Molina e a escrita

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Beatus Ille, um estudante é seduzido a escrever uma tese de doutoramento sobre Jacinto Solana, pretensa figura mítica de poeta da resistência republicana e afinal apócrifa, mas supostamente condenado à morte no final da guerra, depois indultado e finalmente morto durante uma escaramuça com a Guarda Civil. O romance decorre a expensas da investigação e vai-se revelando através de uma lógica de mis em abîme. A dada altura a biografia de Jacinto Solana passa para segundo plano e ganha forma a morte de Mariana que foi mulher de Manuel e amante de Solana. Afinal o crime que a a propósito da investigação sobre Solana, Minaya descobre, está relacionado com uma mulher perturbadora e o investigador cai nas malhas do seu poder de sedução, uma vez que sem o saber, Minaya ao apaixonar-se por Inês, repete a história de há trinta anos de Jacinto Solana e Mariana, a mulher mandada matar pela mãe de Manuel. A grande personagem do livro é esta mulher, mãe de Manuel, reaccionária, preconceituosa, racista, odiosa mesmo, mas de uma fibra conservadora notável. Não temos como não a respeitar e até admirar, na sua fidelidade inquebrantável aos valores que a formaram e lhe deram a consistência moral e de carácter para segurar a Casa, já que desde o sogro, Dom Apolonio, passando pelo marido até ao filho se viu rodeada de um bando de falhados e pusilânimes, aristocratas decadentes, dissipadores por natureza, fracos em tudo, tanto nas convicções como nos princípios, incapazes, cobardes e incompetentes, mas com um aristocrático fair play, como qualquer aristocrata que se preze. Vale a pena, pois é o lugar oportuno, oferecer aqui uma página das melhores do romance, das mais divertidas e ao mesmo tempo das mais sérias e uma pérola da arte narrativa de Molina.

Minaya é chamado ao quarto de D. Elvira, a megera:

“Entre, ouviu primeiro a dura voz do outro lado da porta, e a seguir, quando entrava, o leve cheiro de Inês perdeu-se num perfume desconhecido e denso que ocupava tudo, como se também fizesse parte da presença não visível, da encerrada solidão das roupas e dos móveis de outro tempo que envol­viam D. Elvira. «Não é o cheiro de uma mulher», pensou, mas sim de um século: assim cheiravam as coisas e o ar há cinquenta anos. Sem levantar os olhos, Inês fez uma vaga reverência e pousou a bandeja numa mesa próxima da janela. «Vai-te embo­ra», disse D. Elvira, e não olhou para ela, porque tinha estado a observar Minaya desde que entrara e mesmo quando ele a ajudou a sentar-se perto da mesa do chá continuou a oihar pa­ra ele no espelho do guarda-fatos, desajeitado, solícito, inclina­do sobre ela, consciente do silêncio que não sabia como que­brar e dos olhos frios e sábios que já o tinham julgado.

— Pareces-te com a tua mãe — disse, contemplando-o de­vagar por trás do fumo e da chávena de chá. — Os mesmos olhos e a mesma boca, mas a maneira de sorrir é do teu pai. Era assim que sorria o meu marido e todos os homens da sua família, e até a tua avó Cristina, que era tão bonita como tu. Não viste o retrato dela que o meu filho tern no quarto? Sor­riem para que vos desculpem as vossas mentiras, nem sequer para as ocultar, porque sempre vos faltou o sentido moral necessário para distinguir o que é justo do que não o é, ou para que isso vos importe. Era por isso que o meu pobre marido se desculpava antes de cometer um erro ou de dizer uma mentira, nunca depois. Para ele não havia nada que não pudesse ser perdoado. Nunca o seu sorriso foi mais cândido nem mais en­cantador do que quando me informou que tinha vendido uma quinta de mil oliveiras para comprar urn desses automóveis italianos, Bugattis, creio que lhe chamavam. Foi com ele e com uma galdéria a Monte Carlo e voltou daí a urn mês sem automóvel nem galdéria, e sem um cêntimo, é claro, mas veio com urn smoking correctíssimo e um ramo de gladíolos e sorriu como se tivesse viajado até à Côte d’Azur exclusivamente para me comprar as flores. O meu filho, em compensação, nunca soube sequer sorrir como o pai, ou como o teu, que também era urn aldrabão da pior espécie. Equivocou-se tanto como qualquer deles, mas corn toda a seriedade do mundo, como se comungasse. Foi como voluntário para esse exército de esfo­meados que nos tinham tirado metade da nossa terra para a repartirem, e por pouco perde a vida lutando contra os que eram de facto os seus, e como se ainda fosse pouco casou com aque­la mulher que já era prato de segunda ou terceira mesa tu en­tendes-me, e até queria ir para França corn ela. Mas tenho a certeza que tu não és inteiramente como eles, como o meu ma­rido e o meu filho e o louco do teu pai, ou como o teu bisavô; D. Apolonio, que os contagiou a todos corn a sua vigarice e a sua loucura, mas não corn a sua capacidade de ganhar dinheiro. Todos uns aldrabões, bárbaros ou inúteis, ou as duas coisas ao mesmo tempo, como o meu marido, oxalá Deus o tenha na sua glória, mas que se tarda mais alguns anos a morrer nos deixa na miséria, corn aquela mania que the deu de coleccionar pri­meiro cavalos de puro sangue e depois mulheres e automóveis. Por isso fez tanta amizade com Afonso XIII quando era depu­tado. Tinham os mesmos hobbies, e nenhum dos dois se preo­cupava em ocultá-los. Se calhar o teu pai contou-te que quando o rei veio a Mágina em 24 esteve uma tarde a tomar chá con­nosco, nesta casa. Pálidos de inveja, ficaram os fidalgos, ao ve­rem a familiaridade corn que o rei tratava o meu marido, (…) Na última noite da sua visita a Mágina, Afonso XIII desapareceu, coisa que ao que parece tinha por costume, e nin­guém, nem a rainha nem D. Miguel Primo de Rivera, que ti­nha vindo com ele, nem os militares da escolta sabiam onde encontrá-lo. Às duas da manhã acordou-me o telefone. Era Primo, tão nervoso que nem parecia bêbedo. «Elvira, encon­tra-se Sua Majestade em sua casa?» «Mas D. Miguel», disse-lhe eu, «vossência acha que se o rei estivesse aqui eu me tinha dei­tado?.» E sabes onde estava? Na Ilha de Cuba, que já então era a única fazenda que nos restava, recebendo corn champanhe duas galdérias de luxo que the tinha arranjado o meu marido, que creio que gozava mais fazendo de terceiro para os amigos do que de galo de briga. Voltou ao amanhecer, despiu-se corn a mesma naturalidade que se viesse da ópera e disse-me, antes de adormecer: «Verdadeiramente, querida, Sua Majestade é um Sportsman».

 

Depois disto, eu não devia escrever mais nada, mas enfim… Beatus Ille é um óptimo exemplo de uma narrativa metadiegética, na medida em que procede de tal modo, trabalha tão bem a verosimilhança e o domínio simbólico que consegue iludir em nós os tempos narrativos e seduzir o leitor para um plano em que é tentado a não ser capaz de distinguir o diegético do metadiegético. Minaya tão depressa nos aparece como um elemento extradiegético como pela via da sua relação familiar com o irmão de Manuel, completamente envolvido pela dimensão diegética, uma vez que é seu filho e portanto sobrinho de Manuel, que o acolhe em sua casa nessa dupla condição de familiar e de simples investigador académico, reparando uma injustiça,. Ele, de resto veste as duas personagens alternadamente, e torna ambígua a sua actividade que oscila entre esse investigador académico, desapaixonado e o investigador policial curioso e comprometido. A sobreposição destas duas narrativas principais sendo que uma parece programada enquanto a outra parasitariamente é estimulada por esta tendo os contornos de uma intriga que se atravessa e se impõe ao narrador através da curiosidade excêntrica de Minaya. A segunda narrativa acaba por fazer passar a primeira para segundo plano, a dada altura já não nos interessa tanto o plano inicial da investigação de Minaya, mas mais as sucessivas armadilhas que a casa lhe arma a toda a hora. A metadiegese absorve a diegese. Eu diria que é essa parasitose, absorção por simbiose inicial, até à completa deglutição e digestão que marca o ritmo do romance. É através de Minaya que se passa de um plano para outro, contudo Minaya não passa de um títere manipulado por um narrador perverso. Este narrador pretende que seja a metadiegese narrativa que a curiosidade ingénua de Minaya exercita sempre sob a forma de um engodo a contar e deslindar a trama da diegese inicial, que sob a capa de uma investigação positiva não passa de uma ficção que apenas serve (serviu) para lançar Minaya para o coração da intriga. Os personagens diegéticos, Minaya e Inês sobretudo são émulos dos enigmáticos Jacinto Solana, Mariana e Manuel. Estes são ao mesmo tempo reais e fictícios, mas quando se compreender as suas histórias passaremos a compreender melhor Inês e Minaya, ou afinal, vice versa.

Em síntese:

Há uma casa em Màgina, um palácio para ser mais rigoroso, onde numa certa época viviam Manuel, Mariana sua mulher, Jacinto Solana que Manuel albergou depois da estadia na prisão deste para o esconder e proteger da Guarda Civil, pois ele era o seu maior amigo o que não obstante isso não impediu que se viesse a tornar amante de Mariana; Dona Elvira, a mãe de Manuel, que a dada altura mandará matar Mariana para vingar a desonra do filho; o agente do crime é um artista de segunda categoria, Utrera, um escultor que vive também e por enquanto, na casa de Manuel desde 1939, numa parte excêntrica da casa. E há ainda Inês, que não sabemos quem é. Esta casa que o avô de Manuel, D. Apolonio, deixou como herdo ao pai de Manuel por inteiro, deserdando a sua outra filha, Cristina, tia de Manuel e avó de Minaya, porque ela se prendeu de amores com um reles amanuense que fazia versos. Os pais de Minaya olhavam muitas vezes para aquela casa como também podendo ter sido sua e quando abandonaram Màgina, era Minaya uma criança ainda, foram à casa despedir-se do primo, Manuel. Minaya recorda muitas vezes a visita a essa casa e quando já adulto volta a ela para investigar a obra literária de Jacinto Solana e a sua vida, supostamente ligada à geração de 27, não deixará de sobrepor as duas impressões da casa.

Relativamente a Solana, percorri por sua causa e por via de uma suspeita intuitiva e imediata, toda a geração de 27 exaustivamente e não encontrei lá nenhum Solana, como eu aliás supunha. Mas não posso deixar de, pelo que representam, referir alguns dos autores mais emblemáticos dessa geração, alguns deles várias vezes referidos no corpo do romance como é o caso de Alberti, por exemplo, como sendo alguém próximo de Solana, os outros de que faço questão foram: Pedro Salinas (18911951), Jorge Guillén (18931984), Dámaso Alonso (18981990), Federico García Lorca (18981936), Vicente Aleixandre (18981984), Luis Cernuda (19021963) e Miguel Hernández (19101942). Eram muitos mais, mas estes talvez sejam ou foram os mais importantes. Grande geração, sem dúvida.

Jacinto Solana não passa portanto de um autor apócrifo, tal como a sua pretensa obra. Muñoz Molina embora através de um tal José Manuel Luque, com ares de trapaceiro e paranóico, chega a referir-se à publicação de um poema de Jacinto Solana na revista Hora de España, órgão dos intelectuais republicanos, dirigida entre outros por Rafael Alberti e Maria Zambrano: isto em Julho de 1937, intitulado Invitatión, que obviamente não existe. Quando Muñoz Molina narra este regresso de Minaya à casa de Mágina, constrói a narrativa usando os dois tempos da presença de Minaya na casa, enquanto criança quando ainda havia Mariana e Solana e agora que existe Inês, por quem se irá apaixonar enquanto conduz a contragosto a investigação para o seu doutoramento sobre Solana. O pseudo Solana tinha sido condenado à morte depois do fim da Guerra Civil, (mas foi amnistiado à última da hora, provavelmente sob a influência de seu amigo Manuel) e terá afinal morrido, anos mais tarde, às mãos da Guarda Civil numa rixa em que por pura bravata revolucionária e romântica se envolveura. Ou não terá sido assim e continuou a viver escondido e na clandestinidade. Viverá ele no imenso palácio de Mágina? Será ele o narrador que de dentro da cama de onde se levanta Inês começa a narrar não só o seu abandono, mas em longa prolepse todos os mistérios da casa e daquele tempo? O abandono foi antes uma ordem, a ida de Inês em direcção a Minaya na estação de comboio é o resultado de uma exigência desta figura estranha que no início do romance veste simplesmente a pele de amante de Inês. De amante ou de pai? Claro que já sabíamos que as últimas páginas do romance seriam a narrativa deste episódio. O autor regressa ao quarto de onde sai agora Inês pelo corredor percorrido por Minaya algum tempo antes. Só ele fica no quarto depois de tomar uma quantidade excessiva de remédios. Daí que Minaya e sobretudo Inês lhe obedeçam. Respeita-se o último pedido de um condenado. Aquele que segundo as suas próprias palavras teima em não morrer. Só pode ser, só podia ser, Jacinto Solana.

Nunca lhe ocorreu, prezado leitor, que é um sacrilégio resumir e tentar explicar uma obra prima, uma obra genial e complexa da arte narrativa. É o que eu sinto agora, mas teimosamente continuo a fazê-lo.

Diria para recomeçar que o texto abre portanto com o anúncio de uma imensa prolepse, o presente em que um narrador abscôndito, anuncia um facto que só irá ocorrer na última parte do romance. Uma mulher abandona um quarto, uma cama, um provável leito conjugal, já que um homem, digo eu, porque por enquanto pode ser até uma mulher, mas não é, iremos saber mais à frente, embora apenas no entardecer do romance, quem é esta personagem, que logo no início do romance está a ser abandonada e trocada (?) por outro, concretamente Minaya que espera Inês na estação de comboios de Mágina, lugar onde fica a casa em que todo o drama irá decorrer. O narrador, o amante trocado ou afinal o pai, pensa até ao último momento que Inês se irá deter como tantas vezes aconteceu e regresse ao quarto, desfaça a mala e se volte a meter nesse leito partilhado. Mas desejando-o não é o que deseja. Ele é o narrador omnisciente que deveria ser aparentemente externo ao romance mas que trai o seu estatuto ao referir o local onde está, que é de onde muito intimamente toma consciência da decisão de Inês. O romance começa cedo a mostrar o seu carácter tenso e sofrido apesar de ser a espaços muito divertido. Mói-nos a nós já o enorme desejo de saber quem é esta pessoa que acaba de se suicidar, de ter dado pelo menos os primeiros passos e assiste ao abandono, a uma perda dolorosa e talvez irreparável e o faz não como quem sofre na pele, esse abandono, mas quase como um mero observador. Minaya, esse que por enquanto também não é nada, um puro nome, sabemos apenas que espera Inês na estação de comboio, a estação ao lado da estrada onde circulam os expressos que “avançam sob a lua pelo vale lívido do Guadalquivir e sobem as encostas de Mágina”. Minaya está esperando mas o narrador acrescenta logo “sem sequer se atrever a desejar que Inês, ma­gra e sozinha, com a sua breve saia cor-de-rosa e o seu cabelo apanhado num rabo de cavalo, vá surgir a uma esquina do cais. Está sozinho, sentado num banco, talvez fumando enquanto olha para as luzes vermelhas, para as linhas e para as carrua­gens paradas no limite da estação e da noite”. O narrador, esse, adensa o suspense e o enigma e vale a pena transcrever por inteiro o que ele, narrando, anuncia misteriosamente:

 

“Agora, depois de fechada a porta, posso, se quiser, imaginar tudo só para mim, quer dizer, para ninguém, posso meter a cabeça debaixo da dobra que Inês alisou com tão secreta ternura antes de se ir em­bora e assim, emboscado na sombra e no calor do meu corpo debaixo dos lençóis, posso imaginar ou contar o que aconteceu e até dirigir os seus passos, os de Inês e os dele, a caminho do encontro e do reconhecimento no cais vazio, como se neste instante os inventasse e desenhasse a sua presença, o seu desejo e a sua culpa.

Fechou a porta e não se voltou para olhar para mim, por­que eu lho tinha proibido, apenas vi pela última vez o seu deli­cado pescoço branco e o início do cabelo e a seguir ouvi os seus passos que se amorteciam ao afastarem-se em direcção ao fundo do corredor, onde pararam. Talvez tenha pousado a mala no chão e se tenha voltado para a porta que acabava de fechar, e nessa altura temi e provavelmente desejei que não continuasse a avançar, mas logo a seguir soaram outra vez os passos, mais longe, muito fundos já, nas escadas, e sei que quando chegou ao pátio parou de novo e ergueu os olhos para a janela, mas não quis ir ver, porque já não era necessário. Bastam a minha consciência e a solidão e as palavras que pronun­cio em voz baixa para a guiar a caminho da rua e da estação onde ele não consegue deixar de a esperar. Já não a preciso es­crever para adivinhar ou inventar as coisas. Ele, Minaya, igno­ra-o, e suponho que acabará por se render, inevitavelmente, à superstição da escrita, porque não conhece a coragem do silên­cio e das páginas em branco. Agora, enquanto espera o com­boio que, quando esta noite chegar ao fim, quando chegar a Madrid, o terá afastado para sempre de Mágina, olha para as li­nhas desertas e para as sombras das oliveiras mais além dos muros, mas entre os seus olhos e o mundo persiste Inês e a ca­sa onde a conheceu, o retrato nupcial de Mariana, o espelho em que se olhava Jacinto Solana enquanto escrevia um poema laconicamente intitulado Invitación. Como no primeiro dia, quando apareceu na casa com aquela aziaga melancolia de hós­pede recém-chegado dos piores comboios da noite, Minaya, (…)”

 

 

E chega! O que havia a perceber já está percebido. Seja lá quem for que na trama do romance é deixado só na casa de Mágina e mesmo se esse não é outro senão o autor, o que já percebemos é que todos não passam de títeres controlados no interior do processo da escrita por aquele que nos começa a segredar que construiu esta história do nada, apenas do vórtice da sua imaginação. É neste tipo de romance que nos rendemos aos méritos de prestidigitação do demiurgo, neste tipo de romance com claras semelhanças com a gloriosa tradição da ficção ibero americana e, neste caso concreto, com Juan Rulfo, Ernesto Sabato, o de Heróis e Túmulos e claro Garcia Marquez.

Alguém resumiu a natureza deste texto, a sua complexidade narrativa, ora aparentemente degética, ora inequivocamente metadiegética, e eu diria metadiegética a vários níveis num entrelaçado de narrativas mis en abîme, anunciado logo no extracto que cito, alguém, dizia, referindo-se a este texto de um modo certeiro que tudo sintetiza: “narrar para contar-lo”. No sentido em que é a narrativa metadiegética que fará que se manifeste a diegese ficcional e que de resto fará com que ela se forme, se constitua em texto mas também em história. Nós queremos saber o que aconteceu a Solana pela investigação de Minaya, de Mariana por Inês, mesmo se nenhum deles existiu e são apenas o pretexto para narrar outra história, ou talvez reescrevê-la porque ela foi até aqui mal contada. Nesse sentido são todos títeres, até o próprio narrador. Só há duas realidades tangíveis: Molina e a Escrita.

20 Jul 2017

Vergílio Ferreira: Memória, realidade e imaginação

Ferreira, Vergílio, Rápida a Sombra, Bertrand, Lisboa, 1993
Descritores: Literatura Portuguesa, Romance, Memória, Regresso, Paraíso Perdido, 214, [2] p.: 21 cm, ISBN: 972-25-0269-7.

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Rápida a Sombra dominam os temas que são estruturais na obra de Vergílio Ferreira, como por exemplo a ideia de um regresso, que é quase sempre a uma aldeia. A ideia de regresso após um longo afastamento está também no Cântico Final, no Para Sempre, em Signo Sinal e em outros romances. É o regresso que geralmente potencia a elaboração de uma espécie de balanço reflexivo através do uso da memória. A analepse é uma das figuras de estilo mais caras a Vergílio Ferreira, desde logo por isso, porque os regressos e os exercícios de memória são recorrentes. Contudo neste romance, Rápida a Sombra, o regresso de Júlio Neves é-nos dado apenas em termos imaginários enquanto em Para Sempre se trata de um regresso definitivo, o que de facto também não muda nada, pois a ideia de regresso é sempre ao mesmo tempo real e fictícia.

O romance usa espaços distintos e não só a cidade e a aldeia, mas também o escritório, a praia, as várias casas, etc., mas o que não é nomeável, sendo porém muito mais da ordem do arquétipo ontológico, é a oposição mais estruturante entre o espaço do visível e o espaço do invisível. São as figuras femininas que delimitam, em minha opinião, as fronteiras, ou seja, as verdadeiras fronteiras, aquelas que separam e organizam duas modulações de Ser. Este é outro tema recorrente nos romances de Vergílio Ferreira. Há sempre duas mulheres paradigmáticas tal como neste romance Helena, a sua mulher, e Hélia, mulher sonhada e paradigma de desejo e nostalgia. É esta bifurcação ôntica que permite a instauração de três domínios existenciais, o da memória, o da realidade presente e o da pura imaginação. O visível e o invisível, contudo, não são afins de nenhum dos três domínios de forma esquemática ou simplista. O invisível pode fazer a sua erupção tanto através da imaginação como da memória, o que parece óbvio, mas pode também irromper, fazer a sua aparição, a partir justamente da realidade. Como diz Vergílio Ferreira, em Rápida a Sombra “só o invisível se vê, a irrealidade é real, nos intervalos do real e do visível!”.

É esse, o papel próprio da ficção, do romance e da novela em particular, dar a ver um tipo de realidade que mais nenhuma arte é capaz de dar, essa espessura existencial que se não vê. Neste sentido radical há uma aparição em toda a arte do romance. O romance é a forma de arte em que o invisível, o intangível puro, se torna visível e aparece. O romance é sempre a expressão de uma epifania porque nos narra a experiência do acesso ao rosto do que é invisível e não tem rosto. Em boa verdade devo desdobrar este conceito de narrativa em dois elementos, o que ela, narrativa, narra e o que pela narrativa se faz aparecer, pois são duas realidades imbrincadas mas distintas. Narrando uma ordem de coisas e de factos o narrador, através do seu poder, faz aparecer outra ordem de factos e de coisas. É como se de uma arte da prestidigitação se tratasse. Vergílio Ferreira di-lo e nesse sentido diz o mesmo que Milan Kundera, embora por outras palavras: “Todo o real tem atrás de si outro real. E é nesta diferença que se insere a distinção entre o ‘saber’ e o ‘ver’. Saber que se é mortal só é ver que se é mortal quando se passa para o lado de lá do saber. É onde está a ‘aparição’. O que está para lá é do domínio do intangível e do sagrado. Como aos deuses, não se lhe pode ver a face. Ou só em breves instantes de privilégio”.

Não partilho com Vergílio Ferreira, no entanto, a ideia de que a aparição, a epifania portanto, responda a uma pergunta. Partilho com Kundera a ideia da insustentável leveza do ser. Num romance a narrativa faz aparecer essa dimensão da existência, única, essa erupção do que se não vê, justamente porque não pergunta nem questiona, não especula nem investiga; narra apenas e narra, quase que se pode dizer, de uma forma intelectualmente pobre e não filosoficamente pretensiosa; pois é a narrativa do aparentemente nada que faz fulgurar, nunca porém de repente, mas como uma moinha que de nós se apropria, uma outra dimensão da existência. A dimensão da existência que o romance mostra e da qual nos faz participar é rigorosamente como um estado de alma que aos poucos se apodera de nós e nos mantém cativos durante um certo tempo.  

     

Sinopse e Ficha Crítica de Leitura

Vergílio Ferreira nasceu na aldeia de Melo, no Distrito da Guarda a 28 de janeiro de 1916 e faleceu em Lisboa no dia 1 de Março de 1996. Formou-se na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra em Filologia Românica. Em 1942 começou a sua carreira como professor de Português, Latim e Grego. Em 1953 publicou a sua primeira colecção de contos, “A Face Sangrenta”. Em 1959 publicou a “Aparição”, livro com o qual ganhou o Prémio “Camilo Castelo Branco” da Sociedade Portuguesa de Escritores. Em 1984, foi eleito sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras. As suas obras vão do neorrealismo ao existencialismo. Considera-se geralmente que o romance Mudança assinala justamente a mudança de uma fase para outra. Na fase final da sua carreira pode-se dizer que Vergílio Ferreira tocou as fronteiras de um puro niilismo. Em 1992 foi eleito para a Academia das Ciências de Lisboa e além disso, recebeu o Prémio Camões, no mesmo ano.

Obras principais: Mudança (1949), Manhã Submersa (1954), Aparição (1959), Para Sempre (1983), Até ao Fim (1987), Em Nome da Terra (1990) e Na tua Face (1993).  O autor faleceu em 1996, em Lisboa. Deixou uma obra incompleta, Cartas a Sandra, que foi publicada após a sua morte. A partir de 1980 e até 1994 foram sendo publicados os seus diários, com a designação de Conta Corrente. Deve ainda salientar-se a publicação do conjunto de ensaios intitulado O Espaço do Invisível entre 1965 e 1987.

8 Jun 2017

A nódoa negra da nossa idiossincrasia

Aires, Matias (1705-1763), Reflexões Sobre a Vaidade dos Homens, Fundação Biblioteca Nacional, Lisboa, 2007

Descritores: Literatura Barroca, Ensaio, Século XVIII, 288 p. ; ISBN: 9788533304529

Cota: 821.134.3(81)-4 Air

“A ambição dos homens por uma parte, e pela outra a vaidade, tem feito da terra um espectáculo de sangue: a mesma terra que foi feita para todos, quiseram alguns faze-la unicamente sua”

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]atias Aires mau grado as coordenadas do barroco mental que acompanham permanentemente as suas reflexões pensa e algumas vezes pensa muito bem. E por isso não é fácil isolar na sua obra a explicitação de um paradigma temático de uma forma escorreita e límpida. Prevalece alguma promiscuidade entre pressupostos ideológicos barrocos  e pressupostos ideológicos clássicos. Quando por exemplo ele diz que «a solidão nos desterra para a solidão do ermo», ele analisa o evento segundo a ideia clássica horaciana de que «nunca podemos fugir de nós», mas ao mesmo tempo o que ele identifica como a nossa sombra negra é a barroca ilusão e vaidade, de tal modo que “somos como a ave desgraçada, que por mais que fuja do lugar em que recebeu o golpe, sempre leva no peito atravessada a seta”, querendo com isso dizer que ælun, non animum mutant, qui trans mare currunt. Aquilo que em Horácio é assumido como uma especificidade própria da condição humana substantiva, torna-se em Matias Aires um elemento de reforço do dispositivo barroco. Para Matias Aires o que nos persegue é a vaidade, nódoa negra da nossa idiossincrasia, enquanto que para Horácio o que nos persegue é simplesmente nós-mesmos, a nossa idiossincrática auto-individuação, independentemente desta ou daquela virtude.

E de tal ordem é assim que a possibilidade do retiro integral não é admissível em Matias Aires. Todas as modalidades de retiro não se adaptam ao modelo do ensaísta português de Setecentos. Para ele o retiro absoluto não é possível porque ao “deixarmos livremente o comércio dos homens, não renunciamos o viver na admiração, e notícia deles”, o que significa que “consentimos em apartar-nos de sorte, que nunca mais sejamos vistos, mas não consentimos em não ser lembrados”. O dispositivo ideológico através do qual Matias Aires concebe a sua antropologia persegue os seus pensamentos. Para Matias Aires o retiro é uma dissimulação, não um retiro de facto, é uma representação teatral, é uma máscara. E é a máscara e a encenação que persistem com o seu valor ontologicamente dramático e não o retiro que deveria significar o que de facto significa no classicismo, assunção de modéstia, de humildade, de procura regenerativa da vida simples, discreta. Não é a lathe biosas epicurista (vida discreta e simples), que fundamenta este retiro, não é a completa separação e rejeição do modelo da ubris ou culto do excesso. A ubris é o que persegue o homem desesperado no seu exílio encenado. Falta aqui um ingrediente determinante do modelo da mediania: a tranquilidade que só advém por intermédio da realização da sabedoria clássica ou estóico-epicurista da phronesis e da sophrosyne. Eu sei que Matias Aires desenvolve o seu modelo sob uma forma crítica. A sua análise é realista e não idealista. Mas o simples facto de não conceber uma alternativa mostra o quanto está prisioneiro do seu próprio quadro conceptual. O realismo, que de resto é próprio do barroco, não deixa entrever a possibilidade de uma escapatória. O seu pessimismo de fundo sapa tanto a possibilidade da eutopia quanto da utopia. A verdade é que o que fomenta o retiro clássico, quer dizer salvífico e regenerativo, é a rejeição da ubris e esta no dispositivo clássico é profundamente marcada pela sua imbricação com o problema do mal.

Desde a conceptualização ontológica, metafísica e religiosa do limite e da ordem até à definição do papel ético-moral da medida, que culmina no sacrossanto apotegma apolíneo do ne quid nimis (nada para além da medida), é sempre o bem e o mal que estão no horizonte. Ora em Matias Aires é o binómio conjuntivo ilusão / vaidade que enforma a sua aproximação teorética. O que quer dizer que lhe falta desde o princípio um modelo conceptual decisório, e analítico, que pela sua natureza se encontre acima do material em análise. Matias Aires julga questões morais com conceitos morais, procura compreender uma realidade empírica através da operatividade de ferramentas empíricas. Não há separação entre o modelo e a realidade, logo o seu esforço de desconstrução não é verdadeiramente operatório. Ele diz por exemplo: “A vaidade é cheia de artifício, e se ocupa em tirar da nossa vista, e da nossa compreensão o verdadeiro ser das cousas, para lhes substituir um falso, e aparente”. Nada se passa no plano ontológico ou metafísico, mas apenas no plano das consequências fenomenológicas da crise aberta pela ruptura com o paradigma da permanência e da estabilidade. A crítica e a condenação da ubris no barroco resulta do facto de que tudo é aparente, vão, ilusório, etc. enquanto que no classicismo a ubris simboliza o mal. E é só porque é o mal que a ubris configura uma ilusão, ou melhor um nada, um não-ser. O classicismo valoriza o texto, a substância e o barroco valoriza a cenografia, e o décor. A opção pela aparência desloca logo a questão do plano ontológico para o plano fenomenológico, sendo que esta fenomenologia não é hermenêutica mas gnoseológica. O mundo não possui uma alma que é enganadora ou não, uma vez que é da natureza da alma do mundo ser enganadora. Trazendo o que deveria ser um epifenómeno para o centro do debate  gnoseológico o barroco dessubstancializa o problema do bem e do mal na sua raiz metafísica e assim acaba a explicar o equívoco pelo equívoco, a falha pela falha, a máscara pela máscara até ao infinito. Um jogo de espelhos, um labirinto. Não há fuga possível do labirinto, não há retiro possível do mundo. O retiro é uma aparência de retiro. E não é assim por acaso que o problema do mal seja profundamente relativizado. “É raro o mal, de que não venha a nascer algum bem, nem bem, que não produza algum mal”.

A única fuga concebida por Matias Aires é uma ascética fuga de nós-próprios, isto é das nossas paixões. O neo-estoicismo do barroco informa aqui o pensamento do nosso autor. Neste domínio Matias Aires é um autor previsível. A presença de Santo Agostinho no seu ideário empurra-o para uma análise de tipo voluntarista em que finalmente aparece a questão do mal agora já indissociável do pecado, da queda e da culpa. Nem sinais de classicismo e de argumento onto-gnoseológico. Pelo contrário sente-se a presença do video melior proboque de Ovídio, das reflexões de Santo Agostinho, das Epístolas de S. Paulo, em particular a Epístola aos Romanos, e da Medeia de Eurípedes, entre muitas outras reflexões que colocam o mal no plano de uma oscilação da vontade ditada pela condição miserável do homem. Oscilação que o autor enfatiza de modo explícito: “Parece que cada um de nós tem duas vontades sempre opostas entre si; ao mesmo tempo queremos, e não queremos; ao mesmo tempo condenamos, e aprovamos; ao mesmo tempo buscamos e fugimos, amamos e aborrecemos, Temos uma vontade pronta para conhecer, e detestar o vício; mas também outra pronta para o abraçar”. Mas no essencial a nossa natureza propende para o mal, o que significa que triunfa em nós a vontade má, a concupiscência. A nossa vida consiste em combater esta má inclinação. As paixões, quer dizer a carne são o nosso inimigo, até porque a carne não é frágil só por um princípio, mas por muitos”.

