José Simões Morais Via do MeioViagem no Grande Canal por Jiangnan A praça central de Wulin (武林门) em Hangzhou era o principal local do mercado e até 2005 o cais terminal do Grande Canal (Da Yunhe, 大运河), onde durante 1400 anos se descarregaram as mercadorias vindas do Norte, como peles e carvão, e em sentido inverso partiu muito cereal e arroz. O edifício no meio da praça, apesar de parecer um local governamental, é a sala de exposições da cidade. Na parte Oeste, dois grandes centros comerciais, um deles com cinema, prolongam a rua por onde somos levados até ao ancoradouro do Grande Canal. Num pequeno resguardo à entrada do cais de embarque vendem-se os bilhetes de barco para Suzhou [estamos em finais dos anos 90 do século XX] e todos os dias dali parte um barco às cinco e meia da tarde, numa viagem feita noite dentro pelo canal Jiangnan [Jiangnan yunhe (江南运河)]. Outrora, o percurso ia a Wuxi, mas esse serviço estava há dois anos desconectado. O Canal Jiangnan começa em Zhenjiang, na margem Sul do Changjiang (Yangzi ou Yangtzé), após o Grande Canal cruzar o terceiro maior rio do mundo, e para Sul segue o seu curso por Danyang (丹阳), Changzhou (常州), Wuxi (无锡), Suzhou (苏州), Pingwang (平望), chegando a Hangzhou onde se conecta ao Rio Qiantang. No guiché, que parecia guardar o beco a levar à porta de embarque, compramos para o dia seguinte por 98 yuan o pequeno [qual de citadino autocarro] bilhete de uma cama, em compartimento de um beliche, pois as cabinas de duas camas a custarem 115 yuan estão esgotadas. Pedem para chegarmos às cinco da tarde, meia hora antes da partida. Olhava o cais de onde dois anos antes partira de barco até Suzhou e regressava agora preparado para repetir a viagem, mas ao chegar ao cais verifico que este está a ser demolido. Os barcos dessas viagens aí continuam ancorados, mas estas foram agora suspensas por tempo indeterminado. Por mero acaso, apercebemo-nos da movimentação registada ao fundo do cais, com pessoas à espera ao lado de uma placa em triângulo a indicar a paragem do barco. Indagando, ficamos a saber não se efectuar já a viagem até ao antigo cais de embarque de Nanxingqiao (南星桥), situado pouco antes de chegar ao templo Sanlang, próximo do terminal Sul de autocarros. Agora estava aberta uma carreira de barco, que numa curta viagem de dez minutos para jusante, encosta por breves momentos na paragem de Baziqiao zhan (坝子桥站), junto à ponte Bazi (坝子桥), para depois regressar ao cais de onde tínhamos partido. Por cinco yuan podemos olhar uma das comportas dos canais da cidade, que apesar de fechada deixa escorrer fios de água para o Grande Canal e parecendo um lugar atraente, uma ponte com três arcos coberta por um telhado de madeira é a porta de um ramal do canal. Também por cinco yuan, somos levados até à ponte antiga de Gongchen, junto à praça onde está o Museu do Grande Canal Beijing-Hangzhou. E assim voltamos para visitar esse excelente museu, que veio criar um novo pólo turístico à cidade de Hangzhou. Aí se encontram expostas miniaturas de barcos, e se podem ver os percursos das viagens marítimas ao longo dos séculos e os séculos de construção do Grande Canal, os seus patrocinadores e o modo como foram resolvidos os obstáculos apresentados para fazer desta via uma ligação directa entre a capital do Norte e o resto da China. NO GRANDE CANAL Só com a nova abertura do país ao turismo realizada em 1978 apareceu o interesse para tirar um novo proveito desta grande obra de engenharia. Pelo Grande Canal continuavam a ser transportadas as mercadorias, apesar de partes do percurso estarem interrompidos, pois a navegação fora já abandonada desde os finais do século XIX. Como resposta, em 1981 as entidades turísticas de Wuxi abriram uma viagem entre Suzhou e Yangzhou e outra, do lago Tai até Hangzhou. O barco colocado à disposição do turismo era uma réplica fiel do barco-dragão do Imperador Sui, Yangdi. Nos finais dos anos 90, as viagens fazem-se entre Hangzhou e Suzhou e daí até Wuxi os barcos são já normais barcos de passageiros com dois andares. Depois, no segundo ou terceiro ano após o início do III milénio, a viagem deixou de se fazer para Wuxi e apenas se realizava entre Hangzhou e Suzhou e no ano 2007 esta foi interrompida. Cremos nós, para a reestruturar e preparar novos barcos para os turistas aproveitarem as belezas das paisagens e a História do Grande Canal. Às cinco da tarde chegamos ao cais, meia hora antes da partida. Quinze minutos depois da hora, às seis menos um quarto estamos a navegar pelas águas do Grande Canal. O atraso deve-se a ter de se arrumar no barco as bicicletas do grupo de cicloturismo, chegado em cima da hora da partida. O barco onde viajamos tem dois andares e aproximadamente vinte cabinas, com quartos de banho comuns, a cozinha e um pequeno salão, onde são tomadas as refeições, jantar e pequeno-almoço. A viagem será feita à noite pela região conhecida por Jiangnan [Sul do Rio], que atravessa as terras a Sul do Changjiang (Rio Yangzi), nas províncias de Zhejiang e Jiangsu, de onde provém o nome do canal construído na dinastia Qin com 85 km de comprimento e alargado em 605. De Hangzhou passa por terras de Huzhou e Jiaxing e saindo da província de Zhejiang entra na de Jiangsu e contornando a Leste o lago Tai, segue até Suzhou, onde de barco terminará a nossa viagem. De Hangzhou partíamos para Suzhou, na comparação do viajante veneziano Marco Polo, cidades gémeas a nível de beleza, Paraísos na Terra. A noite cai em Hangzhou quando cruzamos a ponte Gongzhen, construída em 1631 toda de pedra com três arcos e que nos traz despertos no convés, apesar de chuviscar, por dar início ao percurso ainda não navegado. Um barco de passageiros passa transportando apenas uma pessoa, não sendo de estranhar pois a neblina e o chuviscar durante toda a tarde retira o prazer da viagem. Os choupos enfileirados ao longo das margens empedradas são subitamente iluminados pelas lanternas vermelhas de um restaurante na borda da água de estilo antigo à espera de clientes. A beleza da paisagem talvez apenas se deva às sombras da noite. O trânsito de barcos é intenso e todos são de carga, alguns grandes, onde cabem contentores, outros transportando areia, carvão ou toros de madeira. O barco com o casco plano e a proa em U, navega a rasar a borda de água. Na popa da embarcação, no topo da cabina-habitação encontram-se as luzes de sinalização, com a verde no lado direito e no esquerdo, a vermelha. Leva um foco de luz branca intenso a iluminar o canal de frente e ao cruzar com outras embarcações desvia-o, ou apaga. Ganha-se a escuridão. Antes de cruzar com outros barcos, uns em sentido contrário, outros para serem ultrapassados, volta a acender por segundos o holofote a avisar e visualizar o tamanho das embarcações. Junto a um desvio do canal, uma bomba de gasóleo na margem espera para reabastecer de combustível quem por ali passa. As águas transportam detritos de esferovite e ramos de árvores. De quando em vez, uma fábrica nas margens tem o seu cais fazendo proveito desta via privilegiada de transporte para receber matéria prima a enviar a produção. O tamanho em largura do canal vai variando e por vezes permite a passagem ao mesmo tempo de quatro barcos, mas noutros locais para três já é apertado. Cruzamos com um comboio de barcos puxado por um rebocador, onde se situam as cabinas dos trabalhadores, levando atrelado dez longos barcos contentores. Um ligeiro toque no nosso barco faz-se sentir. Se nas primeiras duas horas de viagem o buzinar é constante, depois apenas solta um estridente som de apito ao passar por um conjunto de casas e quando se cruza em sentido inverso com o barco da companhia. Adormecemos, não sem antes sentirmos mais um toque entre embarcações e desta vez a pancada é mais forte. Chegamos de manhã cedo ao destino, após mais de nove horas de viagem a navegar no Grande Canal. Às 5:30, o barco aportou junto à Ponte do Precioso Cinto (Baodai Qiao, 宝带桥) na parte Sudeste de Suzhou, no distrito de Wuzhong, mas apenas dele saímos às seis e meia. Dois autocarros esperam na Rua Changqiao (长桥街道) para levar os passageiros até ao centro da cidade, a seis quilómetros. Baodai Qiao é considerada uma das pontes mais representativas da China e tem esse nome pois foi construída entre 816 e 819 à custa da venda do valioso cinto de Wang Zhongshu, governador de Suzhou na dinastia Tang. Com uma extensão de 317 metros e 4,1 metros de largura, conta 53 arcos, tendo três aberturas é suficiente para permitir aos barcos continuar pelo Grande Canal e também atravessar o Rio Daidai e o lago Tantai. O resto da ponte faz de cais, ficando ao nível das embarcações que aí acostavam e facilmente descarregavam as mercadorias.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA busca de Pan Gongshou por um jardim numa encosta Xie Lingyun (385-433), o irreverente poeta viandante que quis conhecer rios e montanhas ignorados, participou num grande banquete no dia 24 de Outubro de 418, na festa Chongyang jie, do «Duplo nove», em que era homenageado Kong Jing (347-422) um antigo conselheiro e apoiante de Liu Yu (363-422), que seria o fundador da dinastia Liu Song. Nesse banquete que decorreu em Xima tai, o «Terraço para observar corridas de cavalos» em Pengcheng (Xuzhou, Jiangsu), Xie Lingyun foi chamado a compôr um poema «para inspirar confiança e segurança», numa altura em que o homenageado decidira retirar-se do serviço público e quando os partidários de Liu Yu ainda estavam em pleno processo de combate e consolidação do poder. Logo no início, o poema assinala os dois movimentos contrarios: «No último mês do Outono os ventos na fronteira Norte são ríspidos e cruéis, Os cisnes migrantes voam contra as investidas do frio intenso e da neve.» Depois, descreve: «O peregrino, de regresso, segue o curso do rio até ao limiar do oceano, Faz uma vénia, tirando o chapéu, e sai das fileiras da corte. Abrandando os remos o barco é amarrado nos serpenteantes baixios, Olhando para a sombra do sol, ele aguarda que a música anuncie o fim do banquete, As correntes do rio correndo adiante com rapidez.» Mas o poeta não se exime, olhando o exemplo, colocando-se em questão: «Como posso eu apenas contemplar os nossos caminhos separando-se? É o querido objectivo, para meu desgosto, que eu agora vou contra. Aquela maravilhosa via do jardim numa encosta da montanha. Ah, como lamento a minha frágil virtude e vãs demandas.» Mas a busca prosseguiria até ao fim. Na dinastia Qing um outro poeta e pintor que leu o poema, percebeu a contraditória vontade como se estivera presente no famoso banquete. Pan Gongshou (1741-1794), numa folha de um álbum de pinturas e poemas de c. 1790 (Universidade de Alberta), recordou Xie Lingyun e o poeta Pan Yue (247-300) com quem partilhava o nome de família e que de modo memorável chorou a morte da esposa: «Vestígios daquele banquete e das músicas do tempo de Xie Lingyun, o duque Kangle, começam a extinguir-se,/ O poeta Pan Yue sentiu o Outono encher-lhe o peito de tantas lágrimas./ Retirado, em sonhos, não alcançarei o meu desejo, resta-me apenas sentar-me sozinho,/ Mas sentado sob as nespereiras florescendo no início do Inverno, como poderei manter tais sentimentos?» O pintor de Dantu (Zhenjiang, Jiangsu) procuraria o seu «jardim numa encosta de montanha», entre pinturas que refez como se nelas quisesse habitar. Obras distantes no tempo, como os rolos verticais que se encontram no Museu de Arte de Harvard, inspiradas por obras de outros pintores como o monge do século X, Juran ou a notável Ma Shouzhen (1548-1604). Seguindo com eles no desassossego de percorrer ignorados rios e montanhas.
Hoje Macau Via do MeioLin Huiying e a nova poesia Texto e tradução de António Izidro O descontentamento pelo clima político e social do país sob o domínio estrangeiro agravou-se a partir de 1915. Exigia-se, por um lado, resposta mais contundente e eficaz das autoridades governativas, enquanto circulava no seio dos intelectuais e nas universidades a necessidade de um novo conceito de cultura e novos pensamentos para a nação fragmentada. Era necessário romper as obsoletas mentes clássicas. Em França decorria a Conferência de Paz de Versalhes de 1919 que, entre outras deliberações, propor-se-á a manutenção da ocupação japonesa em territórios chineses, não obstante os protestos, em vão, da delegação de Pequim. A notícia da derrota da diplomacia chinesa chegou à capital no dia 2 de Maio e no dia seguinte as universidades reuniram-se para tomar uma acção – a manifestação no dia 4 Maio. Cerca de três mil estudantes concentraram-se na Praça de Tiananmen em protesto contra o regime, contra a cultura, a tradição, vistos como responsáveis pelo desastre nacional de uma nação amarrada por filosofias e conceitos obsoletos. Em pouco tempo, a manifestação estender-se-ia por quase todo o país. Empresários, operários e camponeses uniram-se em greve, seguiram-se as repressões, prisões de estudantes, que agravaram ainda mais o caos. Sem outros meios para travar o descontentamento nacional, o governo republicano caiu no dia 13 de Junho. Terminaram as repressões, os estudantes foram libertados e detidos os traidores da pátria. Uma nova indicação foi dada à delegação chinesa em Paris: “Não se assina o tratado de Versalhes.” Um movimento estudantil a acordar a nação inteira e a provocar a queda de um governo, bem ao jeito do ditado popular da autoria de Mao Zedong que diz que para incendiar um bosque basta uma centelha. A história da China é repleta de manifestações, motins e outros fenómenos de insurreição, cujos desfechos são lições que reis, imperadores e governantes não prescindem. O movimento estudantil de 4 de Maio de 1919 alcançou os objectivos, não porém com efeitos imediatos, mas permitiu lançar o conceito de nova cultura, da limpeza semântica. A semente começou a germinar ao nível das liberdades, dos direitos da mulher na educação, nas artes, na literatura. Defendia-se o abandono da escrita clássica, dos velhos conceitos morais e filosóficos de inspiração confuciana que impediram a monarquia de sacudir o jugo estrangeiro, enfim, a criação de um novo ambiente social, cultural e político e uma nova forma de poetizar. Foi neste clima renovado que Lin Huiying (1904-1955), escritora, a primeira mulher arquitecta chinesa, foi estudar belas-artes nos Estados Unidos da América, destacando-se como professional na restauração e conservação do património cultural chinês. Contrastando o seu reconhecido mérito em projectos, designs e trabalhos de arte, como escritora, Lin Huiying, autora de uma vasta obra literária, revela o lado lírico da sua personalidade, as emoções, e sobretudo o profundo enamoramento pelos sentimentos, pela saudade. Em «Não desfaças» (escrito em chinês moderno) publicado na colectânea de 1936, depreende-se que há por parte da autora a conservação de uma realidade que não está mais presente, mas por ela perseguida; a interrupção, mas para ela atemporal, do afecto pelo amigo que faleceu, o sujeito passivo neste discurso directo, a quem pede para não desfazer o afecto e a amizade que uniram os dois. Afinal, tudo continua igual, a fluir, no mesmo luar, nas mesmas estrelas, no mesmo eco que soa no vale da montanha. 别丢掉 这一把过往的热情 现在流水似的 轻轻 在幽冷的山泉底 在黑夜,在松林 叹息似的渺茫 你仍要保存着那真 一样是明月 一样是隔山灯火 满天的星, 只有人不见 梦似的挂起 你向黑夜要回 那一句话 你仍得相信 山谷中留着 有那回音. Lin Huiying Não desfaças Aquele afecto ardente do pretérito que de mansinho flui como água no remanso da fonte sob a montanha no escuro da noite, no pinheiral, por entre suspiros indistintos. Conserva aquela mesma realidade tua, na lua do mesmo luar, na mesma intangível chama, nas estrelas onde pendurámos sonhos, cobrindo o céu. Juntos não as veremos de novo. Assomes na escuridão da noite por creres que as mesmas palavras se conservam naquele mesmo eco e ressoam naquele mesmo vale, daquela mesma montanha. «Tu és o abril na terra» é uma tentativa de esculpir a imagem da filha recém-nascida, com elementos audíveis e visíveis da natureza, concretos e abstractos: brisa, névoa, solenidade, inocência, estrelas, flores… num cenário conjugado com a época de abril. 你是人間的四月天 我説 你是人間的四月天 笑響點亮了四面風 輕靈在春的光豔中交舞着變 你是四月早天裏的雲煙 黃昏吹着風的軟, 星子在無意中閃, 細雨點灑在花前 那輕,那娉婷, 你是 鮮妍 百花的冠冕 你戴着 你是天真,莊嚴你是夜夜的月圓 雪化後那片鵝黃, 你像 新鮮初放芽的綠 你是, 柔嫩喜悦,水光浮動着你夢期待中白蓮 你是一樹一樹的花開 是燕在梁間呢喃你是愛,是暖 是希望 你是人間的四月天. Tu és o Abril na terra Digo, tu és Abril na terra, sorriso luminoso dos quatro ventos, a bailarina em metamorfose, leve no brilho da primavera. Tu és a névoa das manhãs de abril, a brisa suave do crepúsculo. As estrelas faíscam ao acaso, a chuva borrifa gotas diante das flores. Levezinha, elegante formosura, és tu corola de branca flor cingida à cabeça. Tu és inocência, solenidade, tu és a lua cheia das noites da amarelada neve derretida. Tu és a frescura verde dos rebentos a tenra alegria, o lótus branco do teu sonho, flutuando em águas luzidias. Tu és a flor desabrochando em cada árvore o grinfar das andorinhas por entre as vigas. Tu és amor, és brandura, és a esperança. Tu és o Abril na terra. 笑 笑的是她的眼睛,口唇 和唇邊渾圓的漩渦。 艷麗如同露珠 朵朵的笑向 貝齒的閃光里躲。 那是笑 神的笑,美的笑 水的映影,風的輕歌 笑的是她惺松的鬈髮 散亂的挨著她耳朵 輕軟如同花影 痒痒的甜蜜 湧進了你的心窩 那是笑 詩的笑,畫的笑 雲的留痕,浪的柔波 Sorriso (exaltação do sorriso feminino) São seus olhos, são seus lábios, rodopio de remoinhos junto aos beiços a competir com a beleza do orvalho. No brilho de cada dente escondido brota a flor de um sorriso, aquele sorriso, sorriso divino e belo, reflectido nas águas e cantado pelos ventos. Sorrisos são cachos adormecidos do seu cabelo esparsos, aconchegados aos ouvidos, leves como sombras floridas prurido açucarado invadindo os corações É aquele sorriso, sorriso poético, pitoresco, como vestígios de nuvens esvaídas, como mansas ondas encristadas. 深夜裏聽到樂聲 這一定又是你的手指 輕弹着 在這深夜,稠密的悲思。 我不禁颊邊泛上了红 静聽着 這深夜里弦子的生動。 一聲聽從我心底穿過 忒凄凉 我懂得,但我怎能應和? 生命早描定她的式楊 太薄弱 是人們的美丽的想象。 除非在梦里有這麼一天 你和我 同來攀動那根希望的弦。 Escuto melodia em alta noite Tenho a certeza: são os teus dedos uma vez mais, dedilhando suave nessa noite imersa em densa mágoa. Sem me poder conter, o rubor sobe-me pelas faces Serenamente, escuto as cordas vibrando noite adentro. Os sons trespassam a minha alma, tão desolada. Entendi, mas como hei-de corresponder? O destino já me entregou a sina, tão frágil. Como é belo imaginar esse dia que só o sonho pode trazer tu e eu trepando por uma corda de esperança
Hoje Macau Via do MeioJardins da China (5) – O recinto das flores de ameixeira (Meihuashu ji) Por Zhong Xing Zhong Xing (1572-1624), também conhecido por Zhong Xinghui, foi um letrado e historiador chinês que viveu durante a dinastia MIng. Quando se chega aos Três Wu (três cursos de água que rodeiam Suzhou), pergunta-se se ainda se estamos num rio: do barco ou da margem, só se vêem jardins. Jardins? Sim, jardins sobre a água! Sobre a água, na água, à esquerda, à direita, em terraços elevados, em habitações escondidas, quiosques arejados, galerias sinuosas, cais horizontais, rochas verticais, flores no chão e pássaros no ar, caminhos em todas as direcções, tudo em jardins, nada mais que jardins. Por que precisa toda a gente de um jardim? Porque o homem é tal que, se estiver sempre no meio de jardins, já não se apercebe disso, e tem de ter o seu próprio jardim para saber que está num jardim. Quando navego nos Três Wu, encontro-me sempre num jardim, sem poder conhecer todos os jardins desse jardim. Em Liangxi (Wuxi) é o Vale do Velho Estúpido de Zou, em Gusu (Suzhou) é o Político Desastrado de Xu, a Paz Celestial de Fan, a Montanha Fria de Zhao: cada pessoa que se preze tem o seu próprio jardim. Mas os jardins não estão apenas na água, ou podem estar na água e continuar a ser diferentes, como é o caso do Recinto das Ameixeiras em Flor do meu amigo Xu Xuanyou. Fica em Fuli, onde Lu Guimeng da dinastia Tang viveu (no século IX). Se é diferente, é porque se chega lá através do rio Wusong, o único rio dos Três Wus que merece esse nome. Vim ao Recinto com Lin Maozhi no inverno do ano jiwei da era Wanli (1619) e prometi escrever uma prosa sobre este jardim, mas não cumpri a minha promessa até agora, no ano xinyou da era Tianqi (1621). Vejo-o muitas vezes na minha mente, mas não consigo lembrar-me de todas as suas voltas e reviravoltas, como o pintor de bambus que projecta mentalmente toda a imagem sem ser capaz de contar os nós do caule. Só um poema que escrevi sobre este jardim é que o traz de volta à memória. A água dos Três Wu, que corre mais livremente em Fuli, torna-se invisível a poucos passos do Recinto, para reaparecer no interior, onde tem de entrar por um canal subterrâneo. Abra uma porta e estará no mesmo nível que o Pavilhão das Líchias e dos Crisântemos1, depois suba uma escada sinuosa até ao Pavilhão do Reflexo. Não se vê apenas a água lá em baixo: o que se avista do quiosque, o que a galeria acompanha, o que a ponte atravessa, onde as pedras sobem e descem, onde os salgueiros e os bambus se reflectem, é água. O meu poema diz: “Fecho a porta e domino uma corrente fria, levanto a mão e encontro uma paisagem”. Se nos virarmos nos degraus, podemos ver uma sucessão de picos, que são rochas colocadas arrastadas na parte ocidental do jardim. Se deixarmos o nosso olhar vaguear ao longe, veremos água rodeada por uma galeria que, por sua vez, está rodeada de um muro. A água, verdejante com árvores e plantas aquáticas, reflecte-se nas nossas roupas. Do outro lado do muro há um outro pavilhão, solitário, que julgas estar ao teu alcance, mas não sabes como lá chegar, porque o caminho é traçado e depois desaparece. Como diz o meu poema: “Avançamos e paramos, os desvios têm os seus mistérios.” Quando se desce do pavilhão, é preciso ter cuidado com os pés para não molhar a roupa; chega-se à entrada da Gruta dos Perfumes, no fim da qual se atravessa uma piscina numa ponte de pedra. Depois de passar a Gruta do Pequeno Mont You, páre no Pavilhão da Hospitalidade, perto do Banco do Murmúrio do Brocado, uma rocha musgosa corroída pela água. A galeria do outro lado da água é ladeada por bambus; o ruído e o brilho da água misturam-se com o canto do vento e o jogo do sol nos bambus, iluminando-os e encobrindo-os alternadamente, como evoca o poema: “Galeria imóvel entre os bambus, sons e luzes que se movem ao perto e ao longe.” Virando para norte, chega-se a um quiosque triangular no coração da torrente, onde o ar é tão fresco que parece de outono ou de inverno. Depois, siga por um beco entre sebes e, de repente, verá um Pavilhão do Repouso Verde, com vista para o Pavilhão do Reflexo e para as estranhas pedras que foram respeitosamente chamadas Elã Divino. A galeria rodeada de água começa aqui; o seu nome, Galeria das Sombras Fluidas, foi desenhada por Chen Meigong. Percorra depois a balaustrada verde e rubra até ao Pavilhão Azul Celeste. Algumas dezenas de passos mais à frente, virando para sul, a ermida dedicada a Weimoji2 marca o centro da galeria. Vinte ou trinta passos mais à frente, chega-se à Ponte da Lua sobre as Ondas, com um quiosque para a contemplar. O vento anima a superfície do lago, um espelho onde as aves do ar se misturam com os peixes da água. A ponte conduz à Sala do Ócio Merecido, a mais bela sala do jardim, onde se podem sentar cem pessoas no terraço de pedra onde se realizam concertos e festas. A noroeste, encontra-se um pequeno templo dedicado a Buda. Do Pavilhão do Reflexo à Sala do Ócio Merecido, passa-se de um retiro escondido para um espaço aberto, e do salão para o templo regressa-se ao silêncio, como se deve. O templo fica junto à água, que se atravessa no Vau Flutuante Vermelho. A norte, a Torre da Biblioteca e, um pouco mais adiante, o Santuário, lugar de repouso do Mestre do Jardim, ao qual só são admitidos convidados íntimos. Na ribeira a leste da Sala do Ócio Merecido encontra-se um quiosque denominado Lavadouro dos Tinteiros. Uma porta cortada na parede dá acesso ao Pavilhão do Pura Água Profunda, que é aquele que se vê ao longe sem saber como lá chegar. Deixe para trás todas as vistas requintadas, que se sucedem no interior, mas ao resignar-se por um momento, descobre-se uma nova paisagem, mais clara e mais ampla. Fora do pavilhão, o bambu é lavado pela névoa e pela geada, as flores e os frutos são coloridos por nuvens iridescentes, os lagos são purificados pelas estrelas, e há uma suavidade e um brilho primaveris, mesmo no tempo frio e sombrio. O meu poema diz: “Eu costumava evitar o outono e o inverno para ver os jardins, mas se eles mantiverem a sua beleza, não importa a estação do ano”. Apesar de só lá ter estado uma vez, o meu coração e os meus olhos falam-me de todas as suas estações e gostaria de lhe chamar o Jardim das Flores Eternas. Mas, com as suas extensões de água límpida, evoca sobretudo o outono, e termina com uma Ermida do Outono em Movimento, porque o outono é o culminar das outras estações. Como já disse, a água dos Três Wu não é mais do que jardins, mas nós só vemos as cidades e as aldeias e esquecemo-nos dos jardins. O jardim de Xuanyou é todo água, mas só se vêem os quiosques e os pavilhões e esquecemo-nos da água. Água? Jardim? É difícil de dizer! O homem de lazer olha para um sítio com tranquilidade, o homem sábio é exímio no seu paisagismo, o homem superior retira dele a quintessência. Cada um vê as coisas à sua maneira. Como diz o meu poema: “Vemos o ócio nestas pontes e nestes quiosques? Podes ser ocioso e competente, eles não estão lá por acaso.” Tradução de Miguel Lenoir 1. Alusão literária (a Lu Guimeng, que aí viveu, e a Su Shi) a uma vida frugal e feliz. 2. Weimoji, um eremita que se diz ter tido uma conversa com o Buda.
