessoas também se atrevem a mostrar os dentes, gan ya kai, especialmente no universo do comércio, quando pedem elevadas somas por um determinado produto. A electricidade funciona como metáfora sexual, ainda, na Terra Amarela e tem-se um choque eléctrico, guo dian, quando nos cruzamos com alguém muito atraente. Às promoções em flecha, habitualmente referidas aos quadros, chamam-lhes flechas de fogo – huo jian gan bu.

Há teimosos como mulas, jue lu, em Portugal e na China. Também no País do Meio se abre os olhos, kai yan e não se tem cura, meizhi, quer em território luso, quer chinês, com uma diferença: ser um caso perdido pode significar algo extremamente positivo, como um espectáculo muito bom, no Oriente.

Na cultura chinesa, que é eminentemente rural, o galo, tanto ao natural, como de fogo, tem um sentido óptimo, mas se for artificial, a saber de ferro, como já vimos, ou de porcelana representa uma pessoa má. Alguém com voz gutural e rouca tem voz de pato, gong ya sang zi. Às galinhas, ji, é reservado o triste fado da prostituição e os gatos, sobretudo esmaltados, liuli mao, são do pior. A vaca, niu, no calão chinês, simboliza o orgulho, a arrogância e o vangloriar-se. Os cobras, renshe, são imigrantes ilegais e o chefe cobra, shetou, é um traficante de gente.

Os idiotas chapados são 205, ou er bai wu. O 2 tem um sentido muito próximo da gíria portuguesa. Existem cidadãos de segunda e, claro, mulheres de segunda. Estas são as que casam pela segunda vez, er guo tou ou er hun. Também a amante é uma segunda mulher, er nai e uma senhora, que perdeu a virgindade ou é divorciada, é uma mercadoria de segunda, er shou huo. Se juntarmos o 2 ao 5, obtemos 25, que representa uma pessoa incompetente. E há 5 vícios maus, wu du ju quan: a gula, a bebida a luxúria, o jogo e a droga.

A gordura não é formosura como há uns tempos em Portugal, mas felicidade e riqueza. Assim, quem engorda, fa fu, cria felicidade e riqueza.

Das crianças é rei, haiziwang, aquele que é naturalmente líder, ou então, pasme-se a ocidente, o professor. E atenção às madrastas, porque ser criado por uma madrasta quer dizer receber pouca atenção. Os novos imperadores são os filhos únicos e os deuses, shangdi, os consumidores. A propósito, quem tem uma conta para enterrar, maidan, ou melhor, para pagar?

9 Ago 2023

Voos imortais

Só os pássaros imortais voam na verdadeira acepção do termo, isto é, livremente, sem quaisquer condicionalismos ou restrições naturais; os outros, os pássaros do mundo foram feitos para voar: voam segundo um plano estabelecido pela própria ordem natural. Têm uma liberdade condicionada, mesmo assim representam, para maioria das culturas – e os chineses não são excepção –, uma ordem superior, simbolizam, habitualmente, os valores mais sagrados para as sociedades humanas.

Os chineses que, como todos os orientais, mais facilmente criam empatia com os seres da natureza, identificam-se inteiramente com os pássaros. Estes são imagens vivas de homens e mulheres, de seres sábios, poderosos, autênticos, livres, imortais. Os símbolos variam ou aperfeiçoam-se consoante a filosofia que os adopta.

Assim, para os confucionistas os pássaros, especialmente as fénix masculinas, personificam o governante justo, que traz consigo o mandato do céu e o dita à terra. Para os daoístas, os pássaros são, na maioria dos casos, símbolos da liberdade, autenticidade e sabedoria imortais. É interessante notar que, tanto para os daoístas como para os confucionistas, simbolizam os vários tipos de poder.

Mas os pássaros não são escolhidos apenas pelas filosofias eruditas para representar uma ordem ética e ontológica superior: também ao nível popular é completa a identificação entre as aves e o melhor que a natureza humana tem. Os pássaros aprisionados simbolizam os próprios grilhões humanos.

Diz-se que antigamente os homens ricos da China tinham belos pássaros engaiolados que identificavam com concubinas. Tanto as aves como as concubinas estavam inteiramente à mercê destes poderosos e serviam apenas para lhes ornamentar o ego, por causa da sua bela aparência.

Entretanto, a sociedade chinesa foi-se democratizando, no sentido mais etimológico da palavra, e hoje o costume popularizou-se, por isso, já encontramos muitos homens do povo a passear as suas belas “concubinas” nas ruas e nos jardins.

A Fénix, que como vimos pode ser masculina, representa normalmente o princípio feminino. Ela é a parceira do dragão e simboliza a imperatriz. Qualquer mulher que a traga pintada, por exemplo, na roupa, é “rainha” enquanto a ostentar. O corpo da fénix representa as cinco qualidades consideradas humanas: a cabeça, a virtude; as asas, o dever; as costas, o comportamento; o peito, a humanidade; e o estômago, a confiança. Já a fénix masculina é a incarnação de uma ordem e de uma justiça sobre-humanas, como nos recorda, tanto Confúcio, como Zhuangzi, o segundo maior filósofo daoísta.

Numa fábula apresentada por este filósofo daoísta, a coruja possui uma sabedoria inteiramente mundana, luta pelos bens da terra e tritura tudo o que lhe possa dar alimento, como ratos mortos e já meio decompostos. Ela representa o homem prisioneiro do mundo que pretende governar; a fénix, pelo contrário, aparece, em contraponto, como uma ave sobrenatural, surgida do mar Meridional, em voo para o mar do Norte. Esta pousa apenas em certas árvores sagradas, come e bebe de fontes celestiais (XVII,2).

Os pássaros, como todos os outros seres, estão condicionados pela sua própria natureza, têm asas, é natural por isso a sua apetência para o voo, que personifica o gesto verdadeiramente livre. Deste modo, as aves optam pelos impulsos espontâneos que as governam, opondo-se, sempre que lhes surge oportunidade para tal, a ordens artificiais, como a humana.

Segundo a filosofia daoísta, o caminho da liberdade é preparado pela obediência à natureza de cada um. Assim, Zhuangzi relata-nos que um pequeno faisão do pântano tem pular dez vezes sobre um pé, só para comer razoavelmente e deve correr cem passos antes de beber um pouco de água. Não obstante o esforço, evita o galinheiro onde poderia sobreviver sem canseiras. (III,3)

Pássaros como os grous são símbolo, por exemplo, de figuras humanas imortais e, como tal, da própria sabedoria imortal.

Corre que Qing Wu, o pai do Feng Shui, ou Fong Soi em cantonense, terá vivido durante a dinastia Han e adquirido a sua sabedoria intuitiva de grous imortais. Estes metamorfosearam-se em homens para lhe transmitirem a sabedoria divina. Foi assim que ele aprendeu a reconhecer a energia que flui na terra e a seleccionar os locais para sepulturas, susceptíveis de transformarem em reis e sábios todos os descendentes de defuntos que nelas fossem enterrados.

Os pássaros não são apenas o símbolo da liberdade, dos poderes humanos e divinos, da sabedoria imortal, da feminilidade, nuns casos, da masculinidade, noutros; eles são também, em muitas das lendas chinesas, o porto de abrigo de almas desprotegidas e atraiçoadas. Recebem as almas, protegem a sua autenticidade e verdade mais profundas e, depois, devolvem-nas à vida, no momento oportuno, para que seja feita justiça. Após este abrigo, os ressurgidos são felizes para sempre.

Quantas raparigas chinesas, mortas à traição, não se transformaram em pássaros encantados para depois recuperarem a forma humana e a felicidade junto de familiares, amigos, ou amantes de que tinham sido afastadas?

Há muitas lendas sobre este tema. Entre elas, por exemplo, a do Homem-Cobra. Este ficou sem a mulher, depois de uma irmã mais nova a ter morto para poder ocupar o seu lugar. A rapariga transformou-se num pássaro encantado que ia contar a sua história a uma das janelas da casa do novo casal. A irmã mais nova apanhou o pássaro, comeu-o e deitou os seus ossos à terra. Passado pouco tempo, no lugar dos ossos cresceu um lindo bambu, onde se abrigou a alma da irmã mais velha. A irmã voltou a cortar o bambu e fez dele um fole, que acabou por dar a uma velha pedinte. Esta, ao cabo de várias peripécias, recuperou a rapariga, proporcionando assim um reencontro feliz entre o homem-cobra e a sua mulher. O pássaro, ou melhor os seus ossos, transformaram-se em mais um elemento do ar, a madeira do bambu, que permitiu continuar a albergar aquela alma desprotegida pela sociedade humana, mas votada, devido à protecção das aves, a regressar à vida.

Não têm conta na tradição chinesa os milagres narrados de retorno à existência que os seres do ar proporcionam aos humanos.

Os pássaros acolhedores preservam as almas, alimentam-nas e devolvem-nas tão puras como anteriormente, mas muito mais leves, porque as libertam, com o auxílio do tempo, das penas que as haviam afligido.

Há, por isso, que sabiamente seguir a via dos pássaros chineses e optar, sempre que possível, pela liberdade. Esta não é uma liberdade imortal, plena, mas uma liberdade obediente, condicionada aos ritmos da própria natureza. Tece-se na submissão ao quotidiano, é a liberdade possível.

Há, ainda, segundo a sabedoria das aves, uma espaço a evitar – o do cativeiro, o das gaiolas, o das prisões artificiais, criadas pela mente e mãos humanas, que tantas vezes se atraiçoam a si próprias e aos outros. Quando a situação de cativeiro acontece, há que seguir, mais uma vez, o exemplo das aves: suportá-la estoicamente e aproveitar para escapar ao primeiro descuido dos donos.

2 Ago 2023

O Preto e o Negro Chineses

No Ano do Coelho de Água, que dominará em 2023 e afectará particularmente nativos deste signo entre 22 de Janeiro de 2023 e 10 de Fevereiro de 2024, estamos sob o domínio do Coelho Yin ( 陰/阴兔Yīntù) do elemento Água, cuja cor é o preto.

Começando pelo sítio certo. Há uma ligação ao princípio feminino Yin (陰/阴 Yīn), que se sabe ser complementar do princípio masculino Yang (陽/阳 Yáng), representando o masculino, do ponto de vista caligráfico, o lado solar da encosta, e o feminino, a sua parte nebulosa ou sombria. O Yin, enquanto propiciador de uma tabela de categorias, é receptivo, pesado, escuro, opaco e lunar, sendo complementar do Yang Criativo, leve, claro, transparente e solar.

No Clássico das Mutações, se pensarmos em termos de cor, surge ligado ao hexagrama 2 do feminino e receptivo, à mãe Terra (坤 kūn), que tem como representante cromático o preto, mas uma vez que este animal se associa também à Água (水 shuǐ), carrega consigo as características do abissal e perigoso, que nos são transmitidas no hexagrama 29 (坎卦Kǎn Guà), numa conjugação dos dois trigramas da Água, na qual duas linhas Yin receptivas têm ao centro uma linha Yang criativa ou, numa outra leitura possível, são atravessadas por uma linha Yang, o que implica um mergulho nas profundezas escuras do oceano para nele conseguir captar a luz. Ou ainda, numa leitura antropológica, a linha Yang será a alma no interior do corpo, indicando o Juízo deste hexagrama: “O Abissal repetido. Se fores sincero, alcançarás o sucesso com o teu coração. E tudo o que fizeres, será bem-sucedido”/ 習坎,有孚,維心亨。行有尚。 (Wilhelm, 1989:115; 張 84: 127).

Neste hexagrama confronta-se o perigo com o bom exemplo da água, que flui encontrando o melhor caminho sem desafiar os obstáculos, por envolvimento, penetração e diluição. Quanto ao Coelho, regente deste ano, de acordo com a astrologia chinesa, é um animal sensível, pacífico, familiar, diplomático e, neste ciclo, sábio, advindo-lhe esta última virtude da ligação ao elemento Água. Ao indagar-se pelas características da Água, de acordo com a divisão dos cinco elementos, realizada na Medicina Tradicional Chinesa, obtemos que pertence à Noite; ao Inverno, enquanto estação do ano; ao Frio, como categoria climatérica; à Saliva, a título de fluído; aos Ossos, para os tecidos; aos Genitais, como orifício; aos Rins, na categoria de órgão; e ao Salgado na qualidade de sabor. É da água, portanto, o domínio da noite, das profundezas, da escuridão, intimamente ligadas, por um lado, ao preto, por outro, ao negro. Preto e negro não significam o mesmo, embora apontem para a mesma referência cromática.

Preto, diz-se em chinês hei (黑hēi), opõe-se à cor branca, bai ( 白bái). Do ponto de vista caligráfico, o preto é uma chama (炎 yán) sob uma janela ou chaminé, à qual vai escurecendo com o seu fumo ou fuligem. O preto é então o traço complementar do fogo, os vestígios e as marcas da chama nas paredes, a sua sombra. Está intimamente associado à existência concreta. Na língua chinesa, é empregue a título de oposto do branco em heibai (黑白 hēibái), “preto e branco” no sentido de contraste, do certo e errado, onde o positivo surge do lado do branco e o negativo do lado do preto, mas também para caracterizar as cores concretas, incluindo de pessoas e etnias, sendo os africanos apelidados heiren (黑人hēirén), tal como aos americanos e ingleses lhes chamam Black people.

O preto é, ainda, empregue para definir o lado sombrio e marginal da existência, por exemplo, em black market, aquele ao qual os portugueses catalogam de “mercado negro”, em chinês, heishi (黑市hēishì), sendo também pretas as sociedades criminosas, as heishehui (黑社会hēishèhuì), bem como pessoas extremamente ambiciosas, engenhosas e até maliciosas, dessas afirma-se no calão chinês que possuem “coração preto”黑 (心) (李、顏1998:90). Pelo que também as palavras enganosas se dizem “palavras pretas” ou heihua (黑話/话), seguindo a mesma lógica, há um “humor preto”, ao qual os portugueses chamariam “humor negro”, quer dizer, heise youmo (黑色幽默hēisè yōumò ).

No que se refere ao dia-a-dia da língua chinesa, vê-se então que o preto está frequentemente associado ao mundo marginal, o das seitas, da economia paralela, das pessoas extremamente ávidas, que não olham a meios para atingir os fins, desregradas e até das que manifestam as forças do mal heishili (黑势力 hēishìlì); mas não se pode esquecer o lado positivo, no qual surge a terra preta, denominada heitu (黑土hēitǔ) e a noite negra, em chinês, heiye (黑夜 hēiyè).

Chegou a altura de analisar a distinção entre o preto e o negro. Este último assume uma dimensão filosófica que não é atribuída à cor preta, telúrica e basilar. O negro, do ponto de vista elemental, projecta para uma zona misteriosa das profundezas oceânicas, ou ainda das alturas celestiais, quando se visualiza uma luminosa noite negra ou, em máxima complementaridade, um imenso e misterioso buraco negro.

A pérola negra é uma das metáforas preferidas dos taoistas, nomeadamente Zhuangzi (莊子/庄子), o segundo maior filósofo desta linha, que viveu durante o Período dos Reinos Combatentes entre c. 396-286 a.C. Na obra homónima, 《庄子》 procurou transmitir o núcleo dos seus princípios filosóficos recorrendo a metáforas e parábolas de grande valor artístico, da melhor literatura de todos os tempos. O filósofo emprega no Livro 12 a imagem da Pérola Perdida para se referir ao Tao (道 Dào) , sendo este descrito como uma pérola misteriosa, caso se prefira, mágica, que tudo pode transformar sem se perceba nem o seu saber, nem como o realiza e muito menos porque razão o faz tão espontaneamente, deixando todos surpreendidos, a começar pelo Imperador Amarelo (黄帝 Huángdì), o símbolo da sabedoria discursiva, clara, luminosa e disciplinada, a complementar, portanto, a mais enaltecida pelos taoistas, a lunar, difusa, aquática e intuitiva, enfim a verdadeira sabedoria que se encontra a um nível numenal e, por isso, escapa por completo ao entendimento humano. Conta Zhuangzi:

O Imperador Amarelo quando se dirigia para o Norte das Águas Vermelhas, subiu à Montanha Kunlun e olhou na direção Sul. Ao regressar a casa, percebeu que tinha perdido a sua pérola negra (玄珠 xuánzhū). Enviou então o conhecimento à procura dela, mas ele não a conseguiu descobrir; mandou de seguida a visão em seu encalço, que não a encontrou; ao que se seguiu o discurso que também não a achou. Por fim, encarregou o Nada desta missão, que a encontrou. Ao que o Imperador Amarelo exclamou: “Que estranho! Só o Nada descobriu a pérola cor-da-noite”.

(黄帝游乎赤水之北,登乎昆仑之丘而南望。还归,遺其玄珠。使知索之而不得,使离朱索之而不得,使喫诟索之而不得也;乃使象罔,象罔得之。黄帝曰:“异哉!象罔乃可以得之乎!“ ) (Zhuangzi, 1999, XII: 4)

Concluindo, o preto assume, tanto em chinês como em português, um sentido filosófico importante quando é elevado a negro, desapegando-se assim da realidade imediata, concreta e material. Adquire então uma forma profunda, misteriosa e mágica que o colocam em ligação espontânea e directa com o mundo numenal.

