José Simões Morais Via do MeioSegredos da Seda (18) – Fábricas e depósito de casulos em Tongxiang Continuamos por Tongxiang (桐乡), no distrito de Jiaxing (嘉兴) a Norte de Zhejiang, local onde se pratica a sericicultura e a produção de casulos é grande devido à existência de muitas fábricas de fiar e tecer a seda. De notar, sair desta província um terço da produção chinesa de fio, brocados e cetins. Após a breve visita à Fábrica Tongxiang Wutong Silk Industry Co. Ltd. na rua Oeste n.º 2, cujas máquinas automáticas trabalham no tecer a gaze, o mais simples tecido de seda, o taxista, perante o nosso desconsolo, para nos animar lembra-se de um depósito onde os agricultores vão entregar os casulos. Assim chegamos ao entreposto de compra de casulos em Tongxiang, onde os sericicultores aguardam a vez para descarregar os enormes sacos condicionados nos atrelados dos tractores, que se estendem em fila ocupando toda a rua. O local da entrega é um enorme armazém, delimitado por grades na parte da frente, havendo apenas um espaço livre para os sacos cheios de casulos passarem e serem despejados. Após a pesagem, um recibo é logo entregue por entre as grades, entrando então o sericicultor numa porta ao lado e quando sai, vem ainda a conferir o maço de notas. No seu tractor parte, desanuviando a longa fila de quem aguarda ansiosamente por entregar o trabalho de quase dois meses. Outros há terem recebido as lagartas da fábrica em cujas estufas foram criados os ovos e onde as larvas estiveram a primeira semana num ambiente completamente esterilizado. Só depois as lagartas são transferidas para junto dos vastos campos de amoreiras e após um mês de intenso labor, os sericicultores vão entregar os casulos. Normalmente as estufas pertencem às fábricas que, no início do segundo período de crescimento das lagartas, após sete dias depois do nascimento, as levam aos sericicultores para estes as alimentarem e delas cuidar até ao final da produção dos casulos. Com vinte, a vinte e nove dias de árduo labor, os sericicultores entregam os casulos à fábrica, ou vendem-nos no posto colector de casulos. No interior do entreposto, já dentro do armazém, os casulos são colocados em cestas de vime e escolhidos por mulheres para retirar os manchados, assim como os emaranhados e os separam segundo o maior ou menor tamanho. Daí são distribuídos para as fábricas. FÁBRICA DE FIAÇÃO Ainda na companhia do taxista tentamos ter mais sorte, mas sem uma morada procurar uma fábrica parece tarefa complicada. Após questionar muitos transeuntes, por fim explicam-nos o local e daí rapidamente nos encontramos no pátio com a anuência do porteiro. Estamos na Fábrica de fiação de seda Hua Lin (华灵丝绸有限责任公司) situada na rua Fengming Oeste e como encantados pelo canto da fénix, saímos do táxi. Sem saber por onde ir, com um gesto de ombros tentamos pôr o taxista a colocar-nos em contacto com alguém da fábrica, pois o pátio está vazio. Inquirido o porteiro, este indica um prédio cujas escadas nos leva à parte da Administração. Apresentando a demanda até agora feita, logo nos concedem uma visita à fábrica. A sorte está do nosso lado, pois esta dedica-se a comprar os casulos e a partir deles desenovelar os filamentos criando um fio que bobinado é colocado em meadas. O trabalho é todo feito por máquinas manuseadas por experientes funcionários. Logo à entrada do primeiro edifício sentimos um bafo de calor ao aproximar de uma máquina onde por cima dela, numa placa suspensa em varanda, imensos e enormes sacos com casulos esperam a vez para serem despejados por um funcionário num tapete rolante compartimentado. Num rápido olhar faz uma primeira triagem, retirando os sem condições. Daí caem para um recipiente com água quente e em banho são transportados para outra parte da máquina, onde se procede à secagem dos casulos com as crisálidas ainda dentro, mas mortas pelo calor. De novo se realiza uma ligeira selecção para retirar fios soltos, ou um ou outro casulo manchado e os impróprios. Outro funcionário, a operar entre máquinas, recolhe-os e passam para baldes plásticos transportados em pequenos grupos para outra máquina. Os casulos já menos compactos e o filamento mais solto por a sericina se ter diluído, encontram-se de novo em água quando um disco passa sobre eles e com a ajuda de outro disco a girar com três pequenas vassouras lhes vai apanhando o início dos filamentos. Uma funcionária agarrando as pontas enfia-as por os vários orifícios de uma peça, e em grupos de sete são com uma pequena torção automaticamente enrolados nos carretéis num único fio de seda para o tornar resistente. Enquanto estão a bobinar para os carretéis, a empregada vai controlando para substituir os filamentos partidos, ou quando estes acabam retirar a sobra dos desfiados casulos e colocar outros para manter o número de sete filamentos e assim criar um longo fio. O compartimento move-se lentamente para outra secção da máquina, deixando um novo espaço para os seguintes serem tratados por a funcionária, que repete a operação anterior. Os carretéis são retirados ao atingir o tamanho desejado de fio e passam para outra máquina onde de novo o fio é rebobinado para lhe criar uma uniformidade. Esse processo de cruzamento e retorção, denominado torcedura, leva o fio a ser transferido de bobina para bobina, movendo-se com diferentes velocidades para retirar o excesso de humidade e ter o grau de torcedura pretendido para tecer diferentes tecidos. Depois os carretéis são colocados noutra máquina que repassa o fio para tambores formando assim as meadas. Em cada hexagonal tambor, feito com seis varas de madeira, são dobadas cinco meadas e retiradas da máquina são levadas para a terceira secção da fábrica. Em grupos de cinco as meadas são atadas uma a uma antes de retiradas do tambor, que por um sistema de alavanca as liberta para por fim serem de novo torcidas, desta vez por uma funcionária. Por vezes aqui é usada uma escova especial para ajudar a desemaranhar os fios antes de empacotadas as meadas. Ficamos a saber esta fábrica produzir 150 toneladas de fio por ano, sendo um terço para exportação e dois terços vendidos às fábricas chinesas de tecelagem. Saindo do edifício, no chão do pátio vemos bocados de seda oriundos dos restos de casulos e ao lado, cobertos por um enorme plástico, milhares de crisálidas mortas esperam ser recolhidas para serem transformadas em farinha pois rica em proteínas, servindo ainda como ração para os animais ou fertilizante para a terra. Satisfeitos, pedimos ao taxista para nos deixar no centro de Tongxiang, pois queremos conhecer um pouco da cidade. VISITA A UMA SIRGARIA Passamos por um canal onde o tráfego de embarcações de carga nos faz lembrar os caminhos de água do Grande Canal e deambulando por o mercado encontramos algumas esplanadas como salas de chá de rua. No centro, novos bairros ocupam os lugares dos antigos quarteirões demolidos e baixos prédios ganham o espaço. Já o comércio de roupa de marca disputa as lojas, demonstrando uma vitalidade económica. Após uma hora a caminhar, resolvemos partir e por isso procuramos um táxi para de novo nos levar ao terminal de autocarros. Na postura damos com o nosso conhecido motorista. Tinha já feito algumas corridas e ali está agora para de novo nos transportar. Tentamos explicar querer ir apanhar o autocarro para Hangzhou, no local de onde com ele partíramos oito horas atrás. O caminho é longo e com a prática no comunicar entre ambos, vamos subentendidamente falando, dizendo-lhe termos visto na parte final da viagem de autocarro, já próximo de Tongxiang, um quase certo lugar de produção de bichos-da-seda. O caminho já vai longo e resolve meter gasolina. Estranhamos, mas nada dizemos, pensando se teria percebido querermos ir com ele até à capital da província. Pouco depois, avistamos a casa onde anteriormente passáramos na viagem de autocarro desde Hangzhou e reparado nos instrumentos ligados à sericicultura a secar ao Sol. Pedimos para meter o VW-Santana por uma picada e chegamos ao pátio da casa. A porta do que será a garagem está aberta e dentro esticado numa espreguiçadeira um homem dos seus cinquenta anos. O taxista de novo explica o nosso interesse e com agrado somos convidados a entrar. Num canto da ampla e asseada divisão, despida de utensílios e mobiliário, apenas redes plásticas com espaços quadrados a servir de local para as muitas lagartas edificarem o casulo. Agora sim, o trabalho está feito e ainda nos são dados uns quantos casulos para levar.
Ana Cristina Alves Via do MeioA dança do leão (舞獅 wǔ shī ) A dança do leão (舞獅 wǔ shī ) diz-se em patuá antigo “brinco do leão” pode ser realizada por um ou dois acrobatas, acompanhados por gongos, címbalos, bátegas e tambores do leão ou tímbalos, ao som de panchões, bombas e fogo- -de-artifício, representando este último uma chuva de boa sorte. O leão é um guardião, variando a simbologia da sua máscara, conforme a cor. A máscara vermelha representa a coragem, a dourada, o vigor e a verde a amizade ou benevolência. A dança do leão é comum a muitas culturas asiáticas, incluindo a japonesa, a vietnamita e a tailandesa. Segundo a Baidu Baike, podemos dividir os leões em dois grandes tipos, à maneira dos mandarins: leões letrados ou culturais (文獅 Wén shī) e leões marciais (武獅Wǔ shī), correspondendo às escolas budistas do Norte e do Sul, as principais danças deste felino. Recorde- -se que na Escola do Norte, a iluminação é gradual, implica estudo e dedicação ao saber, à maneira de uma escola tomista ocidental; já no Sul, como se de seguidores agostinhos se tratasse, a iluminação é súbita, e muito mais emotiva, implicando, por vezes, gestos repentinos e choques como gritos, palmadas, etc. Mais do que no saber discursivo, concentra-se na apreensão intuitiva da realidade. Siga-se este diálogo ocorrido entre o monge Chan, Hongbian (弘辯) , retirado do quarto tomo de Junção das Fontes das Cinco Lâmpadas 《五燈會元》, mais concretamente dos Diálogos de Hongbian, neste caso com o imperador Xuan da Dinastia Tang (唐宣), intitulado “Não há divisão entre o Norte e o Sul na escola Chan/禪門本無南北” , que será apresentado na versão original, seguindo-se a respetiva tradução explicativa do surgimento destas duas escolas: 唐宣宗問:「襌宗何有南北之名?」對 曰:「襌門本無南北。昔如來以正法眼 付大迦摩葉”,展轉相傳,至二十八祖 菩提達摩,來遊此方為初祖。 暨第五 祖弘忍大師在蘄州東山開法,時有二 弟子,一名慧能,受衣法,居嶺南為六 祖;一名神秀,在北揚化。其後神秀門 人普寂者,立秀為六祖,而自稱七祖。 其所得法雖一,而開導發悟有頓漸之 異,故曰南頓北漸,非禪宗本有南北之 號也。 「 (弘辯語錄,引自《五燈會 元》卷四 Apud Jiang, 1997: 192) O imperador Xuanzong da dinastia Tang perguntou o seguinte ao Mestre Chan Hongbian: “Por que razão se dividem o Budismo Chan nas escolas em Dança do Leão do Norte e do Sul?” Ao que o Mestre retorquiu, “Não há qualquer divisão originária entre Norte e Sul. No início Buda transmitiu os seus ensinamentos ao discípulo Mahakashyapa, que foram passando de geração em geração até ao 28º patriarca Bodhidharma, o qual viajou até aqui para se transformar no Primeiro Patriarca Chinês. À época em que o Quinto Patriarca Hongren ensinava em Qizhou, na região de Dongshan, tinha dois discípulos, um chamado Huineng, que herdou o manto de mestre. Este viveu no Sul da China em Lingnan, vindo a ser o Sexto Patriarca; o outro, chamado Shenxiu pregou no Norte da China, tendo sido estabelecido como o Sexto Patriarca por um dos seus discípulos, Puji, que a si mesmo se intitulou o Sétimo Patriarca. Ambas as escolas seguem a mesma doutrina, advogando métodos diferentes para se alcançar a iluminação, que na Escola do Norte é progressiva, enquanto na do Sul é repentina. Porém, quanto ao Budismo Chan não há divisão de raiz entre o Norte e o Sul.” Este enquadramento é necessário para se compreender as Danças do Leão do Norte e do Sul. No Norte, os leões parecem cães pequineses ou de Fu (cão de Buda, 佛狗 Fó gǒu), surgem aos pares com máscaras de tons laranja e amarelo, os machos, com arco verde na cabeça, as fêmeas com um vermelho: vão realizando acrobacias para diversão e entretenimento, de arte pela arte, como fazer cócegas, lamber pêlos, coçar orelhas e bochechas, rolar e brincar com a bola, que é a pérola mágica, figurando, desde tempos imemoriais, tanto o disco solar, como o lunar. Por vezes, surgem em família, 2 adultos, 2 crias, em “Lar da Dança do Leão” (獅子之鄉 Shīzǐ zhī xiāng). Já na Dança do Sul são introduzidos movimentos de grande perícia acrobática, implicando as artes marciais e, estas, relações ao mundo da religião budista Chan. É bom não esquecer que mais do que divisões geográficas estão aqui em causa enquadramentos