José Simões Morais Via do MeioHangzhou e o Grande Canal O Rio Qiantang (钱塘江), o primeiro dos cinco rios que abastece de água o Grande Canal, tem junto à sua foz Hangzhou (杭州). Durante 1400 anos a cidade foi o terminal dessa vasta via aquática e é um dos centros para onde confluem e se reúnem, ou intersectam vários canais dos seus diferentes percursos. De Hangzhou parte o Grande Canal (Da Yunhe, 大运河) para Norte e em Zhenjiang atravessa o Changjiang entrando em Yangzhou, de onde por duas diferentes vias se pode navegar até Wuxi, aproveitando as águas do lago Tai, ou no percurso até Huai’an, a antiga secção Leste do Tongji (Tongji qu, 通济渠), usando o Rio Huai (Huaihe) por o antigo canal Hangou, de Shanyang (山阳, actual Huai’an) a Jiangdu (江都, hoje Yangzhou). Era o canal Shanyang [Shanyang du] dragado na dinastia Qin com 85 km de comprimento, a começar no Changjiang (Rio Yangzi) ia até Suzhou, de onde já no Período Primavera-Outono havia ligação a Wuxi. Yangdi, Imperador da dinastia Sui, em 605 mandou alargá-lo e estender o comprimento desse canal de Shanyang (actual Huai’an) até Yangzijin (扬子津), parte Sul da cidade de Jiangdu (actual Yangzhou). O canal Jiangnan yunhe (江南运河) vai para Sul até ao Rio Qiantang (Qiantangjiang) chegando a Hangzhou e para Leste da cidade, em Xixing, distrito de Binjiang, começa o Canal Zhedong (浙东运河, Zhejiang Leste ou Hangyong) com 240 km, a percorrer o Norte da província de Zhejiang, passa por Shaoxing (绍兴) e conjugando-se ao Rio Yong chega a Ningbo (宁波), onde no distrito de Zhenhai, termina o Canal. Já a Norte, as águas do Rio Qiantang vão desaguar no Mar da China do Leste. A cidade de Ningbo, a Nordeste da província de Zhejiang, é oficialmente considerada desde 2013 o término Sul do Grande Canal. Por etapas descontínuas, nas visitas a Zhejiang (浙江) percorremos todos esses cursos em diferentes alturas, repetindo-os ao visitar a capital da província Hangzhou, Shaoxing e Ningbo, ou para Oeste, na senda da seda, passando por Huzhou (湖州), Hanshan (含山), Wuxing (吴兴), no eixo Hangzhou-Huzhou, ou na via Shanghai-Hangzhou, encontramos na província de Jiangsu, Shengze [(盛泽), no distrito de Wujiang, pertencente a Suzhou e em conjunto com esta, a par de Hangzhou e Huzhou, foi uma das quatro cidades da seda], Tongxiang (桐乡) e a quinze quilómetros Wuzhen (乌镇), visitada era ainda uma antiga pequena aldeia com vida ao longo de canais ligados ao Grande Canal, a meio caminho entre Shanghai (Xangai) e Hangzhou. Nestas viagens, poucas vezes com oportunidade de as realizar por água e daí percorridas em autocarro, acompanhando em paralelo o Grande Canal, grande parte dos trajectos e era ver os barcos passarem lado a lado com a estrada, aparecendo ao mesmo nível desta. ONDAS NO RIO QIANTANG Desde há dois mil anos registado na literatura e poesia o fenómeno ocorre próximo do Festival do “Meio do Outono”, entre o 15.º dia do oitavo mês lunar, sendo o clímax no 18.º dia. Ondas de dois metros e meio penetram no Rio Qiantang e chegam à baía de Hangzhou, atraindo milhares de espectadores todos os anos. Esta extraordinária ocorrência deve-se a um conjunto de factores como a gravitação de corpos celestes, a força centrífuga produzida por a rotação da Terra e a forma de gargalo da baía de Hangzhou, sendo o melhor local para observar no concelho de Haining, em Haiyan e Xiaoshan. Hangzhou, com o nome de Lin’an, foi desde 1138 a capital da dinastia Song do Sul (1127-1279) devido à tribo tártara Jurchen (conhecida mais tarde por manchu, proveniente do Nordeste da China), ter em 1126 conquistado aos Song do Norte a capital Kaifeng. Levaram da corte quase três mil presos para Harbin [onde desde 1115 como dinastia Jin (1115-1234) os Jurchen tinham a capital Imperial em Huining (Harbin) e edificaram Zhongdu (Beijing)], e no inverno de 1141 os Song cederam aos Jin um vasto território, tornando-se como vassalos, pois pagavam um tributo anual de prata e seda. O restante da corte da dinastia Song retirou-se para Sul, fugindo das investidas dos Jin, e instalou-se em Nanjing (actual Shangqiu, província de Henan) onde Zhao Huan foi feito Imperador Qin Zong (1125-1127). O seu irmão, Zhao Guo, no ano de 1127 proclamou-se Imperador com o nome de Gao Zong e deu início à dinastia Song do Sul (1127-1279), mudando em 1138 a capital para a beira-mar, na cidade de Hangzhou. Era já em 907 chamada Lin‘an, quando Qian Liu fundou o reino Wuyue e aí fez a capital, governando Zhejiang, parte de Jiangsu e Fujian. Como a China do Norte se encontrava em guerra, as populações aí se foram refugiando pois Qian Liu pacificou o reino, expandindo-se este economicamente. O reino Wuyue (907-979) durou 72 anos, com três dinastias e cinco soberanos e só foi conquistado em 978 por a dinastia Song do Norte (960-1127) cuja capital era em Kaifeng. A História dos Dez Reinos ligados com as Cinco Dinastias (907-960) refere ainda o reino Wu (902-937), situado onde se encontram as províncias de Jiangsu, Anhui, Jiangxi e Hubei, com a capital em Yangzhou e Nanjing, durou 35 anos e teve quatro soberanos. Foi conquistado por o reino Tang do Sul (923-936) aos Liang Tardio (907-923), a dinastia que sucedeu à Tang (618-907). Shi Jingtang, o fundador da dinastia Jin Tardia (936-946) conseguiu o apoio dos Liao (916-1125) [tribo mongol dos Chitan na China] e conquistou o poder ao reino Tang do Sul, voltando a mudar a capital para Kaifeng. Só a dinastia Tang Tardio (923-936) teve Dong Du (Luoyang) como capital, pois nas restantes quatro pertencentes às Cinco Dinastias (Wu Dai, 五代, 907-960) era em Kaifeng. Já a vitória sobre os Han Tardio (947-950) de Zhao Kuangyin, chefe da dinastia Zhou Tardio (951-960), levou os seus oficiais a colocá-lo no lugar de Imperador com o nome de Taizu, fundando em 960 a dinastia Song, que durou até 1279. De 963 a 979 os Song conquistaram um a um os nove Estados do Sul e unificaram a China. ORIGENS DE HANGZHOU Próximo do mar, o local onde hoje está construída a cidade de Hangzhou encontrava-se originariamente coberto de água e na maré baixa, as águas do Rio Qiantang deixavam ver baías criadas pela areia. No tempo da dinastia Xia (2070-1600 a.n.E.) a este lugar foi dado o nome de Yuhang, por aí ter Yu, o primeiro rei dessa dinastia, chegado de barco (=hang). Antes da dinastia Zhou pertencia à área de Yangzhou (uma das nove regiões administrativas da então China). Durante a dinastia Qin (221-206 a.n.E.) começaram a construir-se casas no sopé do monte Lingyin, a Noroeste do lago e com o assoreamento, esse núcleo original foi-se expandindo para os vales a Leste e a Norte. Em 326, reinava a dinastia Jin de Leste quando foi construído o templo do Recolhimento das Almas, Lingyin si, sendo um dos dez mais importantes templos de Budismo Chan na China. Como cidade, Yuhang, o antigo nome de Hangzhou, só começou a ser construída em 406, entre as margens do lago Oeste já formado, e daí ao rio. Situada num vale ao longo do Qiantangjiang, com 410 km de zona fértil de plantações de arroz (com três colheitas ao ano), salinas, arbustos de chá pelas colinas envolventes, fábricas produtoras de seda, flores e pássaros de uma vegetação temperada. Nessa exuberância de produtos, não era de estranhar a capital da província de Zhejiang, Hangzhou, pela abundância ser de onde a grande parte dos impostos, normalmente pagos em géneros, partiam como tributos rumo às cidades Imperiais. O centro de Hangzhou gira em torno do imenso lago, antigamente denominado Búfalo Dourado, formado a partir de uma inicial lagoa, alimentada pelas águas do Rio Qiantang. Conta a lenda viver o búfalo dourado deitado no fundo do lago e sempre que começava a diminuir o nível das águas, o búfalo emergia e voltava a enchê-lo. A história reporta-se à dinastia Han (206 a.n.E.-220), quando oficiais locais, para agradar ao Imperador, pediram à população para drenar as águas do lago. Seco, logo o búfalo apareceu e os oficiais correram para o apanhar. Furioso, o búfalo produziu água suficiente num só momento que encheu o lago e desde então nunca mais secou. Hoje lá está o búfalo dourado numa estátua dentro de água a recordar as origens desta cidade. Durante a dinastia Sui, Hangzhou foi muralhada quando Yangdi, o segundo imperador mandou rasgar o Grande Canal. Na dinastia Tang, conjuntamente com Yangzhou e Guangzhou, Hangzhou era um dos três portos de Trato, tanto com ligações marítimas, como fluviais. Os viadutos vieram modernizar Hangzhou, que num momento se encheu de automóveis e pessoas, mas tapam, escondendo o que fica ao nível de solo. Voando de carro por um viaduto em primeiro andar somos dirigidos por a zona Norte da cidade, ficando assim sem visão dos muitos canais que atravessam a cidade. Só mais tarde ao caminhar pelas ruas, as pontes em arco chamam a atenção, agora desenquadradas devido à diminuição do espaço a envolver o canal por necessidade de aumentar as vias rodoviárias. Na parte Nordeste do lago, a planta da cidade feita em relevo na estrutura do passeio, permite perceber a rede de canais, os limites das muralhas, a área ocupada pelo vasto lago e em visão aérea, planar por séculos da História de Hangzhou. Após passear nas margens do Lago Oeste (Xihu, 西湖), dirigimo-nos para a praça Wulin e caminhando por o antigo centro, duas antigas pontes deslumbram ao longo do trajecto iniciado na estação rodoviária do Norte. Chegados à praça central de Wulin, do cais terminal do Grande Canal queremos embarcar para ir visitar o Museu do Grande Canal. Nem barco de carreira para aí nos levar [existente dois anos depois], pois esse era o meio para navegar num primeiro contacto por esta enorme via de água. Sem outra possibilidade partimos de táxi. Chegados à praça referenciada como o local do museu, uma antiga ponte chama a atenção, toda de pedra com três arcos, construída em 1631, é a ponte Gongzhen a salvar esta viagem, pois o museu está fechado por três dias, como o porteiro nos indica. Mais tarde ficamos a saber faltarem três dias para o museu ser inaugurado, quando em 2007, seis meses após viajar de barco por o Grande Canal, aí voltamos, agora num turístico barco de carreira até à nova zona de museus de Hangzhou.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO Espelho Incerto Dos Alegres Encontros no Vaso Celeste Gong Kai (1222-1307), um antigo funcionário que no final da dinastia Song se mudou para os arredores da próspera Hangzhou aí vivendo pobremente dedicado à pintura, seria reconhecido pela nobreza do seu carácter íntegro e selvagem que se reflectia no aspecto de algumas das figuras nas suas pinturas, como o cortejo de Zhong Kui, o caçador de demónios ou shouma, o «cavalo magro». No futuro, dado o apreço que as suas pinturas alcançariam, outros se apropriariam do seu estilo ou atribuiriam o seu nome como uma marca de distinção, a pinturas alheias que assim se valorizavam. É possível que esse seja o caso de um longo rolo horizontal de pintura a tinta sobre papel que hoje se encontra cortado em três partes e em dois museus. No Museu de Arte da Universidade de Princeton, a pintura Hutian jule tu, «Encontro Feliz no vaso celestial» (29,7 x 298 cm) é atribuída ao pintor profissional de Fujian, Zheng Wenlin (activo entre 1522-1566). No Metmuseum, uma parte é atribuída a Gong Zuiyen (Gong Kai, 29,8 x 431,8 cm) e outra sem autor definido mas no estilo de Gong Kai (29,2 x 374,4 cm). No final do rolo outorgado a Gong Kai onde se observam diversas personagens entregues a variadas actividades ao longo de um rio numa paisagem com dragões, pêssegos da imortalidade, grous e cogumelos lingzhi, há um extenso comentário informado sobre o que foi observado que diz: «O grande jardim de Benglai shan ‘A montanha do eterno devir’, é muito longe deste Mundo, para além do grande rio que o separa do monte, tudo é muito diferente (…) Como não há estações, não se distingue a Primavera do Verão nem o Outono do Inverno (…) Estranhas pessoas aladas reúnem-se ali para estudar as verdades da filosofia daoísta, suas faces são de velhos sérios; não conhecem as preocupações mundanas nem se ocupam do princípio ou do fim do Mundo (…) Alguns divertem-se dançando ou fazendo música no qin, outros escrevendo, pintando ou jogando weiqi (…)» Zheng Wenlin tem a seu favor para ser o autor do rolo o facto de tanto se ter dedicado à figuração, de um modo desregrado e selvagem, desses obscuros seres em trânsito entre dois mundos, que foi conhecido como o «imortal louco». Em muitas outras pinturas, evocando tantos selectos encontros, mostrou imortais usufruindo das gratas actividades a que se dedicavam os letrados, como num espelho impreciso. E aqui invocando hutian, o «vaso celeste», tantos sentidos; como Fanghu, o «pote quadrado», a ilha dos imortais ou a conhecida história do folclore que fala de um lenhador que, regressando a casa no fim de um dia de trabalho com o machado às costas, encontrou um belo pote de latão. Resolveu levá-lo com o machado lá dentro e ao chegar a casa, a esposa reparou que lá dentro estavam dois machados. Em seguida, repetindo o processo, os dois repararam que era possível fazer dois de tudo.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO retrato de Li Xiangjun com leque redondo na mão Hou Fangyu (1618-1655) passou a sua juventude em Pequim, mas em 1639 foi fazer os exames imperiais a Nanquim e, tendo falhado devido ao modo crítico como se expressou no ensaio da prova, retornou ao Norte num desatinado vaivém entre o Sul e o Norte que acompanhou o acelerado crepúsculo da dinastia Ming, envolta em corrupção e laxismo. Frequentando o sofisticado mundo literário da época, Hou Fangyu encontrou um dia em Nanquim, na margem do rio Qinhuai, numa casa chamada Meixiang Lou, onde se encontravam literatos com as chamadas geji, cantoras, dançarinas dedicadas à música, uma fascinante rapariga ainda com dezasseis anos e de múltiplos talentos, conhecida como Li Xiangjun, que no futuro seria associada às Qinhuai bayan, as «Oito belezas de Qinhuai» e entre eles nasceria uma relação que, tal como a dinastia, estava destinada ao fracasso. Ela vinha de uma família de letrados em decadência vítima, como tantos outros, do despótico eunuco Wei Zhongxian (1588-1627). Logo no início do casamento Hou Fangyu ofereceu à sua noiva um objecto que, como um dispositivo independente da vontade, seria capaz de desencadear a memória nostálgica de momentos perdidos e felizes do passado. Nesse objecto, um tuanshan, um leque redondo rígido emoldurando um círculo de seda com um cabo de marfim, ligado à noção de união, Hou escreveu um poema para ela. No meio da turbulência dos dias, Hou Fangyu foi forçado a ausentar-se e a noiva obrigada a viver com outro homem. Algo a que ela se negou, tentando o suicídio e no processo manchando de sangue o seu querido leque. O pintor Yang Yuncong (1597-1645), em vista do sucedido, contornou com um pincel as manchas de sangue, delas fazendo flores de pessegueiro. O leque e essas flores cor-de-rosa e avermelhadas que desabrocham antes das folhas, e por um período breve, estão no título da peça musical Taohua shan, escrita por Kong Shangren (1646-1718), que eternizaria o intranquilo tempo da transição no fim dos Ming, figurado na fragilidade de uma relação de emoções exacerbadas. Cui He (1800-1850), um pintor dos fins da dinastia Qing, recordaria a inspiradora Li Xiangjun num retrato imaginado, debruçada sobre uma janela circular com as cortinas levantadas (rolo vertical, tinta e cor sobre papel, 52,4 x 124,5 cm, no Metmuseum). Atrás dela é possível observar no seu gineceu; um espelho também redondo, um livro sobre a mesa, roupas sobre uma cadeira. Em redor da janela, por cima, um salgueiro, alusão à saudade em baixo, ramos de flores brancas possivelmente meihua, traduzidas habitualmente como flores de ameixieira, que também podem ser designadas como li, o seu nome de família. Só ultrapassa o círculo da janela, uma parte da manga do vestido e uma parte do leque redondo na sua mão, despontando das suas vestes pintado com o ramo de pessegueiro que fora manchas de sangue.