Liberta-se de toda a carga fenomenal de que é investido no mundo que nos rodeia, também conhecido em algumas filosofias como mundo das ilusões e da aparência. Há portanto para o preto duas dimensões distintas, uma em que é uma cor vulgar ao mesmo nível das outras, partilhando das acepções positivas e negativas que lhe são atribuídas no mundo chinês, e não só; outra misteriosa, abissal em que tudo pode, como representante duma dimensão transcendente, na qual é portador das energias primordiais, sendo uma espécie de “cinturão negro” marcial, uma prodigiosa manifestação energética na vida, que se eleva aos céus ou mergulha nas profundezas misteriosas, para resolver dificuldades e transpor os obstáculos de um modo aparentemente fácil, munido da simplicidade modelar que lhe advém da sua ligação ao princípio Yin e à sabedoria da Água.

 

Bibliografia

Alves, Ana Cristina. 2005. Sabedoria Chinesa. Cruz Quebrada: Casa das Letras/ Editorial Notícias.
Jorge, Cecília, Beltrão Coelho. 1988. Medicina Chinesa. Em Busca do Equilíbrio Perdido. Macau: Instituto Cultural de Macau/ Ciclo dos Leitores.
Li Shujuan, Yan Ligang . Ed. (李淑娟, 颜力鋼). 1998. Chinese-English Dictionary of Modern Slang of China. 《漢英中國新俚語》. 香港:海峰出版社.
Merton, Thomas. 1999. A Via de Chuang Tzu. Petrópolis: Editora Vozes.
Shi Zhengyu. 1997. Picture Within a Picture. An Illustrated Guide to the Origens of Chinese Characters. Beijing: New World Press
Wilhelm, Richard. 1989. I Ching or Book of Changes, versão inglesa de Cary F. Baynes, Prefácio de C.G Jung, 4ª ed. London: Arkana Penguin Books.
張中鐸(編)《易经提要白話解》台南市:大孚,民84.
Zhuangzi (《庄子》). 1999. Vol. I e II Tradução para Inglês de Wang Rongpei (汪榕培) e para Chinês moderno de Qin Xuqing e Sun Yongchang. (秦旭卿、孙雍长) .Hunan, Beijing: Hunan People’s Publishing House, Foreign Language Press

27 Abr 2023

Os Pictogramas e o Espelho da Natureza

Durante longo tempo houve animada esgrima nos campos da sinologia linguística. Uns defendiam que a escrita chinesa não deveria ser considerada essencialmente imagética, pois era tão convencional e arbitrária como qualquer outro sistema linguístico, outros como Bernhard Karlgren (1889-1978) em Sound and Symbol in Chinese (1990) procuravam realçar o carácter pictórico desta escrita.

Uma leitura atenta da referida obra de Karlgren é o suficiente para se compreender que o sinólogo não teve qualquer intenção de reduzir a escrita chinesa a pictogramas. Ele reconhece claramente que os pictogramas constituem um décimo deste tipo tão original de caligrafia, sendo a maioria dos caracteres compostos por uma parte ideográfica, e uma outra fonética. Diz-nos o autor que:

“os chineses descobriram um meio simples e conveniente de criar novos caracteres ad libitum no método de compor novos caracteres, por meio dum indicador de sentido, o radical, e um indicador de som, o elemento fonético: a esmagadora maioria dos caracteres chineses – cerca de nove décimos- é composta desta forma.” (Karlgren, 1990: 44)

O sinólogo defende que a escrita chinesa começou por ser imagética, procurando desenhar e reproduzir a natureza duma forma realista, tentava imitá-la para a referir, mas aos poucos foi evoluindo para um sistema linguístico bem mais abstracto e complexo, aproximando-se com os seus compostos dos tipos fonéticos de escrita. Veja-se como resume a evolução da escrita chinesa:

“a primeira fase foi a da escrita imagética, que continuou por longo tempo, até que o stock de caracteres foi alargado, primeiramente por compostos lógicos, mais tarde por compostos fonéticos.” (Karlgren, 1990: 47)

Como devemos denominar os caracteres chineses é, sem dúvida, uma questão pertinente no âmbito da Sinologia. Há quem lhes chame ideogramas, uma vez que cada caracter transmite uma ou várias ideias, há quem os considere, na esteira de Bussmann (Apud Peixoto, 2014: 19), semeogramas, pretendendo com o termo derivado da semiologia de Saussurre, enfatizar o aspecto semântico-visual da escrita como refere Bruna Peixoto no seu trabalho Chinês e Português, Distância Linguística e Sociocultural (Ibidem).

No que me diz respeito prefiro a nomenclatura escolhida por Alexandre Li Ching, o autor de A Estrutura da Língua Chinesa (Li 1994: 34), que, denomina as palavras chinesas caracteres ou ideogramas, dividindo-os em seis categorias:

• Pictogramas, que o autor define como tendo por origem objetos desenhados: sol(日 rì); cavalo(马mǎ); fogo(火huǒ); água(水 shuǐ), há cerca de seiscentos na língua chinesa;
• Ideogramas, ou seja, os compostos lógicos de Karlgren, que indicam esquematicamente as ideias: um (一 yī); dois(二èr); três(三sān); cima (上shàng); baixo (下xià), sendo cerca de 100;
• Ideogramas compostos, em que o sentido é obtido pela relação ou associação dos componentes claro (明míng), paz(安ān); bom(好 hǎo); homem(男nán), são cerca de 750;
• Ideofonogramas, caracteres constituídos por um elemento que transmite a ideia, o ideoclassificador, surgindo habitualmente associado ao radical, e um outro componente, a parte fonética, que indica a pronúncia, como: açúcar( 糖táng),machado(斧 fǔ), mãe (妈mā), pai(爸bà), estes constituem a maioria dos caracteres.
• Símbolos transferidos, caracteres em que se procede a uma extensão ou alargamento do sentido primitivo, sendo um dos caracteres mais utilizados para exemplificar esta classe, 网wǎng, que de rede para apanhar peixes alargou o seu sentido até à internet (网络wǎngluò、网上wǎngshàng、网站wǎngzhàn)
• Falsos empréstimos, caracteres utilizados pelo seu valor fonético, que representam na origem uma palavra apenas homófona, por exemplo 来lái, que era espiga duma espécie de grão, tendo passado a significar o verbo vir.

Entre os seis tipos de caracteres chineses, vamos então encontrar os pictogramas, aqueles caracteres que traduzem o espírito essencial, no sentido de primevo da escrita chinesa. Esta procurou na sua génese mimetizar a realidade, proporcionando à comunidade chinesa desenhos ou imagens fidedignas da mesma. Se não pretendessem sê-lo, o valor utilitário da comunicação teria diminuído. Porém, não é intenção com o afirmado reduzir a primeira escrita chinesa a um conjnto de símbolos utilitários, já que o ser humano revela, desde o seu aparecimento, uma forte tendência lúdica e artística.

A principal questão que se coloca a este tipo de escrita do ramo sino-tibetano, definida como ideográfica ou semântico-visual, é: se os pictogramas se podem definir exclusivamente como desenhos da realidade e o que tal significa?

Será que um desenho da realidade implica apenas uma cópia da mesma, realista, ou até segundo algumas tendências contemporâneas, hiper-realista, e, portanto, um olhar e um traço dominado pelo objeto? Ou desde o primeiro momento encontramos uma postura ativa do comunicador, do artista e do ser religioso que apresenta, oferece e nomeia a realidade que o interpela?

Defendo que os pictogramas já poderiam ser introduzidos na classificação de ideogramas, uma vez que tendem a ser esquemas da realidade, ou seja, interpretações do criador linguístico.

A este respeito, um exemplo notável é a introdução da escrita do Pequeno Selo (小篆Xiǎozhuàn), pelo primeiro-ministro de Qin Shihuang (秦始皇Qínshǐhuáng), Li Si (李斯Lǐsī), que, conforme relata Karlgren, se distinguiu na caligrafia, criando “um novo catálogo oficial de caracteres para orientação dos escribas. Ele fez o possível para preservar os antigos caracteres, mas simplificou-os, tendo substituído com frequência os velhos desenhos por algumas linhas sumárias.” (Kalgren, 1990:48)

A meu ver, desde cedo encontramos uma postura extremamente ativa da parte daquele que regista e nomeia a natureza circundante. A comunidade linguística chinesa revelou a tendência de fixar e preservar a realidade duma determinada maneira, mais próxima da natureza, menos abstracta, manifestando um notável espírito realista e atenção ao pormenor. Talvez estas características não sejam exclusivas da mente chinesa, já que encontramos na escrita hieroglífica, por exemplo, na egípcia, o mesmo tipo de tendência.

O que parece ser específico da mente chinesa é a incorporação e preservação dos seus pictogramas até à atualidade. Estes caracterizam-se por serem cópias deliberadas da natureza circundante, considerada perfeita para a transmissão das mensagens quotidianas, religiosas e artísticas.

Para exemplificar o tipo de espírito que creio ter estado na base dos registos pictóricos, perpetuados até à atualidade, relato a história proverbial conhecida pela grande maioria dos chineses: O Peito Transformou-se em Bambu, atribuída ao registo poético de Chao Buzhi (晁补之, 1053-1110) da Colectânea Costela de Galinha (鸡肋集 Jīlèi JÍ), um título humilde, indicando coisas sem valor. E, no entanto, daqui é extraída uma das mais interessantes histórias proverbiais chinesas, Xiōngyǒu-chéngzhú (胸有成竹)que pode ser traduzida por “O peito transformou-se em Bambu”

O Peito Transformou-se em Bambu

Nos tempos da dinastia Song, viveu Wen Yuke na província de Sichuan, ele pintava muito bem. Gostava especialmente de pintar bambu, por isso plantou um bambual nas traseiras de casa que podia observar com todo o rigor da sua janela na Primavera, no Verão, no Outono e no Inverno, de manhã ao anoitecer, fizesse chuva ou sol.

Seguia minuciosamente as mudanças e as formas dos ramos e das folhas do bambu ao longo das quatro estações, após o que procurava ser o mais fiel possível ao bambu nas suas pinturas.

Ao tempo vivia também um letrado chamado Chao Buzhi, que muito admirava o talento de Wen Yuke para pintar o bambu, tendo escrito um poema em seu louvor, onde se podia ler: “Wuke ao desenhar, já tem o peito transformado em bambu.” Tal significa que Wen Yuke ao pintar já possuía a imagem completa do bambu.

(胸有成竹)
宋朝的时候,四川有一个叫文与可的人,他很会做诗画画儿,特别喜欢画竹子。在他的窗前房后,种了很多竹子。从春夏到秋冬,从早晨到晚上,不论晴天雨天,他总是仔细地观察那些竹子。竹子的枝叶在不同的季节,不同的时间,不同的气候下是什么样子,有什么变化,他都观察得很仔细,他画的竹子跟真的一样。
那时候有一个文学家叫晁补之,非常佩服文与可画竹子的才能,而且写了一首诗来称赞他。其中有两句说: “与可画竹时,胸中有成竹。”意思是文与可画竹子的时候,胸中已经有了完整的竹子形象。) (北京语言学院,1984, 75-77).

Também a escrita e a caligrafia chinesas possuem imagens completas e profundas da realidade que pretendem retratar, esquematizar, idealizar ou recriar, gerando-se entre o que escreve a escrita uma identificação profunda, por osmose, porque de tanto contemplar se transforma o contemplador na coisa contemplada ou, como diria Luís de Camões, o amador na coisa amada.

Bibliografia

北京语言学院编(Instituto de Línguas de Beijing, ed.) 1984《基础汉语课本》阅读材料。Proverbes Chinois Annotes成语故事选.北京:外文出版社
Karlgren, Bernhard. 1990 [1962] Sound and Symbol in Chinese. Hong Kong: Hong Kong University Press.
Lai, T.C (赖恬昌)1980 Chinese Characters. Hong Kong: Swindon Book Company
Li Ching, Alexandre. 1994. A Estrutura da Língua Chinesa《汉语结构》Lisboa: Fundação Oriente.
Peixoto, Bruna. 2014. Chinês e Português, Distância Linguística e Sociocultural. Famalicão: Instituto Confúcio da Universidade do Minho, Húmus

20 Abr 2023

Budismo Chinês: Mentalismo com Características Chinesas

Numa breve contextualização histórica do Budismo com características chinesas, acredita-se que este, fundado por Gautama Shakyamuni (c. 560-c. 480 a.C.) príncipe indiano, afastado do poder real para nutrir a via espiritual, terá entrado na China na versão do Grande Veículo, Mahāyāna (大乘Dà Chéng ), aquela que se desenvolveu a partir do século III a.C., surgindo como um alargamento de via, já que floresceu a partir do Pequeno Veículo, Hīnāyāna (小乘Xiǎo Chéng), na crença de ser possível renunciar à iluminação total em prol do benefício da humanidade, a favor da qual Budas cederiam o seu lugar a Bodhisattvas (菩萨/薩Púsà), seres que voltavam propositadamente as costas à dimensão transcendente para se manterem ao nível imanente a auxiliar todos aqueles que necessitam de apoio.

Acredita-se ainda na versão popular que o Budismo terá chegado à China no século I, no reinado do Imperador Han Mingdi (汉/漢明帝, 28-75), na sequência de um sonho com um ser voador dourado, talvez uma visão de Buda, que o terá impulsionado a enviar emissários à Índia em busca das escrituras budistas.

Mas segundo eminentes estudiosos do Budismo como o mestre budista Nan Huai-Chin defende em Basic Buddhism (1997), ou o pensador Daisaku Ikeda em The Flower of Chinese Buddhism(1986), esta filosofia religiosa ter-se-á consolidado na China com o estabelecimento da Escola da Terra Pura (净土 Jìngtǔ) pelo patriarca Hui Yuan (惠远遠, 334-416).

Mas este não é ainda o budismo que se considera com características tipicamente chinesas, por várias razões, entre as quais a defesa de mentalismo parcial, em que a humanidade renasceria num paraíso buda, a Terra Pura, a terra do Buda Amitabha. Este é popularmente retratado com pele vermelha e uma tigela mendicante, que contém o elixir da longevidade/imortalidade (Alves, 2007: 92). Ele é o da infinita luz, que preside ao paraíso ocidental, onde os seres renascem, apenas na condição masculina, para atingirem o estado de iluminação perfeita.

Este tipo de Budismo, que pressupõe a unidade mental, mas que na prática implica uma visão parcial da existência onde o princípio masculino Yang (阳/陽), concretamente encarnado em homens, é privilegiado, bem como os métodos concretos de acesso à Terra Pura, nos quais se enfatiza a repetição do nome do Buda, as escrituras e seus mantras e a contemplação de várias imagens mentais, que vêm a distanciar a escola, bem como uma outra, a da Plataforma Celestial (天台Tiāntái), fundada por Huiwen (惠文) no século VI, daquela que se considera a linha budista mais representativa da mentalidade chinesa – o Budismo da Meditação ou Chan (禅 Chán), fundado por Bodhidharma (菩提达達摩) no séc. VI, tendo chegado à China durante a dinastia Liang (梁), vindo do Sul da Índia para a maioria dos estudiosos, mas há também quem lhe atribua nacionalidade iraniana e o suponha a entrar na China a partir da Ásia Central via a Rota da Seda.

De acordo com Fung Yu-lan/ Feng Youlan (馮友蘭冯友兰) no seu segundo volume de History of Chinese Philosophy (1983:390) todas as escolas da Meditação/Chan concordam em cinco pontos fundamentais: 1) a verdade última é inexprimível; 2) a via espiritual não pode ser ensinada; 3) nada se ganha, mas pode-perder se muito na e com a vida; 4) os ensinamentos budistas não contêm nada de especial; 5) o tao cultiva-se diariamente, transportando a água e cortando a lenha.

Se atentarmos bem, nestes cinco pontos que tornam tão característico este Budismo da Meditação chinesa, verificamos que ele ganha toda a sua especificidade no encontro com o Taoismo, já que também para os grandes filósofos taoistas a verdade última não é conceptualizável nem, portanto, nomeável. Também o Mestre taoista, o Santo (圣聖 n人Shèngrén) não ensina através de palavras, teorias ou doutrinas, mas com a sua postura silenciosa e modelar.

Os taoistas não esperam que a vida lhes acrescente algo, mas temem sinceramente que lhe seja roubada a visão espontânea, natural, que lhes confere as melhores características, a virtude do Recém-nascido (婴儿/嬰兒Yīng’ér), manifestando uma imensa suavidade e flexibilidade. Além disso, também para os taoistas o melhor do mundo reside em -se ser simples, cumprir com todas as pequenas acções quotidianas que nos colocam no caminho da vida, afastando a morte.

