Mais lugares que marinheiros

[dropcap]D[/dropcap]ias antes e já a pantalha luminosa se acendia intermitente a deixar ver. As luzes no máximo como para não nos perdermos no caminho. Um prévio cometa Halley a guiar. As pessoas são tão contidas. Em si próprias, muito embora por vezes a exorbitar numa espécie de sudação subliminar. Em que se pressente uma enormidade de inferências, de subentendidos e de consequências que temos que saber aparar no regaço. Estendo a mão. Mas não toco no que não se quer tocado. Nós não somos tristes, somos fundos e por isso não somos simples.

Conto. Volto a contar. São as contas do Natal. Porque exorbitaram as continhas vermelhas do azevinho, tão raro, em grandes bolas de árvore de natal? Porque de tão raro, o que era espontâneo quase se extingue. Agora as poinsétias. Grandes e extravagantes estrelas de outro continente.

Ceia de Natal. Não há lugares vazios. O tilintar de copos e as conversas inconsequentes, coisas práticas e insignificantes. Também já contamos histórias. Shhhh…é só um pequeno movimento para dentro e oiço-os chegar devagarinho. Como um nó na garganta. Sentar-se sossegados, com as expressões inesperadas que o inconsciente laborioso lhes coloca nas faces antigas. Antigas, mas por vezes tão jovens, afinal. Não se sabe, antes, com que rosto vão surgir. E ficam ali quase luminescentes, a ocupar solidamente um espaço para o qual foram convidados. E ficam. Até que o nó se desfaça e alguém diga um disparate divergente. E eles não suportam o esquecimento. E assim se vão. Mas não muito longe.

Vamos olhar uns para os outros, felizes mas secretamente a fazer contas aos que faltam. Ainda não habituados. A ter que contar quantos somos agora, várias vezes porque é um número novo. Um dado novo para este jogo. Mas felizes de ainda nos termos uns aos outros. Os mais velhos foram-se retirando definitivamente da mesa. Ao seu tempo. Deixam-nos como sozinhos em casa para continuar. Mas na verdade, começamos outros de nós, então, a ser os mais velhos e a olhar em volta com desconfiança como quem diz vamos lá a ver se ninguém sai daqui sem autorização. Vamos estendendo a toalha agora comprida demais, pondo a mesa caoticamente e retocando cozinhados e compondo pratos com uma enorme seriedade e como se uma epopeia que não se destinasse somente a nós.

Mas sabemos secretamente que ainda há vários lugares vazios, por mais que se não coloquem visíveis à mesa. Que ainda não foram absorvidos pelas ausências que os ocupam. Fingimos que não é nada connosco. Sabe-se lá se cada um reza aos seus santinhos. Que chegam e ficam ali como parceiros discretos a aconselhar sobre o ombro qual a carta a jogar. Depois sentamo-nos. Só nós e quem naquele exacto momento se abeira de cada um à vez e sopra um invisível murmúrio. A saudade é seguramente nossa. Como um altar íntimo e doméstico. Do culto aos que passaram e nos deixaram. Só não temos coragem de deixar laranjas e papéis de queimar visíveis, para não nos entristecermos uns aos outros. Somos tão púdicos.

Ninguém vai dizer nada. Já se disse, outras vezes. Mas lá para o final da primeira garrafa, algo um pouco desajeitado há-de surgir. Mal planeado, e irreprimido. Só nós agora. Qualquer coisa assim. Como miúdos à solta. Ainda um pouco desajeitados desta ausência dos mais velhos. Que somos agora nós. A fazer este papel no seu melhor, porque é mais difícil fora da marcação. E precisamos dele. Que nos ligue e continue a ligar.

Depois nunca se deixam as velas arder até ao fim. Um pouco de luz possível para o dia a seguir. Reacender. E sobra sempre tanta cera mesmo depois. Aprendi que a única coisa que se esgota demasiado depressa é o pavio, de algodão. Mas substituindo por um novo, há muita cera para arder ainda. Derreter sem arder, moldar a nova forma, pavio novo e nova vela. Sem as cores nítidas da antiga, mas a luz é sempre luz.
Família, quando temos, é o que temos. E depois da consoada, ficamos de novo a sós. Meto a chave à porta. Abro a porta de casa e descalço os sapatos para não fazer barulho. Estás aí. Que não gostas do natal. E fazes bem, à falta de melhor. Dispo a roupa simbólica de estar especial e fico para ali, sem nada. E aí sim, essencial.

Se estás. Deito-me ao lado exausta. Voltada para ti. Suspiro fundo. Agora só daqui a um ano. Sorri por favor. Vejo-te mesmo no escuro. Tocamo-nos ao de leve e não há nada melhor. Do que a enormidade da distância que se vence, percorre e anula nesse gesto invisível e definitivo em si. Em que se nasce ao espelho táctil do outro ali. Reinado enorme e eu pequena. No simples espaço curto da cama. Não é preciso ser maior. Já basta a amplitude dos temores, das noites, do abandono de deuses. E chega. Chegando de mansinho.

Não estou só porque tive a sorte de não nascer só. Solitária, sempre. Uma coisa da espécie. Monticola solitarius. E digo, agora nós. Não digo finalmente sós, o que seria ingratidão. Mas digo. Agora nós. Só. E fico. E porque todos os anos mesmo os temores se renovam como recém-desembrulhados no meio das outras prendas de natal, pergunto como sempre: estás aí? E tudo está certo como sempre, a postos para recomeçar como se do início de tudo. Depois, fim do ano, ano novo e vida nova. Até ver. Naquele escasso momento em que troam e florescem as últimas luzes do fogo-de-artifício. Vistas da janela pequenina.

Acordo no dia já bem claro. Encolho as pernas, puxo a roupa e viro-me para o lado a pensar que o dia vem longo. Percorrer o mercado de doces à procura de algo que se aproxime dos sonhos da infância. Leves e cremosos e pastéis de massa estaladiça. Em caixas de cartão para logo. Há que guardar tempo para me arranjar. É preciso que cada um esteja no seu melhor. Um pouco de maquilhagem para a consoada. A família merece. Ou eles, saber que estamos bem. Ou eu.

30 Dez 2019

Cidade material

[dropcap]M[/dropcap]acau. Cidade mental. Penso. Perguntar se um dragão voa. E a pergunta certa para setenta milhões de patacas ou de pessoas, inesperadamente não ser se existem, os dragões, mas qual. Ou se Luís de Camões visitou. Ou o dragão amarelo. E se algum dia um deles voltará.

A pensar em Calvino e as suas Cidades invisíveis. Interiores ao viajante. Como se não o fossem todas. Imaginárias ou inventadas. Há sempre uma distância. Entre nós e uma cidade qualquer. Há uma cidade mental. Há uma cidade material. E há uma cidade brutal. Mas os dados estão lançados. Há muito. Com o esmagador peso do futuro atroador, em passadas de gigante.

A China, o país, uma ideia de si e não se conforma sem que todas as reunificações se fechem numa identidade nacional, possessiva, invasiva, num projecto político, económico e funcional. A palavra cultura aparece, porque é bonito, a enfeitar. Mas desta se moldou de forma tão única a Macau de macaenses, portugueses e chineses e tantos outros viajantes. Tão pequena que era, e tão murada. Cidade em camadas difíceis, como velaturas de segredos. Culturas de gueto, num cadinho fervilhante. De sabores. E nas sombras que nos seguem pelo chão, uma memória de aventura ancestral. Com que pouca profundidade se desenvolveu o interesse destas culturas, umas pelas outras. Comparando com o que se poderia ter sonhado, podia ter sido paradigmático, o cruzamento de tolerâncias e paixões e Histórias. E séculos a perder de vista. Macau foi um pequeno ponto longínquo de encontro. De essências, modos de vida e culturas. O momento maior na definição do humano. Mas que tende a diluir-se na solidez dos valores económicos que mais altos se levantam.

É o que é. Mas não o que poderia ter sido. Uma mistura coerente de tradição, cultura e modernidade em que tudo poderia ser guardado e acrescentado. Mas Portugal não teve jeito e a China não tem vocação.
Macaense, um povo e cultura como se produzidos pelos deuses numa noite de jogo, para um futuro impreciso de dias contados nas políticas de grandiloquência, em afastamento, como placas tectónicas de um eixo identitário. Chame-se-lhe pátria, chame-se-lhe terra, identidade, ou declaração conjunta, mas no horizonte: diluição. Muita nostalgia fica para homenagear o que foi.

Cultura não é o investido nesta cidade. É o que se compra, o que se joga. O destino. O querer fazer-se da aparência adquirida, ou numa mão de cartas, traiçoeira ou prometedora. Depois há que continuar a ir a jogo ou reduzir a ambição ao resultado obtido. Há quem arrisque e há quem desista. Os que desistem podem ganhar. Os que arriscam, perder tudo. Ou não. Tudo o resto, é rame rame no caminho inevitável.

A pensar para que crescem as cidades e em que parte do corpo. É uma pergunta que neste final da segunda década, me assola. Neste meu descontentamento da mudança. Mas do sentido. Para que cresce o corpo da cidade, senão para se travestir de uma outra vida, de outros habitantes, mais do que nunca, de passagem por uns dias. A quem agradar. É por eles que o coração das cidades mal amadas se vai adulterando e vendendo. E desabitando, sobrepovoadas. Como parque de diversões fora de horas. A montanha russa em descanso, finalmente. E as galerias as livrarias os cafés as lojas bonitas de design os cinemas e tudo o mais que não há, tudo fechado e invisível.

Há um recorte poético na naturalidade com que um território irrompe das águas circundantes e que lhe deu uma vida de passeio marginal que tantos habitaram e de tantas maneiras, um remate digno e bucólico a abraçar a cidade e um rosto ao longo da Praia Grande. E um outro escondido, no Porto Interior.

Quando se lhe muda a face, numa geometria que em nada imita a realidade espontânea da terra, se recolhe o lugar que era marginal a uma interioridade forçada, desfasada, em que sufoca sem a respiração do rio, mudam os passeios, mudam os passeantes e passam de carro sem passear. Simplesmente a caminho. Carro grande, caminho pequeno. Para que se quer um carro grande numa cidade tão curta… Pela mesma razão se compra um fato de marca e não o de um bom alfaiate. A peso de oiro, tudo pesa demais nesta cidade em que se veem lingotes nas montras de ourives. Os poucos edifícios com uma personalidade de época, sobreviventes, perdem a escala. Já tão poucos e sufocados. Uma cidade encerra em si todos os tempos que a construíram, e assim os deveria manter. É desse convívio que se faz a memória. Não é de geração espontânea.

Os aterros deveriam ser desenhados com amor. E não cortados à faca ao desenho das águas, em qualquer lugar. Orgânicos e naturalistas, com margens amplas para passear. Bancos de jardim, esplanadas para estar. Árvores em quantidade. Falta espaço e natureza. Mas num jardim não se gasta dinheiro. Por isso não se gasta dinheiro num jardim. A margem é o que permite aos olhos um horizonte, beber a luz do rio, fugir à vertigem e visão atravancada de uma cidade em altura. O que é o ordenamento sem a poesia lenta e amadurecida dos anos a moldar passos, hábitos. E à sua dimensão. O que é senão isso. E, não sendo, há que inventar com brilho e poesia. Espaço. Edifícios belos. E bons de habitar. Arte pública. Ou que tóxica se torna uma cidade. Tudo em trânsito. O trânsito ditatorial.

Se pensar na explosão do corpo do território como um disparate das células em forma como que cancerígena em que se perde a natural harmonia inicial que se cristalizou em hábitos e rituais, é triste. Sem o lirismo de uma bela valquíria a arredondar em formas barrocas de encanto e a crescer em luminosidade. A nova sedução a despertar emoções. Mas foi a loucura das células ou da ganância ou do dinheiro. Sei lá. Mas que se pode amar mesmo assim, se bem que de forma estranha. Ou é a memória. A amar a cidade mental e tentar revisita-la na cidade material. Tudo se cruza.

Mas tão mal amada. Sinto. Usada. De passagem. Mas eu estou tão longe. Que sei eu? Tão longe e tão perto. É a mente, que se na fantasia não mente, alimenta. Cidade interior. Como tudo e todos em nós. Cada vez mais, para percorrer no isolamento de veículos, para abstrair do passo, para se viver entre vidros que coam a realidade do ar e ares condicionados que agridem as estações, tudo meio invisível ao tacto e aos sentidos todos. A tornar-se cada vez mais exterior. Fora dos vidros, do ar condicionado e do conforto. Lá fora.

E lá fora, como num flashback revejo a porta de casa, à rua de S. António, e avanço para o jardim do poeta. Algo lírico paira por ali. No largo, os mesmos velhos do meu tempo, com os seus pássaros de sempre, levados a apanhar ar, a passeio. A mesma calma, o mesmo silêncio, a folhagem a produzir sombras nos muros. No meio do bulício magicamente camuflado. Logo ali. Tão perto e tão longe do centro. Uma certa forma de vida ainda mora ali. Mas outras já não. As casas de chá, antigas e imutáveis, as velharias de valor discutível, empilhadas e atravancadas mas autênticas testemunhas, as tascas de rua, abundantes, sujas e deliciosas, o barulho das pedras do mah jong noite adentro a circular entre as janelas abertas de toda a cidade, para entrar calor e humidade. Omnipresentes a ocupar, noite fora. O sapateiro inventor da rua do campo. E outros ofícios. Outras vidas. Tenho saudades em qualquer sítio.

Sento-mo no muro da praia grande, esse resto obsoleto de um conceito de marginal que deixou de o ser – não se passeia muito por aqui – enquanto penso em tudo o que prende uma pessoa a um lugar sem as raízes de si. Antes. Do encontro. E em como algo fica depois indivisível e secreto, enraizado num lugar invisível, que só cada um sabe. E como depois se fica a pertencer. O teimoso feitio da linguagem, a fermentar fantasia e proximidade e distância. A distância necessária num lugar apertado. E tanta gente que passa. Desaguei da rua da palha, em fuga. Aquele derramar vertiginoso em que os pés tropeçam nos calcanhares da frente, sem a fluidez do passo porque não há ar. Entre nós e os outros. A cidade não tem pulmão. Mas ali descem noivas, também, com os seus vestidos açucarados e a corte engalanada, vindos da fotografia em frente ao estranho sintoma de cultura. Em ruínas e reduzido a uma fachada. Mas com janelas para o céu. Às vezes azul.

Como o grande dragão que paira sobre a cidade. Símbolo da transformação pela destruição, para que nasça o que é novo. Assim é a intempestiva forma que a China já praticou, em contraste com a enorme paciência com que planeia a longo prazo a inexorabilidade do futuro. E a cidade, região e diluída nela, como é feitio habitual. Diluir para reinar. Etnias, culturas, vidas, famílias, laços. A aniquilação do indivíduo desde dentro. É o que não perdoo à revolução cultural.

Assim esta progressiva e diária espécie de lavagem da cidade, por enxurradas de pessoas – paradigma em expansão por toda a região e que será a Grande Baía – do que tenha sido a alma ímpar da cidade. A memória, por exemplo. Cidade, território, lugar. Uma célula única. A pulsar do seu núcleo, identidade. Real, afectiva ou ficcional. Nunca pedaço de um país, aquilo que de tão longe de tudo, não tinha dono. Não a vi assim. Ao fim de umas quantas gerações, o erro de retomar a posse é equiparável ao da apropriação. Mais grave numa cidade adulta. Feita de pessoas com vida e história. O grande dragão soube esperar. Mas a identidade cultural entra na roda gigante e não pode apear-se. No parque.

E é neste conceito que se funda a Grande Baía. Do futuro. Um vórtice maior. Mais tudo, transportes e circulação, negócios, dinheiro e pessoas e tão pouco sentido de estar e habitar. Uma grande ponte que liga três cidades é a metáfora deste tempo. Cada vez mais rápido e de passagem. Um dia, a cidade diluída numa grande baía, que não será a Baía da Praia Grande. Simplesmente a Grande Baía. Grande de mais para passear à noite.

16 Dez 2019

Intervalos de paisagem

[dropcap]D[/dropcap]e novo esta cartografia que se filtra como uma rede invisível na articulação das palavras.
E das sombras.

Camadas de realidade. Como velaturas, no crescendo da complexidade, em que coincidem em sobreposição virtual, pequenos corpos de sentido, formas humildes e individualizadas de um todo. Mas não caídas. Folhas.

Adoro estes caminhos de sombras. Recortadas em manchas, já nada dizem do que lhes deu origem. Esta filigrana bidimensional que só o é por ilusão do que vemos. Sem intenção, o resultado de uma cadeia de níveis face à luz, das folhas que habitam as árvores, entretendo-se sem sair do seu lugar, com um teatro a dominar o caminho.

Fios invisíveis e verticais a cair paralelos, dos raios solares. Teatro de sombras. Bem observado, nele se encontra tudo. Histórias de encantar e filmes de terror. Os desenhos recombinados tudo permitem. Ao olhar. E, bem junto aos pés, camadas de sombras sobre a própria sombra de quem caminha. Pela ordem lógica das coisas, do espaço e das prioridades da luz.

Afirmações. Cada árvore, pontuada na verticalidade, sem temor à luz, Outra de incrível intensidade, esta. Um meio-dia sobre as árvores e chovem todas as folhas a brincar com o chão sem se dignarem mexer um cabelo sequer. Em camadas, empilhadas como folhas de livro acabado. Provisórias, contudo. As sombras mutantes.

Mapa curioso de linhas novas sem revelar que segredos e sobreposições por debaixo do foco solar, ocultaram formas unindo-as a outras. Cada exclamação natural a exclamar sombras como palavras virtuais.

Uma outra realidade. Recuando ao estúdio. Coloco uma folha branca no ecrã luminoso. Quem diria que 13 kilobytes é o tamanho de uma página vazia. O que pesa no espaço etéreo ocupado. Como 21 gramas, o peso de uma alma que se foi. Nem é muito, pensando em tanto que leva. Mas da página, atendendo a que mil palavras depois, não foi proporcional o aumento de peso, penso que é como se dela resultasse, em vazio prévio, o peso intenso de todas as possibilidades que nos abalroam a alma quando olha. Do que ali não está mas é subliminar.

O medo de todas as frases devastadoras que se podem vir a instalar ali. De todos os segredos que, sem querer, podem fugir por entre a cartografia de linhas das mãos e vir a ocupar espaço entrelinhas. Das que se recusam a ser usadas. Aquilo que de nós pesa em tudo o que está, com aquilo que não está, nem mesmo visível, ou perceptível. Ou tudo o que se elabora no nada, imaculado e por dizer, da página. Como uma camada mais sobre as camadas de impossibilidade e pesar. No cadinho de invisíveis, que já parecem pesar tanto. Quanto pesará em gramas ou kilobytes a sombra de uma folha de árvore? E, na verdade, quanto pesa uma palavra não dita. Ou não pensada. Qual a diferença de peso-massa entre ambas?

Na sombra das árvores, um mapa. Desenhado pela íntima colaboração de todas as palavras ditas, em cada folha de cada uma. A mestria da luz a orquestrar a complexa sinfonia, de desenhos tremeluzentes, com a orgânica mudança de contornos que a aragem agita. E que a luz não pára de reescrever. Amena estabilidade – ilusória – do caminho. Essa pantalha luminosa em que os pés progridem sem ferir. Não se fere a luz e não se magoam as sombras por debaixo dos pés. Não nos magoam acima.

Quando M. Foucault, no encadeado das suas “similitudes” referia essa tentação enorme de o mundo se dobrar sobre si próprio, duplicando-se ou reflectindo-se, “a terra repetindo o céu”, poderia estar a caminhar sobre estas sombras e a levantar os olhos para o que as representou no traçado do caminho.

A afastar os olhos encandeados do fogo vectorial da luz, para os projectar no fogo implícito interior à terra. E pelo meio estas camadas de sombras entre as quais um registo de superfície acontece, mas entre camadas de irrealidade.

As palavras e os seus silêncios que não são mais que os intervalos de paisagem. Não são mais e contudo são, neles, tudo. O não dito que se insinua, às vezes discreto, suave e claro. A luz branca dos silêncios. Que têm palavras pelo meio. A habitar. Melódicas, suficientes e inacabadas.

Assim, ainda lembrando as similitudes que nos permitem rever no mais ínfimo da escala do visível ou do perceptível um reflexo do que é enorme, reflito neste espaço impreciso e intocável, que se dimensiona entre as camadas de sombras que se sobrepõem nesta teia leve em cinzentos abaixo de mim e acima de mim e como isso me torna intangível camada, também, entre outras. A meio caminho entre uma visão macro, ou uma visão micro.

Na insignificância que em qualquer delas me define, sobra o descanso de tudo ser relativo e elástico como o olhar psíquico que sobre tudo se pode estender ou puxar para nós. E, com disse F. “Por imensa que seja a distância do microcosmo ao macrocosmo, ela não é infinita.“. Encerra os limites impossíveis num olhar de devaneio.

Caminho então no meio de sombras. A camada do meio. É bonito. O recorte. Essa impressão, como uma existência. Entre as que me assentam e as que assento. Entre o céu, longínquo e etéreo e a mais funda pulsação da terra, este, o caminho do meio, de dentro. O do meio das árvores, que não vão a lado nenhum mas nós nele.

E nele, como dançam, estáticas, sóbrias e sólidas.
Do indizível se faz uma cartografia de questões e esperas. As árvores exclamações, mas as sombras, entrelinhas. Camadas entre silêncios. E silêncios entre paisagens. Como intervalos de respiração em que cabe o universo.

10 Dez 2019

A cidade que não dorme

[dropcap]E[/dropcap] agora, isto.

Sibilinas e de uma força imparável. Dizem sem a delicadeza possível do dizer e logo invadindo. A escorrer na minha recente vigília impotente. Fecho as janelas e as portadas como cílios ou doces velaturas a assumir o fim de um dia. O temor de que o sono não venha, calmo, a redimir.

O acordar é coisa de um destempero. Quase que é, a insónia, amiga. Porque das outras vezes eu saio do sono num turbilhão, em que me pergunto de que descanso saiu tamanho vórtice de palavras elaboradas, como de geração espontânea. À espera à beira da cama com o rosto bem colado ao meu a soprar ao ouvido direito e a sair-me pela alma adiante, perturbada e perplexa mas passiva, como simples veículo. Um filtro através do qual se me desprendem para cair de imediato, de tantas e tão rápidas, no confuso esquecimento.

Acordo – cedo, tarde, nem sei dizer se tenho como referência ontem ou amanhã, ou a terra do nunca. E depois volto a acordar. Acordo a proferir frases para dentro. Num mutismo completamente imbuído dessa frescura de um dia novo mas já contaminado. Como se fugidas, elas, de um resumo qualquer de vida em espera, das horas antes do sono. E furibundas da abrupta interrupção, num ímpeto de vingança, à espreita do acordar incauto. E inundação surreal porque delas nada sei. Estou inocente e fico a vê-las enfileirar-se rápidas, fugidias, de inocente que estou sem nada lhes poder acrescentar ou uma vírgula, sequer, mudar.

Passam por mim, na realidade. E a correr. Desisti do caderno de capa azul à beira da cama. Aliás desaparecido. Fugido, talvez. Não admira, perante tamanho assédio. Dentro de mim e sem testemunhas.
Não. Nem me pergunto que palavras são estas. Seguramente serão sobras. E a propósito, acabo por me lembrar que ando com esta sensação indefinida. Este hotel serve-me sobras. E eu ao relento de bolsa dourada e sapato de salto, não sei. Sonho mais alto.

Ao acordar, assim, tudo parece monstruoso e exagerado. Nos cheios e vazios.
Vejamos, planos para o dia: Abrir as portadas com um determinado gesto de revelação. As palavras, entontecidas, já para trás ao descer da cama. Que me querem, sobretudo deitada, informe e indefesa. Mas depois, fogem elas sem coragem de permanecer. Sei onde encontrá-las. No dicionário dos anos oitenta.

Sonsas, ali arrumadinhas por ordem alfabética. Que o mesmo é dizer desarrumadas, dos sentidos que haviam insinuado. Não são de confiança. Mas gosto delas, talvez ou afinal. Serão um amor?

Acordar assim, como se alguém me tivesse contado uma história inquietante antes de dormir, sem o embalo calmo do que está bem e a aterrorizar-me o sonho sem sonhos e a ter que sair por algum lado. Desprevenida ao acordar de mente lúcida, é por ai que saem as palavras esbaforidas.