Hoje Macau Via do MeioIdentidade, Periferia e Globalização: Duas Narrativas de Macau (continuação) Por Fernanda Gil Costa, ex-directora do departamento de português da Universidade de Macau Ao ler-se na “Advertência ao leitor” de Arquivo das Confissões – Bernardo Vasques e a Inveja (publicado em Macau em 2016) que: “A história que se segue não pretende rigor histórico ou justeza, na descrição dos factos, hábitos ou comportamentos de antanho. As datas referidas e os intervenientes querem-se, obviamente, tão ficcionais quanto a realidade” – é expectável entender-se, apesar de tudo, que a encenação histórica das figuras, dos discursos e dos acontecimentos mantêm uma indisfarçável ligação com o presente do leitor português contemporâneo que, por isso, tenderá a interrogar-se sobre as reais condições do alegado passado da efabulação e sobre o sentido do cenário montado sobre factos históricos conhecidos. Neste sentido o leitor modelo de Carlos Morais José é não só o que frequenta o espaço público da cidade de Macau mas também o leitor habitual da literatura portuguesa. A viagem, o trânsito entre mundos é o espaço da narrativa dentro e fora do relato do narrador. Todas as personagens estão em viagem – viagem por mar, deambulação por impérios e cantos remotos do mundo de quinhentos. Por isso, encontrar a relação com e história e a memória de Macau desde o seu achamento e estabelecimento como feitoria entre ocidente e oriente até ao presente pós-colonial, depois das negociações que conduziram à actual administração chinesa do território, é uma necessidade da leitura. A orientação do leitor é difícil, pois só a viagem que decorre no presente da narrativa (o enquadramento – a viagem do padre protestante inglês) está escorada por eventos com substância histórica; as outras duas, a do padre irlandês possuidor do documento que é foco do romance, a confissão de Bernardo Vasques em Macau e a leitura da mesma são relatos escritos/lidos por terceiros, pertencendo, portanto, ao tempo suposto-passado da intriga. A variedade e arbitrariedade das referências, citações e ecos da tradição literária filiam-se claramente numa tradição textual pós-moderna especialmente próxima de muita narrativa contemporânea, especialmente de carácter parodístico. A viagem do padre protestante decorre entre Singapura e Macau (simbolicamente entre o império inglês e o império português); este aporta à chamada Cidade do Santo Nome de Deus em vésperas do incêndio do Colégio de S. Paulo, a primeira universidade católica da Ásia. Tal viagem está, por isso, carregada de sentido simbólico e iniciático já que o protestante vai encontrar em Macau os jesuítas acossados pelos ventos de fim de ciclo que o iminente desaparecimento do colégio vem sublinhar de forma inevitável. Ainda mais importante é o facto de a viagem entre Singapura e Macau ver falhar a missão do protestante, já que apesar dos esforços que aí empreende não encontra prova que confirme a existência do Arquivo das Confissões dos Jesuítas devido quer ao silêncio das fontes contactadas quer ao incêndio do Colégio de S. Paulo, cujo desejado recheio (onde supostamente as provas se encontrariam) vê arder impotente diante dos olhos. Voltando a Arquivo das Confissões, um romance histórico publicado em Macau em 2016, o inusitado assunto poderá não ser surpreendente se considerarmos que o território tem uma história razoavelmente desconhecida do grande público no que diz respeito a episódios, memórias e fontes (a par de lendas e mitos de raiz popular luso-chinesa). A isso acresce o facto de nos últimos anos algumas investigações históricas terem contribuído para reforçar a ideia (que se tornara lenda) de que Camões teria vivido e trabalhado em Macau, o que voltou a colocar o poeta e a sua rota do Oriente no centro de indagações e investigações. Sendo o ponto de partida do romance um assumido desafio a todo o propósito ‘sensatamente’ realista, a sua organização retoma as melhores tradições do género da narrativa enquadrada – gavetas de histórias que se abrem e esvaziam a partir de outras, articuladas em móveis geometrias de eventos misteriosos, de segredos e tesouros perdidos, dando origem à variedade das vozes e ‘fantasmas’ que lenta e intencionalmente desenrolam um imbricado novelo de histórias apenas sustentado por uma teia onírica. Como foi já referido, o narrador principal é um padre inglês protestante que recebe por mero acaso um segredo perdido e de origem desconhecida, cedendo a voz, na recepção do inesperado tesouro, a um padre católico irlandês, o depositário do tesouro, em trânsito entre mundos. Este possui o manuscrito da confissão feita a um jesuíta português, que a terá ouvido e registado em Macau, de um patético bandido e viajante /navegante português, de neopícaro recorte, o qual durante uma viagem ao oriente teve e gulosamente aproveitou a oportunidade de se apropriar, por roubo premeditado durante uma longa congeminação de inveja, de nem mais nem menos que uma obra desconhecida e autobiográfica (espécie de autografia de recorte epopeico) de Luís de Camões. Dois registos estilísticos são, assim, fundamentais nesta obra: primeiro, o da literatura de viagem que colhe variações na tradição vastíssima do género (pícaro, aventura, viagem iniciática, literatura de desastre e naufrágio); segundo, o registo da reflexão filosófica que invade a perspectiva e a narrativa através da voz do narrador principal, um padre culto, devoto e inclinado para a dialéctica dos fenómenos humanos e mundanos. A pergunta que se impõe é – como é que esta estratégia literária se conjuga com o lugar e o tempo reais da obra questionada? A viagem enquadrada que é a intriga central da narrativa e o seu mais remoto passado é a de Bernardo Vasques, narrada em confissão, na primeira pessoa, entre os capítulos sexto e vigésimo sexto. Nela se recupera a história e o ambiente de relatos vários das navegações portuguesas, retirados quer dos cronistas quer das ficções do tempo, como as de Peregrinação. A história é a de um homem de estudos e esmerada educação humanística a quem a obsessão narcisista de ser o melhor poeta de sempre, desenvolvida durante os tempos de passagem pela universidade de Coimbra, onde se confronta com a já vasta sombra de Camões, exacerba o desejo neurótico e mitómano de o ultrapassar em fama e glória. É curioso notar que Bernardo compõe, com excelência, o perfil tradicional do português apanhado pelo fatal emaranhado de ressentimento, queixume e inveja que o filósofo José Gil descreveu em Portugal, Hoje. O Medo de Existir (2004). Ao comentar as emoções e sentimentos negativos presentes no perfil do “invejoso”, o filósofo destaca sobretudo o ressentimento e o queixume, a que chama um “processo de captura” da consciência em estado geral de vulnerabilidade. Ora, Bernardo Vasques lamenta a sua condição de irmão do meio, embora não deseje a sorte nem do primogénito nem do irmão mais novo e acaba por confessar o esmero da educação que lhe foi dada pelo pai, que o destinava ao estudo das leis. O ressentido e generalizado queixume perpassa as suas palavras desde o início da sua narrativa: Calhava-me ser humilhado pelo mais velho, aturar-lhe as ordens e a arrogância, garantidas pela sua força física; e obrigado a proteger o mais novo, suportar-lhe as birras, satisfazer-lhe as manias e embarcar na adulação geral. (AC: 41) Sobre a inveja escreve José Gil, como se descrevesse Bernardo Vasques: É dentro de um banho de ressentimento que melhor se desenvolve a inveja. É no queixume implícito de se achar a si mesmo pequeno que se inveja alguém que pretende ser maior (SE: 93) O empolamento mitómano dos sentimentos de Bernardo V. levam-no a aspirar à fama e glória de poeta maior, lugar ensombrado e ocupado pelo vulto gigante de Camões. Incapaz de obter o reconhecimento almejado e cada vez mais colhido pela humilhação e seu “processo de captura”, embarca para a Índia com o intuito de encontrar o poeta e roubar-lhe a obra que o elevou ao trono das letras que para si deseja. Sabia muito bem o que fazer: ele sofreria. Não como eu. Mas por uma perda irreparável. Não o mataria, não lhe roubaria a vida, mas sim a obra, (AC: 86) Tal projecto neurótico e alucinado será executado no capítulo décimo quarto, depois de encontrado e reconhecido o velho poeta com a involuntária (e irónica) ajuda de uma figura criada pelo próprio, n’ Os Lusíadas – o soldado que desceu o outeiro mais depressa do que subira (AC: 76-77); a esse episódio segue-se uma série atormentada e criminosa de episódios de bíblica maldade, a par de tragédias encadeadas na tradição tenebrosa dos relatos de naufrágios, que terminam com a perda do pretenso manuscrito por Bernardo, depois de o ter aprendido de cor, de tanto repetir a leitura. O pecador arrependido que em Macau se confessa no final da vida, ostenta igualmente sinais claros de desequilíbrio mental e paranóia esquizofrénica. O desaparecimento misterioso, terminada a confissão, empresta à figura de Bernardo traços alegóricos (a marca do procedimento alegórico está patente no facto de Bernardo não lograr que a mão lhe obedeça para escrever e assinar a obra como sua, apesar de a saber de cor), embora na narrativa arraste o humilhante destino de um ser capturado entre a mediocridade e o desejo de grandeza e vanglória. Pode um homem transformar-se num livro? Assim parecia. (…) todas as minhas acções se enfeitavam dos seus versos, os pensamentos ferviam de rimas, nada de novo havia que não coubesse ou não estivesse previsto na grandeza desta obra. (AC: 134) Em conclusão, o registo escrito do delírio paranóico sobre a viagem fracassada de Bernardo Vasques, o transe de recitação (do suposto poema camoniano) depois do qual a personagem desaparece como por osmose entre carne e verbo, ainda antes da absolvição, tal como um pesadelo que cede ao aparecimento da madrugada, levam-nos igualmente à sua pergunta (já citada) entre a retórica e a angústia: “pode um homem transformar-se num livro?” (AC: id.) e ao desespero do impreparado, estarrecido confessor, quanto à justiça da retribuição do perdão divino: “O espírito humano não é um tratado científico e eu sou um pobre leitor cheio de dúvidas e de mísero talento.” (AC: 158). É também a altura de inquirir em que medida Bernardo Vasques se relaciona com o presente do leitor e a que presente pode de facto aludir. A sua história é alucinada e paranóica, projecção de uma mente configurada pela distorção dos mapas da realidade e da psicótica apreciação do lugar dos outros, aliados ou oponentes dos seus objectivos, a par dos obstáculos que enfrenta (seja a fome e a sede depois de um naufrágio, a solidão absoluta ou a inserção numa comunidade desconhecida e crescentemente hostil). A ausência de escrúpulos, o aventureirismo inócuo e sempre aguerrido, cruel, invejoso e oportunista de um português que demanda o mundo em busca do rasto de Camões para se apoderar da sua (pretensa) obra constitui o inverso da epopeia, o avesso do Gama de Os Lusíadas, a paródia do sujeito lírico de Sonetos e restante lírica amorosa. Bernardo Vasques parece expor, de facto, um presente alheio à memória de grandeza, universalidade e vocação descobridora e inspiradora da história portuguesa de quinhentos. O leitor poderá ainda questionar-se sobre a verosimilhança do artificioso relato que reúne tanto o temeroso confessor como o penitente Bernardo Vasques. Poderá tratar-se de mais uma variação sobre o sonho obscuro e polémico de que encontramos testemunho nas letras e nas artes desde a Modernidade, pelo menos desde que Goethe (e antes dele Marlowe) criou um inesquecível Fausto, mundano e humano, que através de singular, simbólico pacto com o demónio, plasmou no ser humano o desejo indelével de mais-querer e ir-mais-além, a porfia e o esforço de conhecimento e acção (streben, diz-se em alemão), que é afinal a medida estética e ética em que a verdadeira, exigente dimensão humana modernamente se reconhece, pelo menos desde o Renascimento. O relato, porém, não cessa de empurrar o leitor para longe da rememoração dos tempos de anseios de valor e grandeza. Na moldura da história ressoa a sobriedade do padre protestante que vai a Macau assistir ao incêndio do mais elevado símbolo do império no oriente, o Colégio de São Paulo, a sua análise implacável da inveja, a mola impulsionadora da mediocridade. Para Carlos Morais José, que afirma sentir-se em Macau um autor português no exílio e deixa voluntárias marcas dessa vivência em toda a sua obra em prosa e verso, onde a língua portuguesa, quase silenciosa nas ruas, é apesar de tudo ainda oficial, a odisseia inversa de Bernardo Vasques é apenas o último testemunho de uma condição de carência e alienação, de teor ontológico, que parece contagiar os poetas e intelectuais que a viagem real (e iniciática) levou para longe dos púlpitos e dos palcos da rotina estético-literária da chamada pátria. Essa condição de carência (e consciência de ser e devir) pode talvez aproximar-se da recente noção de “Exiliance” criada por Alexis Nouss1 que a considera uma “condição de consciência” comum aos exilados e migrantes de todos os tempos e espaços. Embora se deva assinalar a probabilidade de uma definição que se alheia voluntariamente dos traços materiais do tempo e do espaço poder aproximar-se de uma visão essencialista do exílio (aliás, sensível na formação do termo exil[iência]), a sua delimitação como “condição de consciência” parece reintroduzir o papel formador e reformulador do tempo e da circunstância. No caso de Carlos Morais José trata-se de uma condição de consciência (mas também de resistência e devir) que se evidenciará igualmente em outras das suas obras, fazendo parte da visão especial de Macau como singularidade radical na sua condição periférica. Em As Alucinações de Ao Ge e Arquivo das Confissões, um conto e um romance histórico publicados no espaço público de língua portuguesa de Macau posterior à mudança de soberania e consequente emergência de um espaço pós-colonial, encontramos traços de resistência aos monopólios temáticos e discursivos das últimas décadas de narrativas premiadas internacionalmente, navegando os largos mares da chamada Literatura Mundo. Também o denominado grupo de Warwick (WReC), na esteira dos artigos publicados por Franco Moretti em 2000 e 2003 na New Left Review, desenvolve uma ideia de “Literatura Mundial”2 sobretudo entendida como relação dinâmica e dialéctica entre centro e periferia do sistema mundial da literatura, insistindo no valor de resistência atribuído à literatura de regiões periféricas face aos grandes centros de difusão de literatura, ideia que Paulo Medeiros designa também por “imaginação do centro”, sublinhando o interesse “… em obras que resistem, de variadas maneiras, à hegemonia vigente” (Dialética da Periferia: Formas de Resistência na Literatura Mundial: 2021, 221). Posição semelhante é defendida por Cosima Bruno (Bruno: 2014), que propõe o abandono de uma epistemologia essencialista relacionada com nacionalidade e língua e com origem geográfica estrita (Bruno: 2014, 753). Em seu entender, o caso de Macau, apesar da exiguidade do território (que pode não ser sinónimo de insignificância) apresenta condições para alterar a tradicional divisão do mundo em três domínios conhecidos: centro, periferia e semi-periferia (divisões ligadas, por sua vez, à ideologia colonial e seus avatares no período da globalização). Em seu entender a cultura periférica de Macau pode vir a ser reconhecida como um caso específico de ponte natural entre global e local, permitindo viabilizar uma “candidatura” relevante à categoria de Literatura Mundo. No final do seu artigo, C. Bruno faz um apelo à tradução da literatura de Macau e acrescenta que isso é essencial: …not only to contribute to the postcolonial library and to broaden understanding of the ‘literary world’, but also to enable (..) the field of comparative literature together with other literatures (for example Spanish, Portuguese or French) that present global/local structure (Bruno, 2014: 67). Tal interesse pela literatura de Macau, obviamente marginal no contexto actual da Literatura Mundo, é o que melhor pode dar testemunho do legado intranquilo patente na história e na memória da cidade e apelar à herança mal escrutinada do seu passado colonial e marginal. O facto incontornável de esta literatura ter contornos e fronteiras incertas (expressão de várias línguas e pertenças) projeta e sublinha o papel intermediário da tradução e pode alterar, a mais curto ou longo prazo, o perfil e a representatividade cultural deste território simultaneamente indefinível, insular e plataforma de globalização. Referências: Alexis Nouss 2015. A expressão “Literatura-Mundial” é utilizada por Paulo Medeiros em português (membro do grupo WReC) e é, em meu entender muito semelhante à “Literatura-Mundo” (semelhante à expressão francesa Littérature-Monde), utilizada pelo Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa.
Hoje Macau Via do MeioIdentidade, Periferia e Globalização: Duas Narrativas de Macau Por Fernanda Gil Costa, antiga directora do departamento de português da Universidade de Macau Apresenta-se de seguida uma breve abordagem da literatura de Macau em língua portuguesa (também em tradução, já que o território tem hoje duas línguas oficiais) publicada nas duas décadas que se seguiram à mudança da soberania portuguesa para a chinesa. Assim se tenta evidenciar uma certa singularidade da vida literária macaense que, sem deixar de se conjugar com práticas modernistas e pós-modernas da cena literária internacional, pode configurar a consciência da sua inevitável periferia face aos circuitos das literaturas nacionais portuguesa e chinesa e aos grandes centros de intercâmbio da chamada Literatura Mundo. As duas narrativas selecionadas, de uma autora chinesa que vive em Macau e em 2010 viu traduzida para português a narrativa curta que tornara pública em 1999 (o ano da transição de soberania) e de um autor português, Carlos Morais José, que dirige um jornal do espaço público de língua portuguesa1constituem uma demonstração da presença de uma vida cultural activa no espaço público de língua portuguesa (jornais e suplementos culturais, festivais literários, actividade editorial) apesar da exiguidade em número de leitores. Além disso, as duas narrativas (um conto e um romance histórico) parecem revelar complexos temáticos e padrões formais que expõem a vida cultural da cidade como experiência de periferia e resistência agregada à sua condição de insularidade e exílio. Na curta narrativa intitulada As Alucinações de Ao Ge, publicada em 1999, em chinês, por uma autora chinesa de Macau (de origem cambojana), Lio Chi Heng coloca-se numa posição de inesperado desafio face ao leitor português (que pode ler o conto em português depois da tradução, em 2010, patrocinada em edição bilingue pelo IPOR2), ao abordar a questão conflituosa da identidade macaense quase sempre ignorada pelos autores de Macau de ascendência portuguesa. Assim, pode dizer-se que a intempestiva obra de Lio Chi Heng surgiu no espaço público da cidade como uma das produções literárias mais originais da literatura escrita em Macau nos últimos anos. Apresenta-se também como uma obra reveladora da marca/mancha pós-colonial que de forma insidiosa se manifesta afinal no espaço público macaense e chinês da ex-colónia. Autores de origem macaense (híbridos de origem étnica portuguesa e chinesa) tinham já apresentado o relacionamento entre europeus e chineses como um problema de solução difícil e eventualmente traumática3, sobretudo no contexto do relacionamento amoroso, durante o período colonial do século XX, mas o conflito desloca-se mesta narrativa para o interior do protagonista mestiço que se sente dividido pela origem dupla, numa sociedade de transição em que a agulha da balança do poder começou a oscilar para o lado oposto. O conto toma como centro da sua observação a personagem Ao Ge, um macaense mestiço (descendente de portugueses e chineses) que durante uma viagem à Europa acaba por revelar numa série de eventos desencadeados em vertiginosa sucessão, os seus ocultos problemas e traumas de identidade. A história é simultaneamente contada na terceira pessoa, por um narrador omnisciente, e na primeira, em versão autodiegética, disposta em capítulos alternados. A tradição modernista está presente nesta indecisão da perspectiva e no carácter aberto que tal processo imprime à sequência dos nódulos narrativos. Sobre o problema, sem solução definitiva óbvia da identidade híbrida, inoportuno porque é ignorado dentro do espaço público português, diz a autora, esclarecendo a sua motivação para o tema: “A crise de identidade macaense não é criação minha. Antigamente muitos macaenses raramente mencionavam os membros da família chinesa.” 4 Veremos que, no final, a relativa aceitação da avó chinesa por Ao Ge não ultrapassa as circunstâncias domésticas e a vida projectada do protagonista que continuará inserido numa sociedade em que os preconceitos raciais perdurarão para além da mudança de equilíbrio e da nova relação na distribuição das forças sociais e culturais dominantes. O narrador do conto (tal como a autora) conhece o peso da dimensão complexada e oculta da identidade de Ao Ge, o seu mal-estar em relação às marcas fisionómicas asiáticas do rosto, subalternizadas durante o período colonial, que o levam a exacerbar a metade da sua origem europeia. A apreciação do narrador face à personagem, que se situa, naturalmente, num nível mais elevado de conhecimento e consciência que o protagonista, transparece na citação seguinte: “É preciso voltar ao tempo do avô de Ao Ge. Os portugueses não se contentaram em deixar para trás de si a impressão dos seus passos; eles deixaram também os seus genes! O avô de Ao Ge foi um desses semeadores de genes (AAG:28). O narrador conhece igualmente o trauma de infância e adolescência da personagem, a violação por rapazes portugueses que o tratavam por “- Meu chinês, filho da puta!” (23), que Ao Ge recorda no presente da história da diegese, durante o encontro com o travesti, em Paris, como uma sequência de imagens de cinema em que se observa à distância: “Contra uma parede amarelada, um jovem era arremessado num vão de escada e, atrás dele, um grande latagão comia-o por detrás” … (id.). Incapaz de entender as suas emoções e o alcance das suas relações, Ao Ge falha o relacionamento com os colegas portugueses que inveja e deseja por serem de suposto “sangue puro” e superior beleza e evita enfrentar a pulsão inconsciente que o atrai para a homossexualidade. “Como foi possível que um mulherengo como eu tivesse dormido com um homem?” (24) pergunta-se, depois do episódio com o travesti em Paris e do embaraçoso desejo por José, companheiro de viagem, numa praia próxima de Lisboa, cuja beleza “europeia” o excita descontroladamente. O ressentimento e o complexo sentimento de amor/ódio pelos portugueses são o tema dominante do conto. Ao Ge reflecte sobre o seu destino quase sempre em termos apologéticos, considerando, por exemplo, que o seu nariz “alto e recto” é uma compensação dada pelo “Criador” ao seu rosto asiático. Vale a pena citar as suas palavras: Para mim a recompensa foi este nariz mágico, cujos poderes me fizeram esquecer as humilhações que me corroíam o coração. Mais tarde foi também graças a Ele que senti orgulho na minha vida, em ser filho desta terra. (AAG: 34) A mesma superficialidade de observação e valoração se regista no pensamento de Ao Ge quando se gaba de ter um bom posto, “apesar de fazer gazeta a toda a hora, consegui um bom posto, tal como o meu avô.” (ibid.); e o mesmo acontece na relação com as línguas que fala e aprende a falar: “Antigamente falar português chegava para tudo, mas hoje em dia o potunghua é mais popular” (ibid.). Para Ao Ge a vivência plena da cidade, das suas línguas e culturas contrastivas não é atraente; a língua que usa tem a ver com a utilidade imediata, status social e filiação de moda. A relação com o espaço geográfico é, de facto, como sugeriu Ana Paula Laborinho noutro contexto, permeada por uma sensação de exílio a que não são exteriores a nostalgia, a insularidade e a efemeridade de uma vida sem dificuldades de sobrevivência. Veja-se a reflexão seguinte: O impacto do potunghua dá-me a impressão de perder Macau. O rosto e a língua são os dois pratos da balança da minha vida e eu equilibro-me entre um e outro. (AAG: 35) Neste ponto faz sentido reconhecer que Ao Ge acaba por reencontrar a sua matriz identitária chinesa (que parece ser uma decisão desejada pelo narrador omnisciente e, porventura, autoral) quando nas aulas de potunghua (tal como no interesse não inocente pela professora de mandarim, cheia de carácter e personalidade) é levado a reflectir sobre a história da China (e de Macau, enquanto colónia portuguesa) para regressar à memória da avó chinesa, repudiada no início da narrativa devido à sua ascendência, que o protagonista volta a visitar no cemitério da “cidade cristã”, embora ela não descanse junto do avô português, sepultado com a legítima mulher de origem portuguesa. Mas a sua existência perdida entre etnias, línguas e heranças culturais não parece ser superável: “Eu… eu não consigo localizar a minha identidade, que é também uma alucinação.” (Id: 45), confessa Ao Ge mesmo no final da narrativa, assim expressando com lucidez inesperada a ausência como centro da sua existência, provável sintoma da desorientação e perda de rumo de alguma população macaense mais jovem, na viragem do último século, entre a influência chinesa e a portuguesa /macaense, no momento em que a transição aconteceu. É também muito revelador que Ao Ge abandone o cemitério depois da visita enquanto acredita ouvir a voz compreensiva da avó chinesa que ele desprezou, dizer: “meu tontinho, meu tontinho…” (Id: 46), num sinal de carinhosa condescendência que dá voz ao novo espírito do lugar. Tal atitude parece configurar uma incarnação ou sinédoque da China pela avó enquanto pátria remota em termos de dominação política, genética e linguística, a que Macau retorna sem entraves no final do século XX. Na última cena, sintomaticamente, parece insinuar-se no desenho de Ao Ge, feito por uma autora de língua chinesa, a característica que já foi considerada a mais persistente da população macaense, o chamado “Macau Bambu”, sinal simultâneo e paradoxal de instabilidade e permanência.5 Este conto de Lio Chi Heng preenche um vazio na abordagem da questão macaense em primeiro lugar pela perspicácia do olhar, mas também pela flexibilidade feminina e abrangente da análise sobre a situação insular e paradoxal de Macau, o seu plurilinguismo e interculturalidade, e sobretudo a exposta situação pós-colonial da cidade quase sempre ignorada na literatura e na crítica portuguesa. O desconforto da personagem Ao Ge parece entrelaçar a ambiguidade da opção sexual com a dificuldade de definição da identidade cultural, étnica e linguística e lançar uma ponte para um futuro pacificado – por mais inverosímil que seja (e porventura utópico) – para a redescoberta da China como pátria última (e única). Esse momento ainda não realizado, porém, desejado por muitos como superação possível de um passado de conflito (tão recalcado quanto possível, mas latente) entre a matriz portuguesa/ europeia e a asiática não pertence ao presente do conto, mas está (presume-se) subentendido. O desconforto do protagonista representa além disso um desafio e um risco para o leitor português. Desafio porque a ambiguidade e superficialidade do problemático perfil de Ao Ge não permitem uma identificação plena com a personagem e risco porque o seu lugar é solitário, imaturo e ambivalente, mesmo que solicite uma explícita cumplicidade com a sua história individual. Citando David Brookshaw: “Esta novela é única na produção literária em Macau, já que se trata da visão de uma chinesa sobre a situação do macaense perante a sua dupla herança… (2010: 22). O protagonista não encontra, portanto, uma saída pacífica para a identidade macaense como alternativa à herança portuguesa, perante um futuro de forçada integração na China. No desenho imperfeito da sua identidade (não gosta do que é, a sua vida está presa entre o que não sabe definir e o que não pode assumir, quer humana e etnicamente quer sexualmente) perde-se no lugar transitório em que se encontra, a geografia ambivalente e excessiva do pós-colonial. Tem mais do que uma língua, mais do que um género, mais do que uma pertença – daí a imperfeita solidão e a condição de ‘exilado’. Enquanto figura de uma transição que o ultrapassa, coloca mais problemas, perguntas e desafios do que respostas ou soluções. O pós-colonial é precisamente o espaço/tempo insuperável de questões inoportunas, da incerteza e das respostas imperfeitas. (continua) Referências: o jornal Hoje Macau Lio Chi Heng é referida como Liao Zixin, por David Brookshaw, no que parece ser uma transcrição fonética (incompleta) do nome. Segundo o mesmo autor a autora será de origem cambojana. É também D. B. a informar que a obra teve uma tradução francesa, anterior à portuguesa. A tradução portuguesa será no entanto a mais completa, baseada na versão publicada em chinês na revista Aomen Bihui 14, 1999, 76-91 (D. B., “A Escrita em Macau: uma literatura de circunstância ou as circunstâncias de uma literatura”, Macau na Escrita, Escritas de Macau, 19-30; aqui 21-22.). Mais informação sobre esta autora que foi sub-directora do Jornal Oumun, encontra-se na Revista de Macau de Maio de 2011, na rubrica “As Caras por detrás dos Livros” de Catarina Domingues e Gonçalo Lobo Pinheiro http://www.revistamacau.com/2011/06/05/as-caras-por-detras-dos-livros/ (consultado em Janeiro de 2019). Neste estudo é usada a versão bilingue de Lio Chi Heng publicada pelo IPOR em 2010, com tradução de Gustavo Infante e Zhang Yufeng e prefaciada por Ana Paula Paiva Dias e Rui de Sousa Rocha, director do IPOR em 2010. A novela foi também adaptada ao cinema. Senna Fernandes e Deolinda da Conceição … “As Caras por detrás dos Nomes”. http://www.revistamacau.com/2011/06/05/as-caras-por-detras-dos-livros/ (consultado em Janeiro de 2019). Esta caracterização do macaense remonta ao estudo sobre a etnicidade da população de Macau por J. Pina Cabral e N. Lourenço: Em Terra de Tufões… (1993): 24.