O Budismo que cultiva a perspetiva mentalista e, simultaneamente, se oferece como um hino à vida simples do comum dos mortais, que rejeita escrituras e dogmas, bem como aforismos de grandes mestres e, em última análise todos os ensinamentos escritos, é, a meu ver, o verdadeiro Budismo Chinês, aquele que no século XXI tem através das suas escolas, sugestivamente denominadas montanhas, beneficiado a sociedade, ao levar os seus membros a prolongarem a atuaçãos dos Bodhisattvas, empenhando-se ativamente em beneficiá-la através da criação e desenvolvimento de instituições sociais tão necessárias como escolas, hospitais, lares, etc.

Mas voltemos ao ponto de partida de mentalismo chinês. A mente exercita-se por se desprender de todas as formas físicas e intelectuais, de modo a oferecer-se ao meditador como pura energia. Para trás ficou o ego, o senhor bélico que na caligrafia chinesa é re-apresentado como uma espada contra outra, o Eu (我 Wǒ) . Este só traz problemas por estar sempre pronto para uma boa luta, como a etimologia indica sem falhar.

Como se adquire então a concentração no poder mental? É seguindo mais uma vez os antigos ensinamentos taoistas, tranquilizando a mente, silenciando-a, bem como ao corpo, já que um e outro são inseparáveis, transformando a nossa forma física numa montanha, quieta, silenciosa e pacífica, de modo a polir com calma e tranquilidade a mente, que de tijolo tosco se há-de transformar em espelho brilhante. O objectivo final é, recordemo-lo, unir a nossa energia mental à universal, através da postura correcta, do cultivo do Sopro Vital (气/氣).

Os patriarcas da Escola Chan conheciam muito bem, por um lado, O Clássico das Mutações (易经/經 Yì jīng), por outro, os princípios básicos da filosofia taoista. Sabemos que entre os oito trigramas do Clássico das Mutações se encontra o Criativo/ Céu (乾Qián), o Receptivo, a Terra (坤Kūn) , a Montanha (艮Gèn) e o Fogo (离離 Lí), sendo estes os trigramas, que no seu jogo de composição hexagramático, nos levam ao entendimento dos princípios essenciais do Budismo Chinês.

O corpo necessita de se imobilizar como uma montanha, de modo a dar origem ao poder mental, descrito como, fogo, lanterna, lâmpada a arder num monte escuro de mistério, que medeia entres dois princípios fundamentais, o Criativo celestial, figurado como um manto branco gelado, brilhante, cujo brilho a mente humana partilha como pérola, e uma terra negra, recetiva, palco passivo onde todas as transformações da energia celestial ocorrem.

Assim se oferece o 56º hexagrama, o do Viajante (旅 lǚ) no Clássico das Mutações, constituído pelo trigrama na base Montanha tranquila (艮Gèn) e no topo pelo Fogo ( 离離Lí) aderente, brilhante, activo e inteligente. O Fogo na Montanha, a fogueira a arder sob um solo tranquilo e pacificado será assim uma figuração adequada para o verdadeiro budista, um viajante tão impermanente como o mundo onde nasceu, que busca activamente a permanência através do seu poder mental.

É assim que julgo dever compreender-se a tese do sexto patriarca Huineng (慧能, 638-713), retirada do Registo dos seus Diálogos (《六祖慧能語錄》) “uma lanterna brilhante pode afastar a escuridão de milhares de anos ”(一燈能除千年暗Yī dēng néng chú qiānnián àn) (Jiang 1997: 36), sendo que a lanterna é naturalmente a mente iluminada.

E Huineng completa a passagem com a seguinte afirmação: “Tal como uma lanterna brilhante pode afastar a escuridão de milhares de anos, assim a sabedoria pode extinguir centenas de milhares de anos de ignorância e estupidez.” (一燈能除千年暗, 一知惠能滅)(Ibidem), ou seja, a sabedoria é o fogo que arde sem se ver, pedindo emprestado o verso a Luís Vaz de Camões, mas que é justamente figurada por ele.

Ora este fogoso saber vai permitir “derreter” todas as divisões, fronteiras e oposições, favorecendo a criação de uma energia mental una e pronta a fundir-se com unidade essencial e espiritual do coração-mente (心 xīn)que comanda o universo budista, em que Buda e o coração significam a mesma coisa, como nos ensina o quarto patriarca dos Chan, Daoxin (道信, 580-651) , nos Registo dos Diálogos do Quarto Patriarca (《四祖道信語錄》) aquele cuja leitura etimológica do nome aponta para a “Confiança no Caminho ”, e esse tem de ser o Caminho do coração-mente (Jiang, 1997:12-15).

Um dos textos que considero mais emblemáticos da filosofia Chan é aquele em que o monge da dinastia Song Jingxuan (警玄, 943-1027) se refere a Um Pássaro Negro na Neve na Noite Escura (夜放鳥雞帶雪飛) do Registo dos Diálogos de Jingxuan (《警玄語錄》) do Vol. 14 da Fusão das Fontes das Cinco Lanternas (《五燈會元》), também da dinastia Song, por reunir os opostos num jogo complementar, onde facilmente visualizamos uma espécie de Supremo Último (太极Tàijí), no qual um pássaro negro voa sobre a neve na noite escura, logo as únicas formas que permanecem são a máxima criatividade, aqui representada pela neve, já que o princípio celestial é branco em complementaridade com a telúrica e misteriosa escuridão.

Procura-se reter o dinamismo perdendo as formas, sendo o poder mental como um espelho, um diamante, a neve, pérola branca, esta contém o conjunto das cores sem refectir especificamente qualquer delas, ou podendo fazê-lo a todas, e joga com um outro dinamismo, o do chão da noite e do pássaro negro. Este oferece-se como a ausência de forma e de cor, traduzindo a condição adequada ao coração-mente refletor, como de resto termina a passagem na qual Jingxuan agradece ao Mestre por lhe mostrar como era o coração dele, um pássaro negro onde sobressai a neve na noite escura (Jiang, 1997: 345).

Um pouco antes dos primeiros patriarcas Chan viveu Santo Agostinho, o Bispo de Hipona e um dos nossos maiores patriarcas cristãos (354-430). Nasceu em África na atual Souk Aras da Argélia. Era de uma grande sensibilidade, intuição e afecto, valorizando a amor cristão acima de tudo. É dele o famoso aforismo ama e faz o que quiseres. Mas o amor ao qual ele se referia era altruísta, universal, capaz de ligar toda a humanidade, porque vindo diretamente de Deus.

O autor de grandes obras religiosas como Confissões, Cidade de Deus e A Trindade, foi também um grande pensador filosófico da linha platónica, tendo-nos deixado nove diálogos, entre os quais aqui se distingue o último que nos ofereceu, O Mestre . Neste diálogo, esbatem-se as fronteiras entre a transcendência e a imanência, aproximando-o, por isso, da tradição oriental e, especificamente, chinesa.

Há um mestre que ensina, Jesus, alcançável pela mente, explica Santo Agostinho ao filho Adeodato: “nessa luz interior da Verdade, de que é iluminado e goza aquele que se denomina homem interior” (1984: 71). A divindade habita no interior da pessoa e dá-se a conhecer diretamente através da mente, poder racional, coração ou buda.

Afinal que diferença há entre Buda, o Homem Interior e o coração-mente? O certo é que todos estes nomes se deixam figurar por uma luz iluminante que permite contemplar diretamente a verdade, à maneira ocidental, ou a sabedoria através “ dessa visão íntima e pura, que conhece pela sua contemplação o que eu digo, e não pelas minhas palavras” (Santo Agostinho, 1984: 71).

Assente fica que a verdadeira sabedoria habita no interior, na mente e que em ambas as linhas filosóficas se desconfia e muito das palavras. Assim, também no pensamento cristão agostiniano se privilegia a intuição, muito acima do discurso, para o conhecimento da realidade ou, como o filósofo lhe chama, das coisas: “Todo aquele porém que as pode intuir, esse interiormente é discípulo da Verdade.” (Santo Agostinho, 1984: 72).

Se a vida venturosa do cristão agostiniano, implica o conhecimento intuitivo e amor a este Mestre interior, não é menos verdade que a natureza é digna da melhor das contemplações enquanto belíssimo sinal de Deus. É evidente que há grandes diferenças entre ambas as tradições e não chegamos com Santo Agostinho a uma visão imanentista e panteísta, mas sim ao método contemplativo que rejeita as palavras enquanto instrumento privilegiado da verdade, favorecendo, à maneira taoista e budista, a ligação direta à realidade sem interferências intelectuais, ou pelo menos tão poucas quando possível.

Por último, e num regresso ao nosso ponto de partida, reafirma-se que o budismo mais caracteristicamente chinês é o Chan, que habilmente equilibra e doseia os rigores mentalistas com um louvor incessante à natureza e a à vida, sendo por isso que o Mestre Chan Huiji (慧寂,807-883) defende estar a via de Buda no quotidiano ao qual somos ligados na sua expressão , “pelos olhos, ouvidos e nariz (眼裏耳裏鼻裏)” (Jiang, 1997:250 ).

Bibliografia

Alves, Ana Cristina. 2022. Cultura Chinesa, Uma Perspetiva Ocidental. Coordenação de Carmen Amado Mendes. Coimbra: Almedina, Centro Científico e Cultural de Macau.
______________. 2007. A Mulher na China. Lisboa Tágide.
Ikeda, Daisaku. Le Boudhisme en Chine. Monaco: Éditions du Rocher, 1986.
Nan Huai-Chin. 1997. Basic Buddhism. Exploring Buddhism and Zen. York Beach, Maine: Samuel Weiser, Inc.
Jiang Lansheng. 1997. 100 Excerpts from Zen Buddhist Texts. 《禪宗語錄一百則》Hong Kong: 商務印書館有限公司.
S. Agostinho. 1984. O Mestre. Braga: Faculdade de Filosofia.
Wilhelm, Richard (Trad.). 1989. I Ching or the book of changes. London: Arkana, Penguin Books.
張中鐸(編) (Zhang Zhongduo)《易经提要白話解》台南市:大孚,民84.

27 Mar 2023

Mentalismo com Características Chinesas (I)

Wang Yangming (王阳/陽明1472-1528), cujo nome pode ser traduzido por “Sol brilhante”, também é conhecido pelo seu nome de nascença, Wang Shouren (王守仁), que significa “Guardião da Benevolência”. Natural de Yuyao (余姚), da província de Zhejiang (浙江), perto de Hangzhou (杭州) , foi um importante pensador neo-confucionista ao qual é atribuído o desenvolvimento da Escola do Coração-Mente (心学/學 Xīn Xué), contra grande parte da sua tradição filosófica, a escola dos princípios (理学/學Xué Lǐ ), que defendia a existência basilar de princípios celestiais (天理 Tiān Lǐ), fundamentais para a explicação da realidade, separados do poder mental. Filho de um oficial, recebeu a melhor educação clássica, tendo acesso a todo o acervo da biblioteca confucionista.

Apesar de conhecer e defender bem a ortodoxia clássica dos Quatro Livros e dos Cinco Clássicos (四书五经/四書五經 Sì Shū Wǔ Jīng), ainda jovem sentiu-se atraído pelo Taoismo e pelo Budismo, o que o tornaria um verdadeiro neo-confucionista, já que esta filosofia se caracteriza por ser uma conjugação e ligação entre o Confucionismo, Taoismo e Budismo, regida e orquestrada pelos valores ético-morais da filosofia confucionista.

Também na sua vida filosófica e profissional os valores confucionistas estiveram sempre em primeiro plano, habilmente conjugados num “idealismo dinâmico”, como lhe chamou Wade Baskin em Classics in Chinese Philosophy, que sistematizou e desenvolveu na esteira de Lu Jiuyuan (陆九渊,1139-1193). Passou nos exames imperais e em 1499 alcançou o exame de topo. Seguindo as pisadas do pai, também ele serviu o seu governo, durante longos anos até ter ofendido um eunuco, o que lhe valeu uma sova enxovalhante na praça pública e o afastamento do centro do poder, tendo sido banido para à época pouco desenvolvida Província de Guizhou (贵州) em 1506.

Aí teve oportunidade de melhorar as condições de vida dos habitantes e, também, de aperfeiçoar o seu sistema filosófico. Foi reabilitado em 1510, regressando à corte, tendo-se distinguido não apenas como bom administrador e homem de estado, mas como um general de obra feita e várias vitórias no currículo. A influência da sua filosofia perdurou. E ele recebeu a honra póstuma de em 1584 lhe ser prestado culto no templo confucionista.

A sua linha filosófica afastava-o do maior neo-confucionista até então, Zhuxi (朱熹, 1130-1200). Distinguia-o não o louvor à Humanidade ou Benevolência (Rén仁), mas, por um lado, a defesa da indissociabilidade entre o conhecimento e a acção (知行和一Zhī xíng hé yī), em termos práticos e resumidos, a seus olhos não era possível ao sábio pensar uma coisa e fazer outra, porque formava um todo como uma árvore, cuja raiz já indicava os ramos, as flores e os frutos; por outro, a identificação dos princípios celestiais com o coração-mente e este, por seu turno, com o universo, formando um todo inseparável, mais uma vez como a árvore, imagem a que recorre frequentemente para explicar que os princípios são o coração e este os princípios. A união indica a mente correta, a divisão ou separação, o mau viver, ou seja, a mente egoísta. O coração-mente controla o corpo, e só é controlado pelas paixões deste, concretamente pelas suas sete paixões, quando deixa de ser o mestre que contém os princípios celestiais e virtuosos prontos a desabrocharem e frutificarem.

Há, portanto, ideias inatas, como a do bem que são alcançadas intuitivamente, pois estão dentro de nós. O coração-mente é um espelho que precisa de ser polido para compreender e empreender a união consigo próprio e com o universo. “A mente é una, no caso de não ter sido corrompida pelas paixões humanas, é então chamada a mente justa. Mas se é corrompida por intuitos humanos e paixões, denomina-se mente egoísta” (1974, Baskin: 578.) Neste neo-confucionista, o domínio do coração implica a relação com os princípios morais inatos. Só é benevolente quem compreende e atua de forma benevolente, porque teoria e prática, reitera-se, são uma e mesma coisa. O objetivo do sábio é que a sua mente esteja tão afinada ou polida que reflita perfeitamente a realidade que o rodeia. Para tal é fundamental tranquilizar a mente, como? Harmonizando as sensações e paixões num equilíbrio tão perfeito quanto possível.

Neste tipo de filosofia mentalista o que significa a natureza? Recordemos, antes de prosseguir, que estamos perante uma forma de idealismo, logo a natureza é, primeiro, quanto à substância, o Céu (Tian), impessoal, mas também pode assumir a figura popular de um deus personalista, O Senhor Supremo (上帝 Shàngdì); segundo, do ponto de vista funcional, o destino; terceiro, enquanto relação com a humanidade, é a disposição; quarto, é o coração-mente enquanto poder controlador do corpo, (Baskin, 1974: 593) porém, em quinto lugar, enquanto manifestação da mente ou princípio mental, é as suas próprias virtudes, que lhe vão permitir alcançar o equilíbrio ou o meio entre as paixões, suscitando os bons pensamentos, que são as raízes e radículas geradas pela mente altruísta (Baskin, 1974: 597).

A natureza, tal como é entendida por Wang Yangming, neste caso o coração-mente (心xin) é o bem maior, pelo que o filósofo nos aconselha a tratá-lo como se cultivássemos uma das suas imagens já nossa conhecida, a árvore, com calma e sem ansiedade, pois precisa de tempo para se desenvolver, não se deve esperar que o tronco surja antes das raízes e quanto a estas devem ser regadas parcimoniosamente, de modo a que cresça a seu ritmo, deixando surgir os ramos, as folhas, as flores e os frutos. Nesta filosofia, procura-se alcançar uma mente altruísta, tranquila, guiada por virtudes morais, pela justiça e serviço à humanidade, com o controlo atento das paixões e das vicissitudes da vida, em nome do caminho do dever, determinado pela mente. E os filósofos taoistas e budistas que não praticam esta via, vivem separados, mergulhados em ilusões e comportamentos desviados pelas suas personalidades egoístas, já que segundo Wang Yangming os taoistas se revelam incapazes de conhecer e praticar os princípios morais e os budistas de se exercitarem nos relacionamentos humanos.

A verdade é que este filósofo também foi poeta. Na excelente edição Quinhentos Poemas Chineses (2014), coordenada por António Graça de Abreu e Carlos Morais José, podemos ler dois poemas de Wang Yangming, traduzidos por Camilo Pessanha: “Ascensão ao Miradoiro do Kiang” e “À noite, no Pego do Dragão”, onde seguimos com emoção a luta do neo-confucionista pelo domínio do corpo e suas paixões, sobretudo no segundo poema, donde retiro os últimos versos “À borda da torrente, intento fazer versos aos viço das orquídeas. /Embargam-mo as saudades violentas, empolgando-me, do Kiang-Pei e do Kiang-Nan.” (Wang Apud Abreu, Morais José, 2014:271 )

Recorde-se com o Clássico Trimétrico que entre as sete paixões a controlar: a alegria (喜 xi), a fúria (怒nù), a tristeza(哀āi), o medo (惧/懼jù), o amor (爱/愛ài), o ódio(恶/惡 wù) e o desejo (欲yù), se encontra o amor . Este, na versão neo-confucionista de Wang Shouren, “Guardião da Benevolência”, assume-se como amor à humanidade (仁爱/愛 rén´ài), mas, ainda assim, deve ser sentido e expresso com contenção, equilíbrio e harmonia para que a mente egoísta não se sobreponha à altruísta.

