Digitalização de museus na China atrai milhões de pessoas

Novas tecnologias para manter e divulgar o passado

Quando o metaverso se encontra com os museus, os visitantes podem viajar até ao passado para construir edifícios antigos, viajar com animais selvagens ferozes como os leões e os elefantes brancos das lendas chinesas.

As exposições digitais de relíquias culturais tornaram-se cada vez mais uma forma importante de as trazer de volta à vida. Com os avanços da tecnologia moderna, a digitalização já não se limita a simples ecrãs que mostram imagens de relíquias aos visitantes, mas inclui agora meios de alta tecnologia, como o metaverso, conteúdos gerados por IA e experiências interactivas que levam os visitantes ao mundo do património cultural.

Em toda a China, foram desenvolvidos vários meios e esforços avançados para proteger, desenvolver e utilizar a cultura tradicional chinesa, numa tentativa de “aumentar a confiança cultural e promover o espírito nacional do país”, refere o Global Times.

O Pagode de Porcelana

No Ocidente, é um dos mais conhecidos patrimónios culturais chineses e, por vezes, visto como uma das Maravilhas do Mundo. O legado continua, pois aparece de vez em quando em várias séries de televisão e filmes americanos, na caixa de comida chinesa como um ícone do elemento cultural chinês. Trata-se do Pagode de Porcelana de Nanjing, uma das maravilhas do mundo medieval no antigo Templo de Bao’en, ou Templo da Gratidão Retribuída em chinês. O pagode foi construído no século XV na margem sul do rio Yangtze.

A milhares de quilómetros de distância, o Grande Pagode de Kew continua de pé em Londres, funcionando como uma janela para a cultura chinesa para milhões de visitantes no Reino Unido. Sir William Chambers visitou a China por duas vezes e os seus grandes projectos de pagodes para a família real foram influenciados por gravuras que aí tinha visto do famoso Pagode de Porcelana de Nanjing.

No entanto, o pagode foi quase todo destruído no século XIX devido à guerra. Felizmente, o palácio subterrâneo por baixo do templo escapou ao infortúnio e permanece intacto. Uma escavação arqueológica efectuada em 2008 descobriu relíquias budistas no palácio subterrâneo, enquanto uma torre de vidro e aço baseada no pagode original foi construída e aberta ao público em 2015.

Com a ajuda de um projecto de digitalização, a torre original de nove andares, coberta de azulejos coloridos, pode ser vista de novo em vídeos de alta definição, tal como foi construída durante a dinastia Ming (1368-1644). “O rápido desenvolvimento da tecnologia, incluindo a digitalização, abriu muitas possibilidades para nos ajudar a proteger o nosso património e a trazer de volta à vida as relíquias culturais”, disse Wang Wenxi, curador do Museu das Ruínas do Grande Templo Bao’en de Nanjing. Como o pagode tinha sido destruído, era um desafio para o museu manter-se relevante, uma vez que o pagode parecia não ser mais do que uma história do passado para as pessoas de hoje.

“É um processo duro e difícil e um problema comum enfrentado por muitos sítios patrimoniais na China e mesmo em todo o mundo”, disse Wang, cuja equipa tem vindo a explorar novas formas de promover o sítio.

Para além da recriação digital do Pagode de Porcelana, foi introduzida tecnologia virtual para gerar um espaço metaverso no Museu das Ruínas do Grande Templo de Bao’en, através do qual os visitantes podem entrar num museu metaverso para explorar um pagode restaurado digitalmente.

“No mundo digital, o restauro do pagode e as experiências interactivas ajudarão os visitantes a ligarem-se ao seu património e a sentirem melhor a esplêndida cultura de Nanjing”, observou Wang. “Isto traz este tesouro histórico e nacional da China de volta à vida.”

Ao entrar no Museu das Ruínas do Grande Templo Bao’en, os visitantes já não precisam de procurar informações online. Em vez disso, podem “falar” com a “Rapariga Dragão”, uma curadora inteligente baseada em grandes modelos linguísticos, em qualquer altura e desfrutar de uma visita “privada”. Através de um programa interativo de realidade aumentada, podem também ligar entre si todos os locais do museu.

Além disso, na opinião de Wang, os museus transmitem uma mensagem sobre o reconhecimento dos valores chineses de inovação e paz. O museu tem trabalhado com várias universidades em investigação histórica, arquitetura, digitalização e muito mais. Desde os artigos de porcelana com vidrados coloridos da dinastia Ming até aos intercâmbios culturais centrados no Grande Templo de Bao’en, “temos muito mais para fazer e muito está à nossa espera”.

Expressões criativas

Como viajantes europeus como Johan Nieuhof visitaram a torre em meados do século XVI e a deram a conhecer ao mundo, o museu espera ter mais projectos que possam continuar esta ligação global e promovê-la como um símbolo cultural da China.

O Concurso para Inovadores em Património Cultural Imersivo Digital faz parte deste esforço. De acordo com Hu Lei, director-adjunto do Departamento de Criatividade Digital do museu, jovens de 34 cidades de 13 países participaram no concurso, utilizando experiências imersivas e tecnologia digital inovadora para interpretar e contar as histórias do património cultural perdido. “Pode despertar o interesse do público pelo património e apresentar expressões criativas a partir da perspectiva dos jovens”, afirmou Hu.

O concurso é também uma plataforma de intercâmbio para técnicos e criadores de conteúdos, uma vez que a equipa técnica pode prestar mais atenção aos conteúdos e aprender a contar boas histórias, enquanto a equipa de conteúdos pode aprender mais sobre tecnologias de ponta. “É uma solução vantajosa para a proteção, exibição e educação do património cultural”, afirmou Wang.

Grutas digitalizadas

A preservação digital das antigas grutas da China tornou-se um assunto de interesse global, uma vez que as equipas chinesas de conservação digital utilizam tecnologias de ponta para restaurar o esplendor original destas antigas grutas e dos seus murais com grande precisão. Isto permite que pessoas de todo o mundo transcendam o tempo e o espaço e experienciem a vasta beleza da cultura das grutas, incluindo as conhecidas grutas de Yungang, na província de Shanxi, no norte da China, e as grutas de Dunhuang Mogao, na província de Gansu, no noroeste da China.

Sun Bo, membro da equipa do centro de protecção e monitoramento do património cultural do Instituto de Pesquisa Yungang, disse que os esforços atuais de restauração e protecção das Grutas Yungang evoluíram da conservação tecnológica para a conservação digital. A criação de um laboratório digital no Instituto de Investigação de Yungang visa recolher dados e utilizar computadores para selecionar os materiais e os métodos de restauro que causarão menos danos às grutas.

“A restauração das Grutas de Yungang não pode ser interrompida, mas minimizar os danos durante o processo é uma arte em si. O laboratório digital pode ajudar o pessoal a escolher os melhores métodos, destacando outro papel importante na digitalização do património cultural”, afirmou, acrescentando que a recolha de informações digitais em curso nas

Durante o processo de recolha de dados, a equipa pode identificar danos subtis e riscos potenciais para as grutas e estátuas, o que ajuda a restaurar e atenuar os danos em tempo útil. Posteriormente, os dados e informações de alta precisão recolhidos serão processados utilizando tecnologia digital, “recriando” as Grutas de Yungang numa base de dados para fornecer dados sólidos e apoio visual para a conservação, restauro e mesmo reconstrução das grutas.

Os meios de comunicação social referiram que a digitalização das Grutas de Yungang, que ostentam mais de 59000 estátuas complexas e requintadamente esculpidas de vários tamanhos, deu origem a um enorme volume de dados que exigirá um tempo considerável para ser processado digitalmente. “Os esforços digitais em curso estão a construir uma base sólida para a preservação precisa e permanente e para a utilização sustentável da informação sobre as Grutas de Yungang”, disse Hang Kan, director do instituto de investigação das Grutas de Yungang, acrescentando que dois terços do trabalho de recolha de informação digital para as grutas foram concluídos.

Dunhuang Mogao atrai milhões

A digitalização das Grutas de Dunhuang Mogao também alcançou resultados. Em Maio de 2016, foi oficialmente lançada a biblioteca de recursos “Dunhuang Digital”. Partilha imagens de alta definição de murais e explicações textuais de 30 grutas em todo o mundo. Utilizadores de quase 80 países e regiões usam a plataforma, que já recebeu mais de 22 milhões de visitas, informou o Guangming Daily. “A digitalização permitiu que as relíquias culturais deixassem os museus e chegassem a todos os cantos do mundo, estimulando o desejo das pessoas de ver os artefactos reais no local”, disse Su Bomin, chefe do Instituto de Pesquisa Dunhuang.

Em abril de 2023, a “Gruta Digital”, criada pelo Instituto de Investigação de Dunhuang, foi oficialmente lançada, atraindo mais de 14 milhões de utilizadores no espaço de uma semana. Com o lançamento da versão internacional da “Caverna Digital”, os utilizadores estrangeiros podem “viajar através” da caverna com um único clique e apreciar a civilização chinesa representada por Dunhuang.

Actualmente, o centro digital do Instituto de Investigação de Dunhuang reúne 110 técnicos profissionais de várias disciplinas, incluindo informática, fotografia, design artístico, direção de vídeo e animação, formando uma equipa interdisciplinar de talentos para a proteção do património cultural.

A equipa de protecção do património cultural digital do Instituto de Investigação de Dunhuang também partilhou a experiência bem sucedida de levar a cabo projectos semelhantes de “Dunhuang digital” com outros países, incluindo Myanmar, cujo Templo Thatbyinnyu estava ameaçado após um grave terramoto.

“A divulgação da cultura de Dunhuang pode permitir que pessoas de todo o mundo compreendam que a China, do passado ao presente, tem enfatizado os intercâmbios multiculturais e promovido o espírito de aprendizagem mútua”, disse Su.

6 Jun 2024

“O Código Shan Hai Jing” | Dupla de autores quer escrever nova versão da História Mundial

Michael Du e Julie Oyang entabulam actualmente uma corrida ao texto de cortar a respiração, através da mais importante peça da literatura chinesa e do tesouro mais pesado da cultura chinesa e… mais além. Julie Oyang é uma crítica cultural e artística baseada na Europa, comentadora da cultura chinesa e filósofa visual. É professora convidada na Universidade de São José em Macau, e colaboradora da Via do Meio. Michael Du é um conhecedor da cultura antiga chinesa e detentor da maior colecção da civilização Hongshan do mundo. Foi o fundador da Haikou KiWen International Art & Culture Co. Ltd.

Ambos os autores estão estreitamente envolvidos no Centro de Inovação e Empreendedorismo da Cultura Guangcai (Guangcai Culture Innovation and Entrepreneurship Valley), uma iniciativa de vanguarda apoiada pelo governo chinês para o intercâmbio académico e educativo internacional, que está actualmente a preparar-se para uma conferência de imprensa no Salão do Congresso do Povo em Pequim, e uma casa de leilões de arte com sede em Yantai, na província de Shandong.

O Shan Hai Jing, em português Livro das Montanhas e dos Mares, foi legendariamente atribuído a Yu, primeiro imperador da dinastia Xia, e a um letrado chamado Boyi, o que remeteria a origem da obra para o segundo milénio a.E.C. Nele se descrevem plantas miríficas e seres exóticos, vulgo monstruosos, deambulando por espaços hoje ignotos.

Via do Meio: O Shan Hai Jing é provavelmente um dos manuscritos mais antigos do mundo. O que é exactamente?

Julie Oyang: Shan Hai Jing traduz-se literalmente por “Colecção das Montanhas e dos Mares”. O texto é um relato cultural e geográfico da China antes da dinastia Qin, o primeiro império chinês do século III a.E.C.. Contém também mitologia. No total, o livro fala de mais de 550 montanhas e 300 mares. A colecção completa, com cerca de 31 000 palavras, está dividida em 18 secções. O Shan Hai Jing foi, mais provavelmente, um compêndio de obras escritas por muitos autores numa língua antiga, semelhante ao chinês, e posteriormente editado por vários estudiosos chineses desde a dinastia Han Ocidental, com base na sua interpretação do texto “ilegível” e intrigante. A colecção inclui uma série de mitos, nomeadamente histórias da criação e do início da humanidade. Diz-se que o livro tem pelo menos 2200 anos. Mas o nosso palpite é que o Shan Hai Jing é muito mais antigo.

Michael Du: Mas quanto mais antigo, queremos saber. Posso dizer com confiança que algumas das histórias datam de há pelo menos 6000 anos, até à civilização Hongshan, a minha área de interesse. Sugeriria mesmo que este livro raro nos fala de uma civilização mais antiga, anterior ao Grande Dilúvio, acontecimento que se deu globalmente — em todas as culturas antigas, aparentemente. Dediquei toda a minha vida à recolha e ao estudo dos artefactos de Hongshan e não apenas devido ao seu crescente valor de mercado: estou convencido de que a mitologia não deve ser tomada como um dado adquirido. O Shan Hai Jing não é um dado adquirido. É com a referência sólida a artefactos existentes que podemos agora dar um rosto ao texto antigo “sem rosto”. Um rosto que se aproxima de uma verdade histórica impressionante, que de outra forma se perderia para sempre.

Via do Meio: Uma verdade histórica espantosa?

Michael Du: Como a Julie disse, o Shan Hai Jing registou mais de 40 países, mais de 550 montanhas, 300 rios, etc., com criaturas antigas, monstros e geografia mítica. Um relato enciclopédico da visão que as pessoas têm do mundo, que se tornou uma fonte de inspiração para a cultura pop, intercâmbios interculturais e estudos comparativos. Durante o nosso próprio processo de escrita, comparámos o Shan Hai Jing com As Histórias, do antigo historiador grego Heródoto. As Histórias documentam a geografia, as pessoas, os recursos naturais, os diferentes costumes, as aves e os animais. Em particular, alguns dos monstros orientais descritos por Heródoto são bastante semelhantes aos do Shan Hai Jing. Em alguns mapas europeus da Idade Média, as áreas próximas da Índia eram frequentemente pintadas com monstros, cujos equivalentes podem ser encontrados no Shan Hai Jing. O monstro estrela do Shan Hai Jing, Zouwu, fez uma estreia global em Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald em 2018. Tão grande como um tigre, com um pêlo colorido e uma cauda mais comprida do que o corpo, o Zuowu é uma criatura auspiciosa que aparece apenas durante o reinado de governantes benevolentes. O Zuowu não mata um ser vivo para se alimentar. Portanto, é óbvio que a difusão do conhecimento antigo do Shan Hai Jing desde os tempos antigos é um tema académico interessante. Mas fizemos a nós próprios a primeira pergunta antes de começarmos a escrever o Código Shan Hai Jing: estes países, montanhas e rios, registados no texto chinês, estão em que região? Esta é uma pergunta muito importante que nunca foi feita antes. Acreditamos que este texto chinês não diz respeito apenas à civilização chinesa: o Shan Hai Jing diz respeito à civilização mundial.

Via do Meio: É uma conclusão bastante surpreendente, não é? Então, com o Código Shan Hai Jing, pretende escrever uma nova versão chinesa da história mundial?

Julie Oyang: Posso responder a essa pergunta. E devo dizer que todo o Shan Hai Jing parece algo composto por uma espécie de alquimistas antigos. A viagem entre o mito e a realidade é uma experiência humana comum que encontramos na grande literatura mundial, desde a Divina Comédia de Dante até ao jardim bifurcado de Borges. É claro que os verdadeiros alquimistas não transformam o chumbo em ouro; transformam o mundo em palavras, cada uma das quais é um puzzle labiríntico a tempo de ser decifrado por nós. Na sua Filosofia da História, Hegel defende que a essência da civilização e do seu progresso é a liberdade. No entanto, a história chinesa contrasta ou mesmo refuta a visão hegeliana da liberdade e do progresso. A civilização chinesa está profundamente enraizada na pluralidade através da “absorção de tudo o que está sob do céu”. Pode dizer-se que, a partir do Shan Hai Jing, a versão chinesa da história do mundo é apresentada como uma grande narrativa unificadora ou — como disse o historiador britânico Arnold Toynbee — uma “narrativa cosmopolita”. A liberdade significa conflito e a grande unidade significa a cessação do conflito. O universalismo chinês é a ideia de que os indivíduos ou os pequenos Estados devem abdicar de uma parte da sua liberdade para alcançar uma harmonia social global e a concórdia entre todos os Estados. O Shan Hai Jing mostra-nos que os chineses promoveram e praticaram a ordem universal de harmonia entre todas as nações do globo no mundo antigo. O objectivo ideal desta narrativa cosmopolita é “misturar e unificar o mar, as montanhas e o mundo” através de uma governação bem sucedida baseada no comércio. O Shan Hai Jing é o mapeamento da mais antiga rede de comércio! Se acreditarmos na Atlântida de Platão – sim, é bastante louco!, mas a colecção Hongshan de Michael Du abriu-me realmente os olhos e a mente. Assim, se Platão estiver correcto, podemos dizer que a civilização pré-diluviana era uma civilização espiritual e que a versão Ocidental da história mundial é a manifestação de uma civilização material. A civilização chinesa é uma civilização intermediária única, mas típica, a ponte entre as duas.

Via do Meio: Atlântida? Hongshan? A ponte?

Michael Du: O Shan Hai Jing descreve muitas bestas mágicas. Têm três cabeças, seis braços, asas múltiplas e outras características. Isto lembra-nos que a engenharia genética altamente desenvolvida e a tecnologia de clonagem já existiria num passado remoto. Os abundantes artefactos de Hongshan confirmam esta hipótese. Na minha opinião, Hongshan não é a Atlântida, mas uma memória dela! Hongshan preservou os mistérios e simbolismos únicos de uma civilização anciã pré-diluviana para ser espalhada pelo globo novamente no final da última era glacial. A civilização mais antiga foi designada Atlântida por Platão nos seus Diálogos. Tal como as criaturas do Shan Hai Jing, os atlantes têm poderes mágicos e comunicam por telepatia. Alguns atlantes eram seres parecidos com peixes, tal como a sereia de Hongshan! Hoje em dia é-nos difícil compreender estas coisas se não tivermos uma mente aberta. De facto, alguns investigadores acreditam que Hongshan é um laboratório extraterrestre. Miscellaneous Morsels from Youyang (酉陽雜俎) é um livro escrito por Duan Chengshi no século IX, durante a dinastia Tang. Centra-se em lendas e boatos chineses e estrangeiros, relatos de fenómenos naturais, pequenas anedotas e contos do maravilhoso e do mundano, bem como notas sobre temas como ervas medicinais e… tatuagens. O livro regista o encontro com um astronauta extraterrestre que informou dois homens que a Lua era feita de sete ligas (sete tesouros) e que a Lua era na realidade uma esfera coberta de montanhas e não um disco plano como se pensava. Disse-lhes que havia oitenta e dois mil lares de trabalhadores de manutenção na lua e que ele era um deles, antes de lhes mostrar as suas ferramentas, incluindo machados e cinzéis. Por fim, partilhou alguns alimentos lunares que pareciam bolas de arroz cristalino. Todos estes pormenores interessantes sobre a Lua foram registados no século IX! Não é alucinante? De certa forma, Youyang é um livro ainda mais estranho do que Shan Hai Jing. Mas estou a divagar. O que quero dizer é: quem somos nós para julgar e rejeitar?

Via do Meio: Podem partilhar com os nossos leitores alguns dos mistérios e simbolismos únicos da civilização anciã pré-diluviana que Hongshan preservou e que ainda hoje estão vivos?

Michael Du / Julie Oyang: Leiam o nosso livro e descubram.

5 Jun 2024

O Retrato Fictício da Senhora Hedong

Feng Menglong (1574-1646), o escritor e poeta da actual Suzhou (Jiangsu), em muitas das suas obras daria forma a um culto das emoções que se generalizava nesse final da dinastia Ming, desenvolvido em torno da palavra qing, que se refere a uma desinteressada e ardente simpatia pelos outros que, ao focar-se na importância das relações humanas, acabaria na acentuação do progressivo reconhecimento de mulheres inspiradas e inspiradoras.

Na sua ambiciosa «História das emoções» (Qingshi), parte do sofisticado impulso enciclopédico que visa não apenas conhecer o Mundo mas também o discurso sobre o Mundo, Feng Menglong recolhe mais de oitocentas histórias que provam que «as coisas nesta vida são como moedas soltas; as emoções (qing) são a corda do cordel que as junta todas.»

Entre esses relatos está o da jovem bela e talentosa Feng Xiaoqing, que não sobrevive à leitura do romance do Pavilhão das orquídeas (Mudanting, peça escrita em 1598 por Tang Xianzu) e cuja crónica confirma a fatídica relação entre o engenho e a tragédia quando entretecidos pelas emoções.

Outro influente literato do tempo, Qian Qianyi (1582-1664) achava a história demasiado perfeita para ser verdade, desconfiando da imaginação do coleccionador de emoções, sem saber que a sua própria biografia se desenrolaria como um desafio à credulidade dos leitores. A sua relação com a cantora, dançarina e poeta Liu Yin (1618-1664) que escolheu o nome Liu Rushi, «ser como um salgueiro», a árvore que simboliza a emoção da dor da separação, foi-se contando ao ritmo de palavras ordenadas como coincidências ou rimas. A saudade que ela não quis sentir, fê-la despedir-se da vida quando ele perde a sua. Quem soube desses acontecimentos, guardou a memória dessa poetisa cortesã com admiração. E os retratos pintados com a sua figura seriam acolhidos com curiosidade.

Wu Zhuo, um pintor activo no século dezassete, mais conhecido por pintar paisagens, figura como autor de um elegante e problemático retrato de Liu Rushi, aí designada por outro dos seus nomes artísticos. Nesse rolo vertical (tinta e cor sobre seda, 119,5 x 62,3 cm, no Museu de Arte de Harvard) pode ler-se numa inscrição: «Pintado para a senhora Hedong por Wu Zhuo de Huating, no Outono de 1643 na quinta de montanha da Água que limpa (Fushui shanfang)».

Referências tão específicas, como o nome artístico de Liu Rushi, Hedong Jun ou o nome da quinta de Qian Qianyi, emprestam um tom de veracidade desmentida pela própria pintura. Como a pose descontraída, carismática com uma perna levantada e indecorosa para a esposa de um circunspecto literato.

Porém, o seu olhar directo para o observador transmite uma intranquila sensação de proximidade. E é esse olhar que serve de ponte entre «os que expressam as emoções e aqueles que as não revelam e vivem em mundos diferentes», como Feng Menglong escreveu.

3 Jun 2024

O Vazio Amoroso em François Cheng

Ana Cristina Alves, Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM

29 de maio de 2024

I

O vazio amoroso

François Cheng (1929 – ) é um grande escritor, filósofo, calígrafo, enfim sinólogo, descendente de chineses nascido e radicado em França. Tem alguns estudos profundos dedicados à pintura chinesa, nos quais se destaca o seu pensamento filosófico, como em: L’ Espace du Rêve: mille ans de Peinture Chinoise (1980); L´Écriture Poétique Chinoise: Suivi d’ une Antologie des Poèmes des Tang (1982) e, sobretudo, Vide et Plein: Le Langage Pictoral Chinois (1991), com reflexões muito interessantes sobre o vazio do ponto de vista filosófico.

Possui ainda uma obra literária da qual se destacam dois romances premiados, ambos traduzidos para português pela editora Bizâncio, o primeiro Le Dit de Tianyi (1998), que lhe valeu o prémio Femina; o segundo, que aqui se analisará L’ Éternité n’ est pas de Trop (2002) , a propósito do vazio amoroso pelo qual se conduzirá o leitor até ao vazio filosófico. A obra, traduzida para português por Francisco Agarez, sob o título de A Eternidade não é de mais, valeu-lhe o Grande Prémio da Francofonia da Academia Francesa.

Através dela somos conduzidos a finais da dinastia Ming, tal como sucedeu a François Cheng quando convidado para um colóquio em Royaumont numa antiga abadia restaurada, deu com um legado de um erudito chinês à biblioteca conventual, no qual descobriu uma novela notável intitulada História do Homem da Montanha. Perdeu-se na narrativa, que relatava a paixão amorosa persistente para além do tempo, sendo recompensada trinta anos mais tarde, pela persistência do par amoroso. Mas o mais extraordinário está para vir. Cheng, embora muito tocado pelo livro, seria atraído pelo mundo dos afazeres profissionais, até que volvidos vinte anos foi de novo convidado a participar num encontro intelectual em Royaumont. Saltou-lhe à memória com acutilância a história que não tinha sido capaz de esquecer. Porém, quando chegou à biblioteca a obra havia desaparecido. Logo se comprometeu a refazer a narrativa que tanto o impressionara. Chegaria, por fim, a coincidência mais admirável de todas, outra vez distraído por razões mundanas, só conseguiria realizar o seu intento, dez anos depois, ou seja, somando aos vinte que tinham passado, trinta anos corridos. Tudo indicava que a realização do feito seria tão fora de série como a coincidência a que o autor chamou “milagrosa” (Cheng, 2002, 8).