Biografia

Matias Aires Ramos da Silva de Eça nasceu no Brasil, a 27 de Março de 1705, vindo a falecer em Lisboa a 10 de Dezembro  de 1763). Filho de José Ramos da Silva e de sua mulher Catarina de Orta, nasceu como já vimos no Brasil, na Capitania, depois Província e hoje Estado de São Paulo. Foi Cavaleiro da Ordem de Cristo e Provedor da Casa da Moeda de Lisboa, obtendo e sucedendo neste emprego a seu pai, José Ramos da Silva, por sua morte. Foi Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Ciências e Mestre em Artes pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Formou-se numa Universidade Francesa em Direito Civil e Canónico. Fez estudos de Matemática e Ciências Físicas. Conhecia o Hebraico e outras línguas. Foi em 1716 que acompanhando seus pais se mudou para Portugal, tendo ingressado no Colégio de Santo Antão. Em 1722, estudou nas Faculdades de Leis e de Cânones de Coimbra, onde recebeu o grau de Licenciado em Artes, graduando-se mais tarde na cidade de Baiona, na Galiza. Foi notável literato e naturalista e grande amigo do malogrado António José da Silva, o Judeu, que procurou ardentemente salvar da fogueira, o que não conseguiu.  Escreveu obras em Francês e Latim e foi também tradutor de clássicos latinos. É considerado por muitos o maior nome da Filosofia de Língua Portuguesa do seu tempo, o que não era muito difícil tendo em conta a pobreza franciscana da nossa cultura filosófica e literária do século XVIII. Só, talvez António Soares Barbosa, autor de um tratado de filosofia moral, mas que é também um tratado jusnaturalista, se lhe pode comparar. Enfim, há Verney, Teodoro de Almeida e Frei Manuel do Cenáculo Villas Boas, mas que para mim são autores menores, pois lhes falta originalidade e arrojo. Em Reflexões sobre a Vaidade dos Homens, cuja primeira edição é de 1752, o autor tece suas reflexões a partir do trecho bíblico extraído do EclesiastesVanitas vanitatum et omnia vanitas, ou seja, “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade”. Como um dos exemplos da vaidade dos homens, é citada a sumptuosidade dos mausoléus.  Inocêncio Francisco da Silva informa no seu dicionário que “Quanto à data de seu óbito é por ora ignorada, sabendo-se contudo que já era falecido no ano de 1770”. Ernesto Ennes informa data de 10 de dezembro de 1763, a partir de documentação comprobatória. O Dicionário Biobibliográfico de Autores Brasileiros informa a mesma data.

1 Jun 2017

James Joyce | Metalinguagem, autobiografia e romance de iniciação

Joyce, James, Retrato do Artista Quando Jovem, Difel, Lisboa, 1989
Descritores: Romance, Literatura Irlandesa,  Autobiografia, Tradução e Prefácio de Alfredo Margarido, 269 p.:23 cm, ISBN: 972-29-0031-5
Cota: C-10-7-36

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]enso que modestamente fiz a descoberta que se impunha para tratar este tema, ao inclinar a minha propensão para a obra de James Joyce, O Retrato do Artista Quando Jovem.  Até porque por via de um pequeno pormenor que é contudo de uma relevância substantiva. É que o texto converteu-se imediatamente na abertura para uma dupla exposição, por que a personagem central do Retrato vem a ser também uma das personagens centrais da obra maior de Joyce, o Ulisses, ou seja nem mais nem menos que o alter ego do escritor, o incontornável Stephen Dedalus.  Harold Bloom chega mesmo a considerar que é ainda Stephen Dedalus o narrador de alguns contos da colectânea, The Dubliners (em português, Gente de Dublin).

Eu estava em Aix-en-Provence em 1989 e inscrevi-me numa cooperativa de cinema de arte e ensaio, das poucas ainda remanescentes em França depois do grande surto dos anos sessenta e setenta e um dia vi anunciado o filme de John Huston, The Dead, em português, Os Vivos e os Mortos. O filme baseava-se no último conto e seguramente o mais famoso de Dubliners (Gente de Dublin). James Joyce tinha  25 ou 26 anos quando o escreveu, na mesma época em que se dedicava à criação da versão inicial do seu romance de formação, que só seria publicado, depuradíssimo em 1916, com o título Um Retrato do Artista Quando Jovem. Os quinze contos de Gente de Dublin foram publicados dois anos antes.

Se Stephen Dedalus, o herói, ainda resultava informe, e o texto ainda frouxo enquanto narrativa, os contos daquela época mostravam um Joyce que poderia ficar na história como um dos grandes do género, independentemente da sua reputação futura, Esta reputação e já o disse algures tem sido sobretudo calculada com base na capacidade de ruptura e na ousadia formal. São muitos os grandes escritores que nunca se renderam ao génio narrativo de James Joyce a começar pela sua conterrânea e contemporânea, Virgínia Woolf. Eu, com toda a modéstia também não.

Entretanto ainda em França, segui pela televisão uma entrevista a Margarite Duras numa época em que a sua doença fatal estava já adiantada. Foi provavelmente a sua última aparição em público. Lembro-me bem do sentido global da entrevista que glosava uma das suas obras mais emblemáticas, L’Écriture (Escrever), mas lembro-me sobretudo que a dada altura e a propósito de cinema ela ter confessado no seu estilo radical e truculento que não conseguia ver um filme até ao fim, tal a decrepitude e indigência da Sétima Arte, à qual ela esteve sempre ligada, não o esqueçamos, quer como guionista, quer mesmo como realizadora. Como guionista não posso deixar de referir o Hiroshima meu Amor, realizado por Alain Resnais e o incontornável Moderato Cantabile, com Jean Paul Belmondo e Jeanne Moreau, realizado por Peter Brook. A par disso foram muitas as novelas que escreveu que passaram ao cinema, a mais conhecida terá sido O Amante, realizado por  Jean-Jacques Annaud. Enquanto realizadora contam-se 19 obras entre curtas e longas metragens. Seria também uma injustiça não referir L’Homme Atlantique. Mas o que me trouxe a Marguerite Duras foi o facto de nessa entrevista ela ter referido que tinha aberto uma excepção, tinha ido ao cinema e tinha visto um filme até ao fim, e esse filme tinha sido justamente The Dead de John Huston baseado no conto homónimo de James Joyce da colectânea Dubliners, como já acentuei. Gostei tanto do filme que já o vi inúmeras vezes, que depois deste facto enchi-me de coragem pela segunda ou terceira vez e ataquei primeiro o Retrato do Artista Quando Jovem e mais tarde o Ulisses mas nunca o Finnegans Wake, que é ao que parece simplesmente ilegível.    

Voltemos agora ao Retrato e a Stephen Dedalus.

Stephen Dedalus apresenta uma importância múltipla como chave de acesso à biografia de James Joyce, o facto de ser, como já disse, o alter ego de Joyce, o facto de ser uma das metamorfoses narrativas ou mesmo da narratividade literária do autor, o facto de ser também uma personagem, neste caso, com a responsabilidade de ser o protagonista e finalmente o facto ainda de se assumir muitas vezes como uma espécie de anti-herói mostrando o lado obscuro e quem sabe recalcado do artista. É em qualquer dos casos uma personagem complexíssima e rica, homóloga, no mínimo, do universo complexo e perturbado do próprio James Joyce em todo o seu processo formativo. E por falar em formativo, é o momento de não esconder e muito menos negar que o carácter de bildungsroman de O Retrato do Artista Quando Jovem também me apareceu muito atraente e sugestivo, pois as biografias devem começar pelos balbucios informes e quiçá ainda inconscientes do artista, justamente naquela fase da vida em que o ser estrebucha por se descobrir, por se encontrar com o seu genius ou se preferirmos por achar a sua subjectividade, encontro esse que é muitas vezes fatal e decisivo. É que, deixem-me dizê-lo já com clareza, num romance de iniciação, e este não foge à regra, pode aparecer com toda a nudez não apenas o processo de descoberta existencial mas ainda toda a panóplia de questões que há-de perseguir o artista ao longo da vida: temas, possibilidades retóricas, modulações narrativas, idiossincrasias estilísticas, modos e modelos expressivos, preocupações metafísicas e ideológicas, etc.  Ora, é justamente isso que ocorre em O Retrato do Artista Quando Jovem do então jovem James Joyce. Muitos dos caminhos da sua obra e concomitantemente os caminhos de muitas das correntes do modernismo, ao longo do século XX, possuem aqui o seu momento inaugural. E para nosso gáudio, mas também para nosso desespero, encontram-se aqui em dédalo, isto é embrionários, no seio de um verdadeiro labirinto. Ou pensavam que o erudito e classicista James Joyce teria escolhido para personagem principal do seu primeiro romance a figura de Stephen Dedalus de modo acidental. Dedalus, ou Dédalo, possui uma riqueza multissémica que não foi alheia à escolha e onde eu ainda assim evidencio para além da ideia de labirinto, as ideias de enredo e de complexidade, sendo que ao mesmo tempo Dédalo pode ser capaz de sair das complicações em que se mete pois é também rico em artifícios e capacidades construtivas. Dédalo é um ser complexo e ambivalente como é toda a obra de Joyce.

Segundo Bakhtin (Julian Nazario) o Retrato do Artista Quando Jovem parece consistir, no plano da sua arquitectura estrutural, numa longa citação, embora apenas implícita, de A Divina Comédia, de Dante, quando narra os três momentos da vida do protagonista central, Stephen Dedalus: a sua infância, a sua adolescência e finalmente a sua maturidade, que corresponderiam respectivamente ao Inferno, Purgatório e Paraíso da genial obra de Dante. Esta, por sua vez glosa o cânone clássico da morte, descida ao inferno e ressurreição. Seja ou não assim, a verdade é que a alegoria é possível e é apenas enquanto alegoria que nos interessa. O texto, por essa via, assume a valência de possuir a dimensão de uma metalinguagem, que ao proceder à narrativa de uma história e ao proceder à narrativa de uma autobiografia, pelo facto de que o autobiografado é um artista e um artista experimental inovador e revolucionário, acabar por nos dar o laboratório alquímico da sua prometeica experiência. O próprio Joyce se referiu a isso quando ao referir-se à arte e ao artista colocou na boca de Stephen Dedalus o seguinte:

“A personalidade do artista, no início um pranto, uma cadência, um estado de espírito, e depois uma narrativa fluida e ligeira, refina-se no fim ao ponto de não existir mais, torna-se impessoal, por assim dizer. A imagem estética na forma dramática é a vida purificada através da imaginação humana e, por força desta, re-projectada. O mistério da estética como o da criação material, está consumado. O artista, como o Deus da criação, fica dentro ou detrás, além, ou acima de sua obra, invisível, aperfeiçoado e alheio à existência, indiferente, aparando as unhas” (James Joyce versus Julian Nazario)

Neste sentido o artista, verdadeiro rival dos deuses, demiurgo e criador de um mundo absolutamente novo, criado tal como na criação divina ex-nihilo, daria razão a Bakhtin, no sentido em que na fase final da sua obra teria superado todas as vicissitudes terrenas e infernais para, por pura purga ascendente, se alcandorar finalmente à dimensão do Olimpo, ou seja do paraíso dantesco. A ressurreição e a ascensão ao Olimpo é aquilo que o artista persegue através do sofrimento existencial mas também através do trabalho laborioso do alquimista que no seu laboratório põe em perigo a própria vida para um dia poder lograr o flogisto salvador do génio, avatar glorioso do divino.

Há um texto de Alfredo Margarido, que não cabe citar aqui, mas que, numa brilhante síntese, resume a dimensão experimental e portanto metalinguística da obra de James Joyce no seu todo e onde ele designa por  exílio o que eu designo por reino e Bakhtin por paraíso. Mas, em boa verdade todas estas palavras, no âmbito da criação artística possuem o mesmo significado enquanto arquétipos da busca solitária do caminho que conduz o artista à descoberta e à afirmação da sua voz. Porém, o reino dos artistas possui uma limitação, que é também a sua grandeza humanista, digamos assim, uma vez que  o que se visa através da arte é um mundo que só se torna possível a partir da viagem iniciática da formação do artista. Mas essa viagem e esse caminho começam por ser a demanda de Si, a descoberta  do Eu, e do Genius que o Eu alberga e só essa descoberta pode abrir as portas para a ‘transcendência’ e é por isso que o  Retrato do Artista Quando Jovem é mais do que uma obra autobiográfica. Ela é o relato da trajectória de um homem em busca do pleno conhecimento de si mesmo”, ou seja, da transcendência que o habita.

27 Abr 2017

Rápida, a sombra, de Vergílio Ferreira: O regresso e a memória

Ferreira, Virgílio, Rápida a Sombra, Bertrand, Lisboa, 1993
Descritores: Literatura Portuguesa, Romance, Memória, Regresso, Paraíso Perdido, 214, [2] p.: 21 cm, ISBN: 972-25-0269-7.

 

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Rápida a Sombra dominam os temas que são estruturais na obra de Vergílio Ferreira, como por exemplo a ideia de um regresso, que é quase sempre a uma aldeia. A ideia de regresso após um longo afastamento está também no Cântico Final, no Para Sempre, em Signo Sinal e em outros romances. É o regresso que geralmente potencia a elaboração de uma espécie de balanço reflexivo através do uso da memória. A analepse é uma das figuras de estilo mais caras a Vergílio Ferreira, desde logo por isso, porque os regressos e os exercícios de memória são recorrentes. Contudo neste romance, Rápida a Sombra, o regresso de Júlio Neves é-nos dado apenas em termos imaginários enquanto em Para Sempre se trata de um regresso definitivo, o que de facto também não muda nada, pois a ideia de regresso é sempre ao mesmo tempo real e fictícia.

O romance usa espaços distintos e não só a cidade e a aldeia, mas também o escritório, a praia, as várias casas, etc., mas o que não é nomeável, sendo porém muito mais da ordem do arquétipo ontológico, é a oposição mais estruturante entre o espaço do visível e o espaço do invisível. São as figuras femininas que delimitam, em minha opinião, as fronteiras, ou seja, as verdadeiras fronteiras, aquelas que separam e organizam duas modulações de Ser. Este é outro tema recorrente nos romances de Vergílio Ferreira. Há sempre duas mulheres paradigmáticas tal como neste romance Helena, a sua mulher, e Hélia, mulher sonhada e paradigma de desejo e nostalgia. É esta bifurcação ôntica que permite a instauração de três domínios existenciais, o da memória, o da realidade presente e o da pura imaginação. O visível e o invisível, contudo, não são afins de nenhum dos três domínios de forma esquemática ou simplista. O invisível pode fazer a sua erupção tanto através da imaginação como da memória, o que parece óbvio, mas pode também irromper, fazer a sua aparição, a partir justamente da realidade. Como diz Vergílio Ferreira, em Rápida a Sombra “só o invisível se vê, a irrealidade é real, nos intervalos do real e do visível!”.

É esse, o papel próprio da ficção, do romance e da novela em particular, dar a ver um tipo de realidade que mais nenhuma arte é capaz de dar, essa espessura existencial que se não vê. Neste sentido radical há uma aparição em toda a arte do romance. O romance é a forma de arte em que o invisível, o intangível puro, se torna visível e aparece. O romance é sempre a expressão de uma epifania porque nos narra a experiência do acesso ao rosto do que é invisível e não tem rosto. Em boa verdade devo desdobrar este conceito de narrativa em dois elementos, o que ela, narrativa, narra e o que pela narrativa se faz aparecer, pois são duas realidades imbrincadas mas distintas. Narrando uma ordem de coisas e de factos o narrador, através do seu poder, faz aparecer outra ordem de factos e de coisas. É como se de uma arte da prestidigitação se tratasse. Vergílio Ferreira di-lo e nesse sentido diz o mesmo que Milan Kundera, embora por outras palavras: “Todo o real tem atrás de si outro real. E é nesta diferença que se insere a distinção entre o ‘saber’ e o ‘ver’. Saber que se é mortal só é ver que se é mortal quando se passa para o lado de lá do saber. É onde está a ‘aparição’. O que está para lá é do domínio do intangível e do sagrado. Como aos deuses, não se lhe pode ver a face. Ou só em breves instantes de privilégio”.

Não partilho com Vergílio Ferreira, no entanto, a ideia de que a aparição, a epifania portanto, responda a uma pergunta. Partilho com Kundera a ideia da insustentável leveza do ser. Num romance a narrativa faz aparecer essa dimensão da existência, única, essa erupção do que se não vê, justamente porque não pergunta nem questiona, não especula nem investiga; narra apenas e narra, quase que se pode dizer, de uma forma intelectualmente pobre e não filosoficamente pretensiosa; pois é a narrativa do aparentemente nada que faz fulgurar, nunca porém de repente, mas como uma moinha que de nós se apropria, uma outra dimensão da existência. A dimensão da existência que o romance mostra e da qual nos faz participar é rigorosamente como um estado de alma que aos poucos se apodera de nós e nos mantém cativos durante um certo tempo.

 

 

Sinopse e Ficha Crítica de Leitura

Vergílio Ferreira nasceu na aldeia de Melo, no Distrito da Guarda a 28 de janeiro de 1916 e faleceu em Lisboa no dia 1 de Março de 1996. Formou-se na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra em Filologia Românica. Em 1942 começou a sua carreira como professor de Português, Latim e Grego. Em 1953 publicou a sua primeira colecção de contos, “A Face Sangrenta”. Em 1959 publicou a “Aparição”, livro com o qual ganhou o Prémio “Camilo Castelo Branco” da Sociedade Portuguesa de Escritores. Em 1984, foi eleito sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras. As suas obras vão do neorrealismo ao existencialismo. Considera-se geralmente que o romance Mudança assinala justamente a mudança de uma fase para outra. Na fase final da sua carreira pode-se dizer que Vergílio Ferreira tocou as fronteiras de um puro niilismo. Em 1992 foi eleito para a Academia das Ciências de Lisboa e além disso, recebeu o Prémio Camões, no mesmo ano.

Obras principais: Mudança (1949), Manhã Submersa (1954), Aparição (1959), Para Sempre (1983), Até ao Fim (1987), Em Nome da Terra (1990) e Na tua Face (1993).  O autor faleceu em 1996, em Lisboa. Deixou uma obra incompleta, Cartas a Sandra, que foi publicada após a sua morte. A partir de 1980 e até 1994 foram sendo publicados os seus diários, com a designação de Conta Corrente. Deve ainda salientar-se a publicação do conjunto de ensaios intitulado O Espaço do Invisível entre 1965 e 1987.

6 Abr 2017

Duelo de gigantes: Ernest Hemingway, “O Velho e o Mar”

Hemingway, Ernest, O Velho e o Mar, Livros do Brasil, Lisboa, 2011
Descritores: Literatura Norte Americana, Tradução e Prefácio de Jorge de Sena, Ilustrações de Bernardo Marques
Cota: 82-31 Hem

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] propósito, além de Fitzgerald, Hemingway privou com  Ezra Pound (1885 – 1972),  e Gertrude Stein (1874 – 1940), sendo um dos membros da comunidade de escritores expatriados em Paris conhecida como “geração perdida”, nome inventado e popularizado por Gertrude Stein. Entre todos talvez tenha sido Gertrude Stein, que, pelo seu estilo, mais tenha influenciado o escritor Hemingway.

Há um facto que me intriga e deixo aqui à discussão. Estou a pensar na hiperbólica fama de Hemingway. Ele é provavelmente o escritor oriundo dos Estados Unidos, mais popular e mais conhecido. É um verdadeiro fenómeno mediático à escala internacional com simpatias em todos os continentes. Foi um grande escritor, sem dúvida, mas quer pelo volume da obra ou pela sua qualidade, terá sido superior a Twain, muito mais antigo, mas também Faulkner, Fitzgerald, Steinbeck, Salinger que são autores da mesma época, com excepção de Salinger que é um pouco posterior e havendo ainda Melville, Burroughs, Bellow, todos em épocas diferentes mas igualmente icónicos para as suas épocas. E se pretendermos explorar o tema da vida aventureira a questão é a mesma não faltam na literatura americana vidas exemplares desse ponto de vista. Mas reconheço que nesse plano Heminngway seja insuperável sobretudo pela imensa variedade de lugares, paixões e não me refiro apenas às paixões amorosas, actividades etc.

Dever-se-á  ao facto de ter desenvolvido uma técnica narrativa muito enxuta, quase cinematográfica, “onde as personagens se movem em quadros e os detalhes mais pormenorizados se evidenciam apenas na estrutura da narração”? Penso que o segredo estará na intersecção de tudo isto.

Escolhi escrever sobre O Velho e o Mar, para começar a escrever sobre Hemingway. Tinha lido alguns contos, bons, e o Adeus às Armas que não me entusiasmou por aí além. Como procuro sempre uma razão, ou mais, para o entusiasmo ou para a decepção, pequena ou grande, provavelmente terei que admitir que tendo o Adeus às Armas (1929) sido mais ou memos contemporâneo do Viagem ao Fim da Noite de Céline (1932) e tendo eu gostado incomparavelmente mais de Céline, que achei mais moderno e literariamente mais poderoso, do ponto de vista narrativo, mas também, no plano semântico e da modernidade. O Viagem ao Fim da Noite é um romance de vanguarda para a sua época, modelo tal como o autor, não só por este romance mas pelo conjunto da obra, para a Beat Generation, que contudo não produziu nenhum escritor da grandeza de Céline. Mais tarde com a Morte a Crédito Céline afirma-se como um escritor muito à frente do seu tempo. Um génio, portanto, que nem a atoarda de Sartre querendo fazer crer que ele teria colaborado com Hitler, o que é mentira, ofuscou a grandeza e carácter inovador da sua obra. Nada disto descobri em Hemingway, quando li o Adeus às Armas. Mas adiante.

Regressemos ao Velho e o Mar e façam-se as perguntas certas, para ver o que é que o pequeno texto tem para nos dizer. Porém começo pela história, antes de mais. A personagem principal são duas, um peixe, um grande peixe parece um espadarte, isso sem dúvida e Santiago, velho pescador cubano de à volta de 80 anos que não consegue pescar nada há 85 dias. Será da velhice, o seu amigo e grande admirador, o jovem rapaz Manolim, diz-lhe que não. Diz-lhe que não e irá mantê-lo mesmo quando as coisas se complicarem ainda mais, tal é o seu respeito, admiração e amor pelo velho. E sobretudo fé nas suas qualidade e na sua experiência. Lá mais para o fim da história fará mesmo menção de passar a pescar com o velho, pois este é simplesmente o melhor. Se não é a idade então o que é. Para o rapaz e sobretudo para o velho, de antes quebrar que torcer, só pode ser o azar ou a falta de sorte como se preferir. O velho não é apenas velho, é doente de mazelas várias, o que não é nada anormal, o próprio Hemingway, na época em que escreve O Velho e o Mar é já hipertenso, diabético e sofre de depressão e hemocromatose, sendo que esta é que é a grande responsável pelo resto de toda a morbidez. Hemingway, sabe o que é a dor e o sofrimento, o enfraquecimento e o desalento que a doença pode provocar.

Mas mesmo assim, com o seu cancro de pele e as tonturas, o velho lobo do mar luta contra a sua sorte e num desses dias de ir ao mar dá-se o que se pode considerar o encontro de uma vida, assim o narra o velho, o encontro com aquele espadarte de mais de cinco metros e de pelo menos 700 quilos. Vai ser uma luta sem quartel, uma luta que só não é olhos nos olhos, face a face, frente a frente por causa do elemento mediador, o mar e a sua profundidade, embora a espaços os seus olhos se tenham cruzado com um misto de espanto, de temor e de respeito. É uma luta de gigantes, dignos um do outro, esta, entre um belo exemplar da dignidade da natureza e um bom exemplar da humanidade. É uma luta sem quartel e sem direito a compaixão, mas as apóstrofes que o lobo (humano) dirige ao peixe são comoventes e de uma altíssima humanidade, mas ainda assim, sem compaixão. É uma luta de vida ou de morte e que ganhe o melhor. Num certo momento o peixe, que arrasta o pescador e o barco para o alto mar e para uma profundidade calculada, vem à superfície e de um salto fixa com o olhar o seu predador. Tudo parece conduzir a uma espécie de consciência animal instintiva, homóloga da humana consciência intelectual e raciocinante. É tudo isto que o velho narra as mais das vezes num solilóquio monótono mas para o leitor arrebatador. A partir da página 39, se não me engano, o romance, se assim lhe posso chamar, pois me parece sobretudo um conto, torna-se imparável e foi o que me aconteceu, só parei sessenta páginas depois quando Hemingway deu por terminada a história. Se a luta entre o pescador e o peixe, as suposições mútuas, as suspeitas por reenvio sistemático, como se fossem lógicas na medida em que o pescador se aproxima do peixe e faz o peixe aproximar-se do pescador, um naturaliza-se e o outro humaniza-se, só assim a luta se tornou numa luta entre iguais, em respeito, em amor quase, mas sem contemplações, sem compaixão, repito, uma luta até ao fim. Ou o homem acaba por matar o peixe como é sua vontade e seu destino, ou o peixe acaba por destruir o homem, porém dirá o autor, sem o vencer, pois um homem pode ser destruído, mas jamais vencido. “Esta é a história de um homem que convive com a solidão, com seus sonhos e pensamentos, sua luta pela sobrevivência e a inabalável confiança na vida”.

É bem verdade que “A história de Hemingway representa a luta que o homem trava para a sua sobrevivência e os aspectos que influenciam essa luta como a experiência, a persistência, a confiança, a amizade e também a sorte”. Mas não é menos verdade que o peixe luta pela sua mesma sobrevivência e mais radical ainda pois é contra a morte que luta e também ele conta com a sua experiência, persistência e ainda sorte. O peixe não saberá o que isso é, mas tudo está cegamente amalgamado no seu instinto vital. De qualquer forma apesar da ligeira superioridade instrumental do velho, se atendermos ao meio em que o combate se trava, favorável ao peixe, podemos dizer que se trata de uma luta justa e digna. A narrativa exacerba a resistência tenaz que o peixe oferece e as dificuldades físicas do velho, para equilibrar os pratos da balança.

Na parte final, depois de ter vencido o peixe e o ter amarrado ao dorso do seu barco, o velho pescador vai ter de se haver com um predador sem escrúpulos, os tubarões que se vão revezando até não ficar do peixe senão a sua carcaça. É com um esqueleto que Salvador chega completamente extenuado à praia e finalmente à enxerga da sua cabana. A luta final desesperada e condenada à derrota é uma luta desigual e inglória. Os únicos momentos de catarse moral acontecem quando Salvador defendendo com galhardia e heroísmo a sua presa consegue matar alguns tubarões, usando para tal todos os seus recursos, embora nós pressintamos desde o início qual seria o desenlace, que em última análise também acaba por ser justo.

Fiel ao pessimismo de Hemingway, que Jorge de Sena procura atenuar, senão mesmo negar no prefácio, e que a mim me parece iniludível até por que são várias as metonímias e parábolas confirmativas do seu pessimismo etológico, ao longo do texto: as andorinhas do mar, os ouriços marinhos, as tartarugas, os peixes voadores e os respectivos assassinos, os falcões sobretudo, mas todos, pois no mar todos podem ser algozes e vítimas. Ninguém está a salvo. E pergunto eu e no seio da humanidade alguém estará a salvo no meio de predadores ainda mais sofisticados!? Mas no mar, não há ética, nem moral que possam salvar. A própria ética e moral plasmada na luta titânica entre o pescador e o peixe, é uma moral e uma ética à superfície e válida no plano das regras formais de um certo cavalheirismo, pois algures numa zona mais profunda e mais irracional e é aí que mergulha a vida e os seus poderes básicos e primários, todos os  princípios soçobram, mesmo, infelizmente, os humanos entre os homens. Para voltar a Céline é evidente que o pessimismo em Hemingway não é tão truculento, radical, cínico e desapiedado como no autor francês, nem tão metaforicamente cruel como por exemplo em Tennesse Williams, no texto Bruscamente no Verão passado, mas é uma forma de pessimismo, ainda assim.

Do ponto de vista do estilo, o de Hemingway, tornou-se paradigmático. O autor usa um estilo directo, sem quaisquer artifícios literários, quase pobre nos seus recursos, mais aparentemente pobre do que realmente pobre. Hemingway tinha a escola jornalística, que há que reconhecer, foi muito útil para domesticar os excessos do fluxo de consciência. Alguém definiu Hemingway como sendo o animal falante, pejorativamente, no sentido de caracterizar alguém que usa uma narrativa quase infantil.  Mas o famoso crítico literário Cyril Connoly afirmou a propósito deste texto : “Leia o livro O Velho e o Mar imediatamente. Após alguns dias, leia-o novamente e irá verificar que nenhuma página desta bela obra-prima poderia ter sido escrita melhor ou de forma diferente”. Melhor elogio não se pode fazer. E este é o estilo de Hemingway, aquele que o imortalizou, sobretudo nos contos de A Capital do Mundo, de 1936.

A história vive de si mesmo, o narrador não acrescenta nada da sua lavra e diz portanto o que as cenas exigem para ficarem objectivamente bem descritas. As caracterizações das personagens são sumárias, os enredos explícitos e intuídos desde o início. Não é de suspense artificial e grandes surpresas que vive a intriga e contudo a narrativa agarra-nos. Que mais se pode dizer.

E neste conto a receita é a mesma: O mar e a sua fauna vivem esplendorosamente (…) “Mas vivem sem a mínima poetização panteísta, sem a mínima deliquescência antropomórfica”. Alguns escritores, alguns narradores, procuram deixar nas suas obras a marca do seu virtuosismo, poético e literário, Hemingway pretende esconder-se por detrás da história que se vai desenvolvendo quase por si através de um descritivismo objectivo. Hemingway dissimula-se e ninguém dá por ele. Não há digressões psicológicas, culturais ou intelectuais, análises complexas, pelo contrário poderíamos até condenar a  assunção por vezes de uma total insignificância. Hemingway mostra o que está a acontecer sem procurar narrar como se a narrativa correspondesse a uma metalinguagem ou explicação de segundo grau. Ou se gosta ou não se gosta.  “A abolição do melodrama exprime-se no olhar despojado do narrador e na exiguidade da acção”.

Sinopse e Ficha Crítica de Leitura

Ernest Miller Hemingway nasceu em Oak Park no dia  21 de Julho de 1899 e suicidou-se com uma espingarda de caça em Ketchum no dia 2 de Julho de 1961, depois de uma vida das mais acidentadas, variadas e aventureiras da História da Literatura. Casou quatro vezes, tendo filhos de pelo menos duas mulheres, teve amantes e não parou muito tempo em lugar nenhum embora houvesse lugares aos quais regressava religiosamente como Cuba e Espanha. Trabalhou como correspondente de guerra em Madrid durante a  Guerra Civil Espanhola  (1936-1939), tomando deliberadamente partido pelos republicanos e dessa experiência inspirou-se para escrever o clássico, entretanto logo passado ao cinema,  Por Quem os Sinos Dobram, com Ingrid Bergman e Gary Cooper. No fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), instalou-se em Cuba. Poucos anos antes do suicídio, escreveu O Velho e o Mar que é segundo alguns critérios a sua obra prima. Com ela ganhou o Prémio Pulitzer de Ficção, em 1953 e o Prémio Nobel da Literatura em 1954. Há muitos elementos da sua obra que remetem para uma dimensão autobiográfica, Espanha, Paris, Cuba, a Guerra Civil, a Primeira Guerra Mundial, etc. Em Itália durante a Primeira Guerra Mundial, onde serviu como motorista de ambulância na Cruz Vermelha, apaixonou-se pela enfermeira Agnes Von Kurowsky, que viria a ser sua inspiração para a criação da heroína de Adeus às Armas de 1929, a inglesa Catherine Barkley. O seu segundo casamento em 1927 foi com a jornalista de moda Pauline Pfeiffer, com quem viria a ter dois filhos, mas as outras paixões da vida, os touros, a caça e a pesca levavam-no para longe dos lares que ia construindo e na época em que ainda vivia com Pauline, apaixonou-se, em Cuba, por Jane Mason, que era casada com o director de operações da Pan American Airways. Hemingway e Jane tornaram-se amantes. Porém em 1936, apaixonou-se de novo, desta vez, pela jornalista Martha Gellhorn, e esta nova paixão conduziu-o ao seu segundo divórcio. Com tantos casamentos, divórcios e paixões Hemingway confirmava a previsão que lhe fez Scott Fitgerald, de que iria precisar de uma mulher para cada livro.

30 Mar 2017

Das raízes: José Saramago e “As Pequenas Memórias”

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando escrevia O Memorial do Convento, livro que lhe deu notoriedade mundial, José Saramago começou a pensar num relato autobiográfico. Levou mais de vinte anos para elaborar o projecto, cujo resultado é este livro designado As Pequenas Memórias. É verdade que chegou a sonhá-lo com o título O Livro das Tentações, mas depois concluiu que um título assim, glosando as tentações de Santo Antão de Hyeronimus Bosch, seria demais.