Acompanhemos a exteriorização poética desta ideia, que ao ganhar corpo adquire forte sentimento em “Oração de invocação à Chuva” (《祈雨辞》), registada no reinado do Imperador Ming Zheng De, no Rio Gan na actual parte Sul de Jiangxi , no 11º ano, que corresponde ao ano de 1516 da era cristã (正德丙子南赣作):

Ó Céus! Há dez dias que não chove. O campo não tem colheitas.
Há um mês que não chove, o rio vai deixar de correr.
Ah, há um mês que não chove, o povo já está doente.
Se não chover no próximo mês, como vai a população sobreviver?
Que culpa tem a arraia-miúda para sofrer tamanho castigo?!
Se falhei no cumprimento do meu dever, que me seja ditada a sentença.
Ó Céus! Já não bastam os ladrões para às gentes dar aflição, é sobre eles que deve recair a ira, não sobre o povo inocente.
Por que se consomem mutuamente o bem e o mal?
Ó Céus! Que mal te fez o povo para tão pronta fúria!
Ergam-se velozes as nuvens no céu, caindo a chuva benfazeja sobre os campos.
Mais do que os roubos não terem sido travados a tempo, pesa-me a tristeza de ver à minha volta tanto sofrimento e pobreza.

(呜呼!十日不雨兮,田且无禾。
一月不雨兮,川且无波。
一月不雨兮,民已为痾。
再月不雨兮,民将奈何?
小民无罪兮,天无咎民!
抚巡失职兮,罪在予臣。
呜呼!盗贼兮为民大屯,天或罪此兮赫威降嗔。
民则何罪兮,玉石俱焚?
呜呼!民则何罪兮,天何遽怒?
油然兴云兮,雨兹下土。
彼罪遏逋兮,哀此穷苦!)

O mentalismo de Wang Yangming, porque é neo-confucionista, implica amor, respeito e atenção aos outros e ao seu contexto natural e social, tal como o ponto de chegada da sua filosofia requer, pelo que este tipo de mentalismo se na raiz se aproxima do budismo, distingue-dele, mesmo quando este último manifesta caraterísticas chinesas, como teremos oportunidade de ver num próximo texto.

O objectivo dos neo-confucionistas será grosso modo o de transformar a terra num paraíso benevolente, onde a humanidade possa viver em harmonia por acção directa de chefes empenhados e sérios, que muito se penalizam ao jeito dos governantes da antiguidade chinesa, como Yao (尧) e Shun (舜), quando o vento não sopra a favor da população, ou melhor, quando as condições não permitem que todos os seres desabrochem tão naturalmente como plantas regadas por bons agricultores.

Referências Bibliográficas

Baskin, Wade. 1974, Classics in Chinese Philosophy. New Jersey: Helix Books.
Graça de Abreu, António, Carlos Morais José (Coord.). 2014. Quinhentos Poemas Chineses. Lisboa: Nova Veja.
Wang Yangming. 2019.Stanford Encyclopedia of Philosophy. https://plato.stanford.edu/entries/wang-yangming/
Wang Yangming (王陽阳明) 2013《祈雨辞》璞如子(释注).http://www.ziyexing.cn/articles/article-37.htm
Xu Chuiyang.1990. Three Classic in Pictures. Ilustrações de Shang Liangxin. Singapura: EPB Publishers.

1 Mar 2023

Nacionalismo com características chinesas

Não se pode falar de um nacionalismo chinês, mas de vários. Estes desenvolveram-se na sequência de acontecimentos que levaram os chineses a formar determinadas ideias da sua nação. Como lemos no artigo de Jean Pierre Cabestan dedicado a este tema no dicionário Compreeender a China Contemporânea, dirigido por Thierry Sanjuan (2009). O autor distingue quatro tipos de nacionalismo, eu acrescentarei mais um.

Há, por exemplo, um primeiro tipo, quase instintivo, advindo do sentimento de insegurança, que conduz ao fechamento da China sempre que esta se sente atacada do exterior. Recordemos que o país foi várias vezes invadido, tendo mesmo recebido dinastias estrangeiras como a Jin (金, 1115 -1234), a Yuan (元, 1271-1368) e a Qing (请,1644-1911). No entanto, conseguiu resistir parcialmente ao longo das duas Guerras do Ópio (1839-1842;1856-1860), tentou fechar-se, mas foi liminarmente aberta e à força. A insegurança resultante de uma ameaça externa, conduz a um forte nacionalismo, seja ele fruto de guerras ou de epidemias e, consequentemente, a uma tendência para a recriação da grande muralha.

Há um segundo tipo de nacionalismo, que surge no discurso político chinês. Este assume a forma de patriotismo, tendo como objetivo específico fomentar a união das 56 nacionalidades chinesas, as cinquenta e cinco minorias, mais a maioria Han (汉 hàn) em torno de um mesmo amor ao país, o Aiguozhuyi (爱国主义/愛國主義 Àiguózhǔyì) , à letra, o “Amor à Pátria”, que como tive oportunidade de salientar em Cultura Chinesa, Uma Perspetiva Ocidental (Alves, 2022: pp. 64-70) vem colmatar e completar a nova ideologia chinesa, que se desenvolveu num socialismo espiritual e ecológico, manifestado num grande amor à terra, após anos de exploração intensa e pouco ecológica dos recursos naturais.

Encontramos um terceiro tipo de nacionalismo, o vingativo, alimentado pelas elites chinesas, cansadas das incompreensões a que a imagem da China é sujeita nos vários países ocidentais e que alimentam no povo chinês o ódio ao exterior, porque também não recebem dos outros países um tratamento carinhoso. Os chineses recolhem nos meios de comunicação ocidentais uma série de epítetos, dos quais “estranhos” e “distantes” estão entre os mais suaves.

Ainda não há muitos anos, quando a nova vaga de emigração chinesa nos primeiros anos do século XXI chegou a Portugal para estabelecer as suas lojas comerciais, ouviu-se de tudo um pouco contra os reccém-chegados, por causa da concorrência que vinham oferecer à classe média portuguesa, com as suas horas de trabalho a perder de vista e a incapacidade de se regerem pelos padrões horários ocidentais. Foi um passo até se espalhar pela sociedade portuguesa que não havia mortos por entre os chineses, com obscuras insinuações agregadas, e que eram todos espiões das autoridades do país.

Um exemplo bem recente da imagem dos chineses divulgada pelos países europeus, são as supostas esquadras policiais que terão surgido em Portugal, França, etc., ou ainda mais próximo o episódio de um balão meteorológico, supostamente espião, que entrou no espaço americano, mantendo-se a teoria da espionagem e interrompendo-se uma viagem do secretário de estado norte-americano Antony Blinken à China, mesmo depois das autoridades chineses terem apresentado desculpas pelo erro de cálculo que levou o engenho a penetrar no espaço aéreo americano.

Já para não falar das teorias da conspiração que grassaram durante o primeiro ano de guerra declarada a que Rússia forçou a Ucrânia, tendo havido quem afirmasse que estavam os chineses por detrás dos russos a alimentar o expansionismo bélico destes, quando, de facto, os chineses têm vindo a manter, de acordo com a sua tradição pacifista, uma posição de neutralidade relativamente ao conflito em curso.

É por isso natural que encontremos entre a população chinesa, informada pelas suas elites, quem pague da mesma moeda aos ocidentais, formando a pior imagem possível das nossas gentes.

Um quarto tipo de nacionalismo surge em nome da modernização do país e à procura de um lugar de destaque no cenário internacional. Este recua aos tempos de presidência de Hu Jintao (胡锦涛 2003-2013) e à sua ideia de “emergência pacífica” (Cabestan, 2009: 229) e tem vindo a ser oportunamente desenvolvido pelas iniciativas do atual presidente chinês Xi Jinping (习近平, 2013-) , através, por exemplo, da pré-pandémica da Rota da Seda e das ideias de uma Nova Era (新时/時代Xīn shídài) assente nas Quatro Modernizações (四个现代化/四個現代化Sì gè xiàndàihuà), a saber, no campo, na indústria, na ciência e tecnologia, com vista à prosperidade da China e à sua colocação inter pares na nova ordem internacional.

Um quinto tipo de nacionalismo, na minha perspetiva, é aquele com características mais especificamente chinesas, ou seja, um nacionalismo cultural assente na plena consciência da cultura chinesa e no modo como esta é vivida e lida por autores contemporâneos, por exemplo por Lin Yutang (林语堂/林語堂, 1895-1976), que foi inventor, romancista, tradutor e filósofo. Este espírito enciclopédico, tanto se interessou por mecânica, dando ao mundo uma máquina de escrever chinesa, a Mingkwai, ou seguindo o alfabeto fonético chinês atual, a Mingkuai (明快 Míngkuài) que significa “clara e rápida”, tendo sido comercializada durante a guerra com Japão, além de ter desempenhado um papel de relevo durante a Guerra Fria. Mas Lin Yutang é também um filósofo, que andou a conhecer mundo, deixou vasta bibliografia em Inglês e Chinês. Entre a sua criação, gostaria de distinguir o best seller escrito em inglês My Country and My People (吾国与吾民) de 1935, ano em que chegaria aos Estados Unidos.

À época também ele notou que os chineses eram sistematicamente mal compreendidos pela comunidade internacional: “É o destino dos grandes ser mal compreendidos, portanto é também o destino da China. A China tem sido imensa e magnificamente mal compreendida.” (Lin, 1998: 6) E diz-nos mais, com um orgulho claramente cultural a respeito do seu país: “É a nação viva mais antiga com uma cultura contínua” (Lin, 1998: 4) . Adiante, distinguirá como característica da mente cultural especificamente chinesa estabelecer uma ligação direta entre a cabeça e o coração, dando origem à ideia que nós atualmente, na sequência dos estudos do sinólogo e filósofo Chad Hansen, apelidamos de “coração- mente (心 xīn)”, devido à deteção da bem sucedida união entre o coração e a mente, e acrescenta: “estabelecer a união entre a mente e o coração não é um estado de graça fácil, já que envolve nada menos do que resgatar uma cultura antiga” (Lin, 1998: 13).

Ora é esta capacidade de ver com o coração o que torna, segundo o filósofo, os chineses tão únicos no panorama mundial. Ao que se segue um pedido não do distanciamento entre ocidentais e chineses, mas a procura de uma comunidade de valores humanos partilhados por todas as civilizações. Antecipa o mesmo sentido a obra do pensador Gu Hongming (辜鸿铭,1857-1928), de influência claramente romântica, intitulada The Spirit of Chinese People《中国人的精神》, na qual se defende ser a civilização chinesa profunda, vasta e simples, apesar de não ser uniforme e haver diferenças regionais significativas, especialmente entre o Norte e o Sul da China, ainda assim consegue o autor descobrir um traço de união entre todos os chineses, que, tal como sucede com a defesa de Lin Yutang, lhes advém da simpatia e da ligação direta ao coração, que utilizam para comunicar e interpretar a realidade circundante.

Diz-nos o pensador (Gu, 1998: 13): “Os chineses têm o poder da simpatia, porque vivem uma vida totalmente concentrada no coração – uma vida de emoção ou de afectos humanos”, sendo por essa razão que possuem, segundo Gu Hongming, tão boas memórias, “porque se lembram das coisas com o coração e não com a cabeça.” (Gu, 1998:15) e, ainda, parafraseando o pensador, têm uma grande espontaneidade e simplicidade, que se nota por exemplo na língua, manifestação cultural muito valorizada, daí os estrangeiros serem aconselhados a aprender chinês cultivando a simplicidade infantil. (Gu, 1998: 14).

Estes autores concordam para que haja comunicação entre civilizações é necessário desfazer ideias e preconceitos, procurando, por exemplo, através da defesa expressa por Lin Yutang, encontrar valores comuns, acima de todos os nacionalismos, ou, ainda, como Li Xia (李霞) (2009) aconselha em Unravelling The Mystery Chinese Faces/《趣读中国人》, no capítulo Olhar para o Povo Chinês (看中国人去) proceder a uma reavaliação de imagens, quer por parte dos chineses quer por parte dos ocidentais, em nome de um saudável realismo. Seria bom que houvesse mais contacto e turismo cultural entre os povos (Li, 2009: 145): “Há cada vez mais ocidentais a virem para a China, apesar da ambivalência de sentimentos e impressões que têm das muitas faces do nosso povo e da nossa cultura (…) A ideia Ocidental do povo chinês está-se a aproximar muito mais da realidade. O melhor que temos a fazer é continuar a viver as nossas vidas ao máximo e manter a calma e a abertura de espírito quando lidamos com a observação e avaliação Ocidental.”

Do meu ponto de vista, entre os nacionalismos chineses, o mais constante e duradouro é o nacionalismo cultural, pelo que não será preciso muito para nós ocidentais obtermos uma imagem realista dos chineses, basta que procuremos compreender, com igual calma e abertura de espírito, os sinais emitidos pelas várias manifestações culturais chinesas, através das artes como a poesia, a caligrafia, a pintura e a música, ou até as artes marciais, onde bem transparecem o humanismo e pacifismo dos chineses, bem como a vontade deste povo em ser aceite sem preconceitos pela comunidade internacional.

 

Bibliografia

Alves, Ana Cristina. 2022. Cultura Chinesa, Uma Perspetiva Ocidental. Coordenação de Carmen Amado Mendes. Coimbra: Almedina e Centro Científico e Cultural de Macau.
Cabestan, Jean-Pierre. 2009. “Nacionalismo”. Compreender a China contemporânea. Um Dicionário. Direção de Thierry Sanjuan. Lisboa: Edições 70.
Gu Hongming (辜鸿铭) 1998. Spirit of Chinese People《中国人的精神》Beijing: Foreign Language Teaching and Research Press.
Li Xia (李霞) .2009. Unravelling The Mystery Chinese Faces/《趣读中国人》.Beijing: Foreign Languages Press.
Lin Yutang (林語堂). 1998. My Country and My People. Beijing: Foreign Language Teaching and Research Press.

“Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, sendo que as opiniões expressas no artigo são da inteira responsabilidade dos autores.
https://www.cccm.gov.pt/”

14 Fev 2023

Filosofia Clássica com Características Chinesas

Não é segredo para ninguém o grande apego que os chineses têm aos seus clássicos, os Quatro Livros (四書 Sì Shū) e os Cinco Clássicos (五經Wǔjīng), bem como alguns manuais de ensino com pendor filosófico, por exemplo, o Clássico Trimétrico (《三字經》Sānzìjīng), cuja influência chegou aos nossos dias, quando devidamente ultrapassados os excessos da era revolucionária dos primórdios do poder comunista.

O mais interessante é que estes se estenderam não apenas à elite bem pensante como ao comum dos chineses através do pensamento proverbial, de aforismos (格言géyán), provérbios (語俗Súyǔ), cuja tradução literal é “dizeres comuns” ou “ditos coloquiais” , bem como de histórias proverbiais, condensadas em 4 caracteres, os Chéngyǔ (成語), que têm implícito no caractere chéng (成), a meu ver, o potencial desenvolvimento da história, tantas vezes real, para a qual remetem com uma finalidade moral indisfarçável.

Comecemos por provérbios retirados ao Clássico das Mutações (易經Yì jīng), onde o princípio da Unidade (同心 Tóng Xīn) se assume como valor fundamental do pensamento chinês, procurando associar este modo proverbial de apresentar a filosofia, com alcance tão vasto quanto a comunidade chinesa o permite, aos cinco elementos (五行Wǔ Xíng) constantes na filosofia chinesa, a saber: a Terra (土 Tǔ), a Madeira (木Mù) (que corresponde ao Ar no Ocidente), o Fogo (火 Huǒ), a Água (水 Shuǐ) e o Metal (金 Jīn) para que não nos percamos no que se adivinha ser labirinto dos provérbios filosóficos. Ora estes elementos são os representantes do pensamento filosófico que será condensado ritmicamente em frases sugestivas e de fácil memorização para o povo e letrados de todos os tempos.

Penso que não será difícil associar um ou mais elementos a cada uma das principais escolas filosóficas clássicas que têm como ponto de partida o Clássico das Mutações, pelo menos o Confucionismo e o Taoísmo dependem diretamente desta obra.

O Clássico das Mutações inaugura com o Hexagrama do Criativo, composto por dois Trigramas de Céu (乾 Qián), que nos chama a atenção para a importância do Céu e dos seus decretos como condutor essencial dos destinos humanos, desde que as pessoas o saibam entender e, por isso, lemos o seguinte provérbio “Alegremo-nos com o Céu e seus Decretos para que não nos venhamos a arrepender” (樂天知命故不憂Lè Tiān zhī Mìng gù bù yōu). O Criativo é a força divina e inspiradora, a abertura que existe em cada um de nós, sendo representado por 3 linhas contínuas, masculinas. No que respeita às transformações, é o começo, é forte, e, do ponto de vista da relação familiar, é o pai.