Aquela grande paixão regressa à vida agora pela mão do escritor, que a consagrará em França e no mundo através do mais importante galardão literário francês. Garantida fica a imortalidade do par amoroso chinês, Dao-Sheng, “o Santo do Dao” o médico adivinho, e Lan-Ying, a “Fina Orquídea”, que atados pelo fio vermelho invisível do destino com que o Velhinho da Lua (月老) põe e dispõe casamentos e relações, voltam a encontrar-se contra todas as expetativas. 1

Tal é possível, como nos explica o escritor, porque “a verdadeira paixão amorosa não tem apenas a ver com o coração e os sentidos. Revela eminentemente do espírito” (Cheng, 2002, 12). Ora o espírito (神shén) ultrapassa e supera as vicissitudes humanas, que haviam afastado o inicialmente violinista, Dao Sheng, da filha da família Lu, a Menina Lan-Ying, por intervenção do Segundo Senhor Zhao, o marido da futura Senhora Ying, um homem devasso, brutal, incompetente, descrito como “um perfeito inútil, tirano a passar das marcas” (Cheng, 2002, 32). Tudo se complica e parece afastar o par predestinado. Dao Sheng faz frente ao futuro marido de Lan-Ying, sendo degredado e sujeito a trabalhos forçados, que lhe danificam o pulso e o perdem para o violino. Mas como homem de recursos que era, foge do cativeiro, sendo recolhido num mosteiro taoista, onde revela pouco vocação monástica, contudo grande apetência para o estudo da medicina, pelo que, depois de mais de uma dezena de anos de estudo de plantas medicinais e receitas, se transforma num habilidoso curandeiro e adivinho. Já a senhora Ying, depois de casada, é, para sua sorte, “completamente abandonada; por isso leva uma vida muito mais tranquila” (Cheng, 2002, 33), dedicando-se a causas humanitárias budistas, o que lhe valeu a amizade e o respeito do bonzo local, o Grande Monge, que a salvaria quando esta foi raptada por bandidos. Ora eles viriam a pedir um resgate avultado ao Segundo Senhor Zhao, que hesitou em pagar a soma solicitada por uma mulher que deixara de o atrair, por estar sempre triste e melancólica.

O Grande Monge budista terá um papel fulcral na intriga, já que não só salvou a Senhora Ying do cativeiro armado pelos ladrões, como recolheu o monge taoista, curandeiro e adivinho, quando percebeu a sua grande competência médica. Será também por intermédio do Grande Monge que se intui estar a aguardar a Senhora Ying algo de muito bom, porque, segundo nos diz,“quem sobrevive a uma calamidade irá conhecer a felicidade mais tarde” (Cheng, 35).

Quanto a Dao Sheng, “por mais meditações e exercícios de vacuidade que se impusesse, não conseguia livrar-se da ideia fixa que trazia consigo”. (Cheng, 2002, 26) – Lan-Ying, sobretudo aquele sorriso dela que tanto o cativara e o acompanhara ao longo dos anos mais penosos de degredo. Ele era um homem especial, um santo conhecedor da via do Dao (道), apesar de não ter atingido o desprendimento ou iluminação total (Cheng, 2002, 20):

Além de tratar dos doentes, a sua profissão principal ainda é a adivinhação. E não é esta que propõe o preceito: «fazer o que o homem puder, deixar que o Céu faça o resto?» Com efeito, uma vez que estejam reunidas as condições e as oportunidades, e que o homem tenha feito aquilo que está ao seu alcance, o que não deve acontecer, não acontece, e o que deve acontecer, acontecerá.

Dao Sheng, que nunca tinha perdido Lan-Ying da ideia, vai à procura da amada, encontra-a, já ela está muito doente, ainda assim consegue salvá-la. Afinal, era um excelente médico, apesar de não ter os pergaminhos necessários, por isso a si mesmo se apelida de curandeiro. É simples, bom, honesto e trabalhador e está convencido de que a sua arte e ciência ficam a dever o melhor de si mesmas ao pensamento (Cheng, 2002, 52):

A adivinhação e a medicina não se fazem só com receitas, que elas nada são sem o pensamento que lhes serve de fundamento (…) Diz-se que está tudo ligado, que não se podem separar os sinais humanos dos que vêm da Terra e do Céu. Dentro deste todo orgânico, o traço de união não é nenhuma corrente, nem nenhuma corda, mas sim o sopro que é ao mesmo tempo unidade e garante da transformação.

A história avança e ele consegue salvar a amada do estado doentio em que se encontra. No entanto, as convenções da época mantêm o par à distância, apenas lhes permitindo depois da cura da Senhora Ying, trocas de olhares, sorrisos furtuitos e silêncios pejados de sentido. Entretanto, aproxima-se a morte do Segundo Senhor Zhao, que tinha ficado paralítico, na sequência de múltiplas cacetadas nas costas, aquando do assalto dos bandidos, que pululavam nos tempos tumultuosos dos finais da dinastia Ming, nos quais grassava a pobreza e as casas senhoriais se tornavam muito apetitosas. A inação e o ópio conduzem o Segundo Senhor à tuberculose, ditando-lhe um final de vida mal vivida e esquecida entre os fumos. É chamado Dao Sheng, de reconhecido mérito, para que o tente salvar in extremis. Só que, por um lado, ele já está às portas da morte, por outro, Dao Sheng acaba por se revelar, atraindo novamente a desgraça sobre a Senhora Ying e ele próprio. O marido, cuja paralisia e a beleza rejuvenescida da mulher, lhe voltam a despertar um estranho desejo, descobre finalmente a razão de ser da graciosidade recuperada da Senhora Ying e nos momentos finais de vida chama-a para a enforcar com o cinto do roupão.

Aparentemente bem-sucedido, todos dão a Senhora Ying como morta, quando a sua fiel empregada, Xiao Fang, manda chamar o médico, que literalmente a ressuscita num ato conjugado de ciência e fé. Ele que tinha escutado a um dos padres jesuítas, vindo do “Oceano do Oeste”, ao qual salvara do paludismo, uma citação de Santo Agostinho, “ama e faz o que quiseres” (Cheng, 2002, 195), lança-se rumo à segunda salvação de Lan-Ying, num cruzamento da inspiração cristã com as excelentes técnicas medicinais taoistas, que implicam, quer a massagem baseada no magnetismo da mão, quer o recurso ao sopro vital, numa eficaz respiração boca a boca.

Estas crenças e técnicas conjugadas com uma postura ética irrepreensível, levam-no a questionar-se e a prosseguir exausto com a tarefa de salvamento “Com essa humildade, essa sinceridade conseguirá alcançar o shen? Lançar um fio ténue no espaço imenso para apanhar um ganso selvagem perdido?” (Cheng, 2002, 184).

Salva a mulher e daí para a frente ficarão fisicamente separados, mas espiritualmente mais unidos do que nunca, ele no mosteiro da montanha, ela, depois da morte do marido, liberta-se da família Zhao e vai para o convento das freiras do Vale de Guan-yin (观音Guānyīn). Ambos com a plena consciência de que a separação era momentânea, mas a jura, eterna “mais perene do que o Céu e a Terra” (天长地久Tiāncháng-dìjiǔ) ou “para além dos rochedos apodrecidos e oceanos ressequidos” (大海干涸、岩石腐烂Dàhǎi gānhé, yánshí fǔlàn) (Cheng, 2002, 122), mesmo que não seja já nesta vida, porque Dao Sheng dá sinais de velhice, o seu sopro vital está fraco, respira com dificuldade e “sente-se ferido de vazio” (Cheng, 2002, 214).

O final fica em aberto. Será que voltam a reencontrar-se? Senão nesta existência por certo para a próxima, porque se o vazio aproxima, também fere e mata, o sopro vital é limitado e para se eternizar terá de regressar à origem, ao sopro primordial, a esse que tudo pode, por entre os temas essenciais da vida humana, o nascimento, a velhice, a doença e a morte, faz acontecer o melhor “uma pitada de aspiração aqui, uma onça de amor acolá” (Cheng, 2002, 52).

II

O Vazio Filosófico

O sopro vital concede-nos o melhor a que podemos aspirar, a inspiração e o amor, pelo modo como se relaciona com o vazio, mas atenção porque existem sopros deficientes, perniciosos e malignos (Cheng, 2002, 52), uns e outros podem favorecer a união ou a separação, a cura ou a doença, a vida ou a morte, tudo e nada, na medida em que são constituídos pelo vazio, a potência que se pode atualizar no que o espírito ou a pessoa desejar.

Em Vide et Plein (1991), François Cheng alerta para o facto de o Vazio ser essencial no pensamento chinês, ao mesmo nível dos princípios Yin e Yang, que são perspetivados como sopros vitais, sendo o próprio vazio não o nada que se opõe ao tudo, mas “um elemento eminentemente dinâmico e operante” ( Cheng, 1991, 45). Ou seja, em termos práticos, é ele quem vai permitir a conjugação e a harmonização de dois elementos tão distintos como o Yin e o Yang. O vazio é então definido como um “princípio base” no pensamento chinês (Cheng, 1991, 46) essencial na filosofia, expressando-se através do silêncio, mas também na própria noção de vazio enquanto complementar do cheio, potência de infinitas possibilidades, que ainda não podem ser ditas, por exemplo no taoismo ou no budismo; filosofias extremamente sensíveis e dependentes do vazio. Na pintura, este expressa-se pelo espaço não pintado, na poesia pela supressão de certos vocábulos, na vida pela conjugação de elementos viabilizada por ele, um mediador que harmoniza a rígida oposição, como a montanha e a água (Cheng, 1991, 47) numa paisagem. O vazio, enquanto potência, permite toda e qualquer transformação, sendo esta noção o pilar da filosofia chinesa. A transformação proporciona, indica e favorece a vida, a ausência da mesma manifesta a morte.

De acordo com a perspectiva de François Cheng sobre a ontologia taoista, que me parece legítima, esta apresenta-nos uma versão cosmogónica em que o Dao (道) é primeiro, mas surge em estreita conexão com o Nada, este será o vazio essencial a nível numenal, o sopro primordial, enquanto Wú (无), ou não-ter ou não haver, vai proporcionar o ter/haver Yǒu (有), entrando a partir daqui um terceiro termo mediador, o vazio fenomenal, o Xū (虚), o sopro existencial, elemento de união entre todos os seres, que corresponderá nos budistas ao Kōng (空). É do mesmo vazio que se trata, que tem como par complementar o pleno/cheio e atua a nível fenomenal, quer dizer da realidade material que nos rodeia Shì(事). Toda a nossa existência se desenrola entre o vazio e o cheio, quanto mais vazios formos, mais plenos de possibilidades nos tornamos. Quanto mais cheios, tanto menos dinâmicos e mais coisificados. Cabe-nos decidir se queremos ser (ativos e dinâmicos) ou ter (coisas, ocupar espaços). As filosofias taoista e budista privilegiam o vazio, o silêncio, o recolhimento, a humildade e o apagamento. Já a filosofia confucionista poderá privilegiar a construção de obras, livros, bibliotecas, escolas, etc. O caminho certo, está como de costume, no meio termo, na via do meio, nem pessoas muitas cheias, nem muito vazias, nem países muito cheios, nem muitos vazios, de modo a favorecer a harmonia que permita viver bem. Sem espaço corpóreo não há possibilidade de ligação, nem amor, nem beleza, onde o sopro amoroso possa desenvolver-se a atuar, sem estruturas materiais não há obras de arte: livros, pinturas, rolos caligráficos, estátuas, museus, palácios, templos, belas paisagens em que se possa contemplar o sol e a lua, repletas de possibilidades ou de vazio.

A representação do vazio, na filosofia daoista, é o vale, a nível fenomenal; porém, a nível numenal é o espírito do vale, daí a importância do espírito (神shén), que nos religa à esfera sagrada, à zona do mistério como indica o capítulo VI do Daodejing (《道德经》)no qual o Dao (道) é descrito como “o Espírito do Vale” (谷神Gǔ shén) e a “Fêmea Misteriosa” (玄牝Xuán pìn):

谷神不死

是谓玄牝

玄牝之门

是谓天地根

绵绵若存

用之不勤

(Graça de Abreu, 2013,38)

(O Espírito do Vale não morre/diz-se a Fêmea Misteriosa/As portas da Fêmea Misteriosa dizem-se a raiz do Céu e da Terra/Continuamente existente/ Usa-se mas não se esgota2.)

Por último, e para melhor entendermos o sopro amoroso que uniu Dao Sheng e Lan-Ying, aqui fica a primeira parte do capítulo 42 do Livro da Via e da Virtude, que nos revela a cosmogonia daoista e, ao mesmo tempo, a possibilidade de ligações amorosas:

道生一

一生二

二生三

三生万物

万物负阴而抱阳

冲气以为和

(Graça de Abreu, 2013, 110)

(O Dao gerou o um/ O Um gerou o Dois, o Dois gerou o Três/ o Três gerou os Dez Mil Seres/ Os Dez Mil Seres carregam o Yin e abraçam o Yang/ a harmonia nasce do vigoroso sopro mediador)

Voltando ao início, quando o casal amoroso se encontrou, o que os uniu foi sopro vazio mediador. Como descreveria o narrador naquela noite do 15ºdia do 8º mês em que a lua brilhava em todo o esplendor nos céus, e o par, com o apoio da fiel empregada, consegue iludir a apertada vigilância da família Zhao, sentando-se os dois lado a lado, de mãos unidas a contemplar a lua: “E ficam as quatro mãos sobrepostas, por elas passando a respiração harmoniosa dos dois” (Cheng, 2002, 132).

Referências Bibliográficas

Cheng, François. (1980). L´Espace du Rêve: mille ans de Peinture Chinoise. Paris: Phébus.

_____________. (1982) ); L´Écriture Poétique Chinoise: Suivi d’ une Antologie des Poèmes des Tang. Paris: Éditions du Seuil.

_____________. 1991). Vide et Plein: Le Langage Pictoral Chinois. Paris: Éditions du Seuil.

______________. (1998). Le Dit de Tianyi. Paris: Albin Michel.

_____________. (2002). L’ Éternité n’ est pas de Trop. Paris: Albin Michel.

Graça de Abreu, António. (Org. e Trad.) (2013). 《道德经》Tao Te Ching. Livro da Via e da Virtude. Ed. Bilingue. Lisboa: Vega.

Wang Suoying, Ana Cristina Alves. 2009. Mitos e Lendas da Terra do Dragão. Lisboa: Caminho.

Wang Suoying, Ana Cristina Alves (2009) Ver Mitos e Lendas da Terra do Dragão. Lisboa; Caminho.

Traduções da autora do artigo.

31 Mai 2024

Estratégias e tácticas de Zhuge Liang

Nascido em 181 em Yangdu de Langya, hoje vila de Yinan, prefeitura de Linyi no Sul da província de Shandong, Zhuge Liang (181-234, 诸葛亮) tinha o nome literário Kongming e era conhecido por a alcunha do Dragão Adormecido, potência à espera de ser acordada, pois pouco tempo antes da sua existência fora criado da Filosofia do Dao o Daoísmo religioso.

Órfão desde os oito anos, de mãe em 184 e do pai, Zhuge Gui, magistrado no distrito de Taishan, a 189, ficou então à guarda do tio Zhuge Xuan. Viveu em Xiangyang até à morte deste em 197 e com dezassete anos Zhuge Liang mudou-se para a aldeia Longzhong, próximo de Xiangyang, província de Hubei. Aí se dedicou à agricultura, nos tempos livres a ler e tocar guqin, convivendo com a população local e sobretudo a conversar com o seu mestre Pang Degong e Xü Shu, seu genro, apreendendo coisas da vida e trocando ideias sobre as convulsões e acontecimentos do país.

Em 207 tornou-se conselheiro militar de Liu Bei (161-223), que se apresentava como representante da casa real Han, e organizou-lhe o pequeno exército após a derrota sofrida nesse ano em Wunhuan contra as forças do general Cao Cao (155-220), poeta e grande estratega, a governar o país desde 196 em nome do Imperador Xian Di (189-200) da dinastia Han do Leste.

Em finais do primeiro século, Liu Bei como voluntário e o general Zhang Fei combatiam a Revolta dos Turbantes Amarelos quando se encontraram com o fugitivo à lei Guan Yu, homem robusto a vaguear como vendedor ambulante por Zhuoxian (a 70 km de Beijing) na província de Hebei. No Jardim dos Pessegueiros fizeram os três um juramento, tornando-se irmãos de armas com votos de ajudarem Liu Bei a se tornar chefe e por sublevação armada estabelecer o reino Shu-Han.

Em 207, Liu Bei foi à aldeia Longzhong acompanhado por os dois irmãos de armas, a convidar por a terceira vez Zhuge Liang a se juntar às suas forças de Shu-Han e servi-lo como conselheiro militar. Só então Zhuge Liang aceitou o comando do exército Han-Shu e logo deu o conselho a Liu Bei de juntar o seu pequeno exército ao de Wu de Sun Quan para combater os Wei de Cao Cao, que governando o Norte do país pretendia avançar para Sul e conquistar a área do rio Yangtzé para de novo unificar toda a China.

“Desde a época das insurreições dos Turbantes Amarelos que estas ricas famílias coloniais haviam sacudido a tutela do poder central. Tinham-se organizado com vista à sua própria defesa.” (…) “Para que aparecesse um Estado independente no vale do Yangzi, bastaria que se agravassem os conflitos na China do Norte e que militares e colonos fizessem causa comum.

Um fenómeno análogo iria produzir-se no Sichuan, região rica e relativamente isolada onde eram igualmente numerosas as populações indígenas. O facto foi favorecido pelo prestígio de Li Bei, descendente da família imperial dos Han, e pelo génio político e militar do seu conselheiro Zhuge Liang (181-234). Mas, enquanto o reino de Wu é regido por uma espécie de confederação das famílias mais poderosas do vale do Yangzi, no Sichuan denotam-se tendências para a centralização.

Tal como Wei [no Norte], Shu-Han é um Estado militar dirigido pelos conselheiros legistas”, segundo Jacques Gernet e continuando no seu Mundo Chinês, “O nascimento dos dois efémeros impérios do Sichuan e do vale do Yangzi explica-se, não só pelas perturbações e pela recessão económica do fim da época dos Han, mas também pelas suas particularidades geográficas e sociais.

É a secessão da China colonial da bacia inferior do Yangzi que vai dar à luta dos Sun [Sun Quan criou o reino Wu (222-280), fazendo a capital em Jianye (hoje Nanjing) depois de se coroar imperador Da Di (229-252)], simples comandantes de exércitos rivais de Cao Cao, o sentido de uma guerra de independência. A influência, no reino de Wu, das grandes famílias do Jiangnan (regiões situadas a sul do curso inferior do Yangzi) explica a transferência em 231, da capital, estabelecida primeiramente em Wuchang (hoje Ezhou, Hubei) na confluência do Yangzi e do Han, para Nanquim.”

PEDIR EMPRESTADO

No Romance dos Três Reinos (San Guo Zhi, 三国志) encontra-se muito do que hoje se sabe sobre a vida de Zhuge Liang (诸葛亮) e por isso a sua história tem mais de lendária que de real. Aí se faz referência a Zhuge Liang ter pedido emprestado três coisas: Flechas, o Vento Leste e Jingzhou. Se as duas primeiras, usar barcos com cobertura de colmo para pedir emprestado flechas (cao chuan jie jian, 草船借箭) e pedir emprestado o Vento Leste (JieDongFeng, 借东风) apenas se encontram registadas neste livro, já Zhuge Liang ter pedido emprestado Jingzhou (Jie Jingzhou, 借荆州) é realmente um facto histórico e apareceu em outros relatos da História.

Os dois primeiros episódios ocorreram em 208 entre os meses de Julho a Novembro durante a grande batalha em Chibi (hoje Puqi, Hubei) cujos exércitos conjuntos de Liu Bei e Sun Quan tinham apenas cinquenta mil homens enquanto no campo contrário, Cao Cao contava com 230 mil soldados.

Essa batalha (de Chibi) realizada após Cao Cao ter conquistado o poder no Norte da China e com o seu exército seguir para Sul a tentar controlar o resto do o país.

As tropas de Liu Bei estavam estacionadas em Jingzhou (Hubei) e as forças de Sun Quan junto à foz do rio Yangtzé. Zhuge Liang, sozinho foi ao reino Wu para persuadir o chefe Sun Quan a aliar-se com Liu Bei e combaterem Cao Cao.

Cao Cao, com o seu exército, partiu do seu reino no Norte da China, para conquistar Jingzhou e enxotar Liu Bei das redondezas. Sun Quan sentindo-se ameaçado resolveu juntar-se a Liu Bei, mas o exército de ambos não chegava a metade do de Cao Cao. Este, numa grande armada subiu por o rio Yangtzé e estacionou a sua frota em frente aos Penhascos Vermelhos (a Oeste do lugar onde hoje se situa Wuchang, província de Hubei).

Aí se realiza a demonstração da qualidade de estratega de Zhuge Liang, quando usa barcos com cobertura de colmo para pedir emprestado flechas – cao chuan jie jian. A história refere-se à necessidade de rapidamente se conseguir flechas durante a batalha em Chibi por parte de Sun Quan.

Zhou Yu era capitão do exército Wu e conselheiro político de Sun Quan e apesar de conhecer bem as ideias de Zhuge Liang, tinha grande inveja dele. A Sun Quan, que não tinha um numeroso exército, não lhe agradava nada Liu Bei ter Zhuge Liang como estratega e apesar de estarem aliados, não via a hora de conseguir matar Zhuge Liang. Antes de começar a batalha de Chibi, Zhou Yu convidou
Zhuge Liang para conferenciar sobre a maneira como iriam combater Cao Cao. Zhou Yu para saber quais as armas a usar durante o combate nas águas do rio Yangtzé questionou Zhuge Liang, que respondeu serem flechas. Zhou Yu concordou também serem essas as melhores armas, mas não as tinham suficientes para combater o enorme exército de Cao Cao.

Virando-se para Zhuge Liang pediu para lhe fazer cem mil flechas, a fim de poderem ganhar a batalha. Zhuge Liang concordou e perguntou para quando eram necessárias. Para lhe criar problemas, Zhou Yu disse dez dias. Pensando um pouco, Zhuge Liang replicou serem dez dias muito, pois não se devia aguardar tanto tempo e contrapôs precisar apenas de três dias. Incrédulo, Zhou Yu obrigou Zhuge a assinar um contrato como conseguiria tal e se não cumprisse no prazo de três dias podê-lo-ia condenar à morte. Zhuge tinha como amigo o conselheiro Lu Xu do exército de Sun Quan e a ele recorreu para o ajudar, pedindo-lhe vinte barcos, cada um com vinte soldados e todos serem cobertos com molhos de colmo em forma de figuras humanas. Assim fez Lu Xu, apesar de saber estar já o estratega condenado pois em três dias arranjar cem mil flechas era algo impossível.

O primeiro dia passou e nada aconteceu, tal como no segundo dia e no terceiro, Zhuge Liang foi ter com Lu Xu e convidou-o para beber, pedindo-lhe o favor de informar Zhou Yu para o esperar no dia seguinte de manhã no porto para lhe entregar as flechas. Durante a noite, às três da manhã, Zhuge e Lu Xu enquanto bebiam no barco ancorado na margem oposta onde se encontravam as embarcações de Cao Cao, viram aparecer um grande nevoeiro e Zhuge ordenou aos vinte barcos partirem ao encontro dos do inimigo e quando chegassem próximo começassem a tocar bombo e a gritar.

Lu Xu virou-se para Zhuge replicando, caso Cao Cao fosse ao encontro dos barcos iria ser um grande problema. Zhuge respondeu que tal não iria ocorrer pois o nevoeiro ajudaria e quando como planeado os barcos se aproximaram, Cao Cao sem poder ter uma noção exacta do que tinha próximo decidiu usar os arcos e flechas para combater. Lu Xu e Zhuge, sem nada poder ver o que ocorria, apenas ouviam os assobios das inúmeras flechas a voar. Zhuge avisara os seus soldados para após meia hora de serem flechados, virarem os barcos e após outra meia hora assim, regressarem. Quando os barcos voltaram estava Zhou Yu no porto, crendo ter nas mãos a vida de Zhuge, mas ao olhar para como os barcos vinham rendeu-se à qualidade e sabedoria de Zhuge Liang.

30 Mai 2024

Opus Magnum

Vimos estupefactos aquele instante de forte voltagem cósmica produzindo na Terra claridade tamanha – dezanove de Maio de 2024 – sem boletim meteorológico capaz de o prever, onde coube ainda a cada um retirar suas ilações ou, tão-somente, mergulhar na beleza do contacto inesperado nessa maravilhosa e cálida madrugada de Primavera, que enquanto êxtase, não poderia ter sido mais intenso. A Península Ibérica fora contemplada por feéricas luzes azuis e verdes como se tivesse permissão para um vislumbre celeste, um rasgão de auroras, uma súbita maravilha, e mesmo assim, foram tímidas as pronúncias e confusos os depoimentos.

Em todo o caso foi de natureza onírica o que se passou em nossos céus tão falhos de acontecimentos excepcionais, e talvez que a alma do Universo nos obrigue agora a depor, de como é ser rasgado de luz tamanha nestes céus noturnos do hemisfério norte.

Os sinais são sinais, ou seja, sinalizam, e eu creio que há sinais dos céus. Até mesmo há sinais corporais quando estamos em caminhos benéficos ou menos bons, quanto mais em esferas superiores em termos de manifestação tamanha! A nossa vida, toda a vida, é um radar, disponibilizamos energia telepática para coordenarmos movimentos e sabemos de modo instintivo dimensionar a textura das coisas sem aludir a grandes factos, que também não saberei dizer onde caiu fonte de energia tal, crendo mesmo que não caiu em lado nenhum. A energia arrefece, quem cai são os corpos.

Acredito que o que se passou foi sem sombra de dúvida uma obra-prima «Opus Magnum» estamos abeirando-nos de uma Guerra que não somos capazes de interpretar, e tudo aquilo que nos acontece nem sabemos já descodificar – dizem uns; sempre caíram meteoros, mas este foi bastante diferente, e se dúvidas houver, delas não me apartarei, somente acrescento grande esplendor de instante feito.