religiosos, não obstante se acreditar que há uma íntima relação entre a Dança do Sul, bem mais simbólica, e a província de Guangdong, onde terá surgido, tal como o sexto Patriarca Huineng, ligado ao Sul. Esta dança subdivide-se em dois grandes tipos: fut San/fó shān (佛 山Montanha do Buda), onde predomina a cor negra, e Hok San/hè shān (鹤 山Montanha do Grou), de cor amarela, entre outros subgéneros como Fut- -Hok/fó hè (佛鹤). Os leões das duas principais escolas, explica o antropólogo António Pedro Pires, “são ambos de modelo tigre, com grande policromia” (2018: 237). O leão chinês terá de despertar (醒狮 xǐng shī), sendo convidada uma individualidade local para acordar o leão, como esclarece a professora Ana Maria Amaro na obra Brinco do Leão (1984), quando os olhos e a língua são pincelados com cinábrio, de seguida ele lança-se à caça do tesouro, a fim de atacar e conquistar a presa e o envelope vermelho, o laisi (利是), ao obtê-lo bate cabeça em sinal de agradecimento e retira-se vitorioso. O Leão, quando entra numa vila ou domínio, presta primeiro homenagem ao templo budista local, aos ancestrais e depois anda pelas ruas para espalhar a boa sorte e a felicidade por entre a população e os negociantes, como no Ano Novo chinês quando “colhe verduras” choi chang (採青), ou seja, envelopes vermelhos pendurados em alfaces. A dança do leão não pode faltar por ocasião de todas as grandes celebrações, a começar, como já se referiu, pela Festa 獅子舞 (shī zi wǔ) da Primavera, mas também ao longo do ano em inaugurações de hotéis e outros estabelecimentos comerciais; encontramo-lo, ainda, presente em congressos e exposições, bem como em receções oficiais e para homenagear gente ilustre. Com a divulgação do Budismo na China, foi introduzida na Festa da Primavera, a Dança do Leão (“舞狮”), com o objetivo de afastar maus espíritos e calamidades e de trazer boa sorte e fortuna às populações locais. A entrada desta dança na vida palaciana remonta à dinastia Tang (618-907), tornando-se componente importante das celebrações na corte. Recorda António Pedro Pires, em Festividade do Ano Novo Lunar em Macau, que o felino seria “transformado em símbolo de realeza, força e poder e assumido pelo Budismo como seu totem protetor, o leão rapidamente se transformou num poderoso afugentador de demónios” (…) possui portanto uma função de divertimento e outra mágico-religiosa, como libertador dos espíritos maléficos causadores de doenças, tempestades e inundações. (Pires, 2018: 243). Da realeza, força e poder do leão fala a sua etimologia, já que o sinograma escolhido para o representar, 獅 (shī), possui junto ao radical de animal 犭(quǎn), o de mestre (師shī ), preceptor ou chefe. Segundo Ana Maria Amaro, há ainda uma outra leitura etimológica possível, a de “que a palavra leão se relacione com a figura do seu domador, mestre em artes” (1984: 17), sendo possível, segundo a autora, defender até com base nestas duas leituras, que as danças do Norte e do Sul são diferentes na sua origem, a do Sul posterior à do Norte. Esta última remontará talvez à dinastia Han (séc. III a.C e séc. II. d.C), inspirada em domadores estrangeiros das estepes ocidentais, que levariam os seus espetáculos à corte chinesa, ao passo que a do Sul estaria diretamente conectada ao Budismo Chan e aos monges de Shaolin (少林) , portanto às artes marciais e à iluminação repentina, sem necessidade de outra ascese que não as práticas corporais apropriadas, concentradas no exercício físico, na respiração e na meditação silenciosa. (Amaro, 1984: 177) Na minha opinião, a Dança do Leão deve ser perspetivada na ótica do Budismo Chinês, tanto nas danças do Norte como nas do Sul, já que é relativamente fácil encontrar semelhanças de postura entre os exercícios acrobáticos do Norte, que implicam muitas piruetas e brincadeiras em mesas empilhadas e pódios em que o animal se movimenta, ora subindo, descendo ou saltando, como se fossem exercícios graduais e académicos da inteligência discursiva, própria da Escola do Norte; aproximando-se a dança do Sul de carácter religioso, desprendido e marcial à congénere budista do Sul. Em Macau, esta dança é, ainda realizada no âmbito da religião popular, em comemoração de certas divindades muito veneradas, como o Deus da Literatura e da Guerra, (關帝Kuan Tai/ Guāndì), o Deus da Terra, (土地公Tou Tei /Tǔdìgōng) e a Padroeira dos Mareantes (娘媽Néong-Má/ Niáng Mā). O certo é que os leões, bem como as suas danças, ficarão para sempre associados à figura do Buda Histórico, Shakyamuni, que tal como o epíteto indica é “O Sábio do Clã dos Shakyas”, este teria tido como figura totémica um leão, tendo o Buda Histórico emitido um rugido aquando do seu nascimento, de acordo com os sutras budistas. Seguiram-se depois os shīzi (獅子), talvez, os filhos de mestres superiores ou budistas (Amaro, 1984:17), que quando dançam devem, de acordo com os registos do Budismo Chan, sacudir pulgas, de modo a não serem contaminados por estas e outras poeiras do mundo, afastam assim o negativo, atraindo o positivo e a boa sorte para todos, de acordo com um dos Diálogos de Zhicang (智藏), retirado do terceiro tomo de Junção das Fontes das Cinco Lâmpadas 《五燈會元》”As pulgas do Leão comem a sua carne/狮子身中蟲,自食狮 子肉” (Jiang, 1997:134) 師普請次,曰:「因果歷然,爭奈何! 爭奈何!」時有僧出,以手托地。 師 曰:「作什麼?」 曰:「相救!相救! 」師曰:「大眾,這個師僧猶較些子。 」僧佛袖便走。 師曰:「獅子身中蟲, 自食獅子肉。」(智藏襌師語錄, 引自 《五燈會元》卷三) Enquanto o bonzo Chan Zhicang trabalhava com os restantes confrades, disse: “É claro que temos que pagar pelas nossas faltas, mas como o faremos? Mas como o faremos?” Foi então que um monge se adiantou, sacudindo as mãos para o chão. O Mestre inquiriu: “O que estás a fazer?” Ao que ele gritou: “Socorro! Socorro!” O Mestre disse: “bonzos, é correto o que ele está a fazer.” O monge endireitou as mangas e partiu. Ao que o mestre Chan acrescentou: “As pulgas do leão, comem a sua carne.” Pode-se então encarar as várias danças do leão na China à maneira budista como uma forma de libertação das múltiplas pulgas que afligem o corpo do animal, que ao brincar, pular e guerrear, corre em busca de um tesouro que implica sorte e prosperidade para toda a comunidade. Referências bibliográficas • Amaro, Ana Maria. 1984. O Brinco do leão. Macau: Direcção dos Serviços de Turismo. • 百度百科2020狮子舞[shī zi wǔ] https:// baike.baidu.com/item/%E7%8B%AE%E 5%AD%90%E8%88%9E/891685 • Jiang, Lansheng (江蓝生). 1997. 《 禪宗語錄一百則》100 Excerpts from Zen Buddhist Texts. 香港:商務印書館. • Pires, António Pedro. 2018. Festividade do Ano Novo Lunar em Macau. Macau: Instituto Cultural do Governo da R.A.E. de Macau. • Wikipédia. 2024. “Dança do Leão” https://pt.wikipedia.org/wiki/ Dan%C3%A7a_do_le%C3%A3o
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO rolo consolador que Wang Ximeng fez para Huizong Su Shi (1037-1101), no seu desassossego natural de poeta que, transbordando, deu forma a toda a sua actividade como funcionário imperial e político, envolveu-se de modo empenhado nas grandes polémicas do seu tempo. Referindo-se criticamente às Novas políticas (Xinfa) do seu adversário Wang Anshi (1021-86) cuja repetida oposição lhe haveria de custar o exílio, escreveu o poema: Como poderia não haver falta de comida ou secas? Os altos funcionários e as suas políticas carecem de mérito. Quando se perde a noção adequada de governar, desastres ocorrerão. Nenhum deles sabe como se auto-analisar. Quando chove, rezam por céus limpos, Quando há uma seca, desejam a neve. Essa relação entre a acção humana e o clima desfavorável, entendido como um «castigo dos céus», estava no centro de uma estupefacção sentida por todos os que habitavam aquela região naquele tempo, um fenómeno que hoje se conhece como Anomalia Medieval do Clima, que provocou súbitas alterações climáticas com consequências funestas na agricultura. O que era tanto mais grave quanto se entendia ser o imperador, através dos adequados rituais, o regulador do bom funcionamento da cadência das estações. Com a disrupção, mais se difunde um inquietante e supersticioso sentimento de instabilidade. Tendo ocorrido de modo especialmente gravoso durante a dinastia Song (960-1279) com o aquecimento entre 1100-1200, que atravessou o reino do imperador Huizong (1100-26) o monarca esteta, pintor e poeta, adequou a sua resposta à adversidade à expressão artística, encorajando quem lhe mostrava indícios de possibilidade, sinais auspiciosos. Um deles foi o alto funcionário Cai Jing (1047-1126) que o tranquilizaria sobre outro fenómeno tido como não auspicioso; o alinhamento de cinco planetas que foi interpretado como um potencial de desastres. Cai Jing, súbdito erudito recorreu à memória: Os cinco planetas movendo-se em uníssono no céu, é uma visão auspiciosa significando um futuro de grande paz. O vosso servo recorda que, de acordo com a História dos Han, quando o império alcança grande calma e tranquilidade, os cinco planetas estavam alinhados e obedeciam à regra (…) O nome de Cai Jing aparece numa pintura invulgar, encomendada por Huizong, feita por um jovem chamado Wang Ximeng (1096-1119) de quem não se conhecem outras obras. No extenso rolo horizontal de 1113, Mil li de rios e montanhas (tinta, cores sobre seda, 51,5 x 1193 cm, no Museu do Palácio, em Pequim) Wang usou o azul e o verde (qinglu), cores ligadas à busca da imortalidade, para pintar o panorama do monte Lu e do lago Poyang, em Jiujiang. Huizong podia olhar as seis vistas sucessivas de montanhas, ligadas por pontes ou cursos de água, e tranquilizar-se naquele ritmo reconfortante que Cai Jing diz ser o seu aspecto em Abril, indicando prosperidade no ano seguinte.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA conversação ambígua encenada por Gu Kaizhi Zhang Hua (232-300), que foi político e poeta durante a dinastia Jin Ocidental, foi também autor de uma obra singular, o Bowuzhi, «Registo dos mais diversos assuntos», que recolhe uma plêiade de desconformes conhecimentos; desde as observáveis maravilhas da natureza até à enumeração de anomalias ou histórias sobrenaturais, do género literário zhiguai. Entre esses relatos está, por exemplo, a descrição de uma comunidade de «mulheres selvagens», as Yenu, que viveriam isoladas no Sul e sem o acompanhamento de homens. E se não foram estas, outras mais refinadas mulheres ocuparam o seu espírito de forma constante ao longo da sua vida. De modo significativo o seu destino político ficaria ligado a uma ambiciosa mulher, a rainha Jia Nanfeng (257-300) que reinaria «por trás dos biombos» no lugar do seu marido o imperador Huidi (290-307) que teria dificuldades intelectuais. Seria através dela que ele viria a ser nomeado para o influente cargo de ministro no Departamento de obras públicas (Gongbu). Da relação entre os dois terá nascido uma série de poemas sob o título Advertências da instrutora do palácio para as senhoras da corte, escrito como vários dos seus poemas a partir de uma voz feminina, e que teria a intenção de refrear o carácter excessivo da rainha. Esses poemas de intenção didáctica estão na origem de um dos mais célebres rolos horizontais na aurora da pintura de ilustração narrativa, tradicionalmente atribuído a Gu Kaizhi (345-406). Dessa pintura, Nushi zhen tu, existem hoje duas cópias; uma no Museu do Palácio em Pequim e outra no Museu Britânico (tinta e cor sobre seda, 25,5 x 377,9 cm) com algumas diferenças no número de cenas e na execução. Nelas se notará como os caracteres inscritos ao lado das pinturas silentes, contêm avisos eloquentes. O que é especialmente evidente numa das cenas que só consta do rolo do Museu Britânico. Gu Kaizhi mostra aí uma situação íntima quando um imperador se senta para conversar com uma concubina na sua alcova. A forma negligente como os dois se apresentam reforça uma impressão de hesitação e ambiguidade: ela com um braço apoiado no espaldar da cama, ele com um pé descalço, o outro ainda meio calçado, nada é evidente. Ao contrário das palavras precisas que, como em todas as outras cenas do rolo, seriam depois nele inscritas com o texto poético de Zhang Hua, que dizem: Se aquilo que disseres for por bem, as pessoas poderão entendê-lo à mais longa distância. Se este princípio for atacado, então até mesmo o teu companheiro de cama olhará para ti com desconfiança. As duas formas paralelas de expressão, trocando as suas vocações, ajudam naquilo que Zhang Yanyuan (c.815-c.877) descreveu: Ao concentrar o espírito e a meditação profunda entende-se o que existe por si só; esquecem-se ambos, a coisa pintada e o ego, a realização separa-se da forma.
