Hoje Macau Via do MeioO pensamento durandiano e o imaginário chinês (2) Por Chaoying Durand-Sun (continuação do número anterior) De 1994 a 2016, entre quatro “continuos” de tradução, Hommes, bêtes et démons de Qian Zhong-shu para a Gallimard, Florilège de Su Dong-po para a You-Feng, L’Épopée des Trois Royaumes de Luo Guan-zhong em cinco volumes para a You-Feng, e uma série de adaptações de romances clássicos chineses em Lian huan hua (banda desenhada chinesa) novamente para a You-Feng: Publiquei três monografias, incluindo duas sobre o imaginário rabelaisiano que alargam as ideias desenvolvidas na minha tese: Les Mythologies de Rabelais (1996); Rabelais. Mythes, images et sociétés (2000); e uma sobre o imaginário chinês aplicando a mitocrítica comparativa e a mitanálise: Essais sur l’Imaginaire chinois. Neuf Chants du Dragon. Mas o que me ensinou muito sobre a investigação do imaginário foi a minha participação em cerca de vinte colóquios internacionais ou publicações universitárias no seio da vasta rede de CRIs, tanto franceses como estrangeiros (chineses, belgas, romenos, italianos, espanhóis, canadianos, etc.), o que me permitiu aprofundar os meus conhecimentos sobre o estudo do imaginário através de uma variedade de temas: “Un Saint Antoine chinois au Gobi” (in Saint Antoine entre mythe et légende, 1996); “L’âge d’or, du Tibre au Fleuve Jaune” (in L’Imaginaire des âges de la vie, 1996); “Le statut saturnien de l’âge de la Grande Concorde (Datong)” (in L’Âge d’or, 1996), “Esquisse d’une structuration de l’imaginaire chinois” (in Imaginaire et Littérature II. Recherches Francophones, 1998); “Rédimer Babel, une Pentecôte rabelaisienne?” (in Études sur l’Imaginaire. Mélanges offerts à Cl.-G. Dubois, editado por G. Peylet, 2001); “Atlantides chinoises” (em Atlantide et autres civilisations perdues de A à Z, editado por J.-P. Deloux e L. Guillaud, 2001) e “L’Atlantide du… Pacifique?” (in Atlantides imaginaires, réécriture d’un mythe, editado por Ch. Foucrier e L. Guillaud, 2004); “Une méthode directive de la naissance et de la disparition des choses: Le Livre des Mutations (Yijing) (in Loxias: Éclipses et surgissements de constellations mythiques. Littérature et contexte culturel, champ francophone, editado por A. Chemain-Degrange, n.º 2-3, 2002); “Essai sur l”androgynie’ du vêtement en Chine” (in L’Entre-deux de la mode, editado por F. Franchi e P. Monneyron); “La pérégrination vers l’Ouest (Xiyou-ji) et les Cinq Points Cardinaux chinois” (in Imaginaires des Points Cardinaux. Aux quatre angles du monde, editado por M. Viegnes, 2005); “Un chaudron rempli de jiao-zi, ou l’imaginaire nocturne de la cuisine chinoise” (in Les Cahiers européens de l’Imaginaire, n.º 5, março de 2013, pp. 188-194); “Les structures fondamentales de l’imaginaire dans L’Épopée des Trois Royaumes de Luo Guan-zhong. Contribution à la mythocritique durandienne” (in “Actualité de la mythocritique. Hommage à Gilbert Durand”, Esprit Critique, editado por F. Gutierrez e G. Bertin, 2014 e a sua versão italiana: Le structture fondamentali dell’immaginario in L’Epopea dei Tre Regni di Luo Guan-zhong Contributo alla Mitocritica durandiana”, trans. M. Pia Rosati, in Atopon, 2015 e Posfácio para Actualité de la mythocritique. Hommage à Gilbert Durand); “Le mythe du Graal dans la légende arthurienne européenne et dans L’Épopée des Trois Royaumes de Luo Guan-zhong”, comunicação para as Journées de Littérature, Culture et Tradition arthurienne, Congrès ibérique, editado por J. Miguel Zarandona, Universidade de Valladolid-Soria, 18-19 de novembro de 2016, etc. Escrevi também quatro artigos sobre a receção da obra de G. Durand: “Gilbert Durand et l’Imaginaire chinois” (in Symbolon, Bachelard: Art, Littérature, Science, 8/2012); “Gilbert Durand et l’imaginaire de l’Orient” (in L’Imaginaire durandien. Enracinements et envols en Terre d’Amérique, editado por R. Laprée e Ch. Bellehumeur, 2013) e “Gilbert Durand au château de Novéry” (em Gilbert Durand. De l’enracinement au rayonnement, textos compilados por A. Chemain-Degrange e P. Bouvier, 2016), e “L’art et la pensée: univers pictural et anthropologique de Gilbert Durand” (em Gilbert Durand Peintre, catálogo da exposição “L’Aurore dans le crépuscule”, editado por C. Durand-Sun, 2016), que acaba de ser publicado graças ao generoso apoio dos amigos de Gilbert Durand. Para além destes trabalhos individuais, realizámos também duas publicações e um livro em colaboração com G. Durand: “Renversement européen du dragon asiatique”, publicado três vezes, em Rôle des Traditions populaires dans la construction de l’Europe. Saints et Dragons, n.º 86-87-88, Cahiers internationaux de symbolisme, 1997; Rôle des Traditions populaires dans la construction de l’Europe. Saints et Dragons. Tradition Walonne, n.º 13, 1997; “Il Drago in Asia e in Europa” (trans. M. Pia Rosati, in Atopon Psicoantropologia Simbolica e Tradizioni Religiose, vol. VI, 2000 e 2007); “Il Drago in Asia e in Europa” (trans. VI, 2000 e 2007); “Du côté des montagnes de l’Est (Taishan). Imaginaire chinois de la montagne” (in Montagnes imaginaires, montagnes représentées, 2000); Mythe, thèmes et variations (2000), que se compõe de dez estudos sobre o imaginário, ligados pelo fio vermelho da “viagem antropológica” do imaginário, tratando sucessivamente do labirinto, do Minotauro, do deus mercurial, a árvore divina no imaginário ocidental, os orixás brasileiros, o Graal em todos os seus estados, a “identidade cultural” chinesa, a “grande concórdia” confucionista e o mito antonino chinês, o Tripitaka no Gobi em busca de sutras budistas… A maior parte destes contributos são uma aplicação, no texto e no contexto chineses, da mitodologia durandiana, da mitocrítica (de textos literários ou artísticos) e da mitanálise (de contextos socioculturais), pacientemente e meticulosamente desenvolvidas e postas em prática pelo próprio fundador do CRI, através dos seus numerosos livros e artigos: desde Le Décor mythique de la Chartreuse de Parme (1961), até L’Introduction à la mythodologie (1996), passando por Science de l’homme et tradition. Le nouvel esprit anthropologique (1975); Figures mythiques et visages de l’œuvre. De la mythocritique à la mythanalyse (1979); L’Âme tigrée (1980), etc. A nossa abordagem pretende ser comparativa, multidisciplinar, antropológica, fenomenológica ou “psicagógica”, com o objetivo de fornecer uma visão geral do pensamento chinês e do imaginário chinês, e de estudar as estruturas antropológicas do imaginário chinês através da literatura, mitologia, filosofia, sociologia, etnologia, antropologia, etc. – “O imaginário é o lugar do interconhecimento”, disse G. Durand – a fim de realçar a importância do imaginário chinês na história da China. Durand – para realçar o carácter primordial e fundamental do imaginário chinês, que não privilegia as estruturas heróicas do Regime Diurno, ao contrário do imaginário ocidental, mas dá maior importância às estruturas místicas e sintéticas do Regime Noturno. Ao contrário do Ocidente, geralmente conquistador, a China preocupa-se mais frequentemente com o equilíbrio, o diálogo, o convívio e a harmonia. Ao contrário da busca filosófica ocidental desde Sócrates, que se centra na imutabilidade do ser, o paradigma filosófico veiculado e transmitido pelo núcleo do pensamento chinês, o I Ching, o Livro das Mutações, preocupa-se com a impermanência das coisas e o domínio da mudança. Este facto é demonstrado pela dualidade chinesa não exclusiva, mas implícita, que está na base do I Ching, e que é tradicionalmente representada pelos dois princípios fundamentais ou duas forças primordiais, Yin e Yang, cuja união perfeita forma a famosa imagem de Tai Ji, o Governante Supremo, que é o modelo simbólico do Dao (Tao): o caminho, o método, a lei… para gerir e harmonizar as dez mil coisas do mundo. Confúcio disse: “Aos quinze anos, eu me dediquei ao estudo. Aos trinta, minha mente estava decidida. Aos quarenta, superei minhas incertezas. Aos cinquenta, descobri a vontade do Céu…”. Se pudermos extrapolar, se acreditarmos no grande mestre do pensamento chinês, Wu chi er zhi tain ming (五十而知天命), aos cinquenta anos, deveríamos descobrir a vontade dos Céus, e o CRI também deveria conhecer o desígnio celestial em relação ao seu próprio destino. O que é certo é que, segundo o Yi-jing, O Livro das Mutações, núcleo do pensamento chinês, o hexagrama quinquagésimo, Ding 鼎, o Tripé ou Caldeirão, é um sinal de muito bom augúrio, pois significa Fortuna Suprema, Sucesso e Prosperidade… e que o emblema do hexagrama, o carácter Ding 鼎, oferece a imagem do caldeirão: Na base estão os pés, depois o corpo, depois as orelhas, ou seja, as pegas, e, no topo, as argolas que servem para o transportar, e a imagem do caldeirão evoca a ideia de cozinhar, de alimentar. O hexagrama Ding também evoca a ideia de preparação de alimentos, com Xun, madeira ou vento, em baixo, e Li, fogo ou chama, em cima. Mas o caldeirão não é apenas uma vulgar peça de louça, um utensílio de cozinha, é também um objeto mágico, como o Graal arturiano, dotado de incorporação divina, e desde a Antiguidade que é um emblema do soberano e do Império e que carrega a imagem do mundo. Fundar um trípode significa literalmente fundar uma dinastia, um reino ou um império. Associado aos dois hexagramas Jing, o poço, e Ge, a revolução, a muda, que o precedem na procissão dos 64 hexagramas, o Ding evoca também a reforma, a transformação… Também se pode dizer que o ano do quinquagésimo hexagrama Ding, o Tripé, é o ano da boa sorte, do sucesso, da prosperidade. É por isso que, em 1995, a China ofereceu um Tripé gigante de bronze: “Tripé Maravilhoso do Século” (Shi ji bao ding 世纪宝鼎) à ONU em Nova Iorque pelo quinquagésimo aniversário da sua fundação_, e em 2015, o presente especial que o Presidente chinês Xi Jin-ping ofereceu à ONU em Nova Iorque para celebrar o seu 70º aniversário: O “Zun da Paz” (He ping zun 和平尊), adornado com uma série de animais fabulosos: dragão, fénix, elefante, Tao-tie… e nuvens auspiciosas, não é outro senão um dos avatares do tripé primordial Ding. Neste sentido, o CRI, enquanto “caldeirão alpino”, insere-se, de facto, na vasta constelação de caldeirões mágicos ou Graais iniciáticos, onde se forjaram, em tempos propícios e em lugares de génio, pelo menos duas ou três gerações de investigadores do imaginário… Em todo o caso, congratulamo-nos por ver tantos amigos reunidos para celebrar o jubileu do CRI e apresentamos as nossas sinceras felicitações pelo seu aniversário e os nossos melhores votos para o seu brilhante futuro… Esperamos que este colóquio inaugure um novo período de esplendor para a investigação sobre o imaginário, tal como anunciado por Jean-Jacques Wunenburger no seu artigo esclarecedor e entusiasta: “L’épistémologie de l’anthropologie de l’imaginaire selon Gilbert Durand”: “O pensamento de G. Durand continua, sem dúvida, a ser uma fonte de grande interesse para nós. O pensamento de Durand está, sem dúvida, ainda por compreender, descobrir, aprofundar e aplicar em novos domínios. A sua receção muda consoante a época e as categorias dominantes. É provável que os desenvolvimentos actuais das neurociências, a naturalização do espírito e os avanços da interculturalidade favoreçam uma nova sequência de receção, não só em França mas em todo o mundo…”_A décima segunda edição de Structures anthropologiques de l’Imaginaire, que acaba de ser publicada, parece ter chegado no momento certo, tal como o nosso colóquio de celebração do cinquentenário da fundação do CRI, para confirmar este feliz presságio. Em chinês, dizemos tian-shi di-li ren-he (天时地利人和): momento celestial, lugar favorável, entre pessoas consensuais da mesma convicção…