Este nosso refrão está assente em tangíveis etapas que cientificamente corretas acusam falhas, só que a ciência prossegue, é futuro, transformação, e aos poetas a noção de transcendência dos efeitos manifestos. Buscamos nuns e noutros, certitude, esse amplo domínio de precisão, mas quando o inqualificável transborda, são os poetas que têm uma palavra a dizer: não acredito que tenha sido um meteoro, por outro lado, nem sequer deixo de acreditar, que: «o olho no qual vejo Deus é o mesmo olho no qual Deus me vê; o meu olho e o olho de Deus, são um único olho, uma única visão, um único reconhecimento e um único amor» que nesta alquimia os invisuais transbordam de ternura por tudo aquilo que a visão alcança.

Que o azul não nos falte nem a verde composição se deixe de manifestar. Maio pode ser verdejante, mas ondas tão fortes de azul esquecido, nos deu qualquer coisa capaz de achar o mar uma sombra, uma pradaria, um aterro, e os néons artificiais, grosseiras formas de luz. Estivemos assim diante de uma obra-prima, de algo melhorado que parece acontecer só uma vez no espaço de uma época, o factor surpresa não foi visto como grande sinal, mas sentido por muitos apenas como temor. Dito isto, e aqui nas funduras da Terra, o que importa afinal são outras coisas, todas as coisas, tangíveis, risíveis, modelarmente humanas, que ninguém parece receptivo ao acaso, nem ao seu teor vibrante que talvez pareça querer despertar-nos. As evanescentes vozes foram então de jovens para quem os fenómenos são expressos com um misto de sagrado e de deleite, e nas suas vozes entrecruzadas captámos aquilo que falta em grande escala, ser maravilhado, deixar-se maravilhar. Escutando-os: não era parecido com nada que até agora conhecêramos!

« Chef- d´oeuvre» ou a beleza do céu vindo a nós como sinal de coisas melhoradas. Que obra de arte é clarão tamanho em diferentes áreas, que muitos de seus obreiros até se esquecem de assiná-las.

28 Mai 2024

A cadeira longa de Feng Xioaoqing

Su Xiaoxiao (c.479- c.501), a poeta, cantora e bailarina nascida em Qiantang (actual Hangzhou, Zhejiang) junto do rio com o mesmo nome que daria origem, no século oitavo, ao Lago do Oeste, sentia-se acolhida por um lugar único, que a recebia como se fora feito para ela viver nele.

Aqueles que guardaram a sua história para a posteridade concordaram que não podia existir melhor cenário para espelhar a sua inteligência, a sua inspiradora vitalidade poética e a sua beleza.

Os seus últimos desejos evocados numa cadenciada sequência de palavras: «Nascida em Xiling, morro em Xiling, serei sepultada em Xiling, merecedora desta paisagem.»

O imperador Qianlong, nas suas Viagens ao Sul em 1780 e 1784, faria das visitas ao túmulo de Su Xiaoxiao, um ritual imprescindível de respeito pela tradição cultural do império. Era, no entanto, apenas um dos muitos factos e lendas que até hoje servem para contar o inexplicável encanto do Lago do Oeste.

O poeta Su Shi (1037-1101), que tal como o poeta Bai Juyi, na sua qualidade de funcionários imperiais lá tiveram responsabilidades administrativas e criaram baías com os seus nomes, comparou-o à beleza fatal da cortesã Xishi, a «Senhora do Oeste», por quem «os peixes se afundaram, os cisnes tombaram, a lua se escondeu e as flores se envergonhavam», e cuja beleza fatal, distraindo o senhor da guerra, causou a derrota do Estado de Wu em 473 a. C..

Uma outra jovem e inspiradora poeta, Feng Xiaoqing (1595-1612), cuja vida breve dir-se-ia envolta nas brumas que recebem o Lago nas manhãs de Primavera, lá viveu e morreu exilada.

Da sua biografia consta um funesto presságio feito por uma freira a sua mãe para que conservasse a criança iletrada; o casamento precoce como concubina de um homem rico de nome Feng cuja primeira mulher, por ciúmes, sempre se esforçou por prejudicá-la. Estando o marido ausente, obrigou-a a viver isolada numa ilhota do Lago do Oeste, em cujas águas ela mergulharia para sempre. Procurou até destruir a sua obra literária, queimando-a. Alguns, intrigantes poemas, porém sobreviveriam.

Cui Hui, pintor activo em Pequim cerca de 1680-1720, retratou Feng Xiaoqing deitada, macilenta, com largas vestes brancas acentuando a sua magreza derramando-se sobre uma cadeira longa, por vezes chamada chundeng, «cadeira de Primavera» por ser adequada a afectuosas conversações. Que lhe seriam negadas.

Está diante de um painel com uma paisagem numa varanda onde atrás se notam folhas de bananeira que abanando tornam sensível o som do vento. Que também nada lhe diria. Num poema, ela cisma numa possibilidade:

Se, acabada de maquilhar,

fosse comparada a uma figura pintada,

quem sabe o grau que alcançaria

no Palácio Zhaoyang.

Admiro o meu reflexo pálido

nas águas do rio de Primavera.

Oh… mas ele terá de se compadecer de mim,

como eu dele me compadeço.

28 Mai 2024

O banho de Buda

Ana Cristina Alves, Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM

I

O Dia de Buda

A todos os seres especiais se associam fenómenos raros, sejam eles pessoas excecionais ou divindades, sobretudo pela altura do nascimento, como é o caso de Jesus Cristo, Confúcio e o Buda Histórico Siddharta Gautama Shakyamuni. Quando Jesus nasceu uma estrela brilhou pujante nos céus, encaminhando os Três Reis Magos do Oriente até Belém, uma estrela poderosa e sumamente inteligente guiou até nós os Reis Sábios há 2024 anos com os quais partilhou a sua transcendente sabedoria.

E que dizer do nascimento de Confúcio? Está associado a um unicórnio (麒麟 Qílín) como seria de se esperar do organizador do sistema meritocrático que introduziu as Cinco Virtudes constantes na China (Benevolência, Justiça, Ritos, Sabedoria e Confiança). O Qilin era tão bom, que apenas voava, sem sequer pisar as ervinhas.

Quanto a Buda, pilar do sistema espiritual miscigenado chinês, nasceu em 624 a.C, tendo falecido em 544 a.C . Era de ascendência real, filho do rei Suddhodana e da rainha Maya, mas tal como Jesus Cristo, teve dois pais, um terreno, outro celestial, já que se conta que a mãe engravidou não pelo Espírito Santo, mas por contacto com um elefante branco e pela axila, assim gerou e concebeu o corpo sagrado. Buda ao nascer terá saudado o mundo com um rugido de leão, pelo que o Budismo ficaria para sempre associado à figura totémica deste felino. Deu então sete passos, donde imediatamente brotaram sete lótus. Apontou com uma mão para o Céu e outra para Terra, afirmando simultaneamente a jurisdição sobre ambos os domínios. Foi então que todas as divindades celestiais se apressaram a prestar-lhe homenagem, incluindo nove dragões que o banharam efusivamente. Este episódio ocorre no oitavo dia do quarto mês lunar e, desde então a história tem-se vindo a repetir num banho ritual à estátua de Buda um pouco por toda a Ásia onde esta religião impera espiritualmente. Já Jesus seria batizado bem mais tarde, em adulto, por S. João Baptista no Rio Jordão. De qualquer modo, a água é um importante elemento purificador e hoje nas igrejas cristãs as crianças recebem o seu batismo nos primeiros meses de vida.

Em 2022 tive oportunidade de publicar um texto poético intitulado Visitações, de temática espiritual, pelo que aqui deixo o poema “O Banho de Buda” (Alves, 2022, 65)

O banho é sagrado,

Buda, que o recebeu,

Foi por nove dragões batizado,

No 8º dia do 4º mês lunar,

Sete séculos antes de o Senhor chegar.

Veio o grande Meditador ensinar

A libertar do sofrimento e da dor.

Os dragões receberam-no

Com salvas de água,

Em honra do branco progenitor

Celestial que o criou no corpo de Maya

Enquanto o pai Suddhodana a terra governava.

De acordo com informações recolhidas no site do Instituto Cultural de Macau, relativo ao Património Cultural, se a introdução do Budismo no sul da China, mais concretamente no distrito de Xiangshan (香山), data da dinastia Tang, do reinado de Xiantong (唐咸通), entre 820 e 872, já o primeiro templo budista é o de Kun Iam (观音), ou o templo de Guanyin (觀音), na pronúncia do Norte, sendo bastante posterior, dos finais da dinastia Ming, de 1632; a sua primeira nomenclatura foi templo de Pou Chai (普濟禪院), mais tarde seria rebatizado com o nome da Boddhisattva da Compaixão. Situado na Avenida do Coronel Mesquita está associado ao amor universal, que Guanyin distribui por todos. Neste templo seria assinado o primeiro tratado diplomático entre chineses e americanos, o “Tratado Sino-Americano de Mong-Há” em 1844 entre o Vice-Rei de Cantão, Ki Jing, e o ministro plenipotenciário Caleb Cushing. Mas aí também se celebra o amor particular, já que o seu jardim abrigou durante bastante tempo duas árvores entrelaçadas que simbolizavam o amor terreno e a fidelidade conjugal contra todas as convenções.

Um outro templo em lugar de destaque entre os vários dedicados a divindades budistas é Kong Tac-Lam, mais recente, datando do início da primeira república, importante pelo facto de surgir ligado à educação feminina de mulheres budistas em Macau, num tempo em que estas já deviam ser educadas, a bem da nação, ainda que depois de cursadas, regressassem a casa para educar os filhos de acordo com o ideal de mulher republicana então vigente, que produzia esmeradas donas de casa. Também as mulheres budistas, bonzas e laicas, beneficiaram dos ares dos novos tempos, quando se deslocavam a ou para Kong Tac-Lam a fim de se letrarem.

Entre as atividades festivas do Dia de Buda, importante festividade em Macau, cuja sociedade conta com uma mistura de várias religiões em que o Budismo é proeminente, nos templos e associações os crentes juntam-se para orar, discursar sobre matérias budistas e para banhar buda. Ora este banho conduz-nos à reflexão sobre importância do corpo sagrado.

II

O corpo sagrado

O corpo é espaço de sentido, quando se pressupõe uma divisão entre alma e corpo, em que a alma entra e sai do corpo a seu bel-prazer, como no Cristianismo ou é ainda o próprio sentido quando não há cisão entre a esfera física e a espiritual.

O corpo sagrado é único.

A literatura fornece-nos uma vasta gama de metamorfoses mágicas nos contos de bruxas e de fadas, e não só. Quem não se recorda do pacto com diabo atuando no corpo de Dorian Gray, personagem famosa de Oscar Wilde? De Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll ou, mais recentemente, da Metamorfose de Kafka?

Na Metamorfose de Kafka temos um bom exemplo de uma ligação indissociável entre um psiquismo recalcado por uma vida social e familiar sem sentido e o corpo. Gregor Samsa, o protagonista, que, acima de tudo, denuncia um estado de coisas absurdo, sofre um processo de metamorfose, onde o corpo é palco de uma revelação animalesca, quase demoníaca, que rompe com todas as leis naturais e sociais da ordem estabelecida. De repente, o caixeiro-viajante acorda quando a mãe, no seu tom suave, o vai alertar por estar atrasado para o emprego, ele responde já semitransformado em inseto, e sente um profundo horror pela sua voz: “Gregor teve um choque ao ouvir a sua própria voz responder-lhe, inequivocamente a sua voz, é certo, mas com um horrível e persistente guincho chilreante.” (Kafka, 1975,11)

Não fica completamente metamorfoseado em animal, torna-se uma figura repelente por ser uma mistura entre o humano e o animal. Ora esta mistura entre duas ordens biológicas diferentes oferece as figurações mais assustadoras, como bem viram os budistas ao fazer guardiões dos seus templos os famosos lokapalas. Mas, voltando a Gregor, quando tenta levantar-se da cama, percebe que em vez de braços e mãos tinha apenas as inúmeras perninhas, que não cessavam de se agitar em todas as direcções e que de modo nenhum conseguia controlar (Kafka, 1975,13).

O percurso do protagonista afasta-o da família rumo à morte. Ele rejeita a ordem estabelecida. Continua a ligá-lo à existência o afeto pela irmã e as manifestações artísticas: a sua arte, a da carpintaria, e a música que a irmã lhe fazia chegar aos ouvidos por meio do violino tocado. Ele questiona-se: Poderia realmente ser um animal quando a música tinha sobre si tal efeito? (Kafka, 1975,81)

No caso específico da Metamorfose de Kafka, tudo se processa no mundo natural, não havendo qualquer apelo a entidades divinas, sejam elas imanentes ou transcendentes.

Nota José Gil em Metamorfoses do Corpo: «Amuletos, talismãs, feitiços, elixires e relíquias conservam em si energias dominadas.» (1980,20). O corpo é o recetáculo que permite todas as metamorfoses e receção de sentidos. O sacralizado, o demoníaco e o mágico precisam de um lugar de manifestação. O corpo é médium entre várias realidades. É microcosmos natural, é uma minúscula organização, encerrando em si o princípio da unidade plural tão caro a Leibniz – tudo é um, porque um é tudo. Ele é, ainda, um espaço sociocultural, pois além de corpo particular, é coletivo: contém em si a herança dos mortos e a marca social dos ritos (Gil, 1980:43) e, por último, é médium ou microcosmos religioso, domínio privilegiado de comunicação e manifestação do sagrado, surja ele na forma de espírito, antepassado, imortal ou deus.

Como é possível então estas potencialidades exacerbadas irromperem no corpo? Será que lá estão desde sempre? A resposta vai depender do tipo de filosofia religiosa adotada. Numa perspetiva imanentista e, portanto, claramente oriental, o corpo é animado de espírito desde sempre. Nada existe fora dele, mas o divino que o anima não se manifesta espontaneamente, pois são necessários exercícios físicos e espirituais para que o sagrado se revele. Na tradição cristã, o corpo, mesmo o parcialmente divinizado, onde já ocorreu a ligação essencial ao sagrado, não escapa ao sofrimento na sua condição telúrica, e experimenta martírios que os budistas relegam para a esfera infernal.

No Cristianismo foi necessário Cristo humanizar-se e sofrer o calvário e ser pregado numa cruz para através do seu sofrimento libertar a humanidade. Fica então assente que não teria havido libertação coletiva sem o martírio individual de um corpo particular e muito especial, o do filho de Deus.

Para os budistas, o martírio do corpo prova o contrário, que ainda não se deu a libertação da esfera do sofrimento e do desejo. O mundo fenomenal desperta com os seus desejos um sorriso numenal compassivo, abrindo-se uma única exceção para o buda do futuro, Maitreya, também conhecido na China por Buda que Ri ( 笑佛 Xiào Fó ) e por Buda Compassivo, que há-de colocar novamente a roda do dharma em movimento. O seu mudra é dharmachakra, onde o polegar e o indicador de ambas as mãos formam um círculo representando a roda do dharma.

O corpo, no Budismo tântrico e no Mahayana, permite a união com a esfera divina pela libertação, por meio de exercícios propedêuticos respiratórios e meditativos, do verdadeiro sentido, do sagrado, e não se pode prescindir dele em qualquer momento. Também no Cristianismo o corpo de Cristo, embora mantendo um estatuto dual, portanto separado em relação ao espírito, tem a possibilidade de inaugurar uma nova aliança, justamente na Última Seia:

Jesus, partindo o pão e dando-o aos seus discípulos «isto é o meu corpo», sela uma nova aliança ao mesmo tempo que depõe a sua presença no corpo dos discípulos. E quer seja no domínio da história das sociedades ou no da ascese mística, o enquadramento e o «encher» de um significante flutuante, vazio, acompanha sempre a constituição de um corpo novo – que inaugura o processo de aparecimento da presença do sentido. (Gil, 1980,73)

A questão que se coloca é: há uma afinidade de raiz em relação ao modo como é vivido o aparecimento de uma nova ordem por meio do corpo, no Budismo e no Cristianismo? No Cristianismo, através da Última Seia, o que notamos é a assimilação de um corpo divino que está fora, que literalmente transcende os discípulos e que uma vez incorporado os modifica, unindo-os à esfera sagrada. Entretanto, o que sucede ao próprio corpo de Cristo é que morre como homem para ressuscitar numa esfera transcendente e divina onde viverá para todo o sempre, sentado à direita do Pai. No Budismo, liberta-se o corpo do que este tem de matéria pesada e de ilusão para que melhor se possa unir ao divino. A verdadeira energia perpassa a matéria e precisa dela para se manifestar. Isto só é possível porque o divino já está previamente em cada corpo particular, não é incorporado nem assimilado; antes é libertado, quando são ultrapassados os estados ilusórios, sociais e culturais que dividem a pessoa e a afastam da energia envolvente, definida como pura atividade, corpo subtil, ou na tradição budista e taoista esotérica, embrião espiritual.

Nunca encontramos no Budismo uma cisão entre puro espírito e a matéria como na tradição cristã. Não há um princípio que era simplesmente Verbo, embora haja carne que regresse ao Verbo, mas diferentemente da tradição cristã, no Budismo volta-se ao Verbo sem abandono da condição material, ou melhor, sempre através desta até à libertação definitiva da roda da reincarnação. Até lá ore-se e banhe-se Buda.

Referências Bibliográficas

Alves, Ana Cristina. (2022). Visitações. Fafe: Labirinto.

Cowell, B et al. (ed) .(1969). The Budha-karita in Buddhist Mahâyâna Texts. New York: Dover Publications, Inc.

Dia de Buda.(2024). Património Cultural, Instituto Cultural de Macau. Disponível em: https://www.culturalheritage.mo/pt/detail/102270?AspxAutoDetectCookieSupport=1

Frédéric, Louis. (1995). Buddhism. Paris, New York: Flammarion.

Gil, José.(1980). Metamorfoses do Corpo. Lisboa: A Regra do Jogo.

Kafka. (1975). A Metamorfose. Mem Martins: Publicações Europa-América.

MM023-Templo de Pou Chai (Kun Iam Tong). (s.d). Bens Imóveis Classificados. Património Cultural de Macau. Disponível em: https://www.culturalheritage.mo/pt/detail/99953?AspxAutoDetectCookieSupport=1

Tatjana & Mirabaina Blau. (1999). Buddhist Symbols. New York: Sterling Publishing Co. Inc.

24 Mai 2024

Zhuge Liang, uma Pérola da Imortalidade

É de lembrar pouco se saber sobre Zhuge Liang, figura para além de histórica tem a complementá-la várias lendas, assim como mitológicas narrações a erguê-lo a um ser misterioso de grande poder. A maior parte da sua vida apenas vem narrada no Registo dos Três Reinos (San Guo Zhi, 三国志) escrito por Chen Shou (陈寿) e publicado no séc III, que forneceria a Luo Guanzhong (1330-1400, 罗贯中) as fontes para o Romance dos Três Reinos (San Guo Yanyi 三国演义) publicado no século XIV e como um romance histórico narra o período de 169 a 280. Mas há outras histórias que nem aí vieram contadas. Uma delas, a mais estranha de todas, refere como Zhuge Liang se tornou um Imortal, sendo só registada após via oral ser passada de geração em geração e escrita muito tempo depois nas Histórias de Longzhong.

Nessa mitológica história sobre a sua juventude explica-se a razão de Zhuge Liang se apresentar sempre com um leque de penas na mão e uma veste de mestre daoista. Acordado por um crane, a representar um ser imortal com quem conviveu e lhe transmitiu a pérola quando a Filosofia do Dao sofria uma reorientação executada pouco tempo antes por o mestre Zhang, cujo nome era Zhang Ling (34-157).

Mais conhecido por Zhang Dao Ling, fundou no ano de 141 em Sichuan, Sudoeste da China, o grupo religioso daoista ‘Via dos Cinco Alqueires de Arroz’ (Wu Dou Mi) e quase ao mesmo tempo no Leste, também inspirado no livro Taiping Jing, mas na versão popular do Taiping Dongji Jing, Zhang Jiao criava em 175 uma secreta seita daoista, Taiping Tao (Doutrina da Justiça). Zhang Jiao (?-184), além de oferecer gratuitamente consultas médicas, falava das suas ideias de igualdade, em oposição à exploração dos homens por outros, preconizando um governo de camponeses. Já com milhares de adeptos, então Zhang Jiao liderou em 184 a Revolta dos Turbantes Amarelos, nome por que ficou conhecida a rebelião devido aos exércitos de camponeses os usarem.

Em 181 nascia Zhuge Liang em Yangdu de Langya, hoje, vila de Yinan, pertencente ao distrito de Linyi situado na parte Sul da província de Shandong. A sua mãe morreu quando tinha três anos e devido à morte do pai, Zhuge Gui, que fora magistrado no distrito de Taishan, com oito anos ficou desde 189 à guarda do tio Zhuge Xuan.

O general Yuan Shu, um senhor da guerra que mais tarde, em 197 se autoproclamou imperador da curtíssima dinastia Zhong, enviou Zhuge Xuan para ir tomar conta de Yüzhang, pequena localidade a Norte da actual província de Jiangxi, próximo de Nanchang. Como tal não ocorreu por não haver a aprovação dos oficiais Han, Zhuge Xuan foi pedir ajuda ao amigo Liu Biao (142-208), prefeito (governador) da província de Jing (Jingzhou em Hubei), que administrava grande parte das actuais províncias de Hubei, Hunan e o Sudoeste de Henan e no ano 190 mudara a capital de Hanshou para Xiangyang. Daí ir viver em Xiangyang acompanhado pelo sobrinho Zhuge Liang, tendo este estudado durante três anos numa escola, talvez na Academia fundada por Liu Biao por volta do ano de 196. Ao mesmo tempo, Liang escolheu Pang Degong como seu mestre.

Zhuge Xuan morreu em 197 e após a morte do tio, Zhuge Liang com dezassete anos mudou-se para a aldeia Longzhong, próximo de Xiangyang, província de Hubei, onde se dedicou à agricultura. Passava o tempo livre a ler, assim como gostava de conversar com os mestres Pang Degong e Xü Shu, pois sendo pessoas mais velhas lhe iam ensinando coisas da vida, trocando ideias também sobre as convulsões que ocorriam pelo país.

A Revolta dos Turbantes Amarelos iniciada em 184 e liderada por Zhang Jiao aconteceu quando trezentos mil camponeses em muitas partes do país se levantarem contra o Governo, mas ao fim de nove meses a maior parte dos chefes e exércitos tinham sido derrotados e mortos. A rebelião estendera-se até Shaanxi e em 186 chegou a Shanxi, Hebei e Liaoning, mas em 192 com a vitória de Cao Cao sobre os Turbantes Amarelos a revolta ficou confinada à província de Shandong, apesar das lutas continuarem até ao final da dinastia Han.

Cao Cao (155-220) tornara-se em 190 um dos mais poderosos generais do período final da dinastia Han do Leste, mas apesar do exército Han conseguir debelar a rebelião, sucumbia perante os exércitos locais dos senhores feudais.

Zhuge Liang a viver desde 197 em Longzhong, hoje a Oeste de Xiangyang em Hubei, aí passou mais ao menos dez anos onde fez muitos amigos entre os locais, mantendo relações de amizade com intelectuais como Sima Hui e Huang Chengyan. Este último sabendo andar Zhuge Liang à procura de esposa, propôs-lhe a filha. Avisou-o ser feiosa, apesar de dotada de muitos talentos, que bem se complementaria com os atributos dele. Concordando, casou-se com Huang YueYing, apesar de no local registo histórico Xiangyang Ji, onde vem narrado tal episódio, o nome da esposa nunca aparecer mencionado.

FINAIS DA DINASTIA HAN

Grande estratega militar, comparável com Sun Wu (c.544-496 a.n.E.) e Sun Bin (c.382-316 a.n.E.), Zhuge Liang (181-234) era um homem de Estado e criativo inventor a quem Liu Bei pediu ajuda para ser seu conselheiro militar e organizar o exército do que viria a ser o Reino Shu-Han no Período dos Três Reinos.

A dinastia Han de Leste (25-220), cuja capital era Luoyang, tinha a família imperial debilitada e dominada como mero joguete nas mãos dos poderosos eunucos. Com a morte do Imperador Ling em 189, subia ao trono Shao Di e o Chefe dos General He Jin, percebendo ter de pôr ordem nos eunucos, convocou à corte o General Dong Zhuo para lhes fazer frente. Mas sabendo os eunucos das intenções, logo eliminaram o Chefe dos Generais, levando Yuan Shao, outro senhor da guerra, a ir a Luoyang e matar mais de dois mil eunucos. Pouco depois, Dong Zhuo chegava à corte e mostrando-se cruel com o povo e com intenções de controlar o poder, depõe Shao Di e ainda nesse ano colocava no lugar de Imperador Xian Di (189-200).

A 192 foi assassinado o General Dong Zhuo, ano da vitória de Cao Cao sobre os Turbantes Amarelos. Em 196, o general Cao Cao vai a Luoyang e levou Xian Di para o seu quartel-general em Xudu (hoje Xuchang, em Henan) e em nome do Imperador passou a controlar o país.