Mas porque é que não hei-de acordar com borboletas calmas a esticar as asas, a esvoaçar delicadamente por ali na semiobscuridade da manhã a esgueirar-se por entre as portadas mal fechadas de propósito, para entrar o dia, depois. Ou Joaninhas, como tantas vezes aparecem nas plantas da varanda intervaladas do anjo exorbitado que me assola. Um dia destes acordei a contar de dez em dez. Coisa absurda, eu sei. Mas estou inocente, como disse. Fico simplesmente a ver. Como se não fosse nada comigo e não é. Juro. Já contei toda a história da minha vida em versão dark, nestes acordares. Felizmente que ninguém ouviu. Os pormenores precisariam de ser retocados.

Acordo. E como sempre mesmo se de noite profunda e dormida, encadeamentos estranhamente lúcidos de presente, demasiado presente. Mas isso foi sempre assim. Conto de dez em dez e apercebo-me de que uma insólita opção subliminar, despoletou essa cadeia de números religiosamente rezados para dentro, com firmeza e sem mais fantasia do que o abstracto contexto de coisa nenhuma. De onde me vieram os números – e continuo a recitar de dez em dez – senão do instantâneo reconhecer, talvez, que nada haja a esperar de mais interessante. Acordo pois de alma poética em punho, em registo contemporâneo e já irónico. Isto, bem defendido, poderia valer algo, penso um pouco triste. Mas será arte isto de nos deixarmos consumir de vertigem? Tomados de coisas estranhas que o cérebro elabora sem autorização nem intenção clara? É talvez a tela universal que se apresenta no momento inicial um pouco demasiado em branco. Ou um pouco ao negro. Antes de o dia, com as horas, engolir qualquer capacidade de abstracção. Pessoas e vozes por demais. Aqueles seres bizarros de mão levantada e equipamento digital acoplado. Que atravessam as ruas de cabeça baixa. E eu, deitada ainda, se isso o pudesse ser, cabeça mais baixa que a minha, não poderia haver. Contando. Quarenta sessenta oitenta. Minto. Era de dez em dez.

Porque a noite é uma cidade que nunca dorme. A oferecer um eterno presente de Kayros, uma downtown em Tóquio no restrito lugar de um ecrã. Ilusórias luzes. Néons que nunca se apagam, em praças repletas de insones ávidos de qualquer coisa que coloque o dia, a noite, no mapa do acontecido e a que só a língua inglesa faz jus na sua expressão after hours. Ou porque o crânio, é um lugar a fervilhar de agitação num submundo que nunca pára nem de produzir questões e enumerações insólitas à beira do acordar para se derramarem em consternação.

Sim, somos reféns de um lugar depois das horas, uma espécie de parêntesis rectos que custamos arduamente a tornar curvos e sabe-se lá quando os retiramos de facto desse lugar aprisionante que é a insónia. You are here. Aquele ícone de localização nos mapas online. Devo acreditar?

A insónia é o novo black. Mas uma insónia de andar pela casa a acender e apagar luzes – please – para afugentar monstros improváveis, escrutinar sentidos em cada canto dos objectos a esconder intenções vagas, planos, mapas de vida por desenhar.

Mas não. Palavras. Podemos enlouquecer de palavras a mais.

3 Dez 2019

O gato chamado paradoxo

[dropcap]C[/dropcap]hegar a casa com a paradoxal exaustão de sentir que o dia foi demais e no entanto dizer para comigo se só isto, afinal. Sem haver reserva de uma disposição em frente para algo mais. Que preencha como a água reaviva uma planta. No dia que acabou, por muito que o queira ainda lavar e estender. Nesse apenas que é demais. E que ainda sobrem horas a consumir uma chama fraca com medo de se apagar no escuro. Agora, só esta cada vez menos serena e ainda ilusoriamente longa noite. Mas ainda há que comer.

Ainda há que dormir. Ainda há que encontrar uma nesga entreaberta em expectativa para o amanhã. Seguir.
Sento-me à mesa onde sempre pode surgir alguma coisa emergente, urgência ou impulso a mobilar este espaço de caixa forte, em que me sinto a transbordar e de vazio também. As folhas ásperas e boas, ainda lisas numa realidade plana a que falta acrescentar camadas. Os pincéis, alguns despenteados, que lhes deu, por onde andaram, está vento… Olho para o lado da janela e secretamente endereço um convite. Vem. Senta-se bem na minha frente. Por empatia, chega aquele ponto, por isso paradoxal, da noite. Sereno pontuar da exactidão de estar. E de nem estar, nem não estar. Feliz. Uma ausência boa, de definição. Uma transitória indefinição que é sempre ponto de passagem e que é a noite. Mas sentámo-nos frente a frente e interrogamo-nos. Por isso gosto tanto da noite. Um espaço de parágrafo entre dias.

Tive um gato chamado Feliz, e agora, um paradoxo chamado gato.
E já não está, está no céu, o gato. Uma nuvem pequena e branca entre as outras. Mas também está e não está, porque sempre aparece a sua memória em fino papel de seda, colada a estes momentos de chegar e estar. Chego a ouvir, quando a memória está um pouco desprevenida e ausente, algo como o ruído quase imperceptível das patinhas no corredor. Era suave no caminhar, mas uma unha mais sonora a pontuar o soalho, denunciava-o. Às vezes oiço-o, essa pequena memória encavalitada num qualquer ruído outro, no andar de cima ou no debaixo. Distraída acredito, mas por um ínfimo farrapo de tempo que logo se instala no saber que não vem. E é nessa pequena porção em que o meu tempo se distrai, que ele está e não está. Uma visita curta e doce.

Como o gato de Schrödinger. Que nem está nem deixa de estar. Mas enquanto não haja demonstração maior. Está e não está. No interior secreto da caixa. Ambos os estados que, noutras circunstâncias dos dias, se excluem mutuamente. Mas não neste momento pendente sobre um amanhã ainda não anunciado. Gato de Schrödinger, não se sabendo o nome, ao bicho, chama-se-lhe paradoxo – o meu chamava-se Feliz – é a experiência intelectual de que aquilo que tem a possibilidade de ser no momento, uma coisa e o seu contrário, é uma coisa e o seu contrário. Quando é possível de verificar, deixa de existir como tal e passa a ser uma coisa ou o seu contrário. Estar presente ou ausente nesta imprecisão de lidar com as emoções na memória, com as expectativas no vazio da potencialidade do momento. Pequenas hipocrisias e grandes cobardias se expressam nesta não total ausência de poder. Como se do relativo ao absoluto, não fosse um passo. Realizar.

Muito pior são aquelas questões em que se nos dispara aquele Mas. A palavra-território de todos os pequenos paradoxos diários enclausurados e domésticos, como bichos de casa a sonhar com o universo, vivido ou não, da selva. Pequenos deslumbramentos naturais que nos iludem, mas, desiludem. Esses perfumes cheios de clorofila em forma de folhas e de humidade em forma de mão. Tudo o que nos acende em profundidade até à completude de se ser quem se é em pleno redondo e absoluto ser. Todo o ser é redondo, sem picos agrestes e fissuras que ameacem fragmentar pelo meio, não geometricamente perfeito nem determinado. Mas um simples ali com se outro fosse. E poderia ser. Uma fractura na queda, ou uma quebra num impacto do ser contra o mundo, até mesmo pequenino, de um mau jeito um mau aroma e um mau viver de segundos. Mas. É a palavra que permite retrocesso no persistir errado, mesmo de acreditar. Um volte atrás enquanto é tempo. Mas. É o quebrar do absoluto arrogante. É o ter cuidado. A perplexidade do paradoxo felino. É o perscrutar sem opção uma janela do tempo e ainda assim a tempo voltar. Enquanto é tempo e o tempo for e deixar. Como o que podia ser mas não é. Esses são outros dias.

E outros dias com um não sei quê de Sísifo. O quê de Sísifo. Não é mito. É metáfora.
Aquela sensação de subir os dias a pique. E voltar ao sopé.
Irremediável e repetida impressão de frustrante inutilidade de tudo o que a custo e de tudo o que com esperança. Também o tricot de Penélope a fazer estender o tempo para haver lugar à espera desejada. Os GIFS. Fujo de ficar presa. A ilustração nos tempos modernos do mito do malogrado e eterno Sísifo. Um disco de vinil riscado numa parte boa. Um soluço imparável. Uma queda que não termina ou se repete para sempre. O erro. Caminha-se eternamente sem chegar, cai-se para sempre caindo. São registos da persistência da memória no seu pior e mais aterrorizante feitio de eternidade. Têm vestígios de uma eternidade boa, por vezes, porque na hábil e contínua repetição, se pode ficar para sempre, como à beira de uma onda que nunca vem forte demais se for boa.

O que tenho a oferecer (me), situa-se nos cúmulos. Das nuvens mutantes e migratórias, o cúmulo do desvelo e o cúmulo da tempestade. É assim. Nada de meios-termos, em geral, nas nuvens que me assolam o passo.

Nada de meios-termos no que sinto, no que faço. Visão romântica da natureza em turbilhão e em mim. Mas às vezes, este conforto muito particular. Ser e não ser. Sem ser uma questão. Por momentos. Como o vício do claro-escuro. É quando prefiro este estar e não estar, que às vezes me acolhe como uma luva peluda e quente. Como um resto de verão. Um paradoxo chamado gato.

26 Nov 2019

Da pontuação I

[dropcap]P[/dropcap]aisagens de quase nada. Camadas de realidade em longitude.
“I am a forest, and a night of dark trees: but he who is not afraid of my darkness, will find banks full of roses under my cypresses.”*
Caminho.

As árvores que delimitam o caminho são as mesmas que o encobrem, numa simples curvatura do carreiro irregular. Serão?… A cada passo, outras na sua redonda aparência mutante. As mesmas. A cada passo afinadas as distância entre elas, entre nós. E elas. Numa coreografia que, dependendo das harmonias musicais, do ritmo, do número de pulsações segundo, de quanto teremos dormido na noite, com os anjos ou paralisados de monstros, nos induz um balanço suave, ou o desequilíbrio da tormenta.

Ou somente a serena e progressiva apropriação. Adaptação. Do olhar. Mas mantendo a percepção de que é real a variação de ângulos, sem deixar de o ser a orgânica mudança da aparência. Das coisas. Sendo elas e sempre. Mas sempre elas. E somente o olhar, a captar em imagens, diferente. Fotogramas de realidade que quando enfileirados perfazem o filme completo.

E, como elas, balançamos por acção do vento, mesmo se uma aragem amiga. E o olhar, recto – porque curvas, somente na imaginação. E a ficção, é a alma a encontrar caminhos bonitos para o que na realidade se resume, reserva e tolhe – fixando um ponto para não entontecer do rodopio. Não se formar da natureza sóbria e serena, um caleidoscópio de perturbação. Onde nos perdemos. Num temor maior do que o da floresta onde encontramos os passos que, somente a pouco e muito pouco, vão desenhando a cartografia possível.

Tanto se esconde em cada curva do caminho. Nos intervalos da flecha de um olhar. Melhor assim. E o horizonte, linear eternamente esquivo. Inalcançável em fuga para a frente. Desejado na intensidade de cada passo, porém. E depois, mesmo quando o caminho parece a direito, há sempre a curvatura geométrica da terra. A girar enquanto não se cansar. A sobrepor horizontes, a substituir linhas como se mal desenhadas. Na precaridade de cada momento de cada gesto imprevisto do corpo, de cada olhar. E vamos a favor ou vamos contra. O sentido dos ponteiros de um relógio. Mesmo parado, na suprema arte de ser livre. E regular.
E assim, nunca se sabe certamente o que está para lá. De Calcutá. Da linha do Equador, de uma face reservada, do meridiano de Greenwich. Coordenadas a tentar dosear quanto muito o estar, senão o ser. Caminhos são setas para a frente. Reticências boas, como pequenos salpicos de realidade que se apresentam aos poucos.

Todas as curvaturas interpõem novas linhas de horizonte. Essa é a verdade inquestionável no simples acto de pouco rigor de que é objecto o olhar. O ponto de vista que de tanto depende e em tanto se deixa mudar. Mas a noção do todo a estruturar as partes imperfeitas. Pequenos braços de flores. Fugitivas Rosas, em terror de Narcisos, são tristes Malmequeres. A gritar Amores-perfeitos. E Rosas e rosas com espinhos. Narcisos afogados, Malmequeres desfolhados. E amores sempre perfeitos contrafeitos e afirmados. Zoom out…
Floresta.

Caminhos na floresta densa, sem a noção longitudinal da terceira dimensão do carreiro possível, e apresenta-se um muro de troncos fortes, estanques e misteriosos e vidas a barrar qualquer visão em perspectiva. A noção do espaço. Como as volutas de uma cortina sólida e transversal a encobrir e a impedir. E não é assim, no entanto. Parece. Mas sabe-se de sempre que cada uma que se apresenta com se ao lado da outra e de todas as que são visíveis, e a fechar o olhar para o que depois, nem sempre está no mesmo plano. E como tal, abrem em si asas de vazio. Boas. Ao ensaio de caminhar. E assim se faz o caminho de desconhecimento e de saber teórico a moldar as possibilidades do olhar, do sonho. De continuar. A perspectiva, descoberta para ilusão da profundidade, ou a perspectiva, ardilosa, a iludir no real, a bidimensionalidade finita e aparente ao olhar. As árvores. E tentar para além das árvores. Como se o todo pudesse apresentar-se só assim. Por querer.

Fazer tempo. O tempo que se faz no caminhar.
E por entre as árvores. Mas não esquecer os sons bons. O estalar fino de ramos e o crepitar de folhagem seca sob os pés. A pontuar. O olhar para cima, entre ramos intrincados e folhagens densas. A entrever um céu sem dimensão e sem limite. E ser por momentos a sincronia exacta no espaço. A pontuação a fazer-se lugar de exactidão. No meio delas. E só por isso. Secretamente. Exclamações sóbrias, dramáticas ou afirmações delicadas, consoante a espécie e o estado do tempo. Conjugado no outro verbo.

*Friedrich Nietzsche

18 Nov 2019

Maré de mar

[dropcap]M[/dropcap]ármara. Mar mente. Mar de Aral. Mares e marés, extintos ou por extinguir. Mares. Mares interiores. Marés de vagas mansas ou insubmissas a avançar por nós ou a recuar com a força do que é assim em virtude de ventos e lunares atracções. Solares. Desvios de uma inércia pela força da gravidade. Emoções graves a gravar no corpo rastos de sal. Rastos de sol.

Estar em cada momento em cada maré. Estar de maré. Um estar, como tendência para algo, em vagas, em nada definitivo como elas. Que quando tendem para terra, sempre voltam a tender para o mar. O mar e mares. O todo e as pequenas águas. O todo, mais todo, e a parte mais parte.

Águas pequenas face aos oceanos. Escondidas deles ou à espreita. Interiores fechados. Interiores isolados. Ou abertos em pequenas deixas, estreitos pontos aquosos de passagem. Mas o interior, sempre interior, o oceano também.

Amar o mar. Amar o desafio orgânico, o embalo e o risco. Aprender-lhe o perigo e deixarmo-nos morrer dele. E do risco, uma vez mais apreender a curva de nível, essa linha dos acidentes geográficos, em cotas ou alturas. Da linha do risco, a aureola topográfica que define a insularidade do visível, ou a insularidade da terra invisível por debaixo da água. Insularidades diferentes como eternos símbolos de contentor ou continente. Mar interior. O avesso insular.
Tanto mar.

Mares tímidos e isolados no seu ser avesso e sem comunicação. Fechados e interiores. Entranhados em terra. Baixos, silenciosos, por vezes mortos. Mortos de vida possível e ainda assim a morrer mais. Como o mar Morto. Que já o era, mas ainda tem vida para morrer. O mar Cáspio, o mar de Aral. Grandes lagos salgados. Grandes lágrimas retidas na face da terra. A secar com o tempo. E outros. E mares alegres ou mediterrânicos, de uma pontinha espreitam o grande oceano e daí se fazem trocas e temperaturas a refrescar no que é vindo de longe e da amplidão. Portas que não se fecham, mas resguardam a interioridade. Outros abertos, pontuados de ilhas e ilhas, estranhas identidades junto a mar aberto, ou ao oceano, dizendo bem. Juntas as águas, mas distintas. Num namoro fluido e duradouro. Abertos ao mundo e sem fronteira nítida entre uma gota de si e uma gota que não é de si. O da China, o do Japão. O mar de Celebes, o de Flores, o de Mindanau. Tantos. Junto a cada oceano, a cada continente. Ou por dentro.

Que outras marés de uma vida, de um corpo, se foram com o mar de Aral. Que águas se retiraram como dragões do mar no Triássico, quando um ecossistema emocional se altera no corpo do sentir. Temperatura, alimento. Ou a extinção abrupta das estrelas. Do mar. Milhões atacados por vírus. Coisas tóxicas que matam. As outras, mais lentamente aos olhos. Continuamos a vê-las quando já lá não estão, mas a notícia, esse rasto visual que um dia vai chegar, leva o seu tempo.

Como uma dor a instalar-se depois do trauma. Mas não logo. Só quando o corpo a reconhece, repara, passa a sofrer. A doer. Um desfasamento ínfimo no tempo. Se pensarmos no tempo de uma estrela. Estrelas e dragões, num intervalo estreito entre a memória e o mito.

Mas mares e lagos, mesmo açudes a entristecer os corações de ausência, e com as suas águas, a vida. A ensombrar olhares de futuro incerto nos interiores. Do Brasil ou da Rússia. O mesmo mundo e a mesma humanidade. A construir por um lado e a destruir pelo outro.

Da geografia. De uma geografia como a de sentir. Revela-se uma topografia em linhas sinuosas, desenhos de limites entre camadas em altitude e profundidade como fatias de um real em que nem sempre há comunicação entre vasos. Porque nem todos comunicantes. Mares que ficam abaixo do nível do mar. Como se contrário ao senso sentido comum. Que realidade se desprende de um mar interior. Esse avesso do insular que nos habita. Que calmarias os limitam adentro dos seres que os protegem como continentes. Contentores, na verdade. Aquilo que contém um mar e as marés que esse traz. O que define um mar interior para além dessa contrária imagem, à imagem de ilha. É sempre a terra que esconde, se esconde ou revela. Que se tapa, da fluidez das águas como suaves velaturas e sedosas, ou se desnuda. E os mares. Mesmo abertos para os oceanos, sempre isolados em si. Em ilhas de liquidez e de águas distintas. Outros com apertadas portas para as águas exteriores. Outros, os mais solitários, isolados em ilhas como pequenas peças de roupa a cobrir um seio de terra. Sempre a terra na base de cada chão. De água. Só dos icebergues, flutuantes gigantes de gelo sem mais, soltos e imensos e secretos se diria secretas ilhas. Verdadeiras. Rodeadas de ausência por todos os lados e mais um. O céu.

Da imensidão oceânica a devastar progressivamente a terra emersa, na ameaça de engolir como a outra, não vou pensar. Os mares, sim. Os interiores e que mais mansos do que os outros, particulares e pequenos, se distinguem no modo como navegamos.

Quanto em nós é levado pelos mares. Quanto de mar interior, se funde no grande mar de contemplação. Perpassando num estreito em que flui a alma. Quando aí se refresca de límpida serenidade, pequenez confortável. Comunicação de iguais na essência, mas a humanidade pequena do pequeno mar, face à humanidade abstrata do enorme mar. Quanto nos embala numa onda suave de melancolia ou poético sentimento de algo, ou nos submerge em reviravoltas de que a custo retomamos as coordenadas, sustendo a respiração para que o mar não invada todo o mar interior. E de que a custo, voltamos a emergir. Mar perigoso o grande mar. Quanto mar agita. Quanta água afoga. Quanta mágoa afoga. Ao longo de uma vida. De um dia. De um dia na vida de mar interior. Tanto mar.

7 Nov 2019

Outras margens

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] que me faz falta às vezes é o nada fazer. Aqueles dias em que a actividade parece um atributo acessório da existência, que em nada tem a ver com uma qualquer natureza ontológica. Que a contradiz em tudo e a força a uma outra coisa em nada semelhante. Incluir assim, nessa ânsia de existir simplesmente, uma certa indiferença a dormir ou comer, mesmo. Tarefas, decisões e horários. Estratégias, hierarquizações e planos. Uma espécie de jejum radical para a revisão de todo um mecanismo complexo de sentir. Do sentir. Sobretudo naqueles momentos particulares em que tudo nos quer ver bem. Ajudar. Sugerir. Tudo nos quer naquele lugar confortável que não inspire preocupações. Diminuir a dor. Obrigar. É nesses momentos que vem por vezes a recusa radical. Um luxo de liberdade a que nunca me dei por mais do que momentos. E depois voltar. Tão igual como qualquer rio que nos acompanhe os olhos na cidade onde vivemos. Nunca outro. Nunca as mesmas águas. O tempo.

E voar um pouco mais longe do que o fim da minha rua só para andar ao longo do rio. De um outro rio. Um outro cenário. Um outro café. Sentar-me num café que não é o do topo da minha rua. Sentar-me da mesma maneira e cruzar a perna da mesma maneira. Olhar o mesmo infinito sem consequência, sem explicação nem sentido. Mas ser um café que não é o da esquina no fim da minha rua. Sair da vida do costume como se a deixasse lavada de fresco e bem passadinha a ferro, impecável em cima da cama, para vestir num outro dia. Mas vestir uma outra. É o que é preciso, às vezes.

Convalescer de estar triste, com uma manta de lã fina e quente, quase sem peso sobre as pernas, como num sanatório de montanha e relegar tudo para um plano entretanto de irrealidade. Ou convalescer nas palavras mais eficazes do que o motor de um 787, ou um A350. Do que um Concorde. Daqueles que caíam facilmente. Como estas. Depois. A cada dor particular o seu placebo próprio. Passar por uns dias. Passar por uma cidade estrangeira, pela vida como se pela vida de alguém tal e qual como uma “Laura, on the train that is passing through”… uma vaga melancolia sem questões de maior. Há momentos de dor. Ou de dores variadas. Não ter vergonha da dor ou da ausência dela. Deixá-las seguir o seu curso e o seu tempo. Cobri-las com uma lã fina para não terem frio a mais. Do que o do seu inverno. Mas as dores devem ser tão leves aos outros, como os outros a elas.

Há ideias mistas que se colam ao corpo como uma pele fina mas forte. A mistura de sentimentos de sinal oposto. Se haverá ou não sentimentos maus de sentir é o que me intriga tantas vezes. Sentir á o último reduto de estar. De ser vivo. De viver para o que naturalmente cresceu em si e não se alterou na essência. Sentir sem o escudo protector da indiferença benigna para que não haja tempestades que façam naufragar. Coisa a proteger. Talvez. Para que não me espreite ao espelho o rosto de uma planta. Uma flor. Não há sinal maior de estar vivo do que a dor. Dói-me logo existe em mim. Existo. A excluir outros sentimentos de igual capacidade de absorção de tudo, de mim, de toda a dor de todo o insucesso. Como o amor. Sim. Porque renegar o sonho maior de tanta gente. Coisas vagamente vergonhosas. A dor, como o amor. E a rimar.

Passear numa cidade estrangeira. A dor. A perda. Tudo o que reunido é o que sou. No momento em que vou. Passear numa cidade estrangeira ao meu círculo vicioso. Um beco circular. Passear como se nada mais fosse possível fazer, e escolher o cenário que há-de preencher os olhos senão a mente. Mas a nova paisagem é como convalescer na Montanha Mágica de Mann. E tudo ser relativo ao momento em que tudo e nada pode ser possível. Em que tudo fica igual ou muda. Como sempre. Só num outro cenário e como tal a validar o momento diferente de todos como todos são de todos. Não há como uma viagem para nos catapultar para o espaço sem tempo e o tempo sem dono e não há como estar só para que tudo seja possível de não ter sentido nem metas nem sucesso nem horas nem sentido nem culpa nem nada. Mesmo.