José Simões Morais Via do MeioSegredos da seda (17) – Construção do casulo e a crisálida Até aqui, os conhecimentos sobre a seda resumiam-se ao Museu da Seda de Hangzhou e por isso decidimos ir a Tongxiang (桐乡), no distrito de Jiaxing (嘉兴) ainda na província de Zhejiang, visitar locais de produção e as muitas fábricas de transformação dessa fibra. Para aí chegar, duas horas de autocarro partindo do terminal Oeste de Hangzhou e durante a viagem, já próximo do destino, pela janela descortinámos ao Sol no pátio de uma casa de campo instrumentos usados pelos sericicultores e à frente, um pequeno amoreiral podado. No terminal de Tongxiang, a uns bons quilómetros do centro da cidade, mostramos o caractere de seda (丝绸) a um taxista, que sem nos perceber questiona o polícia de serviço e ali procuramos dar a entender o pretendido. Após a adição do caractere fábrica (工厂) chegam a acordo e o taxista logo se faz à estrada. Passando o centro, segue para Sul onde se encontra a parte industrial. Em frente ao portão de uma fábrica, o taxista prepara-se para nos deixar. Percebendo o quão longe estamos do centro da cidade e sem táxis à disposição, sabendo já este condutor o nosso interesse dizemos-lhe pretender com ele continuar e assim alugamos o carro à hora. É período do almoço e o sinal sonoro da fábrica apita. Dois homens passam e abordamo-los sobre a possibilidade de a visitar. Como não nos entendem, o taxista explica-lhes o que queremos. Levam-nos ao escritório onde somos apresentados ao patrão e após trocar umas palavras com o responsável máximo, este leva-nos a visitar uma ala da fábrica, onde as máquinas trabalham sozinhas na feitura do tecido de seda. Aqui apenas se tece a gaze! Tentamos obter permissão para visitar outros edifícios, mas com a pressa de ter de ir a casa almoçar, rapidamente parte sem mais explicações, deixando-nos à saída da fábrica. O taxista, percebendo o nosso ar desconsolado pela cara que apresentamos, chama-nos para dentro do VW-Santana, onde o ar condicionado está a todo o vapor e leva-nos a um depósito, onde os agricultores vêm descarregar grandes sacos de casulos. O FILAMENTO DA SEDA Procurávamos perceber como é criada a fibra da seda, depois de ver a lagarta agarrada a uma tenra folha de amoreira com as unhas das patas [situadas aos pares em cada um dos três anéis que formam o tórax] a acompanhar o movimento da cabeça, enquanto aos lados da boca as mandíbulas trituram as folhas. Segundo uma tabela do princípio do século XX, nos primeiros quinze dias de vida da lagarta são as folhas dadas seis vezes ao dia (às 6 e 10 horas da manhã e às 13, 16, 19 e 23 horas) e após a terceira muda, servidas às 4, 10, 16 e 22 horas. Constante é a necessidade de fazer o espaçamento ao longo do baixo e largo tabuleiro de verga, recolher as carcomidas folhas já impróprias para consumo e também a descamação. Quando no final dos quatro sonos e após sete a nove dias de alimentação, as lagartas deixam subitamente de comer, sendo preciso agora mudá-las dos tabuleiros para palha de arroz entrelaçada e ter cuidado com as distâncias, para os casulos não se enredarem. Acontece por vezes, por descuido do sericicultor, duas lagartas construírem-nos a tão curta distância que os fios se emaranham, complicando o trabalho de quem os fia. Uma rede plástica enrolada, com espaços propícios à construção dos casulos, é actualmente utilizada em muitas sirgarias. Em Freixo de Espada à Cinta, Trás-os-Montes, usam-se ramos de arçã (rosmaninho) para a lagarta fazer o casulo. Em Suzhou, vemos velhas caixas de papelão, com divisórias à medida do casulo, arrumadas a um canto do Museu de Seda. O alimento, que serve para fazer crescer a lagarta, é transformado por acção glandular em líquido proteico, composto por 18 aminoácidos que formam, na secção posterior das glândulas da seda, a fibroína. Esta é o constituinte principal da seda natural, sendo produzida por duas glândulas sericígenas tubulares, longas e volteantes situadas nas partes laterais anteriores do abdómen da lagarta. Os dois canais laterais juntam-se num compartimento mais largo, na parte média do abdómen e os dois filamentos compostos pela fibroína são envolvidos por uma substância gomosa, a sericina, um líquido glandular. Já num único filamento é expelido por um tubo situado na parte inferior da boca e quando exposto ao ar endurece, tornando-se resistente. A lagarta ao girar vai-se envolvendo nele e construir o casulo. O filamento da espessura de um cabelo pode atingir de 700 a 1200 metros de comprimento e é constituído por 75 a 78% de fibroína e 22 a 25% de sericina. Visto ao microscópio, é composto por dois filamentos finos paralelos colados entre si, revelando em corte transversal ter uma forma triangular. O CASULO E A CRISÁLIDA A lagarta ao girar vai com um único filamento durante três a cinco dias envolver-se e fechada num compartimento constrói o casulo, de cor creme, amarelada ou branca, cimentado com a ajuda da goma. À medida que esvazia todo o líquido proteico e glandular na construção do casulo, o seu corpo diminui de tamanho. A formação do casulo inicia-se pela movimentação da cabeça a libertar uma baba, criando uma cadeia de pontos de apoio em diferentes planos para montar uma teia a definir o volume. Essa baba forma um filamento, no início pouco homogéneo e consistente, – conhecida por anafaia e por isso não utilizado na fabricação de tecidos finos – mas à medida que o casulo se vai estruturando, o filamento conquista uniformidade e já com um ritmo regular nos movimentos da cabeça cria uma disposição em fiadas sucessivas e paralelas que, acamadas, preenchem a forma ovalada do casulo. A construção do casulo demora normalmente de três a cinco dias e atinge os quatro centímetros pela parede exterior, onde a Bombix mori passa entre catorze e vinte dias. No interior do casulo, abrigo resistente e isotérmico, a lagarta prepara o compartimento onde durante aproximadamente três semanas vai com a perda de peso e tamanho sofrer metamorfoses. Cinco a seis dias após terminar o casulo inicia a transformação, primeiro até crisálida e quatro a cinco dias depois para mariposa (borboleta). A metamorfose em crisálida começa com a lagarta a descartar a camada que a envolve, diminuindo de tamanho devido à perda de água e daí os anéis do peito transformam-se numa carapaça a cobrir a cabeça. No tórax da lagarta, as seis patas, verdadeiras pois articuladas, continuam a existir na crisálida. Já no abdómen, apesar da sua redução, os anéis mantêm-se distintos, ganhando o corpo uma forma oval alongada, agora revestido por um líquido viscoso. Assim está formada a crisálida, cuja cor é de um castanho avermelhado. No quarto, quinto e sexto anel apercebem-se vestígios do que virão a ser as asas. O casulo após terminado tem a massa de dois a 2,5 gramas pois contém ainda a crisálida, mas descontando esta, varia entre 0,4 a 0,5 gramas. Antigamente a produção de casulos realizava-se cinco vezes ao ano: na Primavera, entre o mês de Maio e Junho; no Verão, entre Junho e Julho e três vezes no Outono. Hoje faz-se durante todo o ano. Os casulos produzidos em diferentes partes do mundo têm diferentes formas e cores. Os casulos chineses são ovais, longos e espigados, enquanto os produzidos pelos japoneses são delgados na cintura e os europeus ligeiramente cintados. A maioria dos casulos são brancos, mas também os há amarelos e verdes e hoje em dia, com a ajuda da biotecnologia, produz-se casulos coloridos de muitas cores e de grande qualidade. Em todo o processo, a temperatura ambiente é determinante e, por isso, os períodos de tempo variam, é muito diferente se for realizado na China ou em Portugal. As lagartas na Tailândia, devido ao calor, apenas produzem de quinhentos a seiscentos metros de filamento por casulo, mas na China e no Japão, estes envolvem-se em cerca de mil e duzentos metros de um único filamento. Como os casulos se querem inteiros, para haver um bom fio de seda, antes da crisálida se transformar em mariposa, interrompe-se o ciclo da Bombix mori.
Ana Cristina Alves Via do MeioExercícios de tradução em torno da poesia amorosa chinesa No mês da Primavera falemos de amor, e quem melhor para o fazer do que os poetas? Não quaisquer poetas, mas sim os da idade de ouro da poesia chinesa, aqueles que viveram na dinastia Tang (唐,618-907), grande em tudo, mas sobretudo no encontro de culturas e na poesia. Pela sua capital, Chang´an (长安) passeava-se todo o tipo de gente, nacionais e estrangeiros, incluindo estudantes. Eram tantos os que acorriam à capital chinesa que o governo Tang criou gabinetes especiais para acolher os residentes internacionais. Esta dinastia foi a única tão aberta e liberal, a viabilizar a chegada ao poder de uma imperadora, Wu Zetian (武则天, 624-705), e conheceu grandes imperadores como Xuanzong (玄宗皇帝, 685 762). É a dinastia de Li Bai (李白,701-762), Wang Wei (王维,701-761), Du Fu (杜甫,712-770), Bai Juyi (白居易,772-846) e tantos outros ilustríssimos poetas que entoaram as alegrias e penas do amor como este merecia ser cantado. Nesta idade de ouro literária, há, como em tantas outras manifestações artísticas, um estilo antigo gutishi ou gufeng (古体诗gǔtǐshī ou 古风gǔfēng) e um estilo moderno jintishi ou gelüshi (近体诗 Jìntǐshī ou 格律诗gélǜshī), sendo o mais moderno característico da dinastia Tang, onde abundam quadras de 5 ou 7 caracteres, denominadas jueju (绝句Juéjù), sendo as quadras de cinco caracteres as wujue (五绝wǔjué) e as de sete caracteres as qijue (七绝qījué), há ainda uma outra forma poética popular constituída por poemas de 8 versos, os lüshi( 律诗lǜshī), também eles de 5 caracteres, os wulü (五律Wǔlǜ)ou de 7 caracteres os qilü (七律Qīlǜ ), seguindo esquemas rimados rigorosos, em que normalmente as sílabas finais rimam. Nas estrofes de oito versos, é habitual as 2ª, 4ª, 6ª e 8ª linha rimarem, ao passo que nas quadras são os 2ºs e 4ºs versos, incluindo por vezes o primeiro verso, sem que tal seja um requisito obrigatório. A rima pode ainda incluir jogos tonais, com alternância entre o 1º e o 2º tons, por um lado, e o 3º e o 4º por outro. Nos lüshi é frequente que os 3ºs e 4ºs versos entrem em relação complementar ou antitética com os 5ºs e os 6ºs. Com a utilização destes recursos estilísticos, no fundo o que se pretende, como nos explicam Wang Guozhang e Wang Anlu (1995, 143): “é tornar os poemas musicais, encantadores, fluentes e fáceis de ler em voz alta” Recorda-nos Zerbo Freire na sua tradução das Quadras Chinesas (2022) que a poesia Tang conheceu vários períodos, um inicial (618-713) sob a influência da Dinastia do Sul (420-589) repleto de sensibilidade e leveza, seguido de um período ascendente (713-766), no qual o desenvolvimento económico e cultural da dinastia se repercute em vários estilos poéticos e temáticas, encontrando no mesmo período, poetas “românticos” como Li Bai e realistas como Du Fu, ou de espírito ecológico como Wang Wei. Há ainda um período médio (766-836) onde desabrocham vários estilos individuais e um período de declínio (836-907), no qual a poesia acompanha a instabilidade dos tempos, provocada pelas guerras e crises políticas, que Bai Juyi, por exemplo, pôde experimentar. Certo é que em todos estes períodos foi cantado o amor, correspondido, perdido, achado, distanciado, desaparecido, renovado, abandonado, fatal. Enfim, qualquer expressão amorosa pôde encontrar eco no sentimento fixado na escrita dos poetas, que tão bem souberam apresentar as tonalidades do coração humano. Comecemos por um poema de Wang Wei, poeta do período ascendente, nascido numa família de mandarins, mas que teve alguns reveses na sua carreira oficial pelo que optou por terminar os seus dias em retiro, enquanto meditava sobre o sofrimento e transitoriedade do mundo, apoiando-se nas escrituras budistas e dedicando-se na sua eremitagem à pintura. Como era um bom pintor, conseguiu conjugar com grande mestria poesia e pintura, angariando fama na tradição chinesa de pintar poeticamente e realizar uma poesia pictórica. (Foreign Language Press, 2008: 109) Em muitos casos, pode-se pensar no amor terreno como uma flor, dura pouca, desponta, é belo e murcha, ou pior, desparece deixando os amantes infelizes, muito embora seja uma maravilha enquanto dure, mas Wang Wei nesta quadra de cinco caracteres recorda o quanto faz sofrer, já que nos traz uma mulher que chorou sob uma árvore até morrer, após ter perdido o marido em combate, tendo das suas lágrimas em contacto com a terra despontado a ervilha do rosário, abrus precatorius, que é vermelha e redonda: 相思 红豆生南国, 春来发几枝? 愿君多采撷 此物最相思 (Freire, 2022: 22) Apresento a minha tradução: Saudoso padecer Nas terras do Sul cresce a ervilha do rosário, Quantos ramos despontaram na primavera? Colhe até mais não poder, Eis o meu saudoso padecer. Ainda que não pertença à dinastia Tang, não resisto a apresentar, como complementar a esta quadra, um dos mais belos poemas de amor chineses. Este pertence a Su Dongpo (苏东坡), heterónimo que significa “A Encosta do Leste”, tendo como nome próprio Su Shi (苏轼, 1037-1101). Foi um poeta da dinastia Song (宋朝, 960 – 1279). Este mandarim teve uma carreira oficial muito problemática, porque, como nos recorda Graça de Abreu em Su Dongpo, Poemas (2023: 20) foi honesto e tolo, esquecendo-se de aplicar a si próprio a máxima confucionista de dizer a verdade, mas não toda. Tal imprudência valeu-lhe o epíteto de “Mandarim nómada”, já que passou grande parte da vida a viajar, impelido pelos ventos que sopravam contrafeição da corte. Eis ao poema de 8 versos e sete caracteres, qilü (七律) em memória da sua terceira mulher, 王朝云(1062年—1096年)deixando o poeta cá na terra sempre triste: 《悼朝云》 苗而不秀岂其天,不使童乌与我玄。 驻景恨无千岁药,赠行惟有小乘禅。 伤心一念偿前债,弹指三生断后缘。 归卧竹根无远近,夜灯勤礼塔中仙。 Em Memória de Zhaoyun Se o broto não for excelente como poderá ser digno do Céu? É para mim um mistério tanta virginal pureza. Ofereço-me a pequena via do meditar, Por não encontrar na paisagem remédio para o meu mal. Pago um karma passado com tristeza, Em futuro de terceira vida interrompida, Regresso ao repouso da próxima e distante raiz do bambu, No templo à noite, presto culto diligente à bela imortal. Bai Juyi, que já viveu nos tempos conturbados da dinastia Tang, foi um mandarim, erudito e eremita, dedicado aos estudos do budismo e do taoismo, que sabia amar a vida. Ele, como refere António Graça de Abreu em Poemas de Bai Juyi foi o poeta mais no coração do povo chinês” (1991: 13). Apresenta uma das mais belas canções de amor da dinastia Tang, triste já que relata os amores fatais do imperador Xuanzong pela concubina, Yang Guifei (楊貴妃, 719-756). Esta intitulada 《长恨歌》foi traduzida para português por Graça de Abreu sob o título de “Canto do Remorso Perpétuo” (1991: 78-84). O amor foi fatal a ambos, porque o imperador negligenciou os assuntos do império em benefício da companhia da concubina. Coincidindo o romance com o início das turbulências na dinastia Tang, mais especificamente, com a revolta do general An Lushan (安禄山), entre 755-763. Esta mergulhou o país numa guerra civil e o imperador viu-se obrigado a abandonar a capital, levando com ele Yang Guifei. Porém, as tropas amotinaram-se, pedindo a morte da amada do soberano, à qual atribuíam todos os males da China. Na sequência da morte da beldade, o imperador abdicou em favor do filho, passando o que restavam dos seus dias entre delírios e esperança de reencontrar a amada no reino dos imortais. Há mil e uma formas de amar, positivas e alegres, negativas e dolorosas, imaginadas, reais, mas todas sinalizam a presença do amor. Os versos destes grandes poetas sucedem-se, muitos deles dedicados ao amor triste, saudoso, abandonado, descurado e ressentido. Leia-se esta quadra de cinco versos que nos traz o amor não correspondido e o ressentimento que provoca, tão bem captado na sensibilidade poética, quando alguém gosta de uma outra pessoa, sem o/a excluídos possam entender a razão de tal opção, que nada tem de racional, já que se trata de sentimentos, genuínos na sua espontaneidade. Acompanhemos o eu poético proporcionado por Li Bai: 怨情 美人卷珠帘 深坐颦蛾眉。 