Yuan Shao, à frente de um exército de cem mil homens, no ano 200 defrontava na batalha em Guandu (Henan) o general Cao Cao que, com apenas vinte mil soldados, o derrotou. Nos três anos seguintes, após arrumar um a um os Senhores da Guerra, Cao Cao passou a deter o poder no vale do Wei, dominando os territórios do baixo e médio curso do rio Amarelo e a Planície Central, controlando todo o Norte do país e daí o início em 210 do reino de Wei (220-265). Imbuído na filosofia daoista, quando o seu exército não combatia colocava-o a cultivar as terras, promovendo para lugares de destaque as pessoas com talento sem se importar com as suas origens. Depois planeou conquistar o Sul aos seus últimos rivais.

“As suas ambições tinham-no levado à conquista do vale do Yangzi, mas a célebre batalha da Falésia Vermelha (Chibi), junto às margens do grande rio no Hubei, em 208, tinha travado esta política de expansão. A grave derrota infligida a Cao Cao pelas forças aliadas de Sun Quan (185-252) e de Liu Bei (161-223) foi o prelúdio da divisão do território chinês em três reinos (sanguo): o de Wei da família Cao, o dos Han do Sichuan (Shu-Han, 221-263), fundado por Liu Bei, e o de Wu (222-280), fundado por Sun Quan”, segundo Jacques Gernet, no Mundo Chinês.

Estava-se no fim da dinastia Han do Leste e três reinos, Shu a Oeste, Wei a Norte e Wu a Leste da China viviam em guerra. Com a queda da dinastia Han em 220, seguiu-se o Período dos Três Reinos (220-280).

CONVITE AO ESTRATEGA

Zhuge Liang (181-234) declinara ofertas de alguns senhores da guerra para ser conselheiro militar dos seus exércitos, tal como aconteceu por duas vezes a Liu Bei.

Liu Bei (161-223), que se dizia representante da casa real Han, não tinha uma base e esperava o momento adequado para solicitar o patrocínio do também membro da família real Liu Biao, Prefeito de Jingzhou entre 192 a 208, que administrava grande parte do centro da China, na zona média do rio Yangtsé.

Residia Liu Bei em Xinye quando percebeu precisar de um conselheiro e estratega para combater o reino dos Wei no Norte e o reino Wu a Leste. Por isso foi visitar Sima Hui que o alertou não poder encontrar nos confucionistas, pessoas habilitadas nos assuntos de Estado nem da Guerra e haver na região apenas dois transcendentes seres com essas habilidades e conhecimentos, o Dragão Adormecido e a Jovem Fénix, casal formado por Zhuge Liang e a esposa.

Após Liu Bei, chefe de um pequeno exército, ter sofrido em 207 uma derrota contra as forças de Cao Cao em Wunhuan, na retirada estacionou as tropas em Jingzhou (Hubei) para tomar conhecimento do estado deste e reconheceu a necessidade de um bom estratega. Ainda em 207 ouviu Xu Shu recomendar Zhuge Liang como o maior de todos os estrategas. Liu Bei, contente por ter encontrado por fim um estratega para o seu exército, pediu a Xu Shu para o trazer à sua presença, ao qual este ripostou dever ser ele a ir convidá-lo.

Na primeira recusa, Zhuge Liang pretendeu perceber quem era Liu Bei e entender os desejos e a sinceridade do herdeiro da casa real da dinastia Han. Na segunda visita, Zhuge Liang fazendo passar encontrar-se a dormir a sesta, para ver como reagia Liu Bei, este não ordenou aos criados para o acordarem, mas disse voltar mais tarde.

Ainda em 207, Liu Bei foi à aldeia Longzhong, acompanhado pelos seus irmãos de armas, Guan Yu e Zhang Fei, para convidar Zhuge Liang a se juntar às suas forças e servi-lo como conselheiro militar.

Só nessa terceira visita Zhuge Liang, rendido à sinceridade de Liu Bei, aceitou o convite para tomar o comando do exército Han-Shu e logo seguindo com ele lhe explanou os planos de conquista para o ajudar a criar o Reino Han-Shu. Recebeu como primeiro conselho unir o seu exército ao de Wu de Sun Quan para combater os Wei de Cao Cao.

Nascia uma amizade entre os dois para toda a vida. Quem ao princípio nada gostou da presença do novo elemento foram Guan Yu e Zhang Fei, mas percebendo ganhar o seu chefe e irmão de armas um novo poder, pararam de o importunar. Assim, logo no ano de 208 a aliança de Liu Bei com Sun Quan na Batalha de Chibi trouxe uma grande e celebre vitória conseguida sobre as tropas de Cao Cao junto ao Yangtsé, na conhecida Batalha da Falésia Vermelha.

22 Mai 2024

Texto sobre Casimiro de Brito, autor e poeta

O Casimiro de Brito, meu Amigo, partiu para as Nascentes Amarelas, algures perdidas entre nuvens, nas montanhas Kunlun, nos extremos-orientes mágicos, ascendendo ao céu. Fica a memória de um grande Senhor e a sua muita e excelente poesia. Em 1992, na Missão de Macau em Lisboa fez a apresentação da minha tradução dos Poemas de Bai Juyi e escreveu este texto:

Bai Juyi ou a Nostalgia do Outro

Bai Juyi (772-846) foi um poeta magoado e dividido: numa das suas vidas, a de letrado que chegou a mandarim, deambulou, ferido de má consciência, entre os festins dos poderosos e o conhecimento da fome e das guerras que assolavam a China do seu tempo, enquanto na sua outra vida, de vários exílios composta, dividiu-se entre os prazeres do vinho e das danças, o dedilhar do seu qin “de madeira rara e cordas de seda” e a contemplação das flores e das montanhas.

Eu vejo e sei como nos grandes frios

padecem os desditosos camponeses.

Não preciso sair e trabalhar nos campos,

nem fome, nem frio vêm ter comigo.

Penso, sinto vergonha e pergunto:

afinal quem sou eu?

Quem somos nós? Náufragos da liberdade somos – a que julgamos ter perdido (o paraíso da infância), e a que desejaríamos estar-nos reservada (a utopia da serenidade) mas o que dela nos é dada são momentos, fragmentos, entre eles o prazer da solidão ou a efémera fruição de um poema. Mil e duzentos anos depois, lendo Bai Juyi (traduzido com rara elegância por António Graça de Abreu), revejo-me nos seus poemas: os desastres dos homens são ainda os mesmos (escrevo em Maputo onde a fome e a guerra dizimam populações indefesas), mas os poetas, esmagados embora pelas contradições do tempo, não deixam de escutar a injustiça e de beber com a lua, como fazia Li Bai, de apaziguar “pensamentos e inquietudes” com a flor do canto, e bem podiam cantar “Os Rolos de Seda”, de Bai Juyi:

Ontem fui pagar os impostos ao yamen,

através dos portões escarlate espionei os armazéns,

atulhados de rolos de seda até ao tecto.

Montanhas de peças, densas como nuvens, finamente tecidas.

Os poderosos chamam-lhes “bens em excesso”,

todos os meses oferecidos ao grande monarca.

Para obter mercês, rouba-se calor ao corpo dos pobres.

Os rolos de seda empilhados no tesouro imperial

aí permanecem, ano após ano,

depois transformam-se em pó.

Será o poema – a voz do enigma – um corpo que vai tendo várias peles ao longo do tempo? O que se diz no poema é de facto a imagem de outra imagem, algo indizível e sinuosa, mas também algo que fica dito como se estivesse escrito desde sempre. “Escolhido o ritmo”, diz o poeta sobre a sua técnica, “a palavra é dócil. Se a palavra é dócil, o som entra facilmente, se o som se introduz, o sentimento manifesta-se, a emoção comunica-se. É então que a poesia se desenvolve, penetra o inagarrável, perfura o obscuro. Superiores e inferiores entendem-se, o espírito de concórdia manifesta-se, a alegria e o sofrimento equilibram-se, a esperança ganha alento.” Assim se produz uma nova “verdade” tão enigmática como a que não foi possível traduzir da música ouvida, dos ruídos do mundo que se perderam (para se ganharem de outro modo) no ouvido do poeta. Um poema, qualquer poema de Bai Juyi é uma ponte mimética entre o “eu” e o “outro”, uma ponte de água por onde passam as metáforas do homem comum, esse “bago de arroz” que anda perdido no “grande celeiro.”

Levanto-me cedo, vou comprar vinho,

Regresso tarde, depois do passeio entre jardins.

Deixo o mundo para estar com a natureza,

que tenho eu que fazer na capital?

Mistério da grande poesia: este poema já não é a voz que o poeta ouviu, a iluminação que o levou a escrever o que escreveu, o canto original que ele cantou. Nem o seria se ouvíssemos o poema em chinês. Ou é e não é. Passaram séculos, a língua em que falo é outra, as palavras rolaram como seixos em praias infinitas e no entanto o poema escrito por Bai Juyi, acaso distante que resultou de uma complexa relação com o mundo e com a música das palavras, é também, é ainda esse poema que acabei de ler, esteve na sua origem, na origem destes ritmos brancos e flexíveis que integram outros acasos e sensibilidades que me iluminam tal como uma pedra na palma da mão nos liga ao vasto mundo. Um simples poema pode assim abrir-se em leque onde leio muito mais do que nele — vaso e água inesgotável –, foi vertido. Por isso o poeta pode contar-nos a sua vida falando dos seus poemas: “O que em vida eu amei, senti, desejei, consegui, experimentei, a minha ambição de liberdade, também o meu comedimento e ponderação, coisas insignificantes ou incidentes importantes da existência, tudo pode ser encontrado nas minhas obras. O que escrevi diz tudo sobre mim.” Não é como se andasse por aqui o que Rilke escreveu sobre os ritos de passagem de quem deseja ser poeta?

Tempos conturbados foram aqueles em que Bai Juyi viveu, em plena dissolução da dinastia Tang, umas vezes à mesa do poder, outras vezes no exílio, “mesmo lares são coisas transitórias/porquê tanta vaidade, tanta humildade?” em cabanas à beira dos rios e das montanhas. Enquadrado umas vezes na norma, outras refugiando-se na amizade (sobretudo do poeta Yuan Zhen) e na solidão, Bai Juyi viveu um pouco ao sabor das marés do tempo e o que mais nos encanta na sua obra é o facto de ela se ter construído sem ambiguidade com os factos da mais ambígua e contraditória das biografias.

Em tempos agitados é bom descansar,

aos quarenta anos é cedo para me retirar.

Por ora basta limpar a roupa coberta de pó,

ainda não chegou o dia do regresso às montanhas.

A conduta do poeta que foi sucessivamente arquivista, mandarim e governador nos intervalos das suas quedas em desgraça, foi ora a de um confucionista, “em sociedade, o respeito por regras e condutas”, ora a de um taoista “vagueando ao acaso como um pedaço de nuvem.” Ora os cargos e funções não lhe permitem usufruir o direito à preguiça, ora o abandono do homem nem feliz nem triste que “aceita o que a vida lhe dá, o efémero, o constante”, como se assistisse, um pouco impotente, ao espectáculo da sua vida:

Não tenho jeito para mandarim de cidade.

À porta de minha casa crescem ervas de Outono

E que fazer para serenar este coração aldeão?

(…) Meu maior prazer é, sentado à janela,

ouvir os murmúrios do Outono por entre a ramaria.

Só um letrado ferido pelos inúmeros conflitos sociais da sua época poderia ser, ao mesmo tempo, não só poeta e político (há muitos casos entre os poetas orientais) mas, sobretudo, integrar em si, na constância de si que é a sua poesia, as três atitudes existenciais que constituíam a estrutura cultural do seu tempo: o confucionismo (quadro de conduta social), o taoismo (relação sensorial com o mundo em volta) e o budismo (depuração do espírito). Tudo isto se harmonizou sabiamente na sua vida, o estudo e a governação, os rios e as montanhas, o vinho e as danças, a música e os pincéis. Sabiamente? Talvez sim, porque governou desgovernando como mandava Lao Zi; porque a sua prática do Tao, tal como a do vinho foi moderada e bastante intermitente; porque de budista apenas possuía a leve ambição de um amanhã de renúncia. Mas, enfim, cantava, incansável cantou e a sua poesia integrou como nenhuma outra as contradições do seu tempo, da sua vida, o cepticismo, a impermanência, a amizade, o prazer da solidão, o amor conjugal, a humildade, a renúncia, o esquecimento do próprio nome e nada, situação nenhuma, sentimento nenhum escapava a este mestre da devoração do quotidiano e da sua depuração em ritmos belíssimos que nunca o abandonaram:

Sob os pinheiros, junto ao lago,

caminho, descanso, sento-me, adormeço.

O coração liberto dos pequenos desejos,

ignorando a passagem do tempo.

Os cabelos brancos, a confusão do mundo,

tão pouco me importa cuidar do porvir.

Lao Zi, esse que não sabia, escreveu um livro de cinco mil palavras. Bai Juyi, que talvez soubesse menos, escreveu muito mais, desfez-se em contradições, foi e é ainda espelho dos nossos rostos, das nossas dúvidas, da nossa insignificância – por isso o entendemos como se estivesse ainda ao nosso lado.

Depois da morte, meu coração permanecerá com os vindouros

a quem, silenciosamente, lego esta obra insignificante.

Casimiro de Brito, poeta, ex-presidente do PEN Clube Português

Junho 1992

21 Mai 2024

A corrente entre a Beleza, a Estranheza e o Saber de Yu Ji

Hongli (1711-99), que reinaria como o imperador Qianlong (1735-96), quis como o seu avô Kangxi (1654-1722) que o seu poder reflectisse, como num espelho, todo o brilho da sabedoria acumulada ao longo de séculos. Assim, como o seu avô iniciara a grande recolha e esclarecimento de todos os caracteres da língua escrita, no dicionário designado Kangxi zidian de 1716 e na Colecção completa dos clássicos, ilustrações e livros desde os tempos remotos até à actualidade (Gujin tushu jicheng), também ele iniciaria em 1772 um formidável esforço de pesquisa e colecção do saber que nos seus três mil trezentos e oitenta e um volumes excederia a fabulosa enciclopédia de 1403-8 Yongle dadian, com os seus onze mil e noventa e cinco volumes, do imperador dos Ming, Yongle (r.1402-24).

Para concretizar esse ambicioso projecto que duraria dez anos, intitulado Siku Quanshu, «Biblioteca completa dos quatro tesouros», que são os quatro capítulos, Clássicos (jing), História (shi), Cartas (ji) e Mestres (zi); Qianlong contou com o cotributo dos sofisticados funcionários eruditos (shi dafu) da Academia Hanlin.

Um deles pode ser visto, sentado à vontade sobre uma pedra, as pernas cruzadas, um livro nas mãos, no seu jardim com dois criados, numa pintura do Museu Britânico, que o identifica no título O Senhor Shen Shuyan a ler (rolo horizontal, tinta e cor sobre papel).

O influente Ruan Yuan (1764-1849) sintetizaria o ideal que a figura pintada evoca, ao escrever no seu epitáfio: «Shen Shuyan cumpria os deveres filiais com os mais velhos, apreciava a beleza da natureza e era um ávido leitor. Empregou boa parte do seu tempo a escrever e dedicou toda a sua vida aos livros.»

O autor da pintura, o literato de Hangzhou, Yu Ji (1739-1823), membro da Academia Hanlin, participou desse grandioso desígnio do imperador Qianlong como editor da Siku Quanshu. Também como editor, foi coordenador da primeira edição impressa do curioso livro, Liaozhai zhiyi, «Estranhos contos do Estúdio de conversação» que transpõe com facilidade as fronteiras entre o mundo natural e o sobrenatural.

Yu Ji, na sua dedicação à pintura, mostrou no entanto o seu muito natural olhar fascinado pela beleza feminina, dentro daquele que era então um florescente e inovador género da pintura chamado meiren hua. Que visualmente adoptou, nalguns casos, a perspectiva europeia com um único ponto de vista e moralmente afirmou o talento, os méritos, os sacrifícios e a virtude moral de mulheres que viviam dedicadas a agradar a homens cultos, algo que elas também eram. Como se comprovará no rolo vertical Senhora num banco (tinta e cor sobre papel, 100,3 x 45,7 cm, no Museu Walters, Baltimore, MD). Com um pincel na mão, ela pondera a resposta a dar ao poema que, numa folha de árvore, lhe foi escrito e enviado no brando curso de água de um ribeiro.

20 Mai 2024

Sun Zi e a Arte da Guerra

Não se conhece a data de nascimento nem da morte de Sun Wu, cujo nome de cortesia por si dado era Changqing e ficou conhecido por Sun Zi (Mestre Sun), ou Sun Tzu em cantonense. Sun Wu (c.535-c.480 a.E.C./544-496 a.E.C.) nasceu durante o Período Primavera-Outono (770-476 a.E.C.) de uma família nobre em Le An (乐安) (hoje no concelho Huimin em Shandong) então no reino Qi.

O pai Sun Ping (孙凭) era um oficial bem colocado na hierarquia Qi, que por discordâncias com os governantes locais se refugiou nas montanhas de Luofu, levando consigo o filho pequeno. Sun Wu vivendo num ambiente de eremita terá assimilado os conhecimentos e inteligência do progenitor, apreendendo com e na Natureza, e assim se formou como grande estratega militar. Escreveu a Arte da Guerra, (Bingfa, 兵法) um tratado militar, que hoje se apresenta com treze capítulos de táctica e estratégia, de filosofia e de governação, ainda actualmente estudado nas Academias Militares do mundo inteiro.

Procurando a localização da montanha de Luofu (罗浮山) inicialmente aparece-nos na parte Sudoeste do reino Wu, o que faz sentido pois mais tarde Sun Wu foi general comandante desse reino e segundo fontes chinesas era a montanha Qionglong, próximo de Suzhou em Jiangsu. No entanto, na geografia da China a montanha Luofu encontra-se na prefeitura de Huizhou província de Guangdong e local sagrado para os daoístas onde na dinastia Jin do Leste (317-420) o alquimista Ge Hong trabalhou na procura de elixires e em 343, com 80 anos alcançou a imortalidade através da técnica do Shi Je, libertação do cadáver.

PERÍODO PRIMAVERA-OUTONO

O reino de Qi (1046-221 a.E.C.) fundado na província de Shandong no início da dinastia Zhou do Oeste (1046-771 a.E.C.) por volta de 1046 a.E.C. era um dos seus vassalos pois, quando Jiang Shang (Jiang Ziya ou Lu Shang), general da dinastia Shang, se exilou e passou para as hostes do reino Zhou, então governado por o Rei Wen, tornou-se professor deste e conselheiro do filho, o Rei Wu, servindo assim como Duque Zhou os primeiros três reis da dinastia Zhou.

A Jiang Shang é atribuída a redacção de um livro de estratégia militar, o Liutao, As Seis Estratégias (六韬). Mais tarde com 88 anos criou o reino Qi oferecido ainda pelo Rei Wen e passou como primeiro governante a ser o Duque Tai de Qi. O reino Qi desde 859 a.E.C. tinha como capital Linzi (hoje Zibo) que se manteve até 221 a.E.C. quando o reino Qin o anexou.

A casa dos Jiang (姜) manteve o poder do reino até à morte em 643 a.E.C. do duque Huan (685-643 a.E.C.) e após breves problemas de sucessão, as famílias Guo, Gao, Luan, Bao, Cui, Qing, Yan e Tian tomaram o comando do reino Qi. Historicamente pouco se sabe do final da vida de Sun Wu, mas quando faleceu o reino Qi era governado por Chujiu, duque Jing (547-490 a.E.C.). Em 489 a.E.C., um membro da família Tian matou o novo duque Qi, Tu, (Yan Ruzi) tal como ocorreu oito anos depois com o duque Jian dos Qi (484-481 a.E.C.). Em 386 a.E.C. a família Tian usando a intriga e a força bruta passou a dominar o reino Qi.

Já o reino Chu, contra quem Sun Wu a comandar as tropas de Wu combateu, iniciara-se um pouco antes do reino Qi, sendo também proveniente da dissidência na dinastia Shang. Os Chu, pertencentes à tribo Jin, partiram para Oeste e aliaram-se aos do reino de Zhou, então a dar início às conquistas para criar uma nova dinastia e substituir a governante Shang. Sabendo da intenção dos Zhou em enviar tropas para ocupar o Sul do país, seguiram como parte do exército e quando o general dos Zhou foi ferido, foi ele tratado no acampamento dos Chu. Tal levou o Rei Wen do reino Zhou a oferecer a região de Hubei para território dos Chu ao seu professor Yu Xiong (鬻熊), que formou o reino Chu e ficou sendo o primeiro governante.

Em 656 a.E.C., o duque Huan do reino Qi atacou os Chu, obrigando-o a pagar tributo à dinastia Zhou de Leste. Após a morte em 643 a.E.C. do duque Huan, a hegemonia passa para o reino Jin.

Em 636 a.E.C. chegou ao poder do reino Jin o duque Wen e aliando-se ao duque Mu de Qin, assumiu uma posição de liderança, sendo reconhecido por o Rei Xiangwang (Ji Zheng, 651-619 a.E.C.) da dinastia Zhou de Leste, como o primeiro entre os senhores feudais.

Em 632 a.E.C. o reino Chu sofreu a primeira grande derrota em Chengpu (hoje Linpu, em Shandong) contra os Jin, aliados com os Qi e Qin, travando a sua progressão para Norte a absorver os reinos mais pequenos. Esta foi a primeira grande batalha entre os reinos do vale do rio Amarelo e os do vale do rio Yangtzé, promovendo o duque Wen dos Jin em 631 a.E.C. um encontro entre os reinos onde se fez um pacto de aliança para apoio à família real Zhou. Ficava assim o poder do reino Chu restringido, mas não por muito tempo pois nos oitenta anos seguintes as batalhas entre os Jin e os Chu sucederam-se com vitórias e derrotas de ambas as partes.

No ano de 597 a.E.C., em Bi (actual Zhengzhou), o exército dos Jin foi derrotado pelo de Chu e o duque Zhuang do Reino Chu tornou-se o Grande Senhor.

Em 579 a.E.C. na China havia quatro poderosos reinos com grande poder, os Qin a Oeste, os Jin no centro, os Qi a Leste e os Chu a Sul. Entre os muitos pequenos reinos existentes na altura, oito, os Song, Lu, Zheng, Wei, Cao, Xu, Chen, e Cai, pagavam tributo aos reinos de Jin e de Chu, enquanto os outros dois reinos, os Qi e os Qin se aliaram.

Em 546 a.E.C., numa conferência entre reinos conseguiu-se realizar um tratado de paz. O Reino Qi aliou-se com o reino Jin e os Qin com os Chu, o que pôs um fim temporário às guerras. Nessa época nascia Sun Wu (c.544-496 a.E.C.)

ENSINAR AS MULHERES A SEREM SOLDADOS

Sun Wu serviu como general o Rei Helü (515-496 a.E.C.), descrito nas “Memórias Históricas” (Shi Ji, 史记) de Sima Qian (司马迁) como apreciador de pessoas de talento e após ler a conselho de Wu Zixu os treze artigos sobre estratégia e tácticas militares do filósofo Sun Wu, pediu para este comparecer à sua presença.

No Período Primavera-Outono (770-476 a.E.C.) o reino Wu era um pequeno reino em Jiangnan (Sul do rio Yangtzé) em torno de Wuxi, quando o Rei Helü fez a capital em Suzhou. Guerreando com os Chu, tornou-se forte e em 506 a.E.C., conseguiu vencer o poderoso reino Chu, conquistando-lhe a capital Yingdu.

Para dar início à sua estratégia militar, o Rei Helü decidiu contractar os préstimos de Sun Wu como general comandante do exército Wu, mas antes resolveu pôr à prova e questionou-o se os seus métodos de treino eram bons também para as mulheres. Pedindo consentimento a Helü, Sun Wu reuniu 180 concubinas do rei com quem formou duas companhias, elegendo para chefiar cada uma, as preferidas deste.

Tendo como uma das chaves do sucesso da estratégia a disciplina, Sun Wu primeiro perguntou se as recrutas sabiam qual era a mão direita e a esquerda e depois instruiu-as como cumprir as ordens ao som do tambor. Ensinou-lhes qual o movimento a fazer mediante os diferentes toques no tambor e deu ordem para começar. Mas ao som do tambor estas, em vez de seguirem a ordem, começam a rir.

Então Sun Wu questionou-as se as tinha esclarecido bem e voltou a repetir pacientemente as correspondências de sons e os movimentos a fazer. De novo mandou tocar o tambor e de novo as mulheres, sem ligarem nada às ordens, voltaram a rir.

Sereno, Sun Wu disse-lhes: “se na primeira vez a culpa foi minha, agora a responsabilidade é vossa, pois após repetir as instruções e dizerem terem entendido, voltaram a não obedecer”. Logo ali mandou decapitar as duas chefes de companhia. O rei aflito pediu-lhe para perdoar as suas favoritas, mas Sun Wu replicou ter sido por o rei nomeado como general das tropas, sendo por isso obrigado a exercer a sua autoridade e assim se fez. De seguida colocou as duas seguintes concubinas favoritas na chefia de cada uma das companhias e de novo a ordem foi dada.

Desta vez, tomadas de pânico, as mulheres obedeceram na perfeição e então o estratega entregou o exército feminino ao rei dizendo-lhe estarem elas preparadas. O Rei Helü chocado e triste pela morte das favoritas, mandou embora Sun Wu, mas este replicou dizendo parecer ter o rei apenas admiração por as palavras da sua estratégia militar e não, de as passar à prática. Ouvindo-o, o rei confirmou a autoridade de Sun Wu como general do exército. E não se arrependeu, pois as grandes vitórias que Sun Wu deu ao estado Wu transformaram-no num dos estados fortes da região. História contada por Wei Tang na revista China em Construção de 1983.