Há cidades para sempre entranhadas no mais recôndido escaninho da dupla e retorcida hélice do nosso ADN. Cidades feitas do ouvir contar, das fotografias e dos filmes de sempre. E da história, que estrutura uma origem de que se gosta e quer sentir fazer parte. Dos álbuns e dos livros, do cinema e das memórias coladas a uma canção. A muitas. Memórias às vezes sem dono, já. Das pessoas que nunca conhecêramos não fosse a esplêndida presença que deixaram em objectos que voltamos sempre a visitar, a revisitar como num domingo se visitava a família. Que nunca conhecemos mas conhecemos melhor do que a muitos dos nossos. Com quem nos cruzamos um dia numa das estradas de um momento de sorte e acaso, e por quem nos apaixonámos de emoções fortes, de ódios e rejeições ou de amor mesmo. Pessoas com nomes que nunca esquecemos e que nunca morreram para nós, póstumos a elas, por vezes, a quem encontrámos já em dimensões diferentes da matéria e do espaço, mas que reconhecemos como nossas. As nossas pessoas do intelecto e as nossas pessoas da admiração e as nossas pessoas de quem temos tantas fotografias que quase tomámos café aqui e ai com elas. Espiadas e abstraídas de nós. Também elas. Tanto a conhecer numa cidade onde não se nasceu nem cresceu mas acrescentou mundo e o olhar perdido nos limites da sua aldeia não fosse assim. Ou talvez nem fosse assim. Como dizia o poeta. O mundo do tamanho do olhar que se lhe deita. Mas assim é mais. E cidades onde se quer sempre voltar.

Estar numa cidade estrangeira fervilhante de coisas, de fenómenos, de acontecimentos.. De objectos de cultura. De memória e de estar a acontecer. Numa arquitectura de trajectos de coleccionador. E não ver nada disso. Quase. Porque de uma cidade estrangeira de que goste, gosto sobretudo da cidade. Esse ser articulado, pujante e indiscutivelmente vivo. Dentro de lugares fechados para a cultura, ver só o suficiente para amadurecer em horas e dias. E dar as margens de silêncio precisas. Rigorosas como uma moldura a proteger e a guardar o tempo e espaço para pensar. Sem ruído. Sem sobreposição. Caminhar numa cidade civilizada. Num modelo cultural. E não esquecer de ver os sem-abrigo por fora das janelas de cada museu. Alguém que dorme às oito da noite numa manta de quadrados porque não há mais mundo por hoje. Os que pedem para comer. Tantos. Rostos morenos de famílias inteiras ao longo do rio. A vida. E aquelas figuras arrumadas e dignas como uma certa classe média. E que sobriamente também estendem a mão. A vida exposta na palma da mão limpa. A vida.

Quilómetros num sentido ou noutro a mergulhar os olhos no verde denso das águas do rio que lembrava mais largo, e no ocre claríssimo como se duma cor diluída para não ferir. Quase um cinzento de prata amarelada. Os prédios todos semelhantes nas suas inúmeras diferenças. Apaziguados numa harmonia cromática de extensão confortável sem sobressaltos. E assim ao longo dos dias. Pequena, grandes incursões para dentro das margens e voltar. À referência. Nelas, entrar em cada igreja não programada. E lá bem no fundo suponho uma súplica. Tão ténue e escondida até de mim. A sentar-me por longos momentos de respiração. Talvez que alguma coisa de mim, através de mim e sobre mim me salve. Deste momento. De mim.

E todos os dias partia desalvorada do hotel para o rio, ali mesmo ao fundo da rua, quase como se em casa. Mas outro rio. Às vezes é preciso outro rio. Como o tempo. E partia apressada com a alma desfraldada a sair dos bolsos já de si cheios de pedras e pesos. Desfraldada e não feliz. Mas expectante dessas horas como um grau zero de existência plena, a caminhar simplesmente pelas margens desse rio. Só. Para dificuldade bastava aquele longo e prolongado tempo a reunir coragem de deixar a cama para trás. Com os seus fantasmas desalinhados e em pijama até à noite. Ideias que nos colam ao corpo, como quem transporta os ossos dos antepassados, limpos de toda a existência no silêncio de um pequeno saco. E guardar silêncio sobre a dor. Mesmo de mim. Ferreamente diluída nos passos enquanto não pararem sob o efeito dos olhos.

Porque às vezes é preciso ir mais longe, onde nada exige essa felicidade que nem sempre pode ser. Pesos. Ou seria a mala a fazer peso nas costas. Cheia daquelas coisas-casa. Livros de páginas em branco, canetas pretas, duas maçãs, a máquina fotográfica. O mapa a refazer um mapa, outro, mental tão desfeito ao longo dos anos. A reler nele, saborosamente, os nomes. A imprimir numa nova memória. Coisas. Inseparáveis e pesadas como uma concha de caracol. Inevitáveis. Curiosa concha-caixa a desse molusco, concha-casa espiralada e esconderijo, quando é na realidade o esqueleto externo. Como o mistério de uma mala de senhora. Desde aquela bolsinha minúscula onde mal cabe o pó de arroz e um lencinho bordado, porque mais não é preciso para além do batom, até ao por- aí- fora das dimensões e dos mistérios esclarecedores de uma diferenciação social, cultural de uma emancipação ou de um desamparo a fazer transportar um mundo- concha. Que aquilo que se transporta é um mundo…uma gaveta escolhida do mundo como um esqueleto externo. Um arcobotante a suportar uma eminência de queda, um peso a mais. Espiralado como as curiosas camadas de ser que precisamos poder derramar numa emergência em branco de papel. Ou de um olhar que é preciso prender ao vidro de uma lente. Para ver melhor. Apurar o cenário em que se representa um intervalo de tempo depurador. Coisas. Daquela mala desenhada para se prender firmemente às costas, ao peito, como se parte delas, dele. A fazer peso mas sem tolher os passos. Numa pressa de chegar. Ao rio. E aí parar numa das margens. A respirar fundo o alívio de ter chegado ali para ali caminhar. E caminhar ao longo dele. Grande demais e como tal inesgotável para a minha pequena escala. O que é bom. Que o mundo seja grande e o tempo também.

A pequena história destes dias. Resumida à sua verdadeira extensão. Passear até à exaustão e pelas horas adiante, com aquela pequena garra fincada em mim em pano de fundo bem fundo. Para aquém das tonalidades envelhecidas em texturas suaves. De todo o cenário-cidade. Do céu. Cinzento a combinar. Respirar em grandes haustos um ar que parecia limpo do que ficou para trás e trazem até inesperados perfumes, de árvores não, que por todo o lado friorentas e nuas, mas arbustos que se cruzavam comigo, rápidos no andar. A andar como se para sempre. Para sempre acompanhada. Como por sombras num pano de fundo. Bem fundo. O que não tem remédio. Sinto, logo existo. Que maravilha única e insubstituível. Acontece uma vez. Não acredito em mais. Estar em Paris só para estar em Paris. Para andar ao longo das margens. Minhas. Do rio. Coisas diferentes. Há um peso que cola os passos ao chão. Mas a cabeça sempre mais acima do que os pés. Essa tonta. Tresloucada. A vida, digo eu. Inalcançável senão por partes. Dias.

Paris é uma daquelas cidades a que pensei só voltar só, ou com um grande amor. Aqui estou. Sem querer distinguir as ramificações de uma e outra verdade. Ambas acompanham como uma pessoa querida.

Está frio. Ponho quando posso prescindir delas, as mãos nos bolsos. Quando cabem. Saem por ali tantas coisas. E luvas, e bem lá no fundo para não o perder, como o primeiro mapa que me caiu por ali algures, um coração. Suponho-o diferente. Vi-me diferente – nesta cidade – depois de vinte anos. E noutras margens. E este é outro talvez também. O último romântico. Não o posso deixar cair por aí. Nem esquecê-lo no check-in. Vai ser revistado, talvez acusado de ter em mililitros mais do que o permitido transportar. Como o champô de que eu gosto. Suspiro. E continuo. A atravessar pontes sobre o rio. A acompanhar o rio sob pontes atrás de pontes a parar e com a alma sempre cheia de uma canção. Que durou dias.

10 Mar 2017

Mais infinito, menos infinito

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á dias em que tudo me é estranho. Para ser rigorosa, todos. Tudo me é exterior, incompatível. Como nos transplantes de órgãos. A compatibilidade do D.N.A. chega aí. Mas depois é todo o organismo a tentar reconhecer a pertença. A nova pertença, qualificada e aconselhada. E mesmo assim reage. Às vezes. É o sistema imunológico que rejeita afinal o que é corpo estranho e mesmo para salvar, estranho. Ninguém sabe de facto o que nos salva, para além de probabilidades cientificamente analisadas, ou nem mesmo assim seguras. Até um ponto. O ponto de ruptura com o que é estranho. A morte. A morte é uma criatura estranha.

Retratos de família. Amores-perfeitos. Existem? Sim, as flores. Cresce-se numa cadeia de muitos elos de estranheza, só porque é assim a família de que se parte. E só isso, sem se dar conta durante muito tempo, cria um bicho estranho também ele a crescer subterraneamente e a insinuar que por vezes somos matérias tão diferentes que não há ADN que explique o que nos liga senão uma tradição. E que daí ao amor vão léguas submarinas. Difíceis laços estruturados em rede, em que uns nos trazem outros agarrados por inerência inultrapassável. Proximidades a tornar nítido um desenho de incompatíveis formas. Desarmonias. Quando se tem a sorte de ter uma família grande, é bom. Há sempre aquela metade difícil. Dispersa por inúmeros ramos. Mas há a outra, também. E às vezes difícil. Também. E é talvez assim que se começa lentamente a delinear contornos de imperfeição, sentimentos ambivalentes e contraditórios e uma síntese progressiva entre uns e outros. Valiosa, essa. A aprendizagem da imperfeição. Dos amores imperfeitos. E entre aqueles que são mais infinitos, e aqueles que são menos infinitos, cresce a certeza de que um ou outro, são definitivamente finitos.

Ter um avô que se suicidou pouco antes de eu nascer, não me levou nunca a levar-lhe a mal a desfeita. Falava-se pouco desse avô, como se dele pouco sobrasse para além disso. Uma ou duas fotografias minúsculas com aquele detalhe fino do contacto directo com o negativo. A luz desenhada com precisão. O recorte nítido. Mais nítido do que ficou em mim que dele pouco ouvi. Pouco entendi daquelas feições. Um rosto severo e cerrado de contrariedade. Idealismo, talvez. Uma questão de honra, dizia-se. De vergonha. Sítio pequeno. Cercado da vasta planície coberta daquela luz inclemente sobre tudo. E sobre esse talvez idealismo que o fez desistir. Tantos filhos e tantos netos, uma mulher honesta e trabalhadora, e deixou-se sucumbir pelo erro da única filha mulher. Rapariga de menor virtude do que as agruras do tempo e da terra – dele – admitiam.

O meu pobre avô Custódio Augusto. Deixou-nos honestamente a culpa em herança. A sua. Não a sua vivida, mas a sua contada. Para se fazer significar. A de existir assim. E toda a outra culpa, que não a dele, sobretudo, e viva para sempre. Afinal. Honestamente e com toda a ternura que me causa esse avô desconhecido, para além do pouco contado – que pena não ter perguntado mais – e de duas únicas fotografias naquele fato preto das ocasiões, não por elegância, que no campo não fazia talvez o paradigma de um homem sóbrio e reflexivo como ele, mas da decência, seja lá o que for que isso é, valeu a pena? Eu digo, e digo com voz pequenina porque o universo é grande e eu não, que temos que olhar com a força possível aquilo de que gostamos, sem memória. Só olhar o momento talvez assoberbado por um sentimento se for maior. E chega para passar ao outro dia. Não ambicionar mais do que a profundidade honesta de um momento, como uma engenharia que não se sabe a que construção leva. Mas algo ficará construído. Na economia complexa da existência.

Mas ele não teve a serenidade de aceitar e deixar passar o tempo sobre aquilo que não podia mudar. Mudou o que estava ao seu alcance. Não se conformando com uma realidade, menos do que ideal, real. E deixou que a culpa tomasse conta da vida e depois, da morte. Até muito depois. A culpa é um sentimento inútil à falta de outras qualidades. Sentimentos. As pessoas gostam da sua culpa como de um animal doméstico. Mau conselheiro, quando só. Aborrecido, incómodo, às vezes. Mas o seu animal de estimação. É mais fácil criá-lo do que a um animal desconhecido. Mas triste. Como o medo. O pior inimigo da liberdade. E a culpa, esse animal de estimação, bem alimentado leva longe. A menos-infinito. Como ao avô quase desconhecido, ao desconhecido. E nada mudou à face do universo com a herança que nos deixou.

Não sei se é fantasia minha, ou se é a memória do meu próprio olhar ali solto em liberdade condiciona sobre as planícies, sobre o gosto árido das planícies, mas sempre me lembro de gente do Alentejo com uma espécie de olhar mais atirado para longe. Sem obstáculos. E a olhar directamente os olhos dos outros. Dantes. A perscrutar almas e vidas. Talvez a transparência entranhada entre muitas rugas de expressão ou de protecção da íris, daquela luz toda. A semicerrar pálpebras e a atirar mais fundamente o olhar para o espaço grande. No campo. Mas melancólico olhar, talvez. A gerar frio na alma torrada daqueles calores. Sem sombra para abrigo. Virada para dentro então.

/ Terra da cor dos olhos de quem olha! / A paz que se adivinha / Na tua solidão / Que nenhuma mesquinha / Condição / Pode compreender e povoar! / O mistério da tua imensidão / Onde o tempo caminha / Sem nunca chegar!…Miguel Torga, sobre o Alentejo. E porque não existe uma realidade constante. Mas, sim, estados de consciência, que definem o tom de um olhar nas coisas. Penso às vezes que é a lonjura do mar no interior. Que ali parecia não poder levar a lado nenhum. O tempo ou os passos. Sempre me intrigou o fenómeno do suicídio na planície alentejana. Deveria dizer planura, talvez. Ondulada e ampla. Arenosa, às vezes, e pontuada de sobreiros. Ou oliveiras, a intervalos, como se de propósito para deixar espaço ao desenho nítido das sombras. Nas dunas infindáveis sem mar à vista. Está mais que demonstrado que uma certa alternância nas vagas do sentir momentâneo salva de muitas prostrações, emoções variadas e megalomanias existenciais. Um momento depois, sabe-se, e o que era para ser nessa economia muito espontânea, já não é. É o que nunca era para ter sido senão como vislumbre. Maré cheia, maré vazia. E sempre alternando. Sempre me fez pensar essa melancolia atroz da planura das planícies. Uma espécie de insularidade não reconhecida, não pressentida. A moldar as disposições para a morte. País tão pequeno este e mesmo assim.

E ela, pelo contrário, tão, tão resistente. Tão de infinitos. Ainda não passou um mês. Sobre minha árvore-mãe caída. E eu dela. Uma folha. Um lamento privado. De pessoa sem árvore, sem raízes, sem frutos. Um dia destes soube que tinha chegado a outra metade diferente da vida. A menor. Soube-o como folha caída abraçada a outra folha caída da mesma árvore. Ali, ambos, sós em frente à árvore – é bom ter um irmão – ela ainda ali caída e para sempre arrancada pelas raízes. Dias depois os dias começaram a chover e foi terrível. Saber que lhe entregámos o corpo à terra como era seu destino. De árvore.

Estávamos ali, dois troncos quebrados à beira da árvore mãe e por momentos entrelaçados num abraço raro e de silêncio, e, na despedida inclemente, a sós. É bom haver um outro ramo da mesma árvore -caída, já disse – e enlaçado no outro único ramo da mesma árvore caída. Ele respondeu-me estamos todos. Cada vez mais sós. Disse como um ramo da árvore ao outro ramo menor da mesma árvore. Foi a coisa mais existencial que lhe ouvi em muito tempo. Morri para dentro um bocadinho e por ele quando disse. Com ele. É bom ter um irmão. Também ali em frente à nossa árvore caída. Já entregue a outra dimensão da cósmica destinação se a há. Ou senão, de um outro sentido qualquer no não sentido de não se querer sentir. Ser capaz. De continuar. E há qualquer coisa especial no facto de termos caído da mesma árvore. Árvore – tronco e raízes fundas, disfarçadas nos objectos que deixou. Tantas coisas que só eu sei por detrás dos sorrisos fixos nas fotografias. Que só eu vou lembrar porque espiava os seus males. Mesmo sem os querer. Saber. Há momentos em que o meu luto é de guerra. O negro é o que se faz por dentro e que nem sempre transpira nas roupas. Mesmo no riso. Estávamos ali. Ramos caídos mas num destino possível. Ou eu e uma folha do tronco ao lado. Ou do mesmo tronco. Com a mesma árvore a quem chorar, com as mesmas raízes soltas da terra. Estávamos ali. Ramos caídos da árvore. Mas estávamos ali, subtilmente entrelaçados para o resto da vida. E há vida.

Voltando aos amores-perfeitos. Amores-perfeitos adubados e frágeis mesmo assim. Lindos e frágeis. De aparência. Mas fortes e resistentes. Frágeis e resistentes, como ela. Ao frio. Ao calor. Coloridos e aveludados e manchados de escuro como asas de borboleta. Será talvez assim que as atraem. E às abelhas. Mas duram uma vida de flor. Falo tantas vezes em rosas. Sempre me lembro de as termos em casa, em vasos. Amores-perfeitos, nunca. No entanto, infinitos.

10 Fev 2017

Branco-cinza. Cor de rosa

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á uma cidade submersa por detrás de cada frase. De cada pessoa. De cada paisagem estranha de sonho. Aquela quase brancura do céu nas noites de chuva mansa e monótona e às vezes acabada. Como a pele clara mergulhada na quase escuridão, de quase não pensar. É o quê, o corpo, senão uma imensidão branca e momentânea no resto da noite como o céu no resto da chuva. Um corpo a apagar. A acender, a apagar. A mágoa a apagar o que o corpo acende. Às vezes. Desvendar como aos olhos. Como se uma impossibilidade fosse visível na possibilidade de um corpo. Uma visão completa do que é para além. Dos espasmos. De uma respiração rouca. Gritos. Mesmo. Se mesmo, algo cruzasse nos sentidos todos, a fronteira fina da pele. Mas mesmo assim não há menos do que dois ou três, num. Sentir, olhar, pensar. O outro. E são quatro, já. Ali. Na mesma cama. Na mesma noite branca acinzentada, e de restos de chuva, ainda a escorrer de tudo. Intervalados ruídos frescos. Irritantes e cavos, dependendo do que tocam. Alguns. Outros, devagarinho, a envolver. Em insólitas geometrias secretas. Daqui e dali. A ecoar na noite. Branca, cinzenta, citadina, como só as noites. Sobre paredes, canos e vidros, e tudo ao negro, ou quase. Excepto a noite do céu. Clara e impiedosa a correr sem se dar por ela. A correr lenta. Clara. Clara e lenta e surda como só a noite. Na cidade real e adormecida. Ao lado do corpo.

Cerra-se-me o silêncio como uma banda adesiva em torno de pensamentos e palavras de conclusão. Cerram-se as palavras em torno de pensamentos e penas. E como penas e penugens de asas friorentas sobre o corpo de uma lógica e uma não-lógica. E o frio. E provisório tudo.

As pessoas viram o cérebro do avesso e mobilam a casa. Ou perder-me em auto-estradas de circulação restrita. Marear sem cuidado nem destino e voltar a casa ao Cabo da frustração. Mas é uma coisa perecível sempre. Cada tom e cada lugar e cada passo. Passou. Sei lá, às vezes o que fazer de ti, de mim. Na memória. Beijos. Como a terminar uma carta mas com a polpa de um lábio inferior nítida. Nítida e doce. Depois a flor. Já na almofada. Não sei se minha se no sonho, minha. E falar. Não é que tantas vezes não pense que me desenganei no ficheiro e cliquei no poema errado. Poema, loquema, fonema, criatema, problema. Coisas que nem existem. Abraço a almofada com força.

Todos os dias até à noite, ou sobretudo aí aquela vontade teimosa de que ainda chegue algo consolador. E ao mesmo tempo que rejeitar a ideia de fechar o dia na noite da cama do sono e do fim, e nele, nela, a vontade do outro dia. Do seu desconhecido, do seu desconhecimento absoluto no que traz e no que retira. Fico entre portas na indefinição de querer e não querer ouvir. Ver. Perguntar, esperar. Acabar. Desesperar. De não ver. Sempre. E como se as palavras da escrita pudessem ter as cores de uma aguarela sóbria etérea e deslavada de qualquer colorido rico e definitivo, e dela sobrasse apenas uma memória fresca mas fantasmagórica da cor. Das cores. Das cores suaves de ainda não serem no esplendor do meio-dia. Da fantasmática misteriosa plenitude da meia-noite iluminada de lua, do desconhecido absoluto de uma noite sem luar, ou da misteriosa vida anunciada em declínio pelas cinco da tarde a reverberar como iluminadas por dentro as formas. É já uma madrugada nublosa daquelas em que a maior violência que se pode imaginar, para além de todos os pensamentos pendentes de outros dias, para aquém deles e dos dilemas, mais dúvidas do que dilemas, para além de tudo o que acorre de assalto no primeiro minuto vigilante, é ter que sair do esquecimento morno dos cobertores de lã. Em que há sempre ainda a esperança de retorno ao sono.

Mas que já não volta até outro dia. E o apelo frio incolor da madrugada, ali, como um chamamento indeciso mas persistente. Avanço no campo de vimes e hastes a amarelar sem estação convicta. Rígidos e estaladiços. Discretamente crepitantes, frágeis na forma e espessura, mas que picam. Que arranham, que ferem discretamente a pele sem impedir de avançar, sem se lhe dedicar um pensamento mais do que ténue como as cores. Momentâneo como cada passo. E passo em frente com as árvores ao fundo sem saber porquê. Porque vou. E uma haste perdida no meio de tudo, uma pernada de roseira brava por engano. A diferença entre tudo o que se assemelha. No meio, bem no meio do que se assemelha. E, como por ilusão da vontade, vira uma corola coroada de pétalas frescas de cor suave mas cor. Vira para mim imperceptíveis milímetros das pétalas abraçadas entre si e penso que não são girassóis ali. Pergunto-me porquê. Que nada em mim tem o alo ensolarado e radiante matinal de um sol da terra. Mas avanço deslumbrada. Chego-lhe perto demais. E estendo a mão no encantamento de uma rosa no meio de silvas e outras agruras. E pergunto, recolhendo a mão posso…posso tocar…pergunto sempre e nunca sei a resposta porque é assim que eu sou. Para além dos olhos nada mais sei.

Diria que me olhou ao chegar. Mas talvez não. Era talvez o meu desejo deslumbrado de a ver diferente e bonita. Ali. Talvez até nem estivesse ali ao fundo, mas por detrás dos olhos com que a desejei. Ver. Pressentir ao fundo. Alugar os meus passos até. E chegar. E perguntar posso. E vê-la ainda talvez amuada ou irritada da minha pergunta. Que faço demais. E olhar…Também. E perguntar. E olhar. E perguntar. E nunca saber ver. Sem perguntar sem saber. Quase jurava ver-lhe, se estava ali, um risinho sarcástico ou uma ironia imperscrutável do que diz claro que sim. Ou de quem diz claro que não. Estavas aí…a mesma resposta, claro que sim, a mesma resposta, claro que não. É assim que eu vejo o que vejo. Afasto com a violência desesperada de ter que ser, os lençóis brancos, os cobertores de lã branca quentes e afáveis que me não podem prender mais e por que tem que ser este arrancar brutal, este renascer diário para o mesmo que me espera. E que, brancos, me dão a calma que não tenho, como aquela rosa. E a as nuvens correm como em certos dias, as ventanias assobiam e passam, o mar revolve-se na sua eterna e igual violenta imaterialidade, as coisas nascem crescem e secam ou morrem.

E eu estou aqui, sem voar de pés na terra e sempre com a mesmas dúvidas que me levam às rosas e trazem à matérica textura áspera mas calorosa destes cobertores em que às vezes sonho. E de novo aquela aprisionante sensação desesperada de nadar na espessura viscosa e densa das roupas de cama. Sem conseguir deixar o corpo afundar nelas e avançar na água. Que não podia ser mas se ansiava que fosse. Fecho os olhos ao ver que sonha. Que sonha uma que não sei se sou. Revolve-se nos mesmos rolos viscosos e cinzentos escuros da roupa e no mesmo sonho em que me vejo. Vista ou sonhada. Ou nada. Os olhos fechados não me permitem ver. Ver-me nesse sonho que não conheço. Ver quem sonha o sonho. Quem sonho e a quem sonho o sonho. Entendo sempre os meus sonhos de outros em mim. Nunca em mim me entendo nos sonhos de outros em mim.