Hoje Macau Via do MeioO pensamento durandiano e o imaginário chinês Chaoying Durand-Sun Na preparação do colóquio do cinquentenário do CRI, reli mais demoradamente e com maior profundidade a obra seminal do fundador do CRI, Les Structures anthropologiques de l’Imaginaire_(SAI), e tive o prazer de encontrar, ou redescobrir, uma série de referências fascinantes e muito pertinentes, que confirmarão, reforçarão e completarão as ideias de correspondência recíproca, ou de conivência, entre o trabalho do antropólogo francês e a cultura e o imaginário chineses, que eu tinha identificado e desenvolvido nos meus dois artigos acima referidos. Eis alguns exemplos, fruto da minha feliz releitura: No “Livro Segundo: O Regime Noturno da Imagem”, o que se lê num dos exercícios da “Parte Primeira: A Descida e a Taça”: “O espírito das profundezas é imperecível; chama-se a Fêmea Misteriosa…” (p. 225_) , um verso retirado do Dao de jing (Tao-Te-King), O Livro do Caminho e da Virtude de Lao-zi, um dos pais do taoísmo chinês! Um adágio tão judiciosamente escolhido e emparelhado com a profunda e misteriosa passagem do poeta romântico alemão Novalis, para apresentar, explicar e ilustrar toda a quintessência e mistério do Regime Noturno da Imagem. Na mesma parte do livro acima referida, ao estudar os símbolos de inversão, em particular o esquema de duplicação por encravamento e o processo de “gulliverização” caro a Bachelard, depois de declarar que “na iconografia, esta duplicação gulliverizante parece-nos ser um dos traços caraterísticos das artes gráficas e plásticas da Ásia e da América”, G. Durand retoma os comentários de Claude L’Aquila sobre a “gulliverização” da imagem. Durand retoma as observações de Claude Lévi-Strauss sobre os motivos chineses do laço Tao (T’ao t’ieh), que se caracterizam não só pela duplicação simétrica, mas também pela transformação “ilógica” e pela duplicação do todo, ao mesmo tempo que o gulliveriza, e observa que o laço Tao “fornece um exemplo muito claro de gulliverização e de aninhamento através da duplicação de um tema” (p. 239). Trata-se, de facto, de um motivo tradicional chinês que representa a cabeça de um animal lendário, feroz e devorador (dragão, tigre, etc.), que adorna os sinos Zhong ou os vasos de bronze com tripé Ding, tesouros da antiguidade chinesa. Além disso, a forma dos caracteres chineses Tao tie 饕餮 dão a imagem de monstros devoradores, glutões ou gulosos, e especialmente na parte superior, a chave hu 虎 : o tigre; na parte inferior, a chave shi 食 : alimento, comida, ou comer, ingerir, beber… evidenciam a ideia concreta de comer, engolir, devorar… e a mais abstrata de avareza, gula, cupidez insaciável… A este propósito, notamos que uma máscara estilizada de motivos da gravata Tao aparece na contracapa do livro de A. Ghiglione sobre a visão no imaginário chinês e o pensamento da China antiga, e não creio que tenha sido escolhida por acaso. 9 Noutra passagem, um pouco mais adiante, ao estudar as cores no Regime Noturno da Imagem, o autor do SAI menciona numa nota: “Soustelle nota a importância das cores entre todos os povos que têm uma representação sintética do mundo, isto é, organizada como pontos cardeais em torno de um centro (chineses, pueblos, astecas, maias, etc.).” (p. 250) É verdade que no imaginário chinês dos Cinco Pontos Cardeais (Wu-fang 五方) – ao contrário do Ocidente, que tem quatro – o Centro está associado à Terra e à cor amarela, aspeto chave do simbolismo direcional chinês, que tive oportunidade de desenvolver na minha comunicação “A Peregrinação ao Ocidente (Xi you-ji) e os Cinco Pontos Cardeais Chineses”, no colóquio de Grenoble, em 2004, sobre o imaginário dos pontos cardeais, porque toda a cosmologia chinesa herdada do Yi-jing assenta numa base quinquenal constituída por Cinco Agentes ou Elementos (Wu-xing 五行): Metal, Madeira, Água, Fogo e Terra (金木水火土), que também deram origem a toda uma série de correspondências simbólicas essenciais à cultura chinesa: as Cinco Virtudes Fundamentais, as Cinco Relações Imutáveis, as Cinco Estações, os Cinco Órgãos dos Sentidos, as Cinco Vísceras, os Cinco Sabores, etc. 10 Algumas páginas mais à frente (p. 255), ao desenvolver o simbolismo da melodia nocturna, G. Durand comenta com M. Granet: “Estes devaneios sobre a ‘fusão’ melódica que se encontram em Jean Paul como em Brentano não são alheios à conceção tradicional chinesa da música; pode dizer-se que nos antigos chineses como nos poetas românticos, o som musical é vivido como fusão, comunhão do macrocosmo e do microcosmo […]”. Uma tal comparação de ideias ou reflexões de culturas muito distantes teria agradado a Qian Zhong-shu, que foi o próprio exemplo de abertura à universalidade das culturas (Hommes, bêtes et démons, Introduction, p. 11-12), e cujo estilo e verve são tão próximos dos de G. Durand… Algumas páginas mais à frente (p. 260), na sua análise do arquétipo da feminilidade em todas as culturas humanas, da “Mãe-Mar” da tradição chilena e peruana à “Mãe-Terra” dos antigos Incas, da Grande Deusa Aquática dos Índios à mestra aquática melusina e morganiana da tradição ocidental moderna…Para completar o quadro universal, evoca também a Stella maris chinesa Shing-Moo (Xing-mu) e o espanto dos jesuítas que evangelizavam a China quando se aperceberam que estes termos eram exatamente os mesmos que os utilizados na liturgia cristã: “lua espiritual”, “estrela do mar”, “rainha do oceano”… Exemplos como estes, reveladores do profundo interesse do autor pelas referências chinesas, abundam no SAI, para não falar de outras obras do autor, pois só na “Primeira Parte: A Descida e a Taça” do “Livro Segundo: O Regime Noturno da Imagem”, podemos ainda citar a alusão à prática de dar à luz no chão muito difundida na China (p. 262), ao ritual sepulcral dos antigos chineses de tapar os sete orifícios do cadáver, ritual esse que supostamente proporcionaria paz e imortalidade ao defunto (p. 270), à procura da intimidade do microcosmos para praticar a involução, entre os seguidores do Caminho ou do Buda (p. 278), e ao simbolismo do barco e da navegação marítima, tema recorrente na pintura tradicional chinesa (p. 286)… Todas estas descobertas e redescobertas conduzem a uma reflexão ou a uma evidência desta cumplicidade intelectual ou espiritual entre culturas diferentes, tão cara ao antropólogo francês e a um estudioso comparativo chinês chamado Qian Zhong-shu, pois é o tema preferido do eminente académico chinês do século XXI, cuja obra não é senão uma ilustração deslumbrante da fraternidade universal das culturas. “Os homens sempre pensaram igualmente bem”, disse Cl. Este acordo, um acordo tácito, entre o pensamento durandiano e o imaginário chinês é para mim um verdadeiro estímulo para enriquecer as minhas reflexões sobre estes dois temas que me são caros. Ao mesmo tempo, esta busca ou investigação confirma o aspecto, ou o acento, nocturno, místico e sintético do pensamento chinês e do imaginário chinês, que tenho tentado evidenciar nas minhas investigações sobre o imaginário chinês e comparado, ao longo dos últimos vinte e cinco anos… De facto, ao reler G. Durand, não posso deixar de pensar em Qian Zhong-shu, tão semelhantes são o seu espírito e o seu estilo, e as suas infinitas ressonâncias espirituais (Shen-yun神韵)! Qian é uma das maiores figuras literárias chinesas do século XXe tive a honra de traduzir para francês, para a coleção “Connaissance de l’Orient” da Gallimard, uma das suas colectâneas, Ren shou gui (Homens, feras e demónios), composta por quatro contos simultaneamente divertidos e mordazes, repletos de reflexões filosóficas e de referências religiosas e literárias. Nascido em 1910, filho de um professor de literatura clássica chinesa, Qian estudou em Oxford e na Sorbonne nos anos 30. De regresso à China, tornou-se curador-chefe da Secção de Livros Estrangeiros da Biblioteca Nacional da China, depois professor de inglês na prestigiada Universidade Qing-hua de Pequim, diretor de investigação da Secção de Literatura Clássica Chinesa do Instituto de Investigação da Literatura Chinesa e, de 1982 até à sua morte em 1998, vice-presidente da Academia de Ciências Sociais da República Popular da China. Estudioso da literatura, filósofo, sociólogo e antropólogo, e conhecedor da cultura chinesa e ocidental, Qian Zhong-shu, cujo nome próprio Zhong-shu significa Amante de Livros, destacou-se em quase todos os géneros: poesia, caligrafia, romances, crítica literária… e, sobretudo, o sumário de comentários Guan-zhui-bian, O Bambu e o Ponche, verdadeiro monumento da crítica literária chinesa e o auge da literatura comparada na China e no estrangeiro, caracterizado por uma gigantesca erudição no domínio da referência. Nos cinco volumes de ensaios – mais de 1800 páginas, escritas em chinês clássico -, Qian procedeu a um estudo meticuloso e aprofundado de todos os grandes temas (o homem, a natureza, a alma, a religião, o poder, o belo, o bom, o verdadeiro, a mudança, a imaginação, a tradução…) de dezenas de grandes obras canónicas chinesas: o Zhou yi, O Livro das Mutações, o Zuo Zhuan, Comentários do Mestre Zuo, o Shi ji – As Memórias Históricas de Si-ma Qian, os Discursos de Confúcio, as “prosas” de Lao-zi, Zhuang-zi, Lie-zi, Mo-zi, o Shi jing, O Clássico das Odes, o Chu ci, Elegias de Chu, o Huai nan zi… que abrange literatura, história, filosofia, psicologia, estética, linguística e filologia, citando mais de dez mil obras e milhares de escritores, poetas, filósofos e historiadores – cada estudioso é um Littré! – tanto chineses como estrangeiros (Platão, Aristóteles, Shakespeare, Hume, Gombrich, Pascal, Descartes, Boileau, La Fontaine, Rousseau, Hugo, Musset, Baudelaire, Bergson, Valéry…), Proust, Bachelard, Hegel, Kant, Leibniz, Goethe, Novalis, Cícero, Dante, Cervantes, ou Spinoza, Marx, Cassirer, Weber, Freud, Foucault, Strauss, Barthes, Jung, Lacan…). Se encontramos tanto em Qian como em Durand esta abertura à universalidade das culturas e este génio de assimilação, que é uma caraterística essencial da mentalidade chinesa – e também da japonesa – e que o Ocidente talvez tenha experimentado no auge do Renascimento no século XVII, com Erasmo, Guillaume Postel, Rabelais, Montaigne…, encontramos também em Qian como em Durand o mesmo espírito de síntese, a mesma erudição, a mesma acuidade intelectual. Os dois pensadores, que se conheciam e se admiravam mutuamente, destacaram brilhantemente, como que de comum acordo, a “fraternidade das culturas”. O pensamento durandiano ilumina o imaginário chinês Na preparação desta comemoração, tive também o prazer de reler a obra da minha amiga Anna Ghiglione, filósofa e professora de filosofia chinesa e de chinês clássico na Universidade de Montreal. A investigação de A. Ghiglione e a minha são totalmente convergentes e complementares. Para