O livro cobre os primeiros quinze anos da sua vida, do nascimento, em 1922, na aldeia da Azinhaga, Ribatejo, aos estudos na escola industrial de Lisboa, de onde sairá com a formação profissional de serralheiro mecânico. Relembra o convívio com as suas raízes camponesas, em particular através da figura altaneira de seu avô, homem sábio e contudo analfabeto, com quem “aprendeu a cuidar dos porcos e observar a via Láctea”. Fala também muito dos tempos de Lisboa, de quando era novo, da sua tendência para a solidão contemplativa e já nessa época da paixão pelo cinema. Penso que foi na Bagagem do Viajante, primeiro livro que eu li de José Saramago, que uma crónica sobre cinema me surpreendeu. Nunca mais esquecei o que Saramago disse sobre o Il general della Rovere de  Roberto Rossellini, com o grande Vittorio De Sica. Na primeira oportunidade não deixei de ver o filme e lembro que correspondia exemplarmente à sua análise, e ficou para sempre registado como um dos filmes da minha vida para parafrasear João Bénard da Costa.

Os textos-memória de Saramago sobre animais são também muito expressivos, em particular a sua reflexão sobre os cavalos, esses mesmo que lhe andam a coxear na alma há setenta anos, afinal por nunca os ter montado.

Eu pessoalmente gosto sobretudo das memórias em que o autor narra os grandes momentos de descoberta interior, ainda que algumas vezes, ou mesmo a maior parte, as descobertas interiores apareçam ligadas a fenomenologias externas.

E deixo-vos com esta pequena pérola:

A noite tinha caído, no silêncio do campo só se ouviam os meus passos. (…) Uma lua cheia, (…) iluminava tudo em redor. Antes do ponto em que teria de abandonar a estrada para meter a corta-mato, o caminho estreito por onde ia pareceu terminar de repente, esconder-se atrás de um valado alto, e mostrou-me, como a impedir o passo, uma árvore isolada, alta, escuríssima no primeiro momento contra a transparência nocturna do céu. De súbito, porém, soprou uma brisa rápida. Arrepiou os caules tenros das ervas, fez estremecer as navalhas verdes dos canaviais e ondular as águas pardas de um charco. Como uma onda, soergueu as ramagens estendidas da árvore, subiu-lhe pelo tronco murmurando, e então, de golpe, as folhas viraram para a lua a face escondida e toda a faia (era uma faia) se cobriu de branco até à cima mais alta. Foi um instante, nada mais que um instante, mas a lembrança dele durará o que a minha vida tiver de durar. Não havia tiranossauros, marcianos ou dragões mecânicos, é certo que um aerólito cruzou o céu (não custa a acreditar que sim), mas a humanidade, como veio a verificar-se depois, não esteve em perigo. Depois de muito caminhar, ainda o amanhecer vinha longe, achei-me no meio do campo com uma barraca feita de ramos e palha, e lá dentro um pedaço de pão de milho bolorento com que pude enganar a fome. Ali dormi. Quando despertei, na primeira claridade da manhã, e saí, esfregando os olhos, para a neblina luminosa que mal deixava ver os campos ao redor, senti dentro de mim, se bem recordo, se não o estou a inventar agora, que tinha, finalmente, acabado de nascer. Já era hora”.

O estranhamento do mundo, o achamento da subjectividade. É disso que se trata. É nisso que consiste o nascimento, e, em boa verdade, este é que é o nascimento de facto. Não tem data marcada, acontece quando acontece, consta que para muitas pessoas nunca chega a acontecer e em muitos casos acontece muito tarde e para quase todos, raras vezes muito cedo. Enfatizo aqui a presença do verbo acontecer, uma vez que é dessa ordem a fatalidade feliz de um nascimento, ou seja da ordem do inesperado, fortuito, e sobretudo mágico. 

Sinopse e ficha critica de leitura

“José Saramago, poeta (Os Poemas Possíveis, 1966, Provavelmente Alegria, 1970, O Ano de 1993, 1975; dramaturgo (A Noite, 1979, Que Farei com Este Livro?, 1980, A Segunda Vida de Francisco de Assis, 1987, In Nomine Dei, 1993, Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido, 2005 e romancista (Terra do Pecado, 1947, Manual de Pintura e Caligrafia, 1977, Levantado do Chão, 1980, Memorial do Convento, 1982, O Ano da Morte de Ricardo Reis, 1984, A Jangada de Pedra, 1986, História do Cerco de Lisboa, 1989, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, 1991, Ensaio Sobre a Cegueira, 1995, Todos os Nomes, 1997, A Caverna, 2000, O Homem Duplicado, 2002, Ensaio Sobre a Lucidez, 2004, As Intermitências da Morte, 2005, A Viagem do Elefante, 2008, Caim, 2009, Claraboia, 2011), sobretudo, conduziu uma vida intelectual e cultural, marcada pelo auto didactismo e pelo comprometimento social e político. Nasceu no distrito de Santarém, na província geográfica do Ribatejo, no dia 16 de Novembro, embora o registo oficial apresente o dia 18 como o do seu nascimento. Saramago, conhecido pelo seu ateísmo e iberismo, foi membro do Partido Comunista Português e foi director-adjunto do Diário de Notícias. Juntamente com Luiz Francisco Rebello, Armindo Magalhães, Manuel da Fonseca e Urbano Tavares Rodrigues foi, em 1992, um dos fundadores da Frente Nacional para a Defesa da Cultura (FNDC). Casado, em segundas núpcias, com a espanhola Pilar del Río, Saramago viveu na ilha espanhola de Lanzarote, nas Ilhas Canárias. Foi galardoado com o Nobel de Literatura de 1998. Também ganhou, em 1995, o Prémio Camões, o mais importante prémio literário da língua portuguesa. Saramago foi considerado o responsável pelo efectivo reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa”.

24 Mar 2017

Turbilhão existencial

Ferreira, Vergílio, Signo Sinal, Bertrand, Lisboa, 1990.
Descritores: Romance, Memória, Utopia, Progresso, História, 268 p.21cm, ISBN: 972-25-0270-0

Sinopse e Ficha Crítica de Leitura

[dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]ergílio Ferreira nasceu na aldeia de Melo, no Distrito da Guarda a 28 de janeiro de 1916 e faleceu em Lisboa no dia 1 de Março de 1996. Formou-se na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra em Filologia Românica. Em 1942 começou a sua carreira como professor de Português, Latim e Grego. Em 1953 publicou a sua primeira colecção de contos, “A Face Sangrenta”. Em 1959 publicou a “Aparição”, livro com o qual ganhou o Prémio “Camilo Castelo Branco” da Sociedade Portuguesa de Escritores. Em 1984, foi eleito sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras. As suas obras vão do neo-realismo ao existencialismo. Considera-se geralmente que o romance Mudança assinala justamente a mudança de uma fase para outra. Na fase final da sua carreira pode-se dizer que Vergílio Ferreira tocou as fronteiras de um puro niilismo. Em 1992 foi eleito para a Academia das Ciências de Lisboa e além disso, recebeu o Prémio Camões, no mesmo ano. Obras principais: Mudança (1949), Manhã Submersa (1954), Aparição (1959), Para Sempre (1983), Até ao Fim (1987), Em Nome da Terra (1990) e Na tua Face (1993).  O autor faleceu em 1996, em Lisboa. Deixou uma obra incompleta, Cartas a Sandra, que foi publicada após a sua morte. A partir de 1980 e até 1994 foram sendo publicados os seus diários, com a designação de Conta Corrente. Deve ainda salientar-se a publicação do conjunto de ensaios intitulado O Espaço do Invisível entre 1965 e 1987.

Turbilhão existencial

O romance Signo Sinal decorre em grande parte numa aldeia que é completamente devastada por um abalo de terra, após a revolução do 25 de Abril de 1974.

É necessário reconstruir a aldeia, mas no contexto revolucionário as medidas são difíceis de implementar. Vergílio Ferreira utiliza a aldeia como metáfora de toda a sociedade portuguesa no contexto de uma regeneração desencadeada pelos ideais utópicos gerados pela revolução. Também o país foi abalado por um verdadeiro terramoto social. Também o país pretende sair das ruínas e descobrir os caminhos para uma nova vida. E pior do que o terramoto social foi, para mim, o terramoto ideológico.

Aqui há uns anos enquadrado pelas potencialidades dinâmicas de uma dicotomia engendrada por Paul Ricoeur numa das sua obras e fixada na fórmula utopia versus ideologia escrevi um texto definitivamente legitimador do processo revolucionário e jamais me atreveria a revê-lo à luz de preconceitos conservadores ou reaccionários, mas sempre à luz da historicidade intrínseca extra moral que os tempos transportam consigo tacteando os caminhos que a história ainda pode abrir e devastar. Isso não inibe o discurso crítico jamais judicativo no plano histórico imanente. Foi como tinha que ter sido e agora é fácil imaginar que pudesse ter sido de outra forma. No essencial é essa a sensibilidade que subjaz ao narrador de Signo Sinal.

O personagem principal, Luís, sobrevivente do cataclismo e herdeiro de uma fábrica que o seu pai havia construído, encontra dificuldades na acção que resultam da convergência da sua vocação, mais dada ao pensamento e à reflexão que a iniciativas concretas e práticas, com a inoperância própria de momentos históricos em que se quer reconstruir tudo e depois muitas vezes não se reconstrói nada, pois o conflito entre ideais absolutamente utópicos e a realidade é na maior parte das vezes paralisante. Respira-se uma atmosfera ébria e exaltada, pouco propícia ao humilde lançamento dos caboucos da reconstrução. Proliferam os comícios, as manifestações, os planos, mas avança-se muito pouco ou quase nada. Todos os planos são grandiosos, mas as realizações são nulas. A burocracia, as discussões intermináveis, os excessos idealistas manietam o bom senso, e sem bom senso e eficácia nada se realiza.

Se a aldeia representa o microcosmos do país, o arquitecto responsável pela reconstrução representará a elite revolucionária que tem em mãos a construção de uma sociedade nova e de uma nova época da história. Uma espécie de demiurgo do tempo novo. Os diálogos de Luís com o arquitecto mostram essa realidade contraditória entre o desejo e a realidade.

Vergílio Ferreira vai desconstruindo com eficácia as ilusões de uma sociedade que pretende, a partir de fragmentos de antropologias ingénuas e de crenças que nada acrescentam às mais antigas, erguer-se acima da sua própria condição. Sabemos que todas as revoluções resultam de excessos voluntaristas em que os sonhos, os ideais, as utopias adulteram por pura ansiedade escatológica a trama omnipresente da realidade. Os revolucionários, por vocação própria, caricaturam a realidade para melhor terem a ilusão de que a podem moldar, mas aquilo que à pressa se expulsa pela janela, bastas vezes volta a entrar pela porta que continua escancarada. Ou o contrário. Vale o mesmo e é mais perverso.

É em Luís que culminam as contradições do processo transformista, pois nele a realidade social conflitua com a realidade da sua própria vida, onde a dimensão que o transcende conflitua com a sua procura, com a sua demanda, de um sentido existencial. Ora, é sempre isso que acontece, no turbilhão das questões sociais transpersonalistas é sempre a nossa própria questão que continua a acossar-nos. Qualquer ideólogo marxista se apressaria a apostrofar Luís, afirmando que as suas preocupações, impasses, dúvidas e hesitações não passam afinal do drama histórico da classe social a que pertence, a pequena burguesia. E que a história e o seu progresso facilmente removem essas inércias.

Nada mais ingénuo; e por isso Vergílio Ferreira que há muito atirou para trás das costas esses paradigmas sociológicos estreitos, maniqueístas e redutores, acolhe portanto Luís no seu texto como expressão de uma resistência estrutural à rasoura simplista das ideologias. Há na história da humanidade muito mais a expressão do mito de Sísifo que a saga gloriosa do progresso, embora ambas coexistam de forma pletórica. Sendo assim, o autor coloca na boca da sua emblemática personagem estas palavras: “talvez destruam tudo outra vez do que construíram, porque escutam uma ordem nova e certa e irrecusável desde o ignorado da vertigem”. Se nos lembrarmos da metáfora de Walter Benjamin, plasmada plasticamente no quadro de Paul Klee, em que a história é identificada com um anjo que voa de costas continuamente a olhar para o passado, facilmente se percebe que o progresso acontece à margem das vontades, subordinado a um vórtice que aspira vectorialmente para a frente. Enfim, como o anjo voa de costas, parece que é para trás.

Não sei se era assim que pensava Vergílio Ferreira, mas que ele procurava enfatizar neste romance a persistência de estruturas de longa duração ligadas à natureza da condição humana muito mais do que ao visionarismo circunstancial ditado pelos artífices voluntaristas da história, a partir de projectos grávidos de ideologias, disso não tenho dúvidas.                   

9 Mar 2017

Espírito do Mundo

[vc_row][vc_column width=”1/2″][vc_column_text][dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] mundo transporta no seu seio uma dualidade (dicotomia) que nada nem ninguém pode superar (que é insuperável). NATUREZA E ESPÍRITO representam os dois pólos de uma realidade que é non facientia unum. O ser da natureza consiste cada vez mais em ser objecto de representação, de conhecimento científico, de exploração técnica. O ser do homem consiste em se colocar como sujeito face ao mundo concebido como um objecto essencialmente estranho ao homem, mudo no que diz respeito ao seu destino.

[/vc_column_text][/vc_column][vc_column width=”1/2″][vc_single_image image=”13988″ img_size=”257×400″ add_caption=”yes” alignment=”center” style=”vc_box_shadow_border” css=”.vc_custom_1480424001469{margin-right: 4px !important;margin-left: 4px !important;}”][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]A posição do homem era muito clara quer face ao cosmos antigo quer face ao universo teofânico da Idade Média. Mas com a ruína do universo medieval, tudo se desmoronou:

— O lugar do homem que se tornou problemático e

— O universo que se esvaziou progressivamente da sua substância.

Agora a situação do homem é a de um ser afastado de tudo, profundamente isolado no seio de um mundo infinitamente aberto que exclui qualquer sentimento de simpatia entre o eu pensante (sujeito) e as coisas. É nisto que consiste em larga medida o desencantamento do mundo. É o fim de uma relação amorosa.

“It’s all in pieces, all coherence gone” cf. John Donne. E é também esse o sentido da obra de Pascal, … ambos autores do BARROCO exprimem a dolorosa perda da totalidade.

O sentimento de perda da sensação de totalidade.

Daí o sentimento concomitante de estranheza. A perda da totalidade destrói a intimidade. O Universo serve agora para calcular e medir. É uma exterioridade! Já era! Mas agora inapropriável globalmente. O facto de se reduzir a cacos inviabilizando uma reconstrução possível provoca um vazio que nada pode preencher, e uma tristeza incurável.

Em tempos o Mundo fora considerado como um testemunho de Deus. Como o signo por excelência da existência de uma Inteligência ordenadora e fonte de todo o Valor.

Ora o que anacronicamente procuraram fazer todos os grandes apologistas do século XVIII foi Restaurar, ressuscitar, um paradigma já obsoleto. Nesse plano a primeira grande reflexão existencial sobre o tema pertenceu ao Barroco. O que veio depois é empobrecedor.

Já nenhuma certeza ontológica emana do curso do mundo.

O estupor desencantado de Pascal diante da solidão gelada do Universo culmina no verso de Rimbaud: “não somos do mundo!” , ou “nós não pertencemos ao mundo”.

É então que Vico, face à dúvida cartesiana (barroca), viu na HISTÓRIA o único firmum et mansurum ao qual o homem poderia aceder.

Única realidade considerada ao alcance do conhecimento do homem dado que produzida por ele aparece ao homem, no dealbar da modernidade, como a grande fonte de certeza de si, ao mesmo tempo englobante e totalizante…

Face ao desaparecimento de Deus, face à natureza emudecida e inaudível, o homem opunha este fragmento dérisoire do tempo que ele conseguiu fazer seu e do qual espera extrair a verdade o seu ser assim como a norma da sua acção com vista ao futuro. Hegel até extrairá daqui a via do Absoluto.

Hegel propõe um grande sistema filosófico em que o mundo, como Espírito, se encontraria em um processo histórico contínuo de racionalidade e perfeição cada vez maiores. A teleologia proposta por Hegel será explicitada tanto na análise da totalidade do universo, quanto nos diversos processos e desenvolvimentos que o constituem, através do método dialéctico, em que as tendências contrárias (tese e antítese) se entrechocam resultando em uma síntese, por definição mais perfeita e completa que as anteriores. Hegel tem como mérito a criação de uma nova tendência na filosofia: a de abordar os diversos assuntos a partir da investigação de sua génese ao longo da história.

“Na história, o pensamento está subordinado aos dados da realidade, que mais tarde servem como guia e base para os historiadores. Por outro lado, afirma-se que a filosofia produz suas Ideias a partir da especulação, sem levar em conta os dados fornecidos. Se a filosofia abordasse a história com tais Ideias, poder-se-ia sustentar que ela ameaçaria a história como sua matária-prima, não a deixando como é, mas moldando-a conforme essas Ideias, construindo-a, por assim dizer, a priori. Mas, como se supõe que a história compreenda os acontecimentos e acções apenas pelo que são e foram e que, quanto mais factual, mais verdadeira ela é, parece que o método da filosofia estaria em contradição com a função da história.” (HEGEL)

Ao contrário de uma possível contradição metodológica entre essas ciências, Hegel afirma que a história do mundo só pode ser contada e contemplada à medida que ela se valha da filosofia.

É pela especulação e reflexão racional que a filosofia se sustenta. E haja em vista que “na história do mundo as coisas aconteceram racionalmente”, (HEGEL, 2001: 53) vislumbramos o início dessa união entre as ciências supracitadas. Para provar a existência de uma razão no mundo, Hegel dá-nos o exemplo de Anaxágoras, cujo feito foi observar que há um sistema solar no qual os planetas giram ao seu redor. Porém, diz Hegel, ao grego não foi possível inferir qualquer racionalidade sendo contemplada, pois no seu tempo ela estava ainda velada. Percebe-se claramente que a história do mundo hegeliana visa, portanto, uma teleologia. Ora, sendo uma teleologia comandada pela razão, não iria ela ser contra qualquer doutrina religiosa? Não para Hegel, já que ele vê em Deus a Razão Absoluta. Aliás, Razão e Deus são termos correlatos e, pode-se dizer, significam uma mesma coisa: requisito lógico do mundo, cujas potencialidades inerentes se manifestam no decorrer da história. Metodologicamente, Hegel assim compreende o estudo da história do mundo: “devemos tentar seriamente reconhecer os caminhos da providência, os seus significados e as suas manifestações na história, e seu relacionamento com o nosso princípio universal[1]” (HEGEL, 2001:57) (“Reconhecer os caminhos da providência” implica uma certa passividade daquele que estuda ou quer conhecer a história passada; não é a toa que ele emprega o verbo contemplar em sua obra.) Se assim é, qual o objectivo final do mundo?

Dissemos acima que o mundo, para Hegel, deve ser pensado racionalmente, que todos acontecimentos históricos passados foram necessários; donde seu aspecto teleológico. Esse plano divino é manifestado ao mundo mediante o “Espírito de um povo”, visando a Ideia de Liberdade. Ou seja, esta Ideia é a força motriz da história, ao passo que o Espírito de um povo é expressão de uma realidade histórica finita, que por processos dialécticos busca sobrepujar as potencialidades infinitas da Ideia.

Pelo carácter objectivo do “Espírito de um povo”, as subjectividades que constituem uma nação e até mesmo as dos próprios indivíduos, são consideradas por Hegel apenas como um primeiro passo do movimento dialéctico. Todas as paixões particulares servem para serem aniquiladas, dando lugar à universalidade de que a Ideia de Liberdade necessita. Nem mesmo os heróis, aqueles que serviram de exemplo para uma mudança do Espírito de uma época à outra, tinham consciência da objectividade de suas paixões, pois “a história do mundo dá início ao seu objectivo geral – compreender a Ideia de Espírito – apenas em uma forma implícita (ansich), ou seja, como Natureza, como um instinto muito profundo e inconsciente” (HEGEL, 2001: 71). Torna-se preciso, então, compreender a ligação entre o particular e o universal, – entre o subjectivo e o geral – cujo casamento propicia a história do mundo.

Sendo a Ideia, condição lógica para o mundo, ela não está contida nele. Ou melhor, ela não necessita dele para sua preservação. Enquanto tese, a Ideia “é o universal, o imanente, o representado” (HEGEL, 2001: 72), isto é, ela não tem ao quê se comparar. É necessário, pois, um outro lado cujas qualidades neguem o conteúdo da Ideia. Este outro lado é chamado por Hegel de consciência, Ego, ou átomo. Estes conceitos são a “negatividade infinita” da Ideia. Eles são sua finidade e sua forma. É desta lógica dialéctica que Hegel vê surgir o mundo, como síntese entre a Ideia e o Ego[3].

O mundo é composto pela Natureza e pelo Espírito. O primeiro, o campo da necessidade, o segundo da liberdade. Enquanto aquele se manifesta mediante a natureza; este se caracteriza, em uma primeira instância, por meio do indivíduo.

É pela característica da liberdade que o homem é um ser moral. Tal facto implica “em que ele cumpra os deveres de sua posição social” (HEGEL, 2001:76), além de ter a consciência de pertencer a um determinado “Espírito de um povo”. Pois “o indivíduo não cria o seu conteúdo, ele é o que é, expressando tanto o conteúdo universal quanto o seu próprio conteúdo”. (HEGEL, 2001: 77) . Ou seja, a ligação entre o subjectivo e o geral, dá-se neste momento.

A união supracitada, segundo Hegel, só se manifesta por meio do Estado. Esta instituição abarca todo o conjunto moral de seus indivíduos. Só através de sua presença é possível falar em liberdade e auto-consciência no indivíduo. Porque “a Ideia de liberdade necessariamente implica lei e moral”. (HEGEL, 2001, 92). O Estado é o campo das objectividades. Um espaço pontual no qual podemos assinalar e nos referir quando pensamos na História do mundo. Enquanto o indivíduo morre, o Estado, através de abstracções, permanece. Isto é, apesar do Estado grego morrer com o povo grego, ele permanece historicamente. A sua “morte”, deu lugar, concordando com Hegel, a outro Estado mais perfeito, mais consciente de si e tendo seus indivíduos com o conceito da Ideia de Liberdade mais aflorado e rígido.

Por se tratar apenas de um texto de apontamentos sobre a referida obra de Hegel, pararemos por aqui. Entretanto, deixaremos uma última citação de Hegel que confirma a enorme função que o Estado tem para seu sistema filosófico: “O Estado é a realização da Liberdade, do objectivo final absoluto, e existe por si mesmo. Todo o valor que tem o homem, toda sua realidade espiritual, ele só a tem através do Estado.(HEGEL, 2001:90)

Karl Popper, crítico de Hegel em A sociedade aberta e seus inimigos, opina que o sistema de Hegel constitui uma justificação vagamente dissimulada do governo de Frederico Guillermo III e da ideia hegeliana de que o objectivo ulterior da história é chegar a um Estado que se aproxima ao da Prússia do decénio de 1831. Esta visão de Hegel como apólogo do poder estatal e precursor do totalitarismo do século XX foi criticada minuciosamente por Herbert Marcuse em Razão e revolução: Hegel e o surgimento da teoria social, arguindo que Hegel não foi apólogo nem do Estado nem da forma de autoridade, simplesmente porque estes existiram; para Hegel, o Estado deve ser sempre racional. Arthur Schopenhauer desprezou Hegel por seu historicismo e tachou sua obra de pseudofilosofia.

A filosofia da história de Hegel está também marcada pelos conceitos da “astúcia da razão” e do “escárnio da história”. A história conduz os homens que crêem conduzir-se de per si, como indivíduos e como sociedades, castigando suas pretensões, de modo que a história-mundo, ao fazer troça deles, produz resultados exactamente contrários e paradoxais aos pretendidos por seus autores, a despeito de, nos períodos finais, a história se reordenar e, em um cacho fantástico, retroceder sobre si mesma e, com sua gozação sarcástica e paradoxal convertida em mecanismo de criptografia, cria também ela mesma, sem querer, realidades e símbolos ocultos ao mundo e acessíveis tão-somente aos cognoscentes, id est, àqueles que querem conhecer.[/vc_column_text][vc_separator css=”.vc_custom_1480425835216{margin-bottom: 30px !important;}”][vc_tta_tabs style=”modern” shape=”square” active_section=”1″ css=”.vc_custom_1480425795405{margin-top: 5px !important;}”][vc_tta_section title=”Biografia” tab_id=”1480423549556-ac307ab4-8964″][vc_column_text]HEGEL nasceu em Stuttgart a 27 de Agosto de 1770 e faleceu em Berlim a 14 de Novembro. Hegel encontra a sua posição na história da filosofia no seio do chamado Idealismo Alemão, representando por um lado o seu apogeu, o idealismo absoluto e a transição para a Filosofia do Romantismo. Estudou na Tübinger Stift, (seminário da Igreja Protestante, em Württemberg). A sua Fenomenolgia do Espírito desenvolve a ideia dialéctica de que o espírito humano se manifesta através de um conjunto de contradições e oposições que acabam por se integrar numa poderosa síntese. Todos os elementos se integram unem-se, no quadro de superações sistemáticas, o que significa que os elementos em confronto não se eliminam. Exemplos de tais contradições incluem aqueles entre natureza e liberdade e entre imanência e transcendência. Deste ponto de vista ele é o grande filósofo da Modernidade, da ideia de progresso e de totalidade do Espírito.[/vc_column_text][/vc_tta_section][vc_tta_section title=”Ficha” tab_id=”1480423549788-702a8d9a-b0d3″][vc_column_text]Hegel, Georg Wilhelm, Friedrich, A Razão na História (Introdução à Filosofia da História Universal), Edições 70, Lisboa, 1995
Descritores: História da Filosofia, Historicidade e historicismo, Espírito, 223 p.
ISBN: 972-44-0906-6
Cota: A-4-13-9
[/vc_column_text][/vc_tta_section][/vc_tta_tabs][/vc_column][/vc_row]

28 Nov 2016

A denúncia da ilusão

Finkielkraut, Alain, A Derrota do Pensamento, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1988
Descritores: Filosofia, França, Luzes, Romantismo, Modernidade, 145 páginas
Cota: A-4-6-24

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]squeçamos o Alain Finkielkraut dos nossos dias e recordemos este notável livro escrito há trinta anos e que prometia um intelectual da estirpe de um Alain Renaut ou de um Luc Ferry. Não posso deixar de assinalar aqui que o livro que hoje me ocupa faz parte de uma curta lista de ensaios aos quais devo muito do que penso hoje em dia. Desses ensaios destaco, Racionalidade e Cinismo de Jacques Bouveresse de 1984, O Elogio do Cosmopolitismo de Guy Scarpetta de 1988, O Tempo do Indivíduo: Contribuição para uma História da Subjectividade de Alain Renaut de 1989, A Nova Ordem Ecológica de Luc Ferry de 1992, O Discurso Filosófico da Modernidade de Jurgen Habermas de 1990, Crítica da Modernidade de Alain Touraine de 1995. O Fim da Modernidade – Niilismo e Hermenêutica na Cultura Pós-moderna de Gianni Vattimo de 1986, Contingência, Ironia e Solidariedade de Richard Rorty de 1989, O Inumano de Jean François Lyotard de 1997, Para uma Crítica da Economia Política do Signo de Jean Baudrillard de 1995 (Entre outros). Todos eles foram importantes mas algumas por motivos opostos aos que consagrei no quadro das minhas convicções. O livro de Alain Finkielkraut foi até um dos mais importantes pela forma como coloca em oposição as luzes e o romantismo. Quem quiser adquirir a consciência da incompatibilidade radical entre a filosofia da Aufklarung e o ideário contra-revolucionário das ideologias dos Volkgeists, tem aqui um momento de ouro. Em cima disso só tem que ler o Proceso Civilizacional de Norbert Elias e fica definitivamente vacinado contra todas as formas de enraizamento e localismo. Seguramente, que depois destas lições, dificilmente quererá voltar aos lugarejos de que fala Steiner e só o Mundo poderá satisfazer a sede de humanidade e humanismo, universalidade e espírito livre e cosmopolita.

O pretexto do livro é mostrar o triunfo da barbárie sob as suas diversas formas, desde o fanatismo ao kitsch. Desde o império do obscurantismo religioso e ideológico a coberto da massificação até ao relativismo ético e estético concentrado na expressão do populista russo de que Shakespeare vale tanto quanto um par de botas, a coberto da mesma massificação; é um novo paradigma que está em marcha. A atribuição do prémio Nobel a Bob Dylan é apenas o sinal mais recente da revolta contra o Espírito a coberto agora já de uma ideologia populista e demagógica: ‘o politicamente correcto’. As massas chegaram finalmente ao poder que ambicionavam, ao poder intelectual e cultural, não porque se tenham alçado a ele mas porque pressionaram no sentido do rebaixamento do Espírito (volto a insistir), da genialidade, da excepção dos grandes pensadores e artistas, doravante atirados para uma situação de quase marginalidade. Há portanto que enaltecer esta obra como outras das quais destaco agora de passagem a Sociedade do Espectáculo de Guy Debord, O Sistema dos Objectos de Baudrillard ou a A Cultura Inculta de Allan Bloom. Este último foi particularmente truculento pois estendeu o fenómeno de decadência à educação partindo do facto de que sendo um ensaio sobre o declínio da cultura geral acabou por nos mostrar como a educação superior vem defraudando a democracia e empobrecendo os espíritos dos estudantes de hoje. A crise ocidental é sobretudo intelectual e depois decorrente da confusão estabelecida onde a razão se confunde com a criatividade acaba por se tornar uma crise moral pois o niilismo acaba por triunfar a soldo do relativismo axiológico, tudo isto debaixo do imenso cobertor ideológico da tolerância, uma tolerância sem princípios ou mesmo deletéria.

Para lá da questão cultural e de mentalidade é particularmente importante a análise crítica que o autor faz à cultura do romantismo, estabelecendo uma dicotomia muito clara e pertinente entre o romantismo e a filosofia das luzes. Da artificialidade contra o naturalismo organicista, da razão contra o costume e o instinto, do universal contra o local, do espírito contra a irracionalidade, da modernidade contra a tradição, da Sociedade contra a Comunidade, do Indivíduo contra o Rebanho, da positividade legal contra o direito histórico, do cosmopolitismo contra o enraizamento.

Volto a outro dos grandes objectivos do livro, a condenação do relativismo axiológico subordinado ao multiculturalismo. Desde a lição de Claude Lévy Strauss, pronunciado na Unesco em 1952 e intitulado sob a forma de livro, através da designação da conferência: Raça e História, que o relativismo multiculturalista viu as portas escancaradas relativamente à questão do Outro. A história mais recente tem vindo a mostrar a falência completa do multiculturalismo e a mostrar ainda a falência das ciências sociais e humanas relativamente ao tema. No quadro restritivo de um pensamento pretensamente científico sobre o Outro, o que aconteceu foi o triunfo do paternalismo ou do relativismo e em muitos casos o racismo manteve-se presente e vivo. É essa ilusão que Finkielkraut denuncia.   

Biografia 

Alain Finkielkraut nasceu em Paris no ano de 1940, concretamente a 30 de Junho. É um normalien da Escola Normal de St. Cloud, onde entrou em 1969. Judeu de origem polaca ensina hoje em dia Cultura Geral na Escola Politécnica. Foi eleito membro da Academia Francesa em 10 de Abril de 2014. Vejo-o ligado e integrado no grupo dos novos filósofos, grupo esse a que pertenceram também Pascal BrucknerAndré Glucksmann e Bernard-Henri Lévy. O mais intrigante no percurso de Alain Finkielkraut é que depois de La Défaite de la Pensée, que analiso neste meu texto, e de La Sagesse de l’Amour, obra dedicada a Emanuel Lévinas, veio por via de uma ligação militante ao judaísmo a cair em posições anti-modernas e até neo-reaccionárias como muito bem salientou o sociólogo Daniel Lindenberg no livro Le Rappel à l’Ordre. O mais grave é que Alain Finkielkraut involuiu até ao ponto de assumir pontos de vista racistas. Para mim, isso será o mais chocante mas não é menos chocante o facto de defender hoje posições hostis à modernidade e ao progresso, chegando a criticar os direitos humanos, os quais pela paixão imoderado pelo ‘outro’ alteram, em sua opinião, a reflexão política. Criticar os direitos humanos não é proibido, nem os direitos humanos são da ordem do sagrado, mas nos termos em que o faz, de modo bem diferente do que faz por exemplo Slavoj Zizek, isso releva de uma atitude profundamente reaccionária, onde faço notar uma certa nostalgia pela pré-modernidade e por convicções orgânicas e holistas. É a negação completa das suas teses da Derrota do Pensamento, que li com tanto agrado. Mais do que um neo-reaccionário Alain Finkielkraut incorpora actualmente o exército dos inimigos da Modernidade. Saliento aqui apenas as suas obras mais antigas como é o caso de Le Nouveau Désordre amoureux (A Nova Desordem Amorosa), em colaboração com Pascal Bruckner de 1977, La Sagesse de l’Amour (A Sabedoria do Amor) de 1984 e La Défaite de la pensée (A Derrota do Pensamento) de 1987.