但见泪痕显, 不知心恨谁。 (Freire, 2022: 29) Proponho a seguinte tradução: Ressentimento Beldade pregueada, entre cortinas, Alheada, de sobrancelhas franzidas, Embora note os vestígios de suas lágrimas, Desconheço quem lhe provoca as feridas. Ao queixoso não lhe basta amar, gostaria de ser amado, possivelmente para concretizar uma relação amorosa, desejada, que satisfizesse o seu coração, pelo que ao reconhecer a agitação da dama, lastima-se por não ser ele o alvo das atenções da amada. Daqui não se segue que Li Bai possua um eu poético ressentido, pelo contrário, era um espírito livre, cavaleiro errante, que pouco aqueceu o lugar na corte como redator da Academia de Hanlin, por não suportar os jogos de poder, inclinado a uma profunda comunhão com a natureza, à maneira taoista, o seu nome próprio Bai (白), “branco” mereceu-lhe o epíteto de Taibai (太白), que significa “muito branco” ou iluminado, relacionando-o com a Estrela da Manhã, o nome que os chineses encontraram para Vénus, que ele honrou à sua maneira, casando quatro vezes e vivendo com escassos bens materiais mas repleto de aventuras e riqueza espiritual. A Primavera é a estação do despertar de toda a natureza e, por isso, também dos sentimentos amorosos que um outro poeta Tang Liu Fangping (? – 782刘方平) descreve com subtileza associando-os com suavidade e discrição à brisa e ao luar primaveris: 《月夜》 更深月色半人家, 北斗阐干南斗斜, 今夜偏知春气暖, 虫声新透绿窗纱。 (Freire, 2022: 62) Sugiro a seguinte tradução para esta quadra: Noite de luar Noite alta, o luar, quase sem vivalma, As estrelas da Ursa Maior na sua trajetória bela, Noite inclinada à suave brisa de Primavera, Escutando os insetos cantando de novo junto à janela. O poeta Liu Fangping relata a vontade de amar que surge na primavera, nas noites de luar onde insetos e brisa dedilham as cordas sensíveis do eu poético, que encontra na natureza o seu parceiro amoroso, e não precisa de mais para sentir o calor das sensações a despontar tão juvenis como a quadra natural. Todos os poetas chineses aqui trazidos têm um traço comum, a subtileza sensível no canto amoroso, figurando-o com o auxílio de elementos naturais, seja a lua, as flores, os pássaros, particularmente os patos mandarim, que simbolizam a relação amorosa, ou as aves que entram em comunhão de alma com o eu poético, como os papa-figos, mensageiros de um amor distante, ou ainda outros seres mitológicos, as fénix. As declarações, as saudades, alegrias e amarguras nunca são apresentadas de uma forma direta, mas através dos elementos da natureza que melhor se conjugam com o sentir poético. Hoje, tempo de grande exposição de sentimentos, holofotes e espetáculo, poderá ser um bálsamo e um consolo para o mundo termos à disposição este reservatório poético clássico chinês, onde se pode comungar de pequenos gestos criativos que recordam e acompanham, com imenso gáudio, a paisagem primaveril do coração. Termino a partilha do amor de antigos poetas chineses com o homem de estado, poeta e letrado Tang, Zhang Jiuling (张九岭678-740), que expressa a saudade amorosa através de uma amada distante pela força das circunstâncias, comunicando os seus sentimentos em comunhão com a lua: 《望月怀远》 海上生明月,天涯共此时。 情人怨遥夜,竟夕起相思。 灭烛怜光满,披衣觉露滋。 不堪盈手赠,还寝梦佳期。 Pensando no Amado ao Luar A lua brilhante sobre o mar, Distantes, mas a partilhar o mesmo olhar. Sofrem os amantes com a separação, Toda a noite o mesmo penar no coração. Ao apagar a vela, surge a lua cheia apiedada, Envolta em roupa, sinto-a orvalhada, Sem conseguir ofertar uma mão cheia de lua, Regresso ao quarto, sonhando contigo de alma pura. Bibliografia Freire, Zerbo. 2022. Quadras Chinesas. Macau: Livros do Meio. Foreign Language Press. 2008. Quick Access to Chinese History. Beijing: Foreign Language Press. Graça de Abreu, António (Org. Trad. ). 1991. Poemas de Bai Juyi. Macau: Instituto Cultural de Macau. ______________1993. Poemas de Wang Wei. Macau: Instituto Cultural. ______________.2023. Su Dongpo, Poemas. Lisboa: Grão-Falar. Su Shi (苏轼). 2024.《悼朝云》(Em Memória de Zhaoyun). Baike.Baidu.com Wang Guozhang, Wang Anlu. 1995. 《唐诗60首今语浅译》. Sixty Annoted Tang Poems. Beijing: Sinolingua. Zhang Bingxing (Trad.). 2002. 英译中国古典诗词名篇白首 100 Best Chinese Classical Poems.北京:中华书局. Zhang Jiuling. 2024.《望月怀远》(Pensando no Amado ao Luar) Baike.Baidu.com
Hoje Macau Via do MeioVegetarianismo Budista com características chinesas Autor: Alexandre Miguel Lopes Lobo Instituição: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa / Centro Científico e Cultural de Macau / Fundação para a Ciência e Tecnologia Introdução: Relativamente ao tópico do vegetarianismo na religião Budista, pode ser surpreendente para muitos dos que procuram aprofundar o seu conhecimento no Budismo, de que o vegetarianismo não é necessariamente uma das suas características centrais. Atualmente, é seguido pelas comunidades monásticas que têm a sua origem no Budismo chinês, com exceção das do Japão. Não seria assim de estranhar que a posição dominante do vegetarianismo no Budismo chinês entre a comunidade monástica e, em menor escala, a laica, esteja relacionado tanto com ideias budistas sobre ética e soteriologia, como por conceitos locais sobre regras de abstenção e purificação nativas da cultura e religiões chinesas. Contudo, o fenómeno de vegetarianismo no Budismo, ainda que se tenha tornado realmente dominante no contexto chinês, não deixou de ser desenvolvido antes de este entrar em contacto com a cultura chinesa. Tendo essa mesma cultura sido encorajada a adotar o vegetarianismo via o Budismo, qualquer estudo que procure entender as origens da predominância do vegetarianismo nas tradições budistas derivadas da China, tem de, obrigatoriamente, olhar com atenção para as escolas de pensamento Budistas que estavam em circulação na Índia e na Ásia Central na altura em que estas foram transmitidas na China. É igualmente importante ter em conta a particularidade da tradição chinesa e procurar elementos que possam ter encorajado uma dieta vegetariana para os devotos na nova religião. Apesar do vegetarianismo, hoje, ser aceite como a contribuição mais importante feita pelo Budismo para a culinária chinesa, esta situação foi tudo menos inevitável, pois contrasta com a maioria do mundo Budista que não tem ligação com a tradição chinesa. É ainda um elemento que não tem qualquer apoio doutrinal nos códigos monásticos Vinaya, ao ponto de o caso chinês poder ser descrito como uma anomalia. Adicionalmente, o própria Buda autorizou os seus discípulos a consumir carne que fosse oferecida como doação, desde que esta não tivesse origem num animal que tenha sido abatido propositadamente para o monge em questão (Kieschnick 2005:186-187). Vegetarianismo no Budismo antigo: Na fase formativa mais antiga da religião Budista, um dos conceitos centrais para analisar a ética Budista, relativa ao tratamento de animais e vegetarianismo, é ahiṃsā, ou não violência. Apesar de a ideia da não violência ser respeitada e louvada na prática e doutrina budista, aquilo que seria a sua conclusão lógica, a abstenção do consumo de carne, raramente é mencionada ou debatida na literatura budista e está longe de ser uma prática geral na maior parte do mundo budista, ao contrário da China. O vegetarianismo não deixou de ser, no entanto, parcialmente aprovado e debatido nos primórdios do Budismo, como se pode observar em referências à abstenção de carne em certas situações no código Vinaya. Curiosamente, seria uma das práticas estabelecidas pelo rival/antagonista do Buda histórico, Devadatta (Ruegg, 1980: 234) Ligações entre a prática de não violência e vegetarianismo, ou pelo menos a abstenção do abate de animais, surgem também nos éditos do imperador Asoka. Em particular, o primeiro dos seus éditos de pedra indica uma ordem firme de proibir o abate de seres vivos para fazer sacrifícios. Indica também o fim do abate diário de um número incrível, provavelmente exagerado, como era comum em fontes Budistas e indianas, de 100.000 animais para as cozinhas do palácio real. A preocupação com a prática de ahiṃsā por parte do imperador não se limitava ao abate e ao vegetarianismo, pois o segundo dos seus éditos em pedra informa sobre o estabelecimento de serviços socias na forma de ajuda médica, tanto para pessoas como para animais (Basham, 1982: 134-135). Já um édito mais tardio, em Kandahar (Afeganistão), mostra que os pescadores e caçadores do rei deixaram de praticar as suas profissões (Basham, 1982: 137). Para Asoka, a prática da não violência envolvia, por norma, a necessidade de proibir práticas e atividades económicas diretamente relacionadas com o consumo de carne e, principalmente, com o abate de animais, em que a eliminação do seu consumo existe como uma consequência e não necessariamente como um fim. Apesar de a não violência ser aclamada como essencial no pensamento Budista, o vegetarianismo em si está quase ausente, o que pode ser em parte explicado pelo facto de que noções éticas não têm lugar em códigos Vinaya, focados em formalizar regras e regulamentos essências para o funcionamento ordeiro de comunidades monásticas. Peixe e carne chegam até a ser mencionados como alimentos superiores que podem ser consumidos por monges doentes. Além disso, o facto de os monges estarem dependentes de esmolas e oferendas de alimentos por parte de laicos devotos, não lhes permite recusar carne que seja oferecida nesse processo, desde que a mesma não tenha resultado no abate de um animal especificamente para o monge em questão (Ruegg, 1980: 234). Na qualidade de pedintes e indivíduos que devem ser honrados como fonte de mérito, os monges estavam assim obrigados a aceitar oferendas que pudessem incluir carne, ou estariam a interferir com o karma do doador e a impedir que este gerasse méritos religiosos através da sua oferenda, se o não fizessem (Ruegg, 1980: 239). Outras formas de literatura canónica antiga, para lá da Vinaya, também têm pouco a dizer sobre o assunto. A Abhidharma coloca ênfase na qualidade da intenção de um ato e não no ato em si, como comer carne, e as escrituras de categoria sutra também não mencionam o vegetarianismo ou a sua relação com o conceito de ahiṃsā, sendo referido apenas que o Buda histórico não consumia carne crua. Quando o vegetarianismo é mencionado, o Buda não rejeita o conceito, mas autoriza a prática como opcional para os monges (Ruegg, 1980: 235). Seria só com a introdução mais tardia de novos conceitos e ideias pela escola Mahāyāna, que surge uma atitude muito diferente na comunidade monástica relativamente ao vegetarianismo. Isto deve-se ao facto de estes interpretarem o tópico através de sutras Mahāyāna que lidam especificamente com o assunto. Em particular, as sutras que ensinam a teoria da Natureza Buda, ou Tathāgatagarbha, condenam claramente o consumo de carne (Ruegg, 1980: 236). Portanto, não terá sido por acaso que o Budismo chinês, onde as escolas Mahāyāna se tornaram predominantes, tenha adotado a prática do vegetarianismo, na generalidade. Praticamente, todos os budistas chineses de hoje seguem esta escola, introduzida a partir da Índia e que, gradualmente, evoluiu na China (Tseng, 2018: 145). Dentro da literatura Mahāyāna relativa à doutrina da Natureza Buda, a Laṅkāvatāra Sūtra tem um capítulo inteiro dedicado ao conceito de comer carne que menciona vários textos, como a versão Mahāyāna da Mahāparinirvāṇa Sūtra (onde a ideia de que um monge pode comer carne quando doente é criticada), os quais proíbem o consumo de carne. Os textos mencionados, com exceção de um, estão ligados ao conceito de Natureza Buda, o qual indica que todos os seres vivos têm a capacidade de atingir a iluminação, não sendo assim permitido destruir o potencial para tal com o consumo de carne. É também mencionado, noutros textos, que dentro do ciclo infinito de reencarnação não existe nenhum ser vivo que não tenha sido mãe, irmã ou outro para todos os restantes seres; toda a carne é um e deve-se evitar o consumo daqueles que foram, em determinando momento, nossos parentes. O consumo de carne é assim rejeitado tanto por razões filosóficas como por razões metafísicas. Assim, no Budismo, o vegetarianismo ficou estabelecido como resultado de uma ligação a ensinamentos e escolas específicas, as quais rejeitam o conceito mais antigo de consumo de carne doada a monásticos e se referem a conceitos Budistas, como benevolência e compaixão, para justificar dietas vegetarianas. A adoção de novos códigos Mahāyāna complementares à literatura Vinaya, como os preceitos do Bodhisattva, levou ao fim do consumo de carne por parte de monásticos e também por adoradores laicos, como foi, eventualmente, o caso do Budismo chinês (Ruegg, 1980: 236-237). Budistas da escola Mahāyāna, não derivam assim a sua proibição do consumo de carne do conceito universal de não violência, mas de conceitos como benevolência, compaixão e, em particular, do conceito de Natureza Buda (Ruegg, 1980: 238). A Mahāparinirvāṇa Sūtra, em particular, tornou-se num dos textos principais para a tradição vegetariana chinesa. O texto indica uma serie de implicações negativas para quem consome carne. Entre elas, o consumo de carne causa a diminuição da capacidade para sentir compaixão e da eficácia de magias e encantamentos, dificulta a concentração em práticas meditativas e é um hábito imundo que causa mau cheiro e traz má reputação (Kieschnick, 2005: 190). Desenvolvimentos na China: A introdução do vegetarianismo no Budismo da China e da Ásia Oriental pode ser rastreado por um período de cerca de 100 anos, entre os séculos 5 e 6 na nossa época, quando uma confluência de fatores culminou com o imperador Wu, da dinastia Liang, a decretar o vegetarianismo obrigatório para os monges budistas. Estes fatores incluem a tradução de textos indianos que promoviam as dietas vegetarianas e a prática chinesa de renunciar ao consumo de carne em situação de luto, como expressão de piedade filial (Greene, 2016: 1). Debates entusiásticos sobre o tópico estão atestados neste período, em particular em relação ao Budismo, e foi durante esta altura que a sutra da rede Brahma (Brahmajāla Sūtra) foi composta. Este texto ganhou muita importância na tradição chinesa e tinha a particularidade de apresentar os votos do Bodhisattva, regras complementares aos códigos Vinaya, com uma proibição clara e especifica do consumo de carne, ao contrário de versões indianas dos preceitos (Greene, 2016: 5). Existem também textos budistas chineses, produzidos por volta do século três, que indicam que já neste período o vegetarianismo era