É isso. Os olhos fechados que não me veem e sonham. Será a mim. Ou não. Acordo e não está ali quem me sonhou no meu sonho. Ou porque não sonho. Levanto-me de dentro do sonho do sonho. Do sonho. Um acordar penoso e longo como um túnel. De reposteiros pesados e escuros a transpor com os pés fora da cama sobre o abismo. Os chinelos são a aterragem possível. Atamancada e tosca como a de uma ave pouco habituada. E o dia rende a noite em cinzentos também. Mas do céu e por ali abaixo. Que respiro mas percebo suaves. Hoje. E, por momentos não saber nada. E ser bom. E ali, longe, todos os meus anjos voam no céu. Inalcançáveis vigilantes. Tão longe, tão irredutíveis, tão abstractos. Tão dentro de mim. Só me resta olhar para cima. Seguir-lhes os olhos ausentes como um último fio que nos liga. Um grito surdo.

3 Fev 2017

Sentido único

[dropcap style≠circle’]N[/dropcap]ada a reler. Como se sempre uma leitura nova. Quanto muito na música, eternizar na repetição obsessiva uma mesma emoção a distender-se sem querer o abandono. O caminho sempre em frente, afinal mesmo aí. Naquele momento em que a alma se nos cansa de si e segue. A fugir mesmo devagarinho mas em frente. Porque não há outra maneira de enfrentar o tempo. Senão deixá-lo correr para trás, como já visto da janela de um comboio. Sob a forma de casas, ou árvores. E de caminho Kant. Já nem me lembro porquê ao retomar este texto. Mas deixo a referência que fica sempre bem. Um filósofo. Nem sei muito bem já, se ainda aprecio filosofia. Mas não apetece um caminho morto. Um nome morto. Referencial só numa camada. De caminho Husserl. Mas nada disto é válido hoje. A filosofia morreu antes da cidade cibernética se instalar em torno. Exigente à adaptação de uma nova espécie que somos, ainda ancorada na anterior. É a era da linguagem mediatizada ao ponto da entropia total. Nunca tão grande indiferenciação entre os planos do real e da ficção. Nunca tão grande ambiguidade no encontro. No discurso. No desencontro. Nunca tão grande necessidade de rigor face à sua impossibilidade. A cibernética cidade frenética da comunicação. Da fuga. O que é gosto é vida. Em cada Kant, em cada canto, em cada cante. Caminhos são ideias boas de que me cerco com o tempo devido. Vazios como uma solidão expressa, mas a iludir um olhar exterior. Porque nem sempre. Vazio é o aberto e desconhecido. Que, em alguma medida, estrutura a viabilidade de uma existência.

Que seria de quem, lúcido de finitude, não esquecesse todos os dias. Todos os caminhos. Não se esquecesse do ser finito, falível, anódino mesmo para si, preso a determinismos vários e, por mais que adiado sem hora, irremediável. Então vazio e pleno, de imprevisto e indeterminadamente possível, faces de uma moeda consciente de vida. E de existência. Vazio em aberto. Num caminho. Para isso o silêncio. Às vezes. Liberto. A deixar ver o invisível. Seguir o invisível. Nuns dias. Noutros o visível necessário. Pequenas e grandes coisas aqui e ali. Chamar-lhe um nome ou sonho, talvez. A vida move-se, mas no erro de paralaxe. Que se compra em finitude e que se compra em eternidade. Há um erro para tudo e há um preço para tudo. Paradoxal. É o que nos anima numa, para viver como se real fosse a outra. Nos dois sentidos. No sentido alternado de ambas, inimigas inseparáveis, se descobre a hábil eficácia de cada parte. Outra vez a desesperante questão do indominável. No sentido.

Desde há dias fiquei em casa na companhia dos ácaros. São uma boa companhia porque não se veem, não se sentem, não se pressentem. Mas sabe-se que existem.

Uma parte de mim é pobre. Dedica-se a assuntos de limpeza, enquanto reflecte Deleuze, Derrida, Duras, Descartes. Por ordem alfabética e na desordem dos pensamentos atropelados por Caim de cada um, e enquanto se produz ordem na vida material. Ou é isto a vida, e nada suja as mãos na transumância de sentidos distraídos do pó de limpeza como do pó dos tempos. Dos micróbios, mesmo. Não visíveis. Esquecidos. Talvez não existam. Uma parte de mim não mora em mim. Vem e vai todos os dias incerta. Como chamar-lhe obsessão. Obsessão de morte, obsessão de amor, obsessão de me ver espalhada nas palavras que me perseguem por dentro. Não gosto de pontos traumáticos de interrogação. Reticências. E a liberdade no seu curso natural.

Sempre uma ideia fetiche. Do recomeço assinalado de cruz. A cada um o seu visível, a cada um o seu invisível. A não querer olhar para trás. Olhar para além e para longe na cegueira irredutível do vazio que se oferece a preencher. Como uma melodia mas em silenciosa aparência. Já um passo para além da dor. Uma bolha transparente e exterior. Entre mim e a dor sentida. Está ali a dor. A bolha casulo da dor. Em torno. Sangrada à força de mim. Está ali e isola-me de tudo. Fora. Eu também. Como expulsa de casa. Da bolha enorme. Da dor. E de repente vazia. A bolha. Eu. Do lado de fora de uma bolha vazia. Há um caminho depois. Como voltar a ingerir a dor. Para de dentro não obstruir o caminho. Talvez.

E perder o pé. E ficar a flutuar simplesmente num intervalo de dor. Entre a não dor, a dor, e a ausência estranha da dor. Sem saber depois. Mas é como se se me virasse o ser do avesso e não é bom. Há que voltar. Aos sentidos e ao sentir. Mas não àquele apego também estranho à dor como se nela se consolidasse a pessoa que nos falece e falece para não voltar. Excepto, parece, na dor. Por agora. O que é isto de não estar cá mais, é o que nem corpo nem alma admitem de repente. É isso. E de novo e sempre a imagem do caminho que se esconde e que é sem retorno como sempre.

Na infância, era a fuga. No sonho. Dentro do sonho, digo. E o temor dos sonhos da noite. Todas as noites a rezar, como a rezar, que o sonho fosse da morte. Não por a amar, só mesmo pelo branco ecrã vazio em vez de todas as possibilidades de sonhos maus. E na fuga, conduzia um carro. O que era do meu pai. Eu sei o que isso é. Aquela irreprimível necessidade de domínio. Do real. Que escapa tanto a uma criança. E depois. Sempre, também. Eu brincava com bonecas, mas no sonho de sempre conduzia um carro. Em fuga. Sempre de noite. Escadarias da cidade, incluídas. Sem pessoas. Só aquelas de quem fugia.

E depois, há muitos anos quando comecei a conduzir um carro andava como se a pé, com mil cuidados mas pelos caminhos de sempre na cidade. Ao fim de uns tempos não há quase o carro diferente do corpo. Mais uma roupa. Sapatos rápidos para andar e não sofrer do frio. Não era preciso pensar a cidade inscrita a direito num mapa de memória. Ali ao fundo a casa de. Virando à esquerda, o jardim. Um cotovelo de rua entre a mercearia e o terreiro de brincar. O caminho do 50. O do 46. Um dia começou tudo a desarrumar-se em estratégias e percursos indirectos, a cidade a tornar-se desconhecida na sua esquadria natural e a fragmentar-se em percursos. A esconder-se em túneis. A tornar-se misteriosa para além dos novos caminhos de andar. De carro. Saber que para virar à esquerda muito do inverso lhe deve anteceder. E no registo fragmentado de novas memórias, a cidade cada vez mais desconhecida. Em sítios novos sobra a noção de percurso a sobrepor-se a uma lógica de ruas, cruzamentos e curvas. Deixei de reconhecer a cidade inteira mas sim partes dela. Abstractas dentro dela. Como um novo mapa imaginário, desenhado numa teia de sentidos proibidos, ou obrigatórios, grandes curvaturas em hélice para chegar a um plano superior. De estrada. Não poder voltar atrás. Circulares fora do espaço. Uma cidade de estradas ladeadas de um nada superior ou inferior. Quando daqui ali era tão em linha recta. Dantes.

Depois a pensar para trás nos caminhos. Conduzir um carro entre janelas sobre estradas e caminhos. E um dia pensei reconhecer no caminho de sempre, um sinal do caminho inverso. Noutro dia, do mesmo caminho salta um outro sinal, invertido em tudo, e de novo, do caminho inverso. Na cidade alienada por percursos indirectos, e sempre os sentidos obrigatórios e sentidos proibidos, ir não é já o inverso necessário do voltar. Senão no paradigma de destino. Não no percorrer do caminho. Ir e vir na rotina dos dias. No hábito de horas a repetir sem outra semelhança. E um dia, reparar também que mesmo o mesmo caminho de ir e voltar, se apresenta desconhecido de si. O de ir, com as marcas de si e do ir. O de voltar, com as marcas de outras marcas como desconhecidas umas das outras. As marcas do voltar. Uma curva, na frente um letreiro x. Sempre. Voltar naquilo que descia, subindo. E antes, ter ido e ir, naquilo que sobe, descendo. A outra curva irreconhecida na primeira. Um outro letreiro Y na frente. Outro, sim mas que está ali sempre. E um dia, dizia, reconheço no letreiro à direita, o letreiro do lado esquerdo. Esquisito e semelhante. E o que curva à esquerda, invertido na curva à direita de outras horas. É o espanto. Nunca antes se tivera reconhecido no mesmo caminho e da mesma rua e estrada, um na inversão do outro. Talvez a velocidade que não é a dos pés e do olhar coordenado ao tempo desses. Um olhar por detrás de vidros e rápido e atento a outra fatia do real e assaltado de sinais soltos interrompidos na sua sequência geográfica e lógica. Antes. Durante. Depois. O que fica para trás, estranho enquadramento invertido no espelho retrovisor. É o espanto. Como se leva anos a reconhecer um lugar em outro. Alienados num percurso que os afasta de si enquanto lugar único. Preferir caminhar. Também. Como conduzir ou ser-se conduzido. Num carro. Caminhos diferentes sempre. Os olhos.

A pensar nas janelas do comboio, dantes, a realidade a correr para trás. E dia após dia reconhecer no caminho de ir sempre a ausência de sinais do caminho da volta. Mais tarde. Ao entardecer que também era marca de um olhar diferente. Ou porque me sentava do outro lado. Ou porque pensava em outras coisas. E mesmo os poucos sinais reconhecíveis, a parecer outros. Num caminho, No caminho de voltar. Ou, na realidade dois caminhos simétricos de ir. Sempre de ir. Mas fraca e indistinta simetria. Não há cainho de voltar. Dois destinos nas pontas de uma linha. Mas sentido único, de cada vez. E umas vezes segue-se o caminho do visível, outras o do invisível…

Como um fenómeno divertido nos dias, a não pensar. Para ir acontecendo.

Sempre tive um fraquinho pelo fenómeno. O real como se nos apresenta independentemente de tudo o que contrarie essa intuição. Sempre dividida em queda. Uma propensão para a verdade provisória da ciência. Sempre a aguardar a sua substituição por uma cortina nova de tecido fresco. E tudo o que deriva em todas as outras águas. E uma verdade baseada na não contradição. O princípio. Não se abala uma verdade que se ancora nos dados da consciência. Um lugar de conforto a ver bem. Despido dos acidentes próprios de um mundo real. Que realidade, é a questão fugidia a que não podendo fugir, se precisa de ligar a algo. A um plano definido de entre os estratos do real. De todo o real possível de pensar.

E depois pensar se aquilo dos caminhos únicos. Se aquilo dos sentidos únicos. Se é assim com os sentimentos. Os amores quando são caminhos que seguimos pelo dar ou pelo receber. Mas no amor, tudo se mistura depois e antes e não deveria haver esse traçado da geometria, essa matemática de vectores. Caminhei algumas vezes em sentidos contrários entre sentimentos entre impressões. Decisões. E também aí nada num sentido é reconhecível no outro como inverso. Sempre o espanto abrupto de um dos sentidos sem a colagem do outro. Sempre o espanto como se o caminho fosse um. Mas não será. Aí, caminhos talvez sempre outros. O de ida e o de voltar. Outras vezes sim, e a mesma admiração.

A vida exige demais e pela minha voz confusa e equivocada. Do tempo, talvez, desconfio muito e que muito. Não sei é porquê. Não fazer as contas a nada. E estou na hora do post-it amarelo. Caminhos. Dois pontos. Não confundir o papelinho da fantasia com o da ilusão. Post-it a prender no espelho. O da maresia e o da solidão – este no frigorífico. Ou vontade com vocação. Difícil, este. Talvez na janela…Que dá para a rua. Ela própria diferente no ir e no voltar, dela, em sentido contrário ao meu. A ir.

1 Fev 2017

Ora descrente

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo se acreditasse, só porque não faz mal. A inventar uma força para o feitiço. Descrente mas empenhada. À procura de algo que dizer por dentro. Ora. Talvez.

Chorei-lhe no colo pela última vez. A arrefecer, já. Ia dizer que o instante é fundamental no decurso do caminho. Hesitei. E depois pensei: falível. Não fundamental. Aleatório e de tão determinante, absurdo. E depois, de novo, fundamental. No criar de fundamentos. Fundações, alicerces. No colocar lento afinal de uma pequena pedra alinhada num sentido. Na berma. Pedra densa, pequena mas pesada contra o chão. Pesada contra o tempo. E pesada contra um simples sopro. Mas falível se tudo nesse pequeno instante que podia não ser, for apostado sem mais tempo. Quando é assim, coloca-se-nos a vida entre a espada e a parede do inevitável. Sempre dependente de maneira absoluta do instante. Irrelevante. Desprezável e ínfimo para tão grande desígnio. E os instantes não se cruzam facilmente com as intenções. São volácteis. Pequenas plumas à mercê de aragens múltiplas. Desencontradas da meteorologia. Há que ser pedra pequena, o instante. Esperar o tempo. Colocada firme e pesada no seu lugar. À beira do caminho. A desenhar. O.

No intervalo lembrei-me de “Run Lola run”, esse filme em várias versões sucessivas de uma mesma história, em que se vê como um ínfimo detalhe no seu âmago, podia de forma exponencial derivar para desfechos progressivamente mais divergentes. Esse peso do detalhe insignificante e quase sem dimensão, a determinar todo curso de uma história. A ramificação do real possível, encarnado em cada pequena partícula. E depois Oscar Wilde: os nadas. Os pequenos nadas sem relevância de sentido.

Ia dizer prisão, essa, mas não quero esta palavra. A das palavras. Enleio insolúvel de amor e raiva. Enleados nelas como em pedras que se derramam encosta abaixo e penosamente voltamos a emburrar carinhosamente, penosamente, carinhosamente, pela vertente do dia de cada dia. E da noite de cada noite. E do corpo de cada corpo que se revela no espelho de cada espelho, de cada dia. E no estanho cansado de cada noite. Como prática de vodu. Beber num copo bonito de cristal fino, tocar com as pontas dos dedos e fazê-lo tilintar de alegria melódica, e verter sem hesitação o melhor líquido. Bebê-las até que contaminem todo o corpo de torpor bom de calor ígneo e desinfectante. Deixá-las invadir sem defesa todo o espaço imaterial das sensações a recobrir fantasmas de pensamentos oportunistas. Palavras de viajar sempre mesmo que não se possa viajar nunca. Nelas, embarcar de bagagem leve ou nenhuma. De mãos livres para escolher tocar de tacto ligeiro e olhar apurado. Tocar aquelas de que se gosta a perder a razão. Não existe razão que ganhe à desarrazoada ilógica do querer.

Na verdade, penso aqui nelas como em amantes saudosos e desejados. Porque a tudo prestam o seu corpo corrompido. A tudo se vendem alegremente. Mas usar com rigor as tontas. Dar um lanche açucarado às mentirosas convictas e deixá-las para aí a entreter-se gulosamente de outras possibilidades. Já bastam as que dizem sem querer. As que pronunciam bombas num fogo de vista para encantar os olhos. Para empatar o tempo, para iludir umas da realidade que também poderiam ser outras. Eu sofro a tirania às palavras mansas e doem-me mais ainda as palavras tiranas. Sofro da angústia da palavra mas, e da palavra ébria. Mas é delas que se tecem caminhos para fora e para dentro de alguma coisa que se deixa distrair.

Estranhos lugares, os do tempo. O de hoje, por exemplo. Já não bastaria dizer a estranheza de um momento pendurado e periclitante entre outros de igual e furtuita deriva, como sobrepor-lhe o peso imponderável de uma mutação imperceptível que nos abala confunde e desorienta. Como os eixos XYZ a girar sobre si. Diria. Mas em pior. Sem rotação de rotina. O puro caos. Somos os mesmos num mundo outro de outros que nos tornámos na perda. Sem saber. Sem sentir e um dia estamos ali sentadas à mesa a sós, como estranhas que acabaram de se encontrar. A definir uma vida a dois. Uma e a perda da outra. Dela. O meu alguém-raíz. Transportamos a nossa própria gaiola e há que cuidar para que a porta não se feche connosco lá dentro. Lá fora.

Disperso bem, talvez. O da perda. O lugar da perda. Porque ninguém perde o que nunca teve de seu. O que é verdade perdi e não entendo. Às vezes, nada. Já o disse. Do que se enrola em torno dos meus passos. Volutas tresloucadas e espirais barulhentas e é isto vida que fala comigo o tempo inteiro de mim. E eu entendo cada coisa e o seu contrário e, às vezes mesmo, sinto. Como se viesse de um outro planeta e saltasse a escola primária. Uma falha estruturar para sempre na capacidade de leitura e escrita. Nas contas. Como se não pertencesse. Agora mais. Não por estar acima, abaixo. Talvez de lado. Sim aquela pedra. A ver tudo de perfil. Eu que gosto de ver tudo de frente. E não entendo o todo. E aquilo que é maior do que eu tende a sair por todos os poros desta escrita. Mas não saindo continua a intoxicar de dentro.

E depois eu danço. Hei-de dançar. Danço para embalar esta morte oferecida. Danço para a enganar. Porque não a quero mas foi-me presente de quem quero. Alimento-a como a um bicho de estimação. Não a quero mas não a posso devolver a quem ma deu. Alimento-a para não me tornar nela. E danço. Para a enganar. Não lhe procurar o colo interdito e os beijos expirados. Para sempre. A ter que escrever. Preencher o lugar do tacto puro com outras matérias. Esquecer o frio da fronte. A cor doentia e falsa. Pontual no tempo. Quando parou. Ou então só falece quem nunca existiu. Mesmo se todos os corpos voltam ao pó. À existência, não. E a existência nunca volta ao pó. Porque nunca foi.

20 Jan 2017

O coro e o ponto – Aqueles dias normais

 

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]queles dias. Sim, aqueles que todos temos. Talvez. A cabeça a explodir de incompreensão e erro. Ou será o coração. Talvez. Ou as vísceras mais abaixo na hierarquia de valores dessa sociedade secreta de funções populares do corpo e lirismos emocionais não se sabe de onde. Que se enovelam como agoniadas de si próprias. E caem umas sobre as outras num tumulto espacial que a pele e todos os ligamentos contrariam afinal. Ou em cima aquele nó fechado de faltar o ar e vemos ao espelho e não está lá. Mas não são as sensações algo de realidade inequívoca em reacção a estímulos? Serão ou não. Talvez dependendo da realidade destes. E que realidade seja essa é inquestionável às vezes. Outras não. E dias em que verificamos que nada explode afinal. Que tudo são imagens e figuras de estilo. E que afinal ardemos simplesmente até ao pó. Passando pelas brasas incandescentes de belas mas em final de existência do fogo vital. Nada explode afinal senão ateado um engenho doméstico e mesmo assim. Sempre possível ficar-se vivo mas sem ver, ou sem pernas para andar, ou sem mãos para tactear as linhas. De uma escrita qualquer. Em que penso onde estará o desamparo maior, se na realidade, se no sonho. Se sonho é um roubo adquirido secretamente e sem documentos. Se a realidade alguma vez teria sido visível sem andares de arranha-céus por ali acima até um ponto indefinido que não é, no entanto, o dito mas a desdita de não se alcançar como limite. Sempre como limiar. E a pensar entre parêntesis que sim, que houve. Não porque sempre se terá sido mais jovem, sempre se terá tido menos vida, sempre se terá tido mais caminho para a frente. Na sua indefinida e feliz e inapropriável extensão. Que tudo permite. Sonhar. Imaginar até. Mas não é essa sobre todas as razões. A razão é uma época dividida em duas que nos calhou cruzar sem aprendizagem. Que não a de cada um em si, sem labirintos nem zonas proibidas. É o que pode restar de seguro na líquida impermanência de tudo. E no entanto, não sei. Disfarço bem, talvez, mas não faço a menor ideia do que faço aqui. Tudo o que se evola sem remédio, tudo o que passa por cada um como uma aragem demasiado etérea para, cabendo nos dedos, aí se sentir segura. Aí se saber segurar. Tudo o que é invisível. Tudo o que visível não se consegue ler. E mudamos. Vamos metamorfoseando algo impreciso de nós e olhando de revés ou de frente sem antagonismo mas cuidado. Tende-se a perder mais coisas na complexidade com que se apresentam. E fincar os pés no chão para não se ser arrastado pelo que nos tira de nós, não garante que algo de nós não se funda com o chão como um animal aterrorizado que hiberna para não pensar. Ou se enterra no conforto inóspito da terra para esconder a impotência face à dificuldade do caminho.

O caminhar pesado e sólido pela vida a dentro. Do cante alentejano. Nos momentos de não fazer. Também. Como os outros, momentos de ser. E lembrei-me desse aspecto particular do cante alentejano. Da terra onde me nascem memórias mas em fuga. Donde retirar com rigor as origens não importa. As raízes, especula-se. São múltiplas, de sagrado e profano entrecruzadas de lugares, tradições. Do canto gregoriano ou das raízes árabes. Aspectos primitivos, ainda, parecem remontar mais lá atrás. Tradição de vozes graves. Vem das entranhas do passado e um dia destes passará a coisa leve para turista ver, como uma parede cega e sem densidade para trás. Ou um prédio de janelas vazias sobre o céu e sem mais do que a fachada à espera de demolição. Não posso dizer que me emocione. Coisa culturalmente incorrecta de se dizer, mas que fazer… Talvez intelectualmente, ainda. Dizer que gosto. Mas de uma maneira muito mental. Emoções fortes mas trabalhadas num apreço de recordação. Não oiço. Nunca oiço nem apetece. De que forma gosto para além do admirar, difícil fórmula estética de emoção na ausência. Não sei. Uma emoção teórica. Ou talvez o prefira na memória. Não é a embriaguez de outra música. Mas é pujante como um murro em pleno plexo solar aquela ideia de muralha firme de gente de braço dado a avançar lentamente. As passadas conjuntas, a banda compacta de seres enlaçados pelos braços a avançar inexoráveis e lentos. A balançar ligeiramente nesse avanço gradual e pontuado de vozes. Vozes só. A balançar ligeiramente de um lado para o outro segundo a cadência dos passos. Uma coisa da terra e talvez a vencer a imensidão desértica e sedenta dessa terra. E da musicalidade sóbria das vozes tão particulares que nem os instrumentos lhes chegam, a alternar em coro, ou ponto. Em desafio. Vozes respondem a outras. Umas às outras. Com um alto preenchendo as pausas. E é assim que as lembro. As vozes e depois o que lembrei antes. As avós. E tias avós. E irmãs e primas. Amigas. Nos homens não se usava. Mas nelas sim. Sem pudor, nem receio. Como se fosse mais seguro sempre andar ancorada em alguém. Uma na outra. Como se sempre contra um vento mau. Uma maré perigosa. E namorados. E esposos. Dar a mão é bom. Há o tacto. Mas dar o braço é um laço mais próximo e firme. Um ampara o outro. É belo isso. Era belo.