ela, como mostram as suas duas obras principais, o objetivo é estudar de perto, com precisão e raciocínio sequencial, a abstração no pensamento chinês antigo ou a visão no imaginário e na filosofia da China antiga. No primeiro livro dedicado à abstração no pensamento chinês antigo, os seus estudos afastam-se do orientalismo gregário e tradicional, destacando outros aspectos (esquecidos, negligenciados ou desprezados…) da cultura chinesa: a busca do conhecimento (correto), a lógica e a racionalidade, com base na tradição escriturística do período clássico (antes da fundação do Império em 221 a.C.), as reflexões de Dignes (o grande filósofo chinês) e as reflexões do filósofo chinês.C.), e mostra com clareza, rigor e humor os caminhos percorridos pelo pensamento abstrato na China. Na segunda monografia, a autora debruça-se ainda mais especificamente sobre a visão, examinando questões como: A civilização chinesa era “visual”? Qual o papel que os pensadores chineses da época clássica (durante o período conhecido como primavera e outono e os Reinos Combatentes) atribuíam à visão na sua compreensão da realidade? A autora analisa a visão e o olho (literalmente, como órgão do corpo, e figurativamente, como metáfora da mente e da sua atividade pensante) nos clássicos chineses de tradições tão diversas como o confucionismo, o taoísmo, o maoísmo (Mo-zi) e o legismo, bem como nas artes divinatórias e na mitologia. Analisa também a constelação de imagens linguísticas – cara a G. Durand – que giram em torno da visão, nomeadamente da luz e da escuridão, do espelho, do reflexo, da sombra e da claridade, com base numa riqueza de provas textuais – um método caro a Qian Zhong-shu. Esta abordagem original e audaciosa, inteiramente durandiana, permite-lhe concluir que, contrariamente a certas ideias preconcebidas, a China não era “cega” no sentido em que os seus mestres intelectuais atribuíam um papel significativo à visão na procura da sabedoria e no desenvolvimento da sensibilidade humana. 15 A este respeito, estamos totalmente de acordo com a análise de A. Ghiglione das atitudes “positivistas” de certos académicos chineses, de Confúcio a Lu Xun, passando pelos legalistas do período dos Reinos Combatentes e do período da Revolução Chinesa. A análise de Ghiglione das atitudes “positivistas” de certos académicos chineses, de Confúcio a Lu Xun, incluindo os legalistas dos Reinos Combatentes e o primeiro imperador da China, Qin Shi huang, os neo-confucionistas dos Song, Ming e Qing, e os “neo-confucionistas” modernos como Liang Shu-min, Feng You-lan, Qian Mu e Mu Zong-san: Liang Shu-min, Feng You-lan, Qian Mu, Mu Zong-san… Por outro lado, é de notar que, apesar das suspeitas e hostilidades dos confucionistas e dos legalistas, a corrente mágico-religiosa de inspiração taoísta nunca deixou de existir; apenas se disfarça, multiplicando as suas metamorfoses para melhor existir e se fazer ouvir, e continua a ser uma das fontes essenciais do imaginário e do pensamento chineses. O próprio Mao Ze-dong (Mao Tse-Toung), na sua célebre carta a Chen Yi sobre a poesia, declara que, para escrever poesia, é absolutamente necessário recorrer ao pensamento figurativo (Xingxiang siwei 形象思维) e, portanto, ao imaginário, à imaginação. E sabemos que Mao foi alimentado pelos clássicos confucionistas e taoístas, bem como pelos marxistas e leninistas, e que era um grande amante da poesia, da literatura e da filosofia. Ghiglione conhece-os bem e cita-os na sua obra. 16Também sensível às artes chinesas do pincel – a caligrafia e a pintura a tinta, que datam de há mais de 3000 anos e resistem ao desafio da modernidade – A. Ghiglione tentou reavivar o pensamento tradicional chinês através das artes visuais. Segundo a sua descrição, a sua iniciativa consiste em “adotar uma abordagem visual e prática do pensamento chinês” e visa tornar acessível o pensamento dos mestres do pensamento tradicional chinês através de modos de transmissão complementares à filologia (especialmente a análise de textos) e à apresentação de dados históricos – os dois pilares da sinologia tradicional – em particular através da exploração e produção de imagens materiais (pinturas de paisagens, figuras, etc.). Segundo ela, “o suporte não verbal das imagens permite-nos, para além da caligrafia, abordar os conteúdos textuais, nomeadamente para ultrapassar as dificuldades linguísticas”. Pondo em prática a famosa distinção feita pelo linguista Roman Jakobson entre três tipos de tradução: interlinguística, intralinguística e intersemiótica, e tendo em conta o aspeto pictórico da expressão escrita nos clássicos chineses e a dimensão incontornável da escrita chinesa, uma vez que os mestres do pensamento da antiguidade chinesa e os seus compiladores tecem o discurso filosófico através de imagens linguísticas, figuras de sentido e de estilo (metáforas, alegorias, analogias, mitos, parábolas, etc.)), e recorrendo à teoria do semitismo das imagens desenvolvida por G. Durand. Durand nos anos 60, no SAI, organizou duas exposições, uma, “Regards contemporains autour de la pensée chinoise ancienne”, no bairro dos artistas de Pequim, o Feng-tai, no Centre d’Échanges Culturels du Pont Marco-Polo, no verão de 2013, na qual tive a honra e o prazer de participar, e a outra, “La Chine des Sages en images”, na Universidade de Montreal, no Carrefour des Arts et des Sciences, na primavera de 2014. Como ela sabiamente salienta, “convém sublinhar que as pinturas, gravuras e fotografias dos pergaminhos que produzimos não são simples ilustrações de fragmentos de pensamento: a sua polissemia poética multiplica os caminhos da reflexão abstrata, soldando um elo dinâmico de troca entre figuração e concetualização. De facto, é impossível pensar sem imagens. Os antigos mestres chineses compreenderam claramente esta tendência geral da natureza humana para combinar o registo verbal (a língua, a fala e a escrita) com o imaginário (a produção de imagens linguísticas ou materiais)”. 17 Tendo como objeto comum a cultura e o imaginário chineses e na mesma linha do pensamento durandiano, a minha investigação é mais vasta, mais geral e mais sintética do que a do sinólogo da Universidade de Montréal. 18 Embora não tenha tido a sorte de viver os primeiros anos ardentes e apaixonantes do CRI, tive o grande privilégio de poder beneficiar, uns vinte anos mais tarde, de numerosos encontros importantes organizados pelo CRI de Grenoble e de realizar os meus “doze trabalhos” no seio dos CRI de França e de outros países. De facto, no final dos anos 80 e início dos anos 90, fui introduzido no estudo do imaginário pelo meu orientador de tese, o Professor Claude-Gilbert Dubois, e pelo LAPRIL de que era diretor, durante a preparação da minha tese na Universidade de Bordéus III. Intitulada Esquisse d’une mythologie rabelaisienne: essai de classification (Esboço de uma mitologia rabelaisiana: tentativa de classificação), esta tese tem por objetivo classificar as imagens rabelaisianas em torno de mitos (pacotes, enxames, constelações, etc.) simultaneamente fundamentais e universais: gigantes, peregrinações, batalhas, etc, Inspira-se já nas teorias da Nova Crítica, nomeadamente as do estruturalismo de Cl. Lévi-Strauss e as do “estruturalismo figurativo” de G. Bachelard, M. Eliade e G. Durand, com tímidas mas tenazes tentativas de abordagem comparativa com o imaginário chinês. Este estudo taxonómico do imaginário rabelaisiano à luz do pensamento durandiano permitiu-me, em primeiro lugar, formar uma ideia mais precisa e aprofundada do ambivalente e complexo Renascimento europeu, uma época simultaneamente “diurna” e “nocturna”, com as suas primaveras e os seus outonos, a sua grandeza e a sua decadência, e, em segundo lugar, para me colocar mais firmemente no caminho do conhecimento das minhas “duas culturas-mãe”, apoiando-me na mitocrítica e na mitanálise, esses novos humanismos que já não se contentam em fechar-se nas estruturas e constelações do Ocidente (grego, latim, hebraico…), mas querem estar “abertos” a outras culturas.), mas estão abertos a um comparatismo “aberto”. Após a defesa da minha tese (1991), prossegui a minha investigação de pós-doutoramento na Universidade de Genebra para preparar um diploma de especialização sobre o Renascimento, sob a direção de um professor do século XVI, M. Jeanneret, e de um professor de história da arte, J. Wirth. As duas dissertações que escrevi para o diploma foram sobre “Le problème de la langue unique et les rhétoriques de Rabelais” (“O problema da língua única e a retórica de Rabelais”) e “Le thème de la Fuite en Égypte dans la peinture flamande du xviesiècle” (“O tema da Fuga para o Egito na pintura flamenga do século XVII”). No primeiro ensaio sobre a língua rabelaisiana, procurei mostrar, com base na grande obra de Cl.G. Dubois, a mitocrítica durandiana e os estudos poéticos e retóricos de M. Jeanneret, a procura rabelaisiana da veracidade do discurso e da eficácia “bernardina” da palavra, que constitui, de facto, uma das caraterísticas da reflexão linguística e retórica ao longo do século XVII, a que chamei a “Redimensão de Babel”. Este artigo será publicado em parte com modificações e ampliações sob o título “Rédimer Babel, une Pentecôte rabelaisienne?” em Études sur l’Imaginaire. Mélanges offerts à Claude-Gilbert Dubois, editado por G. Peylet e publicado por L’Harmattan em 2001. O segundo ensaio, sobre o tema da Fuga para o Egito, é uma espécie de “variação” da minha investigação, que pretende ser ao mesmo tempo seiziémiste e comparatiste, ligando diferentes artes, literárias e visuais. Inspirado nas grandes reflexões de Jakob Boehme sobre o Egito e na mito-análise durandiana, procurei identificar e estudar três “mitos” da Fuga do Egito e do Repouso no Egito na pintura flamenga dos séculos xv a XVII: privilégio da paisagem, integração de toda a cena da Fuga e do Repouso numa vasta paisagem em contraste com o encolhimento italiano; ênfase no tema da alimentação: as tâmaras e o milagre da palmeira, o milagre da primavera, o milagre dos campos de trigo; a “emoção” da queda dos Ídolos, especialmente em Broederlam, Jean Colombe, Gérard David e Patinir. Este estudo mostra que a pintura flamenga na Flandres borgonhesa, nos séculos XIX e XIX, e depois na herança imperial dos Negritos, no século XVII, viu surgir uma infinidade de obras que se tornarão os alicerces da pintura ocidental, e que o “motivo” da “Fuga” e do “Repouso no Egito” fornecem as orientações pictóricas e simbólicas essenciais: a submersão dos temas religiosos na opulência das paisagens, a ênfase muito católica colocada no simbolismo “alimentar” da terra de refúgio egípcia e, finalmente, a oposição polémica (e quanto mais polémica se tornaria com a vaga de iconoclastia calvinista de meadosdo século XVII) entre o “verdadeiro” sacrifício de Cristo Alimento Divino, Panis angelorum, e os falsos sacrifícios aos ídolos “pagãos”… Este artigo será publicado no nosso livro em coautoria com G. Durand, Mythe, thèmes et variations, sob o título “Héliopolis-sur-Meuse, le thème de la Fuite en Égypte dans la peinture flamande du xviesiècle”. (continua)