Hoje Macau Via do MeioPode um historiador prever o futuro? Uma leitura sobre a vidência em Sima Qian Por André Bueno No Shiji de Sima Qian, há uma passagem que adoro citar. É retirada da biografia de Zhang Liang [Shiji, 55], um dos grandes heróis que lutou contra Qinshi Huangdi e ajudou a fundar a dinastia Han. Ela nos conta que Zhang era um espécie de ‘predestinado’ a ajudar na elevação de Liu Bang [primeiro imperador de Han] ao poder, e a revelação de seu potencial se dá em um encontro de contornos místicos, que reproduzo nessa longa passagem adaptada: “Um jovem nobre decadente, chamado Zhang Liang, andava perdido pela China, pensando num meio de acabar com o imperador Qinshi Huangdi. Ele já havia realizado uma tentativa anterior, inteiramente fracassada, e estava totalmente desolado. Qinshi parecia ser inexpugnável, e nada indicava que a situação pudesse mudar. Foi então que, num belo dia, depois de muito vagar, Zhang Liang foi atravessar uma ponte, e deparou-se com um velho, que havia deixado cair seu sapato no rio. Zhang, educadamente, prontificou-se a buscá- lo. Quando trouxe o sapato, o velho chutou-o pra longe e pediu novamente Zhang para pegar. Zhang ficou irritado, mas controlou-se e foi atrás do sapato de novo. Quando o trouxe, o velho simplesmente fez voar o calçado para ainda mais longe, e insistiu que Zhang fosse atrás do dito. Numa história normal, Zhang, ou qualquer outra pessoa, achariam que aquele senhor estava fazendo uma brincadeira de mau gosto ou debochando de sua cara. Mas, como Zhang era um predestinado, de características especiais – e contra a lógica usual destas situações – ele foi atrás do sapato do velhinho, pegou-o e o trouxe de volta. Ele estava de cabeça quente, mas controlado; foi o que permitiu que ele reparasse que o velho estava com uma aura estranha de autoridade, um brilho incomum, e de pronto modificou sua atitude. O ancião agradeceu a gentileza, e disse a Zhang que ele era uma pessoa especial. Pediu que dali a cinco dias o encontrasse num lugar convencionado, para dar-lhe um presente. Zhang ficou atiçado e curioso, e foi ao encontro do senhor dias depois. Quando lá chegou, o velho o esperava e gritou com ele: “Porque se atrasou tanto? Você é um grosseiro mal educado. Deixou um velho esperando! Volte daqui a cinco dias!” Zhang quase saiu do esquadro de novo, mas segurou-se. Voltou cinco dias depois, bem mais cedo do que antes, e encontrou o velho lá apenas para apanhar outra bronca e ouvir: “volte daqui a cinco dias!”. Devem ser nestes momentos que os heróis mostram sua obstinação. Talvez por curiosidade, ou por que não tinha nada melhor, Zhang decidiu fazer diferente. Foi quase um dia antes no lugar marcado e ficou esperando. O velho chegou, sorriu-lhe e disse: “paciência e disciplina, agora sim. Este é o caminho”. Deu-lhe um livro e continuou: “Você será o mestre do novo imperador daqui a dez anos. Daqui a treze anos, nos encontraremos de novo perto da margem norte do rio Chi. No pé do monte Guqian haverá uma pedra amarela: serei eu”, e desapareceu. Ele nunca mais foi visto. Quando terminou este encontro estranhíssimo, Zhang Liang olhou o livro que havia ganhado, e percebeu que se tratava de um tratado militar desconhecido. O livro parecia ser simples, e aparentemente combinava os textos de Taigong com os de Sunzi e de outros autores. Ele dividia-se em três partes apenas: as estratégias superiores, medianas e inferiores. Por causa disso, ele acabaria sendo chamado de ‘As três estratégias’, e para evitar confusões, a tradição chinesa o salvou como As três estratégias do duque da pedra amarela” [Bueno, 2011: 111-113]. No melhor estilo Ariano Suassuna – “não sei como foi, só sei que foi assim” – Sima Qian nos conta toda essa história sem enfatizar qualquer crença especial em sua veracidade. Como historiador, ele reproduzia uma narrativa conhecida; afinal, Zhang foi um personagem real, e se não foi ele a difundir essa lorota, não fez nada para desmenti-la. Mas ao mesmo tempo, Sima precisava defender – até certo ponto – que os especialistas no passado conseguiam, de alguma maneira, explicar o presente e determinar o futuro por meio do seu conhecimento. Isso implicava dizer que os historiadores tinham que lidar com a ideia de que algumas pessoas eram especiais, dotadas de uma tendência, propensão ou destino que lhes garantiria um papel especial na história. Ao mesmo tempo, os especialistas em história deveriam saber ler essas tendências e inferir o desfecho de certos acontecimentos. Não é preciso muito para entender que sustentar essa ideia sempre foi um problema. Como explicar, por exemplo, que Qinshi Huangdi era uma pessoa especial, se seu governo foi marcado pela crueldade? E como ainda explicar que a natureza [Tian, o Céu] o entronizou? Do mesmo modo, Liu Bang, o futuro fundador de Han, se destacava por qualidades bastante peculiares. Ele olhava torto, era displicente com a aparência, andava mal ajambrado, mas tinha uma barba bonita, nariz a testa grande, e setenta e duas verrugas na perna. Dava esmolas e tinha a mente aberta. Quando ia pra taverna, ela enchia de gente, todos ficavam felizes e pararam de cobrar fiado dele. Depois que casou, durante um ano inteiro, todos os dias, ele procurava sua esposa, e a fazia ter orgasmos antes de sair pra beber. Essas eram algumas de suas qualidades notáveis. Sim, isso tudo está na biografia de Liu Bang [Shiji, 8] descrita por Sima Qian. Seguem-se uma série de sinais auspiciosos como voos de dragão, emanações de energia, entre outras coisas fantásticas. Como inferir que Liu Bang era um predestinado, senão por sinais celestes misteriosos, que só seriam compreendidos depois? Obviamente, isso é a reprodução de uma narrativa do passado. Contudo, como dissemos, os historiadores chineses antigos tinham que opinar sobre as tendências do mundo, sobre os acontecimentos e as questões de governança. Ainda que essas descrições fossem esvaziadas de uma carga de realidade [algo como ‘acredite se quiser’], por outro lado, elas serviam de escopo para comprovar a autoridade daqueles que alcançaram o poder [quer dizer, às vezes seria preciso acreditar nelas…]. Zhang Huawei [2017], em um instigante ensaio sobre a visão de destino em Sima Qian, mostra como esse conceito tornou-se objeto de uma complexa discussão acerca do papel previdente do historiador. Em retrospectiva, a ideia de ‘destino’ [Tianming 天命, empregada aqui de forma sinonímica com a nomeação imperial cosmoecológica dos soberanos chineses antigos] foi eventualmente usada para justificar as impressões do passado, bem como de seus personagens. Isso poderia significar que haveria algum tipo de justiça deontológica, uma ordenação natural das coisas ou ainda, uma fundamentação moral para a existência de uma trajetória de vida previamente definida. Os chineses, no entanto, sempre buscaram escapar de uma visão pré-fixada das coisas. Existiam três razões para supor isso: A primeira estava fundamentada no ciclo da mutação, apresentada no Yijing [o Tratado das Mutações], o primeiro livro de ciências da história chinesa. O Yijing explicava simbolicamente o ciclo perene da natureza e suas tendências, e por essa razão, tornou-se também [no imaginário chinês] um oráculo capaz de predizer, sugerir ou aconselhar sobre o desfecho das coisas. Mas – e justamente por isso – os chineses acreditavam que se o livro podia oferecer explicações sobre o curso de determinados acontecimentos, então, eles não seriam fatais, e consequentemente, poderiam ser modificados. A predição do Yijing indicava se algo era favorável ou não; então, o consulente poderia mudar de opinião e investir em uma atitude ou conduta diferente, alterando o curso da situação. De forma paradigmática o Yijing, portanto, tornou-se o primeiro oráculo do mundo que apenas aconselhava, mas que também deixava claro que o desfecho do futuro cabia ao indivíduo [Bueno, 2015]. Veremos que isso será crucial na interpretação de Sima Qian. O segundo aspecto é a genealogia da cultura, proposta por Confúcio desde o Lunyu [Diálogos]. Em uma de suas passagens, ele afirma que ‘Shang sucedeu Xia, assim como Zhou sucedeu Shang. Sabemos o que se perdeu e o que foi acrescido. Quem suceder Zhou fará o mesmo, já sabemos como será’. A partir desse ponto de vista, o movimento de sucessão das coisas na mutação seria gerido por regras éticas e históricas, ligadas a reprodução e transformação da cultura. Visto assim, haveria algo que se preserva [essencial] e o que se transforma diante das necessidades do tempo [Bueno, 2011b]. É aqui que Sima Qian insere um terceiro elemento, a razão ecológica. Em sua visão, os movimentos sociais e políticos acompanhavam a ciclo da mutação em suas variações e movimentos naturais – como anteriormente apregoado pelo Yijing e por Confúcio – mas reinterpretado pela teoria dos cinco elementos, associação essa defendida por seu mestre Dong Zhongshu. Assim, ‘Xia foi madeira; Shang foi metal; Zhou foi fogo; Qin foi água; Han é terra’. As transformações do mundo seguiriam o movimento Wuxing, e por conseguinte, poderiam ser previstas em escala macrocósmica. Isso atendia ao seu propósito de ‘estudar a relação entre o céu e o homem, e compreender as mudanças nos tempos antigos e modernos’ [Shiji 130]. Assim, os movimentos da natureza – e de forma correlata, da humanidade – poderiam ser previstos e determinados em suas tendências fundamentais. A articulação desses elementos na formulação de uma teoria de presciência revela o quão problemática era a tarefa de Sima Qian. A redação do Shiji estava envolta em compromissos políticos e ideológicos, com os quais ele teve que lidar amargamente ao longo da vida. Embora estivesse claro que sua proposta era valorizar a trajetória histórica de sua civilização, Sima era obrigado também a lidar com as tensões da escrita que envolvia as disputas de poder e as vaidades da corte [Jiang, 2018]. Nesse sentido, é possível que os personagens notáveis do passado possam ter sido moldados, na escrita das narrativas, para serem figuras prescientes; mas admitir isso significava, igualmente, reconhecer a possibilidade da previsão histórica no presente. Isso deslizava para outro problema: a relação entre os tempos antigos e hodiernos. Li Bo [2014] analisa como Sima Qian estava plenamente ciente de que era um autor do presente falando sobre o passado, e reinterpretando-o dentro das possibilidades das fontes e das orientações ideológicas de sua época. Segundo Li, Sima fazia história do tempo presente, mas desejava entender e reconstruir as camadas da civilização chinesa em uma genealogia, fundando sua cultura no passado. Neste sentido, a presciência seria uma faculdade inviável de ser realizada, já que só poderia ser inferida a posteriori. Após listar uma série de exemplos pinçados do Shiji, Zhang Huawei, afirma que ‘Resumindo, os pensamentos de Sima Qian sobre o destino incluem tanto a sua crença no destino como as suas dúvidas sobre a justiça do destino. Sima Qian duvidou da justiça do destino, mas não negou a sua existência. Quanto aos acontecimentos que podem ser explicados pela ação pessoal, Sima Qian também atribuiu grande importância ao papel do pessoal e opôs-se a confundir destino com pessoal. Estes estão de acordo com a intenção criativa de Sima Qian de “estudar a relação entre o céu e o homem” sob diferentes aspectos e refletem a sua crença no destino’. Essa conclusão aponta opiniões, mas parece ficar em cima do muro. Ou seja; Sima Qian não deixara de acreditar que poderia haver predestinados ou prescientes; e por tabela, não desejava abrir mão da faculdade de poder ‘inferir o futuro’ por meio dos estudos eruditos, mas precisava lidar com os perigos de errar as predições e conselhos. Melhor seria deixar isso nas mãos dos oráculos; mas esses mesmos oráculos, assim como as pessoas, podiam mudar de opinião! Uma leitura que pode nos ajudar a compreender as intrincadas reflexões sobre esse problema é o seminal texto de François Jullien sobre ‘situação e tendência na história’ [Jullien, 2017]. Na interpretação de Jullien – alicerçada por comentaristas chineses – a questão central é como a situação ou contexto de uma narrativa são determinadas por suas ‘tendências’, ou seja, pelas forças que atuam para o andamento do episódio em questão. Isso significa que a predição sobre um acontecimento pode ser aferida, em um complexo jogo de espelhos teóricos, a partir de ressignificação de um evento histórico, de acordo com alguma das grades de leitura filosóficas defendidas pelo historiador. Posto de outro modo: um confucionista pode defender que um dado episódio foi bem sucedido pela presença de agentes morais que conduziram as coisas á um desfecho adequado – e nesse caso, a presciência invoca o uso da tradição como guia para afastar-se dos erros. Já um legalista poderia arguir que o mesmo episódio não teria sido bem sucedido, já que uma decisão calcada no passado pode simplesmente não ser adequada para os dias de hoje. Teremos um então uma infindável diatribe de exemplos e contraexemplos que irão colocar em julgamento se alguém era predestinado ou não, e se o historiador foi capaz de perceber isso ou não. A história, assim, não é conclusiva. Talvez por isso Sima Qian tomasse cuidado em defender a vidência histórica como uma condição sine qua non do historiador. Perturbados constantemente pelas ingerências de figuras do poder, e agenciados com fundos imperiais, os historiadores chineses viviam na delicada corda bamba entre falar a verdade, aconselhar com juízo, e correr o risco de perderem suas cabeças se não atendessem as vontades de seus financiadores. Visto assim, a escolha de personagens especiais do passado poderia ser tão arbitrária [e seus atributos tão fantasiosos] quanto às inferências sobre o futuro poderiam ser carregadas de erros estratégicos quando o historiador estava cerceado de sua liberdade de pensamento. Esse conflito iria fazer com que uma rica tradição de histórias privadas [ou, histórias alternativas aos discursos estabelecidos pela agência imperial] surgisse, provendo a China de uma valiosíssima e diversa tradição historiográfica [Richter, 1987; Beja,1997]. Quanto aos historiadores chineses, esses aprenderiam a duras penas [depois de observarem a indigna condenação de Sima Qian] que se eles podiam prever algo, deviam primeiro observar a própria sorte, antes de emitirem juízos sobre o passado, o presente e inferir algo sobre o futuro. Referências Os textos do Lunyu e Shiji foram retirados do livro Textos da China Antiga. Rio de Janeiro: Projeto Orientalismo/UERJ, 2023. Essas fontes estão disponíveis em: https://chines-classico.blogspot.com/p/biblioteca-textos-da-china- antiga.html Beja, Flora B. ‘El precio de la rectitud. El intelectual como crítico en la China tradicional’ in Los intelectuales y el poder en China / Taciana Fisac (comp.), Madrid: Trotta, 1997: 27-44. Bueno, André. A arte da guerra chinesa. Projeto Orientalismo, 2011a:111-113.Bueno, André. ‘Não invento, apenas transmito’: Re-interpretando a escrita historiográfica de Confúcio. In: X Semana de História Política da UERJ. Rio de Janeiro: UERJ, 2015. v. 1. p. 251-261. Bueno, André. ‘O tempo das dinastias’ in Ensaios de Oito Partes. Projeto Orientalismo, 2011b:23-25. Jiang Tianyue 姜天越. 《司马迁政治思想探究》. 神州·中旬刊, n.12, 2018. Jullien, François. A propensão das coisas: por uma história da eficácia na China. São Paulo: UNESP, 2017: 223-281. Li Bo李波. 《司马迁的古今观》. 渭南师范学院学报n.6, 2014. Richter, Ursula. ‘La tradition de l’antitraditionalisme dans l’historiographie chinoise’. In: Extrême-Orient, Extrême-Occident, 1987, n°9. La référence à l’histoire. pp. 55-89. Zhang Huawei张华伟. 《浅议司马迁的天命观》. 青年文学家 n.9, 2017. André Bueno é Prof. Ass. História Oriental da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Este artigo saiu na revista Oriente 24 – Estudos Chineses
Hoje Macau Via do MeioO fogareiro de bambu de Wu Kuan Tang Yin (1470-1523), o pintor de Suzhou que usou o nome Bohu, o «Tio tigre», que confessava a dificuldade em domesticar o seu carácter livre, como acontece muitas vezes, prezava por outro lado os laços de amizade com aqueles que se dispunham a acolher a inépcia na expressão do seu coração puro. Num rolo de pintura conhecido alternativamente como Bebendo chá sob a árvore wutong, ou O fogareiro de bambu (tinta e cor sobre papel, 116,6 x 23,8 cm, no Instituto de Arte de Chicago) ele evoca o amigo pintor Wu Kuan (1435-1504) que falecera cinco anos antes. Na simplicidade da cena, comum entre letrados da dinastia Ming, representando um encontro ao ar livre de um literato com um monge budista, reconhecíveis nas suas vestes, ambos com uma taça de chá na mão, pequenos detalhes denunciam a sofisticação do momento. No início do rolo, onde não há qualquer referência a uma habitação, à direita um criado inclina-se sobre um ribeiro recolhendo a sua água pristina para, vê-se depois, ser fervida por outro criado num fogareiro portátil de forma cúbica com uma chaleira circular, as figuras convencionais do céu sobre a terra. Essa forma criada no início do séc. XIV por um artesão de Huzhou (Zhejiang) que trabalhava o bambu e que o monge Pu Zhen do Monte Hui (Wuxi), lugar onde se apreciava o chá, encontrou na estrada, numa viagem, distingue o rolo dedicado ao ausente Wu Kuan de outras pinturas de Tang Yin em que a apreciação do chá é pretexto para um encontro. Como o rolo horizontal Shiming tu (tinta e cor sobre papel, 105,8 x 31,1 cm, no Museu do Palácio em Pequim) em que evoca o amigo Chen Shiming, numa situação mais usual de hospitalidade em que um convidado vem chegando por uma ponte. Pormenores, na pintura para Wu Kuan, como o nome wutong, da árvore que acompanha o encontro e onde há uma homofonia com a palavra tong que significa «partilhar», aludem à afinidade que Tang Yin tinha com o amigo, com quem saboreava o chá. Wu Kuan fora autor do poema Aicha ge, Canção de Amor ao chá: Eu, o ancião que ferve a água, amo o chá como amo o vinho, Três ou cinquenta taças, não as contarei. Começo na sala do chá, onde não há coisas desnecessárias: Apenas um fogareiro sob um almofariz. Aqui não há nada para fazer, excepto ferver o chá. O dia inteiro a taça nunca deixa os meus lábios, Assistirá ao encontro de hoje, um único bule. Da porta vem um convidado, um verdadeiro amigo do chá, Para expressar o agradecimento e imitar o poema de Lu Tong, Ferver o chá e seguir a ode de Huang Jiu. A sequela do Livro do chá, não empresto a ninguém, A adenda ao chá, deixo escorregar-me da mão. Não quero ter nada a ver com a vulgar plantação do chá, Conheço apenas alguns hectares do jardim de chá em baixo desta montanha. Há pessoas que sonham em percorrer o país do chá, Mas, aqui e agora, eu não quero fazer outra coisa.
José Simões Morais Via do MeioConstrução do Grande Canal Sui A dinastia Sui (581-618) instalou a capital em Chang’an e para albergar o grande número de funcionários governamentais ampliou a antiga cidade [que servira de capital às dinastias Zhou do Oeste (104.6-771 a.n.E) em Haojing, Qin (221-206 a.n.E.) em Xianyang, ambas próximo de Xian e com o nome de Chang’an (Xian) à Han do Oeste (206 a.n.E.-9) e dinastia Xin (9-23)] dando-lhe o nome de Daxing. Mas havia o grande problema de prover a enorme população com alimentos suficientes, provenientes sobretudo da região de maior produção agrícola do território, na zona do curso inferior do Changjiang, e de bens essenciais para os inúmeros funcionários da administração central e da corte. Havia também a dificuldade de transporte de grandes quantidades de mercadorias de Sul para Norte pois as estradas não eram seguras e não estavam preparadas para tal, assim como o Rio Amarelo não era navegável em muitas partes. Daí, o primeiro imperador Sui, Wendi em 584 mandar construir o canal Guangtong (Guangtong qu, 广通渠), para levar arroz à capital usando parte do canal Chao e ligar o Rio Wei ao Rio Amarelo. Para um maior controlo da zona central do território, o Imperador Wen (581-604) em 588 mudou o nome de Wuzhou para Yangzhou e colocou aí o seu segundo filho, Yang Guang como governador. Yangzhou, cidade nas margens de Changjiang denominada antigamente Hancheng, ou cidade de Han, fora edificada no ano de 486 a.n.E. aquando da construção do canal Han (Hanguo) de onde este partia a ligar o Changjiang (Rio Yangzi) ao Huaihe e essencial para o abastecimento da capital Daxing. Yang Guang como governador aproveitou o canal e mandou em 601 complementá-lo até Luoyang e quando se tornou em 604 o segundo Imperador Sui, no ano seguinte Yangdi (604-618) reconstruiu Luoyang para ser a sua capital Dongdu (capital de Leste) e ainda em 605 ordenou a construção de uma vasta estrada de água, conhecida por Grande Canal (Da yunhe, 大运河). O canal dragado até ao ano de 610 tinha três secções: a primeira, o canal Tongji colocava a água dos rios Gushui e Luoshi no Parque Oeste de Luoyang e seguia directamente até ao Huanghe e continuando no Rio Amarelo, em Banzhu, a Leste de Luoyang, até ao velho fosso Langdang em Shanyang (hoje prefeitura de Huai’an, Jiangsu) na margem Sul do Huaihe. De Shanyang as águas do Rio Huai dirigiam-se pelo antigo Canal Han (Hangou) e afluíam no Changjiang em Jiangdu (hoje cidade de Yangzhou, Jiangsu). Toda a secção de Luoyang a Jiangdu tinha mais de mil quilómetros de comprimento. A segunda secção, construída em 610 como canal Yongji drenava a água directamente do Rio Qinshui em Luokou, a Sul do Huanghe, até ao Norte de Zhuojun (hoje Beijing) tendo também mais de mil quilómetros de comprimento, fazendo a ligação do Rio Amarelo à região de Beijing. A terceira secção, o canal Jiangnan de 400 km de comprimento levava a água do Changjiang em Jingkou ao Rio Qiantang em Yuhang (hoje cidade de Hangzhou, Zhejiang). O Grande Canal totalizava 2500 km de Zhuojun no Norte até Yuhang no Sul ficando Luoyang no centro. Esta via de água ajudou a promover a economia e a desenvolver o país então unificado, segundo refere Bai Shouyi em Na Outline History of China. YANGDI VIAJA NO GRANDE CANAL (大运河) Yangdi fez três viagens no Grande Canal, das quais não encontrei registos históricos, existindo muitos relatos em que cada uma das versões diverge bastante. A primeira viagem ocorreu no ano de 605, a segunda em 610 e a terceira em 616, apesar de também aqui as datas não coincidirem. Quando em 605 ficou completa a construção da secção do Grande Canal com 1800 km entre Yangzhou e Dongdu (Luoyang), o imperador logo fez uma viagem de inspecção no seu barco-dragão, palácio flutuante com telhado em cristal de onde pendiam lanternas e as colunas gravadas com dragões dourados. Seguia a fanfarra a anunciar o cortejo, num espectáculo que pela sua grandeza, excedendo toda a imaginação muito impressionou os habitantes de Dongdu. A terceira viagem, desde Dongdu até Yangzhou, é referida por Deng Shulin como sendo feita em “dois barcos-dragões de quatro pisos construídos e decorados com extremo luxo, levavam a bordo o imperador Sui Yangdi e as suas concubinas favoritas.” Referem algumas versões da história, a imperatriz Xiao seguia no segundo barco. Navegavam devagar rumo ao Sul, a Yangzhou, na actual província de Jiangsu, e segundo uma lenda “para contemplar uma flor famosa do local. Seguiam os barcos-dragões cerca de dez mil barcos de diversos tipos. Eram os membros da casa imperial, concubinas, dançarinas, vassalos, guardas e munições. Toda a comitiva se estendia por uns cem quilómetros. Nas margens flutuavam bandeiras coloridas. Os guardas, a cavalo, armados, andavam em fila. Os oitenta mil sirgadores vestidos de trapos, recrutados à força, puxavam os barcos, com a sirga penetrando no ombro, cortando as carnes – parar era morrer.” Mantinha-se Yangdi em Yangzhou quando em 618, durante uma revolta camponesa (Jiangdubingbian, 江都兵变) foi morto por um grupo das suas tropas leais e o país caiu no caos. Assim, o Grande Canal Sui e Tang tinha o centro em Dongdu (Luoyang) e para Oeste usava o Guangtong qu entre Daxing (Chang’an) e o Rio Amarelo. Para Norte, o canal Yongji chegava a Zhuozhou (涿州) e para Sul usava Tongji qu e Shanyang du [do Rio Huai ao Changjiang] e Jiangnan yunhe de Jiangdu (Yangzhou) a Yuhang (Hangzhou). Este era o trajecto do Grande Canal (Da yunhe, 大运河) até à dinastia mongol dos Yuan (1279-1368).