VITÓRIAS DE SUNZI

O reino Wu, no terceiro ano do reinado de Helü em 512 a.E.C. com o general Sun Wu à frente de um exército de trinta mil soldados derrotou um exército de 200 mil homens, conquistando assim o poderoso reino Chu. Três anos depois, os Chu invadiram o reino Wu, situado a Leste, e o general Sun Wu, comandante do exército Wu, secundado por Wu Yuan, conseguiu uma retumbante vitória.

No Inverno de 506 a.E.C., foi a vez do reino Wu invadir Chu e num ataque surpresa, trinta mil soldados Wu penetraram mil li (500 km) em território Chu, vencendo as cinco batalhas contra um exército de 200 mil homens, capturando a capital Yingdu (a Noroeste de Jiangling, Hubei) aos Chu. Mas o estratega Sun Wu, após as campanhas totalmente vitoriosas, sem aceitar os cargos e as ofertas do rei Helü, voltou apenas com algumas carroças de brocados que foi distribuindo ao longo do seu regresso para Luofu (罗浮).

Um ano depois, o reino Chu reorganizou um novo exército e retomou o seu original território.

Com a vitória contra os Chu na batalha de Boju (柏举之战), o reino Wu mantive em respeito os seus vizinhos do Norte, como os reinos Jin e Qi, contra quem o filho do rei Helü, Fuchai (496-473 a.E.C.) continuou a lutar. Em 484 a.E.C., no décimo segundo ano do reinado de Fuchai, os Wu derrotaram na batalha de Ailing os Qi e dois anos depois, numa reunião de reis de reinos, Fuchai tornou-se o governante com maior poder. No entanto, o vizinho reino Yue, aproveitando encontrar-se o reino Wu a lutar contra os Jin e Qi, invadiu-o em 473 a.E.C. e assim Fuchai perdeu a guerra, sendo exilado no monte Nanyang em Suzhou, onde se suicidou.

Descendente de Sun Wu apareceu Sun Bin (c.382-316 a.E.C.) igualmente grande estratega, crendo-se durante algum tempo serem a mesma pessoa pois também escreveu uma Arte da Guerra, traduzido por Rui Cascais como As Leis da Guerra e editado por Livros do Meio em 2020.

16 Mai 2024

Ao correr da Pena: Exercício de Tradução em torno de Camões

* Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM

12.5.2024

I

…na outra a pena

Na comemoração dos 500 anos do nascimento do poeta nacional, Luís Vaz de Camões, alegadamente em 1524 ou 1525, sabemos que cedo ficou órfão de pai, este viria a morrer em Goa, tendo, por isso, sido criado pela mãe no quadro familiar de pequena nobreza lisboeta. Também sabemos que cursou em Coimbra, onde se distinguiu nos estudos e no interesse pela literatura clássica, que transportaria tanto para a sua poesia épica como lírica.

Conhecemos-lhe ainda os amores, que o haviam de manter bem agarrado à vida, projetando-o para aventuras guerreiras e exílios donde tiraria o maior proveito. A paixão, talvez por uma aia da rainha, conduzia-o à expulsão e à guerra no Norte de África, donde regressaria irremediavelmente ferido num olho.

Também por sentimento, agora de amizade, experimentaria os calabouços de Lisboa, quando ao socorrer um amigo feriu um oficial da Corte. E foi ainda o amor que havia de o acompanhar por quase duas décadas de viagem no Oriente, amor à Pátria, vertido nos Lusíadas, amor às belas donzelas orientais, entre as quais se destacam Bárbara e, sobretudo Dinamene, por último ou primeiro na ordens da razão e da emoção, amor à poesia, que lhe valeria a publicação do poema épico em 1572 e uma magra tença apaziguadora da fome até 1580.

Não assisti ao seu naufrágio no rio Mekong1 (湄公河Méigōng hé), e portanto o que se segue é fruto da imaginação, mas parece que o vislumbro com o poema numa mão, hesitando entre o salvamento da sua bem-amada chinesa e a obra-prima que assim considerava, a justo título e de acordo com os padrões limitadamente humanistas da época.

Em Os Lusíadas, como bem refere Yao Feng no Prefácio a 100 Sonetos de Camões 賈梅士十四行詩, traduzidos por Zhang Weimin (張維民) “o Literato subscreve uma visão eurocêntrica, ou, mais corretamente, lusocêntrica do mundo” (Yao, 2014, 10). Os tempos eram propícios ao centramento das perspetivas, pelo que pouco mais há a acrescentar sobre o assunto.

Quando medito sobre a biografia de Camões vem-me à ideia o inferno em vida, em que uns mais do que outros, ardem entre as fogueiras ateadas pelas limitadas mentalidades vigentes em todos os tempos. Mas também, pela atenção às suas vivências, o modo de o contornar. Nesse sentido, tendo tido oportunidade de rever há pouco uma obra de Italo Calvino intitulada na tradução portuguesa As Cidades Invisíveis (2008), na qual nos é apresentado um diálogo entre Marco Polo e Kublai Kan, onde são descritas as cidades, em conversa com o imperador dos tártaros, imaginadas e reais que o veneziano terá visitado, deparo-me no final com uma oportuna reflexão sobre o inferno dos vivos, que passo a citar (Calvino, 2008: 166):

O inferno dos vivos não é uma coisa que virá a existir; se houver um, é o que já está aqui, o inferno que habitamos todos os dias, que nós formamos ao estarmos juntos. Há dois modos para não o sofremos. O primeiro torna-se fácil para muita gente: aceitar o inferno e fazer parte dele a ponto de já não o vermos. O segundo é arriscado e exige uma atenção e uma aprendizagem contínuas: tentar e saber reconhecer o que não é inferno, quem e o que não é inferno, e fazê-lo viver, e dar-lhe lugar.

Creio que Camões optou pelo segundo modo de não sofrer o inferno, nas suas caminhadas pela vida, agarrando-se a cada experiência em cada momento sempre pelo coração, mesmo que tal não parecesse: quando o imagino a optar entre dois bens, a Dinamene chinesa ou a poesia, agarrou-se ao amor maior, à poesia, através da qual pôde imortalizar o seu amor não digo menor, mas terreno. E ainda hoje, cinco séculos depois, todos cantamos e recordamos Dinamene, por exemplo, na primeira quadra de um dos célebres sonetos em honra da “ninfa inspiradora”:

 Alma minha gentil, que te partiste

 Tão cedo desta vida descontente,

 Repousa lá no Ceo eternamente,

 E viva eu cá na terra sempre triste.

Num outro cenário, talvez o poeta nem sequer tenha tido opção. Era mesmo impossível salvar Dinamene, com ou sem Lusíadas numa das mãos. Impossível para todos, exceto para aquele que empunhava a pena mágica, que aparentemente perdeu amada para as águas do rio, mas na realidade a soube transformar em musa inspiradora da sua poesia, elevando-a ao panteão das figuras imortais pelo menos enquanto Portugal, os portugueses, seus descendentes e todos os amigos da cultura portuguesa existirem aqui e espalhados pelo mundo

II

Exercícios de tradução ao correr da pena

Zhang Weimin (張維民), nascido em Beijing em 1951, tem vindo a traduzir os nossos maiores poetas para chinês, Fernando Pessoa e Camões, tendo recebido em 1986 o Prémio de Tradução da Sociedade de Língua Portuguesa. É dele a tradução 100 Sonetos de Camões 賈梅士十四行詩, sobre a qual adiante se refletirá nos sonetos que a tradição literária acredita serem dedicados a Dinamene. Antes, porém, vamos regressar ao Prefácio desta obra com que inaugura o primeiro da colecção Escritores Chineses e Lusófonos, coordenada pelo Professor Yao Jing Ming, numa edição do Instituto Cultural de Macau, a fim de proceder a uma meditação sobre a possibilidade de traduzir poesia. Há uma longa discussão nos Estudos de Tradução sobre a tradução poética, com autores a defenderem a impossibilidade de traduzir satisfatoriamente na área, a menos que tal ação seja realizada por um poeta, porque o que se joga neste tipo de tradução é menos a comunicação eficaz do sentido e a fidelidade, tanto à ideia, como à palavra que a encarna, e mais a uma sensibilidade especial, que implica quer a atenção pictórica à imagem quer ao ritmo poético, incluindo às rimas dos versos, sobretudo na poesia tradicional. Tal cuidado será para muitos teóricos da tradução condição exclusiva de poetas. No entanto, sabemos que a sensibilidade poética não é do domínio exclusivo dos poetas, pelo que um bom tradutor apenas necessita de deixar correr a sua emoção em diálogo com o poeta para que a tradução fique bem, numa comunhão empática com as ideias e sentimentos do autor, logo, do meu ponto de vista, não é preciso ser poeta, basta que se deixe encantar pelas emoções do autor, transpostas em figurações e ritmos.

Um (a) tradutor (a) meritoso (a) no campo da arte literária é muito mais do que um profissional consciencioso, ainda que também o deva ser; é alguém que intui, para o caso em estudo, o que o poeta sentiu e pensou, entrando num diálogo em uníssono, como que guiado por um poder indizível à maneira dos unicórnios que comunicam telepaticamente, sem que possam dar conta ou apresentar os passos lógicos da conversa contemplativa que no reino imaginário realizaram. Diz Yao, ele próprio tradutor, que assina o prefácio com o seu nome poético Yao Feng, numa reflexão certeira sobre a tradução poética (Yao, 2015, 14):

Traduzir é difícil, traduzir poemas é uma aporia. Não é uma pura busca de palavras por palavras, exige (…) mesmo um diálogo espiritual entre o tradutor e o poeta: é como se fosse possível ouvir o pulsar do sangue dentro das veias, ora um silêncio, ora um rumor. Em resumo, traduzir é um “recriar a intenção poética”.

Zhang Weimin é muito bem-sucedido na recriação da intenção poética de Camões, nos quatro sonetos que se julga poderem estar diretamente associados a Dinamene: “Alma minha gentil, que te partiste/你去了,我純潔的心靈”; “Chara minha inimiga, em cuja mão/你是我尊貴的仇家”; “Quando de minhas mágoas a comprida/長久沉浸在痛苦的想像”; “Ah minha Dinamene! Assi deixaste/ 阿蒂娜妹! 你這樣地棄別了”.

Proponho aqui analisar em termos da tradução de Zhang, além do soneto a Dinamene, a primeira quadra e o último terceto do soneto “Alma minha gentil que te partiste/你去了,我純潔的心靈” (Yao, 2014, 36-37):

Alma minha gentil que te partiste

你去了,我純潔的心靈,

Tão cedo desta vida descontente,

過早了地從這個不幸的人生,

Repousa lá no Ceo eternamente,

永恆地樓住在天上,

E viva eu cá na terra sempre triste

留我在人間永遠哀傷。

A intenção poética é recriada com sucesso, já que o sentido é transmitido com fidelidade, muito embora não haja inteira reprodução do jogo rimático em português, pois apenas o segundo e o quarto versos rimam imperfeitamente (生/傷). No entanto, no quarto verso além da rima final, assistimos a um feliz jogo de rima interna(永遠/哀傷).

Quanto ao último terceto, as rimas finais não são mantidas, ou melhor, são substituídas por uma rima interna e há o eclipse da imagem dos “olhos”, para além de se proceder a uma adaptação cultural da palavra “Deos” (天主), que é substituída por “divindade” (神).

Roga a Deos que teus anos encurtou,

就去祈求縮短你生命的神,

Que tão cedo de cá me leve a ver-te,

儘早將我帶去見你——

Quão cedo de meus olhos te levou.

如同那樣早,從這裡帶你而去。

Verifica-se ainda ao nível do primeiro terceto, que aqui não é apresentado, o recurso a uma metáfora expandida no último verso “Da mágoa, sem remédio de perder-te”, onde “remédio” é traduzido por “não há remédio que possa curar” (無藥可醫).

Vamos encontrar o recurso a idênticas técnicas de tradução em Ah minha Dinamene! Assi deixaste/ 阿蒂娜妹! 你這樣地棄別了”. Atente-se à primeira quadra e ao primeiro terceto (Yao, 2014, 146):

Ah minha Dinamene assi deixaste

呵蒂娜妹!你这样地弃别了

Quem nunca deixar pôde de querer-te!

永遠不能棄別對你的愛的人!

Que já, Nympha gentil, não possa ver-te!

美麗的仙女,再也看不見你!

Que tão veloz a vida desprezaste

你如此輕率地蔑視生命!

É eficaz a estratégia de Zhang Weimin para “achinesar” o nome de Dinamene, aquela a quem a tradição sempre considerou chinesa, ainda como bem notou a Professora Cristina Zhou da Universidade de Coimbra, na palestra dedicada a este tema apresentada nas Conferências de Primavera de 2024 do CCCM, o nome em si não soa a chinês, a menos que, acrescento agora, se encurte e recorra a um sufixo inapelavelmente autóctone “mei”, que tanto pode ser menina como irmã mais nova. Ora creio que Zhang Weimin colocado perante a aporia de traduzir um nome supostamente chinês tão grande foi o que fez: transformou, em termos práticos, Dinamene em “Dina Mei” (蒂娜妹), ou seja, em menina Dina.

Igualmente feliz foi a estratégia de adaptação cultural seguida pelo tradutor, quando traduziu “nympha” por “imortal” (仙女), palavra bem mais chegada à tradição chinesa. Soube também manter o ritmo de alta tensão emotiva da primeira quadra, salpicando-a de pontos de exclamação à maneira do original. A sua recriação poética apenas parou nas rimas finais, que não foram reproduzidas na tradução.

Passando agora à análise do primeiro terceto, nota-se a necessidade de reinterpretar os dois últimos versos por respeito ao sentido na língua de chegada, que implicaram a deslocação de palavras do terceiro para o segundo verso:

Nem somente falar-te a dura morte

你竞答應殘酷的死神

Me deixou, qu´apressada o negro manto

那樣快將黑絨蓋住你的眼睛,

Lançar sobre os teus olhos consentiste.

都不讓我對你僅僅說一句話。

A tradução dos sonetos de Camões realizada por Zhang Weimin é muito meritória, até porque, como se viu, é na tradução poética que um tradutor se expõe mais, arriscando em cada palavra, em cada sentido, como nos passos que dá na vida. E se é verdade que se pode compor e começar de novo nas nossas caminhadas pela existência, valendo o mesmo para as novas traduções, não obstante haver passeios de vida ou de morte, o mesmo sucede com as traduções, em cada uma delas o tradutor de um poema sabe que tem de se dar por inteiro, convertendo a razão em coração, sob pena de falhar esse momento poético pelo menos até à próxima oportunidade, se ela surgir.

Bibliografia

Calvino, Italo. (2008). As Cidades Invisíveis. Lisboa: Teorema.

Yao Jing Ming. (2014). 100 Sonetos de Camões 賈梅士十四行詩. Tradução de Zhang Weimin (張維民). Macau: Instituto Cultural de Macau.

Zhou, Cristina. (2024). “Silhuetas de Macau no Mito de Camões”. In Conferências da Primavera do CCCM, 2024, Conferência de Macau, 8 e 9 de março.

Segue-se na referência ao rio Mekong a pronúncia do Sul da China.

14 Mai 2024

O Vento e o Guarda-vento de Wang Yun

Tianguan, o «alto funcionário da corte celeste», que na fluidez da iconopraxis das figuras do Daoísmo foi saindo dos muros dos templos e apropriado para a devoção particular, concretizada em rolos de pinturas que permitiam alguma liberdade aos seus criadores na concepção das suas formas humanas, surge numa pintura feita no período de Kangxi (1661-1722) como que empurrado pelo vento, dele se desprendendo um morcego que, por homofonia da palavra fu, se tornara um popular símbolo de felicidade.

E essa era mesmo a função de Tianguan: conceder a felicidade aos seres humanos. Na história da pintura a representação de morcegos vinha já do tempo do preclaro pintor dos Tang Wu Daozi (680-740), que os incluiu numa figuração da divindade daoísta Zhong Kui, o caçador de demónios, feita a pedido do imperador Xuanzong devido à sua capacidade de ver fantasmas de noite.

O autor desse retrato de Tianguan feito em 1716 (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 162,8 x 106, cm, no Museu de Arte de Indianapolis), o pintor de Yangzhou Wang Yun (1652-1734) faria outras figurações desse mundo descrito em relatos daoístas, como A ilha dos imortais, Fanghu, «O vaso quadrado» (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 141,9 x 60,3 cm, no Museu de Arte Nelson-Atkins) uma visão da fabulosa ilha com a forma de uma mandorla, no centro da qual se percebem palácios protegidos por grandes rochas e montanhas no meio de brumas e ondas alterosas embaladas pela ventania. Sobre uma rocha resistem, repousando, alguns grous, sinais da longevidade, quiçá da imortalidade.

Aos oitenta e um anos, o mesmo pintor representou um invulgar encontro (rolo vertical, tinta e cor sobre seda no Museu Britânico) entre um homem de barbas brancas, o seu criado e um recluso daoísta, reconhecível pelo saiote de folhas e uma cabaça, trazendo na mão um pêssego de tamanho desproporcionadamente grande, símbolo da longa vida. Estranhamente, apenas as roupas do recluso daoísta ondulam ao vento.

Wang Yun colaboraria com Yuan Jiang (1671-1746), outro pintor de Yangzhou, em duas pinturas feitas para dois biombos onde em oito painéis dobráveis (weibing) estão representadas paisagens onde se aninham palácios (246 x 490 cm cada um, no Museu Nacional de Quioto). Este objecto de mobiliário decorativo chamado pingfeng, traduz-se como guarda-vento.

É possível que esse vento que se não vê mas se guarda, enfuna as vestes dos daoístas, anima as ondas alterosas que protegem um paraíso, e se solta do imortal Tianguan conferindo felicidades, seja uma alusão à alegria. O poeta Li He (c. 790-c.816) escrevendo sobre o que está para cá e para lá de um guarda-vento autorizará essa intuição. Num poema que termina assim:

Ao luar a brisa sopra o orvalho,

Que frio do lado de fora do biombo!

Enquanto corvos crocitam nas muralhas da cidade,

Vai adormecendo a rapariga de Chu.

13 Mai 2024

Província de Yunnan – Na fabulosa Lijiang

Viajo de Dali para Lijiang, trezentos quilómetros por uma estrada em mau estado – lá por baixo, por vales e túneis, existe já uma nova auto-estrada em construção –, subindo pelas montanhas até aos 3.100 metros e depois descendo para o extenso planalto ondulado e sinuoso onde se situa a cidade de Lijiang que estende o seu casario por terras a 2.450 metros de altitude.

Estamos bem no norte da província de Yunnan, a duzentos quilómetros da fronteira com o Tibete. Por aqui não existem montes, nem serras, há montanhas e montanhas, infindáveis vales profundos, desfiladeiros e mais planaltos entre montanhas, e ainda mais montanhas por cima de outras montanhas. O alto Yangtsé passa também por aqui, no fundo de um canyon, rasgando a montanha há umas boas dezenas de séculos.

Muito antes de chegar a Lijiang, aparecem no horizonte, por detrás do escuro dos cumes próximos, os picos nevados de Yulong Xueshan, ou seja a Montanha de Neve do Dragão de Jade, com o ponto mais alto a 5.550 metros, rodeado pelo maior conjunto de glaciares do hemisfério norte. Tudo a 20 quilómetros de Lijiang, em linha recta.

Pode-se subir pelos fios suspensos nos ossos da montanha até aos 4.506 metros – dizem-me ser o mais elevado teleférico do mundo – mas a íngreme escalada não é conveniente para corações sensíveis à altitude. O ar rarefeito, a escassez de oxigénio podem provocar fulminantes ataques cardíacos, embolias cerebrais, etc.

Chegada às alturas do planalto, a minha mulher de Xangai, nascida e criada na grande metrópole ao nível do mar, começa a sentir dores no coração. O motorista do carro que nos trouxe desde Dali passou meia viagem a meter-lhe medo com a altitude, as tonturas, as dores no peito, as mortes súbitas.

A minha companheira já sente o coração virado do avesso, dói-lhe tudo, acima do estômago, abaixo do pescoço. Acredito que seja psicossomático mas preocupo-me, vou ter de acautelar a estadia por estas paragens e não pensar em trepar pelas montanhas. Tenho, no entanto, quase a certeza que regressada a Xangai, na lisura das grandes planícies, tudo quanto é coração, diafragma e anexos da Wang Hai Yuan, minha esposa, voltará a funcionar em pleno. Já não vou poder subir até à cidadezinha de Zhongdian, setenta quilómetros a norte, rebaptizada como Shangri-la, a 3.150 metros de altitude, logo abaixo do Tibete

丽江Lijiang, que significa “rio bonito”, é Património Mundial pela Unesco desde 1997. A cidade foi abalada por um tremendo terramoto em Fevereiro de 1996, 7,2 graus na escala de Richter, que provocou 300 mortos e 16.000 feridos. A parte nova do pequeno burgo sofreu enormes danos, mas a cidade antiga, com as casas e as empenas em madeira apoiadas em estruturas sólidas de pedra e adobe, – uma arquitectura velha de dez séculos –, permaneceu quase intacta, resistiu bem ao abalo sísmico.

Tal facto despertou atenções por toda a China e foi também objecto de estudo por vários organismos internacionais. Gente da Unesco acabou por visitar Lijiang e, ano e meio depois do tremor de terra, a cidade foi declarada Património Mundial. E merece tal distinção. Estamos diante, dentro de um dos mais fascinantes lugares da China.

As casas, todas de um ou dois pisos, começaram a ser construídas nas dinastias Song e Yuan (secs. XI a XIV). A arquitectura é singularíssima porque mistura estilos tibetanos, chineses e naxis, esta a minoria nacional mais presente na região.

Lijiang foi, em tempos não muitos recuados, um grande entreposto, um centro de comércio, de intercâmbio e trocas na chamada Rota do Chá. Daqui partiam grandes caravanas de cavalos transportando o chá de Yunnan e Sichuan para o Tibete e para a antiga Birmânia.

O burgo antigo distribui-se por milhares de casas quadradas de madeira com dois sobrados e um vasto pátio interior. Fiquei alojado numa destas casas, adaptada a pousada, com apenas dez quartos nos dois pisos e o bonito nome de Hotel das Aves Migrantes. Que sensação óptima adormecer numa cama limpa nas faldas do Tibete rodeado da serena vetustez dos séculos! E, porque era a época baixa, paguei a enormidade de 60 yuans por noite, mais ou menos 8 euros, por um duplo confortável, com as camas aquecidas – estamos em Março, ainda faz frio –, e temos direito a quarto de banho privativo, sem pequeno almoço, mas com chamadas telefónicas para a China e internet grátis. Fiz o meu turístico negócio da China!…

As ruas, muitas delas atravessadas por pequenos canais com água sempre a correr, estão pavimentadas com lajes de pedra de várias cores e não faltam lanternas chinesas penduradas em tudo quanto é casa e telhado, há lojas e lojas onde se vende um pouco de tudo, quinquilharia e peças de bom artesanato, roupa às toneladas, sedas, algodões, brocados, casacões para os invernos frios feitos com lã dos rebanhos da montanha, de excelente qualidade. As montanhas de Caxemira, do outro lado dos Himalaias, não estão longe…E há restaurantes quase porta sim, porta não, com pratos típicos dos naxis, comida estranha, exótica que não me entusiasmou sobremaneira.

Na praça central, todas as noites encontram-se grupos de naxis, principalmente mulheres com os trajes da sua minoria que dançam num grande círculo. Qualquer pessoa pode entrar na roda e juntar-se à festa. Também todos os dias, às oito horas da noite, num típico e original teatro em madeira, acontece um concerto-espectáculo da responsabilidade dos vinte e quatro idosos membros da Orquestra Naxi de Lijiang.

Têm entre 70 e 90 anos. Pendurados nas suas barbichas de velhos sábios e nas roupas coloridas de brocado tocam nos antiquíssimos erhu, suona, guzheng (violinos, flautas, harpas, marimbas) antiga música taoísta que dizem entroncar nas dinastias Han, Tang e Song (secs. I a XI). Alguns membros da orquestra, devido à provecta idade, ao cansaço dos anos, ao ritmo embalador do concerto, de vez em quando adormecem. O recital, mais para ver os velhos e a decoração original do interior do teatro do que para ouvir a música monótona e repetitiva, também deu para eu passar pelas brasas.

Para fechar a estadia em Lijiang fui até ao parque do Lago do Dragão Negro, uns dois quilómetros a norte da cidade. Sabia da sua existência há muitos anos e das espantosas fotografias que aí se tiram. A capa do meu segundo livro de poesia “China de Seda” é uma foto deste lugar que fui buscar à net em 2001. Chegou finalmente a minha vez de estar em Lijiang e fotografar tudo com os olhos, o coração e a câmara digital. As águas do lago espraiam-se abraçadas pela vegetação das margens. Ao fundo, pavilhões e torres reflectem-se nas águas azuis, paradas, tendo logo por detrás os picos imaculadamente brancos da neve em Yulong Xueshan, a montanha do Dragão de Jade.

A água do lago corre depois para a cidade, com cascatas e pequenas pontes unindo o enrugar da terra.
Aqui um homem, à deriva pelo mundo chinês, levitando no ar leve e depurado da manhã, acredita encontrar o Paraíso.