E um dia destes aconteceu-me. Conheci uma mulher depois de um tempo talvez amplo de correspondência trocada. Virtual. Mas com o calor e a generosidade algo anacrónicos de um outro tempo de cartas em papel. E um dia veio. Primeiro, não vindo. O tempo a passar. Minutos, meia hora. Uma hora. E eu, ferozmente estoica a pé, a fugir às goteiras da chuva intervalada, à frente da Brasileira, no fundo, no fundo, só para ter a certeza de que não vinha e não havia desencontro possível no não vir. Uma coisa muito minha. E o tempo de pensar toda a irrealidade óbvia de um ser que seria talvez um outro completamente diferente do imaginado e expresso. E, quando já e sempre não esperava e quase nem tinha retrospectivamente esperado, surge bem de perto, sem espaço de recuo para a reconhecer, calorosa, igual e tridimensional, a voz cantada do telefone de Lisboa, e agarrou-se-me ao braço assim, à antiga, pujante, forte e alegremente, e seguimos como se combinado pela rua acima. Uma coisa que não se usa, já. Nunca me vou esquecer. Por mais Atlântico que nos separe nos dias todos da vida. Amigas para sempre se nada se desfizer noutras complexidades da distância, do tempo e da falta dele. E recuei uma geração ou duas, a um espaço estranho de conforto e quase receio. E é nesses momentos que aquele lado em mim, que tenta fazer-se ouvir a dizer “don’t look back, don’t look back”, se rebela e pensa, deixa ver se não me esqueci de nada. Essencial. De mim. A chave do lado de dentro. Neste tempo fatiado, fragmentado e líquido. De realidade mais imatérica do que qualquer fantasia. De intocáveis e impermanentes sonhos que só me dão descanso no sono. Quando vem. Se alguém vir por aí um personagem de figura bem apessoada e olhos e aparência de sono, é favor devolver, que deve ser o meu. Não consigo dormir sem ele. Enquanto isso, sonho. Não errar as estações. E nos intervalos, não sei. Nada. E quando não sei nada só queria dizer coisas bonitas a troar-me aos ouvidos, atordoar-me nelas e embalar-me na ausência de sentidos mais sólidos. Embriagar-me de palavras que existem e se existem basta pensar nelas. Dizê-las, e ganham vida própria de palavras. Reais. A meter medo. Entre todas as possíveis guardadas no dicionário surpreendente em si e mais ainda se o imaginasse feito de conjuntos de duas. E de três. Não avanço mais nem me atrevo a pensar nas possibilidades. Quantos volumes para as entender. Para as desbravar. Como floresta complexa e invencível e que afinal o simples Homem pode erradicar. Como num silêncio, árvore a árvore.

13 Jan 2017

O estranho lugar das palavras

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á dias em que de súbito acordo num momento qualquer do dia como se pela primeira vez. De novo, mas com uma sensação de estranheza desmesurada, e como se desentranhada à força e antes da hora, a um sono tumultuoso e insuficiente. Arrancada do lugar. E quando mergulho nas palavras sei. Que estas são sempre um lugar estranho. Insustentável estranheza ou lugar.

Há lugares tão estranhos. Para lá de qualquer indizível sensação de reconhecimento. Não que a estranheza seja inscrita no lugar. Os lugares são imanentes como as coisas, como a matéria. Como o corpo, até. E há corpos estranhos. Estranhos que ficam para sempre e para lá da intimidade aparente da pele. Irreconhecíveis enquanto lugares familiares, alheios. Há lugares e pessoas e nomes que nos ficam estranhos para sempre. Ou exteriores. Tive um lugar assim. Pessoas. Talvez não tanto porque não estivesse recamado de todos os objectos que me acompanham a vida, a memória, e dos quais me penduro para não soçobrar sem bússola. Perder. Mas porque foi escolhido com mais liberdade do que outros, utilidade e não paixão, por uma vez. E, de repente ali, tive o tempo de ver nos dias esse não reconhecimento. Talvez um lugar de não encontro. Uma ligeira coincidência de passagem. E só.

E, para afundar a sensação bem num âmago completo de estranheza, e a ferir de inevitabilidade, como se uma verdade qualquer acordasse sequiosa de validação, sento-me no lugar destas palavras, dias depois, sem de todo as reconhecer. Uma manta espessa e contínua, de nós e pontos apertados, que tive de desfazer. Desmanchar, em parte. Porque era hoje. A elas, ao lugar delas e ao lugar que me ocupou no tempo delas. Um lugar outro que não vejo ali. A estranheza completa e desconhecida desse lugar perdido na memória e que aqui serve. E que está bem. Assim. Certo nas palavras e estas na sua lonjura, já. Custo a reconhecê-lo e só muito a custo, abrindo parágrafos e afastando ramos estranhos numa confusão de sentidos desorientada, como num lugar entranhado de floresta sem momentaneamente ver de onde vem a luz. E desse lugar abstracto em que de repente acordo, espreito inúmeras possibilidades de significado. Várias estranhezas outras de territórios alternativos ao que, insignificante, moveu as palavras de início. Porque de significante, só deixou a recordação de deixar.

Mas, outras vezes, caio de repente até numa única simples palavra. Simples e familiar, e deparo-me também com uma equívoca e indeterminada sensação de pura estranheza. Não sei porquê. Talvez não esteja nela. E sim no lugar em que me encontro. O mesmo mas, por erro de percepção. De paralaxe, de novo. Eu lia dantes. E relia e retomava o prazer intenso de algumas palavras quase até ao desgaste da sua superfície doce. E relia-as cada vez mais suaves e niveladas dos volumes e texturas da emoção. Quase a tornar-se inócuas. Depois tinha que parar. Deixá-las regenerar todo esse perfume antes de consumi-las de novo. Depois, muito depois foi como se as palavras tivessem enlouquecido. Mutáveis, ambíguas, irónicas e fugidias na sua perversão. De querer seduzir magias e de querer recobri-las de dúvida.

Mas o lugar de que falava. Nem sequer chegado a ser desconfortável. Nem de perto. Apenas uma distância, no conforto, de não ser a minha pele. Uma pele alheia, familiar e anódina. Há lugares assim como pessoas. Esse confronto de múltiplos contornos entre familiaridade e desconhecimento, entre conforto e indiferença, fez-me um dia mudar de casa. Com toda a nitidez. Houve uma música e uma emoção forte. E, de súbito a certeza de ter que mudar e o ânimo para todo um terramoto dos objectos e de tudo. Como mudar de pele. Mais complicado do que de face ou de roupa. E há lugares que se nos colam imediatamente como uma seda fina, uma musselina etérea se quiser vê-la com essa separação do que é o corpo que se transporta, ou simplesmente e invisível ao próprio, a pele. E outras estranhezas. E outros lugares. Igualmente feridos dessa imaterialidade que lhes imprime interrogações e inúmeras sensações dentro do leque do visível aos olhos ou do visível à cegueira dos olhos. E de entre lugares estranhos, o amor. Assim, a dizer de repente.

Há lugares tão estranhos. Lembro-me de quando era pequenina, e mesmo mais tarde, um bocadinho menos de tudo, e agora tudo isso em muito mais. E encantada por uma pedra bonita, e como uma formiga, por isso pensava levá-la para casa. Naqueles gestos lentos de pontinhas dos dedos a tentar fugir aos grãos de terra, de olhos postos e só na pedra de uma cor curiosa, ou de uma textura lisa, lisa e boa de tocar. E, no preciso momento de levantá-la da terra em que repousava há tempo suficiente, uma miríade de vidas de vermes ou de insectos por debaixo. E o susto, a repugnância ante a possibilidade do tacto por engano das expectativas dos sentidos. Essa vida surpreendida escondida e em paz nos seus desígnios. Mais perturbadora, muito mais do que a pedra que por erro ou injustiça me detivera a deslocar do nicho original. A roubar à harmonia. Ainda hoje, o prazer fresco de encher as mãos de punhados de terra, neles construir camas para rebentos, mudas, sementes, ou raízes já feitas, é inquieto por essa possibilidade da vida minúscula e oculta nos seus grãos. A eminência do tacto, arrepiante. Dos vermes. Que se tratará, para além da leitura associada à morte, de uma repugnância estranha, é.  E perante os bichos queridos quando partem de si. Como se com a temperatura do corpo se esvaísse deles a alma que os distancia dos objectos e nessa ausência injustamente tornados menores do que eles. Os objectos que, mesmo frios, agarramos com prazer nas mãos. Não os bichos.

Um dia uma mulher estranha com quem trabalho, e poucas devem ser mais estranhas do que ela,  quando, no entanto, sempre que fala eu reconheço de dentro as palavras que acho bem, e porque lhe toquei no braço no decorrer de um diálogo, afastou-se com agressividade e disse horrorizada não me toques, eu odeio que me toquem…respeito tanto isso que muitas vezes não toco aquilo de que gosto. Tenho medo que mais alguém odeie que eu lhe toque. É odioso fazer isso a alguém. E no entanto faz-se de muitas maneiras cuja escala não intuímos. Coisas de esconder o afecto. De o recobrir de ironia. De agressividade. Eu tenho saudades desse tempo de álbum de fotografias e da parte em mim que pertence a esse tempo. Em que as pessoas se tocavam com o tacto.

Lugares estranhos. Viver com essa outra de mim que não domino. Toda uma vida, vendo bem. Aquela que é fabricada do lado de lá e de que não conheço contornos nítidos. Que sou. Ou pareço. Mas esse é um conflito que imagino que nos tolhe a todos. Esse fantasma instalado em nós pela percepção de quem é exterior e dessa paisagem exterior olha. Resguardado também pela invisibilidade inerente a essa película grossa de que nos recobrimos. Mesmo sem querer. Com aversão, ódio. Ou exterioridade. Só. Mas lugar certo Sem força e sem saber o gesto alógica, a regra. Há sempre o momento a surpreender. Esse olhar extrínseco. Não inerente à essência. Inventado, até. Tantos conflitos se geram nessa gestão descontrolada de representações de nós e em nós de cada um desse que somos.  E, curiosamente é na subjectividade inteira para dentro desse casulo tão inviolado, estanque e translúcido quanto muito, que melhor sinto o que sou.  Nesse conflito triste de um vulto a que falta o perfume daquele calor intenso de sentimentos puros soterrados por mil cuidados e mil cobardias. Se algo em mim quereria ter cura é esse lado externo a mim e que anda pelo mundo como se fosse eu. Um eu que não reconheço ter a competência de me representar. Todo o calor de sentimentos, toda a solidez de que se faz o etéreo, toda a alma em desvelo. Pelo que gosto. Mais ainda pelo que amo. E nada. Quase nada transpira dessa mortalha grossa de que me sinto recoberta. Pelos outros. Alguns. Algumas vezes. Esta insularidade intransposta do ser. Talvez por isso sou só. Não em mim. A solidão não é em nós, mas sempre nos outros. Sou só nos outros. Se me não veem e me não vivem. Nessa representação de nós, que muitas vezes penso como uma peça de roupa oferecida. Raramente a reconhecemos. Raramente acerta em nós com um tiro certeiro de maravilha. Ego contra ego. Com ego.

Arriscava dizer que também os outros sofrem desta distância. De embarcações frágeis enviadas para longe sem ter visto de perto. Temos um problema com intimidade. Temos um problema com confiança. Temos um problema de entrega. E temos problemas por ter problemas. Destes. E dos outros. Dos dos outros. Mundo complicado como uma nave de loucos (em) que somos. Outros lugares estranhos. Alienamos nessa zona etérea do mundo que é a fantasia, o desespero d a realidade. A revelar-se escorregadia como um verme, e impalpável como uma ideia. Ou o ruído dos passos nas pedras do caminho e o intransponível poder de um abraço.

Interrogo muitas vezes as coisas nessa lamela de laboratório científico, debaixo das lentes de microscópio. A incredulidade tem crescido em mim, comigo, a passar a outras idades. Mas não é que os sentimentos me ofereçam dúvidas em mim. Emprestam-me de forma permanente em dúvidas de mim nos outros. Cada vez mais estamos menos sós mas em lugares estranhos de nós. Nos outros. Por isso e sempre voltar ao lugar do silêncio. E não poder querer permanecer. Reduzir por momentos o ruído de dentro e de fora. É no silêncio que melhor me encontro no que de melhor deve haver em mim. Ou baixar os braços. Nesse silêncio onde não se entra nem ninguém facilmente. E de onde falo para dentro destas palavras quando posso. Sim. Quando posso sentir-me recoberta pela casa e pelas roupas sem despir menos que o necessário. Senão, é também aqui que me prendo a esse fantoche que vejo de fora como se fora eu não sendo. Eu que conheço outras camadas que os fios não gerem, os dedos não manipulam, e os olhos não tolhem.

Um dia vivi num lugar pequenino e talvez feio, que nunca foi estranho. E todo um chão em malmequeres. Podia parecer uma metáfora no mosaico da memória. Mas é rigor. Longe. Um lugar longe de tudo. E que nunca foi estranho. Com alguém que nunca foi estranho e até hoje está ali. A uma distância em quilómetros e em meses que nunca foi mais matéria do que isso. Que o tempo tem inexoravelmente diluído do quotidiano e está ainda, mesmo assim ao alcance. Deixou-me e ao lugar, num dia em que o ar e o mundo precisava de estabelecer regras de distância física mas só, um manuscrito. Folhas de uma caligrafia azul, reconhecível e tatuada do gesto, em folhas grandes e pautadas de finas linhas. Azuis. Como eram dantes. Um ensaio sobre a angústia. “A superação da angústia”. Escrito em dias a dois metros de mim porque o lugar não esticava mais de pequenino. Mas com toda a distância entre mim e o segredo das palavras a cair lentamente nas folhas, como gotas, de folhas, muito depois da chuva. Da angústia. Que era necessária verter num espaço curto. Em palavras ditas. Contadas. No espaço curto longitudinal, com o abismo pelo meio. Em si. Escritas, durante anos e anos não li. É esse o lugar estranho do amor. Um. Ou estranheza é o lugar em si. Para além da ética ou da estética. Quando visto do lado de dentro, umas vezes. Ou quando visto de fora e outro. Estranheza é um lugar. Que é um não lugar. Por isso. Não o amor. Lugar entranhado de si. O lugar estranho do amor, de tanto ser estranho não ser lugar nem estranho, mas ser em si.

6 Jan 2017

Dias de Oceania

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]orque se arruma pelo som, no lugar da melancolia. No lugar escancarado – aqueles dias repentinos – como uma janela. Varrido de uma ventania. Uma pressa. Arrasadora. Que tudo desarruma. Talvez pelo Natal. Que chega sempre depressa demais. E porque ventania rima vagamente com melancolia. Com apatia. Talvez por essa veste de insularidade que se usa mesmo em dias de festa.

Talvez porque um naturalista, médico e farmacêutico naval, empolgado pela anatomia e taxonomia dos beija-flores em longa viagem pelo Pacífico – o naturalista – envolveu numa falsa ideia continental aquilo que eram, afinal e nada mais que conjuntos de ilhas, isoladas e plenas na sua inviolada insularidade. Talvez porque somos assim também. Falsamente aglomerados num conjunto de que mentalmente, e a intervalos irregulares, um se escapa como num voo ansioso pelas águas circundantes. Como um batedor da alma. Só em verificação de segurança e de haver espaço. De haver esperança de espaço. Depois. De silêncio final e vazio de excessos. De gente. De coisas que não são. Porque vendo bem a encontramos na mesma gaveta da rebeldia, discreta e surda rebeldia estoica e subliminar. Na mesma arrumação se junta por acasos insondáveis a nostalgia, o que é menos estranho, a fobia, a alegria, a utopia, a correria e a euforia. Essa sim. Remexendo distraidamente soltou-se, ligeiramente colada de tanto tempo sem uso à utopia e à melancolia, À alquimia. Retirei lentamente e descolei com cuidado umas das outras, sem evitar rasgar um pouco as pontas. Fragilizadas de humidade e seca. A alquimia a que este ano retirei as mãos. Nem um doce delas se desenrolou. Se distraiu. Talvez no receio de estragar de lágrimas ou de não lhe dar o tempo que não tinha. De cozedura. De fritura. Nem um doce fiz neste natal nem nada. Um desenho. Fiz para quem me fez o seu natal há muitos anos. E só. Para lhe levar antes do esbaforido splash no meio da Oceania.

Mas é Oceânia. Gosto tanto deste nome. Topónimo belo e antiquado. Oceano com o sufixo “ia”. Como um vasto desenrolar de vagas numa pradaria volante. Ondulante, a vogar pelo tempo da memória. Qualquer coisa que alarga o conceito inicial e o desfaz do corrente e sólido limite espacial, atirando-o ao vento como se incerto, numa deriva acima da crosta enrugada de continentes outros e terrestre. Essa sim continentalmente ancorada ao planeta como uma pele envelhecida de rugas de expressão. Da Oceânia resta um vago recorte na matéria do mar. Vago e perdido no meio de um Oceano que é de calmaria intemporal. Sons que reúnem em si o eco e o reverberar das cordas de um instrumento musical. Sons possíveis de dizer, muito acima da garganta que grita outros mais crus e cavos, mais a ecoar no céu. Da boca. E daí para cima em toda a zona do pensamento mas com vibração em todo o peito, na barriga. De um insólito corpo – búzio. Ou antes, talvez, caixa de ressonância de uma guitarra clássica. Pleno. Como um fogo a alastrar do centro da palavra. Natal. Também é palavra para se dizer um pouco acima da linha da garganta. Tem outro som de distante eco no tempo e no espaço de fantasia. Outra palavra saída da mesma gaveta do mês de dezembro. E depois, naqueles momentos de olhar em torno, nada mais do que anseio de acalmia. E de novo a rimar com melancolia.

Mas tirando ser como é, Natal é em si um tempo bom. Era para ser. E de espaço e luz de estrela caminhante uma vez de muitos em muitos anos e depois a memória da luz acompanhada pelo fervor de quem nela acreditou. Estrela que não era estrela mas o que importa se era de luz. E foi. E há-de ser de novo quando voltar do espaço para onde foi. Tempo de memória e tempo de história. Mas lembra-me sempre espaço talvez uma imagem da mitologia que encenou presépios a fingir toda uma distância caminhada até ao Menino. O que é que o Natal tem a ver com o amor? Essa outra palavra de tonalidade contrária e som aveludado e sóbrio. Essa palavra a olhar para o interior que rima com ela. E o oposto a tudo o resto. Talvez uma e outra, palavras, faces de um mesmo dinamismo psíquico que nos atira para dentro em amplitude e profundidade e para um espaço amplo como reflexo figurado deste. Invisível, imenso como o outro. Ambas palavras tão falsamente ligadas por nós doridos, frouxos ou equívocos inábeis. Misturadas como num desvario de histeria colectiva. Não existem mais em magia em lugar nenhum do tempo de um ano, do que noutro de outro tempo desse mesmo ou outro ano. Noite de Natal, ou a vida numa câmara escura. Uma família mergulhada numa tina de químicos a tornar-se visível com toda a nitidez progressiva. A revelar-se. Em tudo o que existe nos outros dias. Passou uma estrela. Incidiu no papel emulsionado. Sensibilizou na medida do tempo, da intensidade da luz e da sensibilidade do papel. O revelador reproduz contrastes ou nuances subtis. Lentamente. E há um tempo de paragem. O limite daquilo que se suporta numa noite qualquer de natal. Lava-se profusamente a folha de papel. Lava-se até desaparecer todo o vestígio de qualquer químico. Ou a fotografia continuaria a evoluir em tons cada vez mais escuros. Indiferenciados. Até à noite total. Passou a estrela. Não voltará tão cedo. Não já no imite do possível. Resta a fantasia de cada um. Divergente. O que é pena. É isso o Natal. Depois sair para as ruas as estradas entre ilhas de gente, de súbito, desaparecida. O silêncio em tudo em todos os lugares. Esse silêncio em que era preciso parar tudo antes do Natal. Antes, dois dias antes, parar. A tempo de decidir cada detalhe entre ilhas. Cada ponte. E depois. Depois quando vem afinal o silêncio, é bom e triste. Sempre. E. Parar então para pensar para onde foi o Natal depois de tudo…

30 Dez 2016

Das paisagens vagas como vagas são

[dropcap style≠’circle’]I[/dropcap]maginar que me detenho simplesmente num intervalo do tempo a olhar um destes objectos. Sempre os objectos-cenário. E um ser encenador. Imaginar que qualquer um que seja me diz de momento tudo o que é suficiente nesta paragem. De alinhar números e letras de equações várias. Afastar essa folha da mente, obsessiva e exaustiva sem soluções visíveis. A faltar um detalhe que desenrole a revelação de uma das incógnitas, que seja. Uma só, e, na inércia seguinte, resolver alguma das equações. Que se alinham irresolutas em letras e números e números e letras. Que desenham ao todo e pelas suas partes incompletas, um padrão bonito a negro sobre o branco da folha, antes vazia, e depois com o mesmo sem sentido. Antes vazia. Talvez. Penso, de caminho. Desenvolver uma fórmula, uma chave. Qualquer coisa distinta. Evoluir do círculo perfeito e estanque. Desenhar bigodes nos vês e florzinhas nos pês.

Mas às vezes a distância abismal entre tudo e nada, está na misteriosa definição de um detalhe ínfimo. Um factor esquivo que se furta à absolvição da incógnita. A Matemática é um universo de abstracção quase de fulgor mágico. Talvez porque a vontade e as suas ramificações por inúmeros andares, lhe é desconhecida. Aqui mesmo ao lado, o candeeiro de luz baixa, a apontar rigorosa e permanente essa luz de todos os dias para baixo. Uma mesa de madeira quente e confortável para encostar um cotovelo e o outro a olhar a vida. Eu. Os cotovelos calmos e sólidos em espera de uma irresolução qualquer. Em redor uma penumbra de recorte difuso em gradação quase invisível, em que se encontram e desencontram os objectos de sempre, mas em segundo plano, como domesticados adormecidos até uma nova luz os contemplar. Animar. Um recanto do mundo que parece só por si suficiente. A terra do nunca e o território do ainda não amanhã talvez. Do talvez já não. Do ainda não ontem, do já, do nem assim, do já nem assim, ou do nem sei bem. Derivas indistintas na rota dos ventos e bolinas nas outras navegações de iguais ondas. De devir, do porvir imiscuído nas variáveis do já visto, ou de sombra diluída em liquidez. Sombras, brilhos, fosforescências nocturnas. Instrumentos de navegação obsoletos. Algo a fechar as pétalas púdicas para a noite. As pálpebras a encostar a uma córnea friorenta. Uma mão a procurar o rosto para conforto mútuo.

O candeeiro de todos os dias. A deixar uma penumbra a vogar sobre a outra metade da casa, daí para cima. A delimitar como se uma força terna dentro do seu abraço, um espaço dentro do espaço. Uma figura, uma espécie de figura, retrógrada como tantas coisas de que gosto, que ilumina da esquerda. Como deve ser. Para que a mão que mais voa não lhe distorça o percurso da luz. Não lhe encha a cabeça metálica de sombras e outras ambiguidades.

Mas, pura ilusão. Porque dele, sem culpa nem intensão, emergem factores de definição que se alternam e acrescentam nos dias, como se uma personalidade própria, definida e animada, respondesse a uma qualquer interrogação muda. Não a faço mas destilo-a talvez dos olhos sonolentos e distraídos com que muitas vezes verifico que está ali, e nele digo que estou. Também. Do que não quero falar me responde o que não pergunto. Por vezes mesmo o que não oiço. E sei que não é dele esse reflexo que dali se emite sem curva possível. Directo e devolvido. Claro. Há sempre qualquer coisa de variável ali. A dimensão. A crescer exorbitante até quase sentir a tentação de me encostar a ele na rua. A luz a variar numa temperatura entre o frio e o quente dos ossos e da pele. Nem sempre complementar. O contorno frio ou a calote como um crânio docemente recoberto de uma pele macia e sem pelo. Quase a apetecer passar-lhe uma mão como se de um bicho se tratasse. Aquela calote por momentos uma cabeça. A haver uma síntese química qualquer na evocação de um objecto de afecto, mesmo por uma forma qualquer de similitude, que apela ao tacto. O afecto precisa do tacto como percurso. De se esvair no tacto como a expiração que retorna a si e se distende sem parar. E de tacto. Muito tacto no lidar. Algum pensamento. Mas não concha. Os pensamentos- concha tendem a ser tóxicos se não evaporam por uma válvula qualquer. Ou as palavras. Que até o podem ser. O brilho metálico de uns dias a reabsorver-se num tom aveludado dos outros. E a tomar um carácter quase orgânico. E a lâmpada como uma ideia fixa mas sempre invisível. À espreita, em cada movimento inadvertido que faça. Que dizer se o óbvio é que há sempre qualquer coisa que não é deste meu candeeiro de anos, que se distrai dele dia após dia e diz algo que não lhe pertence, partindo dele e sendo ele…Sempre igual e igualmente inerte na sua imanência. E sempre um outro em resposta às perguntas que não faço.