Hoje Macau Via do MeioQing 情 como fundamento da ética naturalista de Xun Zi (3) Por Li Chenyang (continuação do número XXXXX) Graham não nega que qing possa referir-se a sentimentos ou paixões no Xunzi. Insiste, no entanto, que nunca significa sentimentos ou paixões (Graham 1986: 64). De acordo com Graham, quando Xunzi usa “qing” para se referir a sentimentos, Xunzi quer dizer que esses sentimentos são genuínos; a afirmação de Xunzi de que “o gosto, o desgosto, o prazer, a raiva, a tristeza e a alegria de xing são chamados qing” significa que estes são chamados “o genuíno em nós” (Graham 1986: 65). No entanto, Graham comete um erro na sua descrição, porque qing pode significar sentimentos, emoções ou paixões na literatura pré-Han, e significa de facto estas coisas em vários locais do Xunzi. Em primeiro lugar, não é simplesmente verdade que qing nunca significa paixões ou coisas do género na literatura pré-Han. Por exemplo, o texto “Xìng Zì Mìng Chū” das Tiras de Bambu de Guodian contém a afirmação “zhì lè bì bēi, kū yì bēi, jiē zhì qí qíng yě 至樂必悲, 哭亦悲, 皆至其情也” (Liu 2003: 98). Diz que “quando a felicidade vai ao extremo, transforma-se em tristeza, e chorar também é tristeza; ambos são estados máximos de qing.” Esta afirmação corresponde a outra afirmação “yòng qíng zhī zhì zhě, āi lè wéi shèn 用情之至者, 哀樂為甚” no mesmo texto (Liu 2003: 101), que diz que as formas máximas de qing são exemplificado na tristeza e na felicidade. Nestas afirmações, qing não pode significar “actualidade” ou “genuíno”, como Graham afirma (4).Podemos certamente dizer que a tristeza ou a felicidade de uma pessoa é genuína. Mas “genuíno” aqui descreve como é e não o que é. A tristeza e a felicidade são emoções humanas. A tristeza e a felicidade são emoções humanas. Se são formas de qing, devem significar algum tipo de estado afetivo de consciência. Ligando os pontos entre estes usos de qing e a afirmação de Xunzi de que “o gostar, o não gostar, o prazer, a raiva, a tristeza e a alegria de xing são chamados qing”, só faz sentido se lermos qing de forma semelhante como estados afectivos de consciência. Além disso, no capítulo 2, Xiushen, Xunzi diz: “Se o vosso comportamento for respeitoso e reverente, se o vosso coração for leal e fiel, se usardes apenas os métodos sancionados pela propriedade ritual e pela moralidade, e se o vosso qing é de amor e humanidade, então, apesar de viajares por todo o império, e apesar de te encontrares a viver em tribos remotas e incivilizadas nas quatro direcções, todos te considerariam uma pessoa honrada.” As quatro frases com “se” em chinês são paralelas em termos de estrutura, em que “coração” (xīn 心) corresponde a “qing”: enquanto o coração é leal e fiel, o qing é amoroso e humano. Qing aponta aqui inequivocamente para os sentimentos e não para a “actualidade” ou o “genuíno”, como afirmou Graham. Os termos em inglês para o tipo de estados afectivos aqui abordados incluem “feeling”, “emotion” e “passion”. A emoção refere-se a sentimentos mentais, implicando frequentemente a presença de excitação ou agitação. Paixão é geralmente sinónimo de emoções intensas e convincentes.5 Talvez possamos dizer que gostar e não gostar são apenas sentimentos, enquanto que prazer, raiva, tristeza e alegria podem ser chamados de emoções. Por uma questão de sim- plicidade, usarei “sentimento” para qing neste sentido, uma vez que, quando usado de forma geral, abrange “emoção” e “paixão”. No Xunzi, podemos encontrar usos abundantes de qing nestes sentidos de sentimento, como mostraremos de seguida. Qing como sentimentos humanos está directamente relacionado com a teoria ética de Xunzi. Em relação à moralidade, o qing é frequentemente visto como contrário à propriedade ritual. De acordo com Xunzi, antes da transformação da sua tendência natural inata e do desenvolvimento das suas capacidades morais adquiridas, os qing dos seres humanos são inatamente apaixonados por grandes sons, intensos cores e aromas ricos. Qing, neste sentido, é normalmente emparelhado com xing 性 como qing-xing 情性, especialmente quando Xunzi está a expor os seus pontos de vista sobre a tendência natural dos seres humanos ser má. No capítulo 23, Xing-e, Xunzi confirma que “é a tendência natural inata na humanidade que, quando tem fome, deseja algo para comer, que, quando tem frio, deseja roupas quentes e que, quando está cansado, deseja descansar – esses são os seus sentimentos inatos (qing) e a sua tendência natural”. Portanto: “Os seus sentimentos inatos (qing) e a sua tendência natural não são mostrar cortesia ou deferir aos outros. Mostrar cortesia e deferir aos outros contradiz os seus sentimentos inatos (qing) e a sua tendência natural.” Xunzi defende que o amor pelo lucro e o desejo de o obter pertencem aos sentimentos inatos do ser humano (qing). Estes sentimentos levam as pessoas a lutar pelas coisas desejadas se não forem reguladas pelas normas sociais. “Assim, seguir os sentimentos inatos e a tendência natural de cada um conduzirá a conflitos mesmo entre irmãos e, quando estes forem transformados por um ritual de correção e moralidade, os irmãos cederão a sua pretensão a outros do seu próprio país”. Nesta perspetiva, qing (sentimentos inatos) e xing (tendência natural humana) estão intimamente ligados. Como disse Xunzi: “Quando cada pessoa segue a sua tendência natural e se entrega aos seus sentimentos inatos, a agressividade e a ganância é certo que se desenvolverão. Isto é acompanhado pela violação das distinções de classe social e lança a ordem social racional na anarquia, resultando numa tirania cruel” . Com base na sua análise do qing-xing 情性, Xunzi ficcionalizou a seguinte conversa A relação entre os reis-sábios Yao e Shun, no capítulo 23, Xing’e: Yao perguntou a Shun: “Como são os sentimentos naturais (qing) da humanidade?” Shun respondeu: “Os seus sentimentos naturais são coisas muito pouco amáveis. Mas porque precisas de perguntar sobre eles? Quando um homem tem mulher e filhos, as obrigações filiais que observa para com os seus pais diminuem. Quando ele satisfaz os seus desejos e obtém as coisas de que gosta, a sua boa fé para com os seus amigos diminui. Quando ele satisfaz plenamente seu desejo de ter um alto cargo e um bom salário, sua lealdade ao seu senhor diminui. Oh, os sentimentos naturais dos seres humanos! Os sentimentos naturais dos seres humanos – como são tão pouco amáveis! Por que é que é preciso perguntar por eles!” De acordo com Xunzi, o qing humano inato estava num estado não amável, e qualquer tentativa de seguir o fluxo do qing não levaria a nada além do caos. Uma vez que esta é a verdade indiscutível, porque é que havemos de perguntar sobre eles? É de salientar que a conotação negativa de qing é comummente aceite na leitura do Xunzi. No entanto, não esgota todo o significado de qing como sentimento. Por exemplo, no capítulo 19, Lilun, o Xunzi refere: “Tentar superar-se mutuamente, aparentando estar desolado e emaciado, é o caminho dos homens maus. Não é a forma cultivada de correção ritual e moralidade, nem é o sentimento (qing) de um filho filial .” Aqui, “o sentimento de um filho filial” refere-se ao tipo de sentimento próprio de um filho filial; é, portanto, um bom sentimento. Mesmo esses bons sentimentos, no entanto, têm de ser bem medidos. No capítulo Lilun, por exemplo, Xunzi sugere que o funeral de um pai falecido não se deve prolongar indefinidamente, mesmo que o filho enlutado se sinta assim. Para Xunzi, os sentimentos humanos enquadrados no sentido positivo não são inerentes à humanidade, como ele afirma, “os sentimentos [apropriados] são o que eu não possuo [à nascença], mas posso, no entanto, criar” (Knoblock 1990: 81, modificado). De acordo com o comentário do académico Tang Yang Liang, o que Xunzi diz aqui é que os sentimentos humanos positivos não são inatos aos seres humanos, mas os sentimentos inatos podem, no entanto, ser direcionados para o caminho certo com a ajuda de influências externas (Wang 1988: 144). Outro exemplo pode ser encontrado no capítulo 21, Jiebi: O sábio segue (zòng 縱) os seus desejos e satisfaz (jiān 兼) os seus sentimentos, mas tendo-os regulado, ele está de acordo com os princípios racionais da ordem. Na verdade, que necessidade tem ele de força de vontade, de resistência ou de circunspeção? O comentador Wang Xianqian, da dinastia Qing, entendeu a palavra zong 縱 aqui como cóng 從, que significa “seguir”. Yang Liang definiu jian 兼 como jin 盡, que significa “cumprir” (Wang 1988: 404). Em suma, Xunzi defende que o sábio pode seguir os seus desejos e satisfazer os seus sentimentos. Obviamente, esses desejos e sentimentos não são maus. Tal como Confúcio, aos 70 anos, quando alegadamente foi capaz de seguir os seus desejos sem transgressão, o sábio pode satisfazer completamente os seus sentimentos sem transgressão, porque os sentimentos, neste contexto, são bons. Para além dos sentidos negativo e positivo de qing, Xunzi também o utiliza num sentido neutro, num sentido que não é nem bom nem mau. Por exemplo, no capítulo 20, Yuelun, Xunzi diz, “A música é alegria. Sendo uma parte essencial dos sentimentos das pessoas, a expressão da alegria é, por necessidade, inescapável.” No capítulo 3, Bugou, Xunzi escreve: “Quem acabou de lavar o corpo sacode as vestes e quem acabou de lavar o cabelo tira o pó do gorro. Isto deve-se aos sentimentos naturais das pessoas.” A primeira citação sugere que as pessoas não podem passar sem alegria porque a expressão da alegria é, por necessidade, inescapável. Por um lado, os sentimentos humanos aqui expressos não podem ser entendidos no sentido negativo; caso contrário, não há forma de explicar a necessidade e o valor da alegria. Por outro lado, não há nenhuma indicação de Xunzi de que eles tenham que ser entendidos no sentido positivo também. De acordo com a posição de Xunzi, as coisas boas têm de passar por um processo de cultivo e transformação, tal como “os sentimentos próprios do filho filial”, mas os sentimentos humanos discutidos nas duas passagens citadas são considerados inerentes à humanidade. Na segunda citação, diz-se que uma pessoa sacode instintivamente a roupa e tira o pó do boné depois de lavar o corpo e o cabelo. Os sentimentos humanos apresentados são claramente respostas emocionais naturais da pessoa média na vida quotidiana e devem ser entendidos num sentido neutro. Em resumo, qing tem muitas conotações diferentes em Xunzi. Um grupo de significados inclui atualidade, qualidades essenciais e autenticidade; o outro grupo de significados abrange os sentimentos humanos. Quando qing é entendido como sentimentos humanos, pode ainda ser classificado em sentido negativo, positivo ou neutro. Do ponto de vista de que seguir os sentimentos humanos inatos sem restrições levará a conflitos, caos e impotência, os sentimentos humanos são problemáticos ou maus. Mas a tendência natural dos seres humanos pode ser transformada, e as habilidades adquiridas no exercício adequado dos sentimentos podem ser desenvolvidas; assim, os sentimentos humanos podem tornar-se bons. Os estados positivos e negativos dos sentimentos são manifestações variadas de estados psicofisiológicos humanos brutos. Na medida em que os sentimentos humanos existem ontologicamente antes de seguirem a sua tendência natural para se tornarem maus ou para se tornarem bons através da propriedade ritual, pode dizer-se que são neutros.