10 Mai 2024

À procura da Mona Lisa em Mil Li de Rios e Montanhas

Por detrás dos ombros da diva mais venerada do mundo, Leonardo pintou uma paisagem fantástica com uma perspectiva distorcida. A paisagem por detrás de Mona Lisa, que faz lembrar um antigo pergaminho chinês, contribuiu para o seu enigma duradouro, tão cativante e teimoso que dá azo a especulações intermináveis e justifica a existência de Dan Browns. O quadro inspirou mesmo a teoria de um historiador de arte italiano de que a mulher poderia ser uma escrava chinesa que deu à luz um dos maiores génios da humanidade.

Mas eu quero pedir-vos para a reverem. Mona Lisa sem Mona Lisa. Chez la femme sans femme. Mona Lisa sem Mona Lisa. Porque é que faria isso? perguntam vocês. Porque o Maestro nos pede. Para Leonardo, uma paisagem, tal como um ser humano, fazia parte de uma vasta máquina, para ser compreendida parte a parte e, se possível, no seu todo. Leonardo amava o mistério. De acordo com os últimos estudos, terá sido ele o inventor do primeiro telescópio para desvendar o mistério da Lua. Se o mundo e o universo eram a oficina de Leonardo, então a Mona Lisa era o seu laboratório visual para testar o seu telescópio mental. A sua mulher é o Hamlet da história da arte que cada um de nós deve recriar para si próprio.

Leonardo foi provavelmente o primeiro europeu a conhecer as limitações da visão focada. Para ele, a perspectiva de ponto único era defeituosa porque o alcance claro do nosso horizonte é muito limitado e, quando observamos a olho nu, viramos automaticamente a cabeça para compensar esta limitação. Mas quando viramos a cabeça, os objectos noutras direcções tornam-se visíveis. Leonardo, fascinado pela anatomia, há muito que tinha consciência da contradição entre a perspectiva de um só ponto e os olhos humanos, que são diferentes das lentes das câmaras. A observação unilateral da máquina fotográfica é diferente da forma como vemos o nosso mundo. A visão dos olhos humanos é binocular e multifocada, adaptando-se ao objecto que estamos a ver.

Com a Mona Lisa, ele experimentou a pintura de paisagens, utilizando a sua lente mental de perspectiva múltipla. Em suma, o mestre renascentista foi um pioneiro da técnica paisagística chinesa.

Na China, o género de arte visual shanshui (“montanha e água”) tem uma história mais longa, devido a acontecimentos políticos e à religião. Politicamente, o império anterior passou por períodos de unidade e desunião, que assistiram à ascensão de duas das principais tradições filosóficas chinesas: o confucionismo e o taoísmo, que compreendem o mundo e a vida humana através do yin e do yang. Confúcio centra-se na harmonia e na hierarquia social como remédio para tempos conturbados. O taoísmo dá ênfase ao poder da natureza e retira-se da sociedade. A pintura de paisagens é um domínio em que as duas filosofias se tornaram compatíveis.

Nas pinturas de paisagens chinesas, a montanha (yang) domina a composição, com a água (yin) como acento contrastante. As montanhas são a representação máxima da grandeza da natureza (taoísmo), mas também representam algo estável e duradouro (confucionismo). As montanhas são hierárquicas, com picos de diferentes alturas e rios que correm para o lugar mais baixo. Yin e yang, os elementos têm o seu lugar designado. Ao mesmo tempo, as montanhas servem como locais de retiro e de recolhimento. As montanhas oferecem os melhores esconderijos e sempre atraíram dissidentes, rebeldes e subversivos. Não é apenas o ar que se torna mais rarefeito em altitudes mais elevadas: o mesmo acontece aos tentáculos dos poderosos. E entre a montanha e o rio, as figuras humanas são minúsculas, quase inexistentes, o que nos recorda que somos um só com o mistério orgânico e todo-poderoso da natureza, que nem sempre é gentil e misericordioso connosco.

No entanto, a preferência chinesa pela natureza contrasta fortemente com a visão europeia da mãe natureza “carinhosa” cultivada pelo Romantismo, especialmente Rousseau. A arte ocidental chegou à pintura de paisagem tardiamente, no século XVII. Os primeiros artistas europeus consideravam as montanhas inestéticas e pouco convidativas, como a experiência de Leonardo com as arestas pontiagudas e nodosas das montanhas na Mona Lisa. Isto acabou por mudar, e as montanhas tiveram um lugar de destaque nas obras do Romantismo, embora a presença humana tenha mantido o seu lugar central. Na obra de Casper David Frederich, a natureza convida à reflexão sobre o individualismo e o conformismo. O ser humano é perturbado por um diálogo interno incessante, perguntando-se se tenciona obedecer à sociedade ou fingir que ela não existe. É uma imagem melancólica da vida terrena.

Esta melancolia europeia em relação à natureza opõe-se radicalmente à soberba visualização dos paisagistas chineses. Em Mil Li de Rios e Montanhas, a gama arrebatadora da exuberância verdejante mostra uma visão deslumbrante da natureza, intensificada pela claridade de uma apresentação de conto de fadas do reino terrestre, uma eternidade onde a humanidade se vaporiza.

Mil Li de Rios e Montanhas é uma referência na pintura de paisagem chinesa. O seu autor, Wang Ximeng (1096-1119), pintou a sua obra-prima quando tinha apenas dezoito anos e morreu com vinte e três anos. O seu génio mozartiano passou pela Terra como uma estrela cadente, apenas para cantar uma ode à natureza.

Dizem as lendas que, quando Cangjie inventou o sistema de escrita chinês, há mais de cinco mil anos, o céu fez chover grãos para recompensar o seu feito, mas durante a noite os espíritos choraram lágrimas, porque como era belo o espectáculo da natureza ainda não tocada pela sabedoria muitas vezes perversa do homem! A invenção genial da escrita separará para sempre o homem da sua origem.

A arte chinesa é incompleta sem palavras escritas. As dimensões da soberba pintura de paisagem são 51,5 cm de altura por 1191,5 cm de comprimento. O rolo de 12 metros de comprimento é visto da direita para a esquerda e não da esquerda para a direita. No que respeita à palavra escrita, nem sequer se encontra a assinatura de Wang no quadro. Os dois textos que se encontram à direita foram acrescentados por outras pessoas. Como a grande arte pode ter pelo menos dez significados, estes são comentários famosos para exprimir ideais literários, de acordo com a tradição deste tipo de pintura de paisagem, conhecida como a escola “Água e Montanhas Azul-Esverdeadas”.

A técnica azul-esverdeada surgiu durante a dinastia Sui (581-618), utilizando corantes minerais com os seus tons dominantes de azurite e malaquite. Durante a dinastia Tang (618-907), que se seguiu, estas características foram ainda mais acentuadas pelos artistas literatos, que acrescentaram manchas de pigmento dourado para elevar os cenários não modulados, semelhantes a jóias. Esta técnica foi também observada nas pinturas murais das grutas de Dunhuang, representativas da arte budista da cintura cultural da Rota da Seda. Durante a dinastia Song (960-1127), a pintura a tinta monocromática tornou-se a corrente principal, alguns artistas inovaram com uma técnica híbrida que misturava tinta monocromática, azurite e malaquite. Durante o tempo de Wang Ximeng, a pintura literária floresceu e as paisagens azul-esverdeadas tornaram-se um veículo para exprimir ideais literários, bem como para cantar um louvor ao reinado da Grande Canção.

A pintura sublinha o mundo pacífico através da distribuição de montanhas e florestas, reflectindo a hierarquia ordenada entre o imperador e os cortesãos, os cavalheiros e a gente comum. A paisagem montanhosa é interminável e íngreme, mas não apresenta qualquer defesa militar. A elegância do governante e a subsistência do povo são evidentes, tal como a água límpida com ondas tranquilas que fluem infinitamente em direção à eternidade.

A Dinastia Song do Norte seguiu-se à Dinastia Tang, conhecida como a Idade de Ouro da China. A Rota da Seda ligava o Oriente e o Ocidente e a civilização chinesa foi totalmente exposta aos bárbaros. A dinastia Song assistiu ao vai e vem de reinos e impérios nómadas que ameaçavam o seu domínio. Mas, no final, as potências bárbaras foram sinacizadas, uma após outra, por admiração pela civilização chinesa, na qual viam o futuro da riqueza e da prosperidade. A dinastia Song entregou-se à fantasia de uma superioridade elevada e poderosa.

O aspecto majestoso da pintura intoxica o espectador da direita para a esquerda em seis sequências, incluindo prelúdio, subida gradual, desenvolvimento, clímax, descida e epílogo. O rio e o lago que separam os grupos de montanhas entre si, fluindo de alto a baixo, transmitem uma forte sensação de poema sinfónico rítmico. Desta forma, a obra de Wang faz-nos lembrar o método de composição activa de Mozart e, assim, trouxe inovação ao género.

No Prelúdio, um grupo de montanhas baixas ondula, com algumas aldeias espalhadas entre elas e uma pequena ponte a ligar as ilhas montanhosas separadas pelas águas misturadas dos rios que alimentam as montanhas cor de jade do poder do Império. Na segunda e terceira sequências, as montanhas aumentam gradualmente de tamanho, elevando-se e rolando. A água entre as duas sequências é unida por uma longa ponte, à qual voltarei mais tarde. A quarta sequência é a mais fabulosa, o clímax, com ondulações ainda maiores das montanhas e dos picos que se erguem em direção ao céu, e nas encostas altas e no campo plano aparece a vida humana ao lado de nascentes e cascatas e florestas luxuriantes: isto deve ser o Paraíso! O Paraíso está consciente da sua possibilidade de se elevar à glória companheira e benigna! Na quinta sequência, o rio e as montanhas retomam a calma para preparar um pedaço de água lisa como um espelho, desenrolando-se até ao fim, onde o volume das montanhas tem um impulso, destacando-se como pilares inabaláveis e benevolentes do Império imperecível e intemporal.

A arte é autorreferencial. O elemento mais marcante da paisagem verde-azulada é a longa ponte de madeira na primeira metade do rolo. Esta ponte é representada com bastante pormenor e tem um pavilhão de dois andares no centro da ponte, que, a julgar pela sua aparência, devem ser a Ponte Liwang (Ponte do Conforto do Passado) e o Pavilhão do Arco-Íris Pendurado, construídos no oitavo ano do reinado de Qingli (1048) no rio Wujiang, a sul de Suzhou. A ponte simboliza a ligação entre o ser e o não-ser. Será que o jovem génio sabia que ia morrer em breve e está a dizer as coisas como elas são?

Esta é a mais longa ponte de madeira da China, ainda hoje de pé, cantada por inúmeros poetas. Em meados e no final da dinastia Tang, o centro cultural e económico da China deslocou-se para o sul, onde o gosto refinado e encantador do “Rio do Sul” de Jiangnan se tornou cada vez mais atraente para a elite. Até a corte imperial foi enfeitiçada por ele. Wang Ximeng recorreu a técnicas realistas para realizar esta peça de exposição ininterrupta de vistas naturais. Trata-se de um trabalho de sonho imaginário desenvolvido com recurso à perspectiva multiponto (em contraste com o ponto focal fixo da arte visual ocidental). A mudança de pontos de vista tem, por conseguinte, um efeito 3D cujo movimento dinâmico muda não só fisicamente, mas também mentalmente: é uma viagem interior permanentemente captada sem um único traço defeituoso. É um panorama calmo de um vigor magnífico que pode ser visto de longe ou de perto.

Partimos do enigma eterno que Leonardo deixou ao mundo para resolver. Qual é o enigma ou enigmas deste modelo chinês de exemplo inigualável?

Enigma nº 1: porque é que o criador deixou a obra da sua vida por assinar? A resposta pode ser mais simples do que se pensa! Wang Ximeng não é o seu nome verdadeiro. As tintas minerais utilizadas para a pintura devem valer muito dos rios e montanhas do império cujo proprietário era o imperador Huizong de Song (1082-1135). Huizong era um calígrafo talentoso e um fanático da arte que, afinal, não estava interessado em governar o seu império. Com medo de ser criticado por não cumprir o seu dever de governante exemplar, inventou um pseudónimo, só para poder terminar a sua obra-prima e mostrá-la ao mundo sem mentir! Tal como Leonardo, um pensador cerebral dotado de vontade e talento artísticos, quis deixar ao mundo um enigma para resolver, o quadro não é mais do que um objecto metafísico de estudo literário e de reflexão universal.

Enigma n.º 2: Uma vez que o império Song é outra palavra para eternidade, Mil de Li de Rios e Montanhas é um retrato do “eterno aqui e agora”. O lugar onde os humanos não se preocupam com conceitos como liberdade versus existência, porque o “ser” não conhece o “não ser”. Este é o mistério central da Mona Lisa. Como explica Alice no País das Maravilhas: “Vi muitas vezes um gato sem sorriso, mas nunca um sorriso sem gato!”

8 Mai 2024

Lu Xun – Como nasceu um gigante da literatura

Por Gong Yuhong

Em Setembro de 1881, na pequena cidade de Shaoxing, no sul da China, nasceu um bebé chamado Ah Zhong. Quando o rapaz foi para a escola, era conhecido pelo nome Zhou Zhangshou, que depois foi alterado para Zhou Shuren. Mais tarde, este rapaz viria a ser conhecido como Lu Xun, o gigante literário da China moderna e agitador que escreveu as seguintes palavras:

“Pensei: não se pode dizer que a esperança existe, nem que não existe. É como as estradas que atravessam a terra. Porque, na verdade, a terra não tinha estradas no início, mas quando muitos homens passam por um caminho, faz-se uma estrada.”

Lu Xun viveu numa época em que os últimos 3000 anos de glória dinástica já estavam enterrados sob ruínas vãs. O orgulho da nação chinesa esmorecia num sonho de ópio. Mas em vez de acreditar no esquecimento eficaz em posição reclinada, Lu Xun, o escritor, escolheu erguer-se na esperança. Para ele, o desespero era tão vazio e enganador como a esperança. Ambos eram hipocrisia para Lu Xun. O descontentamento levou-o a preservar a semente do futuro, impedindo que esse mesmo futuro fosse prejudicado por hipócritas políticos e literários.

Ansioso por deixar o passado para trás, Lu Xun estava grávido da aurora de uma nova era que o seu instinto criativo pressentia. A literatura era a sua missão auto-imposta. Não queria repetir os mesmos erros, utilizando as mentiras elegantes e as certezas falaciosas da tradição antiga, e as suas palavras correspondiam à sua ação. As suas letras, radicalmente armadas, defendiam a reforma cultural através da auto-reforma: “[…] um povo incapaz de se reformar também não será capaz de preservar a sua velha cultura.”

O espelho afiado da sinceridade e da clareza acabou por dar origem ao primeiro modernista da China, que inventou o “Fluxo de Consciência” – vários anos antes de Virginia Woolf.

A vida apresenta escolhas. A escolha inicial de Lu Xun foi medicina. Em 1902, recebeu uma bolsa para estudar no Japão, onde entrou em contacto com um grande número de obras filosóficas e literárias e começou a pensar na questão da natureza humana e da natureza da nação. Em 1904, Lu Xun foi formalmente inscrito na Escola de Ciências Médicas de Sendai (actual Universidade do Nordeste do Japão) para estudar medicina. Um dia, a escola organizou a projecção de um filme de propaganda sobre a guerra russo-japonesa, em que um chinês era executado por espionagem a favor dos russos. Lu Xun ficou furioso com a indiferença e a passividade da nação chinesa. Começou a aperceber-se de que a doença dos chineses não estava no corpo, mas na mente. Tinha de trabalhar em novas ideias.

Então o jovem dedicou-se à escrita e à tradução. Não era de estranhar. Desde tenra idade, Lu Xun tinha sido um fervoroso diarista que retratava os seus pensamentos e dores em palavras. Mas agora estava conscientemente à procura de uma estética autêntica que uma nação moderna necessitava para despertar. Foi uma bela luta que deu origem ao Diário de um Louco – um grito reprimido que manteve o escritor inteiro. Um remédio de luto que começou a sua lúcida cura a partir de dentro, através do fluxo imparável e aparentemente desarticulado de palavras que, desde então, tem sido decifrado, interpretado, traduzido e mantido vivo por leitores e académicos de todo o mundo.

Porque é que o louco (não) enlouqueceu?

Existem muitas obras sobre “canibalismo ritual” ao longo da história literária chinesa. O que torna a personagem de Lu Xun tão especial?

Para começar, é a primeira vez que a ligação entre um escritor e a cultura tradicional chinesa é escrutinada em estilo íntimo. Lu Xun fê-lo – segundo as suas próprias palavras – para salvar a alma chinesa. “Se dentro de uma casa de ferro, sem janelas e difícil de arrombar, encontrarmos muitas pessoas adormecidas, que em breve morrerão sufocadas, mas que, no entanto, não sentirão qualquer pena de morrer por terem durante muito tempo dormido. Mas agora levantastes a vossa voz e conseguistes despertar alguns dos mais despertos. Fazes com que esta minoria infeliz sofra infinitamente no seu leito de morte sem lhes dar uma cura. Achas que lhes fizeste bem?” Lu Xun escreveu em desespero que, para ele, era tão vão como a esperança.

Lu Xun optou pela literatura para exprimir a sua urgência, embora receasse que, mesmo que a férrea tradição fosse derrubada, a sua sombra permanentemente continuaria, incapaz de desaparecer, como um fantasma que para sempre ocupa o espaço mental chinês. É por isso que o seu louco está a ler linhas escritas entre linhas antigas, canibalizando o futuro da nação.

A linguagem do louco parece irregular e caótica. À procura de um género híbrido que combine ficção e notas pessoais, o escritor inventou uma poção mágica repleta de profundidade psicológica e drama. Uma nova narrativa nasce quando o louco acorda numa noite de luar. As treze secções de monólogo interno terminam com uma última frase de economia urgente: “Salvem as crianças!”

O louco apela finalmente a todos para que acabem com o canibalismo embelezado, a fim de libertar a geração seguinte da vitimização do ciclo vicioso de comer ou ser comido.

Para o mestre literário, a montanha-russa de disparates emocionais era a única coisa que fazia sentido! Somos sempre loucos quando estamos a fazer algo que mais ninguém faz. Tal como o protagonista de Kafka, Gregor Samsa, a riqueza de pensamentos e emoções do louco eram um heroísmo autónomo contra a rede familiar fria e corrupta do mundo. Uma declaração solitária de auto-defesa individual. A dor do louco é real e tão intensa como uma sombra interna, onde o amor se apagou, como o som dos cascos de um cavalo num pesadelo.

Sofrer a preto e branco

Após o declínio do movimento Arts and Crafts em Inglaterra e nos Estados Unidos, a Arte Nova ganhava terreno e evoluía para o Movimento das Artes Decorativas. Na China, o design moderno era ainda uma página em branco a ser preenchida.

Em 1912, Lu Xun foi convidado por Cai Yuanpei, o então ministro da Educação, para dirigir o Departamento de Educação Social do Ministério. Desde esse ano até 1917, dedicou-se à cópia e compilação de inscrições antigas e à revisão de textos do passado. Todas estas tarefas contribuíram para o seu conhecimento da estética visual. Lu Xun interessou-se cada vez mais pelas belas-artes e pelo design gráfico. É certo que este interesse do escritor esteva intimamente relacionado com a sua obra literária.

Em 1918, dois anos depois de Cai Yuanpei se ter tornado presidente da Universidade de Pequim, Lu Xun sentiu que a universidade precisava de um novo logótipo. Cai acreditava que Lu Xun tinha, sem dúvida, a visão estética e a capacidade técnica para criar um novo desenho que reflectisse a antiga raiz da caligrafia chinesa e injectasse uma vitalidade orientada para o futuro condicente com uma instituição moderna. Como resultado, Lu Xun fez jus à sua reputação ao desenhar o logótipo da Universidade de Pequim, que ainda hoje é utilizado. Depois disso, foi para ele natural continuar a desenvolver o design gráfico moderno.

A sua visão do design consistia num modernismo arrojado, combinado com raízes chinesas. Lu Xun admirava as obras da gravurista alemã Käthe Kollwitz, inserindo o seu estilo progressista no contexto chinês. O design gráfico de Lu Xun destacou-se pelo seu alcance criativo, acompanhado pelas suas muitas obras-primas literárias, escritas depois do Diário de um Louco, sendo este conto a primeira ficção de sempre em chinês moderno. Simples e conciso, o seu estilo gráfico centrava-se na tipografia. Como designer, gostava muito do desenho de tipos de letra e de motivos decorativos a preto e branco e, no desenho de tipos de letra, preferia um estilo caligráfico. A função fala e o esquema de cores reforça a mensagem transmitida. Actualmente, Lu Xun é também aclamado como o pai da gravura chinesa moderna, pioneiro em estilos de vanguarda trazidos da União Soviética e do Ocidente, como a Bauhaus. Era um sofrimento expresso numa composição e disposição provocadoras. O sofrimento não como um fardo, mas antes como uma âncora, que o mantém no lugar como um gigante destacado. O preto e branco como afirmação do ser, curando e remodelando a recém-encontrada integridade da China moderna.

A influência da visão estética de Lu Xun – vermelho extravagante em preto e branco – perdura até hoje.

6 Mai 2024

Segredos da Seda (21) – Altar em Beijing à Deusa dos Bichos-da-Seda (先蚕坛, Xian Can Tan)

A festa em honra da Deusa da Seda era a única cerimónia, de todas as realizadas no Palácio Imperial, não presidida pelo Imperador, sendo dirigida pela Imperatriz. Homenageava a deusa protectora dos sericicultores, todas as mulheres a trabalhar na produção de seda representadas em Lei Zu, a Bombix mori e as folhas de amoreira, o alimento das lagartas.

Nos primórdios da Dinastia Zhou (1046-256 a.n.E.) já a rainha conduzia uma cerimónia anual no palácio da capital, alimentando as lagartas do bicho-da-seda e a fiar a seda. Aí se situava o amoreiral, um observatório para o controlo da qualidade das lagartas e do seu alimento, e além de uma enfermaria havia outros departamentos onde se desfiavam os casulos e dos filamentos se criava um fio consistente para tecer os tecidos de seda e bordar. Esses trabalhos destinados à produção imperial realizavam-se nas diferentes secções de uma zona reservada do Palácio, onde as mulheres da corte, durante o período de criação a começar em Maio e prolongado por seis meses, estavam ocupadas nos afazeres ligados à sericicultura. Iniciavam o processo com a desinfecção e limpeza dos materiais antes de começar com a produção a partir dos ovos e depois como lagartas era preciso alimentá-las com folhas sempre frescas de amoreira.

Em Beijing, procuramos o recinto do Altar do Bicho-da-Seda por todas as zonas que constituíam o Palácio Imperial e preparávamo-nos para sair por a porta Norte do Parque de Beihai quando um enorme muro nos desperta. Esconde um jardim com casas no seu interior. Circundando-o, encontramos um enorme portão vermelho fechado, mas à sua frente uma tabuleta retira as dúvidas indicando ser o recinto do Altar para a Deusa dos Bichos-da-Seda, (Xian Can Tan, 先蚕坛).

Inspirado no Lei Ting Hong Ying, templo da Dinastia Ming (1369-1644), este altar ao bicho-da-seda fora construído em 1742, no reinado do Imperador Qianlong (1736-1796) da dinastia Qing, para as princesas da corte imperial rezarem a Lei Zu, a Deusa do Bicho-da-Seda. No complexo existia um terraço para a observação das amoreiras, estas plantadas nos três lados do altar e atrás deste, uma residência para a reprodução e alimentação das lagartas da Bombix mori e outro aposento para os casulos, realizando-se aí todo o resto do processo.

Entre outros edifícios havia um centro de investigação da seda [Qincandian] e um tanque onde se colocava a amolecer os casulos [Yucanchi]. Um riacho atravessava o templo, que durante a Dinastia Yuan (1271-1368) desaguava no Rio Jin Shui. De magnífica construção e elaborada decoração o recinto era um local calmo para as princesas reais trabalharem e um dos nove mais famosos altares de Beijing, como regista o texto da tabuleta. O altar de 1,3 metros de altura, com uma escada em cada lado, nele se realizaram os rituais de sacrifício entre 1744 a 1911 por 59 vezes. A primeira Imperatriz a aí celebrar foi Xiaoxianchun (1712-1748), casada em 1727 com Hongli, que em 1735 se tornou o Imperador Qianlong e reinou até 1795.

Numa cerimónia anual conhecida por Chun Yin Ji Can (春阴祭蚕, Sacrifício Feminino da Primavera ao Deus do Bicho da Seda) celebrada no dia da serpente da primeira Lua do terceiro mês lunar chinês, a imperatriz acompanhada pelas as princesas e aias dirigia-se ao amoreiral do palácio para colher três ramos de amoreira e com estes nas mãos rezava voltada para Leste. Depois, em procissão eram os três ramos levados ao templo onde se venerava a sagrada Mãe dos Bichos-da-Seda, deusa protectora dos sericicultores. Após esta cerimónia começava-se a criação dos bichos-da-seda nos aposentos da imperatriz, deixando todas as mulheres da corte os seus habituais afazeres para se dedicarem a tempo inteiro a este trabalho.

CERIMÓNIA CHUN YIN JI CAN (春阴祭蚕)

O Padre Duarte Sande S.J. (1547-1609), [referido no Boletim Eclesiástico por Eduardo Sande (1531-1600)] em Um Tratado sobre o Reino da China (publicado pelo Instituto Cultural de Macau em 1992 e com notas de Rui Loureiro) refere, “… tratemos da seda ou dos filamentos do bômbice, de que há grande fartura na China. De modo que, tal como o agricultor trabalha no adubo das terras e na sementeira do arroz, assim as mulheres empregam uma grande parte do seu tempo a cuidar dos bichos-da-seda e a fiar e a tecer a seda.