17 Nov 2016

Ecologia das luzes

Ferry, Jean Luc, A Nova Ordem Ecológica, a  Árvore, o Animal e o Homem, Edições Asa, Porto, 1993.
Descritores: Ecologia, Iluminismo, Kant, Rousseau, Fichte, Humanismo, Imanência, Transcendência, 207 p.: 22 cm, ISBN: 972-41-1297-7.
Cota: 574(384999.1)

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]ntes de mais esta reflexão de Luc Ferry denota uma inesperada coragem na cultura contemporânea para enfrentar as formas de ecologismo radical que na maior parte das vezes estão associadas a críticas não menos radicais da Modernidade. A partir de uma definição muito clara e equilibrada dos seus pressupostos ideológicos, que mergulham em última instância nas fontes do humanismo iluminista e nas ideias de pacto social, ou seja em Rousseau, Kant e Fichte, entre outros autores, Luc Ferry enfrenta alguns dos mitos da cultura contemporânea. O radicalismo ecologista e as críticas mais ferozes à modernidade, mesmo quando não o confessam, evidenciam um estranho sentimento de nostalgia pelas formas de cultura pré modernas, quer dizer pelo sagrado, pelo comunitário, pelo holismo. O humanismo e o individualismo modernos são os inimigos deste saudosismo pré moderno.

Uma das tendências dos epígonos da soi disant pós-modernidade ecologista consiste em atribuir ao mundo animal e ao mundo vegetal uma dignidade equivalente à dignidade do homem. E essa deriva vai ao ponto de conferir aos animais e plantas um estatuto jurídico equivalente. Ora se os animais e as  plantas podem ser sujeitos e objectos do Direito, como chegam a preconizar alguns radicais, e isso em nome de um hipotético direito biocêntrico, será que poderão, também, ser processados e punidos por decisão judicial? Claro que sim. E não é de agora. Luc Ferry oferece-nos o inventário de uma panóplia de casos em que os animais foram levados a tribunal no passado, em nome do facto de serem, tal como os humanos, criaturas de Deus.

Como o autor salienta com ironia “tentando fazer uso da máscara pós-moderna, essa visão mística do mundo animal e botânico já é antiga e passou por vários ciclos, desde as sacralidades mais antigas”. Ora veja-se a título de exemplo:

“Em 1587, os habitantes de um vilarejo francês iniciam junto a um juizado episcopal um processo contra uma colónia de gorgulhos que estava atacando os vinhedos. Os camponeses solicitam ao «reverendo senhor e vigário geral de Maurienne» que se digne a prescrever as medidas convenientes para aplacar a cólera divina e a proceder dentro das regras, «por intermédio da excomunhão ou qualquer outra censura apropriada» para alcançar a expulsão definitiva dos insectos. (…) Algumas décadas antes, um processo semelhante havia terminado com a vitória dos insectos, defendidos por um advogado escolhido para eles pelo juizado episcopal. «Este último, usando como argumento o fato de os animais, criados por Deus, possuírem os mesmos direitos que os homens de se alimentarem de vegetais, recusara-se a excomungar os besouros, limitando-se a prescrever rezas públicas aos infelizes habitantes, intimados a se arrependerem sinceramente de seus pecados e a invocar a misericórdia divina», … e o pagamento imediato do dízimo, é claro” (Luc Ferry)

O autor mostra de modo muito sagaz e culto que sob a capa de crítica ou mesmo condenação da modernidade, o que os novos ideólogos pretendem é o regresso a um tempo anterior, quando havia desigualdades, hierarquias, descriminações e quando sobretudo ainda não tinha triunfado este reino dos direitos humanos e das liberdades, do contrato social que estipula igualdade de dignidade e de estatuto perante a lei. E sublinhe-se que é de uma lei universal que estamos a falar.

Sabe-se em contrapartida que as metáforas naturalistas e eventualmente orgânicas exprimem sempre posições anti-modernas. E Luc Ferry leva-nos a ver o contexto intelectual em que a Alemanha nazi preparou as primeiras leis sobre a protecção dos animais (1933) e da natureza em geral (1935). É sempre muito elucidativo o modo como o autor articula as reivindicações de um “contrato natural” com sentimentos claramente anti-modernos senão mesmo anti-democráticos simplesmente. A modernidade, a democracia, assim como o contrato social que delas decorre é como se sabe constitutivamente artificial. É esta artificialidade, assim como a secularização que ela exige, que incomoda os saudosistas da pré modernidade, seja ela qual for.

Mais alguns exemplos ilustrativos:

“Primeiramente, com base na petição apresentada pelos habitantes que sofrem os danos, averigua-se os prejuízos que tais animais causaram ou estão em vias de causar e, com a informação obtida,  juiz eclesiástico nomeia um curador para os animais, que se apresentará em juízo por procuração e deduzirá todas as suas razões, e os defenderá contra os habitantes que qureiam fazê-los deixar o lugar onde estão; e consideradas e vistas as razões de uma e de outra parte, o juiz lavra a sentença”. (…) “Houve até mesmo em Marselha uma excomunhão de golfinhos que obstruíam o porto e o tornavam impraticável”. (…) “Na ocasião do processo dos escaravelhos de Coire, o juiz, constatando por sua vez que sua citação para comparecimento continuava sem efeito, considerou que não devia tratar com rigor os animais, dadas sua pouca idade e a exiguidade de seus corpos”. (…) “No processo das sanguessugas de Berna, o bispo, temendo que elas tentassem escapar da corte, mandou capturar alguns exemplares para que fossem postos fisicamente na presença do tribunal.  Feito isso, ordenou que se advertissem as ditas sanguessugas, tanto as que estarão presentes quanto as ausentes, de que devem abandonar os locais que temerariamente invadiram e se retirar para onde sejam incapazes de prejudicar, concedendo-lhes para tanto três breves prazos de um dia cada (…) e estabelecendo a cláusula de que passado esse prazo elas incorrerão na maldição de Deus e de sua corte celeste.  E para testemunhar a seriedade da notificação, as sanguessugas designadas pela corte foram executadas imediatamente depois de ouvirem a reprimenda!” (Luc Ferry)

Alguns ecologistas contemporâneos não andam muito longe por vezes de posições aparentadas sobretudo quando a sua ideologia é reforçada por um anti-humanismo primário.

De facto é intrigante o fundamentalismo de pessoas que se batem por um direito das árvores, e das montanhas, quando muitas vezes se mostram insensíveis aos direitos humanos em particular o direito à liberdade de inovação e progresso. Em vez de um “contrato social” alguns radicais apelam hoje a um “contrato natural”. A obra de Luc Ferry compreende as aspirações razoáveis dos movimentos ecologistas conquanto estes não ponham em causa a democracia, a liberdade e o progresso científico e tecnológico.

Na maior parte dos casos é a aversão ao progresso e a nostalgia  pelas sociedade holistas e pré-modernas que animam o integrismo ecologista.

Em momento algum Luc Ferry se mostra insensível relativamente tanto ao mundo animal como à natureza em geral e a sua posição de base é de crítica insofismável relativamente ao antropocentrismo cartesiano com a concomitante redução mecânica da vida animal, mostrando-se pelo contrário favorável, sem ambiguidades, ao reconhecimento do animal como ser sensível na linha de resto de Maupertuis e Condillac. Pertinente é a todos os títulos a análise da diferença profunda entre uma ecologia romântica e uma ecologia das luzes. Claro que Luc Ferry toma partido pelas luzes vislumbrando aí a fonte da resistência contemporânea humanista, contratualista e democrática ao retorno da barbárie, que na história muitas vezes aparece com roupagens, na aparência, progressistas.

Breve apontamento Biográfico e Bibliográfico

Luc Ferry nasceu a 1 de Janeiro de 1951 em Colombes no departamento de Hauts-de-Seine, em França, é professor de filosofia política na Sorbonne e foi Ministro da Educação Nacional, de 2002 a 2004, sob o governo de Jean-Pierre Raffarin. Com um último volume publicado em colaboração com Alain Renaut, Luc Ferry publicou entre 1984 e 1985, Filosofia Política, em 3 volumes; a que se seguiu ainda em 1985, O Pensamento 68. Ensaio Sobre o Anti Humanismo Contemporâneo, em colaboração com Alain Renaut; ainda em colaboração com Alain Renaut publicou em 1988 Heidegger e os Modernos. Em 1990, publicou a solo a obra Homo Aestheticus. A Invenção do Gosto na Idade da Democracia. Ainda a solo A Nova Ordem Ecológica que analisamos aqui foi publicada em 1992. Depois de um intervalo maior o autor publicou em 1996 O Homem Deus ou o Sentido da Vida. E em 1998 publicou A Sabedoria dos Modernos, agora em colaboração com André Comte-Sponville. Continua a publicar e o último livro data de 2016 e intitula-se Sept Façons d’Être Heureux.

10 Nov 2016

Desafio à Língua

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]e memória, atrevo-me a dizer que a minha entrada na obra de Paul Ricoeur foi através do livro, A Metáfora Viva lançado pela Editorial Rés. Eram uns livros muito artesanais, esses da Rés, quase não passavam de fotocópias encadernadas sem nenhuma sofisticação editorial, como se o que mais importasse fosse que um conjunto de conteúdos fundamentais não ficasse à margem da nossa língua, isto já numa época em que o francês não era uma língua tão popular e acessível entre nós. O mesmo acontecia com o alemão, mas esse nunca foi muito vulgar em Portugal, ao contrário do que acontece em Itália e em Espanha. A maior parte dos livros da Rés eram obras originárias de língua francesa e alemã. Ainda de memória, correndo alguns riscos, perdoáveis, suponho, li na Rés O Conflito das Interpretações  do mesmo Paul Ricoeur, mas também O Mundo Como Vontade e Representação de Schopenhauer, assim como  alguns livros de Deleuze, por exemplo. Deixou saudades a Rés do Porto e fica aqui o registo sentimental.

Voltando à Metáfora Viva o que me ficou, ainda de memória, foram duas ou três ideias fundamentais, agora um pouco diluídas, mas que na época me foram muito importantes para entrar mais tarde no Ricoeur da alteridade, como por exemplo no Soi-même comme un autre, ou o Ricoeur da Ideologia e Utopia e finalmente esta Teoria da Interpretação que volto a ter em mãos uns bons anos depois.

Ficou-me sobretudo uma ideia que hoje, na pena de Alberto Martinengo, se pode designar por veemência ontológica, que eu na época interpretei como a possibilidade de um excesso de sentido contido na metáfora através do qual se podia dar uma expansão do Ser. A metáfora podia dizer mais do que aparentemente diz, e através dela acedíamos a um mundo a que não acederíamos de outra forma; mais ou menos assim. Isso valeu-me de arma de arremesso contra a tirania das filosofias  positivistas  e analíticas que começavam a implantar-se também na tradição continental. Mas Ricoeur articulava a problemática fenomenológica com uma simbologia do mal e finalmente com uma ideia de vocação ou chamamento que nunca me atraiu.

A ideia que me interessava persistia exclusivamente no plano de que a linguagem contém uma ideia de constrangimento ontológico pela sua necessária e positiva referência ao mundo mas que segundo Ricoeur podia ser quebrada através de uma espécie de violação que, no acto de desconstruir (logicamente) a normatividade lógica e positiva (empiricamente dada) institui uma normatividade nova, o que quer dizer que produz um mundo novo. A nova normatividade exige um mundo novo ou, o que vai a dar ao mesmo, um mundo produzido pela linguagem exige uma normatividade de outro tipo,.“la métaphore peut être considérée comme un «laboratoire» où l’abandon d’une norme préexistante ne résulte pas de l’arbitraire mais passe par l’expérimentation d’une normativité plus profonde”.

Percebe-se que Ricoeur quer abandonar o domínio performativo uma vez que sabe que o que a metaforização visa ou pode visar é muito mais do que isso. É a saída de um mundo onde a performatividade é circular e redundante ou onde pode representar uma saída para fora do círculo hermenêutico e instituir um mundo vindo de um abismo no sentido heideggeriano do termo (Ab grund). Mas para que tal possa acontecer é necessário que antes a metáfora acrescente sentido e  desse modo possa superar os constrangimentos em que se limita a dizer o mesmo, é necessário que a metáfora suporte uma espécie de “aufbhung hegeliana do sentido”.

“Un traitement purement rhétorique de la métaphore résulte du privilège abusif accordé initialement au mot et, plus précisément, au nom, à la dénomination, dans la théorie de la signification, tandis qu’un traitement proprement sémantique procède de la reconnaissance de la phrase comme première unité de signification. Dans le premier cas la métaphore est un trope, c’est-à-dire un écart affectant la signification du mot – dans le second, elle est un fait de prédication, une attribution insolite au niveau même du discours-phrase” (Ricoeur).

(Uma abordagem puramente retórica da metáfora resulta do privilégio abusivo atribuído inicialmente à palavra e, mais propriamente, ao nome (substantivo), à denominação, na teoria da significação, enquanto que uma abordagem especificamente semântica procede do reconhecimento da frase como primeira unidade de significação. No primeiro caso a metáfora é uma figura de estilo, ou seja um desvio que afecta a significação da palavra – no segundo, ela passa a ser um facto de predicação, uma atribuição insólita ao próprio nível do discurso-frase”).

É aqui que o novo aparece. Um novo sentido e um mundo novo, que em boa verdade são inseparáveis.

Já no Crátilo, Platão chamava a atenção para o facto de que a simples denominação é insuficiente para juízos de verdade. “O logos da linguagem requer, pelo menos, um nome e um verbo e é o entrelaçamento destas duas palavras que constitui a primeira unidade da linguagem e do pensamento”. (Ricoeur)

Só há discurso quando há predicação isto é um nome e um verbo. Mas só a invenção da oposição estrutural entre a Língua, enquanto código, por um lado e a Fala, como perfomance particular desse código, por outro; é que permite a evolução científica das ciências da linguagem e ao mesmo tempo a recessão natural do império dos discursos. A Teoria da Interpretação vai adquirir uma complexidade maior justamente com esta diminuição da importância do discurso, ou se quisermos com este reconhecimento de que interessa acrescentar à dimensão diacrónica (histórica) das falas e dos discursos a dimensão estrutural e sincrónica da língua enquanto sistema de códigos. É esta problemática que estará na base da célebre oposição em Ricoeur de sentido e referência. De algum modo são instaurados dois domínios científicos distintos e eventualmente complementares: Os estudos semióticos (semiológicos) centrados na dimensão sincrónica do signo, estudos virtuais centrados na abstracticidade do signo e os estudos semânticos que correspondem ao estudo da frase. A frase que, compondo-se de signos, não é um signo. Precipitando-me desde já diria que a semiótica é imanente e formal e nela se concentra um sentido intrasemiótico fechado de alguma maneira ao mundo, ao passo que a semântica remete para uma dimensão de significação referencial extrínseca ao sistema formal. A tendência natural será a de valorizar os discursos como eventos da linguagem, reconhecendo-lhe uma prioridade ontológica por oposição à “mera virtualidade do sistema”. Haveria assim uma fraqueza epistémica da fala, do evento, do discurso face à estabilidade e consistência normativa da língua, isto é do sistema, compensada porém por essa veemência ontológica como lhe chama Alberto Martinengo fazendo justiça ao esforço de Paul Ricoeur. O sentido é imanente ao discurso e representa apenas o ‘quê’ do discurso, já a referência que representa o ‘acerca de quê’, exprime o movimento em que a linguagem se transcende a si mesma, mas para que a linguagem dê conta desta transcendência ou se preferirmos explicite este mundo é necessário que se use. Só através da referência o falante se transforma num ser no mundo e portanto só aí a sua dimensão ontológica aparece plenamente através da convergência da  linguagem com a experiência. Paul Ricoeur diz-nos isso assim: A noção de trazer a experiência é a condição ontológica da referência, uma condição ontológica reflectida dentro da linguagem como um postulado que não tem justificação imanente; o postulado segundo o qual pressupomos a existência de coisas singulares que identificamos. Mas por que razão esta dimensão extralinguística aparece como desafio à língua e se faz linguagem. Porque nos é transcendental essa condição de Dasein, isto é de ser no mundo e porque “temos uma experiência a trazer à linguagem”. E, note-se, não é o inverso.

É que o próprio significado de referência se desdobra pois pode ser colocado no nível em que até aqui o colocámos, ou seja no nível semântico mas também no nível da hermenêutica. “No primeiro nível, ela só concerne às entidades do discurso da ordem da frase. No segundo, dirige-se às entidades de maior dimensão que a frase”.

É portanto aqui que a questão se torna definitivamente complexa, quando tivermos de abandonar a dicotomia primária que opõe a linguística do discurso, ou seja semântica, à linguística do signo a que chamamos semiótica. E complexiza-se porque doravante Paul Ricoeur introduz uma segunda dicotomia entre a significação (conteúdo proposicional que realiza a síntese entre identificação e predicação)  versus interpretação. Sendo que ainda no primeiro elemento deste par dicotómico ele tinha aberto caminho, através de Frege, para uma oposição interna, digamos assim, entre sentido e referência. E, bom, depois disso surge esta outra dimensão do falante, a sua dimensão ontológica e a partir de agora, a simples significação já não nos satisfaz.

Na significação já queríamos saber o que o falante diz e também o que quer dizer além daquilo que a frase denotava e nesse sentido a significação era já noético-noemática. O que é que a interpretação lhe acrescenta? Acrescenta-lhe uma dimensão hermenêutica, seja pela via que Ricoeur designa por via curta da ‘Compreensão’, e que imputa a Schleirmacher e Dilthey, mas também a Gadamer e Heidegger, na sua perspectiva intersubjectiva,  psicologizante e existencial;  seja pela via longa da interpretação propriamente dita.

“A possibilidade de articular a verdade entendida como desvelamento numa ontologia da compreensão (a “via curta” de Heidegger) com o(s) método(s) de uma epistemologia da interpretação, consagra a “via longa” característica da hermenêutica ricoeuriana: um acesso à existência e à compreensão de si que passa obrigatoriamente por uma elucidação semântica organizada em torno das significações simbólicas”. (Ricoeur)

E o que é que a interpretação pode acrescentar à compreensão? É aqui que a meu ver Paul  Ricoeur se embrulha numa aporia intelectual complexa que pelo menos nesta obra não resolve. Ele propõe o conceito de ‘Apropriação’, mas apressa-se a reconhecer que não haverá apropriação sem compreensão. E,  ‘Apropriação’ de quê? Da intenção do autor? À maneira da intenção fenomenológica da consciência?  Mas o que será necessário compreender previamente? Em resumo Paul Ricoeur depois de inventariar e refutar sumariamente maus caminhos diz: “Aquilo de que importa apropriar-se é o sentido do próprio texto, concebido de um modo dinâmico como a direcção do pensamento aberto pelo texto. Por outras palavras, aquilo de que importa apropriar-se nada mais é do que o poder de desvelar um mundo, que constitui a referência do texto” (Ricoeur), parecendo que assim todos os vícios da via curta se teriam resolvido, em particular o vício historicista. Convenhamos, mas digo-o com pudor, que a montanha pariu um rato. Quem  sou eu (dir-se-á) para pôr em causa, assim com esta brevidade, um texto de tanto alcance de um autor como Paul Ricoeur? Dou conta de uma frustração, apenas, e isso já será mais perdoável. E já agora em que consiste a minha frustração? De que é que eu estava à espera que o texto não terá concretizado? Um novo sentido para o conceito de desvelamento de um mundo que ultrapassasse as aporias do círculo Hermenêutico. Desde Heidegger e Gadamer que essa autoconsciência de um círculo centrado na ideia de uma pré-compreensão se tornou vicioso e se introduziu por si mesmo, isto é, está lá, inamovível, como segunda natureza do eu e dos seus actos de compreensão e explicação. E todas as tentativas para superá-lo não  têm feito senão agudizá-lo. E em segundo lugar uma proposta que dê uma forma inequívoca mas universal  de des subjectivar o acto de apropriação, incidentalmente sempre egolástrico. É verdade que neste plano Ricoeur termina muito bem conduzindo a questão para um desdobramento  e oposição entre um ego e um ‘Si mesmo’. O ego é a estrutura que pretende preceder o texto ao abordá-lo enquanto o ‘Si mesmo’ parte da compreensão do texto. “É o texto, com o seu poder universal de desvelamento de um mundo, que fornece um ‘Si mesmo’ ao ego”. Então de que me queixo? Talvez que eu não veja este desdobramento como contendo uma dimensão ontológica, mas apenas ética, com todas as consequências que isso implica, mas que agora não posso desenvolver. Elas implicariam o Soi-même comme un autre do próprio Ricoeur, mas sobretudo a obra de Levinas no seu conjunto… Pelo que ficarei por aqui!

Ricoeur, Paul, Teoria da Interpretação, Porto Editora, Lisboa, 1995

Descritores: Filosofia, Hermenêutica, Semiologia, 203 Páginas, Introdução e Comentários de Isabel Gomes, Tradução de Artur Morão, ISBN: 9720410728

Cota: 1(44) Ric

Sinopse e Ficha Crítica

Paul Ricœur nasceu em Valence, França, a 27 de Fevereiro de 1913  e faleceu em Châtenay-Malabry, perto de Paris a 20 de Maio de 2005 e  foi um dos maiores pensadores franceses do período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial. Nasceu numa família protestante, o que também influenciaria a sua cultura e portanto o seu pensamento. Em 1936, depois de se licenciar  em filosofia, criou a revista Être, inspirada nos preceitos de Karl Barth, teólogo cristão (protestante) suíço. Em 1939, Ricœur foi preso pelos nazis e enviado ao campo de Groß Born e depois a Arnswalde, na Pomerânia, actualmente território polaco. Após a guerra desempenhou funções docentes em muitas universidades, europeias e americanas. Ricœur descreve assim, em 1991, as suas raízes filosóficas: “Se penso, fazendo um balanço acerca das influências que sofri ao longo da minha vida, fico grato por ter tido desde o início influências muitas vezes opostas”. De um lado, Gabriel Marcel, ao qual se pode acrescentar Emmanuel Mounier, e por outro lado, Husserl. Ricoeur formou-se, assim, no contacto com as ideias do existencialismo, do personalismo e da fenomenologia.

Algumas obras incontornáveis: Em 1960 A Filosofia da Vontade, sobretudo a segunda parte intitulada Finitude e Culpabilidade de 1960; O Conflito das Interpretações que é de 1969. E em 1975 A Metáfora Viva. Além disso Ricoeur notabilizou-se pelos seus estudos sobre o bem e o mal, o pecado e a culpa.

3 Nov 2016

Sinfonia de fracassos

Bellow, Saul, Herzog, Penguin International Literature, 2007

Descritores: Literatura norte Americana (USA), Romance, ISBN: 9780141184876

Cota: XX (402576.1)

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]oses Herzog é para mim o personagem mais original de toda a obra de Saul Bellow onde ainda assim não abundam personagens muito interessantes e nem mesmo ideias ou temas. O que o salva é a escrita propriamente dita, quando salva. É claro que Saul Bellow é muito inteligente mas a sua escrita é sempre caótica. Porém a ideia do Morrem Mais de Mágoa é um achado e a construção da personagem do escritor Charlie Citrine, em Humboldt’s Gift (O Legado de Humboldt), escritor, esse,  ambicioso, bem sucedido, mas a que faltava talento e sobretudo génio, se não é uma grande descoberta, pois a história da literatura conta com muitas histórias destas, é pelo menos desenrascada com alguma mestria. Mas a ideia de Herzog deixa todo o resto da obra de Saul Bellow a milhas como em gíria se poderia dizer. Porém, e digo-o já, a ideia é melhor que o desenvolvimento dela. Este professor universitário desgastado emocionalmente e estou a ser bonzinho, é fascinante na sua loucura relativa, enfim, relativa é uma maneira de dizer, pois um tipo que desata a escrever cartas inverosímeis a toda a gente e a todas as personagens históricas que lhe ocorrem, não deve estar de facto bom da cabeça, ou então está é bom demais, ao perceber progressivamente que entre os vivos não haverá ou haveria quem verdadeiramente lhe possa ou pudesse valer.

Agora é um aparte. Se não fosse anacrónico escrever fosse a quem fosse, vivo ou morto, quantos vivos comparados com os já mortos mereceriam que você perdesse tempo com eles para  lhes escrever sequer um postal ilustrado. Aqui para mim, morreu há pouco tempo um dos últimos a quem eu, perdoe-se a presunção, mesmo sendo meramente retórica, escreveria uma longa carta; estou a pensar em Emanuel Levinas. E de entre os vivos, quem é que fascina assim tanto que me levasse à cadeira da Escrivaninha? Escritor, nenhum, com grande mágoa minha. Não! Estou a exagerar, … Acho que escreveria a Philip Roth, a Claudio Magris, a Julian Barnes e a Sebald, claro, mas espera, W. G. Sebald já morreu; e pensador, quem? Talvez a Giorgio Agamben, ou a Vattimo. Gostaria que Vattimo me esclarecesse como é que ele espera levar por diante essa ideia catocomunista envolvida pelo manto diáfano da Hermenêutica e relativamente ao Agamben eu precisaria que ele me explicasse mesmo bem a ideia de Profanação. Steiner? Talvez! Mas ainda assim mais facilmente a Byung-Chul Han ou a Peter Sloterdijk, embora esteja convencido de que a eventual carta deste último se ele me respondesse, o que duvido, me iria enfadar muito, mas é só uma suposição, quiçá injusta. Mas se pensarmos nos mortos, enfim é melhor nem começar a falar…

Sobre o Herzog, romance ou personagem, francamente nem sei por onde começar. Então vou começar pelo princípio. O homem mete pena, mas depois, lá mais para a frente, quando finalmente entramos a fundo na farsa, os sentimentos mudam, mas agora em que tudo lhe começou a correr mal, mete realmente pena: a segunda mulher, Madeleine, acaba de o trair, e ainda por cima com o melhor amigo, a profissão já conheceu melhores dias, a idade já não ajuda, isso sabemos todos, as mesmas crises demoram cada vez mais tempo a resolver à medida que a idade avança, seja lá que crises forem. Mas o homem é fascinante e cultiva um auto sarcasmo libertador. A frase com que abre o livro é antológica: “Se estou fora de mim, isso não me importa”. Por acaso, eu jamais traduziria a proposição assim, como fez para a Quetzal, Salvato Telles de Meneses, pois não dá a noção do sarcasmo e da ironia que contém e que é aquilo que nós em português dizemos ‘se é para a desgraça’, que o seja, perdoe-se o segundo plebeísmo em tão curto espaço de tempo. Na versão da Companhia das Letras com tradução de José Geraldo Couto a coisa ficou assim, não muito bem lograda também: “Se estou louco, tudo bem para mim, pensou Moses Herzog”. Em inglês o que Saul Bellow escreveu foi isto: “If I am out of my mind, it’s all right with me, thought Moses Herzog”

A minha tradução seria antes: “Se estou a ficar louco, tanto melhor pr’a mim”, porque me parece que é essa ideia autodestrutiva e catastrófica, que depois justifica a deriva da personagem para comportamentos do tipo esquizóide. Bom! Também não é por aí, não vale a pena ficarmos aqui a partir pedra, mas a mim sabe-me melhor no contexto da evolução da obra, se estou a enlouquecer, assim é que está certo, meias tintas para quê, … Qualquer coisa como, quanto maior for a queda e mais fundo e longe estiver a salvação mais épico é o que me espera. E isto é muito judeu, acho eu, sempre na corda bamba entre o céu e o abismo. Com certeza somos nós os leitores que escrevemos, senão os livros com as suas palavras concretas, mas uma certa maneira de os livros serem moralmente ou tragicamente, digamos assim.

E de facto eu, pelo menos, não posso deixar de ter em conta a ideia muito judaica da questão dos falhanços. Os judeus gostam de se vitimizar, autovitimizar, quero eu dizer, sem étnica ofensa. O intelectual judeu não espera que o critiquem, ele é o maior crítico de si mesmo. Vejam-se os romances autobiográficos de Bellow e de Roth por exemplo e serão suficientes. No caso de Herzog é uma verdadeira sinfonia de defeitos, falhanços e fracassos, Bellow não precisa de inimigos, quer dizer, Herzog, o que é mais correcto, sendo o mesmo.   

Neste caso e tomando a personagem de Madalena, Bellow, em vez de a responsabilizar, o que também faz em parte, pois faz parte do caldo existencial em que está envolvido e o Herzog, também não é nenhum santinho, apura-se em autorrecriminações sucessivas, ao ponto de considerar que os sentimentos que tinha por Madalena não justificarem senão aquilo que aconteceu, apesar de grave e de doloroso, pois em boa verdade e para ser justo, Madalena nunca foi mais do que um catalizador na sua vida egocêntrica. Depois vem tudo em catadupa: a impotência sexual, a falência como marido, etc. e como justificação próxima ou remota lá voltam as raízes judaicas, em última instância responsáveis por tudo o resto. Philip Roth faz o mesmo como sabemos desde o Complexo de Portnoy até à Mancha Humana pelo menos. Em Roth é porém mais difícil discernir os elementos introspectivos e os ajustes de consciência do que é no caso de Saul Bellow que é a meu ver muito mais autobiográfico, embora o sejam ambos. Mas o que, para mim, faz mais diferença com muita desvantagem para Bellow, é que falta ali a mão de ferro de um narrador que não deixe o texto descambar para a narrativa das idiossincrasias autobiográficas, muitas vezes desconexas e caóticas. Saul Bellow torna-se sempre um bocadinho cansativo porque não nos agarra através de um fio condutor narrativo que agregue harmoniosamente as narrativas paralelas ou as digressões de fluxo de consciência. A dada altura a leitura do livro deixa de interessar pois já nos divorciámos da sorte das personagens, e também porque já nada as liga entre si, nada e ninguém, ou seja a tal mão de ferro do narrador que deveria manter a coesão e evitar a dispersão. As forças centrífugas ganham a batalha e a circularidade explode e quando já não há geometria num romance o resultado é uma compilação de flashs, alguns geniais contudo.

Do ponto de vista estilístico, ao princípio, isto é durante 100 a 150 páginas, no manuseio dos recursos narrativos parece que Saul Bellow está no auge da sua maturidade e no entanto este romance é temporão, uma vez que é de 1961; mistério, difícil de explicar. As oscilações permanentes entre a terceira pessoa do narrador omnisciente e a primeira pessoa em discurso directo mais genuína da grande tradição da ficção norte-americana, atingem uma mestria atractiva, até pelo à vontade com que o autor se diverte com o tempo, a variável mais difícil de manusear em História; perceba-se o significado polivalente deste semantema. Mas depois e progressivamente parece que não saímos do mesmo lugar e andamos às voltas através do uso recorrente das obsessões das personagens, sobretudo de Herzog.

Voltando às cartas, decidi que não perdoo a Bellow ter gasto tempo e tinta com Dwigt Eisenhower, mas admito que seja por preconceito meu, já a carta a Deus era inevitável, e são no mínimo pertinentes as cartas a Hegel, Nietzsche, e Heidegger. A carta a Nehru é seguramente contextual, mas a carta a Deus, quem é que não gostaria de a escrever e não pelo Natal que aí não tem grande valor, pois deve ser para pedir qualquer coisita.  E o que também não lhe perdoo é que na maior parte dos casos as cartas não se justificam, podiam ser outras, podiam aparecer segundo outra ordem, etc. E portanto, em última instância Saul Bellow desperdiçou parcialmente uma ideia genial.

E como estou cansado e é de madrugada e antes que meta mais água termino esta crónica citando o prefácio de Philip Roth: “[…] este Herzog é a mais grandiosa das criações de Bellow, o Leopold Bloom da literatura americana, com uma única diferença: em Ulisses, a mente enciclopédica do autor transforma-se  na carne linguística do romance, e Joyce jamais confere a Bloom a sua própria erudição imensa, o seu intelecto, a amplitude da sua retórica, enquanto em Herzog, Bellow investe o seu protagonista de tudo isso, não apenas um estado mental e uma disposição mental, mas também uma mente verdadeira” (Philip Roth). Afinal eu estava no caminho certo, e com a ajuda de Philip Roth acabei por perceber muito bem porque considero meio falhado o romance de Saul Bellow, intitulado Herzog.