Inocentes objectos. Mas nada há neles de inocente depois. De serem arrastados de fantasia em fantasia vindo parar a casa. Neutros nessa decisão. Moldam-se. Sem o fazer. Sem que nada na matéria se mova no sentido dessa outra matéria tremenda que é o olhar. Qualquer olhar despido de limpidez. Ou cegueira, quase podia dizer. E um rosto. Um corpo estranho. De paisagens vagas. Como vagas que são. Mas lá, o olhar.

Gostava tanto de ser de uma aldeia longe. Sem relógios para saber as horas do mundo, as minhas para além do daqui a pouco e do há pouco foi. Esta obsessão pelo tempo que me pára e me foge e me prende e me falta. O tempo uma moda e os horários a tirania. Eu queria fugir do tempo ou tê-lo a todo o tempo. Sem medida. Não esta sucessão de tiras e nós. Eu queria ser numa aldeia o acordar sem horas. De relógio. E sem fios, a que me prende uma mímica em que não me reconheço eu. Reconhece-se ele – esse candeeiro – no olhar que lhe deito, é o que quase suo perguntar.

Às vezes olho essa de mim, a perscrutá-la como se de fora, e como se fora o fosse. Mas não lhe sinto perfume, briho. Não lhe sinto calor, nem no calor que sinto, e porque é das sensações. E frio. Mas é resposta. Defesa da pele. E assim vejo essa personagem-pessoa, visível invisível, e desconfio da desconfiança  e  não reconheço nem conheço. E se ninguém entende, nem eu. E se não conheço não existo. Mas entristeço dela. Dessa que não movo. Como marioneta. De fios estragados, menos um. Um fio, e imprimir um gesto. Um fio e mover-me noutro, a estacar noutro. Impedimentos estruturais, fios a menos, ou fios a mais. Emaranhados e partidos e embaraçosos. Nos braços e nas pernas. De pano.

Passo a partir do candeeiro, que não sendo pessoa, se esgota num momento qualquer. E ali num outro sítio da casa e como sempre, aqueles olhos em vários pares, como continhas e com a mesma natureza dura e objectiva. Ou não. E que nunca dormem. Ou dormem sempre. Como se deitam nos dias, assim ficam para toda a eternidade. Olho. Cada boneca agora, de recreios vagos. Como diz o outro. Rosto hermético de porcelana. Olhos revirados de espanto ou impaciência. Sem mãos que componham o vestido. A ter que esperar que alguém se lembre. Desconfortável, hirta e descomposta em cima do psiché. Coisa ridícula. Sempre à espera. Ou então que não se acenda a luz para ninguém lhe ver os culotes empoeirados e o cabelo sintético talvez natural, um pouco descomposto. Visita-se essa descomposição, em fuga. E aquela poeira nos olhos e sem que os dedinhos lhe cheguem a aliviar as cócegas. Jesus…Que impasse, e sem poder fechar os olhos. Nunca. Destino pesado de charme. Depois falam dela e das roupas estilizadas. Mas as roupas, são ela, e por isso furibunda. Conversas e conversas e desconversas e ninguém que lhe diga na face quebrável um mimo directo. A precisar de um banho. É o que é. E pimenta na língua. Mas a boca não abre e os pensamentos não saem. Tudo certo. Então. Por terras de fantasia.

Volto. E, de repente, salta-me Buster Keaton para a página meio cheia, como de um comboio em andamento e. E sim. Tudo aquilo que aquele rosto nunca disse, nunca dizia. Dizia sempre alguém por ele. Simples projecção na plástica receptividade de um rosto neutro, complexa interpenetração de sentidos entre duas realidades que nem tangentes necessitam de ser. Basta agrupá-las. Basta imiscuir uma na outra por proximidade, justaposição. Aleatória. E como um espelho vivo, o que era rosto e inexpressivo passa a reflexo e rico em representações. De quem…Sabe-se, de quem olha. Mais do que do que é contemplado. E depois, saindo do cinema, e como um dia o disse Kafka: “The right understanding of any matter and a misunderstanding of the same matter do not wholly exclude each other”.

Mas, de permeio, o efeito Kuleshov, nessa, até às vezes abusiva atribuição de sentidos diferentes, a um mesmo rosto inexpressivo, consoante as imagens que lhe associamos. Que lhe colamos com a mesma subjectiva intuição ou aleatoriedade, com que o fazemos a um pisa-papéis e nele uma libelinha se encerra no cerne de vidro grosso, e a um livro sobre escravidão infantil contemporânea. Só para empilhar duas realidades soltas e limpar o pó da mesa nos espaços vazios. Produz sentido. Ou o reflexo do contracampo, que enriquece a linguagem cinematográfica. Que entorpece a leitura dos outros numa envolta de significados nossos, que é como uma armadilha. Para quem está no campo e quem se esconde no contracampo. Ou podia dizer o contrário. E quem esconderia o quê de quem. A inexpressividade da máscara, rosto esponja, ou o excesso do outro a submergir o rosto por detrás. O efeito da expectativa. Do desejo. Que age por defeito do objecto a inscrever, talvez. Permeável ou neutro. Inexpressivo ou vazio puro. Como resolver uma equação assim. Nada de grave no reino da fantasia. Esse revelador fotográfico – onírico.

Não é linguagem do cinema, é a expectante natureza humana. A derramar de si. Sobre a paisagem vazia. Ou a terra porosa. O rosto fechado. Em aberto. A natureza de vasos comunicantes a destilar de um lado o que é lapso ou lacuna no outro. Vasos comunicantes, de incomunicabilidade congénita, percorridos de um mesmo líquido. Mas, os sentimentos não oferecem dúvidas. A existência sim. E as pessoas, não têm que ser perfeitas. Os encontros sim. Ou então, dizer de outra maneira. Que os sentimentos não oferecem dúvidas, mas os objectos, sim. E o tempo. De uns com os outros.

16 Dez 2016

Objecto de si

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma pessoa viaja. Viaja-se ao fim do mundo e de si dia após dia. Um desfiar de ritmos registados no relógio meticulosamente e sem parar. Sem encontrar fim. Viaja-se. Eu viajo. Dia colado a outro dia sem distinção que não a da luz. Uma alternância, no fundo, artificial a uma continuidade de busca. Um número abstrato no calendário dos dias. Uma página morta da agenda. Viajo. Viaja-se no passado. No futuro. No imediatamente agora, no ainda há pouco, e no já mesmo a seguir. Em tempos, em espaços, nomes e rostos. Em projectos e sonhos. Sem parar. À procura talvez de um sinal. Mas chega-se ao fim do dia, e a resposta, a única resposta possível e válida está ali. No espelho da casa de banho, com azulejos brancos e sem padrão, meio escondida nessa espécie de sorriso forçado pela escova e enevoado pela pasta de dentes.

Hoje está uma lua nítida, recortada e fresca, quase uma espécie de sorriso no céu limpo de nuvens. Deitada de costas. Como se com uma placidez lunar, diria, se não fosse a lua ela própria. E sorridente, como disse. Ontem não vi. Anteontem nem me lembrei. A semana passada, já não sei, e a próxima também não. Há dias de noites assim, em que tudo é recortado no assombro liso do céu como se nada duvidasse. Estranho. Se bem que as coisas não contêm em si a dúvida. A dúvida é da matéria orgânica em agitação mental. Onde se esconde este redesenho que subjaz a todo o viaduto dos dias por sobre os dias, como vidas por sobre outras vidas, ou ideias de uma coisa e outra, e volta com a ironia de dizer estava ali sempre. Mas era o refazer do desenho original. O que é modelo ancorado por detrás de um olhar que afere escolhas e fere de materialidade depois aquilo que não era palpável. E um desenho não é. Também não é. Mas a dizer que estava ali sempre. Como essa lua reclinada, plácida, e de rosto limpo e luminoso. Ou em que luminosa foice cortante se desata o escuro de um torno de outras marés. Em que agonia imprecisa se desprende o respirar solto, afinal, como bicho manso a escoicear de alegria. Infantil, afinal. Como guizos límpidos e sem intenção. Ecos de uma montanha para outra. Em que recesso da memória se transcendeu para sempre o andar. Como se já não houvesse que haver fim. Mas só caminho. Só caminho. E a lenta lentidão das pedras a avançar de lá para cá. Serenas e brancas. Lavadas de chuva.

Fascina-me o desenho curvilíneo e sobreposto de viadutos sobre viadutos. Braços múltiplos de um ser estranho percorrido de uma circulação ruidosa. Como em vias de agitar todos aqueles tentáculos. Sempre como se à beira desse movimento. Mas tudo isso visto de longe, de cima, numa imagem captada do alto, sem realidade próxima. E só. Gosto de pontes. Das outras. Coisas de imagem frágil que se aventuram em voo entre margens. Lançadas calmamente num movimento único sobre águas serenas e imparáveis. Às vezes entranhadas de um movimento quase imperceptível. E os carros. Sobre as pontes. A fluir sobre o que já é eternamente fluido nos dois sentidos. Pontes. Como uma asa delicada e solícita poisada no ar, e congelada em todo esse momento. Qualquer momento. E no entanto, serenamente prestáveis ao poder das metáforas. Na arte da engenharia como na arte da guerra. Lançadas. Explodidas.

Depois.

Entro na vida pela mão que tem que ser – a pensar que me apetecia hoje viver fora de mão, mas pelo meio de um campo qualquer – e abro uma escrita lenta e mal acordada a ver que palavras se desprendem desta preguiça de ter que escolher. Entre tantas ainda em pijama e sem vontade de competir por uma verdade qualquer. Olho pela janela que diz que vai ser de sol. Para lá de uma luz ainda pálida a escorregar na parede em frente. Ainda muito cedo para a agilidade de cair a pique. Tímida, ou também ainda na lentidão do sono deixado sem vontade. A pensar porque será ser uma palavra tão curtinha e trabalho aquela em que se tem que saltar três amplas sílabas. Um destino que nem todos os animais têm. Porque uns, ocupam a vida em tarefas cíclicas e sem fim que não daquela. E outros, não. E em nós que tanto ocupa já de si o pensamento, acresce ainda essa espécie de natureza de empréstimo, que traz ocupações delirantemente enfileiradas, dia após noite e assim sucessivamente, coisas estranhas que se alimentam a si próprias. Balcões de finanças, caixas de correio, papéis. Sacos de lixo em testemunho de uma complexidade de que sobra tanto desperdício. Abro todos os dias oitenta vezes o contentor antiquado onde se empilham os cúmulos dos restos. E dos restos dos restos, e fico a espreitar, de olhar fixo, perplexa. Penso então que tanto se explica aí. E andar de transportes públicos. Aqueles mais impessoais que são comboios. Por sítios abstratos e subterrâneos como passagens num tempo fora de órbita. Como o tempo do xadrez em Duchamp. E pensar que não me apetece tropeçar em palavras mas e no entanto e talvez.

E depois.

O problema do ruído. Por todo o lado pode até tudo estar calado e nunca está. O problema do estrondo, é que fere os tímpanos de uma dor que impede de ouvir o sussurro que sobra. A reverberar como uma membrana num orgasmo subtil.

A mim, que raiva, tudo me enternece. Tudo me embevece. Tudo me causa impressão. Chego a casa impressa de sinais que nem todas as águas diluem numa frescura de bem- estar.

Tudo me enternece no universo, quando olho para fora de mim. Tudo me embevece, tudo me intriga, tudo me aborrece. À vez. O mar. Grande e lindo porque me transcende e me transporta. Me remete para a escala ínfima que sou e tudo de caminho, implodido nesse instante de verdade entre escalas e sofrimentos. Mas, por me transcender parece reportar-se a mim como referência que não sou, excepto para mim. E na essência do transcendente está, o ultrapassar desse centralismo incontornável. Mas, transcendendo ou ultrapassando, ou sendo maior, ou submergindo, não encontro as palavras que de um modo diferente se abstraiam de um ser a partir do qual tudo se mede. Mesmo na transição para o absolutamente maior. O inalcançável. Será que ninguém se deteve por segundos que fosse a inventar nas palavras a ausência de si, do ser como aparente medida de tudo e de nada, mesmo do nada a que o remeta a transcendência de si por outrem… Tudo me causa algo de alguma sensação de algum sentimento de alguma prostração. E às vezes eu queria simplesmente alguma indiferença algum descanso e alguma superficialidade confortável de ser de sentir e de ver.

Mas tudo me faz qualquer coisa de dizível e pior, algumas vezes, alguma coisa de indizível. Mau estar. Ou bem. Tão bem, tantas vezes, que é encantamento sedimentado e enraizado em algo de mim que também é o resto.

E depois o dizer. Os dilemas do dizer. Desperto em todos os segundos nessa tremenda batalha de luzes e confetis. Todas as coisas se baralham na ânsia de encontrar caminhos de estrelas, mas se arrastam por vezes bem rente ao solo e bem amesquinhadas da dúvida. De que matéria se faz o estigma da liberdade. De que crueldade respirada e oferecida com formas de flores, às vezes, inadvertidas flores nas formas, dores de golpe seco por detrás de uma pétala, só como se fosse. E não é. Não era, ou é como se não fosse. De que rendas se tece esse paradigma de liberdade de que nunca encontramos o ponto final, nunca um parágrafo deixa por estender mais umas linhas de perplexidade – dúvida com método. Cadeias a inibir um sistema linfático de tentativa e erro na delimitação alheia da liberdade própria. Querida e sonhada. Como uma pintura em projecto. Nítida e pertinente. Cores definidas e composição. E depois, a desmultiplicação das vertentes de um caminho montanhoso de que às vezes sobra uma luz, uma intenção imprecisa e nada mais do que a decisão do passo seguinte. Em memória, um fantasma que se dilui na coragem do olhar. Um pouco isso.

Mas tudo me ajoelha a alma, de uma constatação de ser outro e que não parte, e em nenhum outro momento que não de ser assim. Objecto de uma natureza que se rebela à concepção de objecto de si, se não for a mera circunstância de ser olhar. Alvo. De. Passiva pessoa numa definição, por proximidade com outro, olhar de outro. Ou mesmo outro olhar. Simples olhar roubo de alteridade pura. Mesmo essa, remetente ao ser aquém. Farta de mim como ser. Farta de ser sujeito. Compreendo-me na contemplação do objecto. Fora de mim.

E depois.

A falar comigo, assim, diz-me em que matéria se rende a minha solidão quando há. Diz-me em que presas se prende o pequeno golpe de asa quando há. Em que vastidão afogar o olhar mentiroso. Em que grãos subjugar a pele. Castigar tudo o que a não ser. Diz-me, digo. Vamos beber mais vinho. O que ontem não foi nada em depois.

9 Dez 2016

Objecto discreto

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á dias que são o diabo. Esse cão. Um fim de tarde quase quente a disfarçar a perspectiva de declínio desse Outono de um ano qualquer esquecido de si. As folhas no chão, que, mesmo se não houve uma ventania forte e desarrumada a vencê-las, se deixaram calmamente cair da idade própria. Talvez num voluteio dançante sem pressa. Ou talvez a pique e com um ruído seco quase inaudível. Que não deixa dúvidas de estação. De cor, de dia seguinte. Mas a temperatura da tarde, sim. Não que estivesse calor, não me expliquei bem. Era só que não estava um milímetro de uma sensação de frescura, que fosse, nem um segundo de arrepio ou a vontade de compor melhor o bolero de lã fina. Tão fina como seda. Tarde a querer esquecer o tempo e a poder esquecer a temperatura, lá bem no meio da conversa, só um constatar ligeiro de como estava bom. Ali. Num final de semana de uma liberdade desusual. Horas de conversa mansa e fácil. Numa mesa no coração do jardim, da cidade. Uma estação que como quase todas tem dias que anunciam o seu fim e dias que são como uma quinta estação. Dias sem estação. Aqueles, em que a vida não dá, não tira, nem pesa. É. Simplesmente e com alívio. Mas circulares, estes.

Depois o voltar a casa lento e um pouco triste de voltar. De um esquecimento de toda uma camada do tudo. Que volta a mim, na volta a casa. Por entre as árvores no perímetro máximo do jardim, enquanto possível. O dia baixo. A luz, a já pouca réstia do dia, a esvair-se rápida. Sem frescura de maior. A mesma mansidão de toda a tarde. Foi talvez ao fim dessa linha traçada pelo caminho mais longo e antes de deixar as árvores pelas pestanas dos outdoors publicitários, que comecei a ouvir um som inquietante como uma respiração fantasmagórica a acompanhar-me os passos como um cão. O cão. Porque há dias assim. Como sempre não acredito facilmente em sensações insólitas. Há uma desconfiança atemorizada de entrar nessa porta como a não haver retrocesso possível. Uma hesitação. Uma atenção redobrada e olhar em torno. De mim, dos pés que pararam e com eles a respiração. Uma coisa de outro mundo. Mas eu não acredito. Nem no mal e nem em outro mundo. Em nada, mais. Nem em significados nem em sentidos. Mas nos órgãos dos sentidos, no momento puro de uma sensação. Nítida. Olfativa. Mesmo até presa de matérias da memória. Às vezes o cheiro nítido. Como aquele meio adocicado do alcatrão pastoso em verões de outro tempo. Porque acredito em outro tempo quando regressa em forma de sensações nítidas. Quase tão real ou mais do que o de hoje. Em que não troquei palavra com ninguém, nenhum cheiro me mobilizou a atenção e nenhuma dor a mais me prendeu a uma cadeira. Mas ali, como sempre a ensaiar o andar leve, porque quando os passos são leves, a vida flui. Pensar o contrário é um perigo. Como  nas palavras.

Parei relutante comigo própria por o fazer a partir de uma sensação tão insólita e estranha. Nada. Recomecei os passos com a mesma desenvoltura de sempre. Há que tornar os passos leves e com eles o corpo. E tudo parece perto do voo. E comigo recomeçou à altura dos passos aquela respiração desdenhosa e pesada. Inconfundível. Era. Uma respiração. Bem, uma espécie de respiração, entendi. Sentei-me no banco do final do jardim a fazer contas ao acontecido e mais ainda a toda uma história em potência que imperceptivelmente se insinuara na minha mente receosa de se ter alienado. Era mais isso que me ocupava naquele momento. Rever as sensações, as extensões a partir da perplexidade num primeiro instante, distraída. E que talvez eu tivesse, apesar de tudo a capacidade de acreditar em quase tudo, mas a sorte de pouco me acontecer, na escala do muito estranho.

Fico ali mais um pouco na preguiça de voltar a tudo. Quase noite, entretanto. As luzes a tomar lugar. As sombras no jardim. Olho finalmente com atenção, feitas contas ao sobrenatural,  os sapatos suspeitos. Eles. Afinal. A origem do mal, aquele. E recuei uma vida a partir daí. Os meus sapatos azuis de verão. Com bem mais de quinze anos e rosto sonso de novinhos em folha. De camurça escura e sola compensada. Completamente fora de moda esse ano e outros. Como costumo gostar. Mas como é meu costume, poupados anos a fio no temor de os gastar e na perspectiva de nunca voltar a encontrar uns iguais para sempre. Acontece-me isso com as coisas de que gosto muito. Ficam num museu imaginário de porvir perfeito. Bandidos. Por detrás da sua face impecável, de quem dormiu anos numa caixa, envoltos em papel de seda, escovados e com bolas do mesmo papel a resguardar-lhes os interiores não fossem esmorecer, ganhar dores incómodas, torcicolos. Ali, depois de horas de pouco esforço a ouvir-me a conversa à mesa de uma esplanada no meio de um jardim, no meio da cidade, e sem outros sinais de depressão que aqueles suspiros. Porque eram eles. Mal me levantei a voltar à vida, abateram-se-lhes os interiores da sola espessa e compensada de uma matéria invisível e desconhecida forrada a camurça escura em azul. Qualquer coisa neles, no interior daquelas solas altas, abateu discretamente um centímetro ou dois. E ao sabor dos passos aquele suspiro duplo, emitido por cada um dos sapatos de verão em camurça azul, de que tanto gostava e que ao olhar nada diziam do desastre que lhes comia as entranhas de cada vez que poisavam no chão. Ora um, ora outro. Aquela respiração pesada e desesperada como um suspiro. Alto, audível e sem dúvidas de realidade. Guardo-os, anos, pelas formas anacrónicas. Pelo puro prazer das formas, pelas épocas que evocam, pelos momentos colados a eles como um nome, um dia de um ano. Personagens. Luzes especiais. Como colecionadora que não sou. Odeio colecções mas gosto de formas e de sapatos como registo de vida. Poupo-os demais. E mesmo assim, aparentemente na sua vida própria e resguardada, envelhecem e adoecem. Deprimem. Talvez de falta de luz e existência.

Mais tarde levantei-me com pouca vontade do banco do jardim da cidade, e segui o meu curto caminho para casa, acompanhada agora de dois seres deprimidos, envergonhada daqueles suspiros a acompanhar-me como se torturasse alguém por debaixo dos meus pés. Mas antes, num olhar desprevenido para o lado, ainda a apreciar essa temperatura como ausente, ali mesmo ao meu lado no banco de jardim, como se sempre ali tivesse estado, o objecto. Pequeno, o cano curto e luzidio. A menos de um palmo da minha saia. Jurava pela minha saúde que não estivera ali desde o início. O início da minha pausa para pensar na respiração estoica ou sofrida dos sapatos velhos com ar sonso de novinhos em folha. Como disse.

Reconheci-o sem nunca o ter retirado da bolsa de seda preta, comprada num mercado de rua num outro lugar do mundo, em outro ano. Mas na realidade nunca o tinha visto para além de uma forma imprecisa a avolumar discretamente, por entre o drapeado da seda preta com flores brancas, bordadas. Da bolsa de seda, comprada num mercado de rua. Uma coisa de um contrabando tão implícito que nem o preço negociado o insinuou por instantes que fosse. Mas a bolsa jaz também ela envolta em papel de seda numa gaveta de coisas preciosas e secretas. Algumas. É uma coisa insólita. Esta. Até porque é uma estética de outros tempos também mas que em nada condiz com a dos sapatos. Nessas coisas sou rigorosa. Por isso não a levei comigo. Nem o revólver. Que nunca retirei da bolsa de seda do papel de seda e da gaveta secreta. Olho o revólver pequenino e perigoso e em volta a ver se outros olhos o reconhecem com é. Ou o veem, no mínimo. O que seria, no mínimo, tão embaraçoso como os suspiros a acompanhar-me a casa, pesados e persistentes. A hipótese do invisível, não é melhor. Colho-o nas pontas dos dedos, e no olhar de suspeita, a medo e aninho-o no interior do bolero de lã fininha, como a um pequeno bicho friorento. Sem saber o que lhe fazer. Nem ter nada a ver com ele. Nunca uma palavra o levou ao interior daquela bolsa de seda. À gaveta do roupeiro. Ao caminho. Ao banco de jardim. Caminho pela rua e sem querer algo em mim suspira inadvertidamente como se alguma coisa algures acima dos sapatos num ponto indeterminado, se tivesse abatido aí também Em mim. Para além de um centímetro ou dois de cada vez que poisava um pé no chão. E depois o outro. E sempre o mesmo centímetro ou dois. Talvez a pequena mancha distraída, de um vermelho escuro mesmo por baixo do revólver, no banco de jardim. Inocente. Silenciosa.

No caminho, algo em mim vai esquecendo tudo senão aqueles persistentes suspiros que não param. Afrouxo uma das mãos do peito e do bolero de lã fininha a esconder o insólito e vejo-a colorida de um calor vivo escuro e viscoso. Escondo-a junto ao bicho clandestino e sei de onde, dentro, se verte a cor. De que ponto preciso do meu desconhecimento anatómico desculpado pela pele. Previdência natural mas não infalível. Algo se rompeu dela ali. Não ouvi o som. Não senti a dor. Talvez distraída pela temperatura confortável e ausente. Chego a casa e a chave escapa-me da mão de cansaço. Com o ruído estridente do prédio silencioso por fundo. Percebo que não morri. Pelo ruído. Talvez. Há o som das chaves. De casa. E a casa. Lambo dois dedos para não sujar a chave e o sabor doce, o aroma inconfundível do chocolate. Desconfiava que me corria nas veias. Antes assim, qualquer coisa comestível a partir de um coração de bolacha – ou de suspiro – do que imaginar-me sempre a carregar uma quantidade repugnante de vísceras semi-desconhecidas. Antes um corpo abstrato. A verter chocolate quente. E não houve crime. Mas qualquer coisa.

Se fosse, era passional. O estrondo do estampido do impacto do tiro e o calor de um abraço. Mas a temperatura era ausente. Como disse. Portanto não houve crime. Nem história para contar. Mas houve qualquer coisa. E num dia qualquer começou a doer.