um componente aceite e até comum na China, como o Tratado da eliminação da dúvida do mestre Mou. Os debates do século cinco podem ter surgido em sequência de traduções da Vinaya, que permitem o consumo de carne (Greene, 2016: 23). Muitas das biografias de monges e monjas pré-século cinco, indicam que eram vegetarianos, por exemplo (Greene, 2016: 7). Convém, no entanto, ter em conta que em muitas das compilações de biografias de monges proeminentes que surgem a partir do século 6, é referido, em particular, que estes são vegetarianos. Fica subentendido de que não comer carne está associado, especificamente, com monges particularmente devotos e meritórios. Biografias de séculos posteriores deixam de fazer referência à dieta dos monges, indicando que o vegetarianismo passou a ser a norma e o mínimo que se espera de qualquer monge (Kieschnick, 2005: 194). Em relação à sutra da rede de Brahma, texto que insiste que os discípulos de Buda não podem consumir carne para não eliminar a capacidade para a compaixão, a sua proveniência é considerada suspeita. Apesar de ser apresentada como sendo de origem indiana, parece ter sido composta na China, mostrando assim a importância em justificar o vegetarianismo no Budismo chinês, em oposição a formas mais antigas de Budismo (Kieschnick, 2005: 191). Quando o Budismo foi originalmente introduzido na China, encontrou uma cultura com uma relação complexa e desenvolvida relativamente ao consumo de carne. Por um lado, o consumo de carne é um elemento importante da adoração ritualística de divindades e antepassados, desde que é possível averiguar. Por outro lado, a China tem uma história longa e significativa de abstenção do consumo de carne por motivos religiosos, antes do Budismo se estabelecer. Práticas Confucionistas, Taoistas e da religião popular chinesa tiveram, pois, um papel na formação do vegetarianismo na sociedade chinesa, ainda que o do Budismo tenha sido mais significativo. Nomeadamente, conceitos de abstenção, como forma de purificação do Confucionismo, e crenças taoistas no poder de dietas não convencionais influenciaram a atitude chinesa perante o vegetarianismo, em conjunto com práticas budistas morais (Broy, 2019:37). Numa sociedade em que carne era escassa e, por isso, considerada um luxo, o seu consumo ganhou uma qualidade social com que o vegetarianismo teria de lidar, a fim de se conseguir estabelecer. A elite chinesa era referida, por vezes, como aqueles que comem carne, e era considerado um ato importante de piedade filial oferecer carne e álcool aos pais, ambos, ingredientes com um papel importante nos sacrifícios do culto dos antepassados e de determinadas divindades. Apesar disto, já durante a dinastia Han (202 AC- 220 DC), antes da chegada do Budismo à China, existia uma tradição estabelecida de abstenção do consumo de carne e álcool como forma de purificação, limitado a ocasiões especiais, como períodos de luto. Ao mesmo tempo, na China feudal, jejuar era visto como um pré-requisito para comunicar com os deuses, ato que serve para avivar qualidades morais. A dieta vegetariana permitia também a aquisição de poderes não naturais e era essencial para processos de purificação ritualística. Havia também uma justificação moral da parte do Confucionismo, que insistia numa atitude modesta relativamente ao consumo de carne. Em particular, Mengzi, discípulo de Confúcio, declara que o homem virtuoso é incapaz de tolerar a morte de um ser vivo (Broy, 2019: 38-39). Símbolos de estatuto e de privilégio, é, por outro lado, um sinal de decadência e de gula para os seus críticos, crítica também presente em textos budistas indianos (Kieschnick, 2005: 193). Já os taoistas, aproximam-se mais das práticas vegetarianas Budistas. À semelhança do conceito de não violência, instruem os seus seguidores a não causar dano ou sofrimento a outros seres vivos e a evitarem o consumo de carne, pois todas as formas de vida são consideradas sapientes. Dependendo da escola, muitos sacerdotes Taoistas vivem em mosteiros onde seguem dietas vegetarianas. Os Taoistas também acreditam que a sua dieta é central para a sua saúde mental, física e espiritual, e que jejuar permite atingir a imortalidade (Tseng, 2018: 152). O Budismo entrou, assim, numa sociedade já com ideias próprias sobre o consumo de carne, que teriam certamente um efeito na forma como o Budismo introduziu práticas vegetarianas na sociedade chinesa. Potencialmente, facilitou ainda a adoção do vegetarianismo como regra e não como exceção nas comunidades monásticas, ao ponto da ideia do monge maléfico que come carne e bebe álcool se ter formado na imaginação popular. Mais importante que os monges, para a adoção do vegetarianismo em larga escala, seria o papel de seguidores laicos e das suas atividades persistentes, que estabeleceram o não consumo de carne como um elemento identitário do Budismo chinês. Estes ativistas, simultaneamente, davam ênfase à crueldade do abate de animais, assim como relacionavam o seu vegetarianismo com valores Confucionistas. Entre os vários seguidores laicos que promoveram o vegetarianismo encontram-se vários imperadores, sendo que o mais relevante terá sido o imperador Wu, da dinastia Liang do Sul (464-549 DC). Budista laico extremamente devoto, foi instrumental em estabelecer o vegetarianismo como padrão do Budismo chinês. Introduziu também as primeiras proibições temporárias de caça, captura e abate de animais (Broy, 2019: 42-43). Procurando usar compaixão e fé da religião budista para guiar o seu império, seguiu com rigidez os preceitos de não matar, opôs-se a penas capitais e baniu o sacrifício de animais. Eventualmente, decretou que todos os monásticos tinham de ser vegetarianos e não beber álcool, prática que também impôs a si mesmo, ficando conhecido como o imperador Bodhisattva (Tseng, 2018: 148). A influência da autoridade imperial serviu assim como a força mais consistente para a propagação do vegetarianismo entre o povo chinês (Tseng, 2018: 145), começando com o imperador Ming, (28-75 DC) da dinastia Han, que, gradualmente, integrou o vegetarianismo junto com a proibição de abate nos rituais de jejum oficiais, dando espaço para inserir o conceito no subconsciente popular (Tseng, 2018: 147). Para lá de imperadores devotos, outros laicos budistas tiveram um papel ativo na promoção do vegetarianismo, com maior ênfase no bem-estar do animal do que nas recompensas metafisicas que o Budismo indiano atribui a quem pratica vegetarianismo. Um dos laicos mais famosos foi o oficial Zhou Yong, que menciona as preocupações clássicas de resultados kármicos, ao mesmo tempo de mostra maior preocupação com o sofrimento dos animais consumidos. A tendência para dar ênfase ao sofrimento animal tornou-se, assim, típico da propagação do vegetarianismo por parte de laicos e monges chineses (Kieschnick, 2005: 196-197). O papel de oficias laicos, como Zhou, é particularmente significativo para demonstrar a devoção perante o conceito e a moralidade do vegetarianismo no Budismo chinês, pois, em determinados contextos, era uma prática difícil de manter. Certas posições especiais necessitavam consumir carne em determinados banquetes e cerimónias, como era o caso de oficias de alto nível para quem o vegetarianismo era visto como excêntrico e inapropriado. Os vegetarianos e os seus associados desenvolveram técnicas para lidar com inconveniências, como banquetes cerimoniais. Alguns vegetarianos passaram a consumir vegetais que foram cozinhados com carne e anfitriões mais atenciosos preparavam pratos especiais (Kieschnick, 2005: 204). O Budismo seria ainda influenciado pelos conceitos pré-Budistas de que poderes especiais podiam ser adquiridos com dietas vegetarianas, existindo textos budistas medievais que prometem proteção divina para aqueles que não consumissem carne. A crença em proteção divina e de eficácia medicinal deste tipo de dietas, daria origem a festivais de grande escala, como o banquete vegetariano dos nove imperadores (Broy, 2019: 44). Pelo século 13, a procura por dietas vegetarianas por parte da comunidade budista chinesa deu origem a restaurantes vegetarianos, espalhados por várias grandes cidades, e inspirou a criação de uma culinária distinta, em que o álcool, o alho e a cebola também eram proibidos, de acordo com a tradição indiana (Kieschnick, 2005: 186). Conclusão: Textos budista da tradição Mahāyāna desenvolveram uma perspetiva mais centrada em ética, relativamente ao consumo de carne, relacionando o vegetarianismo com a compaixão e a interconexão de todos os seres vivos. Mesmo assim, não existe muita noção do sofrimento e da dor dos animais, em si, nestas descrições (Broy, 2019: 40). Ultimamente, budistas chineses foram atraídos para a prática do vegetarianismo para fortificar o desenvolvimento da sua compaixão para com o mundo; essa compaixão era apresentada como o caminho correto para atingir a iluminação, constante em várias sutras Mahāyāna, que eram praticadas na China (Tseng, 2018: 153). Fontes budistas, no entanto, sempre expressaram alguma forma de desconforto com o consumo de carne devido à sua ligação com o ato de matar seres vivos e o karma negativo gerado no processo. Grupos monásticos indianos eram críticos de práticas como o sacrifício de animais, ainda que não seguissem dietas vegetarianas como obrigatórias (Greene, 2016: 2-3), mas certamente adotaram a prática até certo nível, como indicado nos textos Mahāyāna, traduzidos na China, onde o consumo de carne era claramente proibido. A partir do século t3, o vegetarianismo surge como parte do modo de vida de monásticos budistas na China. No século 5, entram na China novos textos budistas que promovem o vegetarianismo, mas também são traduzidos códigos Vinaya que permitem o consumo de carne em certas circunstâncias. Um debate é então gerado sobre este tópico, que culmina no édito do imperador Wu, definindo a dieta vegetariana como uma obrigação de, pelo menos, a comunidade monástica (Greene, 2016: 31-32). O vegetarianismo ficou, portanto, estabelecido como um elemento permanente entre monásticos budistas e alguns laicos, já no período medieval, e foi, consequentemente, criticado por elementos da elite, a partir da dinastia Tang. A partir daqui o vegetarianismo acabaria por ser praticado com maior empenho por cultos populares sincretistas, alguns dos quais chegaram até aos dias de hoje (Broy, 2019: 46-47). Este vegetarianismo puro não monástico, acabaria por ser estigmatizado a partir do século 12 DC e identificado como “culto demoníaco vegetariano”, uma denominação aplicada, originalmente, apenas para a religião maniqueísta (Broy, 2019: 48). Ideias confucionistas e taoistas seriam adotados por comunidades vegetarianas, em conjunto com elementos budistas. Enquanto praticantes pré-budistas preferiam abstenção temporária do consumo de carne, foi só através do Budismo que o conceito de vegetarianismo permanente foi introduzido na cultura e culinária chinesa (Broy, 2019: 57). Os fatores que levaram a esta adoção pelo Budismo chinês foram variados, mas, entre eles, destaca-se o facto de o vegetarianismo ter servido como forma de estabelecer uma identidade religiosa distinta dentro da sociedade chinesa (Greene, 2016: 35). Bibliografia: Basham, A. L. (1982). Asoka and Buddhism–A Reexamination. Journal of the International Association of Buddhist Studies, 131-143; Broy, N. (2019). Moral Integration or Social Segregation? Vegetarianism and Vegetarian Religious Communities in Chinese Religious Life. Concepts and Methods for the Study of Chinese Religions III: Key Concepts in Practice, 37-64; Greene, E. M. (2016). A Reassessment of the Early History of Chinese Buddhist Vegetarianism. Asia Major, 1-43; Kieschnick, J. (2005). Buddhist vegetarianism in China. Of tripod and palate: Food, politics, and religion in traditional China, 186-212. New York: Palgrave Macmillan US; Ruegg, D. S. (1980). Ahimsa and Vegetarianism in the History of Buddhism. Buddhist studies/for W. Rahula, 234-241. London and Bedford: Gordon Fraser Gallery; Tseng, A. A. (2018). Five influential factors for Chinese Buddhist’s vegetarianism. Worldviews: Global Religions, Culture, and Ecology, 22(2), 143-162. Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, sendo que as opiniões expressas no artigo são da inteira responsabilidade dos autores. https://www.cccm.gov.pt/
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA Elegância Clássica da Família de Wang Chen Sikong Tu (837-908) o poeta da dinastia Tang falou da natureza fugídia, intangivel, daquilo que «é natural» (ziran) com palavras que seriam acolhidas pelos estudiosos da pintura como uma maneira de descrever a mais alta categoria do seu labor, aquela mais dificilmente atingível e que se afasta sempre, como a linha do horizonte: «Curve-se e aí está;/ Não se procure à direita e à esquerda,/ Todos os caminhos para ela se afastam./ Mas com um toque, aí está a Primavera!/ Como quem depara com flores a desabrochar,/ Como quem contempla a chegada do novo ano,/ De facto não a agarrarei/ Forçada, desaparecerá». Mas interrogar-se diante do espectáculo sublime das mutações da natureza, contemplando lugares particulares em que mais facilmente se sente um arrebatamento dos sentidos, era o mais grato dever dos poetas. Como fez Li Bai admirando a Cascata do monte Lu; «Será o Rio de prata (a Via Láctea) deslizando das nove direcções do céu?» Pintores literatos seguiriam esse olhar do vate, tornando a Montanha Lu, perto da cidade de Jiujiang na Província de Jiangxi, que era já um jardim literário desde o século V, num persistente motivo das suas pinturas em busca desse toque que tornava manifesto esse quase imperceptível fluxo do que «é natural», o ziran. Alguns, nessa demanda projectada sobre o Monte Lu, foram célebres no seu tempo como Shen Zhou (1427-1509) autor do rolo vertical feito a tinta e cor sobre papel (193,8 x 98,1 cm) no Museu do Palácio Nacional, em Taipé. Outros, terão recebido esse olhar como uma herança de seus maiores, como Wang Chen (1720-97) que representou o Monte Lu (rolo vertical, tinta sobre papel, 132 x 63,5 cm, vendido na Sotheby’s) da forma que o poeta Sikong Tu descreveu como a «elegância clássica» (dianya), «calma como pétalas caindo e modesta como despretensiosas flores do campo». Wang Chen vinha de uma distinta família de que fizeram parte Wang Shimin (1592-1680) e o neto dele Wang Yuanqi (1642-1715), que era seu avô. Além desse legado, ele mostrou uma disponibilidade para ser interpelado por outros como se observa no rolo horizontal Estúdio para escutar a chuva (tinta e cor sobre papel, 122 x 40,5 cm, no The Walters Museum), nome do jardim do coleccionador Zha Ying, que conta com contributos de eminentes personalidades do tempo, como Pi Yuan e Sun Xiangyan. Numa das folhas do álbum Paisagens do natural, poesia e arte (tinta sobre papel, 41,7 x 33,5, cm, na Colecção do Instituto de Arte de Minneapolis) lembrou o poeta da cascata do monte Lu: «Uma manhã entrei no mar procurando Li Bai. Buscando em vão entre pinturas de meros mortais pelo Imortal da tinta.» E noutra página recordou outra relação entre avô e neto: «Usei o método do pincel de Shuming (Wang Meng) para pintar no estilo do velho Songxue (Zhao Mengfu). Há uma semelhança porque eles são da mesma família.”