Ainda acrescento alguma coisa e será para me enterrar de vez, mas que seja: mesmo assim prefiro mil vezes o Herzog ao Leopold Bloom e o Herzog, romance de Saul Bellow ao Ulisses de James Joyce, e é sem a mínima dúvida que o digo, apesar da heresia.

Biografia

A família de Saul Bellow é na sua origem próxima e remota proveniente da Rússia, mas de ascendência judia, portanto duplamente migrante, diria, não obstante Saul Bellow ter nascido nas cercanias de Montreal, no Canadá, a 10 de Junho de 1915. Em 1924 a família mudou-se para Chicago, onde o escritor cresceu e estudou e passou uma boa parte da sua vida, tendo vindo porém a falecer a 5 de Abril de 2005 na sua casa em Massachuchetts, muitos anos depois do seu enorme sucesso literário, que culminou com a atribuição do prémio Nobel em 1976. O prémio Nobel marca uma carreira recheada de prémios de valor emblemático na história da literatura americana, tal como o National Book Award por The Adventures of Augie March (As Aventuras de Augie March), e o Prémio Pulitzer na categoria de Ficção pela publicação de Humboldt’s Gift (O Legado de Humboldt). O primeiro foi em boa parte escrito, ao que parece, em Paris nos dois anos em que Bellow foi bolseiro da Fundação Guggenheim, entre 1948 e 1950, embora o livro só tivesse sido publicado em 1953. O segundo, que foi publicado em 1975, descreve o percurso de Charlie Citrine, escritor de sucesso mas a quem manifestamente faltava talento. Destaco ainda no domínio da literatura de ficção, Dangling Man de 1944, só por que é o seu romance de estreia, e sobretudo os romances maiores além dos que já foram considerados e que são, Ravelstein de 2000, More Die of Heartbreak (Morrem Mais de Mágoa) de 1987 e finalmente Herzog de 1964, provavelmente o seu melhor romance, o mais genial, pelo menos. Que outro nome se pode dar à ideia de conceber uma personagem, Moses Herzog, que decide escrever cartas a grandes filósofos e até a Deus como forma de poder continuar a exercer uma atitude intelectual de radical inconformismo. É verdade que Moses Herzog não chegará jamais a enviar as cartas idealizadas e arquitectadas, mas é através delas que a personagem sobrevive ao falhanço da sua vida e encontra uma escapatória para o seu complexo desespero existencial de índole humanista.

27 Out 2016

As Garras do absurdo

Buzzati, Dino, O Deserto dos Tártaros, Cavalo de Ferro, Lisboa, 2008

Descritores: Literatura Italiana, Romance, Absurdo, 254 páginas, ISBN: 9789896230999

Cota: 821.131.1-31 Buz

 

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]ino Buzzati Traverso nasceu em San Pellegrino di Belluno16 de outubro de 1906 e faleceu em Milão no dia  28 de janeiro de 1972. Todas as biografias sobre Buzzati exacerbam a obra O Deserto dos Tártaros, mas eu penso que, sem o mínimo menosprezo por esta obra genial, não pode descurar-se a excelência do autor nas narrativas curtas. Dino Buzzati é um contista com um estilo inconfundível, através da exploração de uma visão fantástica e absurda do real. Podia, se quisesse, lembrar inúmeros contos de Buzzati absolutamente exemplares dentro do género, pois os fixei para sempre e atrever-me-ia a recomendar a compilação designada por Z como uma das melhores colecções de contos que alguma vez pude ler. Em 1924 ele entrou para a Faculdade de Direito da Universidade de Milão, onde seu pai já ensinara. Quando já estava para terminar o curso de direito, aos 22 anos, tornou-se jornalista do jornal milanês Corriere della Sera, onde permaneceria até à morte. É comum dizer que a profissão de jornalista teve forte influência sobre os seus escritos, onde conseguia combinar de modo exemplar o fantástico com o realismo e rigor da prosa jornalística. Foi logo após a guerra, em 1940, que publicou a sua obra-prima, O Deserto dos Tártaros, através da qual alcançou fama mundial.

Entre muitas leituras possíveis este romance é também sobre o sentido da vida e o apelo do timós (timoz) que muitas vezes são interdependentes, enfim a velha luta pelo reconhecimento, contra a banalidade e o vazio. Dar um sentido à vida já pressupõe esse tonus espiritual. Parece que Giovanni Drago está decidido a conferir um sentido, e um sentido elevado, grandioso, à sua vida, embora ao princípio até nem pareça estar muito determinado. Dino Buzzati não trata a personagem como se esta fosse correlata de um ser obstinado, decidido e plenamente convencido de si mesmo. Portanto, quando se encaminha para a Fortaleza Bastiani, o tenente Drago não parece ir à procura de glória e sobretudo animado por um espírito belicista exemplar. Pelo contrário, está corroído por dúvidas e até mais voltado para a ideia de regressar à cidade o mais depressa possível. Depois sim, Drago deixa-se enredar, ainda que não seja muito claro no seu espírito aquilo que o enreda e vai prendendo à Fortaleza Bastiani. A mim parece-me que o texto é mais sobre o absurdo, com as suas garras próprias. As garras do absurdo não são como tenazes sólidas que prendem ou agarram, são mais como a trama das teias de aranha e um pouco gelatinosas às quais os objectos ou os seres se vão colando e deixando prender, impotentes para se desenvencilhar, contudo a força aqui não terá nunca um papel importante, mas antes a astúcia e a determinação do carácter. Giovanni Drago é um pouco abúlico, não sabe muito bem o que quer e isto para resistir às armadilhas viscosas da vida é quase sempre fatal. A partir de certa altura Drago resigna-se a esperar aquilo que não desejava no início mas que agora se torna a única justificação. Ele espera porque já não tem coragem para romper com o visco do hábito e do quotidiano, quiçá contra a acédia que se insinua na banalidade existencial em que a sua vida se vai transformando. Só então o evento que se espera aparece como salvífico. Este pormenor faz toda a diferença, até no plano ideológico, a meu ver. Buzzati não é um belicista.

Quando afinal o que parecia puramente absurdo está em vias de acontecer de facto, isto é, a chegada dos tártaros, “Drogo já velho e doente é dispensado pelo novo comandante do forte. E no seu regresso à cidade, morre numa pousada, só e abandonado”. Abandonado de tudo, é bom que se diga.

O romance O Deserto dos Tártaros deixa-se ler muito bem, interpretativa e criticamente, a partir das análises denotativas e conotativas dos semantemas do título e tanto num plano semiológico como hermenêutico. Em boa verdade os termos ‘Deserto’ e ‘Tártaro’, são riquíssimos ao ponto de obviamente pensarmos que Dino Buzzati os escolheu intencionalmente, e nem me atrevo a dizer, terá escolhido; pois o carácter dubitativo do futuro do presente composto, neste caso, me pareceria um desrespeito.

O deserto pelo seu carácter de descampado e ermo, onde o ser se sente naturalmente solitário e onde portanto sente mais do que em qualquer outro lugar a solidão, a solidão purgativa e reconstituinte, mas também expiadora, torna o cenário propício mas ambivalente, pois o deserto também pode ser apenas estéril e vazio, onde portanto a escassez obriga o ser a povoar artificialmente, não raras vezes com o pensamento. Se por um lado a extensão indiferenciada dos desertos estimula a evasão ou a procura do sentido, por outro lado pode também anular o ser numa indiferenciação ontológica homóloga.

Para além disso o semantema “Tártaro” tem uma dimensão étnico-cultural complexa e não linear. Os tártaros não são os mongóis, mas aparecem intimamente associados na história aos mongóis através do neto de Gengis Khan, aquando da invasão da Europa, e essa conotação possui um carácter de grande relação com violência e crueldade. Veja-se por exemplo, o Andrey Rublev de Tarkovsky. Finalmente o Tártaro é também na mitologia greco-latina, e é esta a dimensão que mais me interessa, sinónimo de Inferno.

O Tártaro é a personificação do mundo inferior; pior ainda do que o Hades, pois se este é o lugar reservado aos humanos, aquele é reservado aos deuses inferiores como cronos, ou essas figuras ambíguas que foram os titãs, mas que se sabe que desempenham na mitologia o clímax da ubris e portanto da máxima heresia, comum a todos os que aspiram a ser heróis, isto é aparentados aos deuses.

Há no nosso herói a partir de certa altura o esboço de uma ambição incontrolável, que se aparenta à ubris, mas e essa é a modernidade marcante do romance, uma ubris que se apresenta como falência da vontade e não como manifestação de hipervoluntarismo e se há uma cegueira irracional por um ideal excessivo de grandeza ele apresenta-se com os sinais da indolência, da preguiça e da acédia. Não é nunca titânica.

Há associações que fazemos inexplicavelmente, à partida sem grandes justificações, aparentemente, mas que surgem ao espírito de uma forma obsessiva e persistente. É o caso da minha convicção de que existem múltiplas afinidades entre duas obras de dois autores, em princípio pouco conciliáveis. Apesar disso eu teimo em vislumbrar uma familiaridade para mim evidente, de tal ordem que meti na cabeça procurar a razão de ser desta convicção. Estou a pensar no Deserto dos Tártaros de Dino Buzzati e no Pedro Páramo de Juan Rulfo. O facto de serem dois dos meus textos literários de eleição, dois dos romances que eu levaria para uma ilha deserta sem hesitar, isso nem de perto nem de longe explica a minha opinião e sobretudo de modo nenhum fundamenta a possibilidade de uma tese comparativa. Mas haverá razões para que eu pense assim, pois se não houvesse por que haveria eu de ter metido na cabeça a ideia de que são não apenas dois romances aproximáveis e portanto comparáveis, mas muito mais do que isso, homólogos, embora de modo inverso, nos pressupostos e nos objectivos e até nos processos narrativos e sobretudo na tessitura ontológica de base. Só para deixar já algo que se veja. São ambos romances sobre o absurdo, sobre o sem sentido existencial, sobre o tempo e a sua vacuidade e sobre o malogro dos ideais, sejam eles quais forem. Além disso ambos os romances são ainda sobre os limites fluidos, móveis e voláteis das fonteiras entre o céu, a terra e o inferno.

Tenho para mim que no romance de Rulfo, Juan Preciado, desde o momento em que entra nas imediações fronteiriças da cidade de Comala onde a mãe o enviou, entra verdadeiramente num outro mundo, num outro reino, num reino inferior semelhante ao Tártaro. Designá-lo de resto por este nome, por Hades ou por Inferno é de somenos importância para o caso.

E acho que chega, para já, como programa de leitura e sondagem.

Mas em boa verdade eu nem precisaria de dar as explicações que estou a dar para justificar o acto de comparação literária. Como diz e muito bem, Helena Buescu: “Não é possível ler senão comparativamente (ou seja, relacionalmente) (…) não há de facto como não-comparar. Toda a leitura é activação, partilha e “cooperação interpretativa” […], o que significa que o sentido reside, justamente, nesse acto de cooperação, intercâmbio e interacção. Desta perspectiva, todo o sentido é comparativo e não há sentido que o não seja” (Helena Carvalhão Buescu, Grande Angular. Comparatismo e Práticas de Comparação. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 14. a p. 23). A minha comparação espontânea destas duas obras legitima-se por si mesma.

Antes de entrar propriamente na análise motivada das obras, para descobrir e poder mostrar as suas afinidades, interessa ter em mente sobretudo um dado que, para mim, é desde logo nuclear e que é o seguinte: A obra de Juan Rulfo é assinalada assim como o autor no conjunto da sua obra como um dos autores seminais do chamado Realismo Mágico, senão mesmo o seu fundador, embora isto já me pareça muito discutível. É claro que as referências de Gabriel Garcia Marquez ao Pedro Páramo e a Juan Rulfo autorizam esta insinuação, mas o mesmo autor se refere também a Alejo Carpentier em termos que o colocam na linha dos fundadores desta corrente lieterária assim como na grande genealogia das sua dívidas capitais. Repare-se que o texto aparece em 1955 e se é verdade que se antecipa de muitos anos aos Cem Anos de Solidão que é de 1967, não se antecipa de modo nenhum a obras, seminais elas também, como é o caso dos Passos Perdidos do referido Alejo Carpentier que é de 1953, Paradiso de José Lezama Lima que é de 1966, mas que terá sido escrito muito antes, Heróis e Túmulos de Ernesto Sábato que é de 1961, embora O Túnel, do mesmo autor, seja de 1948, O Bestiário de Júlio Cortázar que é de 1951 e o Todos os Fuegos el Fuego que é de 1966. Enfim, há a não esquecer que antes de todos Jorge Luís Borges publicou as suas Ficções em 1944 e o Aleph em 1949, sendo que o primeiro conto das Ficções é de 1941. E poderíamos continuar. Mas será que em todos os casos estamos a falar da mesma tipologia literária? E o Realismo Maravilhoso será o mesmo que Realismo Mágico? Penso que não. Penso que não há nada nos Passos Perdidos de Alejo Carpentier que se possa comparar ao Pedro Páramo de Juan Rulfo. Se o paradigma por excelência do carácter fantástico e mágico da literatura sul americana do século XX são os Cem Anos de Solidão, então o verdadeiro precursor é Juan Rulfo através desse Pedro Páramo.

Por outro lado tudo o que eu li e plenamente concordo é que Dino Buzzati se pode e deve considerar também um autor, no caso europeu, precursor do realismo mágico. E convém não esquecer que O Deserto dos Tártaros é de 1940, enquanto o Pedro Páramo é de 1955. O romance de Buzzati é contemporàneo das Ficcões de Jorge Luís Borges. Portanto neste plano já temos algum pano para começar a talhar as mangas. Acho eu. Porém e antes de avançar devo deixar já bem claro que não considero que o realismo de Rulfo e o realismo de Buzzati são de tipo diferente, o que significa que pretendo dizer que não defenderia a tese de que o realismo mágico europeu seja precursor do realismo mágico sul americano, assim sem mais nem menos. Mas deixemos isso, … Apurem-se apenas algumas linhas de similitude nestes dois romances.

Vamos começar pelo Tártaro, ou seja, pelo Inferno. No caso de Rulfo, como já anunciei, as dúvidas são praticamente nenhumas. Quando Juan Preciado putativo filho de Pedro Páramo vai a pedido da mãe procurar o pai que nunca conheceu, dirige-se para a cidade de Comala onde é suposto que se encontre o pai. Abundio que se cruza com Juan Preciado nas imediações de Comala e que ao despedir-se lhe sussurra, como se isso não tivesse importância nenhuma, que também é filho de Pedro Páramo, descreve nestes termos Comala, depois de Juan lhe ter dito que estava muito calor: “ — Sim, e isto não é nada — respondeu-me — Vai senti-lo ainda mais quando chegarmos a Comala. Aquilo está sobre as brasas da Terra, na própria boca do inferno”.

Ora no Deserto dos Tártaros em vez de uma viagem ao Inferno a estadia na Fortaleza de Bastiani, que à partida representa uma promessa e uma espera pela justificação e até pela glória, acaba por representar uma expiação e talvez que a pior das expiações pois não é vivida enquanto expiação mas enquanto esperança e só com o tempo o tempo mostra a sua face expiatória. Mas esta expiação representa um Inferno, mais subtil do que os Tártaros das tradições antigas ou o Inferno religioso do cristianismo por exemplo, o Inferno aqui reside no ludíbrio da espera, de que à espera de Godot é seguramente o grande paradigma, na literatura moderna (No sentido da Modernidade. Porém À Espera de Godot é de 1952 e a espera é de ludíbrio mas também de outras conotações, quiçá até religiosas, entre outras). O Inferno reside no facto de que tudo aquilo em que a vida se baseia, o tempo se encarrega de esvaziar até à última gota. Giovanni Drogo vive a agonia da espera absurda de qualquer coisa da qual ele tem contudo desde cedo a consciência de que não passa de um logro, contudo não foge, não desiste, persiste nessa espera insensata por coisa nenhuma e isso é que é o Inferno da sua vida. Ele espera o confronto adiado com os tártaros ali na fronteira do seu mundo com o desconhecido, assinalado pelo enigma do deserto, mas os tártaros não virão e o Inferno que, eles e a guerra que trariam consigo, poderia representar nunca chegará a acontecer, porque justamente ele vive já a experiência do Inferno, este mais indolor e insidioso. Este Inferno é o sem sentido da vida, é o absurdo da existência, é a insensatez que o tempo contém em si. Há entre a viagem de Juan Preciado ao inferno da memória através da mãe e também da digressão omnisciente do pai, naquilo a que Octávio Paz chamou uma peregrinação da alma em dor, e a estância inconsciente no Inferno por parte de Giovanni Drago uma espécie de homologia recíproca de dois infernos que se complementam o inferno que nos espera porque já nos habita ou vice versa, que nos habita como condição da existência porque ele é o nosso único destino.

Passemos agora ao tempo. Em Dino Buzzati temos um tempo que passa, está a passar e sente-se passar com algum desespero, o desespero de que o tempo traga o que teria prometido, mas tarda em cumprir, e não cumpre. Há um momento, mas não se sabe bem quando, até porque não é um instantâneo, é também ele um tempo que passa, que flui e que esclarece devagar, há um tempo dizia, em que se sabe que o tempo não trará o que esperávamos e que transformará a nossa espera numa odisseia insensata, numa espera absurda, infundada, ilógica. Entra-se então num tempo envenenado pela traição, sem inimigo identificável, pois o inimigo é o próprio tempo, agora vivido como simulacro. Mas Giovanni Drago não é traído senão por si mesmo. A sua espera é o logro que ele próprio urdiu e logrou. É claro que não o faz deliberadamente ou com uma consciência daquilo que o tempo esconde, pois isso é da ordem do insondável. Porém é sempre depois que sabemos que era insondável o que queríamos saber. Ninguém tem a consciência do tempo que passa. Quando Giovanni Drago resolveu instalar-se no lugar inapreensível do tempo que passa, nessas areias movediças, traçou o seu próprio destino.

Em Rulfo o desdobramento do tempo em dois tempos liga o passado ao futuro e é através dessa colagem que o tempo mostra a sua redundância. O romance narra-se na primeira pessoa, na pessoa de Juan Preciado e na terceira. Na terceira sob a forma do narrador omnisciente que é Pedro Páramo. É na junção, na esquina em que os dois tempos se encontram que o tempo se desmorona e mostra o seu interior, vazio.

Em ambos os casos há uma demanda à partida frustrada. Juan Preciado não encontrará o pai e não poderá realizar a promessa que fez a sua mãe à beira da morte desta. Para isso vai ao inferno de Comala, em vão. Só encontrará mortos e cinzas de um passado que nem sequer é seu. Giovanni Drago não encontrará o inimigo que aguarda que chegue através do deserto. O inferno não precisa de chegar até ele pois ele já o encontrou e já o habita. Quando morre, já tinha morrido. A solidão e desilusão em que morre presentifica agora a si, nesse momento implacável e sempre verdadeiro, o inferno em que há muito habitava mas em ausência, sob a forma de uma mentira inconsciente.

A vida não passa de um jogo e de uma brincadeira. De mau gosto.

20 Out 2016

O Regresso Impossível

Ferreira, Vergílio, Para Sempre, Lisboa, Bertrand, Lisboa, 1991.
Descritores: Romance, Balanço Existencial, Memória, 306 p.:21 cm, ISBN: 972-25-0268-9

[dropcap style=’circle’]V[/dropcap]ergílio Ferreira nasceu na aldeia de Melo, no Distrito da Guarda a 28 de janeiro de 1916 e faleceu em Lisboa no dia 1 de Março de 1996. Formou-se na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra em Filologia Românica. Em 1942 começou a sua carreira como professor de Português, Latim e Grego. Em 1953 publicou a sua primeira colecção de contos, “A Face Sangrenta”. Em 1959 publicou a “Aparição”, livro com o qual ganhou o Prémio “Camilo Castelo Branco” da Sociedade Portuguesa de Escritores. Em 1984, foi eleito sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras. As suas obras vão do neo-realismo ao existencialismo. Considera-se geralmente que o romance Mudança assinala justamente a mudança de uma fase para outra. Na fase final da sua carreira pode-se dizer que Vergílio Ferreira tocou as fronteiras de um puro niilismo. Em 1992 foi eleito para a Academia das Ciências de Lisboa e além disso, recebeu o Prémio Camões, no mesmo ano. Obras principais: Mudança (1949), Manhã Submersa (1954), Aparição (1959), Para Sempre (1983), Até ao Fim (1987), Em Nome da Terra (1990) e “Na tua Face” (1993). O autor faleceu em 1996, em Lisboa. Deixou uma obra incompleta, Cartas a Sandra, que foi publicada após a sua morte. A partir de 1980 e até 1994 foram sendo publicados os seus diários, com a designação de Conta Corrente. Deve ainda salientar-se a publicação do conjunto de ensaios intitulado O Espaço do Invisível entre 1965 e 1987.
O romance está centrado na reflexão da personagem principal, Paulo, que acaba de se aposentar. É por aí que o romance começa e é em torno da memória de Paulo que tudo gira. Uma memória por vezes caótica e aparentemente desordenada. Mas o narrador é paciente, as personagens é que por vezes não são. Paulo encontra-se só, neste fim de linha, e por isso as suas memórias são por vezes amargas e quase sempre desencantadas. Agora, acabada a vida activa, Paulo tem todo o tempo do mundo para recordar Sandra, a mulher da sua vida, a mulher que, tudo leva a crer, sempre amou. Contudo perdeu-a. Neste romance o sentimento de perda é avassalador. Na vida tudo se perde, o autor sabe-o muito bem, tudo se perde, até a própria vida. Sandra que morreu de cancro, a filha que não morreu, mas foi morrendo, mergulhada no mundo decrépito da droga; “um abismo afinal homólogo do abismo das sepulturas”. Depois passa também pelo romance a sua mãe que perdeu durante a sua difícil infância. Como consequência das perdas, há uma melancolia que corre pelas páginas do romance sem contemplações. 131016p14t1
A verdade é que tudo chega ao fim e esse fim é o desmentido brutal das ilusões que a vida engendra, as promessas de que a vida é fértil, pois é essa a sua natureza, contudo inexoravelmente as ilusões falecem, as promessas definham e no fim o fim chega sempre carregado de solidão, de uma tristeza sem remédio, de um pessimismo amargo. As próprias memórias adquirem um sabor a esterilidade, a algo que se não cumpriu.
Para Sempre é um livro sem piedade, sem paliativos, sem esperança, um livro pessimista, que nos rouba as últimas ilusões, e as rouba todas, salvo talvez as ilusões literárias, pois este livro mostra o poder fabuloso da escrita. Para sempre cultiva uma ironia desencantada, tão lúcida que nos procura interiormente e esburaca, e corrói e chega a provocar lágrimas redentoras.
Em Para Sempre Paulo regressa? Primeira questão pertinente. Resposta possível e desarmante: Paulo não regressa, pois não há regresso. Nunca há regresso. Em que direcção vai Paulo quando parece que regressa sem regressar de facto. Vai em direcção ao Fim. Só há uma direcção. A vida é vectorial. Os designados regressos são fictícios, são completamente ilusórios. Paulo vai para o futuro mas escolhe um lugar do passado. Em boa verdade até o lugar não é do passado, mas do futuro. Não existem lugares do passado. Esses lugares só foram do passado quando nós estávamos lá nesse passado que jamais regressa e a que jamais podemos regressar. O único passado aparece em súbitas explosões provocadas e aparece sob a forma de peças de um conjunto que já não é possível reconstituir ou refazer como um todo coerente. A própria narrativa está condenada ao malogro. Mas o mais interessante e até compensador intelectualmente é esse malogro. No malogro da tentativa se esgota a dimensão lúdica da narrativa. E quanto mais artificial e até irónico é o modo como o narrador convoca as peças do puzzle de que necessita momentaneamente para dar ao exercício da memória ordem, consistência real e verosimilhança, mais gozo dá porque o exercício mostra o seu falhanço; a narratividade é o exercício que inventaria perspectivas falhadas, tentativas para dar existência a pedaços vazios de tempo. É claro que momentaneamente o espaço parece habitado e um tempo hipostasiado parece decorrer e ocupar esse espaço como se fosse tempo, como o tempo decorre (decorria) quando ainda é (era) tempo no seu tempo próprio de ser; e só o é uma vez. O Tempo só é tempo uma vez, cada vez se percebe melhor a profundidade do apotegma heraclitiano, para lá da superficialidade em que o uso transforma todo o pensamento. O tempo só é tempo durante aquele momento mágico de o ser… depois parece existir uma outra vez quando rememorado, mas rapidamente se esvazia e mostra que foi irreal pois aquele momento existiu agora numa outra dimensão… a da memória. Este texto é penoso para mim porque assisto dentro de mim a uma mutação estrutural relativamente ao papel da memória e portanto à relação entre presente, passado e futuro. Houve um tempo em que eu cheguei a pensar que toda a nossa vida residia no passado pelo que tinha tendência a valorizar a memória que pode presentificar todo esse passado em que a vida se imobilizou como uma pedra num charco de lodo. O presente estaria sempre a transformar-se em passado ao ser vivido e a anunciar um futuro de que nunca sabemos nada. Mas tudo mudou. Hoje, para mim só conta o momento que passa, como no carpe diem horaciano ou no Eclesiastes (Coélet), além de que o que já passou, está definitivamente inerte pois a memória é impotente para lhe dar vida, ou trazê-lo ao teatro vivo; o mais que pode é convocar um fantasma, um espectro, um simulacro mesmo e é uma mentira a vida que se lhe atribui. Os grandes sentimentos de alegria e de dor, de prazer e felicidade ou sofrimento não são rememorados senão enquanto os factos que os justificaram, mas as sensações e as emoções sentidas, não o serão jamais, felizmente umas, infelizmente outras.
Por isso o Para Sempre não passa de uma farsa, mas de uma farsa sublime. É para mim o melhor romance português do século XX, mesmo melhor que o Finisterra, mas toda a sua genialidade reside no seu falhanço existencial quase da ordem do naive, no seu malogro monumental, na expectativa insensata, na ilusão da imortalidade. Desde o Para Sempre que Vergílio Ferreira se tornou num Demiurgo e até num Deus ex-machina completamente falhado; e tenho para mim que nunca a narratividade literária foi tão alto para se estatelar de forma tão aparatosa.
Se não é sobre o regresso, Para Sempre é sobre o quê? Já sabemos que é sobre a memória e nesse plano uma tentativa de reconstituição. Até aí não haveria pecado algum. Reconstituir é legítimo, a reconstituição é pacífica, pode estar mais perto ou mais longe da verdade mas isso só resulta de deficiências gnoseológicas, da ordem do acerto ou do erro e isso nunca envolve juizos morais, mas provavelmente, e isso é humano, o autor, que não é um narrador omnisciente mas que é o autor personagem não pode errar, pelo menos não pode errar deliberadamente e de modo grosseiro. Ele não quer apenas reconstituir, ele quer recuperar. Ele quer o impossível. Esse querer o impossível tanto pode ser perdoável como não, …
Convenhamos! Paulo sabe ao que vai, sabe de que é que se aproxima, sabe o que o espera, …as rememorações são fait divers ou esforços titânicos para dar sentido. A rendição não deveria estar já a montante, o autor através do seu fluxo de consciência quererá resistir ainda ou quererá sobretudo mostrar-nos a nós e só a nós a redundância e o absurdo. Parece por vezes que quer ajustar contas como se só ele tivesse adquirido a lucidez do trágico e então traz até nós os mortos para os matar com uma compaixão redobrada, como se isso fizesse diferença, como se a violência e o absurdo fossem menores filtrados à luz de uma metalinguagem filosófica que confere ao inelutável uma outra interpretação e este segundo lance hermenêutico suavizasse e pudesse haver um conforto no reconforto desta metanarrativa preparada e menos abrupta…

13 Out 2016

De Saramago a Steiner, uma mudança de paradigma

Saramago, José, O Homem Duplicado, Caminho, Lisboa, 2002.
Descritores: Identidade, Solidão, Representações sociais, Literatura, ISBN: 972-21-1507-3, 318 Páginas.
Cota: 821.134.3-31 Sar

[dropcap style≠’circle’]J[/dropcap]osé Saramago, poeta (Os Poemas Possíveis, 1966, Provavelmente Alegria, 1970, O Ano de 1993, 1975); dramaturgo ( A Noite, 1979, Que Farei com Este Livro?, 1980, A Segunda Vida de Francisco de Assis, 1987, In Nomine Dei, 1993, Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido, 2005) e romancista (Terra do Pecado, 1947, Manual de Pintura e Caligrafia, 1977, Levantado do Chão, 1980, Memorial do Convento, 1982, O Ano da Morte de Ricardo Reis, 1984, A Jangada de Pedra, 1986, História do Cerco de Lisboa, 1989, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, 1991, Ensaio Sobre a Cegueira, 1995, Todos os Nomes, 1997, A Caverna, 2000, O Homem Duplicado, 2002, Ensaio Sobre a Lucidez, 2004, As Intermitências da Morte, 2005, A Viagem do Elefante, 2008, Caim, 2009, Claraboia, 2011), conduziu uma vida intelectual e cultural, marcada pelo auto didactismo e pelo comprometimento social e político. Nasceu no distrito de Santarém, na província geográfica do Ribatejo, no dia 16 de Novembro de 1922, embora o registo oficial apresente o dia 18 como o do seu nascimento. Saramago, conhecido pelo seu ateísmo e iberismo, foi membro do Partido Comunista Português e foi director-adjunto do Diário de Notícias. Juntamente com Luiz Francisco Rebello, Armindo Magalhães, Manuel da Fonseca e Urbano Tavares Rodrigues foi, em 1992, um dos fundadores da Frente Nacional para a Defesa da Cultura (FNDC). Casado, em segundas núpcias, com a espanhola Pilar del Río, Saramago viveu na ilha espanhola de Lanzarote, nas Ilhas Canárias. Foi galardoado com o Nobel de Literatura de 1998. Também ganhou, em 1995, o Prémio Camões, o mais importante prémio literário da língua portuguesa. Saramago foi considerado o responsável pelo efectivo reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa.

Tertuliano Máximo Afonso é professor de História. Ao visionar um filme banal chamado “Quem porfia mata caça”, que um colega de matemática lhe recomendara, descobre que um dos actores é um sósia seu. Aliás, parece mais do que um sósia, parece ele mesmo, por várias razões. Um sósia, qualquer pessoa pode ter, mas a existência de uma outra pessoa que afinal parece que somos nós é mais perturbador. O argumento do livro é a sua demanda e depois o confronto com o actor que é o seu duplicado.
Afinal o professor de história Tertuliano Máximo Afonso o que descobre, num certo dia, é que é um homem duplicado, que ele é duas pessoas. Os desdobramentos dessa história são imprevisíveis. Mas, neste romance de José Saramago, o que está em jogo é a perda de identidade numa sociedade que cultiva a individualidade e, paradoxalmente, estabelece padrões estreitos de conduta e de aparência.
Os romances da fase final da carreira literária de José Saramago retratam uma época de transformações e de perdas. Em Ensaio sobre a cegueira, os personagens perdem a vista, sinal de um tempo em que todos parecem estar cegos. Em A caverna, os artesãos perdem o emprego, como consequência da hipertrofia das chamadas grandes superfícies. Em O homem duplicado, José Saramago explora a perda da identidade num mundo globalizado.
Tenho sérias e fundadas razões para considerar simplista esta perspectiva de que a globalização desfavorece em mau sentido a ideia de identidade, além de que não tenho pela ideia de identidade uma opinião tão favorável como parece ser a de Saramago neste romance temático, ideológico e ensaístico. Mas irei voltar ao assunto, mais à frente.
Em resumo:
Esta novela propõe uma reflexão sobre o estatuto do indivíduo, no quadro da sua auto representação social e num enquadramento muito comum nas sociedades modernas de solidão e isolamento. Sabe-se como a presença do outro é determinante para a realização do indivíduo, e eu diria a todos os níveis, psicológicos, sociais, culturais e económicos até. Sem a presença do outro a vida pode tornar-se um inferno.

A vida privada ou pessoal sem a alteridade e a vida pública ou social, que inclui a presença do outro, não faz sentido.
E é aqui que uma perspectiva crítica das críticas da globalização faz todo o sentido. Parece que a globalização representa um perigo que atenta contra as idiossincrasias locais, regionais e nacionais portadores todas elas de uma ideia específica e distintiva de cultura. Ora isto é muito bom quando por outro lado verificamos que “Por todos os lados, triunfam o regionalismo, o localismo, o nacionalismo… é o retorno dos vilarejos”(Steiner).
No Processo Civilizacional de Norbert Elias no capítulo dedicado à Sociogénese dos Conceitos de Cultura (Kültur) e Civilização (Civilisation), ficou para mim claro que a excessiva promoção da cultura pode resultar num reforço da Identidade mas também num fechamento, numa clausura na figura do Mesmo que se traduz invariavelmente por isolamente e desconfiança relativamente ao Outro. A globalização possui pelo menos essa potencialidade positiva: a de romper os insulamentos isolacionistas que são quase sempre fonte de discórdia, medo, tensão e, não raro, conflito e afrontamento.