Ana Cristina Alves Via do MeioEncontros e desencontros proverbiais em torno das noções de abertura e fechamento Coordenadora do Serviço Educativo do Centro Científico e Cultural de Macau A filosofia comparativa pode usufruir de vasta colheita caso se dedique ao campo proverbial. Aqui se encontram pontos de vista que podem contribuir não apenas para a filosofia como para os estudos de imagologia e os de psicologia social, através da observação atenta das mentalidades. É interessante notar a semelhança de perceção tanto por parte dos portugueses como dos chineses relativamente ao modo como são aproveitados os talentos de ambas as terras. Muitos em Portugal queixam-se de serem mal aproveitados, de verem os seus filhos partirem rumo à emigração por falta de oportunidades no país, já que “santos de casa não fazem milagres” e, por isso, é bem melhor ser-se profeta em terra alheia, porque “nenhum profeta é bem recebido em sua pátria” (Lc 4,21-30), sendo que a expressão remonta aos tempos bíblicos e à explicação oferecida por Jesus por não fazer milagres em Nazaré. Coincidentemente, os chineses possuem uma expressão proverbial de 4 caracteres e longa história, um chengyu, (成语chéngyǔ), que remete para os Anais da Primavera e do Outono (春秋), um dos cinco clássicos da filosofia confucionista, especificamente ao mais conhecido dos seus comentários, Comentário de Zuo e ao 26º ano do Duque de Xiang《左传 襄公二十六年》(Zuǒ chuán xiānggōng èrshíliù nián), no qual se diz literalmente que “Os talentos de Chu são criados neste reino, mas aproveitados por um outro reino, o de Jin” ( 楚材晋用chǔ cái jìn yòng). Fica a ideia de que os oficiais de Jin não são tão talentosos como os de Chu, mas talvez sejam mais espertos, porque pelo menos são capazes de tirar partido dos de fora. Coloca-se aqui uma questão interessante, em termos de certas categorias espaciais com as quais estruturamos o nosso pensamento e nos posicionamos no mundo, são estas as de “dentro” e “fora”, bem como as correlativas de “proximidade” e “distância”, que conduzem às noções de “abertura” e “fechamento”. Parece mais fácil compreender e aceitar, no que respeita ao talento, o que é exterior, está mais longe e, de algum modo, interpela e incomoda menos. Mas se estes pares conceptuais funcionam bem quando aplicados a seres especiais, talentos, profetas, gente fora de série, a verdade é que sofrem uma grande alteração de sentido se a coletividade passar a ser perspetivada como norma ou padrão. Aí há uma tendência para proteger os “de dentro” contra os “de fora”, que são muitas vezes encarados como perigosos e disruptivos, na cultura e civilização chinesas, a atender à abundância de provérbios relativos aos “de fora”. Já nos Ritos de Zhou 《周礼》, obra datada de meados do século II a.C, se chama a atenção para a necessidade de questionar sobre os perigos para o país, as migrações e o governante no poder, mas especialmente para o cuidado com “as migrações e necessidades de planeamento” (询迁询谋xún qiān xún móu), nem todas as mexidas e movimentações relativas ao “dentro” ao status quo, ou ordem estabelecida, são boas, mas podem ser proveitosas se no relacionamento do “dentro” com o “fora”, os primeiros não se deixarem contaminar pelos segundos e retirarem o melhor partido destes. E aqui mais uma vez portugueses e chineses concordam, em termos proverbiais, no que se refere a lisonjear ou enganar os estrangeiros em proveito próprio, por exemplo, nós portugueses e brasileiros ludibriando os nossos mais antigos aliados na Europa, o que ficaria retido numa interpretação possível da expressão “para Inglês ver”, a propósito do comércio de escravos com o Brasil, por volta de 1830, já então proibido, com o nosso próprio consentimento, mas imediatamente contornado1, por estarem em jogo valores comerciais de grande peso; assim como os chineses da dinastia Qing na expressão retirada ao escritor Wu Jianren (吴趼人, 1866-1910), em História da Dor 《痛史》(tòng shǐ), que poderá ser traduzida pela paráfrase “lisonjear os estrangeiros para proveito próprio” (媚外求荣mèi wài qiú róng), significando numa tradução literal “lisonja para a glória”. Na opinião de alguma desta sabedoria proverbial, em que não há fronteiras claras entre o senso comum e o saber propriamente dito, segundo muitos portugueses e chineses dos tempos antigos (e talvez alguns atuais) os “de fora” são bons para ser fintados, ludibriados ou então claramente mantidos à distância, porque quando os deixamos penetrar no espaço interno, ou até íntimo, as coisas podem correr mal, como se indica no dito “de Espanha nem bom vento, nem bom casamento” ou, de um modo menos particularizante e mais sistemático e generalista nos provérbios chineses, nos quais se condena, relativamente à dinastia Qing, ela própria alienígena, a bajulação sistemática dos estrangeiros, por exemplo, através de um dito célebre de um grande escritor chinês Mao Dun (茅盾, 1896-1981) em Aprender com Luxun 《向鲁迅学习》(Xiàng Lǔxùn Xuéxí) : “venerar e bajular o estrangeiro ( 崇洋媚外chóng yáng mèi wài). Neste se condena claramente a bajulação ao outro e a xenofilia, que caracterizou alguns momentos importantes da história cultural chinesa na sequência das Guerras do Ópio (1839-42; 1856-1860), ou da implantação da primeira república chinesa (1912- 1949), a que corresponderia o mesmo tipo de tendência em Portugal, nomeadamente até meados do século XX em relação à cultura francesa. Assim, a literatura estava pejada de francesismos, (como hoje o está de anglicismos) e as meninas educadas deviam todas saber “tocar piano e falar francês”. As tendências de adesão camaleónica aos “de fora” são comuns aos dois povos e prendem-se com momentos históricos específicos, nos quais existe mais proximidade a determinado país por razões dinásticas, em tempos de monarquia, ou políticas, em tempos de república. Não são menos evidentes as tendências de fechamento ao outro étnico, que pode ocorrer no interior do espaço nacional, diversificando-se de acordo com as paisagens étnicas e geográficas. Quem não recorda expressões no nosso país como “Portugal é Lisboa e o resto é paisagem”, ou “abaixo do Douro, tudo mouro”? Neste sentido, recorde-se a respeito dos chineses mais um aforismo de Mao Dun, incorporado na sapiência proverbial, a propósito da cidade de Xangai, que significa, numa tradução pelo sentido, “em redor é tudo estrangeiro” 十里洋场 (shí lǐ yáng chǎng), mas ao pé da letra se traduz por “dez milhas de mercado estrangeiro”. Este pode ser aplicado em sentido positivo como referindo-se a um mercado próspero, mas também negativo, aludindo a uma cidade repleta de gente “de fora”, como era Xangai para muitos chineses que a viam como uma colónia capitalista. É preciso remontar à “invasão dos estrangeiros”, na sequência das duas Guerras do Ópio para entender a aceção negativa, a que foi empregue por Mao Dun. O auge da xenofobia sucede no mundo proverbial quando o estrangeiro é identificado como o inimigo, o que se converte numa apologia do fechamento, memorizada e repetida em frases rítmicas e rimadas ao longo de gerações, pense-se no mundo proverbial português em “mantenha os amigos por perto e os inimigos quanto mais longe, melhor”, cuja correspondência em chinês poderá ser, numa tradução literal, “os inimigos devem manter-se afastados das fronteiras do país” 御敌于国门之外 (yù dí yú guó mén zhī wài), tornando-se o mais distantes e estranhos possível, como sugere este dito da época dos Reinos combatentes, sendo um aforismo atribuído a Mâncio (孟子), retirado do capítulo Wan Zhang 《孟子·万章》da obra homónima, mesmo que o afastamento possa ser apenas de um dos reinos chinês para o outro, como era o caso à época em que o filósofo e/ou os seus discípulos escreveram. Quando o pensamento fechado impera, torna-se notório, por um lado, o enaltecimento das políticas nacionalistas, com o consequente afastamento dos países estrangeiros e de todas as redes intelectuais e político-comerciais “de fora”, por outro, o louvor daqueles que revelam amor à pátria até ao sacrifício extremo, como bem denotam as expressões portuguesa e chinesa, de sentido idêntico, “sacrificar-se pela pátria” (徇国忘己 xùn guó wàng jǐ). Este dito chinês surge no Livro dos Song, Biografia de Xiehui (389-426)《宋书·谢晦传》(“Sòng shū·xièhuìchuán”), encontrando eco na expressão do poeta Bai Juyi (白居易, 772-846) da dinastia Tang em “sacrificar o corpo pelo país” (徇国忘身 xùn guó wàng shēn). Há ainda um outro provérbio chinês que de um modo não tão radical, pois não exige o sacrifício extremo, afasta, no entanto, os laços com o exterior, sendo atribuído a Hu Qi da dinastia Song (宋·胡锜), “Cultiva o interior, resiste ao exterior” (内修外攘 nèi xiū wai rǎng), numa interpretação possível “olha para dentro, não olhes para fora”. Para terminar com uma nota de esperança no diálogo e na comunicação civilizacionais, oposta e complementar à tendência de fechamento existe outra de abertura para a qual também se encontram ditos quer em português quer em chinês. Assim, em Portugal empregamos expressões que denotam a vontade de entendimento do outro e a aceitação de práticas culturais e costumes diferentes: “em Roma sê romano” e “à terra onde fores ter, faz como vires fazer”. Já na China há aforismos relativos a figuras políticas distintas dos tempos republicanos, a Liang Qichao (梁启超, 1873-1929 ), um importante intelectual chinês dos tempos modernos, muito ligado à defesa de uma China mais aberta e comunicativa, como era proposto pelo Movimento da Nova Cultura (1915-1925) ao qual aderiu. Posto isto, não surpreende o seguinte dito, coletivamente apropriado, “portas abertas” (门户开放mén hù kāi fàng), já que só com uma política de abertura de portas para o mundo pode o país prosperar, no entender daquele que foi ministro da justiça da República Chinesa, como explicaria em Breve História da Evolução dos Meios de Subsistência 《生计学说沿革小史》 (“shēngjì xuéshuō yángé xiǎoshǐ”) , pela exposição, contacto e absorção de novas ideias, recebidas do Ocidente, como as da promoção de um pensamento diferente da tradição confucionista, com as características do individualismo, da crítica, da independência e da autonomia para as mulheres. Uma outra expressão que ficou incrustada no pensamento contemporâneo chinês surgiu já no contexto da segunda república chinesa, estabelecida em 1949 pelo partido comunista chinês, e numa segunda onda de pensamento, passada a primeira vaga dos furores revolucionários. Os novos ventos pediam então “reforma e abertura” (改革开放Gǎigé kāifàng), após o fechamento revolucionário que culminaria no Maoísmo (毛主义Máozhǔyì). Esta expressão viria a ser empregue por Deng Xiaoping (邓小平), a 18 de dezembro 1978, na terceira sessão plenária do décimo primeiro Comité Central do PCC. Após o período caótico da Revolução cultural (1966-1976), era preciso pensar noutros termos, serenar os ânimos e abrir a China ao exterior, de modo a que os estrangeiros fossem vistos não como estranhos, ou no pior dos cenários, inimigos, mas sendo suscetíveis de dialogar e contribuir para o desenvolvimento e prosperidade da China, através da compreensão de modos de vida distintos e, sobretudo, da organização económica e científica de que dispunham. “Abertura” e “fechamento” ligados a “distância” e “proximidade”, “fora” e “dentro”, definidos à maneira das fronteiras, podem apresentar-se como muros, portas fechadas ou abertas, mudando consoante os tempos, a educação das gentes e a mentalidade de quem ocupa o poder. Referências Bibliográficas Cai Xiqin 蔡希勤 (Trad.).(1999). 《孟子》北京:华语教学出版社. Gushiju .(2024). “关于外国人的成语 (12个)” (Provérbios sobre estrangeiros) 《 古诗句网 ©2024 京ICP备22222222号-1》 https://ww.gushiju.net/chengyu/k/%E5%A4%96%E5%9B%BD%E4%BA%BA, acedido a 19 de novembro de 2024. 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Paulo Maia e Carmo Via do MeioA deusa que dançava na margem do rio Luo Cao Pi (c.187-226), que seria imperador de Cao Wei no tempo dos Três Reinos e foi o segundo filho do brilhante estratega, general e poeta Cao Cao (c.155-220), após este derrotar o seu rival Yuan Shao na batalha de Guandu, esse seu filho tomou como esposa uma senhora já casada com um general do Estado derrotado chamado Yuan Xi, quando este ainda vivia. Essa senhora conhecida apenas como Zhen furen, a «Senhora Zhen» possuia tais exemplares qualidades de bondade e amor filial que a brandura do seu carácter generoso não seria apenas cantada por sucessivas gerações, mas também objecto de uma suspeita envolvendo o irmão de Cao Pi, o ilustre poeta de carácter rebelde e insubmisso Cao Zhi (192-232), que fora derrotado pelo irmão na disputa pelo poder depois da morte de Cao Cao. Essa suspeição baseia-se num poema escrito por Cao Zhi, que partilhava claras afinidades com a Senhora Zhen ao contrário do seu cru irmão, conhecido como Rapsódia sobre a deusa do rio Luo (Luoshen fu). Segundo alguns relatos o nome original do poema porém, seria Gan Zhen fu, «Rapsódia ao ser tocado pela Senhora Zhen» mas foi modificado pelo filho dela, o herdeiro do reino, Cao Rui, quando leu o poema. Segundo uma nota de Li Shan da dinastia Tang, o fantasma da recém-falecida Senhora Zhen teria aparecido em sonhos a Cao Zhi, dançando à beira das águas, de uma forma que ele interpretou como uma reincarnação da lendária deusa do rio Luo (Luo he), uma senhora ligada ao mitológico herói cultural Fuxi, designada Fufei que, ao atravessá-lo, se afogara nesse afluente do rio Amarelo que passa em Luoyang, capital de Cao Wei. Uma flor odorífera oriunda da distante Península Ibérica que se pode desenvolver em devesas nas orlas dos rios, levada ao longo da extensa Rota da Seda provavelmente por mercadores árabes durante a dinastia Tang, ficaria ligada a essa lenda da deusa do rio Luo. A flor do narciso na subspécie narcissus tazetta chinensis seria designada shuixian hua, a «flor da imortal do rio» ou lingbo xianzi, a «ninfa levantada sobre as ondas». Pintores observarando a flor com as suas compridas folhas verticais entenderam a sua significante beleza. Wang Guxiang (1501-1568), calígrafo e pintor de Changzhou (Jiangsu), tal como fizera o pintor dos Song Zhao Mengjian, dedicou uma particular atenção a essas flores que desabrocham no início da Primavera, prometendo um ano bom. No rolo horizontal Flores das quatro estações (tinta e cor sobre seda, 24 x 545 cm, no Museu de Arte de Cleveland) em que ao lado de cada flor colocou um comentário, junto ao narciso escreveu: «a faixa de jade deixada no rio Luo». Diz-se que um outro objecto que pertencia à Senhora Zhen, uma almofada bordada a jade e ouro, foi mostrada por Cao Pi ao seu irmão. Reparando no olhar flébil de Cao Zhi, logo desfeito em lágrimas, o irmão compreendeu e ofereceu-lha.
Hoje Macau Via do MeioO jardim do Oriente em Zhenzhou (Zhenzhou Dongyuan ji) Por Ouyang Liu* Zhenzhou situa-se na confluência de vários rios do sudeste e controla o transporte no Grande Rio (Yangzi), no Huai, nos dois rios Zhe e no Jinghu. O Secretário Shi Zhengchen e o Censor Xu Zichun estão aí colocados, tendo como assistente o Censor Ma Zhongtu. Os três homens, satisfeitos com as suas boas relações, passaram os seus tempos livres a transformar um local militar abandonado no Jardim Oriental que visitam todos os dias. Neste outono, na oitava lua, Zichun veio em missão à capital. Trazia consigo um quadro que tinha feito do seu jardim, que me mostrou, dizendo: “Este jardim cobre uma superfície de cem mu (6,5 hectares). Um rio corta-o à frente, um lago de água pura irriga-o a oeste e um terraço alto ergue-se a norte. No terraço, temos um quiosque que se esgueira pelas nuvens para contemplar o céu longínquo; na margem do lago, um pavilhão aéreo onde nos podemos debruçar sobre a água límpida; no rio, um barco com dossel pintado para passear. No centro, abrimos um espaço onde construímos um salão para receber e tratar os nossos amigos, com um campo atrás para atirar setas. Onde antes havia um campo de silvas afogado numa névoa cinzenta e fria, a frescura dos lótus e da macer, o perfume das orquídeas e da angélica alternam com as sombras misturadas das belas árvores alinhadas ao lado destas flores requintadas. Onde antes havia um terreno baldio de muros em ruínas e valas alagadas, os telhados altos suportados por longas vigas reflectem a sua imagem na água iluminada pelo sol, dançando, mergulhando e subindo; a descontração e a calma ecoam os sons da distância e atraem um vento curativo. Onde outrora os gritos das doninhas e de outros animais selvagens se erguiam na escuridão das tempestades, os habitantes da cidade, homens e mulheres, passeiam em dias de sol ou de festa ao som de canções e de música. “Não nos poupámos a esforços. Mas o que vêem neste quadro dá apenas uma ideia ténue deste jardim. Quando subimos ao terraço para contemplar o rio e as montanhas próximas ou distantes, quando nos divertimos no rio seguindo os voos e os mergulhos dos peixes e das aves, a sedução do que anima à nossa volta, a alegria de contemplar a paisagem são sentimentos que só o caminhante conhece. Tudo o que a pintura não consegue representar, já não sou capaz de exprimir por palavras. Talvez pudesse escrever algumas palavras sobre o nosso jardim”. E acrescentou: “Zhenzhou é uma encruzilhada por onde passam viajantes dos quatro cantos do império; convidamo-los a partilhar os nossos prazeres, porque havemos de ser os únicos a desfrutá-los? O lago e o terraço são cada vez mais elegantes, as flores e as árvores são cada vez mais abundantes. Não passa um dia sem que haja visitantes de todo o lado. Não seria de partir o coração para nós os três se tivéssemos de deixar este sítio? E se não escrevermos sobre o nosso jardim, quem saberá mais tarde que é obra de nós os três? As grandes qualidades destes três homens permitiram-lhes trabalhar em conjunto e ser úteis nos seus empregos. Eles sabem o que é preciso fazer. Asseguram a prosperidade da Corte e da população do país, onde não se ouvem queixas, e só então relaxam, partilhando os seus prazeres com a boa gente de todo o império. Tudo isto é admirável e merece ser relatado.” Trad. Miguel Lenoir *Ouyang Xiu (1007-1072) foi um “funcionário letrado” exemplar, tão respeitado pela sua carreira (embora duas vezes desonrado) como pela sua obra literária, tão preocupado com o bem público como com o lazer refinado da reforma. O ideal de harmonia que apaga o conflito pode ser visto no jardim não muito longe de Nanjing, que ele provavelmente nunca viu.
Hoje Macau Via do MeioJunto à lagoa (Chishang pian xu) Por Bai Juyi A forma do terreno, a água e a vegetação contribuem para que a parte sudeste de Luoyang 1 seja a mais bela da cidade, e o bairro mais bonito é o de Caminho des Socques, cujo canto noroeste é o mais belo. A primeira casa, junto à muralha a norte do portão oeste, é o local onde o velho Bai Letian se reformou. Tem uma superfície de dezassete mu2, dos quais um terço é ocupado pela habitação, um quinto pela água e um nono pelos bambus, com um lago, ilhas, pontes e caminhos. Quando Letian se tornou seu senhor, disse para si próprio, no meio da sua alegria: “Eu tenho um jardim com um lago, mas não se pode sobreviver lá sem um abastecimento de cereais.” Por isso, construiu um celeiro a leste do lago. Depois disse para si próprio: “Tenho discípulos, mas não tenho livros para ensinar”. E construiu uma biblioteca a norte da lagoa. Depois disse para si próprio: “Tenho visitas e amigos, mas não tenho cítara nem vinho para os entreter”. E construiu um quiosque a oeste da lagoa para tocar a cítara e servir os jarros. Quando Letian deixou o seu cargo de prefeito de Hangzhou, trouxe para Luoyang uma pedra do monte Tianzhu e dois guindastes de Huating. Foi nessa altura que construiu a ponte recta do lado oeste do lago e o passadiço à sua volta.Quando deixou o cargo de prefeito de Suzhou3 , trouxe uma pedra do Lago Taihu, lótus brancos, dois chifres de macer e um barco verde. Em seguida, construiu a ponte em arco no centro do lago que liga as três ilhas. Quando deixou o seu cargo de Vice-Ministro da Justiça, regressou a casa com cinco mil alqueires de cereais, uma carroça cheia de livros e dez pequenos músicos. Antes disso, Chen Xiaoshan, de Yingchuan, tinha-lhe dado uma receita para destilar um vinho delicioso; Cui Huishu, de Boling, tinha-lhe dado uma cítara com um som muito puro; Jiang Fa, de Shu, tinha-lhe ensinado a melodia etérea Pensamento de outono; Yang Zhen, de Hongnong, tinha-lhe dado três pedras de granito polido e uniforme onde se sentar ou deitar. No verão do terceiro ano da era Dahe (829), Letian foi nomeado Conselheiro do Príncipe Herdeiro; este cargo, sem responsabilidades, permitia-lhe ficar em Luoyang e descansar junto ao lago. Tudo o que adquiri durante as três funções importantes que exerci, tudo o que estes quatro amigos me deram, todas estas coisas preciosas caíram nas mãos do meu eu inepto, como se fossem para o fundo do lago. Quer a água seja enrugada pelo vento na primavera ou reflicta a lua no outono, quer de manhã exale o perfume dos lótus que se abrem, quer à noite os grous estalem sob o orvalho puro, acaricio as pedras de Yang, bebo o vinho de Chen, pego na cítara de Cui para tocar a ária de Jiang, tão tomado de felicidade que esqueço tudo o resto. Bêbado, largo a cítara e peço aos pequenos músicos para irem ao coreto da ilha do meio tocar a ária O vestido arco-íris; a melodia flutua, levada pelo vento, ora concentrada, ora dispersa, e sobe e desce entre os bambus envoltos em névoa e a água enluarada. A canção ainda não tinha acabado quando Bai Letian, felizmente embriagado, adormece numa pedra. E quando um dia acordou, improvisou algo que rimava e não rimava, que Agui, o seu sobrinho, transcreveu com o seu pincel. Quando viu este grande pedaço de escrita, chamou-lhe À beira da lagoa : Uma casa de dez mu, um jardim de cinco, um lago, mil bambus. Não digam que é pequena, longe de tudo. É suficiente para dormir e descansar. Há várias salas, um quiosque, uma ponte, um barco, livros, vinho, comida, canções e uma cítara. E, no meio, um velho de barbas brancas que sabe apreciar o que tem sem procurar algo melhor lá fora, como um pássaro que escolhe galhos para o seu ninho, como uma rã no fundo de um poço que desconhece o vasto mar. Grous maravilhosos, pedras raras, lótus brancos, tudo o que amo está ali diante dos meus olhos. Por vezes, levanto a minha chávena ou recito um poema. A minha mulher e os meus filhos alegram-se, os galos e os cães estão calmos. Sinto-me tão bem, é aqui que quero envelhecer! Trad. Miguel Lenoir 1. Anteriormente conhecida como a capital “oriental”, a capital Tang era Chang’an (Xian). As cidades estavam divididas em bairros rectangulares separados por muralhas. 2. O mu, que tem variado ao longo dos tempos, equivale a cerca de um décimo quinto de um hectare. Dezassete mu são, portanto, pouco mais de um hectare. 3. Suzhou continua a ser famosa pelos seus jardins. As pedras do lago Taihu, situado nas proximidades, eram as mais procuradas em todo o lado.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO Exílio Criativo de Mi Wanzhong Wei Zhongxian (1588-1627), o famigerado eunuco da corte que dirigiu os destinos do Império durante o breve reino do diminuído imperador Tianqi (1620-27), tomou uma quantidade de decisões arbitrárias de consolidação do seu poder pessoal e ilegítimo que afectariam a vida de inúmeros súbditos. Entre as centenas de prejudicados durante esse período de deterioração do poder Ming pelas acções de Wei Zhongxian, encontrou-se um funcionário oriundo de Pequim que estava destacado como inspector judicial na administração de Nanquim. Mi Wanzhong (1570-1628) viu-se obrigado a regressar à sua quinta nos arredores de Pequim. Mas esse exílio obrigado tornar-se-ia uma oportunidade de estudo e reencontro com as raízes das artes do pincel, a caligrafia, a pintura e a poesia. Assumindo a antiga posição social do eremita retirado, que não era necessariamente um corte de relações interpessoais indo viver para as montanhas mas um estado de espírito, uma perspectiva sobre a sociedade, preservando a integridade moral e a vida simples fora das cidades. Essa fértil via do eremita contou ao longo da História com diversos e notáveis exemplos como Sun Deng (activo entre 230-260) que desenvolveu o changxiao, o «assobio transcendental» e que era um diligente tocador do qin, o instrumento dos letrados, de onde «retirava oito notas a partir de um única corda», ou o poeta Tao Yuanming (365-427) que descreveu a utopia da Nascente das flores de pessegueiro. Assuntos, entre outros, que podiam ser debatidos em encontros desses literatos livres de compromissos oficiais, nas chamadas qingtan, as «puras conversações». Mas para Mi Wanzhong esse reencontro fez-se logo a partir do seu próprio nome, Mi, em que reclamava uma ligação de parentesco com o egrégio pintor, poeta e calígrafo dos Song do Norte, Mi Fu (1051-1107). Tê-lo-ia em mente ao escolher Youshi, o «amigo das pedras» como um dos seus nomes de pincel. Mi Wanzhong concebeu um desses desejados lugares de acolhimento de literatos no rolo horizontal Moradas de eremitas nas montanhas de Outono (tinta e cor sobre papel, 23,5 x 186,4 cm, no Instituto de Arte de Chicago). Na arte da caligrafia onde se pode perceber o carácter do autor, desenvolveu o seu estilo na complementaridade dos estilos de Yan Zhenqing (709-785) com a firmeza do traço que se aprecia nos textos gravados em pedras e ravinas, moya shike . Num poema que escreveu alude à vida descontraída de um amigo que morava no Jardim para celebrar a falta de jeito, uma virtude para os eremitas eruditos que se queriam simples e não sofisticados. «Preguiçosamente deixa crescer ervas e trepadeiras no caminho para o seu portão,/ E não permite que rodas ou cascos estraguem o musgo antigo./ Porquê então esses pássaros escondidos tão agitados?/ Em cadências, através do bosque, ecoam os seus gritos: acaba de chegar um amigo para beber.»