Hoje Macau Via do MeioO prelado D. Paulo José Tavares e a «Grande Revolução Cultural Proletária» de Macau Moisés Silva Fernandes* O lançamento da obra D. Paulo José Tavares: O Bispo-Diplomata teve lugar em janeiro de 2023, em Rabo de Peixe, terra natal de D. Paulo José Tavares, na ilha de São Miguel (Açores), por ocasião da comemoração do centésimo terceiro aniversário de nascimento. Esta monografia constitui uma autêntica biografia de Paulo José Tavares, desde a sua infância até à idade adulta, repleta de fotografias e de testemunhos de familiares e amigos. É recordado ser ele o mais velho de oito filhos, considerado desde cedo «muito bom aluno» (p. 17), sendo o padre Guilherme Américo quem, nas palavras da irmã, «sugeriu a minha mãe que colocasse o Paulo no seminário da ilha Terceira» (Ibidem). Todavia, o Paulo era um «camponês» e o seu «pai queria o Paulo para o ajudar no trabalho da agricultura» (Ibidem). Entretanto, um padre açoriano, que estava nos Estados Unidos da América, acabou por subsidiar os estudos de Paulo José Tavares no Seminário de Angra (Ibidem), que frequentou entre setembro de 1931 e junho de 1941. A hierarquia da Igreja local, nomeada- mente, o bispo de Angra, D. Guilherme da Cunha, percebeu a sua capacidade intelec- tual e enviou-o para Roma, para estudar Direito Canónico na Pontifícia Universidade Gregoriana. Aqui fez a licenciatura e, posteriormente, o doutoramento, que terminou em 1945. Em Roma, notabilizaram-se as suas capacidades de diplomata e é encaminhado para a Pontifícia Academia Eclesiástica, que forma os sacerdotes destinados ao serviço diplomático da Santa Sé nas diversas nunciaturas apostólicas (embaixadas) ou na Secretaria de Estado. Em 1947, Paulo José Tavares entra na Secretaria de Estado da Santa Sé, onde permanece até 1961. Em agosto de 1959, o Papa João XXIII pede «a ajuda do tradutor português da Secretaria de Estado, Mons. Paulo José Tavares» (pp. 57 e 58), acerca da terceira parte do segredo de Fátima, decidindo não o publicar. A partir deste encontro, o Papa vai tê-lo perto de si para qualquer necessidade no âmbito da Igreja colonial portuguesa. E essa oportunidade surge aquando da eleição do bispo de Macau, pois o anterior bispo de Macau, D. Poli- carpo da Costa Vaz, é transferido para a Diocese da Guarda, em julho de 1960. O nome do conselheiro da Nunciatura Apostólica, monsenhor Paulo José Tavares, começa a ser considerado pelo Estado da Santa Sé como uma valia, pela sua proximidade. Primeiramente, é funcionário da Secretaria de Estado da Santa Sé, chegando ao cargo de conselheiro da Nunciatura Apostólica. Posteriormente, orientará as instruções específicas para que na Diocese de Macau sejam preteridos os padres ultraconservadores portugueses, e favorecidos os padres chineses autóctones e os outros padres ocidentais. Ações estas, conformes com a nova narrativa e prática do Vaticano, que considerava o Estado «colonial» português uma representação do passado, bloqueadora das relações que a Santa Sé pretendia estabelecer com os padres chineses, em Macau. Após a nomeação pelo Papa João XXIII no dia 24 de agosto de 1961, foi consagrado pelo secretário de Estado da Santa Sé, cardeal Amleto Giovanni Cicognani, pelo arcebispo Angelo Dell’Acqua, o substituto da Secretaria de Estado, e pelo bispo de Leiria, D. João Pereira Venâncio, a 21 de setembro de 1961, com 41 anos de idade. Antes de partir para Portugal, o Papa, em audiência, recorda-lhe as orientações exclusivas da Santa Sé para a Diocese de Macau. Partiu para Lisboa e, depois, para a ilha de São Miguel, onde se despediu da família, seguindo para Macau. Chega a Macau a 27 de dezembro de 1961, trazendo o seu irmão, padre Dr. Manuel Alfredo Tavares, um excelente especialista em latim, e seu secretário particular. Nos primeiros anos recorreu aos vigários-gerais e aos governadores do Bispado sendo, neste caso, todos padres portugueses. Entretanto, começou por eliminar as côngruas e as diferenças nos salários entre os padres portugueses e os chineses, uma luta com mais de quatro séculos, e logo depois a dizer as missas em português, cantonense e inglês, sob a orientação do Concílio do Vaticano II (1962-1965). Em 1966, início da «Grande Revolução Cultural Proletária» na China continental, D. Paulo José Tavares nomeou o padre chinês de Macau, António André Ngan Im-ieoc (严俨若, Yan Yanruo), primeiro vigário-geral e depois governador do Bispado, sendo a primeira vez que tal acontecia em quatro séculos de Igreja Católica em Macau. Isto levou os ultraconservadores padres portugueses a denunciarem o caso à Nunciatura Apostólica em Portugal e à Secretaria de Estado da Santa Sé, sem qualquer efeito. Durante o último semestre do ano de 1967, o prelado de Macau foi acusado pela elite chinesa de Macau de estar ao serviço da China continental, e pela frágil administração portuguesa de ter posições diametralmente opostas aos maoístas. D. Paulo José Tavares não concordou com as exigências da Associação Geral de Estudantes Chineses de Macau (agecm), um grupúsculo maoísta, e publicou no bissemanário O Clarim, órgão da Diocese de Macau, e na revista quinzenal Religião e Pátria, o artigo «Esclarecimento sobre o Colégio de São José, em Macau», o que motivou a suspensão temporária de ambas as publicações, pelo governador de Macau, o brigadeiro Nobre de Carvalho. A sua saúde começou a declinar em junho de 1969, facto noticiado pel’O Clarim. Após várias passagens pelos hospitais de Macau, de Hong Kong, de Roma, de Ponta Delgada, e até mesmo dos Estados Unidos e do Canadá, veio a falecer no Hospital da Cruz Vermelha, em Lisboa, no dia 12 de junho de 1973. Foi sepultado no dia 15 de junho, no cemitério de Rabo de Peixe, numa cerimónia presidida pelo bispo de Angra, D. Manuel Afonso de Carvalho. Existem três razões cruciais que justificam a importância das nomeações de Paulo José Tavares. Primeira: durante os catorze anos que passou na Secretaria de Estado da Santa Sé, foi subindo de adido até conselheiro da Nunciatura Apostólica, o que mostra como cada dicastério da Igreja tem de defender os seus membros quando assumem lugares-chave como bispos, arcebispos ou cardeais. Segunda: tanto o Papa João XXIII como o Papa Paulo VI deram, mais de uma vez, instruções específicas à Diocese de Macau para mudar as directivas, caso contrário seria integrada na Diocese de Hong Kong. Terceira: quando o prelado D. Paulo José Tavares, conhecedor do desfecho da sua doença, indicou uma terna (três nomes possíveis para seu sucessor), esta era idêntica à do encarregado de Negócios da Nunciatura Apostólica da Santa Sé em Taipé, na Formosa/ Taiwan, Francesco Colasuonno (高樂天, Gao Letian), e incluía em primeiro lugar dois padres chineses e um terceiro, português, o padre Arquimínio Rodrigues da Costa. Por acção da imprensa comunista de Macau, que rejeitava duramente um prelado chinês, e pela concordância da precária administração portuguesa de Macau, o padre Arquimínio Rodrigues da Costa foi o novo bispo de Macau, mesmo em oposição à Santa Sé. Esta obra ajuda a estabelecer, pelos testemunhos recolhidos e pela documentação exposta, o percurso de vida deste homem essencial para o estudo da presença da Igreja Católica em Macau, como uma das instituições relevantes, durante este período. *Investigador no Instituto Confúcio e professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Paulo Maia e Carmo Via do MeioLiu Shiru: de Noite o Frio, as Flores e o Ramo Ressequido Yan Xiyuan (act.1787-1804) no seu livro de Biografias ilustradas de cem mulheres belas, com novos poemas (Baimei xinyong tuzhuan) recorda a famosa história da Princesa Shouyang que ficaria para sempre associada à surpresa anual do nascimento de flores em pleno Inverno. Pétalas dessas flores de pefume subtil, brancas, cor-de-rosa ou vermelhas, traduzidas habitualmente como flores de ameixieira, na verdade da árvore caducifólia prunus mume (meishu) originária do Leste da Ásia, cujas características são comuns a ameixieiras e a damasqueiros, caíram um dia sobre a face adormecida da Princesa Shouyang. Esse sétimo dia do primeiro mês lunar quando a princesa passeava no palácio Hanzhang e se sentou para descansar, fechando os olhos, sendo despertada pelas suaves pétalas que lhe caíam no rosto, ficaria na memória e foi assim que o poeta a lembrou no seu livro, acompanhado de uma xilogravura feita a partir de um desenho do célebre pintor Wang Hui (1736-95). Aí, ela está sentada nos degraus do palácio, um braço apoiado no corrimão, dormitando, à espera que se cumpra o destino que se aproxima nas flores que já se vêem tombando. Mas, se a história da princesa cativava a imaginação popular, pintores eruditos de há muito descobriam uma outra, sucinta forma de figurar aquela surpresa das flores que desafiam o frio. Um dos mais memoráveis foi o pintor da dinastia Yuan, Wang Mian (1287-1359), admirado e copiado tanto nas formas das suas pinturas como no processo até lá chegar. Nelas se observavam os elementos essenciais do assombro revelado no tempo invernoso: a noite que em breve será dia, as flores, meihua, que na homofonia mei referem a beleza feminina e alguém, um literato que as saiba contemplar e relatar com deleite, figurado nos humildes ramos ressequidos que sustentam as flores. Um dos que o imitaram nesse duplo procedimento foi um pintor de Shanyin (actual Shaoxing, Zhejiang). Liu Shiru (c.1517 – depois de 1601) no decurso da sua longa vida dedicou-se com perseverança tanto ao estudo das pinturas de Wang Mian como à observação das reais flores prematuras. No seu rolo vertical Ramo de flor de ameixieira (tinta sobre seda, 180,3 x 98,4 cm, no Museu de Arte de Harvard) referiu um dragão, símbolo da natureza e dela, a possibilidade da nova vida «Um dragão verde ergue-se alto no ar, dir-se-ia que alcança a Via Láctea,/ Borboletas de jade voam em formas irregulares e, imaculadas, são intangíveis pela lama./ De súbito, o deus do vento Fengbo lança um assobio lancinante,/ E o esplendor da Primavera estende-se por todos os lados, de Leste a Oeste.» Liu também publicou o manual ilustrado sobre a pintura de prunus mume, Xuehu Meipu, «Manual de pintura de ameixieiras do lago de neve», repleto de elogios, provas do apreço daqueles que, como ele, de noite continuavam de olhos abertos.
José Simões Morais Via do MeioSegredos da SEDA (16) – Museu de Seda de Hangzhou Sabemos ter sido a primeira escola na China especializada em seda e na sericicultura fundada em Hangzhou no ano de 1898 por Lin Qi, na altura a presidir à governação da cidade. O Museu de Seda de Hangzhou, situado na parte Sudeste da cidade e aberto em 1992, é o maior do país e conta com diferentes secções, tendo as exposições legendadas em chinês e inglês. No recinto do museu encontram-se vários edifícios, sendo composto por um central onde todas as fases da seda são explicadas, desde as etapas de evolução da Bombix mori às várias espécies de amoreiras e os seus frutos. Refere como dos filamentos expelidos por a boca das lagartas se faz o fio da seda e os processos de cruzamento para criar os vários tipos de tecidos, também ali expostos. Noutra sala, em teares vão-se produzindo brocados e passando para outro edifício, por um corredor de primeiro andar, chegamos à parte do fiar e tecer. Ganham actualidade os instrumentos inventados para o processo da seda mostrados no rés-do-chão e os teares expandem-se para um outro bloco, onde se encontram duas lojas de venda de artigos aqui produzidos. Observamos o desenho do brocado no reflexo de um espelho colocado por baixo da trama na parte da frente do tear, onde o tecido vai sendo enrolado. Aí a tecelã labora, quando subitamente um som apela para um amplo salão ao fundo. Apressadamente cruzamos os grandes teares onde tecelões trabalham aos pares, um sentado no alto do tear manejando fios, enquanto o outro, na parte da frente do tear urde. A passagem de modelos vai já na segunda parte do desfile, mas como se realiza quando há excursões em visita ao museu, tenho oportunidade de dar mais tempo aos teares e voltar mais tarde a assistir a esse simples mas agradável espectáculo. O museu continua a melhorar as suas exposições, criando novos cenários. No entanto, a secção dos bordados deixou de existir para dar lugar a mais uma parte comercial, transformada agora numa aconchegada sala mais pessoal de amostra das vestes em seda. Um pouco da história da evolução da Bombix mori e dos caminhos da Seda são por painéis expostos nos corredores centrais. Na última sala refere-se a parte filosófica e não a tecnológica, a mitologia ligada ao bicho-da-seda e a regeneração cósmica e sagrada, permitindo-nos ganhar o todo ao assunto. Existe ainda uma sala com uma pequena parte reservada aos pigmentos para tingir e o resto do espaço apresenta tecidos feitos de seda e explicações sobre os simbólicos significados dos bordados nas vestes imperiais e dos mandarins. Com os conhecimentos apresentados no museu, sabendo poder presencialmente observar no campo todo o processo, decidimos visitar Tongxiang por ser um local onde se pratica sericicultura e existem muitas fábricas, tanto de fiar como de tecer a seda. Como para aí chegar teremos duas horas de autocarro partindo do terminal Oeste da cidade, antes de iniciar a viagem resolvemos ir provar as famosas iguarias de Hangzhou. PRATOS TÍPICOS Na margem Leste do lago Xi, ou do Búfalo Dourado, no início do III milénios muitos são os chalés transformados em restaurantes a servir também de salão de chá e galerias de arte. Na ementa aparecem pratos tradicionais como a sopa de peixe, peixe do lago com molho agridoce, [por ter demasiadas espinhas fica horas a marinar em vinagre], caranguejo em laranja, camarões cozidos em chá verde de Longjing, tripas de porco cozidas, porco estufado, pato com cogumelos pretos e outras iguarias não provadas. Mais tarde saboreámos carne de porco à moda de Dongpo, estufada e cujo molho lhe dá um sabor adocicado e a gordura por baixo da pele entranhando-se na carne a torna tenra. Segundo a empregada do restaurante ao traduzir o menu para inglês, diz ser o prato recomendado para tornar a pele das mulheres mais jovem. O chá, claro, logo desde o início tudo acompanha e para a refeição, uma das cervejas da terra, sendo o vinho de arroz usado para roer as carnes ingeridas. A fechar, um chá digestivo é servido com a conta e por melhor que seja o restaurante, o preço era sempre barato. Para digerir a lauta refeição resolvemos caminhar em torno do lago Oeste (Xi), cuja área é de 56 km² e perímetro de quinze quilómetros. Embalados por o cenário, somos inspirados por a lassidão do verter dos ramos de muitos chorões e pessegueiros para as tranquilas e prateadas águas. O espelho é quebrado pelo rasto da passagem de barcos turísticos a remos, cujo toldo cobre bancos corridos em frente de mesas cheias de cascas de pevides, onde repousam copos com as folhas de chá no fundo. Desembarcados os passageiros, logo o barqueiro faz a limpeza, aproveitando para abastecer de água quente a garrafa-termo, enquanto já novos clientes instalados no barco vão tirando fotografias. Em ambiente acolhedor, grande quantidade de turistas, tanto nacionais como bastantes estrangeiros, por aqui se vão deixando ficar. O encanto do lago Oeste atrai muitos casais chineses à procura da lenda de ser Hangzhou um excelente local para se apaixonarem. No ano 2002, a cidade recebeu a visita de 27 milhões de turistas, sendo estrangeiros um milhão, números exponenciados nos anos seguintes num enorme aumento de visitantes misturados com o milhão e meio de residentes. FINAL DO CICLO DA LAGARTA A refeição fez-nos sentir qual lagarta depois de acordar do último dos quatro sonos e após sete a nove dias de alimentação final, com uma cor translúcida branca acinzentada e manchas castanhas escuras, subitamente deixa de comer. Passaram-se quase quatro semanas desde as lagartas terem saído do ovo e agora completamente desenvolvidas, após cada uma ter consumido de vinte a trinta gramas de folhas de amoreira, chegam ao momento de estar aptas a fabricar o casulo. Mostram-no quando exigem atenção, empinando e bamboleando os corpos de ponta a ponta. As glândulas da seda estão cheias e antes de começar a segregar o filamento brilhante com que se irá envolver, a lagarta esvazia as entranhas de impurezas. A lagarta na parte interna tem as glândulas sericígenas, “dois extensos tubos dobrados sobre si mesmos”, situadas ao longo e debaixo do aparelho digestivo. As duas glândulas que fornecem a seda encontravam-se já quando a larva sai do ovo, deixando atrás de si um rasto de baba. E continuando com Victor Caruso: “Cada glândula divide-se em três partes: 1ª – Tubo anterior, ou excretor, à direita e outro à esquerda, até que, ao chegarem à cabeça vão dar à boca e aí, do lábio inferior, onde há uma saliência, os dois fiozinhos juntam-se logo à saída, endurecendo em contacto com o ar. 2ª – Tubo médio, ou reservatório; é a parte mais grossa e onde se acumula a matéria que cobre o fio da seda dando-lhe uma goma corante, a sericina. 3ª – Tubo posterior ou secretor; é extenso, com muitas dobras, onde se forma a fibroína, matéria essencialmente sedosa. A fibroína tem de 72 a 81% do peso das glândulas e a sericina de 17 a 26%”. Assim, a seda é segregada por as glândulas sericígenas labiais situadas na parte inferior da boca. A fieira, como é denominada essa parte, consiste num pequeno segmento de um longo tubo, que depois se divide em dois, cada um com cerca de vinte e cinco centímetros, a voltearem repetidamente, encontram-se ao longo de ambos os lados do corpo. Cada um dos tubos está dividido em três diferentes secções: a secção posterior, onde é formada a fibroína, o constituinte principal da seda natural, com catorze a quinze centímetros e um diâmetro de um milímetro [valores correspondentes quando a lagarta está pronta para produzir o filamento de seda]; a seguir a secção média, onde num compartimento mais largo os dois canais laterais se juntam, tendo cada um seis a sete centímetros de comprimento e uma abertura de três milímetros, estando aí armazenada a sericina, que como cola envolve os dois filamentos de fibroína; e a secção anterior, a terminar na parte de trás da boca, a fieira, um tubo com três a quatro centímetros de extensão e um diâmetro de um décimo de milímetro, de onde é expelido um único filamento que em contacto com o ar solidifica. Com esse filamento, cujo diâmetro é de 24 a 30 mm, a lagarta ao girar vai-se envolvendo e construindo o casulo.