Por isso, todos os anos o Rei e a Rainha vêm com grande solenidade a uma praça pública, tocando ele no arado e ela na amoreira, com as folhas da qual se alimentam os bichos-da-seda; e ambos, com esta cerimónia, exaltam tanto os homens como as mulheres para as respectivas actividades e trabalhos. De outro modo, durante o ano inteiro, ninguém, para além dos principais mandarins, consegue avistar o Rei.”

Luís Gonzaga Gomes escreve: “a interessante cerimónia de as imperatrizes da China oferecerem, todos os anos, durante a Festividade do Estio, folhas de amoreira aos deuses, na ara de Sin-Tch’ám T’án (Altar do Primeiro Bicho-da-Seda) dos jardins da Cidade Interdita para, com este exemplo, estimular o amor do povo pela sericicultura, enquanto o imperador revolvia a leiva com as suas próprias mãos, para demonstrar aos seus súbditos ser no trabalho da gleba que se encontrava a felicidade do Império. Durante esta cerimónia as folhas eram arrancadas da amoreira sagrada, que se encontrava plantada perto do referido altar, pelas próprias mãos da imperatriz, com o auxílio de uma pequena foice e, depois de consagradas à memória de Lui-Tch’ôu [Lei Zu], eram entregues às ancilas incumbidas de alimentarem os preciosos insectos, os quais, em diversas épocas do ano, eram visitados por enviados especiais da imperatriz, sendo a seda por eles produzida destinada à fabricação de vestes usadas só em ocasião de sacrifícios imperiais. Este cerimonial, cheio de simplicidade, mas de tão profundo significado, foi ininterruptamente respeitado por todas as imperatrizes da China ao longo de quatro milénios, isto é, até à data da implementação da República (1912).”

Espreitando pela frincha das portas fechadas pude ver um edifício de construção recente. Voltamos à porta da entrada Norte do Jardim de Behai e questionando os funcionários, explicam-nos estar a actual entrada do recinto no lado de fora do Parque de Beihai, antigamente ainda pertencente ao Palácio Imperial. Devido a estar ocupado por um jardim infantil, o lugar não está aberto ao público.

Pedimos licença para entrar e tirar uma rápida fotografia. Dão-nos um número para solicitar permissão ao conselho directivo da escola, mas pelo telefone ficamos a saber ter primeiro de pedir uma entrevista ao gabinete de Turismo. Estamos para desistir, quando três professoras se preparam para sair do recinto. Expomos o pretendido e fazemos a sugestão de ser uma delas a ir tirar uma ou duas fotografias ao recinto com a nossa máquina fotográfica e a uma lápide que na parede do muro pensamos existir. Dizem-nos ali dentro nada haver relacionado com a seda.

Soubemos mais tarde ter no ano seguinte (2008) o Altar para a Deusa dos Bichos-da-Seda (Xian Can Tan) sido reparado e depois, a 19 de Abril de 2012 e no dia 24 de Abril de 2013 aí se realizaram com vestes da dinastia Qing as cerimónias Chun Yin Ji Can (春阴祭蚕) em honra da Deusa do Bicho da Seda (Xi Ling-shi, 西陵氏), Leizu, esposa de Huangdi, o Imperador Amarelo.

5 Mai 2024

商君書 – O Livro de Lorde Shang

墾令, Ordem para Cultivar as Terras ao Abandono

1

無宿治,則邪官不及為私利於民,而百官之情不相稽。百官之情不相稽,則農有餘日。邪官不及為私利於民,則農不敝。農不敝而有餘日,則草必墾矣。

Se não houver procrastinação na governação, os oficiais depravados não terão oportunidade de ganhar lucros privados a expensas do público e os cem oficiais não terão condições para se arrastarem e transferir a responsabilidade das suas tarefas de uns para os outros. Se os cem oficiais não tiverem condições para se arrastarem e transferir a responsabilidade das suas tarefas de uns para os outros, os camponeses terão um excedente de tempo. Se os oficiais depravados não tiverem oportunidade de ganhar lucros privados a expensas do público, os camponeses não se verão empobrecidos. Se os camponeses não se virem empobrecidos, e se tiverem um excedente de tempo, é certo que as terras ao abandono serão cultivadas.

2

訾粟而稅,則上壹而民平。上壹則信,信則官不敢為邪。民平則慎,慎則難變。上信而官不敢為邪,民慎而難變,則下不非上,中不苦官。下不非上,中不苦官,則壯民疾農不變。壯民疾農不變,則少民學之不休。少民學之不休,則草必墾矣。

Se os impostos forem cobrados segundo a estimativa da colheita do cereal, a sua cobrança será uniforme e o povo será feito igual. Se a cobrança de impostos for uniforme, o povo confiará nela; graças a essa confiança, os oficiais não se atreverão a ser depravados. Se o povo for feito igual, será também cauteloso. Sendo cauteloso, não apreciará mudanças. Se a cobrança de impostos for uniforme, se os oficiais não se atreverem à depravação e se o povo for cauteloso e não apreciar mudanças, então não rejeitará os seus superiores nem sentirá ressentimento para com os oficiais. Não rejeitando os seus superiores, não se ressentindo dos oficiais, os fisicamente capazes serão incansáveis na agricultura e não mudarão [o seu comportamento] e as crianças estudarão com afinco [o seu exemplo]. Se as crianças estudarem com afinco [o seu exemplo], então é certo que as terras ao abandono serão cultivadas.

3

無以外權任爵與官,則民不貴學問,又不賤農。民不貴學則愚,愚則無外交,無外交則勉農而不偷。民不賤農,則國安不殆。國安不殆,勉農而不偷,則草必墾矣。

Não estabeleças patentes, responsabilidades ou cargos segundo critérios estrangeiros e o povo não estimará a aprendizagem, mas também não desprezará a agricultura. Se o povo não estimar a aprendizagem será ignorante. Sendo ignorante, não se interessará por coisas estrangeiras; não se interessando por coisas estrangeiras, o estado estará em paz e não correrá perigo. Se o povo não desprezar a agricultura, a ela se aplicará sem descuido. Se o estado estiver em paz e não correr risco, enquanto o povo se dedica à agricultura sem descuido, então é certo que as terras ao abandono serão cultivadas.

4

祿厚而稅多,食口眾者,敗農者也;則以其食口之數,賦而重使之,則辟淫游惰之民無所於食。無所於食則必農,農則草必墾矣。

Se os salários forem abundantes e pesados os impostos, serão demasiados aqueles que encherão a boca de comida e a agricultura será devastada. Por isso, impõe taxas [às casas ricas] segundo o número de bocas que lá habitam e duplica as suas obrigações de trabalho público. Isto fará com que os desviantes, os vagabundos e os preguiçosos nada terão para se sustentarem. Nada tendo com que se sustentarem, terão que ser postos ao trabalho agrícola e, sendo postos ao trabalho agrícola, é certo que as terras ao abandono serão cultivadas.

5

使商無得糴,農無得糶。農無得糶,則窳惰之農勉疾。商無得糴,則多歲不加樂;多歲不加樂,則饑歲無裕利;無裕利則商怯,商怯則欲農。窳惰之農勉疾,商欲農,則草必墾矣。

Não permitas que os mercadores comprem cereal nem que os camponeses vendam cereal. Se os camponeses não puderem vender cereal, então os camponeses indolentes se esforçarão incansavelmente. Se os mercadores não puderem comprar cereal, então nos anos de colheitas abundantes não regozijarão. Se não regozijarem nos anos de colheitas abundantes, então nos anos de fome não terão lucros copiosos. Sem lucros copiosos, os mercadores terão medo. Tendo medo, quererão tornar-se camponeses. Se os camponeses indolentes se esforçarem incansavelmente e os mercadores se quiserem tornar camponeses, então é certo que as terras ao abandono serão cultivadas.

6

聲服無通於百縣,則民行作不顧,休居不聽。休居不聽,則氣不淫;行作不顧,則意必壹。意壹而氣不淫,則草必墾矣。

Se a música e as roupas finas não abundarem nos cem distritos, o povo não lobrigará roupas finas enquanto trabalha nem ouvirá música enquanto descansa. Se não ouvir música enquanto descansa, a sua disposição (qì 氣) não se tornará licenciosa. Se não lobrigarem roupas finas enquanto trabalham, as suas mentes não se distrairão. Se as suas mentes não se distraírem e a sua disposição não for licenciosa, então é certo que as terras ao abandono serão cultivadas.

7

無得取庸,則大夫家長不建繕。愛子不惰食,惰民不窳,而庸民無所於食,是必農。大夫家長不建繕,則農事不傷。愛子不惰食,惰民不窳,則故田不荒。農事不傷,農民益農,則草必墾矣。

Não permitas o uso de trabalhadores contratados, pois os chefes das linhagens nobres não poderão dedicar-se à construção e remodelação, os filhos preferidos não comerão com indolência, os indolentes não serão preguiçosos e os jornaleiros não terão meio de subsistir. Assim, terão de se tornar camponeses. Se os chefes das linhagens nobres não puderem dedicar-se à construção e remodelação, as actividades agrícolas não serão afectadas. Se os filhos preferidos e os indolentes não forem preguiçosos, os velhos campos não ficarão ao abandono. Se as actividades agrícolas não forem afectadas e os camponeses se dedicarem ainda mais à agricultura, é certo que as terras ao abandono serão cultivadas.

8

廢逆旅,則姦偽躁心私交疑農之民不行。逆旅之民無所於食,則必農,農則草必墾矣。

Faz abolir as estalagens para viajantes, pois aqueles que são traiçoeiros, impetuosos, nepotistas e descrentes da agricultura, não terão onde ir. Quando aqueles que se albergam nas estalagens para viajantes não têm meio de subsistir, é certo que se voltarão para a agricultura. Voltando-se para a agricultura, é certo que as terras ao abandono serão cultivadas.

9

壹山澤,則惡農慢惰倍欲之民無所於食;無所於食則必農,農則草必墾矣。

Unifica o controle de montanhas e pântanos, pois aqueles que detestam a agricultura, aqueles que são indolentes e têm desejos insaciáveis não terão meio de subsistir. Não tendo meio de subsistir, é certo que se voltarão para a agricultura. Voltando-se para a agricultura, é certo que as terras ao abandono serão cultivadas.

10

貴酒肉之價,重其租,令十倍其樸。然則商酤少,民不能喜酣奭,大臣不為荒飽。商酤少,則上不費粟;民不能喜酣奭,則農不慢;大臣不荒飽,則國事不稽,主無過舉。上不費粟,民不慢農,則草必墾矣。

Aumenta os preços do vinho e da carne, impondo-lhes pesados impostos, aumentando dez vezes o seu custo original. Então, os mercadores e vendilhões serão poucos, os camponeses serão incapazes de se embriagarem em excesso e os grandes ministros não se banquetearão com esbanjamento. Se os mercadores e vendilhões forem poucos, os superiores não desperdiçarão o cereal. Se as pessoas não forem capazes de se embriagarem em excesso, os camponeses não serão indolentes. Se os grandes ministros não forem esbanjadores, não haverá atrasos nos assuntos do estado e o soberano não cometerá erros nos seus afazeres. Se os superiores não esbanjarem o cereal e as pessoas não forem indolentes na agricultura, é certo que as terras ao abandono serão cultivadas.

11

重刑而連其罪,則褊急之民不鬥,很剛之民不訟,怠惰之民不游,費資之民不作,巧諛惡心之民無變也。五民者不生於境內,則草必墾矣。

Duplica os castigos e cria um sistema de responsabilidade mútua para controlar os criminosos. Assim, os tacanhos e os irascíveis não lutarão, os impiedosos não se envolverão em disputas, os preguiçosos e indolentes não se dedicarão à vagabundagem, os esbanjadores não surgirão e os malévolos não se dedicarão à trapaça. Se estes cinco tipos de pessoas não existirem entre as fronteiras, é certo que as terras ao abandono serão cultivadas.

12

使民無得擅徙,則誅愚亂農之民無所於食而必農。愚心躁欲之民壹意,則農民必靜。農靜,誅愚亂農之民欲農,則草必墾矣。

Não deixes as pessoas mudar de residência por iniciativa própria. Assim, os ignorantes e aqueles que perturbam a agricultura não terão sustento e terão de se dedicar a ela. Se as mentes dos ignorantes e dos impetuosos tiverem sido subjugadas, é certo que os camponeses estarão tranquilos. Se os camponeses estiverem tranquilos, é certo que as terras ao abandono serão cultivadas.

13

均出餘子之使令,以世使之,又高其解舍,令有甬,官食槩,不可以辟役。而大官未可必得也,則餘子不游事人。餘子不游事人,則必農,農則草必墾矣。

Emite uma ordem suprema para a recruta dos filhos menores, emprega cada um segundo a sua tarefa, e reforça as condições para a sua isenção [evitando uma base hereditária de recruta]. Que obtenham as suas provisões dos oficiais encarregados das rações de comida; que sejam esses a regular a sua distribuição. Se os filhos menores forem incapazes de evitar o trabalho forçado ou de chegar a altos cargos oficiais, não cairão no serviço de outras pessoas. E, então, terão de se dedicar à agricultura. Dedicando-se à agricultura, é certo que as terras ao abandono serão cultivadas.

14

國之大臣諸大夫,博聞辨慧游居之事,皆無得為;無得居游於百縣,則農民無所聞變見方。農民無所聞變見方,則知農無從離其故事,而愚農不知,不好學問。愚農不知,不好學問,則務疾農。知農不離其故事,則草必墾矣。

Não permitas que os grandes ministros e os aristocratas da capital do estado se dediquem à grande erudição, à argumentação sofisticada, ou a vaguear e instalar-se aqui e ali. Não os deixes vaguear e instalar-se nos cem distritos, de modo a que os camponeses não ouçam falar de coisas extraordinárias nem observem métodos diferentes. Se os camponeses não ouvirem falar de coisas extraordinárias nem observarem métodos diferentes, os mais sabedores dentre eles não terão maneira de abandonar a sua ocupação original, e os camponeses ignorantes não se tornarão sabedores nem amarão aprender. Se os camponeses ignorantes não se tornarem mais sabedores nem amantes da aprendizagem, dedicar-se-ão arduamente à agricultura. Se os camponeses mais sabedores não tiverem maneira de abandonar a sua ocupação original, é certo que as terras ao abandono serão cultivadas.

Nota:

O Livro de Lorde Shang (商君書, Shāng jūn shū) data do século III ACE, tendo sido escrito, ou compilado, pelo Lorde Shang Yang (também referido no texto pelo seu apelido Gongsun), que serviu como ministro do Duque Xiao, Regente de Qin, durante o período dos Estados Combatentes. Trata-se de uma obra fundacional da tradição Legista (sendo anterior ao Han Feizi) e de claro pendor anto-confucionista. Nela, a posição do soberano, ou regente, é tida pela primeira vez como fundamental para o governo directo do mundo e da sociedade. A versão portuguesa aqui apresentada segue a tradução de J. J. L. Duyvendak (1928) e a de Yuri Pines (2017), em paralelo com o texto original chinês.

24 Abr 2024

Segredos da seda (29) – Fibras têxteis

Os cinco períodos de crescimento da lagarta duram de vinte e seis a vinte e oito dias, permanecendo a bombice imóvel dentro do casulo cinco a seis dias para iniciar a metamorfose até a crisálida (pupa), perder massa e a diminuir de tamanho. A uma temperatura constante de 25º C, a crisálida fica de 18 a 20 dias dentro do casulo e por experiências feitas a uma temperatura de 2º C conseguem-se aí manter durante um ano. Já ao prolongar por longo tempo a temperatura a zero graus a crisálida não resiste e morre.

Como os casulos se querem inteiros para se ter um bom fio de seda, antes da crisálida começar quatro ou cinco dias depois a transformar-se em mariposa, é altura de interromper o ciclo da Bombix mori. Momento que deve ser escolhido com precisão para evitar a destruição do casulo pela mariposa que se encontra no seu interior.

Sendo o tamanho dos casulos das fêmeas maiores que os dos machos, em Langzhong as mariposas fêmeas são escolhidas para através de relações sexuais se fazer o cruzamento com machos japoneses. O período de crescimento da crisálida leva de doze a dezasseis dias a transformar-se em mariposa. Uma nova técnica também praticada é cortar o casulo para facilitar a saída da mariposa e após duas a três horas, o acasalamento é interrompido, não o deixando ir até ao fim.

Noventa por cento da produção dos casulos é utilizada na feitura do fio de seda, enquanto dez por cento serve para a reprodução e, para tal, não se interrompe o ciclo de vida da Bombix mori.

FIBRAS NATURAIS E SINTÉTICAS

As fibras têxteis são as que devido à sua finura e flexibilidade podem ser fiadas e servirem para produzir tecidos. Dividem-se em fibras naturais e não naturais, podendo ser estas artificiais e sintéticas. As fibras naturais por sua vez compreendem as extraídas das plantas, logo de origem vegetal, como o algodão, o linho, a juta, o cânhamo e o sisal e as de origem animal são a lã e a seda, a rainha das fibras. Informações provenientes do livro A Indústria da Seda de João Faustino Masoni da Costa, no seu trabalho científico do início do século XX.
Mas não é apenas a Bombix mori a produzir a seda, pois no reino vegetal existe um arbusto, a Asclepias Syriae, ou planta da seda, cujas fibras misturadas com seda animal e lã servirão para encher almofadões, sendo por vezes aplicadas em tecidos. Já no reino animal há moluscos a possuírem filamentos, com uma composição comparável à da seda, a servir para os prender às rochas. Conhecida como seda marinha, bissus ou pêlo de nácar, foi empregue na fabricação de tecidos de luxo na Calábria e Sicília, assim como luvas, gravatas e meias. Há também a seda produzida por aranhas para construir a teia e usada em 1709 por M. Bon na fabricação de meias e luvas, tendo submetido o seu trabalho à apreciação da Academia das Ciências. “Reaumur foi subvencionado por aquela Academia e encarregado de estudar a produção sedosa daqueles aracnídeos e a sua aplicação industrial. Dos seus trabalhos concluiu-se ser preciso juntar 90 fios de seda de aranhas para se produzir um fio da consistência do obtido do bicho-da-seda doméstico – o Bombix mori – e que só com um número de aranhas doze vezes superior ao de bichos-da-seda vulgares se obteria a mesma quantidade de produto, como consequência de só formarem casulos as aranhas fêmeas.“ Afirma ainda Faustino Masoni da Costa que “na China fabrica-se com seda de aranhas um tecido – o cetim do mar oriental – que é muito resistente.” Também nos fala de uma grande variedade de bichos-da-seda capazes de produzir um casulo, sendo os mais conhecidos os Bombix, os Attacus e as Aranhas.
No jornal de Macau A Pátria de Janeiro de 1927, um artigo com o título ‘Os Bichos da Seda vão ser destronados’ está escrito: .
Para além da diversidade dos Bombix, (destronando o Bombix mori todos os outros), também os diferentes Attacus (Antheraea) produzem bons casulos. Assim temos o Attacus cynthia (bicho-da-seda do rícino), o Attacus Pernyi (bicho-da-seda do carvalho do Nordeste da China), o Attacus yama-maï (bicho-da-seda do carvalho do Japão) e o Attacus mylitta (bicho-da-seda da Índia, que produz a seda tussor, ou tussah, mas por não ter um fio contínuo passa por outras fases para ser tecido). Ouvimos falar ainda do Attacus proyeli que produz a seda Oak Tasar.

FIBRAS NÃO NATURAIS

Com o avanço tecnológico apareceram as fibras artificiais e sintéticas. Apesar de ambas serem ‘artificiais’ como apareceram no século XIX e antecederam em cinquenta anos as fibras sintéticas, ficaram com o nome de artificiais. Aqui deixamos apenas um breve resumo sem aprofundar o assunto. As fibras artificiais dividem-se em celulósicas e proteicas e dentro das celulósicas temos as de celulose regenerada com a viscose e o cupramónio e as derivadas da celulose como o acetato e o triacetato.
Com um comprimento do tamanho que se quiser, o fio da viscose rayon é conhecido por seda artificial, sendo constituído por multifilamentos contínuos.
Nas fibras sintéticas, o poliéster imita o algodão, o acrílico a lã e o nylon a seda, e sendo estas com maior utilização na indústria têxtil apenas a estas aqui fazemos referência.
O nylon foi a primeira fibra sintética com interesse têxtil, sendo descoberto nos EUA pelo Dr. Carothers nas suas pesquisas entre 1928 e 1935, tendo sido usado em grande escala a partir de 1939.
A fibra de poliéster conhecida por terylene foi encontrada na continuação das pesquisas do nylon no ano de 1941 em Inglaterra e feitas por Whinfield. Em 1955 começou a ser produzida industrialmente.
A fibra acrílica apareceu durante a II Guerra Mundial quando se trabalhava nas borrachas sintéticas e se descobriu um novo composto químico, o acrilonitrilo, tendo começado a ser produzido a partir de 1948.
As microfibras apareceram em 1990 e são fibras sintéticas derivadas de poliamida ou de poliéster cuja espessura é 50 a 70 vezes inferior à de um cabelo, a permitir um tecido fino, mas resistente com um toque sedoso.
Actualmente já se fazem experiências em laboratório com micro microfibras, mas o preço de produção é ainda muito alto.

CARACTERÍSTICAS DA SEDA

A fibroína é uma matéria proteica formada por 48% de Carbono, 27% de Oxigénio, 6,5% de Hidrogénio e 18% de Azoto. José de Sousa Machado Ferreira Neves na Tecnologia Têxtil, matérias-primas têxteis, (Porto 1982), que apresentou esta tabela, acrescenta ser a composição da seda semelhante à da lã, pelo que o odor quando se queimam estas duas fibras naturais é idêntico, resistindo a seda melhor ao passar a ferro que a lã (algo que não deve ser feito em ambas as fibras, pois a seda não precisa de tal).
“A acção dos alcalis, quando diluídos prejudica o aspecto da seda e quando concentrados destroem-na. Já a acção dos ácidos quando diluídos reaviva as cores da seda e melhora o seu toque; se concentrados destroem-na. Quanto à acção dos oxidantes, o cloro destrói a seda e a água oxigenada diluída branqueia-a.”
Distingue-se a seda animal da seda vegetal ao esfregar o tecido, assim como ao usar-se o fogo, a vegetal arde rapidamente e a animal deixa um resíduo.

23 Abr 2024

Poetas no Jardim da Família Shen

Lu You (1125-1210) segundo alguns relatos teria nascido numa manhã chuvosa a bordo de uma embarcação que navegava descendo o rio Wei, o maior afluente do Rio Amarelo (Huanghe) e em cujo vale se foi desenrolando a aurora da civlização do Celeste Império, de que ele se revelaria um apaixonado defensor.

Sendo verdade, poderia ser uma premonição da vida do poeta cujo percurso foi sendo marcado por fortes correntes de origens diversas que sempre o impeliram, e que foram incansavelmente registados nos seus escritos e incontáveis poemas.

De maneira exemplar o seu olhar atento às pessoas, às paisagens, costumes e monumentos ficou guardado na Memória da viagem para Shu (Ru Shu Ji) que foi escrevendo quando, sendo nomeado vice-prefeito de Kuizhou (act. Fengjie, Sichuan), saiu de Shanyin (act. Shaoxing, Zhejiang), a sua terra natal, e foi subindo o outro grande rio Yangzi, entre três de Julho e seis de Dezembro de 1170.

Lu You era já há muito um respeitado poeta quando o seu descendente Lu Wenjie, no final do século dezanove mandou gravar numa pedra a figura do poeta (rolo vertical, esfregaço a tinta, 109 x 72,7 cm, no Museu de Arte da Universidade de Princeton). Aí ele está encostado numa pedra ao lado de uma caixa de livros, dir-se-ia numa breve pausa, prestes a partir. A pedra ficou significativamente no Museu de Tecto de Palha (Du Fu Caotang) em Chengdu (Sichuan) entre doze ilustres poetas, no lugar onde se celebra a memória do grande poeta dos Tang, Du Fu (712-770). Mas a recordação afectiva do poeta, que nos últimos anos de vida, retirado em Shaoxing, adoptou o nome artístico (hao) Fang Weng, «o velho que faz o que lhe apetece», ficaria para sempre ligada às palavras de um poema que escreveu ainda jovem e contrariado, numa parede de um jardim privado dessa mesma cidade.

Lu You casara cedo com a primaTang Wan (1128-1156), também poeta com o nome artístico Huixian «a bondade imortal», com quem não teve filhos e por isso e para fazer a vontade da mãe, mostrando o cumprimento da virtude confuciana, apesar das notórias afinidades electivas, logo se separaria. Os dois seguiriam caminhos diversos, casados e ambos com filhos, mas anos depois em 1155 aproveitando a obrigação legal de se abrirem os jardins privados todos os anos entre o primeiro dia do terceiro mês e o oitavo do quarto, os dois reencontram-se no jardim da família Shen. Emocionado, Lu compôs um poema no guia de rimas (cipai) «O gancho de cabelo da fénix», que termina com as palavras:

«Ainda temos a nossa promessa sagrada,

Mas até uma carta é difícil de enviar,

Não temos nada, nada, nada.»

No ano seguinte lendo o poema, e na mesma harmonia ela respondeu com um poema cujo final se lê:

«Receio que as pessoas se questionem

porque estou triste,

Finjo estar feliz,

sorrindo em vez de chorar,

Toda a minha vida agora

é esconder, esconder, esconder.»