Hoje Macau Via do MeioQing 情como fundamento da ética naturalista de Xun Zi Li Chenyang INTRODUÇÃO XUNZI (荀子) é um ético naturalista. Para ele, a moralidade não provém nem do divino nem da razão pura. No centro da sua filosofia moral está o conceito de propriedade ritual (lĭ禮).1As regras de propriedade ritual são estabelecidas para regular as actividades humanas, de modo a que a sociedade possa acomodar os sentimentos e desejos humanos apropriados com recursos limitados. Mas que tipo de sentimentos e desejos são apropriados? Para Xunzi, estes são determinados tanto por razões naturais como por razões sociais. São determinados em bases naturais, uma vez que as necessidades biológicas e psicológicas humanas têm uma base natural. No entanto, as bases naturais por si só não são adequadas, uma vez que a nossa tendência natural inata é para a satisfação egoísta e conduz à competição e ao caos. Também tem de haver bases sociais para determinar os tipos e quantidades apropriados de sentimentos e desejos. Os fundamentos sociais baseiam-se em recursos limitados e na necessidade de satisfazer os sentimentos e desejos de outras pessoas. Estas considerações sociais exigem que as pessoas ajustem os seus sentimentos e desejos de acordo com as suas respectivas posições sociais e com os níveis viáveis de bens que podem ser disponibilizados para que possam ser satisfeitos sem causar o caos. Quando as pessoas estão habituadas a regras de correcção ritual, podem interiorizá-las e tornar-se pessoas moralmente cultivadas. Uma sociedade que é regulada efectivamente pela propriedade ritual e que está cheia de pessoas moralmente cultivadas é uma boa sociedade. Intimamente associados à compreensão de Xunzi dos desejos humanos estão três conceitos, xìng 性, qíng 情 e yù 欲. Xunzi define xing como “o que nasce naturalmente assim” em nós (Xunzi, Capítulo 22, Zhengming; ver Knoblock 1994: 127, 136). Embora xing tenha frequentemente sido traduzido como “natureza (humana)” (e.g., Chan 1963: 128), “natureza” pode ser demasiado rígido para o significado de xing, uma vez que Xunzi defende que, apesar de xing ser má à nascença, pode ser transformada através de um processo de cultivo moral; assim, a “tendência natural” pode ser mais apropriado para traduzir xing. Xunzi descreve qing como o “material” ou o “corpo” (zhì 質) de xing (Capítulo 22; ver Knoblock 1994: 136). Especificamente, Xunzi diz que “o gosto, o desgosto, o prazer, a raiva, a tristeza e a alegria de xing são chamados qing” (Knoblock 1994: 127). Finalmente, Xunzi caracteriza yu como respostas (yìng 應) a qing (Knoblock 1994: 136). Muitas vezes traduzido como “desejo”, yu representa o que uma pessoa quer. Na visão de Xunzi, os seres humanos nascem com qing; em resposta a qing, chegamos a yu ou desejamos coisas.2 Se o coração-mente (xīn 心 ) decide satisfazer certos desejos, motiva a pessoa a perseguir. Com regras de propriedade ritual, os humanos podem controlar e transformar a sua tendência natural, cultivar qing e regular yu, resultando numa sociedade ordenada. Uma questão muito discutida é como é que Xunzi explica o primeiro aparecimento da bondade moral, dado que ele pensa que as nossas tendências naturais são más. Existem inúmeras propostas. Fung Yu-lan defende que, embora Xunzi defenda que a tendência inata dos seres humanos é má, eles estão equipados com uma capacidade natural de adquirir conhecimento, uma capacidade de usar a sua inteligência (zhì 知). A inteligência permite que os seres humanos percebam que não podem viver bem sem organização social, e que não pode haver organização social funcional sem moralidade. Apercebendo-se desta necessidade, os primeiros líderes da civilização chinesa conceberam um sistema moral (Fung 1961: 365). A. C. Graham tem uma visão diferente sobre a origem da bondade moral para Xunzi. Segundo ele, de acordo com Xunzi, os seres humanos possuem desejos bons e maus, e a sua tendência natural é má porque os desejos bons e maus estão misturados de forma “anárquica” (Graham 1989: 248). Na opinião de Graham, Xunzi defende que em xing existem tanto desejos de “rectidão” (yì 義) como desejos de lucro (lì 利 ), que entram em conflito entre si. A pessoa inteligente pode aprender a desejar a ordem. Uma pessoa assim “pode, através de uma acumulação incessante de pensamentos e esforços severos, levar os seus desejos contraditórios à ordem” (Graham 1989: 248). Por conseguinte, os bons desejos dão origem e promovem a bondade. Alguns autores, como Zhicheng Zhou e Kim-Chong Chong negam que Xunzi pense que xing é mau. Zhou argumenta explicitamente que Xunzi defende que xing é “pǔ 樸”, ou seja, simples, natural e sem adornos. Ele sustenta que, por ser apenas natural e não mau, nada o impede de se tornar bom (Zhou 2007). Chong argumenta que, para Xunzi, os seres humanos possuem desejos e capacidades que vão para além dos desejos e sentimentos sensoriais e apetitivos básicos. “Estes desejos implicam, ao mesmo tempo, a necessidade de segurança e as capacidades de prudência, refinamento e, por conseguinte, de estabelecimento de princípios rituais” (Chong 2008: 71). Argumentei que, embora Xunzi defenda que os seres humanos nascem com mau xing, ou seja, que os desejos humanos sem regulação tendem a conduzir a más consequências, eles consideram que a aversão dos primeiros líderes sociais ao caos é a motivação directa para estabelecerem a ordem na sociedade humana (Li 2011). Embora muita tinta tenha sido derramada sobre o conceito de xing de Xunzi, é o qing, mais do que qualquer outra coisa, que serve como chave para a sua ética naturalista. A ética de Xunzi baseia-se na transformação de xing e na regulação efectiva de yu com propriedade ritual. Xing é constituído por qing como seu material; yu é despertado por qing. Xunzi afirma que, numa sociedade civilizada, “as regras de propriedade ritual são estabelecidas em correspondência com qing” (Capítulo 19, Lilun; ver Knoblock 1994: 69). Por conseguinte, qing é o elemento fundamental da filosofia moral de Xunzi. Como termo intermédio entre xing e yu, qing é crucial para a nossa compreensão dos dois conceitos e da sua teoria moral. Infelizmente, a descrição de Xunzi sobre qing está espalhada por vários capítulos do Xunzi e, por vezes, Xunzi parece dizer coisas inconsistentes sobre o assunto. Para compreender com precisão a sua noção de qing, precisamos delinear vários matizes dos seus significados. Este capítulo inicia um estudo cuidadoso da noção de qing de Xunzi. Através de uma análise matizada das evidências textuais, mostro como a ética naturalista de Xunzi se baseia na sua compreensão dos diferentes matizes dos sentimentos humanos. (continua)
Ana Cristina Alves Via do MeioFilosofia Popular da Peregrinação ao Oeste Ana Cristina Alves, Investigadora Auxiliar e Coordenadora do Serviço Educativo do Centro Científico e Cultural de Macau 20 de maio de 2025 Introdução e comparação cultural Qual é a filosofia popular implícita na obra Peregrinação ao Oeste《西遊记》 de Wu Cheng´en (吴承恩) 1500 – 1582? Esta foi redigida durante a Dinastia Ming e publicada em 1570, mais ou menos pela altura em que os Lusíadas de Luís Vaz de Camões, o épico camoniano, seria editado, em 1572. Na Peregrinação ao Oeste procura-se através de uma recriação imaginária de um grupo de peregrinos, encabeçado pelo monge da dinastia Tang Xuanzang (唐玄奘 Xuánzàng), conquistar um novo mundo espiritual, o da religião budista, ao qual os chineses deveriam aderir de modo a garantir uma melhor conduta ético-moral para uma população já há muito desviada dos bons ensinamentos e conduta apropriados. Quem lidera a iniciativa de libertar os chineses do sofrimento é, como não poderia deixar de ser, a Divindade da Compaixão, Guanyin (观音Guānyīn), sempre atenta a todas as almas aflitas, pronta para se lançar no socorro delas. Já no caso de Os Lusíadas, compostos por Luís Vaz de Camões (1524/5-1580), narra-se igualmente uma viagem, só que é real, indissociável de aspetos espirituais e religiosos, porque feita em nome da universalidade da fé cristã, sendo, porém, indissociável da viagem concreta, que implica a conquista bem humana e renascentista de um mundo melhor para as gentes, no qual os portugueses possam não apenas sobreviver, mas comandar e imperar, por serem dignos de uma história antiga e guerreiros muito valorosos. Canta-se, portanto, o heroísmo dos descobrimentos, radicados na fé cristã, mas acompanhados e protegidos pelo alento renascentista que recupera o espírito e divindades clássicas, como sejam a protetora Vénus, divindade amorosa que vela pelos portugueses, e o agressivo e ciumento Baco, o deus do vinho que os quer perder. A Peregrinação ao Oeste pelos chineses é realizada em nome da libertação e salvação coletivas, através do contacto com os sutras budistas; a “Peregrinação” portuguesa ao Leste é igualmente em nome de uma coletividade, salva as almas e estende-se a toda a terra, dada a vocação proselitista do Cristianismo e globalizante dos mercadores, bem como dos navegadores, Camões seu arauto poético deseja a propagação da fé por um grande império construído pelos heróis portugueses, como se lê na primeira estância do Canto Primeiro: As armas e os Barões assinalados Que da Ocidental praia Lusitana, Por mares nunca de antes navegados Passaram ainda além da Taprobana, Em perigos e guerras esforçados, Mais do que prometia a força humana, E entre gente remota edificaram Novo reino, que tanto sublimaram; Que viria a ser traduzida para chinês por Zhang Weimin 张维民 em 19981 da seguinte forma: 威武的船队,强悍的勇士, 驶离卢济塔尼亚西部海岸, 越过自古茫无人迹的海崖, 甚至跨越塔普罗瓦那海角, 经历千难万险、无穷战争, 超出人力所能承受的极限, 在那荒僻遥远的异域之帮, 将灿烂辉煌的新帝国拓建。 张维民(译) 《卢济塔尼亚人之歌 •第一章,一》 Ambas as peregrinações são verdadeiros romances de aventura em estilo poético, Os Lusíadas em poesia, a Peregrinação ao Oeste em prosa poética e poesia. Neste último, A Bodhisattva Guanyin subjugará 4 monstros que serão os companheiros do Monge Xuanzang. A Bodhisattva leva consigo uma sotaina bordada e um anel de nove voltas para entregar ao monge. Este último, se cumprir eficazmente a sua missão de 14 anos, escapa à roda da reincarnação (Jenner, 1994:60), e os seus discípulos, forças divinas desobedientes em queda no mundo humano, poderão regressar ao Céu, onde voltarão a ocupar cargos divinos. Guanyin entrega também uma banda, que provoca terríveis dores de cabeça ao desobediente Rei Macaco (Jenner, 1994:60). Apresentem-se os monstros e espíritos indomáveis. Primeiro Sun Wukong (孙悟空Sūn Wǔkōng ), de Rei Macaco desobediente transita a obediente guardião da religião budista. Guanyin libertará este espírito indomável, prisioneiro na Montanha dos Cinco Elementos (五行山 Wǔxíng Shān), como castigo pelas desobediências que não têm conta. Depois um Marechal Celestial que passará a Porco. Ele é o Marechal Tian Peng (天篷Tiān Péng ) da Via Láctea, tentou seduzir a Divindade da Lua, foi punido pelo Imperador de Jade com duzentas machadadas e condenado ao exílio na terra. A Bodhisattva batizou-o com o apelido de Zhu Bajie (猪八戒Zhū Bājiè ), que significa «Porco das Oito Abstinências,» e deu-lhe o nome budista de Zhu Wuneng (猪悟能Zhū Wǔnéng ), ou seja, «Porco Desperto para o Poder» (1994:63). Haverá um ogre que será dominado e transformado em Monge Areia. Foi castigado por ter sido um general celestial distraído. Pagou a distração com 800 chicotadas, tendo sido exilado para a terra, onde devora viajantes escondido nas águas do Rio das Areias Flutuantes. Guanyin liberta-o, batizando-o com o apelido de «Areia» (沙Shā ) , e o nome budista de Wujing (牾净Wǔjìng), que significa «Desperto para a Pureza». Segue-se o filho do Rei Dragão do Mar do Oeste que será metamorfoseado em Cavalo Branco. Foi denunciado pelo próprio pai por ter queimado as pérolas brilhantes do palácio. O imperador de Jade castigou-o, suspendendo-o no ar. Deu-lhe 300 chicotadas, deixando-o a aguardar a morte. O príncipe dragão é liberto para se transformar no Cavalo Branco do monge Xuánzàng, ou como é conhecido em chinês, no Cavalo-Dragão Branco, (白龙马Bái Lóng Mǎ ). No termo da peregrinação, Zhu Wuneng espiritualizado, ascende ao Céu, sendo recompensado com o cargo celestial de Limpa-Altares. Mas há mais honras para o grupo de peregrinos vitoriosos que levaram os sutras até à China: o Monge Areia receberá o título de Santo (Arhat) Dourado, o Macaco será nomeado Buda da Luta Vitoriosa e o Monge Sanzang receberá o título de Buda do Mérito (buda candana-punya.) Assim como o Cavalo Branco ascenderá a Dragão Celestial. Filosofia Popular Proverbial Entre os peregrinos encontram-se, como se sabe, o Macaco e o Porco que escoltam na viagem ao Oeste o grande monge e tradutor budista Xuanzang [ 唐玄奘 Xuánzàng (c. 602 – 664) ou Sanzang (三藏Sānzàng), o Monge dos Três Tesouros budistas (o próprio Buda, os Ensinamentos ou Dharma, a Ordem Monástica ou Sangha), mandatado pelo Imperador Imperador Táng Tàizōng (唐太宗, r. 626-649) para ir buscar as escrituras sagradas à Índia. Estas serão entregues pelo Buda Histórico que reside no Pico do Abutre, porque «há muitas criaturas gananciosas e malvadas no Leste, que se comprazem em provocar sofrimento aos outros, matando e lutando sem parar.» (Jenner, 1994: 58). Por isso, Buda quis distribuir as escrituras pelo mundo chinês. Na filosofia popular e proverbial, que hoje corre