Anabela Canas Via do MeioA senhora – 7 Dormitou mal de frio. Levantou-se de madrugada. Dia de aniversário. Pensou. Pela primeira vez em anos. Vestiu a camisa branca, o fato. Esticou-o bem pelas abas. Limpou o rosto e o pescoço lentamente, com uma pequena toalha humedecida. Penteou o cabelo com água. As moedas, poucas, a tilintar no bolso, o cartão de residente no do peito. Saiu de costas direitas, um pouco trémulo do jantar da véspera saltado em branco. O pensamento a voar, mais do que as pernas, para uma canja branca e espessa. A vizinhança intrigada com o fato, a perguntar se já comeu. Que não. Mas desta é que era uma canja para começar o dia. A seguir ao dia que era para ser e não foi. Caminhou silencioso. A pensar na pergunta. Dos tempos de pequenas coisas essenciais que, asseguradas eram a linha firme de caminhar nos dias. Não se pergunta se se apostou um ordenado magro nas fichas do casino. Se se está feliz ou com saúde. Somente: já comeu? E em muitos dias mesmo nada de comida a acalentar o estômago dorido. Mas hoje, em fundo, uma canja espessa e quente. ∞ O caminho de anos, a fugir aos traçados ruidosos, e guiado por bússola imutável, atraído pela memória das águas mansas e cinzentas da baía. Mas isso a memória. De que agora, em busca dos amigos de sempre, restava em certo ponto apenas o muro e não já as águas. Porque não recuariam um pouco é dúvida que não se coloca em palavras. Restam eles e a memória das águas. Que ainda lambem o muro mais à frente. Pouco falavam, pouco falaram em anos. Talvez adivinhando vidas e perguntas a não fazer. Opiniões a divergir. Sobre aquela terra grande, sobre este território pequeno. Ou porque não valera a pena. Sem mesmo pensar no assunto, gostava mais de uns silêncios do que de outros. Porque as pessoas são possibilidades ou impossibilidades de comunicação ou de silêncios, no mesmo conforto. Nostálgico ou melancólico, cúmplice ou compreensivo. Acusador ou de interrogações mudas. Tolerante ou redutor. Possibilidade encontradas e erigidas no silêncio dos velhos camaradas do xadrez. Não camaradas nesse sentido. Sentido cortado rente, quando desse vinha como uma teia, uma rede alongada de lá até aqui. Desconfianças, perguntas, receios. A querer envolver. Informações, dados. Nada. Um silêncio hermético, o que deu de si. O que queria de cá para lá, era no sentido inverso. Que viesse a mulher, o filho. A memória amarga das meninas, de todas as meninas depois de 79. Dadas, como coisas para quem as quisesse. Durante anos. Não queria mais nada. Nem confusões. E hoje já nem isso. Assim se foram escolhendo amigos. Isso e as idades que levavam uns e deixavam outros. ∞ Mas aqui, em território quase de lendas e histórias de piratas dos mares, esse crescendo em altura de um conforto de sonhos. E, a partir de um dia indefinido, o decrescendo em altura da possibilidade dos sonhos. A acabar, hoje, na sórdida precariedade do quase nada. Satisfatório, como todas as escalas e estações de uma curva em ascensão que um dia virou em depressão. Uma hipérbole de um ramo só. Ou, geometricamente uma parábola em definição de fim. Porque o velho muito muito velho, era um velho muito muito velho, mesmo. E a pobreza inicial, é o ponto de acordo e encontro simétrico da pobreza final. Mas há um detalhe neste dia a seguir ao dia que não foi. E o dia em que está, a seguir ao outro, é o dia de estrear o fato novo, velho de tantos anos, quase, como de habitar esta terra ao lado. Da outra que deixou de ser a dele, ainda antes de vir, e que nunca foi bem dele a mais do que a decisão de ser. Hoje, pela primeira fez, era, e festejada de fato novo. Velho de tantos anos como anos tinha de habitante do território. E agora residente. Como desde o primeiro dia mesmo sem cartão. Viver e habitar, faz-se à margem. ∞ Chega à Praia Grande. Avança como se não os visse já por ali, os companheiros de jogo, com tabuleiros de acolher momentos, pássaros verdes nas gaiolas a iludir a prisão com uma paisagem de fundo. Segue vagarosamente até à Meia Laranja. Só para o tempo passar um pouco mais e volta. Senta-se na ampla curva do muro como tantas outras vezes. Naquilo que ainda é o muro como foi. A debruar as águas do rio tornado longe. Senta-se na ampla curva e lembra-se vagamente daquela outra curva de uma nuca que acolhia águas dinâmicas e sonhos de revolução. Um perfil de olhos vivos e incisivos sobre os seus. Mas a curva de uma amurada baixa é agora cega como a curvatura daquela nuca e daqueles olhos que já não cruzam os seus como este muro não afaga as águas de outro tempo. E, no entanto, mais adiante os companheiros das peças de jogo e do tabuleiro sempre a acolher momentos. O sol discreto rompe a névoa de um dia a adivinhar-se húmido. Muito claro, como prata nova. Contempla a paisagem familiar, a cimentar raízes. Antes de avançar os bons dias, o já comeu. E ele, o homem velho muito velho, tem ainda de cumprir para consigo, voltar atrás, à ruela que sobe da baia, e comer a canja sonhada, para poder responder hoje sinceramente que sim. E volta depois a descer a rua, e ao silêncio partilhado de amigos de muitos anos. Ao muro, ao jogo sereno de entreter o tempo. Às árvores de raízes aéreas que sobram numa marginal de que já só estes velhos são legítima orla de cidade, ou memória. Às águas recuadas pela voracidade de um bicho cidade que regurgita terra sem descanso e à memória das outras águas planas a lamber o muro sem ruído. Aos velhos muito velhos como ele. Nem todos já ali, os amigos. Os anos, sim, na memória talhada em cada ruga. Talvez a liberdade fosse afinal uma segunda natureza que não fora previamente sentida estrutural a esse ponto. E sente-se familiarmente em casa. Como se acabado de chegar. A uma história que poderia ser somente a de um espelho, macerado de oxidações e tempo, com a moldura de uma cidade. E esta, continua para lá do conto. Neste, é o fim.
Anabela Canas Via do MeioA senhora – 6 E o fato sempre novo, por estrear guardado para um dia. Novo e velho cada vez mais velho também. Velho de tantos anos, quantos tinha de residente. De lapelas estreitas e subidas. Guardado, embrulhado em papel, sempre o mesmo. Muito direito e dobrado pelos mesmos vincos. No baú de laca limpo e tornado a limpar e com aquele cheiro a bolor incontornável. E os livros. A desaparecer ano após ano nas necessidades, até restarem oito. Para sempre, nem que a fome vencesse todos os dias. Tudo pensado e repensado repetidamente. Dois para cada manga, dois para as bandas das lapelas, dois para os bolsos. Os mais amados. Sobre os bolsos. Tinham que ser aqueles. Sobre os bolsos em sinal de riqueza. O seu tipo de riqueza. Para fazer peso, para no dia em que fosse, fosse como engomado. Já só estes. Oito. A sobrar de rendas em atraso. Lidos, relidos e decorados sem querer. Sobre a enxerga escrupulosamente esticada de roupas e de frio a sobrar porque poucas. Ensaiado o momento ao longo dos anos, para correr como sonhado. As calças do fato, dobradas em duas pelos vincos quase cortantes, sob a almofada. E uma camisa branca, de tão guardada e dobrada, amarelada sem uso nas dobras. Para um dia. E nos outros sempre a outra roupa em tudo igual mas mais puída e indefinida na cor. Vestígios de corrosão – ratos. Só a mala das figurinhas de sombra e dos cenários, sempre verificada e protegida como podia. Miserável. Como tudo se tornara. Quando deixou de acreditar. Que poderia vencer aquele bolor insano que sempre retomava o seu curso, resistente, forte em aroma e colorido difícil, cada vez mais difícil de desenraizar das roupas. Da cama, da casa. Se assim se podia chamar. A humidade a ressumar de todas as matérias e a chorar em veios que chegavam a escorrer como lágrimas. Mas todos os dias limpava escrupulosamente tudo o que havia e era pouco. Tudo sempre ao longo dos anos a pensar no dia. E no rigor do fato. Isso não podia falhar. O homem velho que já só precisava de ganhar um mínimo. Mergulhado no caudal humano do Leal Senado, fechava mais cedo os painéis de pano de seda muito descorada e envelhecida, com a figurinha da senhora sem nome, cujo elemento distintivo era uma certa diferença no recorte do nariz, uma inclinação diferente da nuca, bem arrumada e entalada entre os painéis de tecido de seda antiga e grossa, já muito deslavados de sol chuva e bolores, e, tudo numa mala antiga de couro, resistente e gasta, que já começava a pesar em si, independentemente do conteúdo. Como uma idade. Ali. Poisada no chão. Ou uma vida. Ao lado do banquinho de fórmica castanha de abrir e fechar. De perna magra cruzada sobre perna magra, o cotovelo ossudo apoiado no joelho de cima e um olhar vago de resignação para todas aquelas pessoas que escorrem da rua da Palha para o largo. Iguais às outras de minutos antes. No seu silêncio o homem velho sabia que todas as palavras se tornam nítidas por contraste e por se fazer a vida avançar. Correr ou estagnar no passado. Pensou e sem concluir, limitou-se a fechar os três painéis de pano muito descorado, com a figurinha da senhora delicadamente protegida. Como filha. ∞ E um dia foi. Atravessou a fronteira e soube que estavam ali à espera de o ver chegar. Próspero e saudoso. Imaginado. O ritual dos livros, dias antes, pesos a alisar o fato. E no dia que era, entristeceu nele uma coisa difusa e sem sentido e foi assim mesmo, deixando o fato para trás. Viu-os. Não de imediato. Mas algo simplesmente no arredondado da nuca da senhora muito velha. Muito pequena, muito enrugada e de olhos míopes. A senhora muito velha cujo único sinal distintivo era a curvatura da nuca enfeitada de um rabo – de – cavalo curto. Tingido de negro. Ele, magro e franzino de ombros, óculos de sol e bolsa marsupial na cintura baixa, a contrabalançar a ligeira curvatura das costas. Fato completo de poliéster. Devia ser ele. O menino que sobrara. Cujo sinal distintivo era um telemóvel no cinto das calças e um relógio grande, no pulso magro. Olhou para si próprio de dentro e, ainda de longe, para eles. Estranhando como as coisas mudam, a realidade a tornar-se outra coisa, sem disso se fazer missão de vida. Como invisíveis obreiros, zelando. À espreita de sinais de alarme. Prévios. Aquele olhar duro. A segunda menina que não chegou a ver e que ela dera sem hesitar. Talvez isso. Ficando – sem o saber ainda – envolto numa pele de silêncio e, nessa melancolia irremediável, impedido de se ligar a um lugar e, agora, a um caminho. Olhou. Num longo momento em que uma sucessão de décadas, sacrifícios e sonhos se esfumaram na simples visão do que esperara. De si e deles. De si que não estava ali, e deles que não sabia. Virou-se lentamente de costas e parou para sentir a eternidade pequena daquele movimento. E continuou a andar. Mas de regresso. Não o reconheceram, ou fizeram menção de lhe tornar fácil o momento. Um assomo de alegria e seria diferente. Qualquer coisa faria perigar este virar de costas. Mas não. Seguiu. Agora em frente. Afastando-se para sempre do que – soube no momento – nunca fora a cor, mas o sonho. ∞ Percorreu ruas em cinzentos. Pensou no fato em cima da cama. Chegou. Os oito livros em rumo de desagregação de tanto resistirem às manchas do tempo. Da memória. Para o dia. Que foi um dia diferente do que era para ser. Retirou os livros e devolveu-o cuidadosamente às folhas de papel quase a rasgar nos vincos de muitos anos. Como um mapa de rios sinuosos a rasgar uma terra inóspita. Embrulhou como sempre. Desembrulhou. Deitou-se pensativo à espera de um resto de sono que atravessasse outros dias até ali. Fazia contas aos anos. Dele, dos livros, do fato para o dia do encontro que passou sem ser. (continua)