Ele é a energia que inicia a transformação no Céu, na Terra e no Homem. A sua cor é o branco, as propriedades: a atividade, a criatividade e a firmeza, expressando-se pela razão, força e durabilidade. Corresponde-lhe em termos de corpo natural a cabeça, sendo o seu animal o cavalo, ainda que também tenha o dragão como imagem, o correspondente natural é o gelo. O Céu é, portanto, o começo, a abertura, a primeira transformação, que se vai conjugar com a segunda transformação, a Terra, para originar os restantes seis trigramas. O Céu, pelo seu poder criativo, energia e durabilidade estabelece uma estreita relação com o Metal, sendo superior a este, como verificamos no seguinte provérbio, que reitera a unidade essencial: “Quando duas pessoas se unem a sua acutilância consegue dividir o metal” (二人同心◦其利斷金◦Èr rén tóngxīn, qí lì duàn jīn), diríamos nós num equivalente possível em Português que “a União faz a força”, sendo superior à pulsão bruta. E, como não podia deixar de ser, há um provérbio para os elementos do Fogo e da Água, figurados no sol e na lua e na constante mutação que estes pelas suas relações cósmicas proporcionam “o sol e a lua girando, o calor e o frio alternando” (日月运行◦一寒一暑◦) organizam e compõem o mundo em nosso redor.

Se no Clássico das Mutações encontramos vários elementos expressos através do pensamento proverbial, já na filosofia confucionista domina o elemento da Terra e a Humanidade que lhe dá o seu máximo sentido, por isso os provérbios possuem quase todos um intuito ético-moral orientado para fins políticos.

A melhor terra será aquela onde foi implementado um sistema benevolente dominado pelas principais virtudes confucionistas com a Benevolência (仁Rén) em lugar de destaque. Esta expressa e associa-se à Tolerância (恕 Shù) e respeito para com os outros, sendo célebre o seguinte aforismo atribuído a Confúcio (孔子, 551-479 a.C.) no Capítulo dos Analectos Senhor Wei Ling, 24: “Não faças aos outros o que não desejas para ti” (Yǐ suǒ bù yù, wù shī yú rén) (論語•衞靈公第十五——二十四). De facto, e se pensarmos bem a Benevolência tem uma tradução prática no relacionamento com os outros onde a captamos como uma forma de tolerância, como nos é dito neste texto que acompanha o aforismo: “Zi Gong perguntou, ‘Existe alguma palavra que uma pessoa possa seguir como princípio orientador de vida? ’Confúcio respondeu: ‘Sim. Será talvez a palavra “tolerância”. Não faças aos outros o que não desejas para ti próprio’ ”.

Passando agora o segundo grande mestre da Escola Confucionista, Mâncio (孟子c.372/289 a.C) encontramos ditos e histórias proverbiais na obra homónima Mencius《孟子》. A este filósofo associo sobretudo os elementos Terra e Madeira.

O autor, cuja influência se prolonga pela tradição, por exemplo no manual para o ensino elementar de pendor filosófico, O Clássico Trimétrico (《三字经》) , onde podemos ler logo na primeira frase do Clássico, que terá grande repercussão a partir dos tempos medievais, a adopção do princípio filosófico fundamental de Mâncio, transformado em provérbio para toda a posteridade chinesa: “A Natureza humana é boa” (人之初、性本善Rén zhī chū, xìng běn shàn).

Nos múltiplos provérbios do texto de Mâncio sempre ligados a uma mundividência agrícola, nota-se a referência a crianças que não caem aos poços, porque a bondade inata das pessoas não o permite, já que mesmo os fora-da-lei, considerados maus, se prontificarão a socorrê-las em tais circunstâncias extremas, porque são afinal naturalmente bons, ou quando o deixam de ser, não é por culpa do Céu, mas sim das más práticas humanas, tal como sucede no Monte Niu (牛山 Niú Shān) , numa parábola em que as pessoas são como árvores, que vão sendo devastadas e roubadas ao monte, que acaba deserto e, portanto, totalmente abandonado e perdido, representando já a ausência do bem.

Entre os ditos, gostaria de destacar uma história proverbial, muito ligada aos elementos Terra e Madeira, para figurar mais uma vez, como a acção humana pode degradar, interromper e aniquilar uma tendência inata para o bem, na qual o Céu dita o tempo certo, a fim de que os seres se desenvolvam, bem como às suas virtudes morais. É então pelo respeito à ordem natural que todos os viventes alcançarão a sua melhor realização.

O Chéngyǔ (成語) é “Ajudando os Rebentos a Crescer” (揠苗助長 Yàmiáo-zhùzhǎng), que se encontra em Gongsun Chou, Primeira parte, Segundo Capítulo (《孟子•公孫丑上篇第二章). Aqui se conta a história de um homem do Estado de Song, que muito impaciente por os brotos de arroz demorarem a crescer, foi para o arrozal, ajudá-los a desenvolverem-se, resultado, matou-os, porque a acção humana sem respeito pelo tempo da natureza acaba por ter consequências trágicas.

Para Mâncio este é um exemplo claro de que somos comandados por ordem superior, através de um Mandato Celestial (天命Tianmìng), que se expressa não só em cada um de nós, na nossa natureza inata, mas também através do povo, pelo que mais importante do que os governantes será a população, já que a suas acções e reacções espontâneas se ligam a essa ordem natural divina. É o que nós ocidentais chamaríamos, mutatis mutandis, “vox populi vox dei”, ou seja, para Mâncio o povo sabe e será sempre quem tem a última palavra porque se mantém espontaneamente imerso e ligado ao Céu.

Continuando, na busca filosófica com características chinesas por via proverbial, encontramos uma outra filosofia, desta feita a taoista, onde também abundam os ditos e as histórias proverbiais, e não nos deixemos enganar pelo o facto de apenas se mencionar uma outra considerada mais exemplar no que respeita à ligação entre os princípios filosóficos e os elementos que melhor traduzem o pensar filosófico destas escolas.

O elemento preferido pelo alegado fundador do Taoísmo, Laozi (老子) para expressar a sua filosofia é a Água, que é empregue como imagem metafórica para representar o bem supremo, na sequência de duas outras expressões proverbiais conhecidas por todos os chineses, com as quais inaugura o Clássico da Via e da Virtude (《道德經•第一》) :“O Tao/Dao que se pode indicar não é o verdadeiro Tao. O nome que pode ser dito, não é o verdadeiro nome” (道可道,非常道。名可名,非常名Dào kě dào, fēicháng dào. Míng kě míng, fēicháng míng).

Seguindo esta lógica, compreendemos por que motivo nos surge o seguinte dito no Capítulo VIII (《道德經•第八》) “O Bem Supremo é como a água” (Shàng shàn rú shuǐ). Depois, pelo desenvolvimento do texto, somos esclarecidos relativamente à imagem, porque o filósofo recorre às características deste elemento que se adequam perfeitamente à expressão da bondade máxima de acordo com o seu modo de pensar, senão vejamos, a água nutre, beneficiando todos os seres, tem uma natureza flexível, não entra em conflito, penetrando em toda a parte, mesmo nos lugares que as pessoas desprezam

A Água torna-se assim a imagem modelar do bem supremo mas também do agir do Santo Taoista (聖人 Shèng Rén), que é espontaneamente bom, sendo a sua maior força a aparente fraqueza e flexibilidade, sem se impor a ninguém, nem exercer a força ou o poder, consegue que tudo siga o seu rumo natural sem que nada fique por fazer.

Gostaria ainda de referir a filosofia proverbial do segundo maior filósofo taoista, Zhuangzi (莊子,396-286 a.C) onde encontramos uma aliança entre os elementos da Água e da Madeira/Ar, com predominância para os seres do ar. O melhor exemplo do espaço onírico em que Zhuangzi se move é, sem dúvida, a história proverbial “Zhuangzhou sonha que é uma borboleta”(莊周夢蝶Zhuāngzhōu-mèngdié ) , que surge no livro homónimo nos Capítulos Interiores,

Segundo Capítulo, intitulado “A Uniformidade de Todas as Coisas” (《莊子•内篇•齊物論第二》), no qual o filósofo conta que sonhou ter-se transformado numa borboleta para defender a sua tese principal que há uma uniformidade essencial entre todos os seres, estes diferem apenas no acidental, mas não no essencial e, por isso, recorrendo às práticas físicas e mentais correctas se podem transformar uns nos outros, porque o essencial está na raiz o Tao, que nos nutre a todos, viabilizando qualquer transformação..

Seguindo esta lógica, apresenta-se uma outra proverbial, com a qual se estreia a obra, pelo que atente-se à importância da mesma, retirada do primeiro capítulo, intitulado “Vagueando em Absoluta Liberdade”, dos Capítulos Interiores de Zhuangzi (《莊子•内篇•逍遙遊論第一》), a saber, “No Mar do Norte Há um Peixe” (北冥有魚 Běimíng -yǒuyú), que aqui se resume:. no Mar do Norte existia um peixe muito grande chamado kun (鲲) que se metamorfoseou num pássaro igualmente grande denominado peng (鹏), esta possibilidade de mudar de elemento, da Água para a Madeira/Ar e de peixe para pássaro foi-lhe oferecida pela uniformidade básica dos seres, quer dizer, por estarmos todos dependentes da mesma raiz, o Tao, no entanto quanto maior for a metamorfose mais nos aproximamos do princípio divino e maiores maravilhas poderemos operar, mais filosóficos nos tornamos.

Mas para tal é preciso criar as condições e a postura existencial correta, se não o fizermos, nasceremos e morremos peixinhos, nunca alcançaremos o nível de enorme peixe das profundezas oceânicas, nem tão pouco seremos capazes de nos transformar em enormes pássaros que percorrem o mundo vagueando a seu bel-prazer ou em total liberdade.

Concluindo, observa-se nesta filosofia proverbial clássica chinesa, retirada do Clássico das Mutações e das escolas confucionista e taoista um pendor acentuado para o estabelecimento da relação com os elementos do mundo natural circundante, especialmente com os Cinco Elementos básicos, o pensador nunca está sozinho, encontra-se atento ao meio que o rodeia, expressando através de ditos, muitas vezes associados a pequenas histórias proverbiais, princípios filosóficos abstractos que assim ganham corpo, podendo mais facilmente ser transmitidos a toda a coletividade que os recebe com imenso agrado devido ao ritmo e cor naturais com que são ilustrados os fundamentos teóricos destas filosofias.

 

Bibliografia

Abreu Graça de, António (Trad e Org). 2013. Laozi. Tao Te Ching. O Livro da Via e da Virtude. Lisboa: Vega.
Alves, Ana Cristina. 2005. A Sabedoria Chinesa. Casa das Letras.

《論語》1994. Analects of Confucius. Tradução. para Inglês de Lai Bo (赖波) e Xia Yu He(夏玉和) e para Chinês Moderno de Cai Xiqin (蔡希勤) 北京,華語教學出版社.

蔡志忠. 2008. 《中國思想隨身大全》Portable Chinese Classics in Comics. 台北: 英屬蓋曼群島商網路與書服份有限公司.

Smith H., Arthur. 1988. Pearls of Wisdom from China. Singapura: Graham Brash.
Wilhelm, Richard. 1989. I Ching or Book of Changes, versão inglesa de Cary F. Baynes, Prefácio de C.G Jung, 4ª ed. London: Arkana Penguin Books.

Zhuangzi (《庄子》). 1999. Vol. I e II Tradução para Inglês de Wang Rongpei (汪榕培) e para Chinês moderno de Qin Xuqing e Sun Yongchang. (秦旭卿、孙雍长) .Hunan, Beijing: Hunan People’s Publishing House, Foreign Language Press.

 

Referências

Citação do excerto do capítulo O Senhor Wei Ling, 24, dos Analectos: 子貢問曰: “有一言而可以終身行之者乎?子曰:其恕乎!已所不欲,勿施於人”
A primeira edição do Clássico Trimétrico foi compilada na dinastia Song do Sul (1127-1279 ) por Wang Yinglin (王應麟,1223-1296), tendo sido completada posteriormente até aos tempos da primeira república chinesa.
Citação do excerto do capítulo VIII do Clássico da Via e da Virtude: 《上善如水˙水善利萬物˙而不争˙處衆人之所惡˙》
O excerto de Zhuangzi, retirado do Segundo Capítulo, dos Capítulos Interiores: 《昔者莊周夢為蝴蝶栩栩然蝴蝶也,自喻適志與!不知周也。俄然覺,則蘧蘧然周也。不知周之夢為蝴蝶與,蝴蝶之夢為周?週與蝴蝶,則必有分矣。此之謂物化。 》
O excerto de Zhuangzi, retirado da abertura do Primeiro Capítulo, dos Capítulos Interiores: “北冥有魚,其名為鯤,鯤之大,不知其幾千里也;化而為鳥,其名為鵬,鵬之背,不知其幾千里也。恕而飛,其翼若垂天之雲。是鳥也,海運則徒於南冥者,天池也。”

2 Fev 2023

Com Características Chinesas – A Política Poética do Terceiro Timoneiro

9.1.2023

Desde as eras mais recuadas dos tempos imperiais chineses que não chegava ao poder apenas aquele que estudasse para passar nos exames imperiais , mas quem se deixasse inspirar respondendo às questões colocadas com ética e com poesia. Como bem chama a atenção Abílio Basto em Os Exames Imperiais na China, só quem possuísse grau literário acedia ao funcionalismo público.

Este amor ao estudo, inculcado formalmente desde os tempos do imperador Tai Zong (唐太宗,600. a. C.) seria tanto mais apreciado, quanto fosse expresso com criatividade poética, ou seja, com graciosidade, beleza e ritmo , pelo que os meninos das famílias privilegiadas tinham o seu preceptor que lhes ensinava também a partir dos 13 anos música e poesia, donde no futuro, poderiam retirar as mais belas deixas poéticas e lemas governativos. Declara Abílio Basto “O principal objetivo da educação, entre os antigos, não era tanto encher o cérebro de conhecimentos, senão formar o carácter e purificar o sentimento.” (1998: 17).

Como os exames imperiais tinham um pendor fortemente teórico-estético foram abolidos já nos últimos anos do Governo Manchu por lhes faltar a componente cientifico-tecnológica tão necessária aos tempos contemporâneos. No entanto, em boa verdade, acentuavam uma outra dimensão poética que nunca se perdeu ao longo da história da China, chegando ao tempo do terceiro timoneiro, Xi Jinping (习近平), onde verificamos uma aliança indissolúvel entre política, ética e poesia, esta última, hoje em dia, muito utilizada para efeitos comunicativos via Media.

No entanto, a valorização da criatividade poética e o reconhecimento das suas potencialidades ideológicas nunca deixou de ser exercitada ao longo da história chinesa. Não se julgue ser por acaso que os timoneiros da era revolucionária como o Grande Timoneiro Mao Zedong (毛泽东大舵) e o terceiro timoneiro Xi Jinping fazem poesia.

Na poesia revolucionária de Mao Zedong, podemos encontrar as principais mensagens da nova ideologia, transmitidas de uma forma tão estética quanto o serviço da arte a uma causa o permite. Veja-se este louvor ao novíssimo estatuto da mulher vermelha, que deixa para trás os ideais de dona de casa bem-educada da era republicana, o que nos é explicado através de um poema de estrutura clássica de quatro versos, o jueju
(绝句juéjù), usado na tradição muitas vezes para cantar a mulher, aqui apresentado na tradução do escritor e diplomata Ricardo Primo Portugal:

“As milicianas (inscrição para uma fotografia)
Fuzis ao ombro, resolutas e galhardas,
sob o esplendor da aurora ao campo de exercícios,
filhas da China têm aspirações distintas:
desprezam sedas, prezam roupas de combate.”

(https://vermelho.org.br/2015/07/03/mao-tse-tung-o-poeta/)

Alguns poemas de Xi Jinping surgem em jornais, como por exemplo, “Em Memória de Jiao Yulu”, publicado no jornal de Fuzhou a 15 de julho de 1990, quando era Secretário do Partido Comunista Chinês em Fuzhou. Já aí se notava a linha de acção que o havia de nortear até à presidência chinesa, a defesa do serviço integral aos mais pobres e o combate sem tréguas à pobreza, que exalta na lembrança do exemplo de um outro secretário do PCC ligado ao distrito de Lankao, como se pode verificar tanto no poema como na minha tradução:

习近平:念奴娇 追思焦裕禄
Xi Jinping: “Em Memória de Jiao Yulu”.

魂飞万里,
盼归来,
此水此山此地。
百姓谁不爱好官?
把泪焦桐成雨。

生也沙丘,
死也沙丘,
父老生死系。
暮雪朝霜,
毋改英雄意气!

依然月明如昔,
思君夜夜,
肝胆长如洗。
路漫漫其修远矣,
两袖清风来去。
为官一任,
造福一方,
遂了平生意。
绿我涓滴,
会它千顷澄碧。

一九九〇·七·十五

(Xi, 1990, 河南日报, 2014, Apud, cpc.people.com.cn. )

A tua alma voou para longe
Os rios, as montanhas e a terra
anseiam pelo teu regresso.
O povo amava-te e chora-te
Junto às árvores fénix que lhe deixaste.