de boca em boca, chama-se a atenção para o duelo existencial, travado entre dois dos cinco peregrinos, muito semelhante ao da obra Dom Quixote, de Miguel de Cervantes (1547-1616), composta entre 1605 e 1615, na qual o autor coloca em diálogo duas personagens opostas e complementares, Dom Quixote e Sancho Pança: o primeiro extremamente idealista, romântico, sonhador e mesmo utópico, quase só pele e osso, por ser como que um espírito encarnado; o segundo, materialista, realista, pragmático, um “pés na terra” muito forte e rechonchudo. Mutatis mutandis Zhu Bajie, o Porco das Oito Abstinências, e Sun Wugong, o Macaco Desperto para o Vazio, da Peregrinação a Oeste têm muitas das características opostas e complementares que encontramos em D. Quixote e Sancho Pança. A confirmá-lo, atente-se em alguns dos ditos proverbiais associados ao Rei Macaco: 1) As Setenta e Duas transformações do Rei Macaco (七十二变qī shí èr biàn) 2) Infindáveis Mutações (千变万化qiān biàn wàn huà) 3) Grande Confusão no Palácio Celestial (大闹天宮dà nào tiān gōng) 4) Infinitos Poderes Mágicos (神通广大shéntōng- guǎnggdà ) 5) Aparece e Desaparece Misteriosamente (神出鬼没shénchū-guǐmò) Ele possui uma infinita capacidade espiritual, que lhe permite acompanhar o movimento universal e estar em permanente transformação. Tem inúmeros poderes mágicos, aprendidos com o melhor dos mestres taoistas, o que o capacita a interferir com sucesso tanto na ordem celestial como na terrena, razão pela qual virá a ser castigado e apenas subjugado pelo próprio Buda, que ao domá-lo revela pertencer a uma ordem espiritual e religiosa superior. Após um castigo de quinhentos anos, infligido pelo patriarca do Budismo, ficará apto a integrar o grupo dos peregrinos que introduzirá com sucesso os sutras e os ensinamentos budistas na China. Sun Wugong revela ser uma personagem complexa e multifacetada, retendo e potenciando o melhor e o pior da natureza humana na sua portentosa inteligência, desafiante e desobediente. Tem imensa dificuldade em lidar sobretudo com Zhu Bajie, pela estupidez e concupiscência do parceiro, sempre pronto a preguiçar e a entregar-se a prazeres exclusivamente carnais. Zhu Bajie encarna alguns dos defeitos típicos da natureza humana que são bem revelados na filosofia proverbial popular, como se pode verificar por alguns dos ditos aqui referidos: 1) Zhū Bájiè Falha e Nunca Assume as suas Responsabilidades (豬八戒上陈Zhū Bájiè Shàng Chén) 2) Zhu Bajie Enfeita-se com Flores (豬八戒戴花Zhū Bájiè Dài Huā). 3) Zhū Bájiè vê-se ao Espelho (cZhū Bájiè kàn Jìngzi) 4) Zhū Bájiè Partiu de Avião (豬八戒坐飞机Zhū Bájiè zuò fēijī). No primeiro provérbio, nota-se a dificuldade do porco em assumir culpas sempre que erra, e como errar é humano, não têm contas as vezes em que sacode as responsabilidades; já no segundo é denunciado um defeito muito característico por entre as gentes, a vaidade, ou seja, a necessidade constantes de enfeites, e não só do ponto de vista físico, porque aqui não apenas contam as indumentárias como também os títulos, cargos e honrarias, numa total incapacidade de se autoavaliar com rigor. No terceiro dito, está em causa a fealdade física e moral, que atrai queixas dos outros, pela falta de compostura e, por fim, emprega-se esta expressão quando alguém parte desta para a melhor, mas de uma maneira pior, ou seja, sem dignidade. Para terminar, aqui ficam alguns provérbios de sentido mais geral, retirados da Peregrinação ao Oeste, que chamam a atenção para os males gerais do mundo através das aventuras dos peregrinos, já que, com exceção de Sun Wugong, os outros se deixam enganar muito facilmente, por todo o tipo de monstros, demónios, espíritos sedutores, etc., tendo grande dificuldade em desvendar comportamentos hipócritas nos quais vão tropeçando ao longo da jornada, onde encontram “muitas caras às quais não conseguem ver o coração” ou, por outras palavras, abundante hipocrisia, como refere o dito (虚情假意 xū qíng jiǎ yì). Por isso, estão constantemente envolvidos em sarilhos ou situações que “não têm pés nem cabeça”, o que é traduzido literalmente em chinês por “tamanhos desiguais” (七长八短 qī cháng bā duān). Ora num mundo enganador, os peregrinos são aqueles que com boas intenções vão seguindo com o objetivo maior de salvar a China, assim o grupo se vê na situação de “grande nau, grande tormenta”, ou como é dito em chinês, de “grande árvore que atrai o vento” (树大招风 shū dà zhāo fēng ) num mundo em que quando a virtude cresce alguns centímetros, logo a maldade aumenta vários metros (道高一尺,魔高一丈 dào gāo yī chǐ, mó gāo yī zhàng). Apesar de todas as advertências, vindas da sabedoria popular e das aventuras romanescas, a Peregrinação ao Oeste e Os Lusíadas terminam com o sucesso dos seus protagonistas, já que os portugueses se expandem pelo mundo, o Budismo é introduzido na China e todos os personagens da novela poética dão origem a um pedagógico manancial proverbial. Referências Bibliográficas Alves, Ana Cristina. 2022. Cultura Chinesa, Uma Perspetiva Ocidental. Coord. Carmen Amando Mendes. Coimbra: Almedina e Centro Científico e Cultural de Macau. 蔡志忠 (编绘)2014《西游记》北京:现代出版社. Camões, Luís de. 1971. Os Lusíadas. Lisboa: Imprensa Nacional de Lisboa. Camões, Luís de. 1998. 《卢济塔尼亚人之歌》. Beijing: Fundação Oriente e Federação das Associações Artísticas e Literárias da China. Jenner, W.J.F. 1994. Wu Cheng’en. Journey to the West. «西遊記». Hong Kong: The Commercial Press. 吴承恩2015《西游记》. 全三册.长沙:岳麓书社. “Histórias Proverbiais relativas a Zhu Bajie”:《描写猪八戒的成语》 http://wenwen.soso.com/z/q314030363.htm “Histórias Proverbiais relativas a Sun Wukong”: 《关于孙悟空的成语》http://zhidao.baidu.com/question/95335747.html Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, sendo as opiniões expressas no artigo da inteira responsabilidade dos autores” https://www.cccm.gov.pt Beijing: Fundação Oriente e Federação das Associações Artísticas e Literárias da China.
Hoje Macau PolíticaDeputados pedem promoção da cultura chinesa nos países lusófonos Três deputados de Macau defenderam ontem a promoção da cultura chinesa no estrangeiro e o reforço do intercâmbio entre a China e os países de língua portuguesa através do território. O Governo “deve reforçar o papel de Macau como base relevante para divulgar a cultura chinesa no mundo e contar a ‘boa’ história de Macau e da China”, defendeu o deputado Kou Kam Fai, numa intervenção em conjunto com os deputados Wu Chou Kit e Pang Chuan, antes da reunião plenária da Assembleia Legislativa de Macau. As Linhas de Acção Governativa para 2024 propõem o alargamento do intercâmbio cultural com os países estrangeiros. “O Governo da RAEM [Região Administrativa Especial de Macau] deve continuar a incentivar os jovens estudantes de Macau e as diferentes organizações a lançarem um vasto leque de actividades de intercâmbio cultural com o exterior, e a apoiar os projectos culturais e os grupos de artes performativas de Macau a irem para o estrangeiro para intercâmbios”, sugeriu o deputado. Dragão internacional O legislador referiu que, durante o Ano Novo Lunar deste ano, o Governo organizou a participação de estudantes de Macau na celebração do Ano Novo Lunar em Portugal. Além disso, a Embaixada da China no Brasil também convidou uma escola secundária de Macau a enviar um grupo de dança para participar na celebração do Ano Novo Lunar. “O nosso país tem aproveitado plenamente as estratégias e as vias de cooperação internacional, como a iniciativa ‘Uma Faixa, Uma Rota’, e tem aproveitado o Ano Novo Lunar e outras festividades culturais importantes para reforçar a divulgação da cultura chinesa no estrangeiro”, indicou. Macau “deve aproveitar estas oportunidades para desenvolver as suas vantagens, consolidar o seu papel de plataforma e ponte entre a China e os Países de Língua Portuguesa, explorar e encontrar os amplos mercados dos Países de Língua Portuguesa, promovendo deste modo um desenvolvimento diversificado e integrando activamente a conjuntura do desenvolvimento nacional”, de acordo com a intervenção dos três deputados nomeados pelo chefe do Executivo, Ho Iat Seng.
Hoje Macau Eventos“Analectos” e Mêncio”, lançados na Fundação Rui Cunha, encerram a publicação de “Os Quatro Livros” do cânone confuciano Decorreu ontem na Fundação Rui Cunha o lançamento, pela editora Livros do Meio, dos dois últimos volumes d’ “Os Quatro Livros” do cânone confuciano, “Analectos” e “Mêncio”, traduzidos e anotados, respectivamente por Carlos Morais José e Ana Maria Saldanha, que assim se seguem ao “Estudo Maior” e à “Prática do Meio”. Na sessão intervieram os tradutores que falaram das obras em questão. Carlos Morais José, que também é o editor responsável pela Livros do Meio, arguiu as razões que levarão a sua editora a enveredar pela publicação destes volumes que, segundo afirmou, são um marco incontornável e fundamental da cultura e da civilização chinesa. Assim, durante cerca de uma década, explicou ao público presente, foram traduzidos “Os Quatro Livros” que, a partir da dinastia Song se tornaram na base dos exames para o mandarinato, ou seja, para o acesso a cargos públicos. Até então, desde a dinastia Han que os exames eram realizados com base nos chamados Cinco Clássicos ou Pentateuco chinês, a saber, o “Livro das Odes”, o “Livro dos Documentos”, o “Livro dos Ritos”, os “Anais da Primavera-Outono” e o “Livro da Música”. Ainda segundo o tradutor, esta mudança operou uma transição entre um estudo dedicado essencialmente ao ritual e aos ritos para uma abordagem mais interna e pessoal, ou seja, no sentido da construção de um sujeito ético. Além disso, a emergência deste chamado neo-confucionismo, liderado pelo filósofo Zhu Xi, surge também como reacção à crescente influência do budismo na sociedade e nos círculos do poder chinês, o que desagradava sobremaneira aos letrados confucionistas, sendo inclusivamente invocada a necessidade de se abandonar as doutrinas estrangeiras, como o budismo, cujas teoria, por vezes, anti-sociais desagradavam particularmente aos seguidores de Confúcio para quem o homem, animal gregário por excelência, deve-se preocupar sobretudo na gestão das suas relações sociais e do governo e menos em questões cosmológicas ou metafísicas que, em geral, os confucionistas preferem ignorar, centrando-se exclusivamente no ser humano. Carlos Morais José começou, aliás, por fazer uma introdução ao trabalho da sua editora que, no ano passado, abriu uma “filial” em Portugal e que, desde então, para lá transportou a revista “Via do Meio”, a primeira publicação regular sobre cultura chinesa que se publica em língua portuguesa, e deu ainda à estampa quatro livros. Três são de cultura chinesa, incluindo o inédito “Poemas de Su Dongpo, com tradução de António Graça de Abreu, “As Leis da Guerra”, de Sun Bin, e “Textos Clássicos sobre Pintura Chinesa”, com tradução de Paulo Maia e Carmo. O outro livro é o primeiro volume de uma “Antologia da Literatura Oral Timorense – Oecusse”, da autoria de Anabela Leal de Barros. Por seu lado, Ana Maria Saldanha abordou o livro de Mêncio numa perspectiva mais sociológica a partir de considerações sobre a questão agrária, em Confúcio e em Mêncio, destacando o facto dos dois filósofos terem dado um especial ao assunto, na medida em que as relações de produção naquele tempo se encontravam basicamente dependentes da agricultura, da posse dos meios de produção e da terra. Segundo afirmou, a virtude do governante, central no pensamento político confuciano, também se demonstrava no modo como eram divididas as terras e o seu produto, para além de também ser importante a organização do trabalho. A escravatura, apesar de existir, em grande parte fruto das guerras, não constituía de modo nenhum a parte principal da massa trabalhadora que era essencialmente formada por camponeses livres que tinham inclusivamente o direito de se deslocar para onde quisessem, inclusivamente mudar a sua casa e família para um outro estado onde a vida lhe fosse mais sorridente. Assim, ao contrário da Europa feudal, onde os servos da gleba, como o nome indica, pertenciam à terra e ao senhor dessa mesma terra, na China dos Estados Combatentes, os senhores viam-se obrigados a proporcionar boas condições de vida aos camponeses não fossem estes abandonar o seu estado por um outro que lhes proporcionaria condições mais benéficas. Ana Maria Saldanha explicou ainda a uma atenta audiência as quatro principais virtudes que Mêncio considerava como fundamentais, a saber, benevolência (ren), rectidão (yi), cumprimento dos ritos (li) e sabedoria (zhi) e como despendeu a sua vida tentando inculcá-las, a maior parte das vezes sem sucesso, nos governantes do seu tempo, acabando por fundar uma escola privada onde recebia discípulos. Seja como for, foi o livro de Mêncio que Zhu Xi escolheu para completar “Os Quatro Livros”, entre dezenas de outros confucionistas que, após a morte do Mestre, criaram mais de Cem Escolas, cujas divergências se tronaram célebres, tendo proporcionando algumas das discussões mais interessantes do pensamento clássico chinês. A partir de hoje, estes livros e a revista Via do Meio podem ser comprados na Livraria Portuguesa ou no Pátio da Sé 22, RC-B, a sede do jornal Hoje Macau, ou ainda encomendados através do email graofalar@gmail.com. Neste caso o porte é gratuito.