José Simões Morais Via do MeioConstrução do Grande Canal Sui Na dinastia Han do Oeste (206 a.n.E.-23) o Rio Wei era usado para levar o arroz proveniente do Leste até à capital Chang’an (Xian), mas o trajecto com muitas curvas e cheio de altos e baixos era difícil. Por isso, em 129 a.n.E., no reinado de Wudi (140-87 a.n.E.), em três anos foi dragado entre Dongjing (Luoyang) e Chang’an (Xian) o canal Caoqu (漕渠) para facilitar o transporte. Como a dinastia Han de Leste (25-220) mudou a capital para Luoyang, o canal Cao deixou de ser usado. Desde então, nos quatro séculos até à dinastia Sui, muitos outros canais foram rasgados e comportas construídas, criando, onde era possível, uma rede fluvial a substituir a viária, promovendo a comunicação em áreas até então separadas. Esse uso constante da água, como meio de transporte mais fácil, permitia fugir aos terrenos montanhosos e era mais seguro do que viajar por terra, levando a um contínuo labor, mas de forma pontual, até ao início do século VII. Estava por fazer uma rede fluvial integrada, ideia que ganhou força na dinastia Sui (581-618), quando foi planificado o Grande Canal aproveitando um sistema de rios, lagos, canais e comportas já de grandes dimensões e por um conjunto de dragagens ficou aberto como estrada de água. A China, dividida desde a dinastia Han, foi reunificada pela dinastia Sui e o seu primeiro imperador, Wendi (Yang Jian, 581-604) instalou a capital em Chang’an (hoje Xian) mas como esta cidade era muito pequena e velha aditou em 582 uma nova parte, ficando assim a sua capital com o nome de Daxing. Logo em 584 mandou construiu o canal Guangtong (Guangtong qu, 广通渠), por ser necessário transportar arroz para a nova capital e daí foi usado parte do antigo canal Chao, levando a água do Rio Wei a atravessar por Noroeste a cidade de Daxing até Tongguan e assim ligá-la com o Rio Amarelo. Este canal com 300 li no ano 604 passou a ser chamado Yongtong qu, mas logo deixou de ser usado devido ao grande assoreamento. Na dinastia Tang, o Imperador Xuanzong (Li Longji, 685-762) ordenou repará-lo e mudou-lhe o nome para Guangyun tan e após a capital deixar Dongdu (Luoyang) [para onde a Imperador Wu Zetian (684-705) ao fundar em 690 a nova dinastia Zhou aí fizera a capital] este trecho de água deixou de ser usado. Em 587, o Imperador Wen mandou reparar o antigo canal Hangou (邗沟, construído em 486 a.n.E.) criando então o canal Shanyang (山阳渎, Shanyang du) com 300 li do Rio Huai ao Changjiang. PROJECTOS DE YANG DI Em 604, Yang Guang, filho do primeiro imperador da dinastia Sui Wendi (581-604), deixou a capital Daxing (Chang’an, hoje Xian) e mudou-se para Luoyang. No ano seguinte, já como segundo imperador Sui, Yangdi (605-618) ordenou a construção de dois projectos: reconstruir Luoyang [cidade a Oeste da província de Henan, nas margens do Rio Luo, fundada em 1200 a.n.E. e que tinha sido capital das dinastias, Zhou do Leste, então com o nome de Wangcheng, Han de Leste, Wei, Jin de Oeste e desde 494 do Wei do Norte] para ser a capital do Leste, Dongdu (东都). Na mesma altura, idealizou também a abertura do Grande Canal, uma extensa estrada de água com 2400 quilómetros a ligar o Norte, desde Yanjing (Beijing) ao centro Sul do país, a Yuhang (Hangzhou), ficando Dongdu a meio caminho. O projecto levou seis anos a concluir. Entre 605 a 610, Yangdi mandou milhões de homens rasgar canais a complementar secções já existentes para ligar os cinco grandes rios que drenam a água para o Grande Canal. Assim, em 610 ficou Yuhang (Hangzhou) ligada à capital do Leste Dongdu (东都, hoje Luoyang) e durante a dinastia Tang chegava a Chang’an (Xian) usando o Rio Wei que corre até ao Rio Amarelo. No ano de 605, o Imperador Sui Yangdi baseado no canal Honggou (construído em 360 a.n.E., no período dos Reinos Combatentes) ordenou ser rasgado o canal Tongji (Tongji qu, 通济渠) a unir o Rio Amarelo ao Huaihe com três secções, Leste, Centro e Oeste, tendo o conjunto dois mil li. A secção Oeste começava em Dongdu (东都, Luoyang) e a água proveniente do Rio Luo e do seu afluente Gushui juntava-se em Gongyie ao Huanghe (Rio Amarelo). A secção do Centro iniciava-se em Banzhu (板渚), seguindo o Rio Amarelo por Zhengzhou, Bianzhou (汴州, hoje Kaifeng), Songzhou (宋州) (Shangqiu) até Suzhou (宿州) e após Sizhou (泗州) chegava a Xuyi (盱眙), onde conectava com Huaihe. A secção Leste, usando o Rio Huai (Huaihe) por o antigo canal Hangou [dragado em 486 a.n.E. pelo rei Fuchai do reino Wu], de Shanyang (山阳, actual Huai’an) chegava a Jiangdu (江都, hoje Yangzhou). Era o canal Shanyang [Shanyang du] que do Rio Huai ia até ao Changjiang. No ano 587 foi reparado e limpo e em 605, Yangdi colocou mais de cem mil trabalhadores para alargar o Shanyang du e estender o comprimento desse canal de Shanyang (actual Huai’an) até Yangzijin (扬子津), parte Sul da cidade de Jiangdu (actual Yangzhou). O Canal Tongji foi usado durante seiscentos anos pelas dinastias Sui, Tang, Cinco Dinastias (五代), Song, e Jin e quando a dinastia Song do Sul (1127-1279) mudou a capital para Lin’an (Hangzhou), começou a deixar de ser utilizado e os sedimentos entupiram-no. No ano de 608, em Yuncheng, concelho de Yongji [conhecido nos antigos livros por Puban] na província Shanxi, foi rasgado o canal Yongji (Yongji qu, 永济渠), que na parte Sul ligava o Rio Qin (沁水, Qinshui) com o Rio Amarelo em Wuzhixian. A Norte, o Yongji qu ia de Tianjin à região de Beijing. Assim, ficava o Huanghe (Rio Amarelo) ligado ao Rio Hai (Haihe, com cinco afluentes), que atravessava a cidade de Tianjin e atingia o Mar de Bohai em Tanggu. O Rio Hai (海河Haihe) com 72 km de comprimento e mais de trezentos afluentes constitui um dos sete sistemas fluviais da China. Já na dinastia Han de Leste, no ano de 204 Cao Cao abrira Baigou (白沟) a Oeste do canal Weiyunhe (卫运河, sistema do Rio Wei), assim como o canal Pingluqu (平虏渠), a conectar Shahe (沙河, Rio Sha) a Tianjin. Em 610, com a construção do canal Yongji passou a existir uma linha de transporte directa para trazer os cereais das regiões do Changjiang (Rio Yangzi) e do Huaihe até ao Norte e daí, na dinastia Sui foram levados 200 milhões de quilos de cereais para Luoyang. Na dinastia Tang (618-907) o sistema do canal foi desenvolvido e na dinastia Song do Norte (960-1125/26), quando a capital passou para Kaifeng, o canal tornou-se ainda mais importante. No século XI o volume de tráfego era provavelmente três vezes superior ao do período Tang, segundo a Britannica Enciclopédia. O canal foi abandonado no início do século XII, durante a divisão da China entre a dinastia Jin (Juchen, 1115-1234) a Norte e a Song do Sul (1127-1279) a Sul. O Canal Jiangnan yunhe (江南运河) ligava o Changjiang ao Rio Qiantang. No Período Primavera-Outono, o reino Wu (Wuguo) fez o canal Taibo (泰伯渎, Taibo du) a ligar Suzhou a Wuxi e quando batalhava com o reino Yue, para transportar arroz estendeu o canal até ao Rio Qiantang (Qiantangjiang). No reinado do primeiro imperador da dinastia Qin, baseado nesse canal fez-se o prolongamento a Norte desde Zhenjiang, passando por Suzhou até Hangzhou chamando-o Lingshuidao (陵水道). No Período dos Três Reinos, Sun Quan ordenara a construção do canal Jiangnan yunhe (江南运河) para ligar o Changjiang, a passar pela sua capital Jianye (actual Nanjing), ao Rio Qiantang (钱塘江). Em 610, usando o Jiangnan yunhe, Yangdi alargou-o e fê-lo passar pelo lago Tai (Taihu), conectando com os rios que no lago desaguavam, tornando o percurso mais recto, desde Jingkou (Zhenjiang) até Yuhang (Hangzhou). O Rio Qiantang desde o Período Primavera-Outono está ligado a Shaoxing pelo canal Zhejiang Leste e no Período dos Três Reinos a Ningbo pelo rio Yong [rio formado pela convergência do Rio Fenhua e o Rio Yao (que passa por Shangyao e as montanhas Siming)] e desagua no Mar da China do Leste no distrito de Zhenhai em Ningbo. Assim, na dinastia Sui o Grande Canal ligava o Rio Qiantang a Yanjing (Beijing), atravessando o Changjiang, o Huaihe, o Huanghe e o Haihe.
Ana Cristina Alves Via do MeioA Encarnação Feminina de Pu Songling (蒲松龄, 1640-1715): Um registo biográfico contemporâneo Por Ana Cristina Alves, Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM 19 de novembro de 2024 Pu Songling (蒲松龄) perguntava-se como era possível ter reencarnado mulher, chamava-se agora Pu Meiling (蒲美玲). Depois de tudo o que experimentara na existência anterior enquanto homem e de ter sofrido tão grande dissabor às mãos de oficiais imperiais corruptos, viera parar ao século XXI e, ainda por cima, na figura de uma mulher como as que descrevera nos seus contos. Facilmente seria confundido com uma raposa encantada. A sua versão feminina parecia fotocópia das donzelas bonitas das suas histórias de outrora. Era inteligente, aberta, muito à frente para o seu tempo, gostando de se vestir e comportar de uma forma elegante. Além disso, amava estudar, fazia-o com tanto gosto, que se esquecia dias, meses e anos a fio de que o mundo exterior existia. Quando entrou na Universidade, deu nas vistas por todas as razões, atraindo a atenção de colegas e professores. Já perto do final do curso de literatura, porque o essencial da mente de Pu Songling não se perdera na sua metamorfose feminina, chamou a atenção de um dos professores pelos piores motivos, não pela escorreita e imaginativa escrita, mas pelas suas belas formas. Enfim, as aproximações de um dos mentores aborreceram-na tanto que mal terminou os exames, se afastou, rumo ao sul da China. Iria até Macau (澳門Àomén), onde tinha ouvido dizer que as mulheres, devido à influência portuguesa, adquiriram um estatuto privilegiado relativamente às chinesas do continente. Portanto, Pu Meiling acreditava que assim resolvia a questão de avanços indesejados, de uma vez por todas. Os pais concordaram que fosse tirar o curso de mestrado em terra distante, desde que voltasse. Quando chegou à nova terra, escolheu a Faculdade de Humanidades da Universidade de Macau (澳門大學Àomén dàxué), de modo a prosseguir os seus estudos de literatura. Ora ainda faltava algum tempo para as aulas de mestrado começarem, alugou então uma antiga casa de pescadores na vila de Coloane (路環Lùhuán), apesar de lhe terem dito que esta era assombrada pelo espírito de um pescador falecido ao largo da praia de Hác- Sá (黑沙海灘Hēishā Hǎitān). Não sentia qualquer receio, talvez porque se familiarizara com todo o tipo de existências na vida anterior: cadáveres, mortos-vivos, animais encantados e fantasmas. Escrevera volumes inteiros sobre eles, pelo que se preparou para regressar aos mundos paralelos sem qualquer problema. Seria até muito divertido encontrar fantasmas no século XXI. Teriam mudado com os novos tempos, ganhando por exemplo mais corpo? Estariam mais bondosos? Recordava-se de que em geral as raposas encantadas eram bem melhores do que os fantasmas, mas havia exceções de imensa generosidade e abnegação por entre os seres do limbo. Alugou a casinha na vila de Coloane, decidida a não pregar olho logo na primeira noite. Mas a viagem tinha sido longa e Pu Meiling estava exausta. Nessa noite dormiu de um sono só e quando acordou na manhã seguinte já o sol ia alto. Levantou-se e resolveu inspecionar a casa com toda a atenção. Não encontrou mais nada à exceção de uma foto, com uma riquíssima moldura de jade, de um sujeito bem-parecido, que talvez tivesse ficado esquecida em cima daquela mesinha a um canto da sala. Não havia dúvida o homem era muito bonito. Estava encostado a um barco-dragão (龍舟Lóngzhōu) e mais parecia um príncipe, mas devia ser o tal pescador que habitara em tempos no lugar. Meiling, mal pousou a foto, começou a sentir um estranho apelo do mar. Disse para consigo “Tenho que ir à praia, afinal as aulas ainda não começaram, ora tempo não me falta”. Dirigiu-se ao início da vila onde passava o autocarro nº25, que a levaria até Hác-Sá. Ao longo da viagem, foi contemplando as sinuosas curvas de um caminho muito verde, que mais pareciam o dorso de um dragão (龍 lóng), estendendo-se preguiçosamente da vila até ao areal. Quando chegou à praia, já era tarde. Em breve havia de escurecer, mas ela não se importou. Petiscou qualquer coisa numas bancadas improvisadas à beira-mar e dirigiu-se para a areia preta, onde se sentou, perdendo a noção do tempo. Já a noite ia alta quando avistou um barco-dragão a flutuar relativamente perto da praia. Num impulso atirou-se à água; umas braçadas depois, alcançava o barqueiro, que lhe pareceu tão leve como uma pena. Perguntou-lhe se podia entrar na embarcação ao que este aquiesceu. Agradecendo subiu, enquanto dizia: – Já vi este barco, estava numa única fotografia esquecida na minha nova casa. – Não é de Macau – respondeu o barqueiro – nota-se pela pronúncia do Norte. – Fugi do Norte, porque não gostei do modo como fui tratada na universidade, tenho esperança que haja mais respeito pelas mulheres estudantes no Sul. O barqueiro ouvindo estas palavras, retorquiu rindo: – o respeito não tem a ver com o Norte ou com o Sul, as mulheres da terra ainda têm um longo caminho a percorrer, sejam estudantes ou não. – Mulheres da terra…do mar não? – atirou Meiling na expetativa de começar a desvendar o que lhe cheirava a mistério. O barqueiro explicou que no mundo donde vinha, as mulheres não tinham qualquer problema, eram bem tratadas e, sobretudo, muito respeitadas. Em seguida, convidou-a a ir visitar o palácio do Rei Dragão (龍王 Lóng Wáng), explicando que tinha ordens para levar alguém diferente a distrair o Príncipe (龍太子Lóng tàizǐ). O Rei Dragão estava muito preocupado com o filho, que caíra numa letargia inexplicável. Tudo o aborrecia. Primeiro, o pai tinha-se zangado muito com ele, atirando-lhe em rosto que o seu comportamento era fruto de excesso de mimos, mas depois, vendo que ele não reagia, nem aos berros do governante das águas, e que era o seu filho primogénito, herdeiro da coroa, pensou em encontrar um motivo de diversão e nada melhor do que um humano com as suas peculiaridades e limitações para o fazer regressar à vida. Meiling aceitou de imediato o repto, por que não distrair um príncipe antes de começar as aulas? Ela também andava meio chocha, podia ser que se inspirassem mutuamente. O palácio do Rei Dragão era esplendoroso. Sobressaía o tom de verde-jade, por entre belos corais. Todo o mobiliário era transparente, feito dos mais puros cristais que emitiam sons de uma beleza invulgar. O monarca era educadíssimo, a consorte de uma beleza rara e as feições do príncipe lembravam-lhe o homem da foto. Em breve ela e o filho do Rei Dragão seriam os melhores amigos. Ele voltou a recuperar a alegria de viver e ela a confiança na vida. Passado um tempo, Meiling começou a sentir-se inquieta. Tinha que voltar para terra, a fim de prosseguir os estudos. Também não podia deixar os pais tanto tempo sem novas. Já não eram novos e ela era filha única e nunca tivera um ato impiedoso para com eles. Deixá-los sem notícias era uma maldade imperdoável, além disso, como eram idosos, podiam precisar dela num qualquer imprevisto que surgisse. Ora em Macau, saberia deles, mas no palácio do Rei Dragão seria mais difícil. Pelo que, vendo que o príncipe recuperara das suas maleitas, estando pronto a desempenhar as funções reais, despediu-se, regressando a terra na mesma embarcação que a levara ao fundo do mar. À despedida o Príncipe Dragão disse-lhe: – Tens uma foto minha em tua casa, que ofereci a um pescador exímio nas regatas dos barcos-dragão (龍舟賽Lóngzhōu sài), se sentires saudades minhas, agarra nela e invoca o meu nome, que logo aparecerei. Todos tiveram pena de ver partir a Meiling; ela nem se falava, ia com o coração pesado como uma pedra. Já em casa, correu à sala para verificar se a foto ainda estava no mesmo sítio e ficou muito contente por perceber que sim. Entretanto, embora tivessem começado as aulas na faculdade, optou por continuar a viver em Coloane na sua casinha da vila perto do mar. Distinguiu-se mais uma vez nos estudos e quando sentia muitas saudades do príncipe-dragão, pegava na foto e chamava-o. Ele aparecia logo, o que muito a animava. Tinham longas conversas sobre todos os assuntos do mundo humano e aquático. Apesar de gostarem muito um do outro, ele mantinha-se respeitavelmente à distância. Já estava Meiling a escrever a tese de mestrado, quando o pai adoeceu. A mãe telefonou de Beijing (北京Běijīng) a pedir que o fosse ver antes que ele partisse definitivamente. A filha correu para o Norte, a fim de ver o pai e chegou mesmo a tempo de lhe dizer um último adeus. Entretanto, como pensava estabelecer-se em Macau, porque o clima era muito mais quente e sentia-se mais próxima do mar e do seu amigo secreto, sugeriu à mãe que fosse viver com ela para lá. A senhora concordou de imediato, o que a deixou muito feliz. Novamente em Coloane, e na boa companhia de sua mãe, verificou que a foto tinha sido roubada. Alguém lhe entrara em casa durante a sua ausência e ao ver uma moldura de jade, pensou que havia de lhe render boa soma, pelo que a levou com a fotografia. Meiling, desesperada, perguntou aos vizinhos se tinham dado por qualquer suspeito a rondar o local, mas nada, ninguém vira movimentações estranhas, nem a foto nem a moldura. A mãe estranhou por que motivo o desaparecimento do objeto preocupava tanto Meiling, pelo que a filha acabou por lhe contar toda a aventura que vivera no reino do Rei Dragão. Quando acabou o relato, a Senhora Pu (蒲太太), procurando consola-la da perda, apenas repetia: – Tenho a certeza que vais encontrar a foto. Certo dia em que a Senhora Pu foi a Macau fazer compras no Mercado de S. Domingos, resolveu passear pelas tendinhas laterais, pois aproximava-se o verão e ela precisava de um vestido fresquinho. Ao passar por uma das tendas, com muita quinquilharia, viu uma foto emoldurada a jade, com um rapaz jeitoso e de porte real encostado a um barco dragão. Ainda que fosse o objeto mais caro da tenda, resolveu adquiri-lo, guiada pela sua intuição maternal. Foi então ao banco, levantar grande parte das suas poupanças, o que não a incomodou, pois só pensava, que se tivesse certa, a sua filha ia sentir uma alegria imensa. Quando chegou a casa, colocou a foto em cima da cama da Meiling com todo o cuidado, na esperança de não ter gastado uma fortuna em vão. Pouco depois chegava a rapariga, muito satisfeita porque o seu orientador já lhe tinha marcado as provas de mestrado. Quando entrou no quarto, ao olhar para cima de cama, viu a foto que tanto amava e imediatamente agarrou nela, invocando o Príncipe Dragão, esquecendo-se que a mãe estava por perto e podia aparecer a qualquer momento. O Príncipe surgiu, vinha com um ar cansado, estava mais magro. Aproximou-se de Meiling, dando-lhe um grande abraço. Entretanto, a Senhora Pu entrou no quarto e passados os primeiros cumprimentos, contou que resgatara a foto nas tendas de S. Domingos. O Príncipe não quis perder mais tempo, e logo ali pediu a mão de Meiling à mãe. Esta vendo tão garboso e educado rapaz, aceitou com grande satisfação o pedido. Depois o Príncipe foi solicitar ao Rei Dragão permissão para permanecer em terra enquanto a Senhora Pu fosse viva, já que Meiling era uma boa filha e não podia abandonar a sua progenitora nos últimos anos da vida. O Rei Dragão consentiu na condição de que o filho e a nora fossem viver para o seu reino de mar, assim que a Senhora Pu partisse, o que de facto viria a suceder largos anos volvidos. Quando a promessa foi cumprida, chegou ao Reino do Dragão em certo dia de verão uma comitiva alargada, composta por o Príncipe, a Meiling e os dois filhos, um casalinho resultante do casamento. Estes fizeram as delícias do avô, pois eram muito vivos e alegres, adoravam água e, sobretudo, nunca paravam quietos à boa maneira dos dragões. Comentário da autora. A história só teve um final feliz porque Meiling revelou uma virtude essencial para o Rei Dragão, era muito bondosa e amiga da sua mãe, mostrando que a verdadeira piedade filial a todos comove, seja na terra ou no mar. Bibliografia Yao Feng (Org. ) 2022. Pu Songling. Contos de Fantasia Chineses. Belo Horizonte: Editora Moinhos.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioOs retratos de dois velhos da família de Ruan Zude Zhang Zao, no século VIII, seguindo uma já longa tradição, resumiu numa frase a expressão de um objectivo a atingir pelos pintores que se dedicaram à chamada pintura de paisagens (shanshui): «estudar a natureza como disciplina externa, encontrar a fonte interiormente no teu coração». Inversamente, o observador via preferencialmente a personalidade do pintor na pintura de uma paisagem como no celebrado caso da Quinta Wangchuan de Wang Wei (699-761), reconhecida como um seu retrato. Mas para executar um símile das feições de uma pessoa, necessário por exemplo para o culto familiar dos antepassados, havia regras a cumprir como a ausência de sombras no rosto, entendidas como mau presságio, que se mostravam como um de vários desafios às oficinas que, em geral, executavam tais trabalhos. E como obra colectiva, poucos desses retratos foram assinados. No fim da dinastia Ming, porém, é notável o caso raro de dois retratos de um casal de idosos, assinados e pintados por um membro da família dos retratados, feitos quando eles ainda viviam, que podem ser observados no Metmuseum (rolos verticais, tinta e cor sobre seda, 156,8 x 96,2 cm). No rolo do marido está uma inscrição que revela ser este retrato feito por Ruan Zude do seu tio-bisavô Yizhai com oitenta e cinco anos. A excepcional expressividade dos rostos mostrados de frente, conforme a tradição dos retratos dos antepassados, revela um invulgar domínio do desenho com uma linha para comunicar a percepção da tridimensionalidade sem modulações de cor. O que se opõe fortemente ao modo aparentemente convencional como é representado o corpo das duas figuras sentadas em cadeiras de braços (quanyi) que fazem um contínuo com o espaldar num círculo, que contrasta com o rectângulo do supedâneo a seus pés. Envoltas em exageradas vestes de um azul de azurite com um padrão repetido de nuvens, os rostos das figuras emergem intensos e afáveis das suas vestes de aspecto artificial, abstracto. Detalhes distinguem cada um dos retratos. Ruan Zude colocou nas vestes da senhora e não do marido, o «quadrado dos mandarins» (buzi) decorado com animais ou pássaros que, pelo menos desde a dinastia Yuan, indica o grau militar ou civil na administração imperial composta unicamente por homens. Neste caso, dois grous da Manchúria indicam o grau civil mais elevado e porque o marido não ostenta o buzi é provável que ela o possua por herança do pai. Sobre a cabeça uma luxuosa tiara decorada a ouro e penas azuis embutidas do pássaro guarda-rios (cui niao). No retrato de Yizhai, o tecido bocado a ouro e vermelho da cadeira é um discreto sinal de luxo. Mas todos esses indícios ficam atrás da superior nobreza do rosto dos dois velhos; do seu olhar cândido, de bondade e sabedoria que o jovem familiar teve a sensibilidade de discernir na sua obra de amor filial (xiao).