Viveste e morreste pelo deserto,
Por melhor condição para a população.
De geração em geração,
Contra ventos e tempestades,
O teu rasgo heroico perdura!

A lua brilhará pura,
A iluminar em mim
A tua corajosa memória.
A ecoar pela história,
Servimos ambos incansáveis
O mesmo povo
Em nome da felicidade
E do benefício novo.
Gota a gota fomos construindo
A fonte que transforma
O árido em verde monte.

Xi Jinping estreia-se na governança da China com nova filosofia política, mas mantendo a continuidade no recurso à sabedoria ancestral chinesa através do pensamento proverbial e poético, na sequência de Mao, para valorizar a dimensão prática muito cantada e enaltecida tanto nos tempos revolucionários chineses como nos mais reformistas, por exemplo, na vertente científico tecnológica como mencionava Carlos Morais José em “Como Chegou a China à ‘Nova Era’”, num artigo publicado a 28 de Outubro de 2022, neste jornal, para balanço do 20º Congresso do Partido Comunista Chinês.

O terceiro timoneiro assumiu o mandato de olhos postos em lemas poéticos, a saber, numa “Nova Era” de prosperidade para concretizar o “Sonho Chinês”, mas sem retirar os pés da terra e da água, de modo a que o sonho não se perdesse em “castelos nas nuvens”. Havia então, como poeticamente soube explicar, que “atravessar o rio sentindo as pedras” (摸着石头过河mōzhe shítou guò hé), o que significa: “Atravessar o rio sentindo as pedras é um método reformista tipicamente chinês, em consonância com a sabedoria e o espírito chineses.”(摸着石头过河,是富有中国特色、中国智慧、符合中国国情的改革方法) ( Portuguese.china.org.cn, 2014)

Resumindo, na esteira do que havia sido proposto na história proverbial muito repetida por Mao Zedong, nunca esquecer de remover a montanha pazada a pazada, tal como o “Velho Louco que Removeu Montanhas” (愚公移山 Yúgōng-yí shān) , ou na versão muito mais suave do terceiro timoneiro, sentir cada pedra do rio para que a reforma seja bem-sucedida e não fracasse por falta de prática ou de experimentalismo.

No Socialismo com características chinesas (中国特色社会主义, Zhōngguó tèsè shèhuì zhǔyi ), inaugurado na era do Pequeno Timoneiro, Deng Xiaoping (邓小平), e prosseguido por Xi Jinping, na versão de sonho chinês para a nova era, é recuperada a mundividência tradicionalista chinesa num neotradicionalismo muito enaltecido não apenas em termos das virtudes éticas do governante, que deverá cultivar as cinco virtudes constantes (五常 wǔ cháng) com a benevolência (仁 rén) em lugar de destaque, mas também as “três perfeições” artísticas da China antiga prolongadas no tempo: a caligrafia, a pintura e a poesia, esta última surge, à maneira tradicional, em forte aliança com todo o programa nacionalista adoptado pela liderança xiista. Assim, lemos em Jorge Tavares da Silva, na obra Xi Jinping- A ascensão do novo timoneiro da China: O homem, a política e o mundo, que no quadro das 4 modernizações (四个现代化,xìgé xiàndàihuà), o novo espírito científico-tecnológico, no qual se enquadram tanto as conquistas espaciais como o espírito digital, é poeticamente louvado em 2015 numa canção preparada pela Administração do Ciberespaço da China (CAC Cyberspace Administration of China) nos seguintes termos (Silva, 2021: 212):

“网络强国 网在哪光荣梦想在哪
(Superpotência da Internet! A rede é onde está o sonho glorioso)
网络强国 从遥远的宇宙到思念的家
(Superpotência da Internet! Do cosmos distante ao lar que ansiamos)
网络强国 告诉世界中国梦在崛起大中华
(Superpotência da Internet! Diz ao mundo que o Sonho Chinês (Chinese Dream) está a levantar a grande China)
网络强国 一个我在世界代表着国家
(Superpotência da Internet! Cada um de nós representa o nosso país no mundo) ”

Assim se canta politicamente o nacionalismo da linha xiista, onde o sonho se torna realidade através dos avanços científico-tecnológicos concretizados pela nação chinesa.

Concluindo, a política com características chinesas não se resume a uma assimilação e digestão de outros sistemas políticos por parte das gentes do País do Meio, ainda que também o seja, como bem viu Xulio Rios no Prefácio à supracitada obra de Jorge Tavares da Silva, quando declara que “as ‘singularidades chinesas’, antes e depois da Revolução, defendem a sinização de qualquer doutrina que possa inspirar mutações económicas e sociais, começando pelo marxismo.” (Silva, 2021:19). Há ainda, a registar, acrescento, que esta “sinização” se apresenta com características muito próprias, eivadas de um pensamento poético fortemente metafórico, repleto de imagens, susceptíveis de se tornarem motes políticos, retiradas à paisagem, incluindo todos os seres naturais, dos rios às montanhas e aos céus, das moscas aos tigres, ou dos ratos aos gatos e aos dragões, ilustrando na perfeição o cruzamento da tradição naturalista chinesa com o ecossocialismo filosófico proposto pelo presidente Xi Jinping.

 

Referências Bibliográficas

Alves, Ana Cristina. 2021. Cultura Chinesa, Uma Perspetiva Ocidental. Coordenação de Carmen Amado Mendes. Coimbra: Almedina e Centro Científico e Cultural de Macau.
Basto, Abílio. 1998. Os Exames Imperiais na China. Organização, Prefácio e Notas de António Aresta. Macau: Fundação Macau.
José Morais, Carlos. 2022. “Como chegou a China à ‘Nova Era’”. www.hojemacau.com.mo 28.10.2022 sexta-feira Disponível em: https://hojemacau.com.mo/wp-content/uploads/2022/10/HM-28-10-22.pdf
Portuguese.china.org.cn (Ed.) 2014. “Atravessar o rio sentindo as pedras (Aprofundar a reforma em todos os aspectos)”. Conhecer a China Através de Palavras-Chave. Disponível em: http://portuguese.china.org.cn/china_key_words/2014-11/18/content_38618330.htm., acedido a 7 de janeiro de 2023.
Silva Tavares da, Jorge. 2021. Xi Jinping – A ascensão do novo timoneiro da China: o homem, a política e o mundo. Faro: Sílabas & Desafios.
Xi Jinping. 1990. 《念奴娇·追思焦裕禄》. cpc.people.com.cn. Disponível em: http://cpc.people.com.cn/n/2014/0318/c64094-24663299.html, acedido a 8 de janeiro de 2023.
Vermelho, a Esquerda bem informada (Ed,)2015.Mao Tsé-Tung, o Poeta. Vermelho. Org.br. Disponível em: https://vermelho.org.br/2015/07/03/mao-tse-tung-o-poeta/, acedido a 8 de janeiro de 2023.

16 Jan 2023

Simbolismo na gastronomia chinesa

A Gastronomia com características chinesas não se resume a uma arte em que os ingredientes são misturados com mais ou menos ciência, é muito mais do que isso, já que “as características chinesas” indicam uma filosofia que apresenta os valores essenciais da cultura chinesa, os princípios por que os chineses se regem e as ideias-matriz deste povo tão sui generis, que alia com grande sabedoria filosofia à língua e esta, por sua vez, aos ingredientes de modo a fornecer uma orientação existencial gastronómica que comanda em termos teóricos e práticos a vida e a saúde dos chineses, já que quem come bem, quer dizer, com atenção ao valor simbólico da culinária, poderá usufruir de uma vida longa e muito salutar. Haverá melhor filosofia do que esta: caminhar pela vida corretamente sem tropeçar a cada passo nas doenças que a falta de saber gastronómico pode atrair?

A proposta aqui deixada é se pesquise o simbolismo gastronómico em algumas das principais festividades chinesas.

Aniversário da Humanidade: homofonias linguísticas

De acordo com a tradição chinesa, os seres humanos, além de gozarem o seu segundo aniversário à nascença, possuem um aniversário a mais, no sétimo dia do Ano Novo Chinês , no qual comem alface não cozinhada e peixe cru, sobretudo carpa, assentando as razões mais essenciais numa filosofia da linguagem simbólica, já que o caracter para fresco ou cru é shēng (生), que também significa “vida” e “crescimento”, por isso “ comer vegetais frescos e peixe cru simboliza uma vida longa e próspera.” (Tan, 1997: 9). Além disso, um dos nomes para alface em chinês é shēngcài (生菜), que significa “vegetal cru” e por jogo homófono “vida e riqueza”. Há ainda a considerar que peixe, em chinês yú (鱼/魚) , é homófono de yú (余/餘) de “excesso”, que vem sempre a propósito e rima com prosperidade.

O simbolismo-gastronómico da Festividade do Ano Novo Chinês.

No Ano Novo chinês Xīnnián (新年), a principal festividade dos chineses, também conhecida pela Festividade da Primavera (春节/莭Chūnjié), celebra-se o início de um novo tempo, repleto de esperança e oportunidades para todos, bem como a reunião familiar. O novo de tempo “com tudo de bom e a correr às mil maravilhas” (万/萬事如意Wànshì rúyì) deverá ser devidamente aproveitado e preparado por um conjunto de gestos rituais, que incluem naturalmente a gastronomia, viabilizadora da união familiar em torno de uma mesa tão redonda (e unida) como alguns dos principais petiscos a servir. Na Véspera do Ano Novo, correspondente à Consoada cristã, dá-se o grande encontro familiar , denominado a Reunião do Ano (团年, Tuán nián), em que por tradição até os ancestrais participam, sendo-lhes reservado um lugar à mesa, ofertando-lhes a comida da sua preferência, toalhas para limpar o rosto e cigarros (Pires, 2018: 164/166). E se na refeição da véspera do ano novo se pode comer tudo, já no primeiro dia do ano é dada preferência a uma ementa vegetariana, porque é considerado muito pouco auspicioso entrar o ano a matar animais.

Contudo, esta tradição tem vindo a ser esquecida, sendo substituída em muitas famílias por um encontro num restaurante para um variado iam-chá (饮茶, yǐn chá ), que numa tradução literal significa “beber chá”, mas na realidade é uma refeição não tanto com pratos mas com petiscos muito variados.

É através da comida que se presta homenagem aos antepassados e aos deuses durante a Festividade do Ano Novo Lunar, há, no entanto, algumas diferenças nas homenagens. Enquanto aos antepassados se oferece sempre comida temperada, e no menu não pode estar ausente o arroz, já os deuses são agraciados com o mesmo género de comida, à excepção do arroz, representante do sustento e da abastança, e sem temperos. Serão então cinco espécies de comida, cinco taças de vinho e cinco e de chá a figurar entre as dádivas. Porém, para as divindades devem constar 10 pauzinhos no altar.

Além disso, o chefe de família agradece no altar ou tabuleta ancestral a proteção dos antepassados, presenteando-os com cinco chávenas de vinho de arroz, que podem ser substituídas por uísque ou conhaque, cinco chávenas de chá e cinco pares de pauzinhos, já que o cinco simboliza a organização cósmica e, portanto, fornecendo a ordem dos elementos em todas as direções.

O jantar da Consoada chinesa deve ser abundante, de forma a permitir sobras, que ao transitarem de um ano para o seguinte simbolizam a riqueza material e o excesso que foi transportado para o novo tempo. O que não pode faltar à ceia de Ano Novo é o peixe cru yúshēng (鱼生): “o peixe é comido para longa vida e abundante riqueza.” (Tan, 1997: 21).

A fim de se compreender o que traz a sorte à mesa chinesa, é preciso nunca perder de vista o sentido e o simbolismo das palavras e respetivos tons. Assim, por razões de fortuna linguística não devem faltar a uma mesa de Ano Novo auspiciosa os seguintes ingredientes: ostras, que em Cantonense se pronunciam ho see (蚝/蠔) , figurando desta forma uma “ocasião propícia”; algas (发/發菜, fàcài), que nos evocam a ideia de prosperar ou, até mais literalmente, de “crescer a riqueza”.

Não podem estar ausentes do banquete festivo cogumelos (冬菇, dōnggū) , a representar a realização dos desejos de Este a Oeste; tâmaras ou jujubas (红枣/紅棗, hóngzǎo), que devido a cor vermelha (红/紅, hóng) simbolizar prosperidade e (枣/棗, zǎo) ser fruta homófona de “manhã cedo”, (早, zǎo), nos remetem para o sentido de “a prosperidade vem cedo”, caso se prefira, “está a chegar”; ou sementes de lótus, (莲/蓮子, liánzǐ), que também por um jogo homófono com lián (连/連), significando este caractere” ligação” ou “sucessão”, prometem descendência ou continuação da família. A rematar o desfile alegórico de acepipes encontramos o bolo de Ano Novo (年糕, niángāo), cuja homofonia perfeita com “alto” (高, gāo) de desperta nos convivas a vontade de ascender socialmente e ter melhor status no ano que está a entrar, sem perder de vista a união familiar, uma vez que o bolo é redondo, de modo a apelar ao sentido de família e à amizade eterna, dada a sua massa aglutinadora, além de a uma vida doce, como requer o açúcar que o constitui.

A um outro nível simbólico não linguístico e mais intuitivo e directo, por assentar na figuração dos elementos comestíveis, marcam presença o arroz (米, mǐ), a representar a riqueza devida à proliferação dos grãos, e a massa (面条/麵條, miàntiáo), simbolizando, pelo seu comprimento, a longevidade.

A compor o cenário culinário há ainda uma travessa redonda ,dividida octogonalmente, que devido à sua forma física nos remete para o número oito (八, bā), cujo simbolismo linguístico, por homofonia imperfeita, evoca “crescer” ou “prosperar” (发/發, fà). Nada na travessa figura ao acaso, já que está recheada de ingredientes propícios, como sejam os bolos (糕, gāo) , a apelar à elevação social; certos frutos secos como as tâmaras (枣/棗子, zǎozǐ), onde a boa sorte também pode chegar mais cedo na forma de filhos (早子, zǎozǐ); ou ainda sementes de melão, simbolizando descendência (瓜子兒, Guāzǐ er), mais pela sua forma física, já que são muitas e douradas, estando implícito o sentido de que a progenitura é a verdadeira riqueza.

Ao longo de toda a festividade os amendoins também se encontram em lugar de destaque, porque representam a saúde, sendo, em sentido literal “as flores da vida” (花生, huāshēng) e, por extensão de sentido a partir da observação, “o fruto que cresce da terra” (长/長生果, Chángshēng guǒ) , expressão que pode ser traduzida por “o fruto da longevidade”.

Há um outro nível de simbolismo associado aos elementos comestíveis que conjuga forma, sabor, cor e linguagem. Importantes frutos não apenas se comem como também cumprem funções decorativas essenciais, já que ao serem espalhados pelas casas ou figurarem à entrada das moradias e até de estabelecimentos comerciais, chamam a fortuna. Ora pensemos nos peixes vermelhos, nos peixes dourados ou nas laranjas. Estas últimas em Cantonense são gam (柑) , criando a possibilidade de estabelecer uma relação homófona com ouro, que também se diz gam (金) , cujo som é, de novo, homófono de doce gam (甘). Logo, as laranjas pela cor, sabor, formato e língua transportam consigo a promessa de uma vida doce e rica.

Em situação quase idêntica está a tangerina, cuja nota dissonante se encontra na língua, já que o caractere para tangerina é kat (橘) , que em Cantonense estabelece homofonia com “sorte”, ou seja, kat (吉)

Recorde-se que na religião popular ou tradicional se multiplicam as oferendas comestíveis a divindades. É até usual pedir proteção não apenas entregando os cinco frutos no altar das oferendas, mas indo um pouco mais longe pela altura do 23º dia do 12º mês lunar chinês, quando é suposto o Deus da Cozinha (灶君, Zào Jūn), que reside na cozinha das famílias chinesas, ir apresentar o relatório anual das atividades familiares à suprema divindade do panteão chinês, o Imperador de Jade Yùhuáng Dàdì (玉皇大帝). Nessa data, é o melaço ou os doces glutinosos que figuram em lugar de destaque, com os quais se unta a boca dele ou se procede a imersão do retrato da divindade em vinho para que o relatório entregue pelo emissário vá para o Céu o mais condescendente possível, a fim de que: “Chou Kuan não fizesse um relatório ‘amargo’ ao imperador celestial ”(Jorge, Cecília. 2005: 87).

Rituais culinários na Festividade das Lanternas

A Festividade do Ano Novo Lunar encerra com uma outra festa, a das Lanternas no 15º dia, com a primeira lua cheia do ano. O sinólogo macaense Luís Gonzaga Gomes (1907-1976) em Festividades Chinesas (1953), afirma ser provável que a Festa das Lanternas tenha surgido com culto do Imperador Wudi (武帝 Wǚdì, 140-86 a.C) da dinastia Han à divindade da Primeira Causa (太乙神 Tàiyǐshén). Desta forma, a colocação de lanternas vermelhas acesas e ramos de abeto nas portas teriam como objetivo atrair a prosperidade através das luzes e a longevidade pelos ramos. (Gomes, 1953: 183) Refere, ainda, que o Imperador da dinastia Tang Ruizong (唐睿宗 Táng Ruìzōng, 662-710) terá mandado decorar uma frondosa árvore de mais de 36 metros de altura com 50.000 lanternas, com as mais variadas formas, esta possuía um aspeto “tão feérico que ficou sendo conhecida na história com o nome de árvore igniscente” (Gomes, 1953: 184).

