O coro e o ponto – Aqueles dias normais

 

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]queles dias. Sim, aqueles que todos temos. Talvez. A cabeça a explodir de incompreensão e erro. Ou será o coração. Talvez. Ou as vísceras mais abaixo na hierarquia de valores dessa sociedade secreta de funções populares do corpo e lirismos emocionais não se sabe de onde. Que se enovelam como agoniadas de si próprias. E caem umas sobre as outras num tumulto espacial que a pele e todos os ligamentos contrariam afinal. Ou em cima aquele nó fechado de faltar o ar e vemos ao espelho e não está lá. Mas não são as sensações algo de realidade inequívoca em reacção a estímulos? Serão ou não. Talvez dependendo da realidade destes. E que realidade seja essa é inquestionável às vezes. Outras não. E dias em que verificamos que nada explode afinal. Que tudo são imagens e figuras de estilo. E que afinal ardemos simplesmente até ao pó. Passando pelas brasas incandescentes de belas mas em final de existência do fogo vital. Nada explode afinal senão ateado um engenho doméstico e mesmo assim. Sempre possível ficar-se vivo mas sem ver, ou sem pernas para andar, ou sem mãos para tactear as linhas. De uma escrita qualquer. Em que penso onde estará o desamparo maior, se na realidade, se no sonho. Se sonho é um roubo adquirido secretamente e sem documentos. Se a realidade alguma vez teria sido visível sem andares de arranha-céus por ali acima até um ponto indefinido que não é, no entanto, o dito mas a desdita de não se alcançar como limite. Sempre como limiar. E a pensar entre parêntesis que sim, que houve. Não porque sempre se terá sido mais jovem, sempre se terá tido menos vida, sempre se terá tido mais caminho para a frente. Na sua indefinida e feliz e inapropriável extensão. Que tudo permite. Sonhar. Imaginar até. Mas não é essa sobre todas as razões. A razão é uma época dividida em duas que nos calhou cruzar sem aprendizagem. Que não a de cada um em si, sem labirintos nem zonas proibidas. É o que pode restar de seguro na líquida impermanência de tudo. E no entanto, não sei. Disfarço bem, talvez, mas não faço a menor ideia do que faço aqui. Tudo o que se evola sem remédio, tudo o que passa por cada um como uma aragem demasiado etérea para, cabendo nos dedos, aí se sentir segura. Aí se saber segurar. Tudo o que é invisível. Tudo o que visível não se consegue ler. E mudamos. Vamos metamorfoseando algo impreciso de nós e olhando de revés ou de frente sem antagonismo mas cuidado. Tende-se a perder mais coisas na complexidade com que se apresentam. E fincar os pés no chão para não se ser arrastado pelo que nos tira de nós, não garante que algo de nós não se funda com o chão como um animal aterrorizado que hiberna para não pensar. Ou se enterra no conforto inóspito da terra para esconder a impotência face à dificuldade do caminho.