Andreia Sofia Silva Eventos MancheteLivro | “Cultura chinesa: Uma perspectiva ocidental” apresentado em Lisboa Da autoria de Ana Cristina Alves e coordenação de Carmen Amado Mendes, “Cultura chinesa: Uma perspectiva ocidental” reúne os artigos de opinião de Ana Cristina Alves publicados no HM e no Ponto Final a partir de 2006. Em seis capítulos, explica-se ao público português diversas facetas da cultura, filosofia, política e economia chinesas Um grupo de personalidades ligadas a Macau reuniu-se na última sexta-feira na livraria Almedina, em Lisboa, para assistir ao lançamento do mais recente livro de Ana Cristina Alves, doutora em filosofia, com especialidade em filosofia e cultura chinesas, e actual directora do centro educativo do Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM). “Cultura chinesa: Uma perspectiva ocidental” reúne, em seis capítulos, artigos de opinião de Ana Cristina Alves publicados na imprensa de Macau, nomeadamente nos jornais HM e Ponto Final, a partir de 2006. Carmen Amado Mendes, presidente do CCCM e coordenadora da obra, lembrou o processo de edição e revisão dos textos, iniciado em Fevereiro de 2020. “Quando assumi a presidência do CCCM ela disse-me que queria publicar [os textos], mas eu disse que o que ela tinha não era um livro, mas sim um conjunto de artigos escritos de uma forma ligeira para um público de Macau, sem contextualização. Há coisas que são óbvias para quem vive em Macau, mas não tão óbvias para quem vive em Portugal. Fizemos inúmeras revisões, acrescentamos muitas notas justificativas e referências, contextualização histórica e cultural.” Na opinião da coordenadora do livro, “faltava em Portugal uma obra dedicada à cultura chinesa que explicasse, de uma forma tão simples e objectiva, curiosidades que, muitas vezes, o leitor tem e não teria outra forma de as ver esclarecidas”. “Partimos de um período contemporâneo até às raízes históricas e mitológicas desta civilização milenar e cativante”, frisou. Sem preconceitos O livro é composto por seis capítulos e abrange áreas tão diversas do universo chinês como a economia, filosofia, política ou cultura. Ana Cristina Alves confessou que procurou sempre, no processo de escrita dos artigos, traçar “um olhar despreconceituoso sobre a China”. “Não ia honrar e louvar a cultura, mas tentei passar o olhar de uma perspectiva ocidental sem preconceitos. Aqui encontramo-nos na neutralidade. Fui aprendendo esta perspectiva de neutralidade ao longo dos anos com os próprios chineses. Tentei ver o melhor de cada civilização, mas sem nunca largar a minha perspectiva ocidental.” A obra começa pela área da filosofia, estabelecendo “comparações entre a filosofia oriental e ocidental, mas partindo da filosofia contemporânea para as raízes”. A ideia é que os leitores “ao lerem, sintam que não estão numa biblioteca, mas pensando que, quem escreveu, esteve no terreno e que, a partir das suas vivências, construiu as suas teorias filosóficas com o que viveu”. Desta forma, Ana Cristina Alves deixa claro que “o livro não pode ser considerado um livro de biblioteca, uma vez que foi um caminho existencial que foi sendo percorrido”. Constam nomes da filosofia ocidental, “mais ligados a uma tradição liberal”, como [John] Locke, Kant, Habermas e o japonês Francis Fukuyama. Neste sentido, e segundo a autora, “o pensamento ocidental contemporâneo é fundamental para fazer o balanço entre o socialismo, o nacionalismo e o espaço liberal, que é um espaço de equilíbrio, uma via do meio que o Ocidente encontra”. “O pensamento liberal permite pensar sem medo das consequências, e foi este o fio condutor que segui quando pensei na filosofia chinesa. Apresentei o melhor que pude. Na parte da filosofia política e económica também se mostrou que há um termo entre o socialismo e o nacionalismo, um espaço possível sempre de uma perspectiva ocidental”, frisou Ana Cristina Alves. O livro passa depois para a área da cultura chinesa. “Quando entramos nesse campo o fio condutor começa a ser a filosofia em geral, mas também a filosofia da linguagem, os caracteres chineses, a etimologia, e pensar no que isso nos pode trazer para compreender a cultura chinesa. Depois termina-se com filosofia e com um diálogo à maneira platónica nas considerações finais”, adiantou a autora. A apresentação esteve a cargo do jornalista António Caeiro, ex-delegado da agência Lusa em Pequim, tendo dado lugar a um debate sobre a falta de disseminação da cultura chinesa, sobretudo na área da música e cinema, em Portugal, por oposição às culturas japonesa e coreana. Para Carmen Amado Mendes, “muitos estudos têm sido feitos sobre isso e uma das grandes conclusões prende-se com a dificuldade de aprender a língua e também em termos de a língua ser considerada interessante nas músicas”. Para a presidente do CCCM, “é difícil a língua chinesa ultrapassar certas fronteiras”. Ana Cristina Alves apontou que o caminho é a aposta na educação. “[O mandarim] é uma língua radicalmente diferente [em relação ao coreano e japonês], o que resulta num grande espaço de incompreensão em relação à China. O Japão não é radicalmente neutro porque estão mais próximos do que nós, tal como os coreanos.” A autora da obra lamenta que “nunca venha ao de cima o que é a neutralidade chinesa”. “Se não partimos de um ponto neutral não conseguimos desenvolver um olhar que nos leva a compreender o outro como ele é”, frisou. No final, e perante o repto lançado por uma interveniente, ficou a promessa do CCCM vir a organizar um ciclo de cinema chinês.
João Santos Filipe PolíticaCultura | Chan Hou Seng quer artistas a contar história chinesa Chan Hou Seng, nomeado pelo Chefe do Executivo, considera que a RAEM e os artistas locais devem participar na iniciativa “Contar Bem a História da China” de Xi Jinping, de forma a contribuir para o desenvolvimento nacional. “Há que demonstrar as verdadeiras características do povo chinês, a verdadeira cultura chinesa e, sobretudo, o processo da formação do pensamento cultural dos chineses”, apelou Chan, ex-director do Museu de Arte de Macau, que destacou que a mentalidade chinesa tem por base a imparcialidade. Segundo o legislador, esta é uma missão altruísta: “Explicar às pessoas com um contexto cultural diferente a mentalidade milenar dos chineses não é para servir os nossos interesses. A humanidade precisa de purificar a mente através de obras literárias e artísticas verídicas, benévolas e formosas, portanto, preconizar a benevolência, e contar bem a história da China, é, no fundo, explicar bem a excelente essência da cultura e filosofia chinesas, dando energias positivas ao mundo”, justificou.
Hoje Macau EventosNova associação pretende promover “compreensão e amizade” entre Portugal e China [dropcap]A[/dropcap] Associação Portuguesa dos Amigos da Cultura Chinesa, apresentada hoje, pretende “promover a compreensão e a amizade” entre Portugal e China, que, em 2019, assinalam 40 anos do restabelecimento das relações diplomáticas. A presidente da Associação Portuguesa dos Amigos da Cultura Chinesa, Wang Suoying, ressalvou a importância da associação para “divulgar em Portugal a língua e a cultura chinesas” e sublinhou que os dois países, com uma ligação secular, “estão unidos por uma faixa, por uma rota”, em alusão à Nova Rota da Seda. O atual traçado oficial das novas rotas da seda é um movimento de globalização de Pequim e contempla múltiplas oportunidades no comércio para Portugal, através da sua vocação europeia e atlântica. “A associação tem o objetivo de criar, promover e desenvolver atividades de caráter cultural, desportivo, recreativo e social que contribuam para dignificar o prestígio e a divulgação da cultura e língua chinesas”, referiu Suoying, no Centro de Intercâmbio Cultural Molihua, em Lisboa. A dirigente, que assinalou também a importância de a associação estabelecer colaboração para as comemorações em 2019 dos 20 anos da transferência de administração de Macau para a China, vincou que a nova organização pretende, também, promover “todas as formas de intercâmbio cultural, social, educacional e formativo e de solidariedade social entre Portugal e China”. Depois da cerimónia de apresentação da associação, antecedida pelo recital de “Guzheng”, pela jovem de 10 anos Humag Lirong, foi lançado o livro “Obras Corais em Mandarim”, de Carlos Santos Silva, e assistiu-se à atuação do Coro Molihua.
Andreia Sofia Silva EventosExtramuros | Projecto online de Luís Ortet visa criar pontes com cultura chinesa Há muito que Luís Ortet, jornalista e editor, conversa com chineses para perceber onde vive. Os apontamentos deram lugar a um blogue que, por sua vez, dará lugar a um projecto com colaboradores que irão transmitir os seus pontos de vista. É assim o “Extramuros”, já disponível online [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ara escrever sobre a China uma vida não bastará. Para perceber a cultura chinesa são então necessários pedaços de tempo, papel, caneta e muitas conversas, para que se possa compreender um mundo tão diferente do ocidental. Foi o que pensou Luís Ortet. O jornalista e editor, há décadas radicado em Macau, mantém o hábito de conversar com chineses para treinar o seu mandarim. Foi daí que nasceu a ideia de criar o “Extramuros – A China além da China” (www.extramuros.me), que começou por ser um blogue de apontamentos dessas conversas, mas que já se transformou num website, administrado pela jornalista Catarina Domingues, e que conta com colaborações do artista Rui Rasquinho e da docente da Universidade de Macau Márcia Schmaltz. Há ainda colaboradores de origem chinesa. “O objectivo dessas conversas que mantenho é treinar a língua, mas o tema das conversas é a cultura chinesa. Coisas que acontecem em Macau e na China, no mundo, e vamos falando sobre isso. Comecei então a reunir uma série de apontamentos sobre essas conversas. Senti que seria de alguma utilidade tornar isso público, e daí nasceu a ideia de ter um blogue”, explicou ao HM Luís Ortet. Para além dos desenhos de Rui Rasquinho sobre alguns caracteres chineses, há a ideia de escrever sobre livros. “Outra faceta é tentar ter chineses a colaborar, e já temos chineses a escrever. Vamos ter publicações sobre livros. Estamos a acompanhar o projecto da Associação dos Amigos do Livro [presidida por Rogério Beltrão Coelho].” João Guedes, jornalista da TDM, será um dos colaboradores, confirmou Luís Ortet. “Aquela ideia inicial de apenas ter um suporte para publicar os meus apontamentos deu origem a uma coisa que me ultrapassa. Neste momento sou apenas um dos contribuidores. A ideia é: as conversas que tenho com amigos chineses desde há anos é no sentido de lhes tentar explicar as nossas ideias ocidentais, e eles tentarem explicar-me como é que eles pensam. Isso não é fácil porque eles são muito reservados e têm medo de ferir as pessoas, são muito cuidadosos”, disse o jornalista. Para Luís Ortet, o seu mais recente projecto é como se fosse “uma pessoa a espreitar para o outro lado do muro, isto é, para outra realidade”. Perceber o que somos O projecto, unicamente escrito em português, poderia ganhar outra dimensão ao ser escrito em chinês, defendeu Luís Ortet. “A minha esperança é que um dia haja uma espécie de Extramuros em chinês, para os chineses. Chineses que venham falar connosco, portugueses, que nos peçam para escrever no blogue deles.” No contexto da relação com a comunidade chinesa, Luís Ortet considera que os portugueses devem hoje, 17 anos após a transferência de soberania, olhar melhor para o seu papel em Macau. “Temos de pensar bem o que é ser português em Macau nesta altura. Há 17 anos a ideia era que íamos embora, mais tarde ou mais cedo. Em Macau, tecnicamente, somos emigrantes. Somos de Portugal e viemos para aqui num dado momento, mas o que se está a passar é que a presença portuguesa em Macau faz parte da República Popular da China, faz parte da realidade política de Macau”, observa. “Qualquer pessoa que vá para o Reino Unido aprende a língua e insere-se nos costumes ingleses. Nós aqui falamos português, não falamos chinês, mas vivemos na China. Isto faz parte de uma forma que encontrámos para viver. Sabemos, em termos políticos, o que se passa em Macau, porque está escrito na Lei Básica que o português é língua oficial, mas os jornais foram além disso: todas incluem jornalistas chineses”, apontou. Para Luís Ortet, em 1999, “estávamos a viver a prazo e não sabíamos qual ia ser o futuro”. “Mas já conhecemos 17 anos de futuro, pós-transição, e conseguimos criar uma maneira de estar em Macau em que preservamos a nossa identidade e lutamos por ela. Somos os portugueses da China, mas não nos integrámos no sentido de aprender a língua. Criou-se uma dinâmica própria e que já faz parte de Macau”, rematou o mentor do “Extramuros”.