E depois, ela, ali, baixinho, a outra, ela ali baixinho, de frente, em confidência, em desespero, que a morte não pode nunca ser metáfora de nenhum abandono, abandono de si, de nenhuma indiferença, de si, de nenhum outro, de nenhum outro em si ou vice-versa. Que a vida tem um preço maior. Em abismos e seres da natureza deles, em mergulhos e tempos que os relógios param para observar, em perdas e ausências mútuas, ou em trocas de territórios como roupas emprestadas. Existir mental fora de si e existência sentida como habitada em si. E tudo dali, excepto a morte, tem um preço de vida sensível, visível ou invisível de aceitação tácita. Não há morte. Senão a que tem que ser. A única e não amada mas familiar a achegar-se mansa de falas porque o seu dia, ninguém lho tira.

Sentada à mesa da cozinha com aquele caderninho anacrónico das receitas, repensa quantidades e proporções. Um pouco mais de chocolate, mas experimentar com pimenta. Que quantidade arriscar, coisa a pensar muito bem. Talvez por tentativa e erro. Como chegara à receita daquele bolo cremoso, de comer morno, saído do forno. A verter chocolate ao primeiro toque.

2 Dez 2016

Nem pena nem paixão

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando penso que há tanto lugar no mundo. Que ainda não se estragou tudo. Mas que estamos no bom caminho para isso, enrubescidos de vergonha mas irrascíveis de vontade e intensão egocêntrica. Apetece-me mais que muito mergulhar na micro planície calma de uma distância impossível de conseguir senão na consciência. Na alienação de todas as palavras de uma desconstrução que não tem nada de bem querer, de bem querer fazer. Bolas de bilhar sem olhar definido e permeáveis a um toque seco de uma intensão de jogo. Coloridas mas cegas em si. Reacções em cadeia. Empurrões de gotas do mesmo líquido na inquietação febril de impulsos físicos, na inércia da agitação da matéria de uma individualidade contranatura. De entidades que somos, parte de um todo indivisível.  A tessitura da matéria atómica e social, a rede universal.

O realismo global é a nova corrente. A nova prisão. Diálogo universal a fazer contas às estrelas. Gotas e partículas previdentes na expectativa de assistir a qual evapora, qual congela de um frio maior, qual salta por imperativos de dinâmica das mesmas e cai na margem do todo. Qual se infiltra na terra, vítima de um engano do estado do tempo e pelo mesmo erro alimenta uma partícula seca, engelhada e feia, que era afinal a invisível semente de algo.

Aqueles dias, em que me apetece encolher os ombros, os joelhos, tricotar rapidamente um casulo de lã Mohair desde as pontas dos dedos dos pés pintados, até às pontas dos cabelos lineares e bidimensionais. Espalmar toda a subjetividade num pedaço pequeno papel e fechá-lo num livro bom. De palavras boas. Cantilenas de embalar e de encantar. Já agora, com umas pétalas de flores para não esquecer as sensações e ir cheirando um perfume bom. Ou driblar uma bola rapidamente e atirá-la a uma tabela mal desenhada, vezes sem conta, encestar ou não. Com aquele ruído específico, e aquele ruído e aquele ruído do impacto, e de novo, e repetir até à exaustão. E uns calções compridos e contornados a preto para pintar depois num dia mais contente. Ou atirar pedras ao rio e ouvir o ruído do baque na água. E de novo. E de novo. Ou sentar-me e abanar o tronco para a frente e para trás. E vontade de fugir. Para fora deste circuito viciado de violência a que já nem as palavras me fogem. Vontade de ouvir tudo coado pela imensidão da água sobre mim, à minha volta, à minha frente e atrás de mim. Por todos os lados. Em todos os lados e em todos os sentidos. Fechar qualquer coisa por momentos como um casaco pesado de inverno.

E esses dias em que tudo me aparece da esquina mais negra da realidade, tão real e tão reais como os outros em que se alternam momentos de maior lirismo e apaziguamento, tão real este e tão nítidos esses, mas bem mais construtivos. Dos anjos só os mais negros e ausentes. Há uma arquitectura de destruição de que não gosto. As grandes cidades como os pequenos castelos de areia, de nuvens, ou de saber ir indo com os dias sem exigir nada de ninguém, merecem o mesmo respeito. As construções sociais e as empatias coerentes. As pequenas mortes como os grandes genocídios. Todos me fazem aversão. Os grandes princípios edificantes, os pequenos gestos demolidores. De tudo se fazem palavras e mortes. Que arremessadas ao vento ferem rostos de caminho, de passagem ou de indiferença. Na realidade exijo tão pouco dos outros que sempre sou colhida de surpresa. A raiva. O ódio a fermentar numa matéria estranha em rejeição. Mas a encontrar caminho nas palavras e na lógica dos critérios. Sentir palavras infelizes e forasteiras a invadir espaço que não lhes é destinado a desenvolver diálogos que me cansam e calam. A evocar palavrões de violência a desmedir e a libertar de caixas fechadas para o efeito. De guarda. De não querer. De ferir. De recusar. E da recusa sobra o abalo do abalroar sem ter querido.

Tonalidades, texturas e cores de que não gosto, a invadir-me a forma das palavras. Timbres e cheiros a putrefacção e a biis. Perpectivas militares e explodidas, estratégias. Já bastam as guerras. Deformações como doenças dolorosas da pele, dos dias, a vista de cada janela a enrugar de irascibilidade. E nessas alturas todas as palavras amargas e corrosivas se juntam em meu socorro, ansiando por se escapar do lugar fechado onde vivem e fazem alarido incómodo. Mas não as quero para mim, como não as quero para ninguém. Só que me abandonem reabsorvidas numa matéria inócua qualquer.

Há dias em que o meu mundo me aparece coberto de tons de negro, um vozerio desmesurado e agreste, repleto de palavras que não quero dizer. Uma fractura que não quero sentir, um sentido que não quero medir. Há um corpo. E o meu. Imune às palavras. Último reduto a ignorá-las.

E apago a luz. A paisagem de que preciso. Para sentir de que cor ficam afinal todos os negros. De que espessura se faz afinal o silêncio relativo. De que formas se prende o tacto às coisas. De que temperatura se lembra o corpo nelas. De que memória se desprendem os objectos. Tudo novo em escuro e silêncio. Mesmo as vozes esparsas da rua, parecem ignorar melhor e mais. Mais exteriores. Assim. E há felizmente pequenas réstias de quase não-luz, a entrar pelas frinchas das portadas, tábuas compridas e gonzos empenados dos anos. Pela janela das traseiras sempre aberta para o lado do avesso das coisas da casa e da rua, por debaixo da porta e por trás da qual se desce e sobe em outras vidas que não tenho que saber e não me falam. E aí ando um pouco pelas cadeiras e cadeirões das divisões imprecisas. Nocturnas de vez, mas silenciosas nunca. Sinto a frescura de paredes e o gelo da pedra e de um copo esquecido talvez no tampo de uma mesa. Bebo um resto de um vinho escuro e apalpo as roupas que não lembro de ter despido espalhadas por ali. Algo de formas invisíveis se me enrodilha nos pés -o gato ou a roupa – que devem ser meus sem os ver e o soalho é macio e não demasiado fresco. Devem estar descalços. Todos. Mesmo a roupa indistinta.

Ele é silencioso. Roupas misturadas, minhas, da véspera, de há três dias, dele. Estendo-me na cama feita já noite. Nunca me deito sem a fazer. E há um corpo morno e adormecido. Minto. As costas frescas. Senti ao de leve com a mão. As omoplatas assimétricas da posição. Toco de novo. Não, não cresceram asas. O corpo dorme. Não é meu. O meu não dorme. Vigiante. Cansado. Inquieto. O outro volta-se no seu silêncio completo e a temperatura atinge-me como uma carícia. Boa. O hálito sereno e lento. Não lembro nomes nem factos ali no alo daquela proximidade viva e adormecida sem ausência. Assim. Só a enorme objectividade mesurável em graus centígrados e confortavelmente destituída de sentido. Um sono imperturbável e não perturbador. Não gosto de o acordar. Nem ninguém. Mas também porque me apetece andar por ali e pela casa solitária assim no escuro. Ele, ali. Noutros dias, não. As luzes acesas contra o desconhecido monstro da casa. Apagam-se para tudo dormir. Está quente. São dois calores, agora. Três. Se contar com o da porta fechada da noite. Viro a almofado do outro lado. O que está sempre fresco por um tempo. Não o toco. Não o quero acordar. Quero sentir toda a casa secreta e confortável. Tudo ao negro sem temor. Sem sombras. Sem relógio.

E de repente, lembro-me, e avanço no outro corredor até ao fundo, com a mão na parede para não tropeçar e com uma alegria infantil dou um piparote no pêndulo do relógio do corredor, que acorda como se nada fosse. Como a iniciar o tempo do escuro. Sempre parado e preguiçoso, mas que deixo em paz para não acordar os vizinhos. E o tempo retoma em cinza fechado, fino e muito, muito escuro. E todos os sons ficam abafados lá muito atrás de qualquer realidade, por esse som ritmado que preenche a casa de uma ponta à outra. Como se fosse ela própria o interior dele. Do relógio. Dele, há um coração a reger serenamente um corpo em descanso. E em mim há algo indefinido a instalar-se sem pressa e sem palavras. Abro um livro sem nome e leio com os dedos as páginas lisas. Palavras baralhadas de vez. Tenho uma suave vontade de rir sem ter bem razão para tal. Porque tropecei, talvez no pé de um banco. Talvez o outro lado, o do ridículo daquilo tudo ao negro e assim. Lembro-me do perfume que não tenho usado e vou senti-lo. Sabe bem, também. Assim na frescura da memória meio esquecida. Como acontece com luz acesa. Tudo igual mas mais suave e mais escuro. Na verdade, tudo finalmente invisível mas palpável. Com uma densidade nova. Como uma cegueira. Uma frescura e uma novidade. E toda a subjectividade da não significação de tudo. Ali, aqui, ao negro de todas as cores. Esquecidas por detrás da luz ausente. Da pele glabra camuflada de noite mais escura, tornada escura e secreta mais do que é sentido normal. Existência discretamente apagada das cores. Apagada das horas, apagada do olhar. 36 graus acima do nada  Ou além da solidão. Ou aquém dela. Ai sentada à beira e prestes a cair no sono, também. Sem olhos, sem respiração, sem ruído, sem nada. Acordo sobressaltada pelas badaladas imprevistas e histéricas de alegria, do relógio do corredor, a que nunca me lembro de dar corda. E que mesmo com corda, muitas vezes adormece esquecido de si. Também. E dou mais uma volta hesitante pela casa, a estender a perfeição do momento nocturno embalado pelas badaladas raras e pelo tique taque do relógio, a que nunca me lembro de dar corda e cujas badaladas não quero que acordem os vizinhos e que por isso deve estar quase a parar de novo. E depois a noite esgota-se e tudo volta a sofrer da luz.

Ela dizia daquelas crianças sossegadas, que brincam sozinhas, que não inspiram cuidado nem preocupação: “não dá pena nem paixão”. Não era uma coisa má na voz dela. Mas há uma literalidade estranha e indivisível aí. E ele tem esse sono sossegado, ali.

25 Nov 2016

Variável dominante

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] que se é e não o que se faz, se diz. Essa realidade equívoca. Da obra e da representação. De si. Da imitação, de uma camada de sentido, sentida, eventualmente, mas uma segunda instância. De ser, parecer ser. Uma tangência pontual por definição geométrica. O que se é no que se faz, como um mal feito mesmo na perfeição alheia e distanciada do que é feito. Elaboração da mente mas a voar para longe. Do que é afinal anterior, subjacente, íntegro e absoluto. O que se é. Intangível nesse absoluto. Atingível por camadas. Fragmentos de se ser. O que está ao alcance do olhar. E nunca, quase nunca a totalidade no que nos deixamos fazer, ser visível. Revelados por partes.

Como no papel da escrita. Branco, possível. A escurecer depois nuns pontos, pequenos nós, como grãos de terra, presos de letras avulsas de entre as infinitas possibilidades. Aquelas, por uma vez. Não outras. Todas as outras que não caem, presas numa outra página inalcançável. Como caminhos etéreos uns, visíveis outros, na disposição meticulosa das pedras e das ervas naturais. Das confinações físicas a fazer imperceptivelmente modular os passos até sem intensão, e a desembocar num sentido eventualmente imprevisto. Um caminho como texto escrito. Como este, menos óbvio do que se poderia querer ver. Mesmo depois. De onde se parte e onde se chega. Tudo variável. Como um caminho entre as árvores. Numa disposição indisciplinada de arbustos, ramos caóticos ou a viver a alturas imprevistas, a surgir de direcções que contrariam a ordem natural do crescer. Pequenos galhos e grandes braços caídos. Redes de folhagem que escondem depressões inesperadas do terreno, do lugar dos passos que afinal não são nunca a direito. O estalar das folhas secas, essa memória da infância a procurar distinguir ao olhar as que no chão produziam esse ruído, sabe-se lá porquê, apetecível. E aquelas que, menos secas, ou já húmidas frustravam esse ziguezaguear dos passos pela rua outonal, à procura de tão pequenino prazer. Como comer batatas fritas. Coisas talvez improdutivas do ser mas não do prazer. E um, como o outro, de tudo se faz. E no final a imagem. Uma de muitas. Uma pele de várias. E nela existimos? Na prova concreta do fazer, do caminhar, na forma passageira de tudo, o existir. Prévio mas já não palpável. Prova de ser ou de existir, não sei, de momento. Mas ser, é em geral uma existência impalpável embora inequívoca. Não sei onde. Mas ser encerrados nesse território irredutível de que só se manifesta um reflexo. O gesto temporal. Residual. Ser do corpo para dentro. Tem que chegar.

Tudo me perturba às vezes. O olhar límpido e intencional, o olhar turvo e sem lugar. As pessoas que desviam o olhar. As que não ouvem. Os medos dos outros. As suas frágeis matérias desconhecidas e quebráveis. Não saber.

Mais do que momentos. Pequenos, ínfimos mesmo, como rasgos de luz numa cortina-tempo. Por detrás da qual parece ser a realidade a ser. De passagem. Toldado momento-mundo. E passaram as palavras. E porque eram palavras-instante e não duraram, pensava-se que eram pouco verdadeiras mas é a alma que é plástica e o tempo que corre. E dos mesmos sentires se abeira de outros ângulos da mesma visão. Da mesma visão-palavra. De outro olhar-tempo. Prismático mas não oposto. Ou como organismo vivo, o olhar, as sensações, os sentimentos, agarrados a uma essência de núcleo escondido, mas em renovação epidérmica.

Mesmo numa respiração descompassada, numa batida latejante nas têmporas a demonstrar que um órgão a ressentir-se, muito do metabolismo continua a sua rotina microscópica e arrumada. Gosto de arrumação. Gosto mesmo demais, de ordem e rigor. Objectos paralelos entre si. Linhas rectas de verticalidade e horizontalidade. Perturba-me a obliquidade da queda. Da composição. Tento adaptar-me à desarrumação do mundo, das ideias que não têm tempo para se organizar. De palavras e linhas demais para o tempo. Tento. E a tudo o que é maior e não tem arrumação possível. E às brumas que ocultam e desocultam. E a realidade como uma terra de montanha, na secura e humidade específicas. Ou em vasos, e os minerais a alimentar plantas, mesmo nesse pequeno mundo de brincar. Essa terra onde ponho as mãos em dias demasiado etéreos, a compor o que é possível. Percebo porque me dói. São os grãos mais ásperos. Torrões ressequidos. Q uando me viro para esse lado na cama. Dores finas. Dispersas.

Ando a tomar palavras sem prescrição médica. É o que é. Algumas, amargas e amareladas, ou rosadas ou em branco, redondas ou alongadas. Algumas, a cair como pedras no estômago e que não há água que desfaça. Palavras e vitaminas, para fortalecer a insegurança. Mas tiram-me o sono. E associadas ao álcool, então, é melancolia a entornar o vazio instalado. Derramam-se-me na noite e acordam-me sem razão. Crescem, dão-me trabalho e tiram-me o sono preguiçoso. Fica ali a olhá-las exibindo-se nuas e perfeitas, em arabescos de coreografia invejável. Mas antes chamar-lhes pensamentos. Igualmente impróprios e intrometidos mas dentro do seu lugar como ocupantes de visita. Elas, mais convictas e arrogantes dançam exigentes e definitivas. Demais e a mais. Palavras-comprimido. Palavras que me colhem em jejum sem estômago para elas. Ando indisposta de palavras, pessoas e vidas.

Ah…Às vezes eu penso mesmo que vamos todos enlouquecendo. Com aquela crueza com que viro os olhos sempre para tudo, mas para começar e acabar sempre e com a maior veemência para mim própria. Não me poupo e seguramente menos do que a qualquer outro –  que não poupo, eu sei, dentro de mim, eu sei e não poupo – há um canal sempre desimpedido aí. Sempre limpo de máscaras e panos aquecidos. Um estreito que se atravessa a nado sem maior esforço do que o de uma respiração ofegante. E mesmo esta, sabe-se, pode advir de tantas emoções e tantas pequenas inseguranças, que não é de pregar susto de maior. Enlouquecendo de teatralidade, de experimentalismo sensitivo, de verdade no palco, de amoralidade. De imoralidade, de fantasia. De dispersão. De verdade. De cobardia. Enlouquecendo de coragem. De tudo. De desilusão e de ilusão feroz. De palavras demais e de palavras de menos. De não valer a pena. Nada. De tudo valer a pena, se a alma o suportar imaginar. De pensar os pensamentos e de pensar os sentimentos. Dos dilemas. Porque a certa altura tudo parece conduzir aí mesmo na mais escondida parte de cada um dos nossos olhares. Os antagonismos aparentes entre critérios e convicções, entre sintomas e verdadeiras causas profundas. E sempre um outro olhar a esculpir possibilidades de formas em nós. Penso. Penso mesmo. Mesmo naquela pontual euforia instalada no meio da maior perplexidade e impotência existencial. Coisa estranha. Em divergendo. Lírico, talvez. Descobridor. E um dia, abro a porta da rua, saio, e está ali o Batmobile. De certeza. E nos outros dias, alongo os passos para espaço mais amplo. Saio da minha rua–concha, da minha rua casulo e casa e da minha casa-pele, e caminho por lugares indistintamente só para depurar a respiração sem pensamentos de maior, naquela ocupação ligeira e ténue dos passos sobre passos que não dão muito espaço a espaços mentais. E caminho depressa, como sempre gostei de não caminhar devagar. Na rua. A lei das compensações. Deixar que o corpo adquira uma inércia firme e que seja o espaço a percorrer-me ligeiro como a vista numa janela de comboio. Em velocidade. A vertigem de caminhar em frente no tempo para não voltar atrás na memória.

Por isso é vital a urgência do caminhar. Ou construir paisagens vazias. Caminhos de vazio. Daí a serem mortas, mortos, vai todo um apocalipse. Gosto dos vazios e da serenidade do que está vago. Vago para preencher pausadamente de todo o possível. De livros brancos e de páginas em branco. Como todas as horas vagas. Para caminhar.

18 Nov 2016

Piano forte. Piano piano

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje é o ir pela escrita adentro, o único lugar. Como mergulhar lentamente, escolher a temperatura e sentir o rumorejar manso e eterno enquanto é. O imergir simplesmente sem violência num silêncio de sentidos múltiplos e distantes. O corpo. Somente o corpo. Palavras como águas sem mais. A única mão a estender para fora do regaço em que um par inerte e serenamente nunca só, pousa sem outra vida própria. Ir por dentro das palavras-pedras ao fundo, e ir por aí fora sobre as palavras-asas, e perder-me o possível nas palavras-gesto, nas palavras-beijo e nas palavras tacto. Varridas do chão de corredores sem fundo e de soalhos sem flor. E sem fim e sem dor. Ir. Ir para o dia que é o outro qualquer que não este que não me quer. Bem. Ir colhendo nas sílabas boas como numa seara de espigas e fenos e ir colhendo em molhos que não importa em que buquê se formam, mas formam. E formam quase a forma de um caminho que é sem fim e sem forma. E de resto mais nada que estas palavras a recobrir a calçada que nem sei se é e está. Como pétalas a disfarçar o que é terreno quando passa o andor. Sobram as ditas. Claro. A secar. A acastanhar. Nelas vou vogando. Nelas como nos dias. E o de hoje como todos na cor e na tonalidade própria, de luz-sombra. De cheio-vazio, de claro-escuro e de saturação pontual. Na indiferenciação da última sílaba da última palavra. E da pontuação. Onde acrescentar um ponto a uma vírgula e obter umas reticências. Onde apagar uma vírgula a um ponto, evidenciar um parágrafo, e observar o precipício abrupto à beira da palavra. A palavra tudo. Que está ali. E a palavra nada que se segue. Era uma história, possível. Mas eu gosto de vírgulas discretas e parágrafos sem exclamação. Escrevo a lápis mas nunca apago. Como um pássaro não seria pássaro se apagasse o vôo. E o lugar não pode deixar de o ser como se o não fosse. Ir pela escrita fora, sim, porque tenho que ir a algum lugar. Lugar marcado e encontro com o que é depois de agora. Sem outro transporte que não uma ânsia que não cessa. Não gosto do fim porque se vai finalizando. O fim que o é tem a hora marcada, registada e sublinhada a nítido fervor. Logo à noite, ver as estrelas. Os meus fins são assim de abrupta definição. Quanto muito esqueço. Quanto muito estrago. Quanto muito reciclo e refaço noutra matéria forma. Mas gosto mais de esquecer. Parar de ouvir vozes de outrora e de agora. Demasiadas vozes. Fazer a apócope de sons como do piano forte. A sobrar o piano, piano. Sem mais perturbação. Esperar a noite. Desligar o telefone dos dias.

Percorro descalça o labirinto dos corredores. Disfórica e cuidadosa comigo que tenho. O que a vida traz e ninguém mandou. Tiro os sapatos e entro na casa. Que mesmo os saltos podem magoar. Ferir de pequenos pontos irrevogáveis a madeira sensível. E que ficam para sempre. A casa é forte. Quanto mais forte, mais frágil. Mas eu tiro. Penso que posso fazê-lo sem querer. Sem saber porquê. Tiro os sapatos para sentir-lhe a realidade. A chuva gelou-me a nuca e não houve carícia posterior. Talvez o sol no outro dia. E dizer bons dias a pessoas para quê…o tempo moído de esperas e desesperos, para quê…e depois aquela euforia avulsa. Um piano forte, de facto vindo dos confins dos séculos e reencontrado em ecos e vozes de natureza digital. Como dedos. A digitar recônditos recantos e bem. A fazer bem. Essa química pura e sem máscara. A música.

Contornar pensamentos tóxicos e os não ditos. Adivinhados no cadinho das possibilidades em menú exponencial. Corrosivos e pela calada do desperdício. Fuga ao circunstancial. Pela escrita adentro como pela noite de todas as noites. A intemporal de sempre e de nunca. De que não sobra nos dias a liberdade. Mas que sempre vem e vai às vezes de exaustão. A noite de já não ser nada do esperado, desesperado ou ressentido. A ponte entre tudo e coisa nenhuma ou talvez. Pela escrita sentidamente e pela frágil e dissonante palavra que é tudo o que tenho. E da máscara digo nada porque é. Digo, só menos a que não quero e  ganha vida para além dos fios e da teia que não quero tecer.

Histeria metabólica em que oscila o amor e o desamor, a vida e a morte em trinta segundos e a rodar sempre a rodar o carrocel à música do tilintar de uma moeda. Ninguém pode invejar sentidos e sentimentos, aparentemente cada um gosta daqueles de que é capaz, vítima, ou roda de moinho. Como os de D. Quixote. Que só ele podia ver, como gigantes. Para quê alucinar as alucinações alheias. Há cogumelos mágicos de sobra para todos. E o mar chão de praias para abrir os braços e maravilhamento de costas ao poente. O lado contrário do mergulho.