Nesta festividade à primeira lua cheia, Yuan Xiao (元宵) , que de tão redonda, simboliza na perfeição a união familiar, o amor e o casamento, não podem faltar as doces bolinhas de arroz glutinoso recheadas em caldo, as tang yuan (汤圆/湯圓, tāngyuán ), cuja doçura pegajosa representa a união familiar eterna, reforçada pelo simbolismo das lanternas, cada qual contando por um membro da família e, portanto, significando a felicidade e a longevidade. Dantes, em certas províncias, caso as famílias desejassem mais filhos “pendurariam lanternas extra” (Tan, 1997:36).

A festividade de Outono, a do Bolo Lunar

No 15º dia do 8º mês lunar, recorda-nos Leonel Barros, celebra-se a Festividade de Outono, Tchong Tchau Tchit (中秋节, Zhōngqiū jié ), o equinócio ligado ao final das colheitas, a abrir uma ascendência do período Yin (阴, yīn), em que o princípio feminino comanda apelando ao repouso da terra. A festividade calha em dia de lua cheia. Diz-nos Barros “A Lua redonda simboliza, portanto, além da feminilidade, a união da família, razão pela qual os familiares mais afastados regressam ao lar para celebrarem a festividade em conjunto” ( 2003:66).

À semelhança do que sucede durante a Festividade das Lanternas, que também tem como protagonista principal a Lua, encontramos lanternas espalhadas pelos parques e nas mãos de adultos e crianças de vários formatos e materiais, repletas de simbolismo, onde por exemplo, as lagostas representam a felicidade e a fortuna, entre aves, coelhos e borboletas pujantes de sentidos figurativos. E se na festividade das lanternas encontramos umas bolinhas de arroz glutinoso, muito redondas, mergulhadas em calda, na Festividade do Outono somos contemplados com magníficos bolos lunares, também eles redondos para representarem a lua e a união familiar e até um pouco mais, já que como nos lembra Leonel Barros eles serviram para durante a dinastia Mongol libertar o povo dos invasores mongóis, que a título de emissários do Imperador praticavam todo o tipo de desmandos nas casas chinesas. Assim no 15º dia da 8ª lua foi colocada uma mensagem dentro de cada bolo apelando à revolta popular. “todos os homens válidos deviam comparecer na praça pública” (2003:70).

O que de facto aconteceu foi através de um bolo, cujo primeiro sentido era o da união familiar, os chineses se viram livres dos invasores mongóis, libertando a China do jugo estrangeiro. Quanto ao bolo, o principal protagonista desta festividade , também é chamado em Macau, “bolo bate-pau”, sendo distribuído por amigos e vizinhos e não apenas aos familiares. Segundo a descrição de Gonzaga Gomes, os bolos possuem uma farinha de cor acinzentada como a lua, sendo recheados com toucinho e presunto; com massa de feijão; com pevides, frutos secos, tais como pinhões e amêndoas, cascas de tangerina e açúcar ou com sementes de lótus (1953: 231). São ainda constituídos por uma gostosa gema de pato ao centro simbolizando a lua.

Em muitos se pode ler “Coelho Lunar” ou “Rã Lunar”, aludindo à fuga da Terra da que viria a ser conhecida por Divindade da Lua, Sèong Ngó (嫦娥 Cháng´é ), após ter ingerido a pílula da imortalidade, conhecida por “Droga das Fadas”, Sin Iéok(仙药/薬 Xiān yào) sem aguardar pelo seu consorte, o Divino Archeiro, Hâu-Ngâi (后羿, Hòu Yì).

Como punição de não ter esperado pelo marido para partilhar o elixir voou para a Lua foi transformada pelos deuses em rã de três pernas. Já o marido, saudoso, voou para o Sol, onde construiu um palácio. Eles são os vetustos representantes das forças primordiais, masculina e feminina. Vivem separados, mas encontram-se sempre, de acordo com a versão de Gonzaga Gomes no 15º dia da 8ª lua, razão pela qual a Lua então irradia brilho e felicidade.

Também a almejada imortalidade, é concedida através da ingestão de uma pílula fabricada pelo Coelho de Jade num almofariz com o seu pilão, esta é ainda conhecida pelo nome de “Elixir de Jade”, em termos ocidentais, a “pedra filosofal”, que cura todos os males, sendo feita com sumo de limão, miolos de rã e casca de Cássia, árvore doadora da imortalidade. (Gomes, 1953: 243) Por tradição, montava-se um altar ao ar livre, um hino à unidade familiar, onde figuravam cinco pratos com frutos esféricos em homenagem à lua, tais como maçãs, pêssegos, uvas, toranjas, melões e romãs, cujas grainhas representavam grande descendência e prosperidade, bem como treze bolos lunares a constituírem o ano lunar “o completo ciclo da felicidade.” (Gomes, 1953: 236).

Filosofia culinária

Diz-nos António Pedro Pires em Festividade do Ano Novo Lunar “A preocupação, quase obsessão pela comida, é um padrão da cultura do povo chinês.” (2018:279). Assim sendo devemos entender a própria culinária como uma linguagem que traz consigo as suas mensagens a decifrar pelos convivas. Pires chama-nos a atenção a dificuldade de muitos ocidentais em compreenderem esta postura cultural, dizendo que nada de especial sucedeu nas refeições chinesas para que foram convidados “aquelas iguarias, partilhadas eram a própria mensagem, isso é algo muito claro para um chinês” (Pires, 2018: 281).

A comida indica, em termos sociológicos o status do anfitrião, quanto mais cara e rara, como por exemplo, ninhos de andorinha, barbatana de tubarão, lagosta, etc., tanto mais importante é aquele que convida e o que se quer celebrar no encontro com o convidado. Porém, a comida é um instrumento de comunicação a vários níveis. Através dela comunicamos com a família, com os membros da sociedade humana, bem como com os todos os outros da sociedade divina, antepassados e deuses. Chang afirma “uma das melhores formas de chegar ao coração de uma cultura é através do estômago” (1977:4) Sabe-se, por exemplo que em Macau, na culinária macaense, predomina, à imagem e semelhança da sociedade, uma gastronomia de fusão, que foi elevada em 2017 a património imaterial da humanidade, tendo o Território sido distinguido com o honorífico título de cidade criativa no ramo da gastronomia.

Voltando à filosofia da culinária chinesa, não podemos esquecer o chá, que acompanha todas as festividades e refeições chinesas, sendo a bebida nacional da China, porque “desperta, revigora, reconforta e trata algumas doenças” (Pires, 2018: 316/7), ou seja, cumpre funções sociais imprescindíveis em termos de saúde pública já que concede, saúde , vida, longevidade. O chá traz associadas duas figuras de grande relevo na cultura chinesa, uma, um imperador mítico, Shen Nong (神农, 2737 a.C), patriarca da agricultura e da medicina, terá descoberto o chá por acaso, enquanto descansava, quando umas folhas caíram numa panela de água a ferver, esta foi ingerida e pouco depois reconhecida a sua fragrância e importância para combater o efeito de certas ervas venenosas que ele havia engolido nas suas experiências médicas. À lista de ilustres inventores do chá, junta-se o monge Bodhidarma, o introdutor do Budismo Chan na China no século VI. Também ele recorreu ao chá para não se deixar adormecer nas suas práticas meditativas. Mais, a própria planta do chá neste mito terá tido origem nas pálpebras cortadas do monge que ao cabo de nove anos de meditação se deixou dormir. Quando acordou, para se punir arrancou as pálpebras que, lançadas à terra, terão proporcionado esta planta tão revigorante.

Neste espaço não houve a intenção de apresentar exaustivamente todas as festividades, mas apenas colher exemplos nas principais, a fim de que fossem fornecidas as pistas para decifrar valores essenciais do “coração-mente” da gastronomia com características chinesa.

A filosofia existencial, assinalada pela culinária, marca como linhas orientadoras deste modo de pensar a união familiar, simbolizada pela forma redonda dos bolos, à qual se alia uma complexa filosofia da linguagem assente no simbolismo do caractere para bolo, onde vamos encontrar a aspiração à elevação social e à prosperidade, bem como à riqueza presente nos caracteres para legumes, algas e arroz; ou, ainda, à longevidade trazida quer pela forma de alimentos como a massa, quer pelas sementes que, mais uma vez entram no jogo linguístico para nos recordar a importância dos filhos, ou melhor da descendência. A esta orientação gastronómica não poderiam faltar os princípios orientadores da sorte e da paz, presentes em frutos, como vimos na laranja, ou, como só agora vemos, na maçã (苹/蘋,píng), que nos proporciona a paz (平, píng) , por homofonia perfeita, ou a longevidade nos pêssegos, tudo isto regado com muito chá que dá saúde e longa vida, sendo favorável ainda ao escrutínio analítico e à meditação como os mitos e o caractere indicam.

Referências Bibliográficas

Alves, Ana Cristina. 2022. Cultura Chinesa, Uma Perspetiva Ocidental. Coimbra: Almedina, Centro Científico e Cultural de Macau
Barros, Leonel. 2003. Templos, lendas e Rituais – Macau. Macau: Associação Promotora da Instrução dos Macaenses.
Gomes G., Luís. 1953. Festividades Chinesas. Macau: Notícias de Macau.
Jorge, Cecília. 2005. 諸神靈•Deuses e Divindades •Gods and Deities. Macau: 郵政局•Direcção dos Serviços de Correios•Macao Post.
Pires, António Pedro. 2018. Festividade do Ano Novo Lunar em Macau. Macau: Instituto Cultural do Governo da R.A.E de Macau
Tan Huai Peng. 1997. Chinese Festivals. Ilustrações Leong Kum Chuen. Singapura, Kuala Lumpur e Hong Kong: Federal Publications.

5 Jan 2023

A Ciência com características chinesas e a Grande Unidade

Falar sobre a cultura e a civilização dos outros requer precauções ou pelo menos a consciencialização de que tudo pode suceder, desde a incompreensão, passando por uma abordagem superficial até à sintonia, como nos alerta David Wong no seu trabalho “Filosofia Comparada: Chinesa e Ocidental”, relativo à filosofia numa perspetiva comparatista, publicado no âmbito de uma colectânea realizada pela sinologia brasileira, organizada por Matheus Oliva da Costa (2022), intitulada Textos Seleccionados de Filosofia Chinesa 1, onde Wong defende que mais importante do que a comensurabilidade ou incomensurabilidade metodológica, epistemológica, ética e metafísica é a tentativa de ir ao encontro do outro, à procura, mais do que das semelhanças, do respeito pela manifestação filosófica diferente, o que só é possível se em lugar de nos colocarmos numa posição avaliadora tentarmos entrar no mesmo comprimento de onda, buscando “ imagens de mundo baseadas em sintonia versus imagens de mundo que cortam a conexão entre entendimento e sintonia” (Wong, 2022:400). Para tal será necessário cultivar a abertura de espírito ou largueza de vistas, donde provirá um exercício criativo híbrido que poderá trazer resultados surpreendentes, com todas as partes envolvidas na comparação a crescerem e a reunirem-se na aprendizagem de novos caminhos intelectuais.

Um dos filósofos e historiadores da filosofia que mais procurou aproximar a filosofia chinesa da ocidental foi, consoante o registo fonético, Fung Yu-lan ou Feng Youlan (馮友蘭/冯友兰,1895 -1990) e começou por fazê-lo numa posição de grande humildade, concentrando-se numa abordagem à ciência ocidental, defendeu que a ciência na China, praticamente inexistente, de acordo com os parâmetros ocidentais, muito tinha de aprender com o Ocidente.

Na sua expressão, “aprender com o estrangeiro (estudar com o Ocidente (…) 以夷為師(向西方學)” (Feng Youlan, Apud Alves, 2022: 61).

Na verdade, como bem notou Lisa Raphals (2022) em “Ciência e Filosofia Chinesa”, num trabalho inserido na colectânea já referida o esforço de Feng Youlan é de tentar desenvolver o espírito científico à maneira ocidental na China da época, já que o filósofo defendia em “Por que a China não tem ciência” (1922) que “o que mantém a China atrasada é que ela não possui ciência” (Feng Youlan, Apud Raphals, 2022: 341).

Para compreender a perspectiva do filósofo temos de o situar no seu próprio tempo. Hoje não faria qualquer sentido uma posição deste tipo, já que os chineses ao longo de todo o século XX partiram rumo ao Ocidente e aprenderam bem a lição da ciência ocidental, do espírito científico em actuação nos seus vários domínios, os parâmetros e, sobretudo, a aprendizagem com a experiência, bem como a quantificação dos dados, a testagem, verificação e confirmação dos resultados.

E a verdade é que nada impediu os cientistas chineses de se encontrarem ao mesmo nível dos seus congéneres nos campos da matemática, física, química, astronomia e astrofísica e todas as outras ciências ditas ocidentais, nem mesmo como argumentavam certos sinólogos de renome, por exemplo Bodde (1991) em Chinese Thought, Science and Society: The Intellectual and Social Background of Science and Technology in Pre-Modern China, ao repetir o que muitos sinólogos pensavam, a saber, que a língua chinesa, certas concepções filosóficas conservadoras e organicistas, bem o autoritarismo imperial tinham afastado os chineses do pensamento científico à maneira ocidental.

Voltando ao texto de Lisa Raphals sobre a ciência e filosofia chinesas, a autora termina com uma questão interessante à qual não responde, a saber, se a filosofia chinesa poderia contribuir para a constituição de uma ciência chinesa. (Raphals, 2022: 361). Pela minha parte, respondo sem hesitações que sim. Aliás é, de facto a união entre filosofia e ciência o que torna possível no País do Meio a referência a uma ciência com características chinesas. E não é preciso irmos muito longe, basta pensarmos na Medicina Tradicional Chinesa. O que a caracteriza e distingue da Medicina (Tradicional) Ocidental é precisamente o seu ponto de partida ser filosófico. Ora isto foi o que Feng Youlan, condicionado pelas circunstâncias, teve dificuldade em reconhecer, quer dizer, o estatuto extremamente original e único da ciência chinesa. Ele estava preocupado com o alegado atraso do seu país em termos científico-tecnológicos face aos avanços da ciência e tecnologias ocidentais e não via vantagens numa postura filosófica que considerava livresca e conservadora. Diz-nos o filósofo em 《中國現代哲學史》(História da Filosofia Chinesa Contemporânea), o essencial para que a ciência e a filosofia ganhem é justamente ambas deixarem de assentar em tanta teoria e leitura de clássicos, como tem sucedido ao longo da tradição chinesa, e usufruam da possibilidade da aprendizagem pela experiência.

O professor Feng Youlan, da linha neoconfucionista, defende, em termos filosóficos, a necessidade de se pensar numa Grande Unidade (大全 Dà Quán) entre os reinos da experiência e da razão, sendo que os princípios racionais (理 li) não se colocam num mundo à parte, à maneira platónica, mas estão incrustados na própria experiência. Pelo que o seu apelo é que na filosofia não se afaste o corpo, a sensibilidade e as vivências da racionalidade que as animam. As duas dimensões, a da verdade, à qual pertence a razão, e a da actualidade, o mundo, apenas se distinguem por comodidade analítica, sendo este todo, animado por um princípio vital, que viabiliza o estudo das essências por método indutivo e lógica experimental, porque nada existe fora da realidade imanente.

No entanto, do ponto de vista filosófico, muito ficou a ganhar a filosofia de Feng Youlan com esta “viragem experimental”, já que, por um lado, veio recuperar o espírito ecológico que animou os seus primórdios da filosofia chinesa, por outro, aproximou-se do Ocidente, permitindo a criação de uma filosofia comparada, como se pode ler nas Actas do Oitavo Congresso Internacional de Filosofia de 1934: “Estamos agora interessados na mútua interpretação do Oriente e do Ocidente mais do que no seu mútuo criticismo. Eles são vistos como ilustrando a mesma tendência humana de progresso e expressões do mesmo princípio da natureza humana. Desta forma, o Oriente e o Ocidente não estão apenas ligados, mas estão unidos” (Feng Youlan apud Baskin, 1984: 737).

Quando à recuperação do espírito ecológico e holístico, eles irão caracterizar o grande princípio da nova humanidade, que é saber fundir-se na Grande Unidade “自同於大全” (Feng, 2006: 211), totalmente imersa no Céu e na Terra, que na obra são identificados com o Criativo (乾 Qián) e o Receptivo (坤Kūn)), ou seja, os dois primeiros hexagramas do Clássico das Mutações (《易經》).