Leonor Sá Machado Entrevista Manchete“Macau deu o poder da indústria aos junkets e ao resto do sector VIP” [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o seu livro “Chopsticks and Gambling”, refere que o Jogo e o vício são vistos negativamente na cultura chinesa, mas que os números revelam ser os chineses quem mais joga. Como é que esta disparidade acontece? Tem mais que ver com a história da população, em termos de dinastias. Vemos que em cada uma delas, há uma série de medidas e políticas para banir o jogo, mas continua a existir, naturalmente. Aqueles que são normalmente acusados de jogar são, afinal, oficiais de Estado e membros do Governo. Penso que os chineses não vêem o jogo como uma doença ou um vício, como os ocidentais. Os chineses entendem é quem joga como sendo uma má pessoa. No mundo ocidental, os apostadores são vistos como psicologicamente doentes e na China, quem não consegue controlar os impulsos, é visto como sendo uma má pessoa. Julgo que esse é um problema grave, em termos da ajuda e do apoio que estas pessoas poderiam ter. É muito complicado fazer com que as pessoas viciadas em jogo peçam ajuda e dêem a cara. Mas porque é que é na população chinesa que a percentagem de viciados é maior? Esta é a pergunta decisiva: é muito complicado de explicar, mas na perspectiva da própria indústria percebemos que o vício afecta mais os chineses porque são quem mais joga. Não se sabe ainda é porque é que são quem mais joga… Pode ter causas biológicas ou de etnia, por ser uma questão cultural ou causa de forças exteriores. Talvez uma combinação das três. E é uma coisa que não é de agora, tem vindo a acontecer há séculos. Xangai tinha uma série de casinos que acabaram por desaparecer, embora haja uma faixa suburbana de jogo ilegal muito forte. Nas minhas pesquisas, concluí que a cultura chinesa que vem a Macau tem propensão para ver o jogo como uma forma de investimento. Assim, não vêem o facto de perderem como um “perda” em si, mas sim como uma actividade que terá retorno: “Jogo para ter uma taxa de 20% ou 30% de retorno”. Antes do ‘crash’ da bolsa [de Xangai], claro, o negócio do imobiliário estava a crescer exponencialmente e as pessoas procuram dinheiro extra para ficar mais ricas e subir na escada social. Os casinos são, tal como o imobiliário ou as acções em bolsa, um investimento. Acredito que esta perspectiva faz mais sentido nos dias de hoje do que dizer apenas que é “um aspecto cultural”. O factor cultural entra em termos da forma como se joga, como é o exemplo das superstições que ganham vida entre as quatro paredes dos casinos. Que tipo de superstições existem? Uma série delas, mas é muito comum os chineses usaram lingerie vermelha ou banharem-se em água com flores e extractos de plantas antes de irem para as mesas, para trazer sorte. A superstição tem que ver com o reforço e atracção da sorte. O Feng Shui também desempenha um papel importante e as pessoas muitas vezes estão logo à espera de encontrar “emboscadas” de Feng Shui nos casinos. Normalmente também não se entra pelas portas principais… São tudo questões de sorte e azar. O número quatro também está presente nas mesas. Existe o número quatro nos baralhos, mas não existem quatro elementos de uma mesma coisa, sejam cartas, copos ou fichas. Como disse, há séculos que os chineses jogam e os governos têm vindo a banir o Jogo sucessivamente ao longo de várias dinastias. Acredita que isto possa vir a acontecer um dia em Macau? Dizer “banir” é um pouco drástico. Tem havido várias medidas de controlo do jogo, como são as punições para oficiais do Governo que joguem. Antigamente, não havia capacidade para regular esta actividade, mas em Macau há. Na China, acredito é que a legislação vigente não está em consonância com o seu reforço. As pessoas podem não admitir, mas existem, de facto, casinos ilegais na China. Nos últimos dez anos, temos andado a crescer a um ritmo demasiado rápido. [quote_box_right]“Os casinos são, tal como o imobiliário ou as acções em bolsa, um investimento. Acredito que esta perspectiva faz mais sentido nos dias de hoje do que dizer apenas que é um aspecto cultural”[/quote_box_right] Em que sentido, exactamente? Quando o Jogo se começou a expandir, em 2002/2003, a ideia era transformar Macau numa cidade diversificada e internacionalizada, mas a verdade é que isso foi uma coisa que só começou a acontecer muito mais tarde. O Governo tem apostado muito no desenvolvimento do mercado VIP e não no mercado de massas, mas esse é que está fortemente associado ao entretenimento, como acontece em Las Vegas. Até nisso creio que se tomaram escolhas não tão acertadas e o sector VIP tornou-se num mercado tão vasto, que só se associa à camada social mais endinheirada. Isto significa que Macau deu o poder desta indústria aos junkets e ao resto do sector VIP. Isto não é algo necessariamente negativo, mas implica termos menos poder que está agora nas mãos de terceiros. Nem os promotores de junkets têm controlo sobre quem vem cá jogar e tudo isto traz consequências para a indústria. Mas o sector VIP tem tido grandes quedas nas receitas nos últimos meses… Sim e tudo devido à campanha anti-corrupção do Governo Central, que está a ganhar cada vez mais força. A pergunta que devíamos fazer é porque é que as receitas descem com uma campanha deste género? Por que afectam Macau? Quem são, então, as pessoas que têm vindo a entrar em Macau nos últimos anos e que agora não vêm? Qual será a solução para colmatar a falta de jogadores? Não creio que devamos olhar para trás e querer que seja igual. Acho é que temos que tornar a indústria mais transparente e limpa e fazer com que o Jogo seja visto como um entretenimento. É importante começar a atrair pessoas que pretendam vir cá e sentar-se às mesas para se divertirem, mesmo que apostem menos dinheiro do que aqueles que antes vinham jogar para as salas VIP. Transformar a indústria numa coisa sustentável e que não esteja relacionado com branqueamento de capitais ou com oficiais de Estado. Diz-se que a queda das receitas está muito relacionada com o receio que muitas pessoas agora têm de vir até Macau… Sim, claramente. No entanto, também acredito que o sector VIP deve estar sempre presente em Macau, porque faz parte. A actividade do Jogo é um dos elementos que distingue esta cidade de outras semelhantes e creio que sem ele, Macau não sobreviveria. Temos uma série de actividades não relacionadas com o Jogo, mas é esta actividade que realmente faz com que as pessoas cá venham. Esta pode é ser vista como algo divertido, feliz e saudável. Não tem que ser algo negativo. Considera que a proibição total de fumo nos casinos tem ajudado à queda das receitas? Julgo que a proibição total pode vir a ter efeitos negativos no mercado VIP, sim. No entanto, depois de estar numa série de sítios onde é proibido fumar nos casinos, apercebi-me que nos primeiros dois anos após a implementação da lei as receitas têm quedas entre os 10% e os 20% e isto é drástico para as operadoras. Mas com o tempo, vemos que a população que frequenta estes locais começa a alterar-se e passa a ser maioritariamente constituída por aquelas pessoas que nunca jogavam por não gostarem do cheiro a tabaco e do ambiente e agora o fazem por ser livre de fumo. Mas respondendo à pergunta: acho que o que realmente está a afectar a queda é a campanha do Governo Central e não esta proibição. Mas a solução não seria integrar as salas de fumo, como já se fez no ano passado? Essa é uma questão que deixo para a própria indústria responder. Só ela pode dizer, de uma perspectiva de negócio, se isto resulta ou não. No entanto, acho que neste momento, com a queda, faz bastante mais sentido permitir que todos beneficiem dos casinos, fumadores e não fumadores. [quote_box_left]“[É importante] transformar a indústria numa coisa sustentável e que não esteja relacionado com branqueamento de capitais ou com oficiais de Estado”[/quote_box_left] Como é que vê a abertura dos novos casinos e hotéis? Estamos a falar de coisas diferentes, porque se trata de empreendimentos com uma componente muito mais forte de entretenimento e elementos não jogo do que casinos e mesas propriamente ditas. O que é uma coisa boa, algo que se tem andado a tentar fazer desde 2002. Acha que vai funcionar? Ainda não se sabe, porque estão muitas coisas por abrir. No entanto, acredito que há mercado suficiente, feito de pessoas como nós, que estão dispostas a gastar umas cem ou 200 patacas no casino para se divertirem. Numa perspectiva exterior, é preciso diminuir as nossas expectativas. Sempre fomos a cidade do Jogo, mas passaremos a ser uma cidade onde o Jogo é uma das suas componentes. Acredita que Macau algum dia vai ser uma cidade internacional? Sim e é por isso que cá estou. Acho que não tem que ser só Jogo ou só qualquer outra coisa. A verdade é que o Jogo nunca vai desaparecer, nem deve. Tem é que se gerir esta indústria de forma inteligente, para a tornar transparente e fazer com que apostar não seja mais visto como uma actividade negativa. Acho que é preciso dar às pessoas várias razões para virem a Macau. O que considera que vale a pena em Macau, da perspectiva do turista? As pessoas acreditam que existe uma série de coisas interessantes aqui, desde locais protegidos pela UNESCO, prédios preservados do tempo do Governo português e uma componente tipo Las Vegas, com resorts com piscinas e, em breve, a roda gigante do Studio City. Macau é Las Vegas com quatro mil anos de história. Quanto tempo vai demorar até chegarmos a essa internacionalização? Não é possível fazê-lo de um dia para o outro. Não podemos é esperar que a indústria do Jogo, embora seja forte, continue a crescer tanto como nos últimos anos durante 20, 30 ou 50 mais. Temos que parar e desacelerar este crescimento para desenvolver. Não acredita então que é possível virmos a ter uma crise financeira em Macau? Enquanto residente, não consigo sequer imaginar uma crise aqui, até porque os casinos continuam cheios de gente a jogar e nas lojas. A única coisa que falta são jogadores e isso não afecta directamente o resto das pessoas, como os residentes e os turistas. O Governo mencionou já várias vezes que poderão ser precisas medidas de austeridade. Não creio que sejam necessárias, se deixarmos o mercado seguir o seu curso. Quando tivemos aqueles cinco a sete anos de crescimento exacerbado, ninguém nunca disse que era preciso um plano de contingência, mas acho que sim. A certo ponto, cerca de 40% ou 50% é demais e as pessoas deviam ter reclamado. Houve uma série de coisas que não se desenvolveram porque tudo andou demasiado rápido. É preciso resolver os problemas de tráfego, dos transportes e as questões laborais antes de voltar a impulsionar as receitas. Na altura em que o mercado começou a crescer, as indústrias sentiram que precisavam de se adaptar e restaurantes, hotéis de luxo e mesas novas cresciam em todos os cantos, mas outros aspectos da vida social continuam por resolver. Havia dinheiro para dar a vender e era fácil e hoje em dia talvez não seja tanto e é onde a inteligência é precisa. Quanto à polémica de construir casinos em bairros comunitários ou zonas de periferia. Qual é a sua opinião? O Louis XIII é um caso à parte, porque se trata de um complexo para as “grandes baleias”. O perigo são os espaços de lazer como o Mocha. Num sentido geral, não julgo que seja boa ideia ter casinos nem sítios com slot machines junto destas zonas porque atraem pessoas que recebem pouco mensalmente, como pensões. As leis e fiscalização têm que ser boas. A revisão dos contratos de concessão está aí à porta. O que acha que vai mudar? Sinceramente não sei, porque é uma questão política, que me ultrapassa. Pessoalmente, acho que nada vai mudar. Poderá entrar uma nova operadora no sistema? David Chow considera que sim… Acho que não vai ser bom se isso acontecer, se será boa ideia injectar mais competição no mercado. Acho que devia ficar como está. Também não estou a ver o Governo a tirar alguém da corrida. É preciso é reinventarmos a indústria, estar sempre a inovar e atrair pessoas, como Las Vegas tem feito há tantos anos. O Governo tem, de facto, falado muito na reinvenção e diversificação. Será possível fazer isto somente com mão-de-obra local? Não posso falar pelo Governo, mas acredito que os estrangeiros [profissionalmente] trazem para Macau conhecimentos que os residentes, certamente, não têm. Quando se quer inovar nesta cidade, não se pode contar com os residentes ou mesmo com quem cá vive, mas não é residente. Continuamos a precisar de sangue novo. Mas isso não será tirar oportunidades para os locais? Temos estado a fazê-lo durante estes anos todos, mas é preciso trazer quem lhes mostre que o caminho é para cima, que se saiba gerir a sério. No fundo, é preciso mostrar aos residentes que existe mais para além daquilo que vêem. A mão-de-obra local é muito reduzida e na altura de expandir o mercado do entretenimento, vai ser preciso ter quem saiba do assunto. O conhecimento é essencial e o ideal seria formar o nosso próprio pessoal, mas isso leva tempo. Há pouco talento numa população de 600 mil pessoas e, em termos globais, os mais talentosos, não o são assim tanto.