O amor é um bicho mamífero. Come mais ou menos de acordo com a indisposição. Entristece e adormece nas noites mais frias. Vigia o dono, espera. Desespera e dorme triste, acorda e dá saltos para desentorpecer as patas dormentes de tanto esperar. Passeia a farejar a vida. Mas não morre e renasce em cada sono. Está por ali nas arritmias e solavancos da vida. Até chegar a sua hora. Não é de modas sentimentais. De teorias estéticas. De uns dias se ser céptico de amor, e dos outros, vítima de fúria e de ardor. Os dias do nunca e nunca mais e os outros do para sempre e demais. Como se é fútil se as coisas não são construção sólida nos alicerces das veias. Sem circunstâncias. As pessoas fazem-se e desfazem-se nas palavras ditas. Nas outras, não se sabe. Sim, talvez mais como o sangue, a circular sem parança, a oxigenar-se quanto pode, sem parar. No seu sistema de vasos e ramificações por todos sem se enganar ou voltar para trás. Mas sempre nesse circuito fechado. De um nome. Um rosto, um corpo. Inconfundível. Esse. Que se vê no escuro. Porque é aí que vive escondido. De modas. Fruto da desnecessidade e mais ainda, sobretudo, infraestruturado na desmesura…e no espanto, de fora, a ver o carrocel com olhos de criança, no susto do ruído atroador. Da velocidade. Da voz que diz vai rodar. Fazem-se e desfazem-se, mas sobram. Umas e outras sem relação nenhuma. Como os dias. Novos ou reaquecidos da véspera. As mãos são a metáfora impossível sem o tacto. Impossível mas não improvável. Talvez pudesse dizer o contrário dependendo dos dias. Mas sobretudo o ar. Ser livre. Ter um espaço amplo. Nada ouvir e nada olhar. Um dia sem circunstâncias sem vozes e sem nada. Para escrever. E escrever ou não. Pela cor. Abstractas e macias como piano piano.

E à noite ali na mesa da cozinha entre sombras, atentas amigas, a mão a um palmo. O olhar desarrumado e sem lugar, e pode ser uma companhia limite. Um ou dois copos. Tanto faz. Encosto a cabeça ao braço porque estou cansada e digo lê. Como quem diz, toca…a luz, baixa. O pano cai. E faz-se silêncio por fim. O de repente, o de sempre e o de nunca. Uma coisa de suave esquecimento. Vem daí.

11 Nov 2016

Pequeno mundo

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]os bons e dos maus. Passe o maniqueísmo. E os maus somos nós, mas podiam ser as libelinhas. Lindas, pequeninas e esvoaçantes. As abelhinhas, nunca. Pequeninas peludas e a desferir ferroadas defensivas. Obcecados pela expressão. Obcecados pelo amor. Mesmo na ausência deste. Ou na ausência só. Uma coisa que está sempre e a outra por isso mesmo. E também. Sim tudo isso e o erro. Ando tão preocupada lá atrás nos corredores onde circulo, com as abelhas. Ando. Depois de toda a ironia assentar. E que não era mas podia até vestir uma roupa equívoca como muitas máscaras. Mas é a verdade. Aquelas ínfimas e pensadas talvez insignificantes peças da mecânica universal de dependências mútuas. De ajuste e afinação delicada. De cor peluda e listras como nos desenhos animados. Quase só o que se conhece delas e o mel. E a agressão. Mesmo na natureza, auto defensiva há erro. De previsão. Precipitação inesperada por antecipação do que não era para ser por vezes.

Escreveu abelhinhas, Rosalva? Rosalina…diz. Os olhos turvos de incompreensão porque estou a pensar noutra coisa. Sempre a pensar numa outra coisa. Desculpe, estava a pensar na alvorada de sempre. Uma coisa certa. Escreveu…Mas porquê inhas…Não se preocupe com o kitsch. É ternura mesmo.

Mas elas não sabem e ferram uma dor violenta. E morrem dela. Curiosamente. A natureza munindo de uma arma a ser usada uma única vez. E nós. Obcecados pela expressão e em silêncio, obcecados pelo amor e sós. Cobertos de camadas e poalha de cadeias sem devir. E a percorrer os minutos como se a desviar confusamente teias e névoas e tules de cortinados e reposteiros uns sobre os outros, a proteger uma entrada que em si se sabe camuflada, mesmo depois de tudo desviado do olhar. Uma entrada, às vezes e de outras a vida em corredores laterais, coxias sem lugar sentado e acocorados na escuridão a ver mesmo assim. A vida. O espectáculo da vida. Que espectáculo. Pode até chegar a ser maravilhoso. Há que desnudá-la como se submersa em véus. Em camadas sempre. Desvendá-la como a uma amante secreta que se esquiva. E esquiva sempre. Ou amá-la por detrás e para além dos véus para não lhe ofender o pudor. Sei lá eu. E nem sei se mesmo a vida se sabe. Eivada de incompreensão e temerosa de golpes de uma sorte esquiva ela também.

Escreveu camadas, Rosângela? Dou-me de imediato conta do olhar confuso e ligeiramente irritado da criatura. Ros…, qualquer coisa, digo. (Vide texto de 12 de Outubro deste jornal, em que Rosalina se viu Francelina com desprimor para a segunda, embora a ofensa magoada fosse da primeira.). Que importa?..Se as camadas são em parte também das asas dos anjos. Vôo por aí. Não leve a mal. Não é que eu seja difícil com os nomes. Ou com os rostos. Há pessoas assim. É só que as palavras se prendem umas nas outras e as sílabas trocam de lugar como num jogo de cadeiras. Mas são sílabas boas. As que misturam os anjos com as rosas. Sei lá. Coisas do céu sem nuvens e coisas das nuvens leves com camadas sobrepostas de branco a dar para o cinza e a chegar ao chumbo, às vezes, mesmo. E cai depois o que sobra da água condensada como caem lágrimas mas aí do céu. Outros dias limpo como os olhos secos e é tudo natural. Como derramar o que sobra. E desfazer nós. Trovejar.

Há um desenho que sempre pergunto quantas camadas de sentido. Tem. Um livro de página amarelada pelo tempo. Uma. Uma folha colada aí. Duas. Folha pautada de linhas azuis. Impressas para a escrita se equilibrar. E nelas, três. Uma colagem, uma linha a negro a contorná-la, pelo lado de dentro como uma protecção íntima. Dentro de fronteiras. Como convém a ser discreta. A folha destacada de outra realidade física. Quatro. Um desenho a tinta negra da china, figura e fundo. Cinco e seis. Uma página de uns minutos de uma vida. A vida assim. Em camadas.

Mas e as abelhinhas, que têm a ver como todas estas camadas. Aqui, sobre a mesa e indefesas. Que mal fazem ao longo do mundo e da eternidade. Nada. Nenhum. Que camada senão as de interesses privados, megalomanias empresariais, desconhecimentos e indiferenças governamentais. Políticas. Falta de visão global. Falta de sentido de eternidade para o humano, o universal. Por enquanto. De um olhar sobre a pequenina coisa em si e o efeito de libelinha – borboleta, digo – transversal ao tempo que vem. Pequeninas abelhinhas na engrenagem de um tudo a desmoronar em eventualidade. Em extinção visível. E nós, ainda com um frasco de mel na mesa do pequeno almoço. De rosmaninho perfumado e secreto labor imperceptível na viscosa matéria da doçura. Vindo de uma feira, sem assinatura das pequenas, minúsculas criaturas. As que morrem progressivamente mais e em quantida monstruosa, sem darmos por elas nem lhes fazer o luto. Nem sentir a falta nem entender que não há mais um mundo sem elas ali. Pergunto que fazer e não sei. Ou as libélulas, lindas e pequeninas que já tiveram um metro no passado pré-histórico e que calculam coisas estranhíssimas como o lugar onde a presa vai estar no futuro para com ela cruzarem o seu destino predador. Suspiro de alívio ao imaginá-las afinal desviadas de um futuro que nos excluiria talvez. Elas e os seus olhos multifacetados capazes de produzir trinta mil imagens, e os seus cérebros pequeninos mas com neurónios capazes de compilar tudo isso numa figura e mais proteínas capazes de sentir a luz. As facetas da luz. E A menina Rosalina suspira comigo mas por razões diferentes e não vê onde quero chegar nas palavras.

Escreva neurotoxinas e outros venenos, Rosário Rosarium. E ecossistema e extinção em massa. Não seria a primeira vez no mundo, seria talvez a última para a humanidade. Já Einstein dizia mas não parece ser aproveitável. Rosário…suspira revirando os olhos. Significa “coroa de rosas”, não se melindre. Quer dizer que cada vez que alguém reza de modo conveniente o seu rosário, deposita na cabeça de Jesus e de Maria uma coroa formada por 153 rosas brancas e 16 vermelhas do Paraíso, as quais nunca perdem a sua beleza e o seu brilho. O Rosário é o primeiro dos actos de piedade. Ela olha estarrecida e eu sorrio para dentro na dúvida da extensão da ironia. Se era…porque há que rezar de um modo qualquer.

E daí a minha alma divaga para o efeito borboleta, aquela expressão um pouco lírica que expressa os efeitos gigantescos, provocados pelo ínfimo adejar das pequenas asas coloridas e inconsequentes, no seu movimento mecânico em torno das suas pequenas intencionalidades de vida e sobrevivência. E daí para os sistemas abertos, na ciência, dinâmicos, adaptativos a todas as variáveis, em que cada pequena causa, pode despoletar uma granada de explosões imprevistas e consequências imensas. E o mundo fica assustador nesse olhar possível. Estaco paralisada na impressão de que um tão pouco tudo faz depender tanto outro nada qualquer. E apanho o resto do cigarro que por preguiça deixei desleixadamente cair no chão. E de caminho reconduzo a menina Rosalina à máquina de escrever de cor amarela muito pálida. Despende-se mais energia nas teclas duras, mas poupa-se energia eléctrica. E se parto as unhas. Diz com aquele arzinho de catástrofe. Crescem de novo. Mas não pintadas. E reciclo tudo, separo os pequenos e grandes lixos que nem sei como, tanto produzo. E reutilizo o possível. Já não posso deixar de o fazer. Tudo. Pequenas palavras, sentimentos e esboços de ideias para qualquer coisa, que não chega a ser mas está ali. Papéis e mais papéis que iriam para o contentor próprio naquela angústia de fazer perdidas pequenas coisas válidas. Matérias e ideias. Registos da vida pontual. Numa linearidade difícil. Mas reutilizar. Renovar.

Volto a pensar nas abelhas. Que picam para se proteger e mais ainda proteger o seu pequeno mundo e, algumas espécies morrem ao perder o ferrão, libertando feromonas de alerta para as companheiras de colónia. Morrem por uma causa importante. Mas por vezes erram o juízo sobre a eminência do perigo e morrem mesmo assim. E nós, esperamos delas a agressão e antecipamo-nos esmagando o pequeno ser antes que desfira o golpe que não sabemos. Para proteger o seu pequeno mundo. De dependências mútuas. O nosso.

4 Nov 2016

Em lugar de ser

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]arecer. Não. Nunca, em lugar de ser, parecer. Dizia , lugar. Em lugar de ser, lugar. Em lugar de ser lugar. Passe a repetição e a exaustão. Portanto, lugar. E ser lugar como privilégio de ser e porvir. Equação. Dilema ou possibilidade. Ou simplesmente o vago lugar, confortável, a visitar, a alugar, a habitar. A querer. Sei lá.

Paradigma. Casa. Corpo. Pele ou pêlo a cobrir. Casa ou espelho. De envolver ou ver na passagem. Esta é a diferença. O pé que se tem nas coisas. Mesmo sólidas de estado. Só depois as metáforas. A deriva gasosa e impermanente da Psique. A fuga, as metástases da matemática e dos conceitos a formatar discos e a desfazer e refazer sinapses.

O que está escrito nas estrelas, como destino inalterável, e com uma vaga impressão de transcendência. Um apelo da fé nas coisas ocultas, talvez como consolo para a eterna questão insatisfeita. O que fazemos aqui, de onde viemos e para que desconhecido nos movemos. Ou, pelo contrário, aquele que é o lugar da ciência. O rigor firme que afinal, em cada momento vem a verificar em si próprio a falibilidade e a repôr novas ordens para a concepção do mundo. Estranha deriva no lugar em que menos se poderia esperar encontrá-la. No fundo queremos sempre saber o futuro. Oscilamos entre o temor e a tentação.

Pensando em alguns edifícios conceptuais quase inalcançáveis, ao ponto de se situarem num universo ficcional, intelectual e estranho, em que, para realidades complexas se criam instrumentos intelectuais específicos, instrumentos de medida e localização de ordem tão abstrata para os sentidos, quase sinto a tentação de acreditar no divino. De tão inimaginável, a crença, a fé, quase me parece mais fácil do que abarcar toda a complexidade em que nos perdemos face a uma dimensão física do mundo. A Cosmologia em mutação ao longo da História do humano. A mente a divergir e a complexificar mecanismos de entendimento de si própria. A tentar explicar por palavras e fórmulas dessa imensa construção que é o universo matemático, aquilo que a mente não consegue visualizar ou imaginar facilmente. O antes. O depois. Do nada.

E no meio, um universo a expandir-se afinal aceleradamente. Uma certeza científica com cinco anos. Nada, na ordem de grandeza do espaço-tempo do universo. E até ver. Ao contrário de uma certa esperança científica ou meramente existencial, de que este abrandasse. Sossegasse o futuro incerto numa certa forma de estabilidade. Seria o eterno presente do universo. Talvez. Na realidade não sei de todo de que estou a falar. Talvez da deriva cósmica, a tentar encontrar uma equivalência à deriva existencial em que explodimos do nada para uma infância de também eterno presente, por uns tempos, e daí para um futuro em que a idade e a percepção do tempo, parecem ir-se definindo e sentindo em aceleração constante. O humano em deriva constante, é o que sinto. Uma procura imparável de localização numa métrica de coordenadas ao alcance do próprio humano. Na sua dimensão mista. Pequena, ao alcance da medida dos objectos, ou enorme, vaga e não mensurável, em procura pelo vazio dos espaços cósmico da alma, do espírito ou do intelecto. Sim, às vezes não sei bem de que estou a falar senão de uma sensação enorme de desconforto que me ultrapassa. Ou desta ideia de que um dia destes, começo a acreditar numa origem divina para explicar o universo e tudo nele. Porque é mais fácil. E uma ideia plena de esperança. Sem problemas de tempo ou espaço. Isto, digo eu por preguiça. De continuar a  tentar uma ideia confortável para os dias. A sucessão dos dias.

Comecei a dizer. E depois, nada. E nada. E bem lá no fundo, onde tudo está sepultado – depositado, digo – digo. É ali e dali que tudo vem e vai como refluxo. Mas volta. Vira-se, adormece. Ao de cima, por vezes. Porque lá no fundo, tudo acordado na espertina eterna. Um dia, hei-de ir de mim para fora por exaustão. Um dia qualquer. Esperando encontrar outro em que viver em paz. Não em mim. Isto digo eu. Confinada a mim. E só por dizer.

Diz a ciência, então, que a expansão crescente do universo continua a agigantar o que já era imenso. Que uma força desconhecida e imensa o estica imparável e continuará a esticar até ao fim. Embutida no tecido do espaço, energia escura, afinal predominante. Imensa de tamanho e poder. O maior dos enigmas. Quase uma expressão poética e assustadora no que afinal é só uma descrição de ordem física. A cor do medo.

E pensar que parti do erro de paralaxe. Movemo-nos e pensamos que é o universo que se move independente de nós. Porque parece. Porque é a ilusão do olhar. Ou a paralaxe cognitiva, o eixo da construção teórica a deslocar-se do eixo de experiencia humana real. Como em Kant, a incognoscibilidade da “coisa em si”, do ponto de vista material, e a sua pura existência como fenómeno. Como aparência. Ou que nunca estamos no mesmo lugar, nesta deriva consonante com o universo. E com os sentidos. Em que o que se move, é numa realidade qualquer fervilhante de organismo monstruoso. Podemos não estar de facto nunca no mesmo lugar. Mas há pontes constantes entre tudo e tudo. Rígidas ou flexíveis e ajustáveis. Rupturas, também. Estrelas cadentes como se o fossem, quando, afina, ínfimas poeiras. Movemo-nos. Olhamos o mundo. Parece que se moveu. Uma megalomania planetária de que tudo o mais fossem satélites. Movemo-nos e reclamamos do mundo.

Ou sonho de árvore. Que para cair, precisa de uma doença grave que lhe corroa as raízes entranhadas no lugar, ou dentes afiados do homem, por detrás dos braços, por detrás de uma serra. Ou que a terra se revolva em convulsão de reajuste. Interino. Ou na fúria cega dos elementos sazonais. De resto, fica. Sossegada e acolhedora na sua sombra. Precisar de um lugar. Por isso a casa. Pele da pele.

E precisar de me sentar a uma mesa de madeira sólida, pousar as mãos na memória refeita de uma árvore desconhecida, estender uma toalha branca escrita a bordados suaves por outras mãos, e beber uma chávena de chá. Quente. A pensar no futuro de gelo que a ciência adivinha para o universo. Um depois impreciso mas certo. Mas não agora.

23 Out 2016

Uma demão de rosa, um toque de perfume

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje choveu, finalmente. Seria chuva ácida? Como ácidos pensamentos que nos assaltam por vezes, mesmo ante as coisas belas.
Ponha rosas, e ponha flores. Mas não é a mesma coisa? Os olhos em alvo, as unhas em riste. As mãos simétricas suspensas sobre a máquina de escrever pintada de amarelo muito pálido. Não é relevante, penso, digo. Depois eu escrevo outra coisa qualquer. Das rosas. Da rosa de Hiroxima. O mesmo desabrochar irreprimível e inconsciente. A mesma beleza insuportável. O mesmo perfume entranhado para sempre na pele dos sentidos. Na pele de diferentes sentidos, claro. Os sentidos em leque a partir de qualquer botão. Premido quase sem pensar, acredito. Pela ordem das coisas da natureza, intocado. Ou pela ordem fria e cega. Cegamente seguida. E o momento depois. Alguém por detrás do botão sentiu talvez nada. Ainda com o indicador no ar. E a rosa já no ar em crescendo. A desabrochar. E depois, pelos anos fora em erupções cutâneas e sub-cutâneas. Rosas. Depois da rosa. Anti-rosa atómica. Como o disse Vinícios. Sem perfume, sem rosa, sem nada.
A menina Rosalina. Das unhas pontiagudas e trabalhosas em riste. Reciclei-a de um centro de imagiologia onde transcrevia laboriosa e distraidamente relatórios gravados de exames. Em que escrevia indiscriminadamente Não existem sinais de malignidade, em massas opacas ao exame, ou Existem sinais de malignidade. Em massas. Opacas na imagem. Enfim. Mais não, menos não. Era o que pensava. Se pensasse. Pensei, convém-me. Afinal, de sentidos incontornavelmente divergentes já se faz a escrita por si só. Querendo ou não fazendo questão, mais ainda. Convém-me. E ali está. De unhas eventualmente naturais, compridas e pontiagudas em riste, a escrever com as quatro polpas dos dedos muito separados e a dar estalinhos nas teclas por engano do gesto. Ou da palavra esquecida, esse desprezável não, que me deixou durante muitos dias a fazer disposições mentais testamentárias para uma eventualidade. Depois não era nada a mais do que a palavra desprezada, e acrescentada depois ao relatório. O que estava dito e o que não estava escrito na ausência do não. Desculpas, e tal. Enfim. Escreveu rosas, Francelina? Rosalina. Diz de olhos em alvo. Mas não é a mesma coisa? Eu. Prefiro o meu nome. Ela. Ficava-me a ganhar pontos na memória das coisas boas com o outro. Penso, derivando para o prédio.
A empregada de uma vida inteira do senhor e da senhora do lado, ambos do partido, três filhos. Um casal. Antes de se desfazer a coligação, muito cedo. E ficou para sempre o mesmo silêncio insólito, ou talvez por isso, numa casa de três crianças. A senhora a chegar sempre tarde do trabalho do partido. E aquele silêncio insólito. E a Francelina, nortenha de bigodinho leve, muito gordinha, de alcofa de legumes, a subir infalivelmente as escadas do terceiro andar, todas as manhãs, expelindo violentamente o ar, ruidosa e esforçada como uma máquina a vapor. Todos os dias. E aquela casa de três crianças silenciosas, que sempre permaneceu como prestes a habitar, meio vazia de tudo, como se tivessem acabado de se mudar de uma outra vida. Mas não. Ou como se houvesse algo indefinidamente adiado. Convidavam-me a andar de triciclo na casa vazia. E a cozinha, como a nossa, sempre invisível lá muito para o fundo do corredor, teria sempre um cheiro bom e quente de sopa acabada de fazer. E temperada com azeite ao arredar. Era o que me consolava de uma certa tristeza e silêncio que se destilava daqueles meninos. Que pessoas serão, hoje…Margarida, João, Madalena. Ainda me lembro. E a Francelina. Que, podia dizer-se, não desenvolvia muito, mas não falhava uma manhã às pequenas coisas, nem os ingredientes da sopa e era uma locomotiva naqueles dias. Deles.
Está bem. Rosalina. Sempre escreveu rosas, ou onde ficámos? E ela, de olhos em alvo, sempre, olhe faz lembrar o meu nome. Tudo, penso, faz lembrar tudo. Ou tantas coisas. Rosas é sempre bonito, diz. Maravilhosas, penso, mas a tentação de lhe lembrar Hiroxima e Vinícios de Moraes. Mas ia provocar-lhe um brilho pluvioso no olhar inocente de tudo. Porque a canção é linda e fala de rosas em que ela não pensou. Como uma espécie de combate entre cicatrizes. A rosa simbólica de “O Principezinho”, inteligente, sedutora, alma, coração e vida, e a outra.
Esqueço a menina Rosalina, que nunca soube como se chamava, e a máquina de escrever amarelo muito pálido que ficou lá atrás. E penso, como em tantos momentos me apeteceria andar de olhos fechados pela rua do meu dia, dos dias todos da minha rua de andar pelos dias. Para evitar o visível e mais, muito mais do que o invisível. E que quando entendi que não se pode ser feliz deixei de ser infeliz por isso e passei a somente ser infeliz pelas outras coisas. Sobretudo as pequenas coisas que são a célula de outras maiores, e que são teoricamente fáceis. Mais fáceis. De fazer. De não fazer. As que são domináveis, e que são construtivas. Pequenas como anti-corpos. No fundo, as pequenas coisas objectivas e definidas. Visíveis por detrás do invisível. O invisível manto de sentidos, de nuances de um real em mutação. Ou continuar a pensar que o fundamental é invisível aos olhos. O invisível. E de novo, pensar nesse precário equilíbrio sempre a reajustar-se a um novo centro de gravidade. Arredado em cada lufada de vento. Com Partículas. Microrganismos nefastos ou irrelevantes. Tudo o que traz de visível e invisível. E aí como em tudo sobra a certeza de que há que saber abstrair do invisível possível. Como da impermanência existencial. Como a da família, da amizade. Das estruturas sociais. Teorias em que nos afundamos a precisar de oxigénio contínuo. A finitude. Aquilo que não se vê em nós. Como se não existisse para que tudo o resto valha a pena. Estações a suceder-se para sempre. Por exemplo. Alternadas e sucessivas. Como o olhar. Sobre tudo. Excepto um prisma de cristal. Em que ângulo após ângulo, sempre se obtém o mesmo arco-íris. Porque é da natureza da luz, ser branca. E divisível na refracção, numa miríade de cores. Todas. Menos aquelas que estão lá, invisíveis aos olhos humanos. Mas estão lá. Afinal. Infra e ultra coloridas de invisibilidade. Úteis. E nesse olhar múltiplo que não se pode deixar de ter, apesar de tudo, por vezes dar uma demão de rosa e outra de perfume. Girar os olhos sem esquecer. Mas pensar também que, de vez em quando, sempre, algumas vezes mais do que outras, ou bem lá no fundo, afinal, “ l’important c’est la rose, c’est la rose, l’important”. E de repente sinto-me ridícula de tanto que isto soa hippie. Mas eu nasci nos anos deles. É natural. Era a contracultura necessária. E mesmo hoje e de uma forma ainda muito mais complexa. Ban the bomb. A adivinhar qual. E a caminhar de memória de música em música. Passando por Edith Piaf. E depois:

“Uma rosa de vocabulário escolhido
Rosa, onde o preto devia estar
Uma rosa mais ou menos muda…
…de plástico japonês
De Noel, parece mas não é
Denúncia e do medo de me amar
Língua rosa em boca amarela
Desbotada não…fere a vista”
Ivan Lins em “Rose Music” no álbum “Beauty” de Sakamoto. Tantas rosas quantos olhares. Mesmo num dia de chuva como hoje. De outono instalado para ficar. Só até ao inverno.

14 Out 2016