Eu conheço uma frase de Saramago, que ele usava reiteradamente como alternativa à célebre locução salazarista do “orgulhosamente sós”. Devem recordar-se dela. Ora a locução de José Saramago rezava assim: “orgulhosamente nós”. Tive um dia a ousadia de, sem ofensa, lhe ter dito em público que não havia uma diferença significativa entre as duas proposições quer no plano dos seus significados ideológicos e até filosóficos quer no plano mais aberto de uma pragmática da comunicação. Atrevo-me até a considerar a frase de Saramago mais reaccionária que a frase de Salazar, conquanto seguramente não fosse essa a sua inteção, bem pelo contrário. Também me parece que a consideração do escritor é mais nacionalista e redutora e promove uma identidade mais hostil às figuras do cosmopolitismo e da alteridade. A primeira pessoa do plural que subentende o respectivo possessivo serve muito melhor o dispositivo de enraizamento, pré-figurado nas célebres expressões, curiosamente femininas, ‘da nossa terra’, ‘da nossa língua’, ‘da nossa raça’. “Nossa” ou “minha”, para o caso tanto faz; mas o “nossa” é até mais vinculativo no plano nacionalista, pois contém os elementos corporativos e holistas mais à flor da pele. Ora, a segunda pessoa do plural embora aparentemente pareça menos egolátrica, não só não o é menos como até o é mais, arregimentando de facto um conjunto de Eus, porém reduzidos na sua valência eventualmente subversiva e já a montante domesticados pela figura consensual e estática do rebanho/comunidade. Falta-lhe na génese etimológica e generativa a mobilidade e a diáspora que subentende o ego livre e (an) árquico.

Finalmente o tema da perda da identidade, implicitamente criticado, é por curiosidade um dos conceitos motores de uma filosofia tão ‘generosa’ como é a filosofia de Emanuel Lévinas, que chega a propor a alienação de si nessa atitude de vénia diante da transcendência que o Outro representa. Mas no limite não se trata de uma perda da identidade entendida segundo os modelos da ontologia levinasiana, mas simplesmente a submissão a uma hierarquia em que o rosto do Outro, enquanto epifania da transcendência, se me impõe como mandamento e submissão. A submissão consiste na deposição de um poder e não numa desindividuação ou na literal perda da subjectividade. Este ser que se demite dos seus poderes é simplesmente um ser mais nobre alimentado desde a raiz por uma Sagesse de l’Amour, para usar a expressão de Alain Finkielkraut, que rompe com a tirania claustrofóbica do il y a para ser plenamente Ser, já que recupera uma parte não despicienda da ontologia socrática de que o Ser só é Ser na condição de Ser para o Bem, plasmada no caso da ontologia levinasiana na asserção de que o bem só é o Bem se for para o Outro. Porque é o Outro e não o Mesmo que é a condição de possibilidade da minha humanidade. Por isso o Outro não é castigo, mas “Chance”.
Para mim, portanto, toda a ênfase colocada por Saramago na crítica da Globalização como fonte recente para as crises da identidade me parecem erradas e até pouco consentâneas com o que devia ser o internacionalismo das suas convicções políticas. Nesse sentido deve agradecer-se à globalização, contudo não a esta, refém do capital financeiro internacionalizado com as suas taras já sobejamente conhecidas, centradas numa idolatria pré-crítica e pré-moderna dos mercados; mas à globalização que aproxima povos e culturas em torno de valores de civilização comuns. É a ideia de Comum, tão cara a Agamben ou a Vattimo, ou a Negri, que regressa, agora com a globalização centrada numa ideia de Comunidade Global.

Porém o romance O Homem Duplicado não se esgota nesta problemática e a sua leitura justifica-se plenamente à luz de outras grelhas de descodificação, algumas bem modernas e pertinentes, como seja o tema da solidão. Mas vou-vos confessar que também neste domínio a posição de Saramago me interessa menos que por exemplo a posição de Georg Steiner com quem no plano ideológico me identifico muito mais. Ele disse numa entrevista isto:
“os jovens já não têm tempo… De ter tempo. Nunca a aceleração quase mecânica das rotinas vitais tem sido tão forte como hoje. E é preciso ter tempo para buscar tempo. E outra coisa: não há que ter medo do silêncio. O medo das crianças ao silêncio me dá medo. Apenas o silêncio nos ensina a encontrar o essencial em nós”.

Se trocarmos o silêncio pela solidão. e neste caso são intermutáveis, percebemos a mudança de paradigma da geração dele para as gerações dos nossos dias. Todo o processo de desdobramento intersubjectivo, todo o processo do achamento do ser passa por esta iniciação ao silêncio ou à solidão. O culto da solidão contém também a possibilidade de guardar, de não partilhar levianamente, de manter silêncio e Steiner di-lo lapidarmente: “Para mim, a dignidade humana consiste em ter segredos”. Por vezes o grande diálogo, a grande partilha, a confissão profunda, a cumplicidade, reside nesse desdobramento em que, como salientou Agamben, dialogamos com o nosso Genius. Hoje em dia as pessoas fogem da solidão a sete pés ou então vão a correr deitar-se na cadeira do psicanalista. O pudor, a reserva, a opacidade deixou de ter valor, e assim nos vamo convertendo numa sociedade de streap teasers mentais sem vergonha e sem escrúpulos.

6 Out 2016

Como o génio se derrama

Brun, Jean, O Epicurismo, Edições 70, Lisboa, 1987
Descritores: 132 p.:22 cm, Tradução de Rui Pacheco
Cota: A-4-2-88

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]alvez que pela primeira vez nas minhas fichas de leitura se imponham duas notas biobliográficas embora sumárias, uma para Jean Brun, grande autor francês da Filosofia Antiga e Epicuro, um dos mais geniais autores da Antiguidade, a quem desgraçadamente aconteceu a desdita de ter desaparecido a maior parte da sua obra que já chegou a se avaliada em perto de 300 volumes. E mesmo assim o seu nome, a sua obra e a sua influência pertencem à genealogia maior da História do Pensamento, o que não pode deixar de fazer pensar.
Comecemos por Jean Brun, que nasceu em 1919 e faleceu em 1994, tendo sido professor na Universidade de Dijon entre 1961 e 1986. Dedicou toda a sua vida ao estudo da filosofia antiga e cristã incluindo nesta última as grandes obras de Pascal e Kierkgaard.
Para além dos seus estudos sobre autores e épocas idas, ele dedicou-se também à crítica de uma tendência excessivamente lúdica e hedonista da Modernidade usando para o efeito o pessimismo pascaliano e a sua rejeição estrutural do “Divertissement” por oposição ao “Sérieux”. A obra designou-a por Le Retour de Dionysos. Quanto a Pascal, disse ele: “la postérité n’a pas pu le lui pardonner et s’est débarrassé de lui en en faisant un savant qui aurait malheureusement sombré dans un puritanisme maladif”. Mas o tema deste livro é o epicurismo e sendo assim passo, sem delongas, a Epicuro que terá vivido entre 341 a.C., ano em que nasceu em Samos e 271 ou 270 a.C., ano em que terá falecido em Atenas. É provavelmente o maior vulto da chamada filosofia helenística, portanto pós-socrática e tardia, correspondente à epoca de decadência do Império de Alexandre e da própria ideia e figura da Cidade-Estado. Em Samos foi discípulo do académico Pânfilo, mas a verdade é que não simpatizava muito com a filosofia Socrático-platónica. Foi muito mais sensível ao ensino de Nausífanes de Téos, discípulo de Demócrito de Abdera. Epicuro teria entrado em contacto com a teoria atomista — da qual reformulou alguns pontos. Em 306 a.C. Epicuro fundou a sua própria escola filosófica, chamada O Jardim, onde passou a residir com alguns amigos, na periferia da cidade de Atenas. Aí leccionou até à morte, cercado de amigos e discípulos e tendo a sua vida sido marcada pelo ascetismo, serenidade e doçura.
Para mim é um prazer falar e escrever sobre Epicuro, pela questão de que o facto pode alimentar o justiceiro que há em mim. Se há autor injustiçado na História da Filosofia, esse autor é Epicuro. Em larga medida essa injustiça, que roça a caricatura e a pura imoralidade deve-se ao ambiente moral do designado medioplatonismo, onde na desonesta diatribe se evidenciou Plutarco, publicista e divulgador de largos recursos, mas completamente falhado relativamente ao sábio de Samos. É a Plutarco que parece ter-se ficado a dever a expressão “Os porcos epicuristas”, a partir de uma análise moral que falha de alto a baixo.
Muitas vezes a culpa recai em Marcus Tullius Cícero, o célebre jurisconsulto romano. Ora aí está outra injustiça, esta menor, em cima da injustiça substantiva e relevante. Eu li, senão de fio a pavio, pois seria mais do que presunção minha, pura estultícia, tal a dimensão enciclopédica da obra do Cônsul originário da Gens Túlia, obra onde posso desde já evidenciar, as Tusculanae Quaestiones (Discussões Tusculanas), o De Finibus Bonorum et Malorum (Sobre a Finalidade do Bem e do Mal ou Sobre a Finalidade Moral), o De Natura Deorum (Sobre a Natureza dos Deuses), o Laelius de Amicitia (Lélio sobre a Amizade), e finalmente o De Officiis (Sobre os Deveres). Enumerei estas obras, estes tratados, de facto, pois que as compulsei avidamente numa certa época da minha vida de intenso e, perdoe-se-me a imodéstia, profícuo trabalho intelectual. Mas Cícero tem uma dimensão mítica a que não são alheios dois eventos: primeiro, o facto de que o seu tratado De Officiis ter sido o segundo livro a ser impresso na Europa depois da Bíblia de Gutenberg e, para mim, sobretudo o facto de que Santo Agostinho ter confessado dever-lhe a sua conversão ao Cristianismo a partir da leitura do tratado Hortênsio, sobre filosofia, e que entretanto se perdeu. Em página nenhuma a posição de Cícero sobre Epicuro possui a gravidade de muitas páginas de Plutarco e mesmo de muitos autores da Patrística e da Patrologia Latina.
Mas vamos regresar ao enorme Epicuro, que nos deixou a partir de uma obra escassíssima, pois quase tudo se perdeu, um ensinamento imorredoiro e de uma seriedade intelectual inultrapassável e talvez, no mínimo tanto, uma influência na cultura ocidental só ao alcance dos maiores como Pitágoras, Heráclito, Parménides, Platão, Aristóteles, Séneca, Plotino e Santo Agostinho; e só me refiro aos antigos. Há quem o considere, com a reduzida obra que se salvou, e assim chegou até nós (Carta a Heródoto, Carta a Pítocles, Carta a Meneceu e Máximas Vaticanas).
Aborrece-me um pouco, ter de elencar alguns autores que foram, influenciados decisivamente por ele, pois o excesso de citações, como diz e bem Julio Rámon Ribeyro é próprio de incivilizados. Em minha defesa direi que isto que eu fiz agora é que é citar pois antes limitei-me a referir e é isso que irei fazer a seguir, apenas porque a ignorância hoje em dia é tanta que se o não fizermos, muitas pessoas não chegam squer a fazer ideia daquilo que estamos a pretender. Farão ideia os meus contemporâneos, mesmo universitários e cultos da influência continuada de Epicuro na filosofia ocidental e na cultura em geral? Provavelmente a maioria saberá a influência de Epicuro sobre Gassendi, uma vez que este autor o refere explicitamente na sua obra como é o caso dos Syntagma philosophie Epicuri, cum refutationibus dogmatum quae contra fidem christianam ab eo asserta sunt (Resumo da filosofia de Epicuro, com refutação dos dogmas que fundados nisso são dirigidos contra a fé dos cristãos) e Animadversiones in decimum librum Diogenis Laertii, qui est de vita, moribus placitisque Epicuri (Refutações ao livro décimo de Diógenes Laércio sobre a vida, costumes e preceitos de Epicuro); Mas, ou Gassendi não leu Plutarco ou o anima algum preconceito contra a obra de Diógenes Laércio, pois eu não vi nela uma animadversão assim muito chocante.
Mas a presença de Epicuro aparece em grande força no Medioplatonismo, na Ética Pseudopitagórica, sobretudo em Metopo e Archita, no acervo ecléctico das filosofias da Renascença, mas também em Montaigne, Montesquieu e Rousseau, e com mais força ainda em Hobbes e Locke. Claro que ele aparece ao lado dos estóicos, ou dos académicos ou dos peripatéticos em todos estes lugares e autores que são na sua essência compaginações eclécticas. Porém, para máximo escândalo, ainda aparece no pensamento da igreja onde foi tão denegrido e, se querem saber, até no nosso Joaquim Agostinho de Macedo, que lhe faz um elogio sem reservas nas Cartas filosóficas a Attico, Lisboa: Impressão Régia e em O homem ou os limites da razão: Tentativa filosófica, Lisboa: Impressão Régia, ambas de 1815.
Vamos agora ao sumo. É verdade que Epicuro fala do prazer (hedone), até porque sabia do que falava, já que sofria de gota desde tenra idade e conhecia portanto a incongruência, a brutalidade irracional da dor. Em circunstância nenhuma da sua obra promove o prazer como por exemplo isso é feito na Escola Cirenaica de Aristipo de Cirene. Assim o seu “hedonismo”, e designá-lo mesmo com as aspas é já uma ligeireza e um abuso, não é nunca cinético e muito menos dinâmico. Toda a pragmática do prazer se desenvolve segundo uma lógica da evitação e portanto através de uma atitude negativista. Epicuro sabe que há três tipos de disfunções dolorosas e perturbadoras, a dor física, a dor que resulta do medo da morte e a dor que resulta do medo dos deuses. A sua resposta consiste apenas em aponia e ataraxia. Direi portanto, porque se impõe, que o prazer em Epicuro é catastemático. Ora katastema quer dizer condição, constituição. Sendo assim, o prazer para Epicuro não é um prazer adquirido, mas estático, essencialmente constitutivo, conatural, como se não fosse mais do que a natural e equilibrada saúde física e moral do indivíduo. No fundo, a perspectiva hedonista de Epicuro, tão reprovada pelos seus adversários, não seria mais do que a afirmação da mais ilustrativa norma da paideia grega: alma sã em corpo são. Note-se o que sobre isso disse um dos mais avisados dos seus estudiosos:
“katastematic pleasure differs from Kinetic pleasure in being continuous rather than intermittent. (…) also differs from kinetic pleasure in not having an object. A prominent Epicurean example of a katastematic pleasure is ataraxia, unperturbedness or tranquility, which is a pleasure without an object (…) Another prominent example of a katastematic pleasure in Epicurean literature is aponia, literally the absence of toil and hardship (ponos)” (Peter Preuss, 1994).
Portanto, o prazer em Epicuro é sempre definido pela negativa sob a forma de uma privação: o prazer existe quando o corpo não sofre e a alma não está perturbada.
Não cabe aqui desenvolver os argumentos carreados por Epicuro mas caberá enfatizar o modo de vida proposto por Epicuro para que melhor se possam combater as vicissitudes perturbadoras do mal. Chama-se Lathe Biosas o modo de vida que o sábio de Samos propunha. Lathe Biosas, isto é vida simples, discreta e afastada do bulício das multidões e da ambição, do fragor da luta pela afirmação, enfim numa palavra longe da Ubris. Como também os deuses, segundo Epicuro, depois de terem criado os mundos se afastaram para os espaços intergalácticos onde passaram a viver em total ociosidade e ataraxia, quer dizer imperturbabilidade, costuma considerar-se e bem a filosofia moral de Epicuro uma Imitatio Dei. É no mínimo chocante que a um filósofo como Epicuro alguns autores por pura má fé e sobretudo pelo materialismo gnoseológico epicurista, devido à influência fiel de Leucipo e de Demócrito, tenham produzido as atoardas que produziram, essas sim de verdadeiro mau gosto e miserável valor moral. Epicuro foi para os seus discípulos do Jardim um verdadeiro Deus além de uma asceta de eleição, aquele que dizia que para se ser feliz bastaria viver longe do excesso e reduzir a sua dieta alimentar a pão e a água; aquele afinal que colocava na phronesis, virtude cardeal da cultura grega clássica, a solução para todas as dificuldades existenciais.
Jean Brun faz justiça à grandeza de Epicuro e a sua obra constitui uma boa introdução ao filósofo do Jardim, mas atrevo-me aqui a dizer que a melhor introdução que li ao pensamento de Epicuro seja de Peter Preuss, Epicurean ethics: Katastematic hedonism, Nova Iorque: Edwin Mellen Press, 1994.
Uma nota final à glória de Epicuro e que é também muito esquecida ou simplesmente ignorada do grande público é que, e provavelmente não teria sido por acidente, os maiores poetas da antiguidade ou foram epicuristas ou tiveram epicuristas por mestres. Síron ou Siro, discípulo de Epicuro, foi mestre do grande poeta Virgílio. Lucrécio foi ele mesmo assumidamente epicurista e divulgador, na sua obra, da obra do mestre. Em o De Rerum Natura, dirige-se assim ao grande sábio: “Tu, ornamento do povo grego; primeiro a projectares uma radiante luz sobre a profunda escuridão e a mostrares a beleza da vida, a ti sigo-te eu passo a passo, não para rivalizar contigo, mas por querer imitar-te com amor e veneração” (De rer. nat. 111,1). Horácio é epicurista em toda a dimensão da sua obra, tanto quanto Lucrécio mas de forma mais subtil e teve igualmente por mestre um discípulo de Epicuro chamado Lúcio Orbílio Pupillo. Também Tibulo cultivou um estilo ligado aos mesmos valores existenciais de Virgílio e sobretudo de Horácio, ao qual não era estranho o culto da vida simples e retirada ligada às virtudes camponesas e rústicas da tradição romana e além disso frequentou o mesmo círculo de intelectuais e artistas do Círculo de Mecenas, onde pontificava Horácio, Virgílio, Ovídio e Propércio. Este último, contudo seria o menos epicurista dos poetas do século de Augusto.
Enfim, para a glória de Epicuro, estes poetas seriam mais que suficientes e entre todos se me permitem o grande Horácio. Deixo-vos com duas elegias dedicadas a esse imortal poeta latino, para que possais ver a sua grandeza e ver até onde o génio de Epicuro se derramou:
Até hoje não senti com nenhum poeta aquele mesmo êxtase artístico que desde a primeira leitura me proporcionou a ode horaciana. O que, aqui se alcançou é algo que, em certos idiomas, nem sequer se pode “desejar” . Esse mosaico de palavras, onde cada uma delas, como sonoridade, como posição, como conceito, derrama a sua força à direita e à esquerda e sobre o conjunto, esse „minimum‟ em extensão e em número de sinais, esse “maximum‟, conseguido desse modo, em energia dos signos – tudo isso é bem romano e, se se me quiser crer, “aristocrático par excellence‟. (Nietzsche)

Quero versos que sejam como jóias
Para que durem no porvir extenso
E os não macule a morte
Que em cada cousa a espreita,
Versos onde se esquece o duro e triste
Lapso curto dos dias e se volve
À antiga liberdade
Que talvez nunca houvemos.
Aqui, nestas amigas sombras postas
Longe, onde menos nos conhece a história
Lembro os que urdem, cuidados,
Seus descuidados versos.
E mais que a todos te lembrando, escrevo
Sob o vedado sol, e, te lembrando,
Bebo, imortal Horácio
Supérfluo, à tua glória…
(Ricardo Reis)

29 Set 2016

Exorcismo e simbolismo

Amaro, Ana Maria, 1984, O brinco do leão, Direcção dos Serviços de Turismo de Macau, Macau.
Descritores: Ciências sociais, Etnologia, Cultura, Macau, 204 p.:il.:23 cm.
Cota: 39(512.318) Ama

[dropcap style=’circle’]B[/dropcap]rinco do Leão não é mais do que a conhecida Dança do Leão. Ana Maria Amaro explora a valência da palavra Brinco que quer dizer diversão ou espectáculo jocoso. Ana Maria Amaro prefere assim a designação macaense para traduzir a expressão chinesa mou si, que quer dizer à letra, leão dançando ou dança do leão, em linguagem falada, pois em linguagem escrita a expressão é seng si e quer dizer leão acordado. É que, para que haja dança do leão, é preciso proceder antes ao cerimonial de acordar o leão, que consiste em pincelar de vermelho, com cinábrio pastoso, os olhos e a língua do pretenso animal.
Contam-se muitas histórias acerca das origens da dança do leão. O livro faz a narrativa, não sei se exaustiva, mas demorada, o suficiente de todas as tradições e separa com nitidez as tradições do Norte da China das tradições do Sul.
“No período da Dinastia Qing, a ópera chinesa e a Dança do Leão andavam de mãos dadas. Foram as companhias de ópera que navegavam nos lendários Barcos Vermelhos, quais ciganos do Delta do Rio das Pérolas, que deram a conhecer as modernas coreografias da Dança do Leão. Eram os actores que faziam desta uma arte do palco em Macau, Hong Kong e na região do Delta, mais tarde adaptada pelas escolas de kung fu”. Em Macau, só se enraizou nos costumes a partir dos anos 40 do século XX. E em Macau, de facto, a tradição está mais ligada à prática das artes marciais do que propriamente à ópera chinesa.
A dança que chegou a ser proibida em Hong Kong por via das suas ligações ao mundo do crime organizado, manteve sempre em Macau um carácter nobre e não belicoso. Além disso a Dança do Leão era muito apreciada pelas autoridades portuguesas que convidavam os grupos de acrobatas para participarem em cerimónias oficiais. Havia em Macau muitas colectividades desportivas onde se praticava ginástica e lutas chinesas, mas só a Associação dos Lanes de Peixe, a Lei Lau e a Lo Leong apareciam regularmente. E de todas elas foi a de Lo Leong que mais se destacou através do tempo. Depois de um período em que deixou de existir, a partir da segunda metade dos anos 60 reapareceu com novas coreografias inovadoras e arrojadas.
Um dos aspectos preliminares à dança é a cerimónia do acordar do leão. “Junto ao altar da trindade taoista protectora dos dançarinos do leão, na sede da associação, na Areia Preta, o mestre acende paus de incenso. Numa bandeja, um velho rizoma de gengibre, um símbolo de poder, é almofada de um novo pincel de caligrafia chinesa. Aí está o vermelho puro do cinábrio (chu sa, em cantonês, ou zhusha, em mandarim) que vai dar vida ao leão”. Só depois o leão é engravatado com uma fita de cetim, o que significa que o leão volta a ter a cabeça ligada ao corpo, pois como se sabe por causa de maus comportamentos o Deus degolou-o, mas a deusa da misericórdia Hum Iam (Kun Iam ?) ou Guan Yin em mandarim resolve perdoar-lhe e restabelece a ligação da cabeça ao corpo atando-lhe uma fita vermelha à cabeça. Esta cerimónia é acompanhada pelos toques de cinábrio, sendo que o primeiro deve ser na testa do leão: “É na testa que Pun lhe dá o primeiro toque de cinábrio, sob a forma de um tridente, bem no centro do espelho que tão bem caracteriza os leões do sul, afugentando os espíritos que ali vêem o seu reflexo”. Da testa passa-se aos olhos, para as orelhas, para o nariz e ainda para a língua. Em cada toque há um significado, assim o toque nos olhos traz de novo ao leão a clareza, e através do toque no nariz afastam-se do leão os maus espíritos e aproximam-se dele o bem e a justiça, etc. Em todo este ritual pode ver-se que o leão desperta e começa a piscar os olhos, a mexer as orelhas e assim por diante. Está agora preparado para a dança.
Deste modo recebe o novo espírito para trazer sorte e fortuna a quem o convida para dançar depois de salpicado com o orvalho das folhas, que acompanham o gengibre e o cinábrio no tabuleiro. Pun avisa que se o leão nunca tiver passado pelo ritual junto ao altar, o azar bate à porta daquele para quem dançar.
Uma das lendas mais revisitadas a propósito da Dança do Leão aplica-se sobretudo ao sul e terá sido esta que passou para Macau. Sabe-se que só o leão do sul possui uma cabeça peculiar com grandes olhos, um espelho na testa e um chifre no centro da cabeça. E pensa-se que esses adereços lhe terão sido atribuídos pela deusa Kun Iam no processo que já salientámos. Mas outra lenda associa o leão do sul a uma criatura que aterrorizava as populações. Essa criatura era designada por nien ou nian, o que em chinês se assemelha muito à palavra ano. E será por isso que a Dança do Leão faz parte obrigatoriamente das celebrações do ano novo chinês. A história interessa-me muito porque nela se procede a uma transmutação da lenda, do realismo animista para a pura representação simbólica. E é essa transformação que lhe confere uma dimensão culta e civilizada. O nien tinha já conhecido os poderes reais do leão, tendo fugido dessa vez espavorido. Voltou contudo para se vingar e as populações ficaram alarmadas pois não podiam contar com a providencial ajuda do leão que andava muito ocupado nessa época, ao que parece, a guardar as portas do palácio imperial. Uma vez que não podiam contar com o leão real para combater o grande inimigo, as pessoas engendraram um avatar do leão, agora sob uma forma mistificada e apenas simbolicamente representada. Ao reproduzirem a imagem do leão através de panos e bambus e ao lograrem também imitar os movimentos do leão através de uma dança plena de saltos e contorções conseguiram ludibriar o inimigo que de novo fugiu espavorido. E é esta forma representada e apenas simbolizada que para mim torna a Dança do Leão naquilo que ela é, um verdadeiro exorcismo de todos os perigos e uma encenação cultural e simbólica da luta do bem contra o mal. E só quando o simbolismo se substitui à crueza do mito, um povo e uma comunidade atingem a maioridade intelectual e a plena dignidade de uma civilização.

22 Set 2016

Exílio e Alteridade

Sales Lopes, Fernando, 2014, Geometria & Exercícios em Busca da Perfeição, Macau 2014
Cota: 821.134.3(512.318)-1 Lop

A.
Estes exercícios podem ir da pura retórica ou de uma busca e de uma demanda, mas visam sempre a perfeição.
Aquilo que Fernando Sales Lopes nos oferece tem mais o sentido de uma demanda, de uma procura interior mas também de uma partilha. Na voz de Sales Lopes fala a sua voz própria mas também uma experiência que o ultrapassa.
“Aprendi tudo como me ensinaram / (…) Mas não me ensinaram / (Talvez nem o soubessem) / o que sentimos / quando / tanto tempo depois / numa velha igreja em ruínas / se ouve rezar em português / (…)”.
A sua voz tanto se apaga diante daquilo que ele sente que mais do que ele o justifica, como faz sentir a sua presença, própria, idiossincrática. Ele pensa, ou pensará, que alguma realidade o justifica, quando eu penso que é o contrário que acontece, é o poeta, e no caso ele, que pode justificar e tudo justifica. E por isso para mim, na maior parte das vezes em que Fernando Sales Lopes utiliza a primeira pessoa do plural, em boa verdade refere-se, mas com pudor, à primeira pessoa do singular.
“Somos dos que nunca mais regressámos / desde a longa caminhada das Índias / Perdidos, para sempre, no interior de nós / (…)”.
O plural, vagamente majestático, e a ideia de uma pertença não negada limita-se a reforçar o destino próprio. A aventura colectiva serve apenas ou pelo menos essencialmente como caução para si mesmo, ainda que o poeta o não considere eventualmente nos seus pressupostos ideológicos. O nós tem tendência, progressivamente, a não representar senão o eu, mesmo que, por pudor insisto, se esconda por detrás de um plural.
“Se querem saber de nós, procurem // Procurem em todas as terras / onde o mar se espreguiça em largos areais / Procurem no sonho, onde não penetram”.
É claro que os poemas possuem uma referencialidade histórica e cultural, mas apenas enquanto pretexto para que se possa falar de si próprio sem constrangimento e por essa via este nós, mesmo que também se deixe ler assim, e essa ambiguidade é em si mesmo um recurso estilístico entre os demais, assume o desígnio de um eu desdobrado. E ao longo do livro sê-lo-á cada vez mais. Até não ser senão isso. É como se dentro do próprio texto, da sua narrativa implícita, assistíssemos à metamorfose do poeta cidadão deste mundo no demiurgo de um mundo outro e novo.

B.
Neste livro de Sales Lopes assistimos à narrativa dessa metamorfose, com avanços e recuos, como não podia deixar de ser. Os partos são difíceis:
1. A expressão do anseio
“O branco que só este sol me dá / Cedo. Muito cedo / Que o cinzento de sempre logo fará desaparecer // Deixem-me mergulhar nesta luz / Estou farto de grades”.
2. E depois a certeza
“Aquilo que eu vejo é só meu. Só eu o vejo assim”
3. Mas antes do Mundo, antes do seu nascimento há a angústia do nada
“Olho a profundidade / um imenso vazio / a totalidade do nada”
4. E há momentos cruciais
O momento e cito do “sono dos deuses / no infinito dos tempos” em que o demiurgo está “suspenso no vazio”. Ou o momento da dor
“Doloroso atingir o nada / viajando entre o tudo // pesa-me o caminho”
ou da perda
“é com a ausência que vivo / cresce a distancia das coisas / tudo é já intocável”
Pois é necessário que o criador se desfaça de um mundo para poder ganhar outro.