O caminhar pesado e sólido pela vida a dentro. Do cante alentejano. Nos momentos de não fazer. Também. Como os outros, momentos de ser. E lembrei-me desse aspecto particular do cante alentejano. Da terra onde me nascem memórias mas em fuga. Donde retirar com rigor as origens não importa. As raízes, especula-se. São múltiplas, de sagrado e profano entrecruzadas de lugares, tradições. Do canto gregoriano ou das raízes árabes. Aspectos primitivos, ainda, parecem remontar mais lá atrás. Tradição de vozes graves. Vem das entranhas do passado e um dia destes passará a coisa leve para turista ver, como uma parede cega e sem densidade para trás. Ou um prédio de janelas vazias sobre o céu e sem mais do que a fachada à espera de demolição. Não posso dizer que me emocione. Coisa culturalmente incorrecta de se dizer, mas que fazer… Talvez intelectualmente, ainda. Dizer que gosto. Mas de uma maneira muito mental. Emoções fortes mas trabalhadas num apreço de recordação. Não oiço. Nunca oiço nem apetece. De que forma gosto para além do admirar, difícil fórmula estética de emoção na ausência. Não sei. Uma emoção teórica. Ou talvez o prefira na memória. Não é a embriaguez de outra música. Mas é pujante como um murro em pleno plexo solar aquela ideia de muralha firme de gente de braço dado a avançar lentamente. As passadas conjuntas, a banda compacta de seres enlaçados pelos braços a avançar inexoráveis e lentos. A balançar ligeiramente nesse avanço gradual e pontuado de vozes. Vozes só. A balançar ligeiramente de um lado para o outro segundo a cadência dos passos. Uma coisa da terra e talvez a vencer a imensidão desértica e sedenta dessa terra. E da musicalidade sóbria das vozes tão particulares que nem os instrumentos lhes chegam, a alternar em coro, ou ponto. Em desafio. Vozes respondem a outras. Umas às outras. Com um alto preenchendo as pausas. E é assim que as lembro. As vozes e depois o que lembrei antes. As avós. E tias avós. E irmãs e primas. Amigas. Nos homens não se usava. Mas nelas sim. Sem pudor, nem receio. Como se fosse mais seguro sempre andar ancorada em alguém. Uma na outra. Como se sempre contra um vento mau. Uma maré perigosa. E namorados. E esposos. Dar a mão é bom. Há o tacto. Mas dar o braço é um laço mais próximo e firme. Um ampara o outro. É belo isso. Era belo.

E um dia destes aconteceu-me. Conheci uma mulher depois de um tempo talvez amplo de correspondência trocada. Virtual. Mas com o calor e a generosidade algo anacrónicos de um outro tempo de cartas em papel. E um dia veio. Primeiro, não vindo. O tempo a passar. Minutos, meia hora. Uma hora. E eu, ferozmente estoica a pé, a fugir às goteiras da chuva intervalada, à frente da Brasileira, no fundo, no fundo, só para ter a certeza de que não vinha e não havia desencontro possível no não vir. Uma coisa muito minha. E o tempo de pensar toda a irrealidade óbvia de um ser que seria talvez um outro completamente diferente do imaginado e expresso. E, quando já e sempre não esperava e quase nem tinha retrospectivamente esperado, surge bem de perto, sem espaço de recuo para a reconhecer, calorosa, igual e tridimensional, a voz cantada do telefone de Lisboa, e agarrou-se-me ao braço assim, à antiga, pujante, forte e alegremente, e seguimos como se combinado pela rua acima. Uma coisa que não se usa, já. Nunca me vou esquecer. Por mais Atlântico que nos separe nos dias todos da vida. Amigas para sempre se nada se desfizer noutras complexidades da distância, do tempo e da falta dele. E recuei uma geração ou duas, a um espaço estranho de conforto e quase receio. E é nesses momentos que aquele lado em mim, que tenta fazer-se ouvir a dizer “don’t look back, don’t look back”, se rebela e pensa, deixa ver se não me esqueci de nada. Essencial. De mim. A chave do lado de dentro. Neste tempo fatiado, fragmentado e líquido. De realidade mais imatérica do que qualquer fantasia. De intocáveis e impermanentes sonhos que só me dão descanso no sono. Quando vem. Se alguém vir por aí um personagem de figura bem apessoada e olhos e aparência de sono, é favor devolver, que deve ser o meu. Não consigo dormir sem ele. Enquanto isso, sonho. Não errar as estações. E nos intervalos, não sei. Nada. E quando não sei nada só queria dizer coisas bonitas a troar-me aos ouvidos, atordoar-me nelas e embalar-me na ausência de sentidos mais sólidos. Embriagar-me de palavras que existem e se existem basta pensar nelas. Dizê-las, e ganham vida própria de palavras. Reais. A meter medo. Entre todas as possíveis guardadas no dicionário surpreendente em si e mais ainda se o imaginasse feito de conjuntos de duas. E de três. Não avanço mais nem me atrevo a pensar nas possibilidades. Quantos volumes para as entender. Para as desbravar. Como floresta complexa e invencível e que afinal o simples Homem pode erradicar. Como num silêncio, árvore a árvore.

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