Hoje Macau Via do MeioA última noite do Império III por Luis Nestor Ribeiro (1) Os Sentimentos da População Nas ruas de Macau, os principais acontecimentos da transição eram atentamente seguidos por milhares de pessoas, que podiam assistir igualmente ao momento histórico difundido pela televisão, através de grandes ecrãs instalados nos principais pontos da cidade. A maioria estava em silêncio, observando fixamente o desenrolar dos eventos. Alguns choravam, outros permaneciam em estado de contemplação. Era um momento de despedida, mas também de esperança. Afinal, o futuro de Macau estava, a partir daquele momento, nas mãos da China. Ao passar a meia-noite, os primeiros instantes do dia 20 de Dezembro de 1999 foram marcados pelo eclodir de uma nova era pós-colonial, com a retirada dos símbolos oficiais portugueses existentes nos organismos e serviços públicos, tendo sido minuciosamente substituídos por insígnias alusivas à nova Região Administrativa da R.P.C., num perfeito sincronismo em todo o território e ilhas da Taipa e Coloane, incluindo os distintivos usados em fardas, uniformes e viaturas oficiais ao serviço dos elementos das forças policiais e autoridades locais. Foi uma longa madrugada, muito fria e envolta num extenso manto de nevoeiro. Ao raiar da aurora, havia uma sensação clara de que uma nova era tivera início. Era o cair do pano sobre a última parcela de território que pertencera ao antigo Império Colonial Português, formado a partir do séc. XV em diversas regiões de três continentes, onde a presença portuguesa se fez sentir, deixando marcas indeléveis como a cultura e a língua, em África, América e na Ásia. De notar também que se assistia ao último arrear de bandeira de uma nação ocidental que administrara um território na Ásia. A China soube reservar e outorgar esse papel histórico a Portugal, com discrição e elevação, impondo à coroa inglesa que o Handover de Hong-Kong se realizasse antes da transferência de Macau, não obstante as diligências infrutíferas protagonizadas pelos diplomatas de Sua Majestade, tentando em vão, negociar um hipotético adiamento. Era o reconhecimento tácito do cordial relacionalmente institucional luso-chinês, firmado num entendimento recíproco duradouro, em contraste com a natureza arrogante e beligerante da presença britânica em H.K., que resultou na sua ocupação pela força em 1842. Nos dias que se seguiram, as bandeiras chinesas e as da Região Administrativa e Especial de Macau tornaram-se uma presença constante, a esvoaçar nos mastros dispersos em vários locais estratégicos, incluindo as antigas fortalezas construídas pelos portugueses nas suas colinas. Reinava a euforia por Macau ser finalmente governado pelas suas gentes. Em termos de segurança, assistiu-se a um regressar à normalidade, sendo evidente que as novas autoridades não iriam permitir que se repetissem actos semelhantes aos cometidos durante os últimos anos da década de 1990. Consequências: Um Novo Capítulo As Mudanças Económicas O impacto económico da transferência de administração foi sentido quase imediatamente. O jogo era uma das principais atracções de Macau, sendo explorado nos diversos casinos pertencentes à STDM(15) em regime de concessão exclusiva. A RAEM – Região Administrativa Especial de Macau assistiu a uma verdadeira explosão no desenvolvimento desse sector nos anos seguintes. A liberalização do jogo acompanhada de enormes investimentos de consórcios internacionais, transformou Macau num dos maiores centros de entretenimento do mundo, rivalizando com Las Vegas. A cidade, que antes era relativamente pacata, passou por um boom de progresso e crescimento económico vertiginoso. Novos hotéis de luxo e complexos de entretenimento surgiram, atraindo milhões de turistas todos os anos, principalmente da China e países asiáticos vizinhos. As receitas do jogo passaram a sustentar a economia de Macau de uma forma ainda mais vincada. Mas esse crescimento económico trouxe consigo novos desafios. A dependência excessiva do jogo gerou preocupações sobre a sustentabilidade a longo prazo da economia. Além disso, a disparidade entre os rendimentos dos que trabalhavam nos casinos e a restante população aumentou, criando alguns focos de apreensão. As Transformações Sociais A influência da cultura chinesa cresceu exponencialmente, especialmente entre os jovens. O sistema educacional foi reestruturado para incluir mais aulas em mandarim bem como de educação cívica e patriótica, com a língua portuguesa a perder a projecção que conheceu, passando a ser cada vez menos utilizada no quotidiano. As escolas e universidades passaram a integrar ainda mais os programas curriculares do sistema nacional de ensino ministrado na R.P.C., com um foco maior nas disciplinas científicas e menos ênfase nas humanidades. Para muitos jovens, isso representou uma oportunidade de crescer num ambiente mais competitivo, com acesso mais fácil a empregos na China. Contudo, para outros, significou a perda de uma parte importante da sua identidade. A outra face do desenvolvimento tem exposto alguns desequilíbrios. Enquanto muitos dos que trabalham na indústria do jogo e sectores afectos ao turismo prosperaram, outros segmentos da população, especialmente os idosos, começaram a sentir o peso do aumento do custo de vida. A gentrificação de áreas históricas também fez com que algumas famílias fossem deslocadas, perdendo o acesso a habitação acessível. O Governo da RAEM tem implementado diversas acções no sentido de mitigar os desequilíbrios sociais provocados pela inflação e pelo crescimento do sector do jogo, que representa uma parte significativa do PIB, com o objectivo de promover mais justiça social e equilibrar o desenvolvimento económico. Algumas iniciativas recentes incluem a diversificação da economia com incentivos para o fomento de outras indústrias, como turismo não relacionado com o jogo, tecnologia, saúde e educação. Foram lançados programas de formação para sustentar a criação e crescimento de PMEs, com atribuição de subsídios, diversificando assim a base económica e criando empregos em sectores alternativos. Para combater a inflação têm sido implementadas iniciativas para evitar a especulação de preços, especialmente em habitação e produtos de consumo básicos. Outra medida que tem sido bem aceite é a atribuição de subsídios e benefícios directos à população, como cheques de consumo e aumentos nos apoios sociais, para abrandar o impacto do aumento dos preços, especialmente em alimentos e bens essenciais. Tem-se assistido a um aumento nos investimentos em programas de habitação pública, oferecendo mais unidades de habitação social para famílias de baixos e médios rendimentos, com o propósito de combater os custos elevados dos imóveis no mercado privado. O sistema de saúde público de Macau também tem captado investimentos, com a expansão de serviços de saúde gratuitos ou subsidiados para garantir que toda a população tenha acesso a cuidados médicos de qualidade Tenho conseguido acompanhar de perto a evolução de Macau, que não pára de me surpreender. Na visita mais recente realizada em meados de Setembro de 2024, dei-me conta dos avanços que tem registado, em vários domínios, como a melhoria da rede de transportes públicos, com autocarros modernos e climatizados, que cobrem praticamente todo o território. O espaço público está particularmente bem cuidado, com uma atenção particular na harmonização dos canteiros, jardins e zonas verdes, impecavelmente tratadas e integradas nas novas áreas urbanas em expansão. A cidade está muito mais limpa, um efeito positivo pós-pandemia COVID-19, sendo bastante evidente o grau de higienização dos espaços interiores dos mercados públicos. A rede viária foi melhorada, com novas acessibilidades e mais disciplina no controlo dos fluxos de trânsito pedonal e automóvel. A partir de Outubro a quarta ponte de ligação à Taipa permitiu um melhor escoamento do tráfego com destino às ilhas. Os Desafios A preservação da identidade cultural de Macau tornou-se um desafio cada vez maior, numa perspectiva de manter a especificidade que lhe conferia o segundo sistema, derivado do axioma político preconizado com grande pragmatismo pelo grande líder Deng Xiaoping, de um país, dois sistemas. Embora os macaenses ainda celebrem as suas festas tradicionais e mantenham algumas de suas práticas culturais e religiosas de inspiração cristã, a influência crescente da China continental começou a ofuscar muitas dessas tradições. A arquitectura de inspiração colonial ainda permanece visível, mas novos arranha-céus e complexos de casinos começaram a alterar a fisionomia e a dominar o horizonte da cidade, quebrando a noção de escala e rompendo alguns enquadramentos que faziam coabitar o antigo com o novo, numa pequena parcela de território. Não obstante alguns desequilíbrios provocados no tecido urbano pelo inevitável surto de desenvolvimento, é importante elogiar o empenho do governo local em concretizar o reconhecimento oficial pela UNESCO em 2005, de um vasto conjunto de monumentos e edifícios classificados do seu centro histórico, como Património Mundial da Humanidade, um legado histórico incontornável da sua herança cultural, de matriz luso-chinesa. Reflexões Pessoais: Uma Jornada Íntima No Papel de Protagonista Numa perspectiva mais íntima, como realizador e observador atento da realidade que me rodeia, a transferência de Macau foi mais do que um mero evento histórico; foi o revisitar de uma epifania, uma profunda transformação pessoal. Desde a minha infância na ex-colónia de Moçambique e depois mais tarde em Portugal, sempre tive uma enorme curiosidade pela China e pelo Oriente, provocada em certa medida pela convivência desde tenra idade com colegas chineses que frequentaram as mesmas escolas, partilharam brincadeiras no recreio e competiram nos mesmos recintos desportivos, desde a escola primária até à conclusão do ensino secundário, – na cidade da Beira, – onde residia uma enorme comunidade chinesa(16). Deixei-me apaixonar pelas suas gentes, pela sua maneira de ser, pelos aromas exóticos que emanavam do bairro chinês e que me marcaram para o resto da vida. Seduzido pela sua cultura milenar, não resisti ao apelo de rumar a Macau no início da década de oitenta do século passado, correspondendo a um convite do Governo de Macau dirigido a um pequeno grupo de profissionais da RTP para colaborar no projecto de criação de uma nova estação TV em Macau e formar os futuros quadros locais. Finalmente pude concretizar esse desejo de imersão na realidade que sempre idealizei desde muito novo, fruto de um apelo que as culturas distantes exerciam em mim, inspirado pelas histórias exóticas que lia incansavelmente, mas que os livros não podiam captar completamente. Quando cheguei a Macau, ainda jovem, sedento de aventura e de emoções fortes, não fazia ideia de que iria testemunhar uma das maiores transições políticas da história moderna. A minha jornada em Macau foi uma lição de vida, de aprendizagem contínua. Conheci pessoas incríveis — chineses, portugueses, macaenses e expatriados —, cada uma com sua própria visão do que significava viver naquela cidade singular. Muitos continuam em Macau e suscitam-me os mesmos sentimentos de afecto como os familiares mais próximos. Passaram a integrar a bagagem existencial que transporto, são parte da minha família, para além dos meus filhos nascidos em Macau. Acompanhei de perto as mudanças políticas e económicas, mas também fui sendo moldado pelo escopo das transformações humanas que a transição operou. Marcas indeléveis de uma realidade fugidia A principal lição que assimilei com a experiência de cobrir a transição de Macau foi a de que identidade é algo de fluido, em constante transformação. Macau, como território, sempre foi uma terra de fronteira — geográfica e cultural, — e a sua identidade é algo difícil de definir de forma precisa. Se tentarmos captar a sua essência numa fotografia, ela revelar-se-á com um não-lugar(17) de contornos fugazes. Macau é um exemplo perfeito dessa nova dimensão da modernidade, como se fosse um lugar sem lugar. Cada vez mais passamos o tempo em hubs(18), locais efémeros de transição e de passagem, como hotéis, mega-shoppings, terminais, gares e aeroportos e numa realidade plasmada em écrans e decorações cénicas construídas em pladur, reproduzindo modelos virtuais numa fantasia hiper-realista, vivida cada vez mais à frente de gadgets e terminais de computadores. Esta transfiguração do real resulta numa progressiva alteração dos comportamentos e rotinas sociais nas grandes metrópoles, apenas perceptível de forma parcial e transitória, numa dimensão cada vez mais povoada pelo excesso de bits de informação digital. A realidade diáfana que os múltiplos écrans e néons dispersos na sua malha urbana convocam e projectam é de uma modernidade de contornos líquidos(19). Eternamente sedutora, esquiva e desconcertante. A sua essência flutuante brota das inúmeras camadas que se vão sobrepondo, numa heterotopia plasmada em contínuo, num processo em constante mutação. Descrever essa realidade fugaz numa narrativa impõe uma disciplina de reescrita constante, como se estivesse a produzir um palimpsesto, sem princípio nem fim. A transferência para a China não apagou essa complexidade intrínseca de Macau; apenas a transformou. A experiência que vivi na régie de realização ao dirigir uma equipa numerosa e multicultural, constituiu um desafio enorme em termos profissionais. Nada podia falhar. O evento iria ser transmitido em directo para todo o mundo, pelos principais canais e cadeias televisivas. Recuo no tempo e recordo um momento único. Há um momento sem fim, uma singularidade no tempo, o ‘instante decisivo’ como lhe chama o grande fotógrafo francês Henri Cartier-Brésson, que não se repercute nem se repete. A realização televisiva em directo cobrindo a sequência de imagens em sobreposição, com a deposição da bandeira das quinas e a ascensão da bandeira rubra da R.P.C., alternada pelos rostos dos líderes supremos das respectivas nações, num encandeado encantatório perdurará para sempre na História. Esse encadeado de imagens, a sua construção, o seu ritmo, a sua pulsação … têm um pouco de mim que se projecta na sua construção e na forma como foram reveladas ao mundo! Algo meu permanece para sempre ligado a essa sequência visual, o seu encadeado correspondeu de alguma forma ao pulsar do meu coração, ao ritmo da minha respiração enquanto realizava. Todo o mundo estava preso, em suspenso, acompanhando o bailado protocolar das guardas de honra, numa coreografia solene que ficou para sempre projectada pelos grandes planos dos líderes em alternância sincopada, sobrepostas ao esvoaçar das bandeiras impelidas pelos jactos de ar embutidos que eram propulsionados através de pequenos orifícios nos topos dos respectivos mastros metálicos. Constitui um forte motivo de orgulho ter contribuído activamente para a criação dessa sequência visual que perdurará e que será objecto de estudo no Futuro, quando se pretender investigar a iconografia associada à Transferência de Poderes de Macau para a R.P.C., passando esse conteúdo audiovisual a estar sempre disponível nos principais arquivos, acervos e bancos de imagens internacionais. Estarei sempre ligado a esses instantes decisivos… O Legado O legado da transferência de Macau permanece ainda em processo de construção. Hoje, duas décadas e meia após o evento, a Região Administrativa continua a prosperar economicamente, mas enfrenta desafios sociais e culturais significativos. As questões da preservação da identidade cultural, a especificidade da cidadania dos residentes permanentes de Macau e seus direitos adquiridos no contexto da crescente influência chinesa, bem como a excessiva dependência da economia em relação ao jogo, constituem alguns temas centrais no debate sobre o Futuro. As novas gerações de macaenses, embora mais conectadas à China do que nunca, ainda mantêm uma forte ligação à alma portuguesa da sua terra. O devir de Macau tem ainda alguns contornos pouco definidos, mas a resiliência e a capacidade de adaptação dos seus cidadãos convocam a esperança de continuar a encontrar formas de prosperar e evoluir, preservando o seu carácter essencial: a multiculturalidade. Para as futuras gerações, o desafio será equilibrar o crescimento económico com a preservação das tradições culturais. Macau, com sua história rica e o seu papel de ponte entre o Oriente e o Ocidente, tem o potencial de ser um modelo de convivência pacífica e próspera num mundo cada vez mais globalizado. Conclusão Em 1999, Macau entrou numa nova era, mas os traços mais fortes da sua história e identidade não foram apagados com a Transferência de Administração. A RAEM continua a ser um exemplo vivo de como culturas diferentes podem coexistir de forma ecuménica, perante pressões políticas e económicas. Poder testemunhar esse momento de transição como realizador de TV foi uma experiência marcante. As lições de vida que aprendi em Macau continuarão a guiar os meus passos em busca de um mundo cada vez mais livre de barreiras, muros ou fronteiras. *Autor, Consultor de media, Realizador/Produtor Notas 5 Concessionária do jogo em Macau, fundada pelo magnata Ho Hung-Sun (Stanley Ho). Deteve em exclusivo o monopólio de exploração dos casinos durante a administração portuguesa com atribuição de subsídios, diversificando assim a base económica e criando empregos em sectores alternativos. 6 Uma comunidade muito influente no tecido social da Beira, tendo como polo principal uma agremiação desportiva, o Clube Atlético Chinês da Beira, com excelentes equipas de basquetebol e ginástica de ambos os sexos, que participavam com muito sucesso nos campeonatos, contribuindo com muitos atletas para as respectivas selecções provinciais. Para além do Atlético, as lojas do bairro chinês e o cemitério eram os locais que mais contribuíam para dar um ambiente oriental a alguns dos locais mais típicos da cidade onde nasci, em 1958 7 Augé, Marc – Non-Places: An Introduction to Supermodernity, 2023, Verso 8 Plataforma intermodal que assegura ligações 9 Bauman, Zygmunt – Liquid Modernity, 2000, Polity
Hoje Macau Via do MeioA última noite do império II Por Luis Nestor Ribeiro (1) O Dia a Dia em Macau O quotidiano antes da transferência era uma mistura de rotinas tranquilas e de celebrações que enchiam de vida o território. O Mercado Vermelho, próximo da zona norte da cidade, era um dos meus lugares favoritos. Ali, o movimento começava cedo. Os pescadores, com suas bancas lotadas de frutos do mar frescos, dividiam o espaço com vendedores que traziam as suas verduras recém-colhidas do outro lado da fronteira das Portas do Cerco. Havia também especiarias exóticas, ervas medicinais chinesas e uma profusão de cores e aromas que transformavam o mercado num espectáculo visual e sonoro, como se estivesse a assistir ao recital polifónico de uma ópera sincrética. Durante as festividades tradicionais chinesas, as ruas ganhavam ainda mais vida. O Festival do Tung Ng, um dos eventos anuais mais aguardados, era celebrado com a realização de regatas de Barcos-Dragão. O rio das Pérolas enchia-se de embarcações coloridas e ornadas com dragões esculpidos, enquanto os competidores remavam num ritmo frenético, ao som dos tambores e dos aplausos da multidão. A celebração unia a cidade, independentemente da origem étnica ou social. Todos estavam presentes — portugueses, chineses, macaenses, estrangeiros e turistas de várias proveniências. O transporte público era limitado, mas tinha uma resposta satisfatória à escala da sua dimensão. Os pequenos autocarros serpenteavam pelas ruas estreitas. Por vezes, ainda era possível observar triciclos que se dedicavam primordialmente ao transporte de turistas para os casinos e que eram uma herança do tempo em que a cidade era percorrida num corrupio sem fim de riquexós, enquanto as águas circundantes da Baía da Praia Grande eram sulcadas pelos juncos e sampanas, com suas velas enfunadas pelo vento, à semelhança de um exótico bailado aquático de leques a flutuar sobre água. O progresso ia gradualmente tomando conta do quotidiano, tendo a ligação de Macau a Hong-Kong, outro importante centro comercial e cultural da região, passado a ser assegurada por modernos jactoplanadores. A construção do Aeroporto Internacional, uma antiga aspiração da população, tornou-se uma realidade, após diversos avanços e recuos de ordem legal e administrativa. A vida parecia seguir o seu curso normal, mas, à medida que o ano de 1999 se aproximava, havia uma sensação crescente de que uma mudança colossal iria mudar tudo de forma radical. A Névoa da Incerteza: expectativa e esperança Nos meses que antecederam a transferência de poderes, um aumento de tensão era perceptível nas conversas. O futuro estava rodeado de incertezas, e isso afectava profundamente o estado de espírito da população. Como realizador e produtor de TV, testemunhei essa ansiedade de perto, conversando com habitantes que, embora esperassem uma transição pacífica, não podiam evitar algum receio face ao que desconheciam. Para muitos residentes, especialmente os que tinham raízes portuguesas ou macaenses, a preocupação de perder direitos e liberdades era real. Havia uma sensação crescente de que, com o tempo, a autonomia prometida pela R.P.C. começaria a desvanecer-se. Embora houvesse a promessa de ser respeitado o princípio de “um país, dois sistemas”, que preservaria a autonomia de Macau por 50 anos, era um tema que suscitava alguma inquietação. O meu amigo Xavier tinha-me confidenciado algumas das suas preocupações, quando nos encontrávamos no café da esquina: – “… o sistema “um país, dois sistemas” parece promissor no papel, mas como será na prática? E, mais importante, quanto tempo realmente durará? O status quo até agora garantido sob o domínio português, será salvaguardado sob a administração chinesa?” E a Guilhermina, mãe de uma colega dos meus filhos na escola, segredou-me enquanto aguardávamos o final das aulas: “- Tenho medo que Beijing acabe por intervir mais cedo do que o prometido, para acabar com o clima de insegurança que vivemos agora em Macau, devido aos atentados cometidos pelas tríades.” Esse estado de espírito reflectia-se em pequenos gestos e atitudes que contribuíam para alimentar a expectativa. Lembro-me de ver mais e mais famílias portuguesas enviando os seus filhos de regresso a Portugal, preocupadas com o futuro educacional e social de suas crianças num território sob domínio chinês. Ao mesmo tempo, muitos funcionários das repartições e serviços da administração pública, cientes de que os seus empregos não estariam garantidos após a transferência, começavam a preparar-se para abandonar a cidade e retornar aos seus locais de origem, rumo a Portugal ou outros países de língua portuguesa. Nos corredores de alguns edifícios administrativos, o clima era de apreensão e de despedida. Nos locais de encontro e convívio mais frequentados, as conversas giravam em torno de questões relacionadas com a preservação da identidade cultural de Macau. Alguns dos meus amigos mais próximos, que eram professores e artistas locais, preocupavam-se particularmente com o impacto que o controlo chinês poderia ter sobre a expressão artística e o sistema judicial de Macau, de matriz portuguesa, cuja moldura se baseia num ramo de uma árvore sustentada pelo antigo direito de matriz romana. A ansiedade também afectava os empresários. O sector do jogo, um dos pilares incontornáveis da economia local, vivia uma fase de estagnação. Os operadores dos casinos não sabiam se a nova administração chinesa manteria o modus operandi ou implementaria mudanças drásticas. O clima de incerteza pairava não só sobre os cidadãos, mas também sobre alguns alicerces da economia local. No final da década de 1990, a segurança do território tinha sido fortemente colocada à prova através de uma série de atentados e incidentes com grande repercussão nos media, cometidos na sua maioria por tríades rivais que disputavam o controlo de áreas fulcrais para o exercício das suas actividades ilícitas. Recordo que nesse período as autoridades portuguesas não tiveram mãos a medir para tentar neutralizar os desacatos cometidos por alguns protagonistas mediáticos do submundo do crime, que encheram as manchetes dos jornais e revistas com notícias sensacionalistas, relatando os atentados bombistas em viaturas, homicídios perpetrados em locais públicos e incêndios colectivos de motociclos estacionados na via pública. As Divisões Sociais Apesar da apreensão se ter instalado em grande parte da comunidade portuguesa e macaense, havia também um grupo de considerável influência, que interpretava a transferência como uma nova janela de oportunidade que se abriria. Para os empresários e investidores chineses, a transição significava a possibilidade de Macau assumir um papel económico relevante no contexto regional do grande delta do Rio das Pérolas. A crescente abertura da China ao capitalismo, e a sua promessa de uma maior receptividade relativamente a grandes investimentos no sector do jogo, começava a atrair a atenção de novos investidores, no quadro de futura adesão da China à Organização Mundial do Comércio.