22 Abr 2024

薛濤 Xue Tao – Estranha forma de vida

Apesar dos costumes “liberais” da dinastia Tang, não era normal que uma mulher fizesse da poesia a sua vida.

Xue Tao (768-831) foi uma poetisa chinesa da dinastia Tang, que floresceu do século VII ao século IX. Conhecida por sua habilidade poética e pela sua vida incomum, Xue Tao nasceu numa família pobre e, como mulher, enfrentou muitos desafios para conseguir realizar a sua paixão pela escrita.

Contudo, cedo foi reconhecida pela qualidade das suas belas e sensíveis composições poéticas, que abordam uma variedade de temas, incluindo amor, natureza, melancolia e a condição feminina na sociedade de sua época. Xue Tao escreveu muitos poemas que reflectiam as suas próprias experiências e emoções, além de explorar as complexidades das relações humanas e da vida quotidiana.

Ainda no seu tempo, as suas obras foram elogiadas pela sua delicadeza, imagens poéticas vívidas e habilidade técnica. Infelizmente, nem todos os seus escritos sobreviveram até os dias atuais, mas aqueles que permaneceram continuam a ser estudados e apreciados por sua beleza e profundidade.

Além disso, Xue Tao é uma figura importante na história da literatura chinesa, na medida em que desempenhou um papel fundamental na conquista de reconhecimento como Mulher e Poeta, pois numa sociedade fortemente patriarcal, onde as mulheres enfrentavam muitas restrições sociais e culturais, Xue Tao conseguiu ganhar reconhecimento e respeito como poetisa. A sua habilidade poética e suas contribuições para a literatura chinesa desafiaram as normas de género da sua época.

Na sua obra, Xue Tao deu voz às experiências e emoções das mulheres através de sua poesia. Os seus poemas exploraram temas relacionados com a feminilidade, amor, relacionamentos e as complexidades da vida das mulheres na sociedade Tang.

Xue Tao é considerada uma figura significativa não apenas na história da literatura chinesa, mas também na luta pela igualdade de género e na valorização da expressão artística das mulheres. Apesar dos séculos que nos separam de sua época, Xue Tao continua a ser estudada e apreciada como uma das grandes vozes da poesia chinesa. A sua influência é evidente em escritores e poetas posteriores, que foram inspirados pelo seu trabalho e pelo exemplo de sua vida.

Educada numa dinastia particular

É preciso entender que Xue Tao viveu durante a dinastia Tang na China, em meados do século IX, tendo passado a maior parte de sua vida na capital Tang, Chang’an, que é a atual Xi’an, na província de Shaanxi, China. Chang’an era um centro cultural e político vibrante durante a dinastia Tang, onde muitos poetas, escritores e intelectuais se reuniam e interagiam, criando um ambiente propício para o florescimento da poesia e da literatura. Xue Tao fez parte desse cenário cultural e foi influenciada pelo ambiente artístico e intelectual da capital imperial.

A educação formal de Xue Tao não é bem documentada, mas é provável que tenha sido limitada, como era comum para muitas mulheres na China durante a dinastia Tang. Naquela época, as oportunidades educacionais para as mulheres eram geralmente restritas, e poucas tinham acesso à educação formal além do básico, principalmente se fossem de famílias menos abastadas.

No entanto, Xue Tao demonstrou habilidades literárias excepcionais e uma compreensão profunda da poesia, sugerindo que pode ter recebido alguma forma de instrução em casa ou através de tutoria informal. Além disso, ela provavelmente se beneficiou do ambiente cultural e intelectual vibrante da capital Tang, onde teve a oportunidade de interagir com outros poetas e intelectuais, participando de círculos literários e actividades artísticas.

Apesar das limitações educacionais que as mulheres enfrentavam na época, Xue Tao conseguiu desenvolver sua paixão pela escrita e pela poesia, demonstrando talento e habilidade excepcionais que a tornaram uma das poetisas mais renomadas da dinastia Tang.

Xue Tao conseguiu subsistir graças à sua produção poética, o que era um caso muito raro entre as mulheres. Durante a dinastia Tang, os poetas muitas vezes ganhavam reconhecimento e apoio financeiro por meio da composição e recitação de poemas para patronos ricos, oficiais do governo e nobres. Xue Tao, como uma poetisa talentosa e reconhecida, recebia pagamento pelos seus serviços literários, incluindo a composição de poemas para ocasiões especiais, como festas, cerimónias e eventos culturais.

Além disso, Xue Tao pode ter encontrado outras formas de ganhar dinheiro, como participar de concursos literários, dar aulas particulares de poesia ou escrever para publicações literárias da época. No entanto, dados os limites impostos às mulheres na sociedade chinesa durante a dinastia Tang, suas opções de carreira podem ter sido mais restritas do que as dos homens, e é possível que sua renda tenha sido principalmente derivada de suas habilidades poéticas.

Temas e poemas

Xue Tao explorou uma variedade de temas na sua poesia, muitos dos quais eram comuns entre os poetas da dinastia Tang. Alguns dos temas principais abordados nos seus escritos incluem:

Natureza: Assim como muitos poetas chineses, Xue Tao frequentemente utilizava a natureza como fonte de inspiração. Ela descrevia paisagens naturais, estações do ano, plantas e animais em seus poemas, usando essas imagens para transmitir emoções e reflexões sobre a vida.

Amor e Romance: Xue Tao também explorou o tema do amor na sua poesia. Escreveu sobre os sentimentos de amor, desejo, saudade e desgosto amoroso, muitas vezes utilizando metáforas e imagens poéticas para expressar as nuances dos relacionamentos humanos.

Melancolia e Solidão: Alguns dos poemas de Xue Tao refletem uma sensação de melancolia e solidão. Expressou sentimentos de tristeza, nostalgia e anseio, capturando a profundidade das emoções humanas e as complexidades da experiência humana.

Feminilidade e Identidade Feminina: Como uma das poucas poetisas da dinastia Tang, Xue Tao abordou temas relacionados à feminilidade e à condição das mulheres em sua sociedade. Explorou questões de identidade feminina, papéis de género e as experiências únicas das mulheres na sociedade Tang.

Estes são apenas alguns dos temas que Xue Tao explorou na sua poesia, já que a sua obra é rica em variedade e profundidade, reflectindo a sua sensibilidade artística e sua compreensão da condição humana.

O volume exacto da obra de Xue Tao não é conhecido, já que muitos dos seus escritos foram perdidos ao longo do tempo. No entanto, sabemos que ela foi uma poetisa prolífica e que seus poemas eram altamente apreciados no seu tempo. Xue Tao é creditada com a autoria de centenas de poemas, embora apenas uma parte deles tenha sobrevivido até aos dias de hoje. A sua poesia foi preservada em antologias e colectâneas literárias, algumas das quais compiladas durante a própria dinastia Tang e outras em períodos posteriores.

Ninguém com quem partilhar

o abrir de uma flor.

Ninguém com quem lamentar

a queda de uma flor.

E as saudades… apertam mais

quando as flores abrem

ou quando as flores caem?

*

Um sol recente dissolve

a bruma sobre o monte.

Toda a noite ouvi os sábios,

mas nada aprendi.

Pinheiros eternos surgem sem esforço,

vagos e escuros, da névoa esvaída.

*

Em Fevereiro, flocos de salgueiro

brincam nas roupas das gentes,

ao sabor das brisas da primavera.

São criaturas sem coração:

num momento voam para sul,

logo voam para norte.

*

Dizem que viestes das terras devastadas do sul

onde deixaste a memória da tua carne,

rubra e profunda.

Singrando rios claros, de verde trajado,

o teu sumo excede o melhor dos vinhos.

Tradução de Carlos Morais José/Gong Yuhong

19 Abr 2024

商君書 – O Livro de Lorde Shang

Tradução de Rui Cascais

Assim damos início à publicação, pela primeira vez em língua portuguesa, do Livro de Lorde Shang (商君書 Shāng jūn shū), que data do século III ACE, tendo sido escrito, ou compilado, pelo Lorde Shang Yang (também referido no texto pelo seu apelido Gonsung), que serviu como ministro do Duque Xiao, Regente de Qin, durante o período dos Estados Combatentes.

Shang Yang foi um estadista e pensador chinês que desempenhou um papel crucial na reorganização do Estado de Qin, que acabou por conduzir à unificação do império chinês pela dinastia Qin. Acreditava na importância do poder para manter a integridade de um Estado, dando ênfase a um grande exército e a celeiros cheios. Shang Yang implementou reformas como a substituição das divisões feudais por governadores nomeados a nível central, o serviço militar obrigatório, um novo sistema de divisão de terras e de tributação e uma administração uniforme da lei. O seu foco na centralização do poder, no fortalecimento do exército e na promoção da igualdade perante a lei deixou um legado duradouro na história chinesa e influenciou o desenvolvimento do pensamento político no país. As suas reformas suscitaram a oposição dos nobres, o que levou à sua queda e eventual execução em 338 a.C.

O seu livro é uma obra fundacional da tradição Legista (sendo anterior ao Han Feizi) e de claro pendor anti-confucionista. Nela, a posição do soberano, ou regente, é tida pela primeira vez como fundamental para o governo directo do mundo e da sociedade. A versão portuguesa aqui apresentada segue a tradução de J. J. L. Duyvendak (1928) e a de Yuri Pines (2017), em paralelo com o texto original chinês.

更法 A Reforma da Lei

1

孝公平畫,公孫鞅、甘龍、杜摯三大夫御於君,慮世事之變,討正法之本,求使民之道。

O Duque Xiao, o Regente, expôs a sua política. Os Três Grandes Oficiais, Shang [Gongsun] Yang, Gan Long e Du Zhi, estavam presentes junto do Regente. Com os seus pensamentos consagrados às vicissitudes das coisas do mundo, discutiram os princípios destinados a rectificar a lei, buscando uma forma de conduzir o povo.

2

君曰:「代立不忘社稷,君之道也;錯法務明主長,臣之行也。今吾欲變法以治,更禮以教百姓,恐天下之議我也。」

O Regente disse: “Não se esqueçam, no momento da sua sucessão, dos espíritos tutelares do solo e dos cereais, pois essa é a via de um soberano; dar forma às leis e certificar-se de que um soberano inteligente venha a reinar, essas são as tarefas de um ministro. É agora minha intenção alterar as leis, de forma a estabelecer uma governação ordeira, e reformar os ritos de modo a educar o povo, mas temo que o mundo me critique.”

3

公孫鞅曰:「臣聞之,『疑行無成,疑事無功,』君亟定變法之慮,殆無顧天下之議之也。且夫有高人之行者,固見負於世;有獨知之慮者,必見訾於民。語曰:『愚者闇於成事,知者見於未萌。民不可與慮始,而可與樂成。』郭偃之法曰:『論至德者,不和於俗;成大功者,不謀於眾。』法者,所以愛民也;禮者,所以便事也。是以聖人苟可以強國,不法其故;苟可以利民,不循其禮。」

Shang Yang disse: “Ouvi dizer que aquele que hesita agir nada consegue e que aquele que hesita nos problemas [da governação] não obtém mérito. Possa o Regente ser rápido a decidir sobre a alteração das leis, talvez sem prestar grande atenção às críticas do mundo. Além disso, aquele que se conduz a si mesmo como uma pessoa exemplar é, desde logo, detestado pelo mundo e aquele que pensa conhecer de modo independente é decerto desprezado pelo mundo. Há um dizer que afirma: ‘Os estúpidos nem sequer compreendem um problema mesmo depois deste estar resolvido, os sábios antecipam-no mesmo antes de surgir’. Não devemos deixar o povo ter conhecimento das origens de um problema, mas devemos deixá-lo regozijar com a sua resolução. A lei de Guo Yan diz: ‘Aqueles que se preocupam com as mais altas virtudes não estão em harmonia com as ideias do povo; aqueles que conseguem concretizar grandes trabalhos não se aconselham junto da turba’. A lei é uma expressão de amor pelo povo; os ritos são uma forma de fazer as coisas decorrer com suavidade. Como tal, se isso o fizer capaz de reforçar um estado, um sábio não segue os modelos da antiguidade, nem adere a ritos estabelecidos se isso o fizer capaz de beneficiar o povo.”

O Duque Xiao exprimiu o seu assentimento.

4

甘龍曰:「不然。臣聞之,聖人不易民而教,知者不變法而治。因民而教者,不勞而功成;據法而治者,吏習而民安。今若變法,不循秦國之故,更禮以教民,臣恐天下之議君,願孰察之。」

Porém, Gan Long disse: “Nada disso, pois ouvi dizer que ‘Um sage ensina sem mudar o povo e uma pessoa sábia consegue governar bem sem alterar as leis’. Se ensinarmos segundo o espírito do povo, o sucesso será obtido sem esforço; se governarmos aderindo à lei, os oficiais serão peritos nela e o povo viverá tranquilamente. Contudo, se o Regente alterar as leis sem seguir os antigos costumes do estado Qin, reformando os ritos de modo a educar o povo, temo que o império vos critique e desejo apenas que possais reflectir sobre isto profundamente.”

5

公孫鞅曰:「子之所言,世俗之言也。夫常人安於故習,學者溺於所聞。此兩者所以居官守法,非所與論於法之外也。三代不同禮而王,五霸不同法而霸,故知者作法,而愚者制焉;賢者更禮,而不肖者拘焉。拘禮之人,不足與言事;制法之人,不足與論變。君無疑矣。」

Shang Yang retorquiu: “Aquilo que o senhor defende é o ponto de vista do homem comum. De facto, o povo comum rege-se por velhas práticas e os estudantes estão imersos no estudo daquilo que lhes chega da antiguidade. Estes dois tipos de pessoa são suficientes para ocupar cargos e manter a lei, mas não são do género de poder participar numa discussão que vá além da lei. As Três Dinastias atingiram a supremacia graças a diferentes ritos e os cinco Lordes Protectores conseguiram oferecer a sua protecção graças a diferentes leis.

Assim, uma pessoa sábia cria leis, mas uma pessoa insensata é por elas controlada; uma pessoa talentosa reforma os ritos, mas uma pessoa imprestável é por eles escravizado. Não vale a pena discutir com uma pessoa escravizada pelos ritos; não vale a pena discutir reformas com uma pessoa controlada pelas leis. Possa o Regente não hesitar.”

6

杜摯曰:「臣聞之,利不百,不變法;功不十,不易器。臣聞法古無過,循禮無邪。君其圖之。」

Du Zhi disse: “A menos que a vantagem seja a cêntupla, não se deve reformar a lei; a menos que o benefício seja de dez vezes, não se deve alterar um instrumento. Ouvi dizer que ao seguir a antiguidade como exemplo é impossível errar, e que ao seguir ritos estabelecidos é impossível cometer ofensas. Possa o Regente ter esse fito.”

7

公孫鞅曰:「前世不同教,何古之法?帝王不相復,何禮之循?伏羲神農教而不誅,黃帝堯舜誅而不怒,及至文武,各當時而立法,因事而制禮。禮法以時而定,制令各順其宜,兵甲器備各便其用。臣故曰:『治世不一道,便國不必法古。』湯武之王也,不循古而興;殷夏之滅也,不易禮而亡。然則反古者未可必非,循禮者未足多是也。君無疑矣。」

8

Shang Yang retorquiu: “As gerações anteriores não seguiram todas as mesmas doutrinas, que antiguidade deveríamos então imitar? Os imperadores e reis não se copiaram uns aos outros, que ritos deveríamos então seguir? Fu Xi e Shennong ensinaram, mas não puniram; Huangdi, Yao e Shun puniram, mas sem ira; Wen Wang e Wu Wang ambos estabeleceram leis segundo aquilo que era oportuno e regularam os ritos segundo exigências de ordem prática; dado ritos e leis estarem fixos segundo o que era oportuno, todos os regulamentos e ordens eram expedientes e as armas, armaduras, utensílios e equipamento eram todos práticos. Por isso digo: ‘Há mais de uma forma de governar o mundo e não é necessário imitar a antiguidade de modo a tomar as medidas apropriadas para o estado’. Tang e Wu conseguiram atingir a supremacia sem seguirem a antiguidade, e quanto à queda de Yin e Xia, a sua ruína ocorreu sem que os ritos tivessem sido alterados. Como tal, aqueles que agiram contra a antiguidade não merecem necessariamente ser culpados, nem aqueles que seguiram ritos estabelecidos merecem grande elogio. Possa o Regente não hesitar.”

9

孝公曰:「善。吾聞窮巷多怪,曲學多辨。愚者之笑,智者哀焉;狂夫之樂,賢者喪焉。拘世以議,寡人不之疑矣。」

O Duque Xiao exclamou: “Excelente! Ouvi dizer que nas zonas pobres da província muita coisa é considerada estranha e que nas escolas de aldeia há muita discussão. Aquilo de que os insensatos riem faz chorar os sábios; a alegria de um louco é o desgosto de uma pessoa talentosa. Nos nossos planos, deveríamos ser guiados pelas necessidades do tempo – disto não duvido.”

10

於是遂出墾草令。

Em resultado disto, o Regente deu ordens resolutas para cultivar as terras ao abandono.

18 Abr 2024

Doenças da Bombix mori

Na fase inicial da produção do bicho-da-seda, na Primavera, estando os ovos prontos a eclodir, previnem-se as doenças transmitidas por bactérias alojadas na casca desinfectando-os, lavando-os num banho de vapor com uma solução de cinábrio (sulfureto de mercúrio vermelho), salmoura (água salgada) e hidróxido de cálcio (cal). Outro tratamento para evitar infecções e doenças das lagartas consiste, antes de as alimentar, borrifar uma solução de raiz de alcaçuz (leguminosa medicinal), seiva de alho e vinho chinês nas folhas de amoreira.

Anteriormente, após a postura dos ovos pelas mariposas fêmeas e depois destas morrerem, já secas são durante três dias colocadas em clorofórmio para examinadas ao microscópio se despistar possíveis doenças, ou anomalias genéticas, escolhendo-se os ovos das mariposas saudáveis, eliminando pelo fogo os restantes. Assim, os criadores evitavam o risco de criar ovos infectados com as várias doenças que atacaram a Bombix mori, primeiro na Europa em meados do século XIX e na China por volta de 1923, levando à grande quebra na produção de casulos.

As sirgarias devem ser lugares amplos, limpos, sem humidade e cheiros, ter uma temperatura constante e bom arejo, não podendo os tabuleiros levar com correntes de ar para as lagartas se manterem saudáveis. Importantíssimo é fazer uma profunda limpeza e desinfecção, tanto no local de produção como aos instrumentos onde tais doenças se manifestam.
Estando as lagartas já doentes com a flacidez, a muscardina, a pebrina e a porcina, o único método eficiente é isolar e eliminá-las.

Se a selecção para se obter um bom fio de seda começou por se fazer apenas na fase dos casulos, durante a Dinastia Song incidia também sobre as mariposas, larvas e ovos. Na Dinastia Qing escolhiam-se as lagartas mais saudáveis para com elas continuar o ciclo e criar uma descendência saudável.

DOENÇAS MAIS COMUNS

A muscardina causada por um fungo e a pebrina são as duas doenças mais comuns do bicho-da-seda. A pebrina, ou Nb como é conhecida na China, é contagiosa e deve-se à presença de corpúsculos de Cornaglia nas glândulas sedosas. Segundo sabemos é uma doença ainda sem cura, tendo Louis Pasteur (1822-1895) dedicado algum tempo a estudá-la.

Percebe-se estar o animal atacado por ela quando o corpo aparece sarapintado com manchas do que parece ser pimenta numa pele arroxeada. A lagarta desenvolve-se irregularmente, tal como irregulares são os seus períodos de sono, sofrendo de falta de apetite. Se a doença se manifestou logo no período larval, são preferencialmente atacadas as glândulas da seda e durante a muda de pele algumas morrem e outras, atrofiadas, atrasam-se de oito a dez dias na evolução. Apesar de conseguirem atingir a fase de fabrico do casulo, muitas não aguentam o esforço e morrem. Se ainda resistirem a este processo de selecção natural, a solução é separar os ovos dos animais que demonstraram ao longo das suas fases um comportamento irregular. Em casos extremos, a lagarta não come, não muda de pele e em oito dias morre, acontecendo o mesmo a toda a produção a que esta pertence. Já como mariposa são atacados os órgãos reprodutores e assim os corpúsculos de Cornaglia penetram nos ovos.

As larvas que nasceram sãs ficam contagiadas pelas fezes e pelos cadáveres, “causa da propagação do morbus e provada a impossibilidade de vencer os progressos da marcha da doença, ocorreu a Pasteur em 1865 e com isso lançou a pedra em que se firmou o ressurgimento da indústria sericígena europeia, seleccionar pela análise microscópica a semente do Bombix mori fêmea, para se fazerem criações com ovos absolutamente isentos de corpúsculos e em locais purificados e isolados”, segundo João Faustino Masoni da Costa, n’A Indústria da Seda, de onde provem as informações deste artigo sobre as doenças.

Quando a lagarta do bicho-da-seda fica com uma cor rosada e o corpo muito mole é sinal que sofre de muscardina, causada pelos esporos de um cogumelo do género Botrytis, da espécie B. buassiana, transportados pelo ar e que se alojaram na pele das lagartas. Esse bolor parasita desenvolve os seus micélios nos órgãos do animal e provoca-lhe a morte em dez dias. Mesmo depois de mortas e com o corpo muito rígido, as lagartas continuam a servir de alimento ao fungo, que se expande pelo ar para a pele de outros animais, contaminando-os.

OUTRAS DOENÇAS

A flacidez é a mais mortífera de todas as doenças e a rapidez com que actua e se propaga tem efeitos fatais na produção da sirgaria. O Streptococus bombycis transportado nas folhas da amoreira e pelas poeiras é ingerido pelo bicho-da-seda e manifesta-se normalmente depois da quarta muda. Sem vitalidade, a lagarta ao dejectar uma substância semifluida, rapidamente esta seca e obstrui o orifício anal.

Nada mais se percebe, pois há um aparente movimento de continuar viva, embora imóvel e em pouco tempo a mortalidade espalha-se pela criação, extinguindo-a num só dia. “Os cadáveres de começo rígidos, tornam-se flácidos e por último completamente moles, denegridos à superfície, exalando um cheiro fétido, completamente putrefactos”, segundo Faustino Masoni da Costa, que refere os antissépticos aplicados nas folhas não resolvem o problema e o emprego de meios preventivos anteriormente apontados e apoiados no constituir “uma criação robusta, que por si própria, em tais casos, se não deixará invadir pela flacidez, essa, das doenças insecticidas a mais contagiosa.” A única solução, mesmo que a doença atinja apenas uma parte das lagartas, é queimar e enterrar toda a produção, desinfectar a sirgaria e utensílios e iniciar uma nova criação.

Já a porcina, é apercebida quando a lagarta com os anéis estrangulados ao mover-se deixa um rasto de um líquido turvo na folha. Esta doença atacou na China por volta de 1923, levando à investigação nos laboratórios das universidades chinesas, sendo a crise ultrapassada com recurso à importação de ovos. Desde então, aprofundaram-se as pesquisas sobre a seda e a sericicultura recomeçou a ganhar nova pujança.

DIFERENÇAS ENTRE MACHO E FÊMEA

Fisicamente, a fêmea e o macho da lagarta não se diferenciam facilmente e só na parte inferior do décimo e último anel se percebe ser fêmea pelos quatro pontos negros, enquanto a lagarta-macho tem apenas um ponto e não apresenta a mancha preta junto aos olhos como as fêmeas.

Dentro do casulo, a lagarta faz a metamorfose para crisálida, nome proveniente de chrysos, a significar ouro, talvez devido à coloração metálica apresentada. Já no final do período, após mais ou menos quinze dias no casulo, a crisálida transforma-se em mariposa (borboleta nocturna). Com um tamanho reduzido, próximo dos quatro centímetros, tem dois pares de asas e o corpo coberto de pêlos. Como mariposa, começa a libertar uma substância alcalina para com a ajuda das patas romper o filamento e abrir um orifício no topo do casulo no lado da cabeça, por onde sai logo cedo de manhã.

No estado de mariposa o aspecto físico do macho e da fêmea é já bastante distinto. O abdómen da fêmea é maior que o do macho e no topo do oitavo anel do abdómen da fêmea encontra-se uma marca em forma de ‘X’, enquanto o macho apresenta uma fina marca castanha escura, no nono anel do abdómen. Também diferentes são as formas exteriores dos seus órgãos reprodutores. Essa transformação acontece devido aos órgãos produtores da seda se atrofiarem após expelir o filamento e no seu lugar se desenvolverem os órgãos reprodutores.

As asas triangulares da mariposa cobrem horizontalmente a parte superior do corpo, tronco e abdómen e saíram do segundo e terceiro anel do tórax da lagarta. A cabeça é maior que o peito e o abdómen tem a forma de cone com cor branco-amarelada. Em cada lado da cabeça há dois olhos compostos e cada um contém três mil minúsculas lentes sensíveis à intensidade da luz. O macho apresenta antenas pretas em forma de pente, enquanto as da fêmea estão atrofiadas.

Na fase de mariposa, normalmente de três a cinco dias, esta não se alimenta pois não possui boca e dá-se o acasalamento entre macho e fêmea durante longas horas. No dia seguinte põe perto de quinhentos ovos e dois a três dias depois da desova, as mariposas morrem, terminando assim o ciclo da Bombix mori.

17 Abr 2024