No entanto, o filósofo não estende esta grande unidade filosófica à ciência, porque considera que esse foi um dos motivos que levou ao atraso na China do desenvolvimento da ciência à maneira ocidental. Hoje percebemos quão redutor e limitativa pode ser apenas uma abordagem especializada e quantitativa dos dados científicos e até consideramos que o Ocidente tem muito a ganhar e aprender se não distanciar as suas ciências das perspectivas filosóficas e de abordagens holísticas e organicistas, essencialmente qualitativas, seguindo os passos da ciência com características chinesas, na qual o espírito filosófico reina mantendo a unidade entre os domínios. Voltando ao Clássico das Mutações, o Hexagrama 45 é Reunir-se (萃卦 Cuì Guà), na classificação seguida por Richard Wilhelm, que segue a linha neoconfucionista, a mesma de Feng Youlan. Este hexagrama é constituído, na base, pela Terra receptiva (坤 Kun) e, no topo, pelo Lago alegre (兑duì). Afirma-se no Juízo do hexagrama que o reunir-se traz sucesso, seja quando o governante se aproxima do templo, seja por se buscar sabedoria e pelo melhor método de a alcançar, através da perseverança ou via oferendas. Mas o mais importante chega-nos, a meu ver, através da imagem, onde lemos:

“Sobre a Terra, o Lago:
A imagem do reunir-se.
Assim, a pessoa superior renova as suas armas
De modo a responder ao imprevisto”
(象曰: 澤上於地,萃,君子以除戎器,戒不虞。)

Concluindo, apenas unindo o que estava desligado se podem alcançar excelentes resultados, como a água reunida num lago acima da terra para criar vida e alegria através e em torno dela, ou a ciência reunida à filosofia para a criação de uma ciência com características chinesas.

Bibliografia

Alves, Ana Cristina. 2022. Cultura Chinesa, Uma Perspetiva Ocidental. Coord. Carmen Amado Mendes. Coimbra: Almedina, Centro Científico e Cultural de Macau, I.P.
Baskin, Wade (ed). 1984. “Yu-lan Fung”. Classics in Chinese Philosophy. New Jersey: Helix Books.
馮友蘭 (Fung Yu-lan/ Feng Youlan).2006.《中國現代哲學史》香港:中華書局有限公司.
Raphals, Lisa. 2022. “Ciência e Filosofia Chinesa”. Textos Selecionados de Filosofia Chinesa 1. Organização de Matheus Oliva da Costa. Pelotas: Editora UfPel.
Wilhelm, Richard (Trad.). 1989. I Ching or the book of changes. London: Arkana, Penguin Books.
Wong, David. 2022. “Filosofia Comparada: Chinesa e Ocidental”. Textos Selecionados de Filosofia Chinesa 1. Organização de Matheus Oliva da Costa. Pelotas: Editora UfPel.
張中鐸(編) (Zhang Zhongduo)《易经提要白話解》台南市:大孚,民84.

30 Dez 2022

Ecologia Chinesa – A procura da via do meio

Em 1998, à beira da transferência de Macau para a China, fui convidada pelo Gabinete Técnico do Ambiente (环境技术事務室) do Território para escrever um opúsculo sobre cidadania dirigido aos mais jovens, que viria a intitular-se Ser Cidadão《 凖公民》.

À época, Macau e a China galopavam para uma grave crise ecológica, porque, por um lado, o País do Meio se tinha transformado num centro excessivo, a “fábrica do mundo” e, por outro, Macau estava a abandonar a sua tradição de cidade tranquila para se transformar num grande centro cosmopolita, onde proliferavam, a quase cada nova aurora, casinos e arranha-céus.

Recordo-me que o argumento fundamental em torno do qual girou o enredo pedagógico-literário foi de que a educação cívica era essencialmente ambiental e que, por isso, se devia tratar a cidade e todo o planeta como sendo a verdadeira casa de cada um. Para tal, apresentei a definição etimológica da palavra, que vem do grego, onde eco quer dizer casa e logia, ciência.

Acrescentei, “Deste modo, a ecologia é, segundo a raiz da palavra, a ciência da casa”, como o texto era bilingue lia-se ao lado a tradução: 《因此,生態學在字根上的含意是關於家庭的科學》 (Alves, 1998). Assim defendia eu há 24 anos que a higiene pessoal e caseira, alargando esta familiaridade a todo o planeta, era fundamental e assentava em três práticas filosóficas, conhecidas como a filosofia dos três R´s, sendo estes, como sabemos, a redução no consumo, a reutilização dos materiais e a reciclagem que modifica oportunamente o velho em novo.

Muitos anos volvidos, O Professor de Filosofia Viriato Soromenho Marques, em palestra online proferida para o Centro Científico e Cultural de Macau em Lisboa, a 20 de julho de 2021, intitulada “Olhares da China e do Ocidente sobre a Emergência Ambiental e Climática” defenderia as mesmas teses, alargando e especificando algumas das temáticas atuais, como a da distinção entre crise climática e crise ambiental (ou ecológica), sendo esta última à escala planetária muito mais vasta e irreversível.

Nessa mesma palestra, o Professor Soromenho-Marques destacou quatro princípios a seguir e a partilhar: 1) responsabilidades comuns, mas diferenciadas; 2) limitações de natureza espácio-temporal, o tempo está a contar e a fugir-nos; 3) a necessidade de se seguir o princípio da justiça entre gerações e 4) o princípio da cooperação obrigatória rumo à sustentabilidade. Concluindo com a declaração, aqui parafraseada, de que temos uma dívida ontológica pública infinita a pagar por nós e pelas gerações vindouras. (Soromenho-Marques, 2021).

Se assim é como remediar o mal feito em termos ambientais ao nosso planeta? Para que estejamos em relação responsável, desenvolvendo cuidado uns pelos outros e pela terra, é preciso pensar o mundo de uma outra maneira, não de um modo hierárquico e piramidal, mas como um todo, uma esfera, um cosmos interligado, em que todos valem o mesmo, sendo apreciados pela diferença que trazem à nossa existência.

É preciso pensar numa “nova ordem ecológica”, como nos recorda no Ocidente Francês, o filósofo Luc Ferry (1951-): “É nesta perspectiva que se deve, à margem do cartesianismo, do utilitarismo, bem como da ecologia fundamental, elaborar uma teoria dos deveres para com a natureza.” (1993: 198).

Melhor seria ainda que cuidássemos e nos sentíssemos espontaneamente responsáveis uns pelos outros e pelo planeta, mas já que tal não sucede, pensadores ocidentais e orientais têm-se se concentrado a desenvolver e a legislar sobre o tema da ecologia, posicionando-se em lugar de destaque a China com a defesa realizada pelo Presidente Xi Jinping (习近平) de uma nova ordem ecológica chinesa, a que viria a chamar Socialismo Ecológico ou Ecossocialismo, na sequência da crise que a China atravessou, com particular agudeza na primeira década do século XX, como referiu em 2008 Thierry Wolton em O Grande Bluff Chinês. Como Pequim nos vende a sua «revolução» capitalista (2008: 139):

Com rios transformados em cloacas, vales inteiros poluídos por uma fábrica, aldeias envenenadas por uma mina, desflorestação maciça, desertificação acelerada, chuvas ácidas, a ecologia na China está gravemente doente (…)

A situação na zona urbana não é menos preocupante. Um estudo realizado em Xangai mostra que 20% dos habitantes com idade inferior a quarenta e cinco anos sofrem de doenças que habitualmente se manifestam em pessoas de sessenta ou setenta anos: problemas cardíacos, sexuais, perda de memória, irritabilidade e fadiga permanente.

Nesse tempo, a crise ecológica chinesa era quase insustentável, com águas poluídas e residuais não tratadas, que serviam para irrigar os campos, milhões de hectares utilizados para armazenar detritos; 3 em 4 rios encontravam-se impróprios para actividades de irrigação ou piscatórias; 1/10 das terras cultiváveis estavam poluídas, com efectiva redução da áreas agrícolas, particularmente de produção cerealífera e pecuária (Wolton, 2008: 140). Deste modo, a partir de 2013 o discurso do novo Presidente Chinês começa a concentrar-se nas questões ecológicas, estando a ser desenvolvido e aperfeiçoado um Novo Paradigma Ecológico da República Popular da China com Xi Jinping a comprometer-se ainda na 26º Cimeira do Clima, realizada entre 31 de outubro e 12 de novembro de 2021, em Glasgow, a proceder à progressiva descarbonização do país, confirmando a neutralidade carbónica antes de 2060, devendo os combustíveis não fósseis representar até 25% total da energia até 2030.

Sabemos que na Cimeira do Clima do Egipto (COP 27), de 6 a 20 de novembro do ano em curso, as atenções estiveram mais voltadas para o diálogo presencial entre os presidentes das duas grandes potências mundiais, a americana e a chinesa, concentrando-se muito na questão de Taiwan e na guerra da Ucrânia, portanto mais em questões políticas do que de natureza ambiental, ainda assim, os compromissos assumidos previamente pela China são para se manter, apenas com uma nuance, assente na relação estabelecida quer pelo Brasil, quer pela China entre crise ambiental e pobreza, ou seja, em termos práticos as populações não podem pagar a factura económica de um mundo mais verde. Tal significa que a descarbonização na China vai mesmo ser tão progressiva quanto o preciso para não afectar os mais necessitados, sucedendo o mesmo com a substituição dos combustíveis fósseis pelas energias limpas e renováveis.

Voltando uns meses atrás, no Relatório para o 20º Congresso Nacional do Partido Comunista da China, datado de 16 de Outubro de 2022, no ponto 1 Os trabalhos nos últimos cinco anos e as grandes transformações na última década da nossa era, o presidente Xi Jinping (习近平) refere-se explicitamente à importância de ter as “montanhas verdes” e “as águas limpas”, devendo a “ecocivilização” ser um objetivo a implementar pelas autoridades chinesas, muito mais importante para o país do que “os montes de ouro e prata”, “assim como reforçamos a proteção do meio ambiente em todos os domínios, todas as regiões e todo o processo de desenvolvimento.

O sistema institucional em relação à ecocivilização se aprimorou ainda mais, a prevenção e controle da poluição avançou a níveis mais profundos, e se alcançaram progressos sólidos no desenvolvimento verde, circular e de baixa emissão de carbono.” (Xi, 2022: 10), sendo um dos pontos fundamentais deste marxismo ecológico o regresso à tradição, incluindo a da “fusão entre a Natureza e o ser humano”. (Xi, 2022: 16) e a consciencialização de que “o mundo é de todos” (Ibidem).

Esta mensagem é repetida ao longo de todo o Relatório frisando-se várias vezes a necessidade de convivência harmoniosa entre as pessoas e a Natureza, bem como a poupança de recursos e um desenvolvimento sustentável e amigável, a diminuição das emissões de dióxido de carbono até à neutralidade, um combate sem tréguas à poluição, apoiado no sentimento de pertença, de comunidade de vida e dum profundo respeito pela Natureza (sempre mencionada a maiúscula) (Xi, 2022: 20,27,46-49).

Aconselha-se, ainda, a quem deseje uma introdução a este socialismo ambientalista chinês a consulta do artigo 生态社会主义(eco-socialism/ecossocialismo) na Enciclopédia Baidu (百度百科). Hoje, na China as cinco dimensões a ter em conta no país formam um todo indissociável, “Cinco em Um” (《五位一体》), sendo: economia, política, cultura, sociedade e, como expectável, o ecossocialismo. Porque, por um lado as condições concretas do país à entrada do século XXI assim o exigiram, por outro, há um regresso à tradição filosófica chinesa em que o ser humano é apenas uma parte de um todo interligado.

Há, portanto, a recuperação de uma visão filosófica holística. David Gedalecia (1999: 87) chama-nos a atenção para a comunidade de pensamentos entre a Ecologia Profunda, o Budismo Mahayana e o Taoismo, todos se caracterizando por não ostentarem «bifurcação entre os reinos humano e não humano».

Do Taoismo recebemos uma lição de unidade entre todo o cosmos, bem patente no capítulo 25 de O Livro do Tao (《道德经》), como lhe chamou o tradutor João Reis, onde sobressaem quatro grandes, mas em perfeita harmonia, porque ligados ao Tao, fundamento ou raiz ontológica e existencial (道 Dào), que aqui se apresenta na tradução de Graça de Abreu:

O Céu é grande,
A Terra é grande,
o homem também é grande.
São estes os quatro grandes do Universo.
O Homem segue a Terra
A Terra segue o Céu
O Céu segue o Tao.
Tao segue a sua natureza.
(天大/地大/人亦大/域中有四大/而人居其一焉/人法地/地法天/天法道/道法自然/)
(Graça de Abreu, 2013: 76-77)

A natureza é sagrada e, por isso, há que cuidar dela e respeitá-la, porque todos os actos felizes e inspirados dependem de se estar em harmonia com ela e, através dela, com o Tao, como nos explica a cosmologia taoista exposta no cap. 42 (Reis, 1998: 126).

É então oportuno indagar sobre o que nos diz o Clássico das Mutações (《易經》) da relação apropriada entre os seres e a natureza. Esta dá-se a conhecer através do Fornecimento de Nutrição (颐卦). Assim, no Hexagrama 27, também denominado por Richard Wilhelm “cantos da boca”, porque as linhas do hexagrama figuram uma boca aberta, composta pelo trigrama de Raio/Trovão (震 zhèn), a excitação ou despertar, na base, e o de Montanha (艮 gèn) , a tranquilidade, no topo. Quanto à imagem do Hexagrama, manifesta um trovão no sopé da montanha, ou talvez uma fogueira a brilhar, como que a despertar a natureza, tanto na dimensão física, como na espiritual. Se na montanha tranquila caem raios e trovões, há um despertar de toda a energia trazida pelo Céu à Terra, que se mostra no início da primavera, ou durante a época das sementes lançadas, que vão germinando para oferecer nutrição a todos os seres, mas atenção que a pessoa superior deve ser parca e equilibrada não apenas nas palavras, mas também no que come e bebe, porque tanto a falta como o excesso de nutrição física e espiritual podem matar (《象》. 曰:山下有雷颐;君子以慎言語,莭飲食) (Zhang, 84:123).

Ainda que a abundância seja louvada em quem de direito, já que é uma felicidade a natureza fornecer nutrição, assim como quem o pode fazer, os sábios ou todos os que têm algo a dar, a verdade é que o equilíbrio e harmonia na transmissão e acolhimento dos bens físicos ou espirituais vai determinar a sustentabilidade do planeta, a grande casa comunitária, bem como das nossas pequenas moradas individuais.

Também para o fornecimento da nutrição e sua relação entre nutrientes e nutridos se deve seguir a via do meio, esta na ecologia é essencial para o afastamento de crises, sejam elas maiores como a ambiental ou mais específicas como as alterações climáticas.

 

Bibliografia

Alves, Ana Cristina. 1998. Ser Cidadão《 凖公民》. Direção de Edição, Celina Veiga de Oliveira e Ng Pak Meng. Macau: Gabinete Técnico do Ambiente (环境技术事務室).
Ferry, Luc. 1993. A Nova Ordem Ecológica. A árvore, o animal e o homem. Trad. Luís de Barros. Lisboa: Asa.
Gedalecia, David. 1999. The Philosophy of Wu Ch´eng. A Neo-Confucian of The Yüan Dynasty. Bloomington, Indiana: Indiana University.
Graça de Abreu, António. 2013 (trad.). Laozi. Tao Te Ching. 《道德经》. O Livro da Via e da Virtude. Edição Bilingue. Lisboa: Vega.
《生态社会主义》(Eco-Socialism) Enciclopédia Baidu. Disponível em: https://baike.baidu.com/item/%E7%94%9F%E6%80%81%E7%A4%BE%E4%BC%9A%E4%B8%BB%E4%B9%89/7879209, acedido a 26 de novembro de 2022.
Reis, João Carlos (trad).1998. Laozi (老子).O Livro de Tao. Tao Te Ching «道德经» Macau: Fundação Macau.
Soromenho-Marques, Viriato. 2021. “Olhares da China e do Ocidente sobre a Emergência Ambiental e Climática”. A Filosofia Asiática em Portugal e em Macau. 20 de Julho. Disponível em: https://www.cccm.gov.pt/a-filosofia-asiatica-em-portugal-e-em-macau/
Xi Jinping (习近平). 2022. Relatório para o 20º Congresso Nacional do Partido Comunista da China, 16 de Outubro. 中央广播电视总台欧拉中心葡萄牙语部译 (Trad. pelo departamento de Português do Centro EuroLatino da Rádio e Televisão Chinesa).
Wilhelm, Richard (Trad.). 1989. I Ching or the book of changes. London: Arkana, Penguin Books.
Wolton, Thierry.2008. O Grande Bluff Chinês. Como Pequim nos vende a sua «revolução» capitalista. Lisboa: Editorial Bizâncio.
《五位一体》( Os Cinco em Um) Enciclopédia Baidu Disponível em: https://baike.baidu.com/item/%E2%80%9C%E4%BA%94%E4%BD%8D%E4%B8%80%E4%BD%93%E2%80%9D%E6%80%BB%E4%BD%93%E5%B8%83%E5%B1%80/23151323, acedido a 26 de novembro de 2022.
張中鐸(編) (Zhang Zhongduo)《易经提要白話解》台南市:大孚,民84.

19 Dez 2022