(9) Entre os jovens, as reacções também eram divididas. Alguns, nascidos e criados em Macau, não tinham receio da mudança e viam-na até como uma oportunidade de renovar as suas perspectivas de futuro. Estavam curiosos para ver como a nova administração moldaria a cidade. Outros, no entanto, temiam que a terra que conheciam desaparecesse, substituída por uma versão descaracterizada e padronizada de uma vulgar cidade sob administração chinesa. O Dia da Cerimónia: Um Momento Histórico A expectativa nos dias que antecederam a cerimónia de transferência era tanto de celebração quanto de apreensão. O território havia sido profusamente decorado com bandeiras chinesas e portuguesas, e as fachadas das repartições oficiais estavam iluminadas, criando um cenário sumptuoso de despedida monumental. Ao mesmo tempo, não se podia ignorar a tensão pairando no ar. Para muitos, era o fim de uma era. Na noite de 19 de dezembro de 1999, quando teve início a sucessão de 21 eventos que constavam do programa oficial de comemorações da Cerimónia de Transferência de Administração, as ruas estavam tomadas por uma enchente de populares interligados por uma contagiante mistura de emoções. Teve lugar a despedida do Governador de Macau ao seu staff e colaboradores no Palácio de Santa Sancha (residência oficial), o render da guarda de honra no Palácio do Governo, seguido de uma série de concertos e eventos culturais que mesclavam tradições portuguesas e chinesas. Os convidados reuniram-se para assistir aos espectáculos, mas o verdadeiro protagonista era o próprio território. Cada esquina, cada beco, cada fachada colonial, cada mercado, parecia estar a despedir-se da sua própria história como peça insubstituível de uma antiga colónia. Os Protagonistas E, finalmente, às 24 horas de 19 de Dezembro de 1999, no local propositadamente construído para o evento (10), entraram em cena os principais líderes políticos: o presidente de Portugal, Jorge Sampaio, e o presidente da China, Jiang Zemin. Cada um representava o peso de suas respectivas nações. Para os portugueses, a cerimónia marcava o final de quase cinco séculos de presença colonial na Ásia. Para os chineses, significava a recuperação de mais uma peça do que consideravam ser uma parcela perdida da pátria. Os discursos dos líderes estavam repletos de simbolismo. Jorge Sampaio destacou os laços culturais e históricos que uniam Portugal e Macau, mas também enfatizou a necessidade de respeitar a autonomia do território no novo contexto chinês. Jiang Zemin, por sua vez, prometeu que Macau continuaria a prosperar sob o princípio de “um país, dois sistemas”, garantindo a continuidade de seu modo de vida e sistema económico. Foi o momento crucial dos 21 eventos, assistido no local por 2500 personalidades convidadas, em representação de governos e organismos internacionais, mas que, por força daquela que então se considerou ser “a maior operação mediática da história do audiovisual português”(11), foi seguida por milhões de pessoas em vários pontos do Mundo. Pelo consórcio formado pela TDM de Macau em conjunto com a RTP (Portugal) foi cedido o sinal da cobertura televisiva que realizei a partir de um OB-Van (Carro de Exteriores e Estúdio móvel de TV) à Televisão Estatal chinesa (CCTV – China Central Television) que, após o recepcionar, o distribuiu para cerca de 300 estações afiliadas em toda a China. O colossal dispositivo técnico montado para as várias emissões via satélite, mobilizou 250 profissionais (sendo cerca de 150 da TDM, incluindo alguns contratados a produtoras do Sul da China e H.K. e 100 da RTP) ao serviço do Consórcio TDM – RTP que provisionou as várias frentes operacionais onde estavam perto de 100 câmaras TV, 10 carros de exterior OB-Van, um helicóptero de transmissões por feixes, estúdios, régies, 40 cabines para jornalistas comentadores no Press and Broadcast Center e 12 posições móveis de câmaras TV, em diferentes pontos (no exterior) onde os acontecimentos justificassem a sua presença(12). O ‘Centro de Imprensa e Emissões TV – Press and Broadcast Center’ foi instalado pelo Consórcio em 3 andares do edifício Zhu Kuan, nas imediações do Centro Cultural de Macau. Durante três longos meses, desde o início de Novembro de 1999 até ao final de Janeiro de 2000, foi naquele preciso local que desenvolvi toda a planificação, organização do trabalho de produção e o encerramento desse complexo ciclo, com a apresentação do relatório final e o fecho de contas do orçamento. Foi necessário coordenar em várias frentes, os aspectos logísticos e técnicos de cobertura televisiva, para instalação dos equipamentos em diversos locais dispersos pela cidade, incluindo as autorizações para os planos de voo do helicóptero que iria recolher imagens aéreas dos eventos. Sucederam-se reuniões e sessões de trabalho com representantes do Palácio do Governo, Segurança, Obras Publicas, staff de Produção e Jornalistas. Entre os jornalistas destacados pela RTP, estavam dois anchors, Judite de Sousa e José Rodrigues dos Santos, antigos profissionais da TDM no início da década de oitenta e que revisitavam Macau com a distinta missão de apresentarem a emissão televisiva personalizada para a audiência portuguesa. No constante vaivém entre reuniões e visitas prévias de vistoria aos locais de transmissão, incluindo posições de reportagem para os jornalistas, recordo que cada acesso de pessoas e viaturas ao interior do perímetro de segurança onde se localizava o nosso Centro, implicava uma inspecção meticulosa pelos elementos das Forças de Segurança. O perímetro abrangia os locais onde decorreriam as principais cerimónias, e o acesso de pessoas só era autorizado após serem atravessados os pórticos de raios X, usados com o propósito de localizar e neutralizar quaisquer armas ou objectos que pudessem constituir uma ameaça. Isso provocava imensos constrangimentos, para a circulação de pessoal técnico, equipas de reportagem e respectivos equipamentos. Imagine-se o stress causado com os atrasos, quando o material recolhido nas reportagens não podia ser editado a tempo e horas de ser emitido. Havia um excesso de zelo provocado pelo clima de insegurança que se vivia, devido aos incidentes causados pelas tríades em vários pontos do território. As viaturas que entrassem na zona de segurança tinham de se sujeitar a uma inspecção rigorosa do seu interior e do chassis, com o recurso a espelhos colocados em braços telescópicos que reflectiam os pontos inacessíveis. Numa perspectiva mais pessoal, confesso que foi um período de trabalho intenso, de grande azáfama, em que praticamente só ia a casa para dormir, quando tinha a sorte de não ter de fazer sessões longas de trabalho sem interrupção, por imperativos de ordem profissional. No âmbito do Consórcio, fui o Coordenador de Produção e Realização de todas as equipas que fizeram a cobertura dos 21 eventos oficiais para além de responsável pela realização televisiva do evento principal, onde se procedeu à transferência de poderes. Coordenei igualmente a realização da transmissão televisiva em directo para várias estações e canais noticiosos internacionais que o Host Broadcaster(13) assegurou de forma ininterrupta durante três dias, após a cerimónia principal. Esta solução permitiu difundir conteúdos relevantes sobre a realidade e história de Macau, para além da reprodução em diferido dos eventos oficiais mais mediáticos, numa emissão internacional disponível via satélite para todos os continentes e adaptada aos diferentes fusos horários. A ela aderiram as principais cadeias mundiais, com destaque para a CCTV China, RTP Portugal, BBC Reino Unido, CNN E.U.A., NHK Japão, ABC Austrália, Globo Brasil, entre outras. A maior adversidade que senti naqueles momentos foi ter de coordenar uma numerosa equipa multicultural, com profissionais oriundos de várias proveniências geográficas e que não falavam a mesma língua. Esse é sem margem para dúvidas um dos maiores desafios para qualquer realizador. A improbabilidade de poderem reagir todos com o mesmo timing, às instruções que receberiam da régie (14). Como não dominavam todos a mesma linguagem, optei por razões estratégicas, por me dirigir à equipa na língua inglesa, recorrendo aos termos técnicos mais usados nos estúdios de cinema e tv para estruturar guiões e planificações. Se assim não fosse, ia ver-me incompreendido numa Torre de Babel. Num directo, em termos de realização televisiva, não há margem para indecisões nem reflexos retardados. Ser capaz de transmitir ordens perceptíveis à equipa, sem hesitações, nem hiatos de comunicação é um must. Qualquer instante do que está a ser transmitido e a ser captado pelas câmaras num palco, numa tribuna, num cenário, etc, tem de ser exibido no preciso momento em que acontece, de forma a tornar lógico, perceptível e coerente o conteúdo que se difunde. O realizador não pode perder aquilo que chamo o ‘instante relevante’. Se isso porventura suceder, a gramática visual de uma sequência não está a ser bem interpretada e reproduzida. Num ambiente de régie em directo, no momento da realização só pode ouvir-se uma voz de comando, a do realizador que solicita e comuta a sequência de imagens e sons, captadas pelas câmaras, microfones, sem atrasos. Todos os meios, humanos e técnicos, têm de estar perfeitamente sincronizados em resposta às instruções do realizador. Um processo criativo análogo sucede quando um maestro dirige uma orquestra sinfónica. Para o sucesso de uma realização em directo, é imprescindível que, qualquer gesto, acção ou movimento seja captado no exacto momento em que ocorre. Se houver um atraso, o que se pretende transmitir perdeu-se irremediavelmente. Em directo, não há lugar para repetições! Notas 1-Author, Media Consultant, TV Director / Producer. Lived and worked in Macau for 25 years, between 1983 and 2008. 9 A China tornou-se oficialmente o 143º membro da O.M.C. em 11 de dezembro de 2001, após 15 anos de negociações, completando uma etapa importante no seu processo de "reforma e abertura" iniciado em 1978 com o grande líder visionário Deng Xiaoping. Esta adesão oficial, constitui um marco incontornável no processo gradual de globalização que a economia mundial evidenciava no dealbar do novo milénio. A par e passo, os bens de consumo produzidos em massa na R.P.C. começavam a inundar os principais mercados globais. 10 A cerimónia teve lugar num edifício temporário de estrutura leve, com traços arquitectónicos inspirados numa gigantesca lanterna chinesa, construído especificamente para o evento no Jardim do Centro Cultural de Macau 11 Teves, Vasco Hogan – RTP. 50 Anos de História, Museu da RTP, 2007 https://museu.rtp.pt/livro/50Anos/Livro/DecadaDe90/MaisPaisEMaisMundoNosAnosDificeisDaRTP/Pag12/def ault.htm 12 O Conselho de Administração da RTP reconheceu o mérito do trabalho desenvolvido (Ordem de Serviço nº 3, de 7.2.2000): “Em todas as situações inerentes ao cumprimento da missão, os trabalhadores da empresa destacados para o Consórcio evidenciaram níveis extraordinários de desempenho, ultrapassando não só as dificuldades logísticas como também os constrangimentos linguísticos e de diferença cultural dos seus parceiros de operação. Em face do referido índice de desempenho, aliado à dedicação, à competência e à atitude cívica igualmente patenteados, o Conselho de Administração deliberou aprovar um público louvor a todos os trabalhadores da empresa que integraram o Consórcio TDM/RTP, a que entende dever associar aqueles que nos serviços da Sede asseguraram o conjunto das tarefas necessárias para o referido efeito.” 13 Consórcio TDM – RTP 14 Centro de Controlo e Comando da Realização TV
Hoje Macau Via do MeioA última noite do Império I Por Luis Nestor Ribeiro (1) Introdução: Uma Macau Multicultural Viver e trabalhar como profissional num meio de comunicação social em Macau, especialmente nos anos que antecederam a transferência de administração para a China em 1999, foi uma experiência imersiva e transformadora. No coração desse território pequeno e vibrante, não fui apenas um mero observador, mas também um interveniente empenhado, em experienciar na primeira pessoa, uma das mais complexas fusões culturais do mundo. No Passado, Macau não foi uma simples colónia europeia em território chinês, foi primordialmente um lugar onde o Oriente e o Ocidente não apenas coexistiram, mas também se entrelaçaram: – num diálogo constante, às vezes harmonioso, outras vezes tenso, sempre fascinante. Desde os meus primeiros dias em Macau, fui atraído pela riqueza cultural que moldava a vida quotidiana da cidade. Nos becos e ruas estreitas, havia sinais da longa presença portuguesa, com suas igrejas barrocas e casas coloniais, enquanto os mercados fervilhavam com a energia dos vendedores chineses. O cheiro de chá acabado de preparar pairava no ar enquanto o som de sinos dos templos budistas ecoava ao longe. Essa singular fusão de culturas constituiu sempre a sua essência, e para entender a transferência de administração (2) que se aproximava, era necessário compreender primeiro o que fazia de Macau um lugar tão único. A Fusão de Culturas A história de Macau conheceu novos protagonistas no século XVI, quando os portugueses chegaram como navegadores e mercadores, transformando paulatinamente um pequeno lugar num importante entreposto comercial no sudeste asiático (3). Desde então, o território tornou-se num verdadeiro caldeirão de culturas. O impacto dessa colonização portuguesa nunca se limitou à política ou à economia; foi um processo que deixou marcas profundas nas tradições, na língua e no modo de vida dos seus habitantes. Passei a residir em Macau no início da década de 1980, por motivos profissionais. Ao deambular pelas ruas da cidade no papel privilegiado de voyeur (4) sem pressa, a quem fora permitido observar um grande laboratório multicultural em plena produção no Extremo Oriente, era impossível passar despercebida a ubíqua influência portuguesa: embora o ritmo da cidade fosse marcado pela vertiginosa actividade chinesa nas lojas e negócios, o ambiente do casario e suas elegantes fachadas coloniais convocava as emoções para um distante lugar mediterrânico. As calçadas com seus padrões ondulantes configurados por pedras alvinegras, conferiam às ruas uma beleza singular, ligando-as simbolicamente a Portugal, enquanto a serenidade das igrejas católicas contrastava com o misticismo fumegante dos templos chineses, como o Templo de A-Má, reverenciado pela comunidade chinesa local, em particular pelos pescadores e população flutuante, abrigada em sampanas e juncos no Porto Interior. Macau nessa época(5) não era mais do que um pequeno anão adormecido à sombra de um gigante. Com escassos portugueses, pouco passavam de mil os que tinham vindo directamente de Portugal. Na generalidade eram funcionários públicos, professores, advogados e alguns militares a prestar serviço nas forças de segurança. A língua portuguesa era falada por cerca de 15 mil pessoas, numa população que rondava os 450 mil habitantes, cuja língua veicular predominante era o cantonense. A maioria comprimia-se numa estreita faixa, a península de Macau, com cerca de 5,7 km2 no que constituía um recorde mundial para a mais alta densidade populacional. Em conjunto, o território de Macau(6), administrado por Portugal, incluía as ilhas de Taipa e Coloane, com uma área total aproximada 15,3 km². Macau era uma urbe envolta numa languidez entorpecida em contraciclo com a economia dos tigres asiáticos(7). Só existia uma ligação viária entre a península e as ilhas, assegurada pela elegante ponte Nobre de Carvalho, inaugurada em 1974. Apesar de possuir apenas duas estreitas vias de circulação, foi uma obra essencial para o desenvolvimento, facilitando o transporte de pessoas e mercadorias, impulsionando o crescimento urbano. O trânsito era caótico e pouco disciplinado. As viaturas podiam circular livremente pelo Largo do Senado, no coração da cidade. Tinham ainda a possibilidade de estacionar mesmo defronte do edifício do Leal Senado. O lixo amontoava-se nas ruelas e a sua recolha pelos serviços municipais não era eficiente. Ao longo da Rua da Praia Grande, na margem do rio, ainda existiam barracas de pescadores, em forma de palafita, com redes de pesca suspensas e puxadas através de um sistema de roldanas artesanais. No emaranhado de ruas, havia inúmeras tendinhas onde era confeccionada uma profusão de petiscos e comidas, – genuína street food antes de virar moda, – servida mesmo à frente do cliente. Aromas de arroz glutinoso, massa, peixe e carne, com legumes caldeados por molhos e temperos fumegantes que emprestavam ao ar um odor característico, estimulando o apetite dos fortuitos transeuntes. Um ambiente denso e carregado de fumo, não parava de cativar o forasteiro, dia e noite. Em redor dos casinos, era permanente a azáfama. A gastronomia reflectia esse carácter eclético de forma deliciosa. Nos restaurantes, a comida era uma celebração da diversidade cultural. Nas imensas visitas a casas de chá e restaurantes locais, provei variados pratos que misturavam ingredientes chineses e técnicas culinárias portuguesas. O minchi, um prato tradicional macaense de carne moída com batatas e ovo frito, temperado com molho de soja, era um exemplo perfeito dessa mistura, representando a cozinha do dia a dia dos macaenses. Outros pratos, como o caldo verde e o pastel de nata, conviviam lado a lado com receitas chinesas mais tradicionais, como o dim-sum e o pato laqueado. Além da comida, havia também a música, uma presença constante em Macau. Nas festas de rua e eventos culturais, ouvia-se o som do fado, cantado em português interpolado por árias de ópera de Pequim, mesclados ao ritmo das danças chinesas e dos tambores rituais das festividades, com destaque para o Ano Novo Lunar. E, claro, o patuá — a língua crioula única de Macau, que misturava português e cantonense, falada principalmente pelos mais idosos e hoje quase em extinção. Nesse tempo as comunicações intercontinentais eram complexas e de difícil acesso. Para um português residente em Macau o contacto regular com os familiares distantes constituía um quebra-cabeças. As redes telefónicas fixas só permitiam o acesso directo a chamadas locais. A tecnologia de suporte a ligações de longa distância pressupunha a utilização de comunicações via satélite. Para o efeito, era necessário proceder presencialmente à reserva de circuitos na sede dos Correios, para um determinado horário, sujeito a confirmação e na presença de um telefonista de serviço. Essa complexidade acentuava ainda mais a sensação de isolamento em relação ao resto do mundo. Eram também frequentes os apagões de energia eléctrica, em virtude de a central geradora de electricidade no território não ser auto-suficiente. Uma parte substancial da energia necessária era importada da China, revelando uma dependência de Macau, de forma a satisfazer os requisitos de consumo quotidiano, cuja tendência era de aumento gradual. A Identidade Macaense Com o tempo, fui percebendo que a identidade macaense era muito difícil de definir, pressupondo uma mescla de complexidade e fluidez. Os macaenses, descendendo primordialmente de portugueses e chineses, com o contributo genético ocasional de outros povos meridionais do continente asiático(8), eram fruto directo dessa fusão cultural. Uma comunidade híbrida que vivia entre dois mundos, com um pé na Europa e outro na Ásia. O que os unia não era uma etnia, mas uma cultura compartilhada — uma cultura que, nos últimos 450 anos, se tinha desenvolvido de forma autónoma, sob o olhar distante tanto de Portugal quanto da China. Numa observação muito superficial, para os portugueses, os macaenses eram vistos como diferentes, como “os orientais” — assumindo em muitos casos, a face visível da administração local – graças à faculdade que detinham, de poderem comunicar nos dois idiomas principais. Já os chineses nativos de Macau, viam muitas vezes os macaenses como “ocidentais”, portadores de valores e hábitos europeus. No entanto, os próprios macaenses não se reviam exactamente como europeus nem completamente como asiáticos. A sua identidade estava profundamente enraizada na singularidade de Macau, e muitos temiam que essa identidade fosse descaracterizada com a transferência de administração para o controlo chinês. Essa incerteza era palpável nas conversas frequentes que eu tinha no seio do meu círculo mais restrito de amigos. Alguns sentiam orgulho na dualidade da sua herança; outros receavam que o retorno de Macau à pátria chinesa pudesse significar uma perda de suas tradições e liberdades. Essa identidade complexa era, para muitos, algo que devia ser protegido com determinação. Notas 1-Author, Media Consultant, TV Director / Producer. Lived and worked in Macau for 25 years, between 1983 and 2008. 2-Neste artigo considero que a Cerimónia de Transferência de Poderes em 20 de dezembro de 1999 foi essencialmente isso – uma passagem de testemunho entre nações que se respeitavam e que souberam manter um entendimento cordial ao longo de mais de quatro séculos e meio, não obstante haver autores que a designam como ‘Transferência de Soberania’, em linha com o que se passou em Hong-Kong em 1997, entre a R.P.C. e a coroa inglesa. No caso específico de Macau, a soberania chinesa sobre o território já tinha sido formalmente reconhecida pelas autoridades portuguesas em 1979. Quando a República Popular da China e a República Portuguesa estabeleceram formalmente relações diplomáticas, o estatuto de Macau em termos de Direito Internacional foi finalmente esclarecido. Na altura, os dois países definiram na acta de conversações por meio de acordo confidencial que “Macau é território chinês sob administração portuguesa”, o que veio a ser confirmado na Constituição da República Portuguesa e no Estatuto Orgânico de Macau. 3-Sobre o estabelecimento dos portugueses em Macau as evidências documentais são pouco claras e por vezes revelam-se ambíguas. Não existe qualquer documento da época que comprove como os portugueses se instalaram no território do Sul da China. Resta acrescentar o facto, esse indiscutível, de os portugueses se terem fixado em Macau desde a segunda metade do século XVI e de ali terem permanecido ininterruptamente, com o acordo, ou pelo menos, a tolerância dos chineses. O seu estabelecimento gradual foi pacífico, não ocorrendo qualquer emprego de força, um acto de guerra que determinasse a sua anexação territorial, em contraste com o sucedeu em meados do séc. XIX com Hong-Kong 4- Inspirado pelo flâneur de Charles Baudelaire. 5-Início da década de oitenta do século passado 6-É oportuno recordar que durante o mandato do Governador Almeida e Costa (1981 a 1986) tiveram início os Grandes Empreendimentos, como o fecho da Baía da Praia Grande e os novos aterros do Porto Exterior (NAPE). Foi possível concretizar um entendimento pragmático com a nova liderança da nação chinesa que visava uma maior abertura ao exterior, criando as condições políticas adequadas para o arranque e concretização de alguns projectos importantes para a modernização do território, como a Estação de Televisão – TDM (1984), o porto de águas profundas em Ka Ho, Coloane (1992), o Terminal Marítimo do Porto Exterior (1993), a nova travessia para a Taipa através da Ponte da Amizade (1994) e a construção numa ilha artificial do novo Aeroporto Internacional (1995), tendo esta última obra levado 10 anos a realizar. Com o passar do tempo, a área de Macau aumentou significativamente devido aos sucessivos projectos de aterro, como a faixa de Cotai (Cotai Strip), que cobre o antigo istmo que ligava Taipa a Coloane e é ocupado actualmente pela maioria dos grandes casinos e resorts. 7-Grupo constituído por quatro economias do sudeste asiático, Hong-Kong, Singapura, Coreia do Sul e Taiwan, que registou um vertiginoso crescimento do PIB entre as décadas de 1970 e 1990. Durante esse período, essas quatro economias passaram por uma rápida industrialização, altas taxas de crescimento e melhorias significativas nos padrões de vida. Essa transformação é frequentemente designada por ‘Milagre Asiático’ 8-Com destaque para os antigos reinos e territórios do Sião (Tailândia), Pegu (Myanmar), Malaca (Malásia) Goa (Índia), Batávia (Indonésia) e Filipinas, entre outros.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO Imperador Enamorado e a Nobreza Solitária do Eremita Zhu Jianshen (1447-1487), o imperador Xianzong ou Chenghua, «A mudança bem sucedida», reinou durante vinte e três anos (1464-87) que trouxeram prosperidade e relativa paz ao Império, espelhando o seu carácter fleumático e cauteloso. Essa sua branda disposição é sublinhada pela constância da relação que manteve com Wan Zhen’er (1428-87), que foi sua ama-seca desde que ele tinha três anos e ela, vinte. Os dezassete anos de diferença não foram obstáculo ao persistente afecto que durou até ao fim: quando soube da sua morte, o monarca passou um dia sem poder falar no fim do qual terá murmurado: «Zhen’er desapareceu, em breve serei eu». O que de facto sucedeu sete meses depois quando ele tinha apenas trinta e nove anos. A serena e firme personalidade do soberano está patente numa excepcional pintura, feita no Inverno de 1485 por um anónimo pintor da corte. No rolo horizontal Ming Xianzong apreciando a Festa das lanternas (tinta e cor sobre seda, 690 x 36,7 cm, no Museu do Palácio Nacional, em Pequim) onde o imperador está representado três vezes: no princípio, no meio e no fim, numa plataforma elevada diante da escada do dragão esculpido na pedra, notamos com ele o que ele observa: Dentro dos muros púrpura da Cidade Proibida, pessoas vão usufruindo de actividades lúdicas que caracterizam os dias felizes. Como jogar, ouvir música, assistir a espectáculos de acrobacia, de ópera, magia ou ao lançamento de foguetes. Ou simplesmente passear em família na cidade decorada com as lanternas que distinguem a «festa da noite nobre» (yuanxiao jie) celebrada no décimo quinto dia da primeira lua, marcando na lua cheia o fim das festas do ano novo. Na última aparição do monarca no final do rolo, o seu olhar é acolhedor e em retrospectiva; dir-se-ia que é para e por causa desse seu olhar permissivo que tudo acontece. A pintura exuberantemente polícroma, narrativa, é exemplar de um dos caminhos que a arte adoptava no tempo da dinastia Ming. Uma outra via, na tradição da pintura dos letrados seguia paralela, fora dos muros da cidade imperial, exigindo a restrição própria da expressividade do traço caligráfico. Wu Boli, (activo no fim do século XIV- início do XV), sacerdote daoísta no templo Shangqing da montanha Longhu, «Tigre – dragão» (Jiangxi) seria lembrado como autor de um rolo vertical que pintou para Zhang Yuchu (1361-1410) o quadragésimo terceiro tianshi, o «mestre celestial» da Zhengyi Dao, a seita daoísta da «Unidade ortodoxa». Do Pinheiro-dragão (tinta sobre papel, 121,9 x 33,7 cm, no Metmuseum) em que figura um único pinheiro, de ritidoma escamoso como a pele do dragão, desprende-se uma sensação de energia vital correspondente à vocação do mestre daoista. Cujo olhar estava disponível para reconhecer o mundo da natureza como se este fora feito para ele, para o receber e acompanhar.