C.
Ao mesmo tempo que o texto dá conta do nascimento de um mundo mostra-nos a trama que o engendra. O que alimenta ideologicamente o mundo novo é a problemática da relação.
A tensão é, ao longo do livro, permanente entre o Eu Poético e o Outro e se algumas vezes esse Outro aparece configurado com as roupagens do Mesmo, em muitos momentos o Outro é expressão de pura alteridade. O elemento mais sedutor na poética de Fernando Sales Lopes, reside mesmo no facto de que o Outro é compósito e nele não se distingue, por vezes, o que é da ordem da mesmidade ou da alteridade. Como se para lá do Eu ou seja da sua ipseidade, não fizesse muito sentido a separação entre os dois pronomes pessoais que em geral se opõem: o Nós e o Eles. Todos são da ordem do Nós e todos são ao mesmo tempo Outro relativamente ao Eu que é Nós. E em certos momentos o próprio Eu se dilui no caudal caótico da indiferenciação.
“Deambulo por estas ruas sem esquadria / Veias aonde o sangue roça as margens / (…) / Confundo-me / Tudo e todos vivem em mim e eu sou já um deles”.
Na maior parte das vezes a procura do outro é orientada por Eros.
Como neste intenso poema:
“Queria navegar-te / rasgando canais / pela terra virgem // Desvendar-te os mistérios / numa orquídea lilás / explodindo em Budas / de ouro… // E depois… amar-te // Deslizando pelo veludo / da tua pele branca / e macia. // Na volúpia dos cheiros / sobre um imenso / pano laranja // Açafrão benzido / que te cobrisse / na loucura do êxtase // Misturados nas águas / que são o teu sangue / E na terra que a consome / até ao mar // Ao grande mar / dos nosso suados corpos”
Mas eros, pode ser amor ou amizade. A grande aventura da alteridade é a assunção de que o que promove a diferença é o abraço…
O outro transcende-me como facto do mundo, mas fá-lo de uma forma dinâmica. Ele provoca uma mutação na minha intencionalidade. A consciência recebe o outro como um facto insólito. A minha intencionalidade só pode ser imediatamente ética quando é estimulada pelo outro. Porque o outro é, apesar da sua inalienável alteridade, a erupção, fenomenologicamente outra, de mim mesmo. O outro sou eu separado da minha autoconsciência. O outro sou eu sem o abrigo da minha identidade. Eu torno-me abrigo para o meu semelhante porque ele coabita o meu mistério, a minha condição, porque ele, sou eu visto a partir de mim próprio, porque todos somos o outro. A nossa condição é sermos sempre o outro. Se nos desfizermos do outro é de nós mesmo que nos desfazemos.
“Eis-me de volta / dos tempos // do cravo / da canela / do gengibre / da pimenta // Ficou este abraço / que nos torna diferentes…”
Pois a alteridade deve persistir sempre.
E porque um dos mais poderosos referentes da diferença é a cor, Fernando Sales Lopes traz a cor à sua intenção fenomenológica e poética e o que nos diz é que as cores não comportam em si uma essência, a essência permanece, aquilo que é substantivo e axial sofre a mutação das cores para ficar inalterável (inalterado), ou seja não reduzido ao mesmo.
“Negro / Negro como os malabares / que te adoram // Negro / pelos fumos / dos incensos e óleos // As setas do teu martírio / escondem-se / sob colares floridos / grinaldas de abolim / com que te pagam / o milagre do amanhã // Levámos-te santo de Roma / transformaram-te em ídolo // Ganesh / duma outra fé”.
É a transcendência intrínseca do mundo que fundamenta a intencionalidade fenomenológica e é essa intencionalidade que fundamenta o papel dinâmico a priori da consciência. Por isso a consciência é fenomenológica mas também transcendental, pois que ela está desde sempre comprometida com o mundo que visa. Não há qualquer coisa como o mundo e a consciência, separados à maneira cartesiana. O mundo é mundo para a consciência e a consciência é consciência de e para o mundo.
É neste contexto que o outro aparece como figuração / encenação da transcendência. Eu viso-o porque sou visado. Eu respondo a um apelo, a uma provocação.
Este livro de Sales Lopes está cheio de momentos em que esta dramaturgia é consagrada. Mas eros predomina como intriga e tensão, uma vez que a inalienável relação com o Outro não é ontologicamente neutra. A relação com o outro não é Logos. A alteridade é Eros. A alteridade é talvez ainda mais. A alteridade é a sabedoria de Eros. Ora na génese desta sabedoria do amor está o desejo.
“Entreabertas, as janelas / rasgam as paredes de açafrão // Para lá das conchas / aqueles imensos olhos / negros, sedutores, / misteriosos / fixos e indiferentes // Por eles viajo / numa paixão sem tempo // Eu sabia que estavas à minha espera”. (P. 35)
Repare-se como aqui, neste poema que citei, aparece clara a ideia nuclear de que a alteridade é desejo e eros ou seja como eu disse acima, a ideia de que “Eu viso porque sou visado”. A ideia afinal de que eu respondo a um apelo, a uma provocação”. E essa ideia aparece neste caso reforçada por uma espécie de antecipação estruturante. De alguma maneira o mundo do Outro não é uma descoberta fortuita. O mundo do Outro é a descoberta de uma confirmação. Ora, só há confirmação e ao mesmo tempo descoberta se houver ambivalência. Ou seja se eu procurar o Outro com a certeza de que ele me espera. Ora, o que determina que eu saiba que ele me espera é o desejo de que assim seja. E reversivamente é essa convicção e certeza que reforça a determinação da minha procura e que desde logo, a montante a justifica. Ora só há uma possibilidade para esta confluência, para que eu possua a certeza de ir encontrar aquilo que eu procuro e que ressalve-se desde já é sempre da ordem da aventura; essa possibilidade enraíza no facto de que como eu disse acima: “o outro é, apesar da sua inalienável alteridade, a erupção, fenomenologicamente outra, de mim mesmo. O outro sou eu separado da minha autoconsciência. O outro sou eu sem o abrigo da minha identidade”.
Repare-se como de uma assentada confluem para a compreensão todos os elementos da alteridade, tal como aqui a concebo e que o texto poético de Sales Lopes confirma e cauciona:
— A coincidência entre o Mesmo e o Outro
e
—- ao mesmo tempo a sua inalienável separação.
e sobretudo
— o sentimento de aventura e perigo que o outro encerra.
Perigo que aparece apenas como aventura, desejo e epopeia sem regresso, portanto às avessas de todas as odisseias. Em Sales Lopes, no seu livro, prevalece um inequívoco sentido da errância, de uma diáspora sem fim.
No livro nós encontramos todas estas referências de forma explícita:
— “Quero navegar o universo / talvez por dentro de mim / e que fique escrita em verso / a grande viagem sem fim”.
— “Somos o vinho da loucura. / O herói e o vencido, da grande aventura / que é estarmos em todo o lado diferentes / mas nós!”
— “Deambulo por estas ruas sem esquadria / Veias aonde o sangue roça as margens / Tau-fu, tendas, t’chá, gente que me apetece abraçar / Confundo-me / Tudo e todos vivem em mim e eu sou já um deles”.
— Somos dos que nunca mais regressámos / desde a longa caminhada das Índias / Perdidos, para sempre, no interior de nós / (…).
Sublinho sem ambiguidades possíveis, este último verso “Perdidos, para sempre, no interior de nós”
O Outro é uma aventura sem fim. O outro está sempre aí, ganho e perdido, perdido mas procurado e ganho por que encontrado e logo por isso perdido. O Outro está e estará sempre dentro de mim. Então por que o procuro? Justamente porque é a mim que eu procuro. Procuro o Outro em mim, procuro-me a mim na diáspora essencial que me coloca diante do outro. Sempre em movimento, sempre em travessia. Não há paragem nem regresso. Mas se procuro o outro dentro de mim sei bem que não acabarei por encontrá-lo, mas nesta procura, nesta demanda corro risco de me perder eu próprio. Simplesmente à boa maneira levinasiana a alienação que aqui se esboça, o esboroamento da minha autarcia identitária é a grande chance no quadro justificativo do meu processo salvífico.
O Outro é um desafio permanente e eterno para o desejo. E, volto a repetir, a expressão desse desejo é e será sempre eros, mas em boa verdade só o desejo de eros, mais do que eros propriamente, exprime toda a tensão ontológica da relação com o outro. O desejo de uma casa e o seu inevitável abandono, a procura de um abrigo e a urgência da demanda, da aventura e do perigo. E ocorre-me aqui um poema de Pessoa … (Mensagem, III Parte, O Encoberto, Os Símbolos, Quinto Império). Excelente jogo de oxímoros e que começa assim:
“Triste de quem fica em casa / Contente com o seu lar”.

D.
Mas porque mais importante do que outro, é o desejo, como já disse, aproximo-me do fim com este notável poema, que o é enquanto poética mas também enquanto ideologia:
“Imagino-te / Sobre lençóis de seda “ numa explosão de vida // Nua, nessa etérea cama de ópio / do teu sorriso // Já vejo os crisântemos / abrindo em explosão de desejo // E o véu transparente / a descobrir-te // Sinto a pura sede do teu corpo // (…) // Alguém te pega no braço / e com um sereno sorriso / olhas-me numa despedida / sem regresso // (…) // Tu ficas, vestal branca, dentro de mim”
Todo o poema é sobre o desejo do Outro e a sua impossível realização.

15 Set 2016

Um Cântico Agónico e a Nostalgia do Tempo que Passa (continuação)

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esde o princípio se percebe que Lampedusa não é socialmente neutro e que portanto a sua tipologia social — e não nos podemos esquecer que o romance é tipológico — se insere na linha da captação dos chamados ideal tipos weberianos embora o sociólogo de eleição para o autor seja Vilfredo Pareto, com a sua Teoria dos Resíduos e da Circulação das Elites. Em qualquer dos casos o romance é histórico no plano factual, no plano do cenário escolhido e no plano do enquadramento epocal, mas profundamente sociológico na medida em que aparece centrado sobretudo nas transformações sociais que se dão nessa época da história. Claro que o romance poderia continuar a ser considerado apenas histórico na medida em que foi escrito nos anos sessenta do século XX e portanto algumas décadas já depois da eclosão da Escola do Annalles que se manifestou muito sensível às durações, às conjunturas e estruturas mas ainda mais às oscilações de conjuntura por um lado e sobretudo às grandes mutações estruturais (A Escola dos Annalles é muito sociológica). Essas épocas de grande mudança são de uma enorme riqueza, pois os arquétipos na sua oscilação fazem oscilar tudo à sua volta. As transformações sociais e económicas entrelaçam-se com transformações culturais e de mentalidade e até com profundas revoluções no gosto e com as actividades estéticas. Lampedusa foi de uma enorme coragem ao escolher a época que escolheu, ao escolher o tema que escolheu, no enquadramento histórico em que o fez, ao escolher as personagens que escolheu, portanto na decisão que teve de elaborar um romance genuinamente tipológico. Claro que não é caso único na História da Literatura, e bastaria, sendo parcimonioso nos exemplos, referir apenas no mesmo século o Homem Sem Qualidades de Musil ou Os Sonâmbulos de Broch, ou mudando de século, O Vermelho e o Preto de Stendhal, e até As Ilusões Perdidas de Balzac. Embora o paradigma por excelência e o clássico dos clássicos do género, seja o Dom Quixote de la Mancha de Cervantes.

No plano do conteúdo factual em sentido estrito o romance narra uma parte da vida de uma família aristocrática e em larga medida feudal, onde contudo se evidencia a personalidade fascinante de Fabrizio Corbera, Príncipe de Salinas. Na pena de Lampedusa, Fabrízio representa uma espécie de anti-herói ou de anti-clímax, na medida em que assiste de forma indolente à decadência do modelo social que protagoniza e da estrutura política que a suporta, a Monarquia Absoluta, embora anémica, dos Bourbons. O cenário é a Sicília, região italiana imobilizada no tempo e tão idiosincrática que todos ou quase todos, seja qual for a classe social, a pensam inviolável nos seus pressupostos socio-culturais. Uma espécie de inércia atávica que não é indissociável do clima e da história, mantém ou parece manter inalteráveis os quadros de referência mental, embora saibamos, historicamente falando, que o tempo esse grande escultor vai modulando lentamente outras realidades. Contudo Tancredi, sobrinho órfão do Príncipe Salinas, o Tiozão, é de facto certeiro e premonitório quando diz ao tio a frase mais célebre do livro: “Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude“. A frase fica melhor invertida e foi talvez nessa forma mais incisiva que se imortalizou: “É preciso que tudo mude para que tudo fique como está”, quer dizer, que tudo fique na mesma. Com o tempo o primeiro tudo acabou por dar lugar ao mais moderado e sensato, “… que alguma coisa mude …”. E assim o apotegma gnómico acabou por cristalizar na forma: “É preciso que alguma coisa mude, para que tudo fique na mesma”. O tempo histórico é o abrasador período do Risorgimento e da Unificação Italiana tardia sob a liderança de um condottieri de nome Garibaldi, mas sob a égide da Republicana Jovem Italia de Mazzini e Cavour. Porém, no ambiente já de si abrasador mas indolente da Sicília nada parece mudar o que permite ao Leopardo continuar a mover-se com elegância entre os chacais.

A personalidade olímpica de Fabrizio Corbera, a sua oposição de fundo à mudança, o seu conservadorismo aristocrático constitui o elemento chave do romance para o mal e para o bem. Passo a explicar-me melhor. Compreende-se que um aristocrata de meados do século XIX, membro de uma elite já completamente obsoleta e anacrónica se oponha a qualquer transformação que seria e representaria sempre o princípio do fim. Esta atitude contém um elemento de galhardia e grandeza, mas também de insensatez. Mais avisado e astucioso é o seu sobrinho, Tancredi Falconeri, que de resto não tem património próprio e vive a expensas da magnanimidade do tiozão, o Grande Predador solitário, o Leopardo. Daí que seja de Tancredi e não de Fabrízio a célebre frase citada que também, só por si, imortaliza o livro.

No plano da estrutura narrativa a opção pelo narrador omnisciente com um pé fora e outro pé dentro dos factos e da época permite um realismo e uma verosimilhança muito ambivalente e nesse plano muito sedutora. E é esse estratagema que permite conferir ao mesmo tempo realismo e romantismo às personagens. No plano estilístico a obra de Giuseppe Tomaso di Lampedusa tem um poder descritivo arrebatador usando de uma forma inédita, penso eu, uma forma de intertextualidade entre os elementos físicos do décor e os elementos simbólicos, associados, para reconstituir a materialidade tridimensional da natureza da realidade e dos elementos artísticos decorativos e tudo isto através de um jogo tão sedutor que se torna por vezes abstracto e irrepresentável. Nesse domínio o autor logra uma obra quase inultrapassável no plano do esteticismo decadentista, aqui e ali com alguns desnecessários excessos barrocos. O início do romance em que o autor usa os murais dos seus salões como signos que pontuam o ritmo da descrição e do discurso é para mim sinceramente digno de figurar numa antologia de primeiros capítulos de todos os romances que conheço. Permitam-me um parágrafo só para estimular o desejo:
“«Nunc et in Nora mortis nostrae. Amen.»

Terminara a oração quotidiana do rosário. Durante meia hora, a voz pacata do Príncipe tinha evocado os Mistérios Dolorosos; durante meia hora, misturaram-se outras vozes tecendo um murmúrio ondulante em que se destacavam as florinhas de ouro de palavras invulgares: amor, virgindade, morte; e, enquanto durava aquele murmúrio, o salão rococó parecia ter mudado de aspecto; até os papagaios que abriam as asas irisadas na seda da tapeçaria tinham o ar de intimidados; a própria Madalena, no meio das duas janelas, mais parecia uma penitente em vez de uma bela louraça, distraída sabe-se lá com que devaneios, como se via sempre. Agora, tendo-se calado a voz, tudo reentrava na ordem, ou na desordem, habitual. Pela porta por onde tinham saído os criados, entrou abanando o rabo o alão Bendicò, magoado com a sua exclusão. As mulheres levantavam-se lentamente, e o oscilante refluir das suas saias a pouco a pouco ia deixando descobertas as nudezes mitológicas que se desenhavam no fundo leitoso da tijoleira. Só restou coberta uma Andrómeda a quem a batina do padre Pirrone, retardado pelas suas orações suplementares, impediu a visão do argênteo Perseu que sobrevoando as vagas acorria em seu auxílio apressado pelo antegozo do beijo. No fresco do tecto despertaram as divindades. As alas de Tritões e de Dríades, que dos montes e dos mares, por entre nuvens cor de framboesa e ciclame, se precipitavam sobre uma transfigurada «Concha de Ouro» para enaltecer a glória da Casa de Salina, pareceram de repente colmadas de tanta exultação, que se descuravam as mais simples das regras da perspectiva; e os deuses maiores, os Príncipes dos Deuses, Júpiter fulgurante, Marte carrancudo, Vénus lânguida, que haviam antecedido a turba dos menores, sustinham de bom grado o brasão azul-celeste com o Leopardo. Eles sabiam que, agora e durante vinte e três horas e meia, retomariam a posse da villa. Nas paredes, os macacos recomeçaram a fazer gaifonas às catatuas. Por baixo daquele Olimpo palermitano, também os mortais da Casa de Salina desceram à pressa das esferas místicas(…)”.

Acima deixei passar impune a questão dos chacais, é chegada a hora de voltar ao tema. É Giuseppe Tommasi di Lampedusa, ele próprio um aristocrata, quem assim designa a classe ascendente, a burguesia, através de alguns dos seus membros, mais fáceis de caricaturar, como é o caso de Dom Calogero, pai da bela e sensual Angelica. Angelica que se virá a tornar a esposa de amor e conveniência do azougado, sedutor e pragmático Tancredi.
Ora, esqueçamos lá agora por um bocado a figura altaneira e imponente do Príncipe de Salinas e o carácter rapace e agiota de Dom Calogero e centremo-nos momentaneamente no processo histórico real, tal como o conhecemos através de muitas narrativas quer no plano dos documentos da época quer no plano das reconstituições globais, analíticas, sintéticas e racionalmente compreensivas. Quem eram afinal os chacais!? Quem levou a exploração sobre o mundo camponês até ao patamar da mais torpe ignomínia. Quem é que abusou de forma tão imoral dos mais desprotegidos, destruindo-os nas suas capacidades vitais e atentando de modo infame contra a dignidade de seres humanos reduzidos a coisas sem préstimo e sem quaisquer direitos, ultrapassando até o limiar da racionalidade pois o excesso de exploração e de humilhação foi tão grave que amenizando os camponeses feriu de morte a fonte das suas próprias rendas. Isso foi algo que Marx teorizou muito bem: a sobrexploração torna-se contraproducente e irracional. Mas foi o que aconteceu um pouco por toda a Europa ao longo do Antigo Regime. Portanto quem foram os verdadeiros chacais senão essa aristocracia terratenente que asfixiou a própria fonte dos seus rendimentos levando o seu parasitismo até ao limiar da destruição do hospedeiro que o alimentava. E é por isso que o aristocrata Lampedusa ao construir como paradigma do fim de uma época uma figura tão romanticamente concebida de algum modo falha o scopo da perfeição. Não se pode falhar tanto a realidade e a verdade histórica. De algum modo, é uma questão de decência. Claro que existiram os Príncipes de Salinas e claro que existiram também os Calogeros, mas como no romance só aparecem estes, eles tornam-se paradigmáticos dos grupos sociais que representam e é nesse sentido que o romance no plano tipológico fica empobrecido e algo maniqueísta. E em termos históricos, pode-se dizer que falseia a realidade. E é injusto! O mundo não era assim. O mundo de Antigo Regime era bem diferente e as relações entre os terratenentes feudais cobradores de rendas eram muito mais cruéis, desumanas e rapaces também à sua maneira e finalmente as relações entre os camponeses miseravelmente sobrexplorados e os seus senhores não eram nada idílicas como o romance faz subentender. Com todo o respeito pelos Príncipes de Salinas, que os havia, pululavam indivíduos pérfidos e prepotentes que exploravam de uma forma vergonhosa e ignóbil os camponeses e que os tratavam pior do que tratavam os animais. Lembrem-se dos mecanismos de tortura que esses senhores possuíam e utilizavam nos seus cárceres privados no exercício de uma justiça privada também. Lembrem-se de filmes como O Amante da Rainha onde um camponês é encontrado morto num instrumento de tortura e de morte, designado por O Cavalo, ou como no Rob Roy, os aristocratas ingleses abusam das mulheres de uma aldeia praticamente nas barbas dos maridos e do filhos. Lembrem-se do direito de pernada do qual há provas em França até 1789 e que na nossa querida Sicília terra de Leopardo, chegou até meados do século XIX. Será que dá para fazer uma pequena ideia para os camponeses sicilianos em pleno século XIX, a humilhação de terem de oferecer as filhas e futuras mulheres ao senhor feudal. Afinal quem eram os chacais? Claro que alguns autores têm vindo a procurar reduzir o alcance deste abuso monstruoso numa Europa já tão humanizada e civilizada e eu próprio admito que não fosse uma prática corrente, mas que há fundamentos factuais ao nível das fontes textuais, lá isso há. Mesmo que não fosse, no final do século XVIII e na primeira metade do século XIX, uma prática generalizada… seria sempre, como foi, infame.
Volto no entanto a um ponto importante e faço-o para que estes últimos parágrafos não possam ser mal entendidos, O Leopardo de Giuseppe Tommasi di Lampedusa é uma obra prima e um dos meus livros preferidos. Pois que, com o senão de ser uma abordagem parcial, conta magistralmente o lado decadente de uma aristocracia moribunda a estrebuchar, no caso com dignidade, contra os ventos inexoráveis da História. Há sempre algum lirismo e alguma melancolia em todas as épocas que se confrontam com os seus demorados processos de agonia. Vem por vezes ao de cima a par do desespero um profundo sentimento da beleza que pode haver na fragilidade humana e também na sua grandeza caída. O Príncipe de Salinas irá prevalecer sempre, e Tommasi di Lampedusa é o responsável, como o que de melhor podem produzir as aristocracias e como um exemplo de como podem cair os gigantes.
E por aqui me fico!

8 Set 2016

Um cântico agónico e a nostalgia do tempo que passa

Lampedusa, Giuseppe Tomasi di, O Leopardo, Editorial Presença Lisboa,1995.
Descritores: Literatura italiana, Aristocracia, Decadência, Unificação de Itália, Garibaldi, Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo 210 p.:23 cm, ISBN: 972-23-1876-4,
Cota: 821.131.1-31  Lam

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ode-se gostar de um texto, no caso concreto, um texto de ficção por muitos motivos. Eu, em particular, valorizo todas as possibilidades lúdicas ou intelectuais de uma narrativa, a saber a arquitectura, o estilo, a capacidade efabulatória do narrador ou dos narradores, a composição dos personagens, o poder narrativo dos diálogos, a capacidade que um autor pode ter para organizar a intriga e os desenvolvimentos temáticos da história através do dinamismo próprio das múltiplas relações dialógicas dos personagens e finalmente, last but not least os ingredientes formais e puramente estéticos concentrados na palavra e na frase. Não há romances aos quais possamos conceder o estatuto de excelência em todos estes domínios simultaneamente. Há contudo romances que se aproximam deste estatuto e que digamos assim podem ser classificados com distinção em mais de 75 por cento dos itens considerados. Quando isso acontece estamos na presença de uma obra prima e portanto de uma obra de génio. O Leopardo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa conta-se entre o reduzido número de obras que alcançaram esse estatuto. Como se costuma dizer em gíria, falha apenas o pleno por um pequeníssimo pormenor. Mas acontece que por vezes o que parece apenas um pormenor, revela-se, com o tempo e através de um aprofundamento cada vez mais complexo um pormaior, se me faço entender.
Momentaneamente, mudando de assunto, deixando a questão do pormenor lá mais para o fim, vou escrever sobre este romance como se ainda estivesse no final do século passado, quando depois de o ter lido pela primeira vez, exultava de entusiasmo e me faltavam os adjectivos encomiosos, laudatórios e apologéticos para descrever o que pensava dele.
Para que melhor me compreendam devo dizer que romances assim não são o privilégio de nenhuma tradição em especial, de nenhuma época, de nenhuma literatura nacional particular e também não de nenhum estilo ou mesmo dimensão. Se é verdade que para exemplificar o que disse relativamente à dimensão me apetece imediatamente citar o Guerra e Paz ou a Ana Karenina, de Tolstoi, por motivos óbvios, a verdade é que não é menos justa a referência a um romance moderno de dimensão média como a Conversa na Catedral de Mário Vargas Llosa ou ainda a referência a um texto de dimensão muito reduzida e de uma modernidade fulgurante como é o Pedro Páramo de Juan Rulfo, fundador em larga medida do Realismo Mágico sul americano e na mesma medida precursor de obras primas como os Cem Anos de Solidão de Gabriel Garcia Marquez, Heróis e Túmulos de Ernesto Sábato, Todos os Fogos o Fogo de Cortázar, O Paraíso de Lezama Lima, e francamente muitos outros, que se os citasse a todos seria fastidioso. O que pretendo portanto é que não há e nunca haverá uma forma para as obras primas e que não será nunca por aí que lá mais à frente procederei a uma pequena revisão deste Leopardo, que porém e aviso não será minimamente suficiente para o retirar da minha galeria das obras literárias da minha vida.
Voltando aos grandes paradigmas literários, para mim as figuras patriarcais da tradição que referi, a do realismo mágico, serão sempre Jorge Luís Borges e Rulfo, a que já me referi, contudo, Borges eu coloco-o à margem não porque não tenha tido influência, mas porque a sua obra tal como a de Fernando Pessoa constitui toda uma galáxia literária. Mais do que autores eles são, isto é foram, oficiantes litúrgicos do fenómeno literário e criadores de uma mitologia complexa e são, nesse sentido, inclassificáveis. De dimensão maior ou menor, estes autores e estas obras possuem todos os ingredientes que referi acima e em alguns casos nem precisaram de ser essencialmente romancistas.
E agora para que melhor me percebam ainda, atrevo-me a citar alguns grandes romances que não possuem todos os atributos de excelência a que me referi, percebendo-se bem porquê, para quem os leu, claro: Desde logo o Ulisses de James Joyce a que manifestamente falta virtuosismo poético. De uma maneira geral, as grandes obras do chamado fluxo de consciência às quais falta o fulgor dialógico de muitos romances, salvo talvez O Som e a Fúria, embora possam sobrar outros atributos: a capacidade descritiva, os verdadeiros frescos vivos dos lugares e das situações tanto as presentes como as rememoradas, como é o caso, em particular, das novelas de Virgínia Woolf, mas sobretudo a novela Mrs Dalloway ou a novela Até ao Farol. As gigantescas sinfonias que constituem A Morte de Virgílio e Um Homem Sem Qualidades de, respectivamente, Herman Brock e Robert Musil, são exemplos de fantásticos monumentos literários que porém não atingem o patamar da excelência em todos os itens considerados, embora se excedam noutros, em compensação. A Morte de Virgílio é pobre em estruturas dialógicas, O Homem sem Qualidades não se transcende no poder de efabulação. Ambos se concretizam sobretudo na composição social, mental e intelectual de uma época, o que não é pouco, mas não possuem o charme ficcional e efabulatório das obras primas do género e o melhor exemplo será talvez A Montanha Mágica de Thomas Mann.
Se, então, a perfeição não existe, e trata-se de uma opinião subjectiva e muito pessoal, um exercício intelectual interessante, simétrico do discurso elegíaco e laudatório, seria para cada obra verificar não os motivos da sua grandeza e da genialidade do autor, mas os defeitos que impedem que atinja a perfeição absoluta. Vou por isso deter-me agora um pouco nos eventuais defeitos de O Leopardo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, se é que os tem e eu penso que de facto tem. Devo proceder a uma declaração prévia: a minha formação no domínio da História, sendo este romance histórico em larga medida, assim como as minhas convicções ideológicas no plano sociológico em estreita conexão com a natureza e dinâmica dessas transformações sociais, acrescentada à minha concepção do conceito de época história com as suas variáveis complexas; torna-me particularmente sensível a alguns aspectos idiossincráticos na caracterização das personagens a que o autor não consegue fugir e eu também não. São escrúpulos e preconceitos que se aceitam no autor, mas por maioria de razão já não na análise crítica que naturalmente possui uma distanciação maior e uma perspectiva mais global.
Devo deixar já muito claro que as minhas análises se situam hoje muito longe da vulgata marxista da Luta de Classes e que procuro combinar alguns elementos de ordem marxiana, mínima, com a predominância das perspectivas braudelianas e em particular de um historiador que me marcou muito no plano teórico e que foi Paul Veyne, mas atrevo-me a não deixar de lado o grande teórico dos Testamentos e das Ordens como foi o católico, nem marxista, nem fiel aos Annalles, Roland Mousnier, por exemplo, que eu ainda hoje levo muito a sério. Tudo isto, entre muitos outros, como é natural.
(continua)

[dropcap style≠’circle’]G[/dropcap]iuseppe Tomasi di Lampedusa, aristocrata siciliano, veio ao mundo a 23 de Dezembro de 1896 em Palermo, e partiu deste mundo no dia 23 de Julho de 1957. A última cidade onde foi visto foi em Roma, na cidade eterna. Entre as suas obras conta-se o romance Il gattopardo (O Leopardo) sobre a decadência da aristocracia siciliana durante o Risorgimento. Em boa verdade à parte isso escreveu pequenos ensaios e uma recolha de textos em prosa, sem grande significado. Esta é verdadeiramente a sua obra. Autor de um só livro, apetece dizer, com propriedade. Deste célebre romance ficou a não menos célebre expressão, infinitamente citada e glosada: Algo deve mudar para que tudo continue na mesma, sugerida pelo príncipe de Falconeri, Tancredi, seu sobrinho. Impõem-se duas informações. Em primeiro lugar a ideia de que o leopardo fez parte da fauna selvagem de Itália e foi progressivamente dizimado, até à sua completa extinção, o que faz do título da obra uma parábola da decadência da classe social de que faz parte o protagonista, Fabrizio Corbera, Príncipe de Salinas. A monarquia e os aristocratas eram partes de uma raça em extinção. A outra informação prende-se com a adaptação da obra ao cinema levada a cabo por Luchino Visconti, com a designação homónima de O Leopardo, e que projectou ainda mais o romance, talvez para um patamar, que apesar da excelência do texto, o romance não mereça.
Em 1959, foi-lhe atribuído o Prémio Strega e, em 1963, como já disse, o romance foi imortalizado no cinema por Luchino Visconti, com Burt Lancaster, Alain Delon e Claudia Cardinale nos principais papéis. Giuseppe Tomasi di Lampedusa, duque de Palma e príncipe de Lampedusa, dedicou-se à escrita apenas nos últimos anos da sua vida, no tranquilo isolamento da sua propriedade, sem contacto com o meio literário. O Leopardo, a sua obra-prima, foi o único romance que escreveu. Inicialmente recusado por duas grandes casas editoriais italianas, viria a ser publicado um ano e meio após a morte de Lampedusa, tendo um sucesso imediato junto do público e da crítica, que o considerou uma das maiores obras literárias do século XX. Traduzido em todas as línguas, O Leopardo é já um clássico incontornável da literatura.

1 Set 2016

Minimalismo existencial

Carver, Raymond, Queres Fazer o Favor de te Calares?, Teorema, Lisboa 1989
Descritores: Literatura norteamericana, Contos, Stories without story, minimalismo, Tradução de Carlos Santos, 258 p.:21 cm, 972-695-072-4
Cota: 821.111(73)-32  Car 

[dropcap style=’circle’]R[/dropcap]aymond Carver nasceu no dia 25 de Maio de 1938 em Clatskanie no estado de Oregon e faleceu a 2 de Agosto de 1988 em Port Angeles, Washington DC. Cresceu em Yakima, Washington. Carver estudou por um tempo com o escritor e teórico John Gardner na Chico State College em Chico, Califórnia. Publicou um grande número de contos em diversos periódicos, incluindo The New Yorker e Esquire, contos que mais tarde foram reunidos em livros. As suas histórias têm sido incluídas nas mais importantes colecções norte-americanas, como Best American Short Stories and O. Henry Prize Stories. A escrita de Carver é normalmente associada ao minimalismo e ao chamado realismo sujo (Dirty Realism). O seu editor na Esquire, Gordon Lish, foi fundamental no processo da escrita minimalista de Carver. Por exemplo, quando Gardner aconselhava Carver a usar 15 palavras ao invés de 25, Lish aconselhava Carver a usar 5 no lugar de 15. Durante este tempo, Carver também submeteu as suas poesias a James Dickey, então editor de poesia da Esquire. Da sua obra eu destaco os contos que em Portugal apareceram em colecções com títulos muito originais: Queres Fazer o Favor de te Calares, De Que Falamos Quando Falamos de Amor, além da Catedral, e de Três Rosas Amarelas, …

Por falar em Três Rosas Amarelas, vem-me à ideia a ideia de que Anton Tchekhov deverá ter tido uma enorme importância na arte de contar de Raymond Carver. O conto Três Rosas Amarelas é provavelmente um dos melhores contos de Carver. O conto glosa os últimos dias de vida de Anton Tchekov, na cama de um hospital em Badenweiler, na Floresta Negra. A sua mulher, Olga, narrou assim os momentos finais do grande escritor russo: “Anton sentou-se extraordinariamente erecto e disse em voz alta e clara (embora ele não soubesse quase nada de alemão): Ich sterbe (“Estou morrendo”). O médico acalmou-o, pegou uma seringa, deu-lhe uma injecção de cânfora e pediu champanhe. Anton tomou um copo cheio, examinou-o, sorriu para mim e disse: ‘Fazia um bom tempo que não bebia um copo de champanhe’. “Ele bebeu, e inclinou-se suavemente para a esquerda, e eu só tive tempo de correr em sua direcção e de colocá-lo na cama e chamá-lo, mas ele tinha parado de respirar e estava dormindo tranquilamente como uma criança”. Esta é a narrativa de Olga nas suas memórias, mas o modo como Carver narra os últimos momentos de Tchekhov, no conto referido, é antológico da arte narrativa da história curta, conto, ou o que se lhe quiser chamar. Penso que o conto é uma homenagem, mas também a confissão de uma dívida.
Agora porém vou escrever sobre esta colecção de histórias curtas (prefiro chamar-lhes assim) que o escritor designou Queres Fazer o Favor de te Calares. Porquê voltar a Carver? Porque é de facto uma enorme paixão literária e porque algumas coisas ficaram por dizer no contexto da Catedral. Aproveitarei por partilhar outras ideias que penso serem oportunas. Do tipo, ‘não digam que eu não vos avisei’, passe a aparente imodéstia.
Carver tinha esse jeito peculiar para descobrir grandes títulos e de algum modo criando uma tipologia própria; sobretudo este e o De que Falamos Quando Falamos de Amor. Quando se pensa intitular qualquer colecção de textos, poemas ou contos ou mesmo ensaios, ocorre-nos sempre a ideia de descobrir um título assim, prosaico e minimalista nas intenções denotativas e chegamos a falar mesmo de títulos à Raymond Carver. Queres Fazer o Favor de te Calares é já em si um programa e um tipo de efabulação que se anuncia na banalidade discursiva que o título subentende. É o quotidiano que se vislumbra e as suas pequenas querelas, que porém são as maiores querelas da nossa vida. Atrevo-me a pensar que uma boa parte da felicidade que almejamos e que falhamos, por vezes por uma unha negra, outras vezes rotundamente, reside na resolução destas equações aparentemente banais mas infinitamente complexas do quotidiano, estas querelas tantas vezes patéticas, tantas vezes heróicas. Não há felicidade sem relação, de resto não há vida nem humanidade sem relação como o compreenderam os grandes filósofos da alteridade, do diálogo, da intersubjectividade, à cabeça dos quais coloco Martin Buber, neste plano da relação dialógica, mesmo antes de Lévinas. A relação dialógica pressupõe imediatamente a comunicação e portanto a ideia de comunidade como Agamben viu e magistralmente desenvolveu (1). Na harmonia dessa comunicação versus comunidade reside o segredo de grande parte do nosso equilíbrio emocional e da realização de uma vida globalmente conseguida. Razão tinham os aristotélicos e os epicuristas para enfatizarem com tanta veemência o papel da amizade na prossecução de uma vida feliz. Mas tudo — sentimentos, emoções, desejos etc, — regressa a montante, isto é remonta à questão da comunicação. A maior parte da nossa vida assenta em falhas na comunicação, em erros de comunicação, em equívocos e mal entendidos comunicacionais. Provavelmente o inferno não é o Outro como queria Sartre, nem o il y a da clausura do Eu, como exacerbava Lévinas, mas antes a ponte intermédia de que falava o nosso poeta Mário de Sá Carneiro: “Eu não sou eu nem o outro,/ Sou qualquer coisa de intermédio”. Nesse intermédio, e repare-se que a ideia de médio e de média já faz uma boa parte do percurso existencial que se anuncia e enuncia, vislumbra-se o elemento dialógico e de comunicação. Toda a obra de Raymond Carver se inscreve e intromete nessa brecha aberta pela incompletude estrutural da comunicação.
Neste volume o autor continua o que para mim se abre na Catedral, uma ruminação sofrida das dificuldades da partilha, dos ruídos da comunicação, paisagem essa com a dor ao fundo. É nesse sentido que se deve falar de um realismo sujo. O ‘sujo’ em Carver resulta da ideia de uma frustração, de uma disfunção, e nesse sentido a sua vida foi exemplar, com as sucessivas crises alcoólicas e afins, os seus vícios que não conseguia vencer, os ruídos que não lhe deixavam ouvir a música do mundo, tudo isso, que é a realidade, com seus detritos, lixos, ruídos, … etc.
Tudo isso, aparece na prosa de Raymond Carver e o que é mais, sem retórica, sem explicações ensaísticas, através de um despojamento austero e severo que é o que o minimalismo, no caso, significa. Essa é de facto a lição de moralidade que Raymond Carver nos dá. Ela reside, no que diz respeito à escrita, tal como Ezra Pound magistralmente sintetizou na expressão, “precisão sem concessões”.
“Queres Fazer o Favor de te Calares, Porquê Querido?, Escola Nocturna, O Que é que há no Alasca?, Você é Médico?, Bicicletas, Músculos, Cigarros”, etc. são contos, ou nem isso, pedaços de tempo e de espaço arrancados ao todo, mas fazendo parte do todo. Nos textos de Carver nós nunca deixamos de ouvir, embora mal, o ruído e a música de fundo que é a totalidade existencial a fluir independentemente de nós ou afinal, por nossa causa. Com certeza não haverá uma totalidade para além de nós que faça sentido, ou para fazer sentido deverá incluir-nos, mas a inclusão parcial entrecortada pelos ruídos é perturbadora. As falhas, as brechas, os buracos, por vezes alienam em nós o sentido da totalidade e provocam o sentimento de uma falha ontológica com repercussões existenciais. Ou será antes o contrário!?

1 Isto é uma nota, erudita, mas também muito pessoal.

Ultimamente, ao lado, quer dizer paralelamente, mas também à margem, tenho revisitado as filosofias do ‘comum’ e os seus filósofos, os clássicos e os hodiernos, e devo confessar a minha enorme emoção pelo facto de voltar a sentir prazer pelas grandes utopias sociais e comunitárias.
Fiel às minhas sempre renovadas preocupações pedagógicas — não é em vão que se exerce uma actividade de professor durante mais de quarenta anos e em todos os escalões de ensino, embora sobretudo no escalão universitário — não posso deixar de aproveitar o ensejo para partilhar, aqui e agora, apenas algumas pistas de leitura. Trata-se de obras de autores que ainda não fazem parte do acervo da Biblioteca Pública (Melhor: quase todos fazem parte mas alguns ainda não em língua portuguesa, o que acontecerá muito em breve). Assim deixo-vos, com menção honrosa, “O Despertar da História” de Alain Badiou, “Viver no Fim dos Tempos de Slavoj Zizek”, “Comunismo e Hermeneutica. De Heidegger a Marx” de Gianni Vattimo y Santiago Zabala, no caso de Vattimo, um caso de reconversão ideológica muito interessante e a seguir, “Democracy And Other Neoliberal Fantasies, Communicative Capitalism And Left Politics” de Jodi Dean e finalmente o best seller de Michael Hardt y Toni Negri “Imperio”, uma obra apaixonante sob múltiplos aspectos. Claro que a lista seria quase inesgotável se assim o pretendêssemos, bastaria começar a pensar só em autores americanos, como Richard Rorty, Terry Eagletton, Frederic Jameson etc., pois em todos se encontra muito viva uma redescoberta preocupação pelo ‘Comum’ e pela ‘Comunidade’ que está, não tenham dúvidas, outra vez na ordem do dia e a verdade é que o individualismo neoliberal aparentemente triunfante, sob a falácia pós histórica de Fukuyama, começa a ter que se confrontar com adversários de enorme qualidade intelectual e determinação social e cívica. Isto é apenas um aviso à navegação. Estejam atentos, até porque o que referi é uma ínfima parte. Termino com uma citação de Vattimo que por sua vez refere Richard Rorty. Esse mesmo!

“ (…) Por esa razón, como a Richard Rorty, también nos parece completamente equivocado que lo mas importante que los marxistas académicos actuales han heredado de Marx y Engels (sea) la convicción de que la búsqueda de una comunidad de coopération debe ser una tarea científica en vez de utópica, una empresa de altos vuelos teóricos en vez de romántica”.

Então é como se de repente se desse um regresso à célebre inversão coperniciana de Heidegger da 11ª Tese Sobre Feuerbach de Marx, inscrita na “Ideologia Alemã”, quando em 1961 na “Tese de Kant Sobre o Ser”, Heidegger, fazendo justiça ao tema da prioridade da transformação do mundo sobre a sua interpretação afirmava que mais importante ainda é que uma transformação pensada desse modo exige a prévia transformação do modo de pensar. E é disso que se trata hoje em dia e por isso o trabalho teórico conhece actualmente uma verdadeira revolução. Seria muito leviano e insensato ficar de fora deste poderoso processo revolucionário.
Como dizia o poeta: ‘anda tudo ligado’. Penso que percebem o que quero dizer. É, como disse, um simples aviso à navegação. Andam muitas ideias no ar, o nosso tempo está a ficar outra vez, depois de um certo marasmo, após a queda do Muro de Berlim, muito dinâmico, crítico e criativo.

18 Ago 2016

O Simbolismo do Caos. Demanda ou Vazio?

Pynchon, Thomas, V, Fragmentos, Lisboa, 1989
Descritores: Literatura Americana, Romance, 422 p.:23 cm, tradução de Rui Vanon
Cota: C-10-7-45

Thomas Ruggles Pynchon, Jr. Nasceu em Long Island no dia 8 de Maio de 1937. Frequentou a Oyster Bay High School, de onde saiu em 1953. Estudou Engenharia em Cornell, prestigiada universidade da chamada Ivy-League, mas abandonou o curso no segundo ano para se alistar na marinha americana. Mais tarde, em 1957, voltará a Cornell para estudar inglês, tendo-se formado em 1959. Além de V, livro de estreia e logo premiado, eu destacaria o célebre Leilão do Lote 49 de 1966 e O Arco-Íris da Gravidade  de 1973, considerado a sua obra prima.

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]s etiquetas valem o que valem e por vezes não valem nada. Costuma considerar-se Thomas Pynchon como um dos maiores expoentes do pós-modernismo. A verdade é que desde que a designação foi cunhada por Jean-François Lyotard (sobretudo) mas também por Frederic Jameson e outros, começaram a aparecer atribuições de pós modernidade a muitas obras que não o eram antes. De algum modo tornou-se moda designar uma obra de pós-moderna. Porém, penso que no caso de Thomas Pynchon a atribuição é pertinente. Eu penso que é mais fácil identificar o pós-modernismo em outras artes ou em outras áreas do pensamento e da cultura do que na literatura seja ela ficção ou poesia, mas não será impossível.
No caso de Pynchon, a fragmentação discursiva e narrativa, a miríade de personagens superficialmente tratadas, as múltiplas histórias e intrigas paralelas, o carácter caótico da narrativa, dispersivo e muitas vezes anacrónico onde sobressai uma valorização das relações light e soft e dos episódios puramente circunstanciais e evanescentes consubstancia de facto uma estética que decorre de uma teoria do conhecimento que evita as chamadas metanarrativas. V-thomas-pynchon-290
Além disso a dispersão temática, enciclopédica mas superficial, por áreas como a física, matemática, química, filosofia, parapsicologia, ocultismo, banda desenhada, cinema, música pop, etc., com tratamento humorístico, pouco sério, senão mesmo provocatório e jocoso, assim como o relativismo axiológico que daí resulta, conduz a uma clara atitude de desvalorização de temas considerados nobres pela Modernidade. No entanto, em toda a obra de Thomas Pynchon, pressente-se através do Stream of consciousness que lhe é peculiar, sobretudo no ‘V’, a presença tutelar de uma grande figura da Modernidade, que é James Joyce e o seu Ulisses. Toda a obra de Pynchon pode ser assim considerada paradoxal no plano da sua construção estética, com um pé na Modernidade e ao mesmo tempo em ruptura, afinal como toda a chamada pós modernidade. É essencialmente por saturação referencial e pela valorização das estruturas micronarrativas que os seus romances se colocam no caminho performativo do pós-modernismo. Nada que se compare com William Gaddis ou Donald Barthelme onde a ruptura é sobretudo estilística e temática.
Pessoalmente sou sensível, na obra de Pynchon, à sua dimensão paranóica, que resulta sobretudo da sobreacumulação informativa. Este excesso entrópico funciona, no entanto, às avessas, transformando a sua narrativa num imenso discurso sobre o vazio. O relativismo axiológico a que me referi perspectiva uma redução niilista integral, por decepção. A única escapatória para a decepção integral é o riso. Contudo, para mim, a própria obra de Pynchon resulta numa enorme decepção. Talvez que eu seja demasiado moderno. Admito.
Thomas Pynchon é considerado, como disse, um dos principais expoentes do romance pós-moderno, ao lado de outros autores consagrados, como sejam William Gaddis, John Barth, Donald Barthelme, Don Delillo e Paul Auster. Mas se aceito a companhia de Gaddis, Barthelme ou Barth, tenho muita dificuldade em aceitar que Don DeLillo ou Paul Auster integrem este grupo. Em 1988, Thomas Pynchon foi premiado pela Fundação MacArthur. O crítico literário Harold Bloom nomeou mesmo Pynchon um dos quatro romancistas de língua inglesa “canonizáveis”, juntamente com  Don DeLillo, Philip Roth e Cormac McCarthy. Enfim, opiniões. Discordo profundamente com a integração nesta lista de Cormac McCarthy mas sobretudo de Don DeLillo. E pergunto, e porque não incluir Raymond Carver, provavelmente o maior génio da prosa minimalista e o maior especialista americano em shorts stories without story, a par de Joyce Carol Oates. Mas menos discutíveis ainda são John Updike, no registo burlesco e John Barth que nascendo em 1930 abre esta geração nascida na década de 30 (… é por isso o fundador do pós-modernismo na ficção norte americana), da qual fazem parte os autores referidos e ainda Donald Barthelme, como já disse.
Mas vamos ao texto. Tendo acabado de obter dispensa da Marinha, Benny Profane contenta-se com uma existência ociosa passada entre os amigos, onde a única ambição é a de ser perfeito na arte do engano, e onde a palavra «responsabilidade» é considerada obscena. Entre os seus amigos, chamados Whole Six Crew, está Slab, um artista que parece ser incapaz de pintar outra coisa que não seja queijo dinamarquês. Mas a vida de Profane muda dramaticamente quando ele se torna amigo de Stencil, um jovem ambicioso e activo com uma missão intrigante, a de descobrir a identidade de uma mulher chamada V, que conheceu o seu pai durante a guerra, mas que desapareceu repentina e misteriosamente.
O livro é portanto centrado nesta demanda simbólica da misteriosa ‘V’ que jamais saberemos quem seja até percebermos que simplesmente não existe e talvez nunca tenha existido, tal como o ‘K’ de Dino Buzzati. E isso descobre-se cedo o que arrefece muito o interesse do romance, relativamente a um pequeno entusiasmo inicial, até porque o interesse literário é escasso; sobrevive no texto algum sentido de humor, mas se comparado com autores como Bruce Chatwin e mesmo Salinger, não passa de um bocejo. Entretanto pelos caminhos dessa procura insensata de Nova Iorque até Malta passando pelo Cairo e Alexandria, entre outros lugares, cruzamo-nos com espiões, filósofos, vagabundos, intriguistas, etc. Porém tudo acontece de modo muito anárquico e sem sentido e muitas vezes fastidioso. Pynchon foi, para mim uma grande decepção, como Don DeLillo ou  Jonathan Franzen, porém por motivos claramente distintos. De DeLillo ressalvo, contudo, a primeira meia centena de páginas de Submundo. Nem todos os autores podem escrever livros com mais de quatrocentas páginas como Thomas Mann, Tolstoi, Stendhal ou Musil, entre outros, mas não muitos. A lista de livros gordos, pretensiosos, mas falhados, é enorme. Dentre os mais recentes tenho presente os calhamaços de Franzen, apesar das críticas favoráveis, o 2666 de Bolaño, apesar de tão incençado, mas para mim impropriamente, o Cosmopolis de DeLillo e outros onde os autores se ficaram pelas boas intenções. Mas para além dos autores já referidos que escreveram romances grandiosos em todos os sentidos e nem me lembrei, por exemplo, das Almas Mortas de Gogol, ou do Herzog de Saul Bellow é justo dizer que o formato não impede que se possa atingir o estatuto de obra prima …. Que não se pense que trago aqui uma opinião caprichosa na sua essência, pois acredito mesmo que os autores tanto quanto os livros possuem em si uma dimensão intrínseca, no caso dos romances, e um fôlego ou uma respiração própria, no caso dos autores. Alguns são sprinters e outros são corredores de fundo e meio fundo, digamos assim. Um editor russo disse-o por outras palavras a Nabokov. Vou citar este e não o editor que nunca o terá escrito: “Um editor disse-me uma vez que cada escritor traz gravado dentro de si um número determinado, isto é, um número exacto de páginas que nunca ultrapassará em nenhum livro. O meu número era, salvo erro, o 385. Tchekhov nunca poderia escrever um verdadeiro romance comprido” por exemplo, mas já Tolstoi, podia e devia, digo eu. Depois Nabokov continua assertivamente com acerto, como era seu timbre. No que disse sobressai a ideia de que o escritor “nunca ultrapassará” o seu número. Isso seria verdade se o escritor o soubesse e a verdade é que, para sua desgraça, deles, a maioria esmagadora dos escritores não faz ideia de qual seja, pelo que acontece que ora fiquem aquém desse número, ora o ultrapassem largamente. Quando ficam aquém, quase nunca é tão grave como quando o excedem largamente, excedendo assim a dimensão fixada pela providência. Eu lembro-me que ao ler Saramago dizia: — e na época ainda não tinha lido as magníficas Lectures on Russian Literature, publicadas pela Harvest Books de Nova Iorque em 1982 — se ele fosse controlado por editores à moda antiga, e bons, pois os houve, os seus romances teriam, na sua melhor fase, a fase do Memorial, do Cerco ou da Jangada, menos cinquenta páginas pelo menos e alguns teriam ficado verdadeiras obras primas, assim…  ficaram apenas livros muito bons, mas ligeiramente desequilibrados. O caso mais gritante é a História do Cerco de Lisboa. Mais tarde finalmente o escritor encontrou o número de páginas certas e adequadas, mas salvo algumas excepções as ideias é que já não eram tão boas. Ora, regressando ao motivo deste meu excurso, o problema das obras de Thomas Pynchon é esse, não um número excessivo de notas como o arquiduque da Áustria terá, pleno de aristocrática idiotice, dito a propósito de uma partitura de Mozart, mas um número excessivo de páginas, esperando eu não estar a ser tão idiota quanto o outro. Nesta questão da dimensão da obra, que sinceramente sempre me preocupou, esqueci-me de referir Norman Mailer e John dos Passos, mas sobretudo de uma obra prima de um escritor, aliás escritora, o Midlemarch de George Eliot.
Repare-se no élã do primeiro parágrafo de Middlemarch:

“Miss Brooke had that kind of beauty which seems to be thrown into relief by poor dress. Her hand and wrist were so finely formed that she could wear sleeves not less bare of style than those in which the Blessed Virgin appeared to Italian painters; and her profile as well as her stature and bearing seemed to gain the more dignity from her plain garments, which by the side of provincial fashion gave her the impressiveness of a fine quotation from the Bible,— or from one of our elder poets,— in a paragraph of to-day’s newspaper. She was usually spoken of as being remarkably clever, but with the addition that her sister Celia had more common-sense. Nevertheless, Celia wore scarcely more trimmings; and it was only to close observers that her dress differed from her sister’s, and had a shade of coquetry in its arrangements; for Miss Brooke’s plain dressing was due to mixed conditions, in most of which her sister shared. The pride of being ladies had something to do with it: the Brooke connections, though not exactly aristocratic, were unquestionably ‘good”.

Ora, isto não roça a perfeição ou mesmo o sublime. Isto é da ordem da perfeição e do sublime. Raras vezes em toda a minha vida me foi dado ler um arranque de romance tão perfeito e de resto a literatura inglesa possui muitos. Eu, que infelizmente não domino a língua inglesa como gostaria atrevi-me depois desta primeira página a ler directamente o Middlemarch na sua língua original, pois de facto sente-se que seria uma pena traduzir esta página e afinal tudo o resto. A leitura de Middlemarch curou-me momentaneamente da decepção que foi Thomas Pynchon. Depois deste cheirinho, não acham que terei razão. Provavelmente foi uma imprudência minha ter ido ler o Middlmarch a meio de leitura de romances como o V de Thomas Pynchon ou o 2666 de Bolaño. Agora acho que nunca irei chegar ao fim da leitura de ambos e que outros aparentados já não irão merecer sequer que os comece, a não ser que tenha de ser, por motivos profissionais.
Vou finalmente regressar ao V, prometendo já que é para pôr fim a esta crónica. É verdade que Profane ao fazer ioiô ao longo da costa leste se vai cruzando com uma fauna humana por vezes interessante. É verdade que o narrador arranca pedaços de prosa com qualidade aqui e ali e cito salpicadamente: “Profane dobrou a esquina. Como sempre acontecia, East Main, caiu-lhe em cima sem aviso prévio”. Eu percebo o que o aviso, quer dizer, pois a mim já me aconteceu as ruas cairem-me em cima com aviso e sem aviso. Assim, quando fiz o Costa a Costa desde S. Francisco até Nova Iorque subindo e descendo para não evitar os desertos e os canyons, foi com aviso prévio que caí em cima e dentro da Bourbon Street em Nova Orléans, mas já foi sem aviso prévio que me caiu em cima a Beale Street em Memphis. Na altura lembro-me muito bem que o episódio da Beale Street me fez pensar na pequeníssima evocação do que é a vida, feita pela Marguerite Yourcenar num texto da colectânea, O Tempo Esse Grande Escultor, quando, explorando a ideia de transitoriedade, fugacidade e precariedade escreve pela boca de um ‘thane’, chefe de clã, poeta e visionário:

“Creio que a vida dos homens na Terra, quando comparada aos vastos espaços de tempo de que nada sabemos, se assemelha ao voo de um pássaro que entrou pela janela de uma grande sala onde arde ao centro uma lareira (…), enquanto lá fora reina a invernia, com as suas chuvas e neves. O pássaro atravessa a sala num ápice e sai pelo lado oposto; vindo do Inverno, a ele regressa, perdendo-se aos teus olhos. Assim também a efémera vida dos homens de que não sabemos o que havia antes e o que vem depois”.

Obviamente que, com as devidas distâncias, assim me senti momentaneamente engolido para dentro de um cone de luz e conforto, vindo da noite e à noite regressando. Foi um puro instantâneo que porém depois prolonguei, estacionando algures e regressando à Beale Street para comer qualquer coisa ouvindo a boa música do sul e ouvindo uns tipos absolutamente anacrónicos a falar de blues, Muddy Waters, BB King e Elvis Presley: Confesso que foi hilariante e inesquecível.
Como a tripulação do contratorpedeiro USS Scaffold estava ausente, pois o navio tinha zarpado em direcção ao Mediterrâneo, andavam caras novas a servir nos bares da cidade “praticando os mais doces sorrisos de puta”, enquanto a essa hora o navio lançaria pelas chaminés negros flocos sobre os futuros ou já presentes cornudos. Por esse motivo teve Profane direito à sua Beatrice, mas a verdade é que os marinheiros chamavam Beatrice a todas as empregadas, tal como bebés indefesos, e todas as noites tinham direito a beber cerveja por torneiras de espuma de borracha em forma de seios, a que se chamava a grande mamada. Mas em menos de duas páginas entrou em cena a Pig que tinha uma Harley que nenhum polícia apanhava e uma Paola da qual saíam histórias, cada uma mais rocambolesca que a anterior, mas que Profane só acreditava pela metade porque, como ele dizia, “uma mulher é apenas metade de qualquer coisa que tem habitualmente dois lados”. Profane, ficou com ela apenas uma noite, o suficiente, no entanto, para lhe ensinar uma canção de um paraquedista francês, que era baixo e tinha a estrutura de Malta, isto é: “rocha e um coração imprescrutável”. Acreditem, isto é apenas o princípio. Há no texto muito mais pérolas como estas, mas, … quer dizer, o problema são as páginas, muitas, através das quais se multiplicam como moscas multidões de personagens masculinas e femininas além de ruas, bares, cidades, lugares, encontros e desencontros e acontecimentos de variadíssimo género, com outras narrativas dentro e essas também multiformes como a narrativa principal, numa proliferação neoplásica, e claro o que é demais cansa, até que desistimos. Eu desisti por volta da página 351 numa edição com mais de quinhentas. Por favor não me venham dizer que deveria ler o livro todo e sobretudo não o façam invocando questões de natureza ética, ou assim. Em jeito de compromisso direi que vale a pena ler uns capítulos desgarrados até por que se o leitor tiver lido as primeiras cem páginas por exemplo, depois já escusa de ler a eito. Vá lendo respigando aqui e ali porque irá sempre encontrando belos achados, provocatórios e inteligentes por vezes mesmo incandescentes. É o conjunto que desilude, como se não houvesse arquitectura prévia. É isso, ou eu sou talvez moderno de mais, para esta literatura, chamada pós-moderna. Que me perdoem.

11 Ago 2016

O que é a História?

Benjamin, Walter, Sobre Arte, Técnica Linguagem e Política, Relógio D’Água, Lisboa 1992
Descritores: Filosofia Alemã, Ensaio, História, ISBN: 9727081770

[dropcap style=’circle’]W[/dropcap]alter Benedix Schönflies Benjamin, nasceu no seio de uma família judaica no dia 15 de julho de 1892 e suicidou-se em Portbou, 27 de setembro de 1940. É tradicionalmente e com alguma razão à designada Escola de Frankfurt e à Teoria Crítica, onde pontificaram outros grandes vultos da cultura alemã, mais tarde na diáspora, como Adorno Horkheimer, Eric From, Herbert Marcuse. Na sua obra, de espantosa originalidade, vislumbram-se as influências de autores marxistas como é o caso de Brecht, do marxismo em geral mas também de Heidegger e ainda do místico judaico Gershom Scholem. Profundo conhecedor da língua e da cultura francesa traduziu obras tão importantes como os Quadros Parisienses de Charles Baudelaire ou o  Em Busca do Tempo Perdido de Marcel Proust. A sua obra onde se combinam ideias aparentemente antagónicas do idealismo alemão, do materialismo dialético e do misticismo judaico, constitui um contributo original para o pensamento contemporâneo, de ano para ano mais relevante. Entre as suas obras mais conhecidas, contam-se A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica  de 1936 e as Teses Sobre o Conceito de História de 1940. Além destes textos e atendendo ao carácter, hoje incontornável da sua obra revolucionária e iluminada, eu destacaria ainda: Paris, Capital do século XIX (inacabado); A Modernidade e os Modernos, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975; Origem do Drama Barroco Alemão, trad. e pref. Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 1984; Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação, 3ª ed., trad. Marcus Vinicius Mazzari, São Paulo: Summus Editorial, 1984; Estéticas do Cinema, ed., apres. e notas Eduardo Geada, trad. Tereza Coelho, Lisboa: D. Quixote, 1985; Obras Escolhidas, v. I, Magia e técnica, arte e política, trad. S.P. Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 1985; Obras Escolhidas, v. II, Rua de mão única, trad. de R.R. Torres F. e J.C.M. Barbosa, São Paulo: Brasiliense, 1987; Obras Escolhidas, v. III, Chrales Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo, trad. de J.C.M. Barbosa e H.A. Baptista, São Paulo: Brasiliense, 1989; Documentos de Cultura, Documentos de Barbárie: escritos escolhidos, introd. Willi Bolle, trad. Celeste H. M. Ribeiro de Sousa, São Paulo: Cultrix, 1986; Diário de Moscou, pref. Gershom Scholem, ed. e notas Gary Smith, trad. Hildegard Herbold, São Paulo: Companhia das Letras, 1989; Histórias e Contos, trad. Telma Costa, Lisboa: Teorema, 1992; Rua de Sentido Único e Infância em Berlim por Volta de 1900, pref. Susan Sontag, Lisboa: Relógio d`Água, 1992; O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão, trad. pref. e notas de Márcio Seligmann-Silva , São Paulo: Iluminuras/ EDUSP, 1993; Correspondência: Walter Benjamin, Gershom Scholem, rev. Plinio Martins Filho, São Paulo: Perspectiva, 1993; Benjamin, Walter. Kafka. Trad. e introdução Ernesto Sampaio. Lisboa: Hiena Editora, 1994; Os Sonetos de Walter Benjamin, trad. Vasco Graça Moura, Porto: Campo das Letras, 1999; Leituras de Walter Benjamin, org. Márcio Seligmann-Silva, São Paulo: FAPESP, 1999; Origem do Drama Trágico Alemão, ed., apres. e trad. João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004: Imagens de Pensamento, trad. João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004; Passagens, org. W. Bolle, São Paulo: IMESP, 2006; Benjamin, Andrew, A Filosofia de Walter Benjamin, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1997.
Da sua obra permito-me glosar livremente um célebre texto sobre o que é a História.

«A história é um anjo que voa de costas em direcção ao futuro».
(É uma imagem sedutora pensar a História sob a forma de um anjo voando. É também uma imagem apropriada porque imediatamente nos transmite o carácter fabuloso da História). 4816P10T1

1º ANDAMENTO

O anjo às vezes voa devagar, outras vezes depressa. Quando o vento, que sopra do Paraíso, sopra com mais força, o anjo bate mais as asas e muitas coisas caem, pessoas e não só; mas o anjo continua, embora não impassível. A verdade é que não pode deixar de continuar voando, sempre em direcção ao futuro. Pois toda a gente sabe que o vento que o empurra ou aspira é o vento do progresso.
O destino do anjo é como o das nossas vidas. Ele aliás é a nossa vida e todas as vidas de todos os tempos e lugares. E afinal todos nós vamos para o futuro agarrados às asas de um anjo. Todos, contudo, num dado momento caímos e rolamos desamparados para o imenso abismo do passado. O mais que podemos esperar, e já não será pouco, é que o anjo incline para baixo o olhar e uma lágrima sua possa rolar pelo angélico rosto.
O anjo voa de costas. Inevitavelmente. O vento forte que sopra do Paraíso empurra-o permanentemente para diante, isto é, em direcção ao futuro, mas ele voa de costas porque a História é a omnipresença do passado nos seus olhos alucinados. A História, sem desprimor, é a lucidez que só o passado pode ter…
Todas as vidas são também o seu passado e o passado é essa massa enorme de detritos, destroços e escombros, tudo isso que o anjo deixa para trás e fica a ver, umas vezes longe, outras vezes perto. E a imensa sombra que ele deixa atrás de si e que é visão perpétua nele, só pode visitar-se na imaginação.

2º ANDAMENTO

Ainda bem que assim é. A História só nos apaixona porque fala de tempos e de lugares que não podemos visitar realmente. Em boa verdade, comove-nos mais o teatro da História do que a realidade. Face ao real ficamos paralisados, incapazes de reagir ou até de chorar, mas face à arte sentimos toda a revolta moral e todas as grandes emoções estéticas que sendo também éticas educam a nossa consciência. É por isso que a História sendo arte é tão importante na formação da consciência cívica e moral da juventude.
A História é o passado, e o passado deixa em todas as vidas um lastro existencial, afectivo e nostálgico, que não se esgota e que alimenta a incerteza do presente e do futuro. Há coisas que não se podem olhar de frente, disse La Rochefoucaud: a morte e o Sol e provavelmente o futuro, acrescentaria eu. O futuro deve ser um clarão medonho, um clarão vazio e assustador, já que o próprio anjo entra nele sem o ver. Quando o vê é já passado.
Mas não se pense que é por medo ou falta de coragem que o anjo empreende esta viagem para o futuro de costas, de modo a poder ver apenas o passado. É que o anjo simbolizando a História simboliza a própria alma humana. O enorme peso das experiências acumuladas e sempre a acumular-se, torna-se um fardo tão pesado que na alma saturada não há espaço para as experiências do futuro, porém inevitáveis. A saturação da alma só pode resolver-se explodindo em nostalgia e memória.
Diz-se que o anjo gostaria de voltar para poder consertar as coisas. Diz-se ainda que no Princípio o anjo está parado, suspenso no ar, de asas desfraldadas. E que é o progresso, quer dizer o vento que sopra do passado em direcção ao futuro, que o empurra contra a sua própria vontade. De um anjo é mais próprio o repouso. Os anjos deviam ser contemplativos como são os deuses. Eu penso porém que o anjo não quereria ficar para arranjar as coisas e muito menos regressar. Para poder simbolizar a História, ele não pode ser senão esse olhar magoado sobre o passado, essa imensa consciência do mal, essa visão do abismo e das trevas, a que não pode fugir, nem fechar os olhos, nem desviá-los, pois essa é a sua condenação, o seu destino, quem sabe. A História é feita de angústia e lucidez. É preciso uma enorme tristeza, para ressuscitar, dos escombros e dos abismos, a sabedoria amarga que vai omnipresente e cristalina nos olhos do anjo.

3º ANDAMENTO

O passado é um lugar onde se concentra uma grande energia sentimental. No fundo o paradigma de todos os passados, o passado por excelência está na alma. É a alma. E daí a Saudade.
Podemos imaginar, agora, a nostalgia do olhar do anjo, abraçando o passado e nele vendo todo o sofrimento, sabendo que voa para dentro do futuro, como quem é aspirado para dentro de um cone de luz onde de repente se faz treva. Ele voa, deixando para trás a imensidão de uma catástrofe, que se torna primeiro penumbra e depois se transforma em sombra. Continuamente. A História, quer dizer o anjo, não quer que essa sombra se transforme em treva definitiva, em definitivo esquecimento. E por isso o anjo para ela olha com os olhos fixos.
Em tudo o que o anjo vê se esconde um princípio de explicação e de compreensão. «Nada daquilo que alguma vez aconteceu deve ser considerado como perdido para a história». Louvada seja a concentração do anjo, pois é no passado que estará a redenção. Daí a Saudade de novo.
Mas o anjo voa velozmente. A verdade do passado é um clarão que logo desaparece. A boca iluminada dos historiadores «no próprio instante em que se abre fala já no vazio». A atenção do anjo, sobre o passado, a atenção que se deve ao anjo, nunca será excessiva.
Que perigos nos espreitam? Só o passado, só a visão aterradora do passado que brilha nos momentos de perigo, sob a forma de uma recordação súbita, pode proteger-nos, «Diante do inimigo, nem os mortos estão seguros».

E PARA O ANJO É SEMPRE AGORA, SOB OS SEUS OLHOS ESCANCARADOS, QUE TUDO ESTÁ A ACONTECER. ELE TAMBÉM PARECE MEXER OS LÁBIOS COMO SE FOSSE FALAR, MAS PRESUME-SE QUE ESTEJA PARALISADO PELA EVIDÊNCIA DA CATÁSTROFE E PELA ACUMULAÇÃO DE POEIRA QUE DOS DESTROÇOS SOBE AO CÉU.

Ser agora seria ser talento e hora.
Mais tarde ou mais cedo será hora.
Tarde ou cedo o Ser será Agora.

*Variações em torno de um tema de Paul Klee, Walter Benjamin e Laurie Anderson

4 Ago 2016