Anabela Canas Via do MeioA senhora – 5 Volta-se a esta ideia como se volta sempre aos mesmos pensamentos, quando se apresentam, mesmo não querendo, como becos de cidade, por mais que conhecida. Sob as vistas de muitas janelas e ponto de encontro de portas fechadas ou não, mas que para o viajante não oferecem estalagem, antes o lembrando de que somente pode retornar sobre os passos levados até ali. E os pensamentos do homem velho, depois do dia em que passou a sê-lo, eram circulares e obsessivos. Como se uma teimosia que não dominava o retivesse em passos circunscritos a um percurso de hábito, caminhando sobre os mesmos passos e dúvidas, encerrados uns e outros e sem outra possibilidade mais válida do que o abandono completo. Como cinzas a espalhar sobre o delta do rio sem elogio fúnebre, ou pasto para um sopro inesperado que delas fizesse elevar a vitoriosa fénix. Mas durante muito tempo, somente os passarinhos verdes aprisionados amorosamente em gaiolas bonitas como crânios repletos de sentidos, se ofereciam como metáforas. E, se confiasse diariamente estes pensamentos que mesmo a si próprio já saturavam, nos seus vícios e estagnação próprios daquilo que não cresce mas degenera, ver-se-ia assim, pelos olhos dos amigos do muro do xadrez e dos passarinhos e cujos pensamentos também não adivinhava, com uma intolerância insuportável e imaginada maior que a sua, a este desfilar impotente e repetitivo de fantasmas. Porque na sua mente, as mesmas ideias de todos os dias. Quando foi que imperceptivelmente notou que nada o unia a este território, mesmo depois da estranheza inicial? Como nada o prendera ao cenário novo do outro país nos fulgores histriónicos da revolução. Quando se desviou do caminho de tempestuosas chuvadas de luz, cor e ruído. Tilintar de moedas e brilhos dourados. Quando pensou de novo, que afinal o sinal enorme que lhe marcava meio rosto, era sinal de separação. Sinal de mudança, de disjunção, sinal de esperança de intempérie de esforço de persistência de segregação de desistência. Afinal. Sinal em que a genética, ou mais superficialmente um sinal ao espelho, tempera para a vida induzindo sentidos, sem que tivesse que o ser. Tudo o separava de tudo como o seu rosto se separava em dois, como o teatro de luz e ausência de luz, a que dedicara a vida. E por detrás do qual se escondia o seu silêncio feroz. Poderia pensar que começara no dia do bilhetinho amarrotado a dizer que não viriam mais. Mas fora bem antes, quando ainda lá, observou a impiedosa destruição da esfera privada, corroída por dentro porque também pelas mãos daquela cujas faces de textura de pêssego lhe iluminaram os dias e que entusiasticamente abraçou como suas e como seus, ideias e ideais. Nada podia ser pior do que essa solidão dentro das paredes de casa. Aquele incompreensível entusiasmo pelo pensamento único. Foi aí que se tornou – sem o saber ainda – envolto numa pele de silêncio e numa melancolia irremediável impossível de se ligar a qualquer lugar. Demasiados traços de destruição do passado. E, mais tarde em Macau, demasiados sonhos com um dia no futuro. Pensava às vezes nisso. Sem querer. Estranhando como o grau de existência muda, sem que disso se tenha que fazer missão de vida. O que é real a tornar-se uma outra coisa. Como estranhos e invisíveis obreiros, zelam. À espreita de todos os sinais de alarme. Prévios. Previdentes. Aquele olhar de brilho metálico. A segunda menina – depois do filho homem. Que não chegou a ver e que ela dera sem hesitar. Talvez isso. Talvez tenha fugido disso. ∞ A senhora, naquele meio de tarde, afasta-se com a mesma indefinição alheada da zona norte que manterá à chegada às primeiras ruas reconhecidas. ∞ No fim esta era a única figura pela qual zelava carinhosamente como ponto de chegada ou mesmo síntese de todas as histórias contadas e que já nada interessavam. Mas dizendo fim, cabe aqui ao narrador emendar essa expressão saída de um preconceito que não quer validar, mas sim editar. E dizer de outro modo: mais tarde. Só a história não contada desta personagem única e estrangeira. Nem sequer intuída porque é somente uma não história. Sintetizada como numa cristalização apurada, num único momento em que se cruzaram ruas na zona norte, colocando ali no mesmo momento duas pessoas com a mesma relação de estranheza com o território envolvente. Permitindo intuir em dois únicos fotogramas comparados, uma fuga idêntica, mesmo se não sublinhada pela geografia ou pela história. Duas pessoas que desfiaram a certa altura um rol de critérios talvez análogos de pertença ou exclusão de identificação ou alienação. Seres estranhos ao lugar, em busca de uma esfera mais alargada do que a sua bolha sucinta, que se ligasse a este outro lugar. Um, encontrou-se na imagem do outro. Um dia tivera que a criar. Como reflexo de toda a prolongada e densa sensação de que o que vira era o que o definia desde sempre. Lá na terra grande, como ali. Desenraizamento e alienação. Ao espelho. ∞ Ela olha-o com um súbito afecto (como de criatura criada ou criadora de uma visão quase sólida) e vê o homem velho estrangeiro e já não só estrangeiro para si. Mas estrangeiro em si. De um território ou de um mundo em geral. Sem demais pontes de comunicação do que aquelas. Tecidas no silêncio dos fios e com as varas finas. Arrumou os fios. Ela arrumou-se melhor na teia dos fios. Sorriu de forma lunar, quase para o lado de dentro do rosto. Quase para ninguém, talvez só para si ou para o homem velho que já quase se desprendia dos fios tocando-os. Porque o desenhara com o alarado sinal cinza escuro no rosto quase a extravasar o queixo? Arrumou-os na diligência de que se não embrulhassem e fizessem nós, de vida, de desarrumação a mais. Guardou uma suave impressão do homem muito velho que se fizera pessoa. Arrumou os fios e o cenário. Deixou-o ir. A partir daí. ∞ Ou foi ilusão sua, de personagem que não soube que era. (continua…)
Anabela Canas Via do MeioA senhora – 4 Entre os dias e os meses e os anos do início nesta terra, já então em tudo diferente, o homem então jovem, parece intuir o gesto de uma curva. Suave e lentamente a crescer do muito difícil, do sem nada para começar, crescendo lento para uma forma que se insinuava, a desenhar-se neste secreto elaborar com um fim preciso. Amealhar para eles, segurança e sentido, leveza e fé. Não aquela de antepassados abandonados em altares para lá de uma imensa e densa fronteira. Mas uma fé igual à dos pais que secretamente lhe fizeram chegar uma pequena quantia de dinheiro guardado e restos secretos e poucos de joias de família. Segredo perigoso para acompanhar o filho em fuga para melhor. Com o que puderam e sem hesitar perdê-lo. Queria pensar que a mulher que um dia, porque o tempo corre, iria passar a ser a mulher muito velha, aquela cujo elemento de distinção em tempos fora apenas a curvatura imutável de uma nuca, e um colorido fresco no rosto e esquecendo depois a expressão mutante do olhar, não ia descurar os frutos e figuras recortadas em papéis de prosperidade, fatos e iguarias umas mais reais do que outras, na mesma e imutável irrealidade de venerar. No altar doméstico abandonado. Os mortos. Os mortos queridos ou os mortos que a família uniu antes de o ser numa conjuntura de encadeado para sempre. Que a mulher não iria deixar de acender as velas dos antepassados. Mas estavam longe. Antepassados com país, mas longe nos seus altares domésticos. Não fora já longínqua a forma de serem mortos na vida dos vivos. Pensa. O homem muito velho vindo dessa China imensa e mutável em que um dia não reconheceu a sua terra e a si. ∞ Fugido. Para emendar um sonho. E trabalhar para ganhar o que lhe pudesse trazer o princípio do sonho até ali, de novo a rapariga jovem de tranças, faces frescas e queixo decidido. E o filho pela mão. Noites dramáticas de agonia, expectativa e frio a entranhar-se na alma, encharcada de temor como os corpos no canal. Quando o dinheiro finalmente era suficiente para virem. E levados de volta. E voltando, quando muito tempo depois, o dinheiro voltava a chegar. E levados de volta. E voltando. E levados de volta e um dia não voltaram mais. Não queriam. Ao longo de anos, bilhetes espaçados a combinar a vida. Ao ritmo desesperante e lento em que as economias se somavam até à quantia necessária. E no dia em que pararam de chegar e eles não voltaram a tentar, em que foi dito que ela não voltaria mais, com o filho pela mão a arriscar nas águas do canal vidas e o dilema do entusiasmo patriótico, o homem envelheceu numa noite. Não começou a envelhecer como muitas vezes um pouco de cada vez a cada perda, a cada desilusão e a cada dor mais persistente. Simplesmente envelheceu. Tudo de uma vez. Deitado de lado sem dormir, com uma cinta de aço a tolher-lhe o peito e o pensamento vazio. Na mão o bilhete escrito e definitivo e ao lado o sonho que morreu. Em sombra. ∞ Sempre mentalmente se referiu a ela simplesmente como a senhora. Talvez por respeito, seguramente por distância. Aquela a partir da qual a observara e aquela que nela intuía. A da estranheza e do hiato curvo, que como uma auréola a circundava. Por isso estava bem. Assim sem nome nem história de vida. Personagem única. No primeiro olhar, algo dele voou para aquela estrangeira, desligada e leve, errática a palmilhar ruas para trás e para diante, num cenário estranho, como um símbolo. Uma figura plana, assim vista de fora, em sombra e estranha. Talvez adivinhasse nela a incapacidade de prender. Pessoas em laços. Recortou-a em materiais delicados transparentes à luz. E nos seus movimentos, projectou a alma à procura de definição e sentido, naquele ser desligado e eco. Como espelho em que finalmente visse estacionar o reflexo de toda aquela densa impressão do que o definira desde sempre. Como neste território, que durantes décadas custou a acolhê-lo. Resistência sua. Quase desistência. E no entanto, muitos anos passaram em que acalentou a ilusão de que a ligação ao território iria crescer. O peso da sombra no chão, a identidade nele. Com o cartão. E que um dia se sentiria em casa, no presente. Não na expectativa nem na memória. O território a crescer na razão inversa de si. A terra a nascer imparável e ruidosa numa modernidade predadora e o corpo a implodir sem comida forte nem remédio. O lugar a tornar-se irreconhecível como ele, mas na razão directa de si. Contudo, foi ao olhar de frente essa estranheza a ganhar território em si, um dia no centro da cidade, que entendeu que daí crescera afinal e distraidamente uma vida. Um outro. Como se largada uma pele sem préstimo e ressequida dos anos, outra por debaixo em espera, aparecesse afinal fresca, idosa e nova. Com uma memória de perda do lugar em metamorfose e quando perda significa posse. ∞ Ela olha-o e vê o homem velho muito velho estrangeiro em si. Sem mais pontes de comunicação do que aquelas. Tecidas entre varas finas. E a senhora, sem se saber no teatro de uma peça desconhecida, sentiu o aroma inconfundível a bolor e deitou-se naquele calor abafado e húmido. Esperando que a chuva não invadisse a mala velha de cabedal. E num momento ou outro dormir. Se estivesse escrito. A senhora cuja única distinção para lá de ser contrastante numa rua onde todos sabiam para onde ir, era não se saber parte de uma história desconhecida, em que o papel desempenhado não era o seu, mas o dele, ou nem isso, apenas uma figuração muda da ideia de aprisionamento na exterioridade inevitável daquele lugar. Sentiu de novo um odor enjoativo aos bolores de várias idades, uma ligeira e incomodativa sensação de sufocar e virou-se ou a isso foi obrigada pela posição dos painéis guardados, para dormir naquele calor abafado e húmido. A repetir para dentro como um mantra, que a chuva não entrasse a pouco e pouco pela tampa da mala um pouco fora de forma. Se não estivesse escrito. (continua…)
José Simões Morais Via do MeioDa Yuan, Grande Ciclo de 540 anos A 4 de Fevereiro de 2024 celebra-se o Lichun, Princípio da Primavera e inicia-se o período (运, yun) 9 de vinte anos (2024-2043) ligado com o Elemento Fogo Li (离), que fecha o Grande Ciclo, Da Yuan (大元), iniciado em 1504. O Grande Ciclo (大元) de 540 anos é dividido em três Zheng Yuan (正元), cada com 180 anos: o Alto, 1º Zheng Yuan (正元) começou em 1504 e terminou em 1683; o Médio, 2º Zheng Yuan entre 1684 e 1863; e o Baixo, 3º Zheng Yuan de 1864 a 2043. Dentro dos 180 anos de cada Zheng Yuan (正元), conhecido por San Yuan Jiu Yun (三元九运), existem três ciclos de sessenta anos, cada com nove períodos (运, yun): o ciclo alto (shang yuan 上元) contém os períodos (yun) 1, 2, 3 de vinte anos cada; no ciclo médio (zhong yuan中元) encontram-se os períodos 4, 5 e 6; e o ciclo baixo (xia yuan下元) inclui o período 7, 8 e 9. Cada período (yun) é governado por um dos oito trigramas do Bagua, excepto o 5.º associado com o centro/meio a representar a Terra no San Yuan Jiu Yun (三元九运), que também se chama Luo Shu Yun. Assim, referente ao Baixo, 3º Zheng Yuan (正元) com 180 anos (1864-2043), quanto aos três ciclos de 60 anos [San Yuan Jiu Yun] no Ciclo Alto (shang yuan 上元) com 60 anos, o 1º período (yun) de 20 anos (1864-1884), Kan (坎) está associado ao Elemento Água; o 2º período de 20 anos (1884-1904), Kun (坤), ligado ao Elemento Terra; e o 3º período de 20 anos (1904-1924), Zhen (震), associado ao Elemento Madeira. Quanto ao Ciclo Médio (zhong yuan中元) com 60 anos, contem o 4º período de 20 anos (1924-1944), Xun (巽) Vento (associado com Madeira); o 5º período de 20 anos (1944-1964), Centro (中) conectado com o Elemento Terra, é o momento de balanço e mudança; e o 6º período de 20 anos (1964-1984), Qian (乾) Céu (associado com o Elemento Metal). Mas segundo referem alguns especialistas, o 4º período é de 30 anos (1924-1954), o 5º período, o meio, a servir de espelho e o 6º período tem 30 anos (1954-1984). No Ciclo Baixo (xia yuan下元) com 60 anos, o 7º período de 20 anos (1984-2004), Dui (兑) Lago (associado ao Elemento Metal); o 8º período (yun) de 20 anos (2004-2024), Gen (艮) Montanha (conectado com o Elemento Terra) e o 9º período de 20 anos (2024- 2044), Li (离) ligado com o Elemento Fogo. Como para o Feng Shui o ano começa com o Lichun (normalmente a 4 de Fevereiro, podendo também ocorrer a 3 ou a 5 de Fevereiro) todas as datas referidas acima estão conectadas com o ano solar. SAN YUAN JIU YUN Explicado a divisão do grande ciclo Da Yuan, convém referir San Yuan Jiu Yun (三元九运), com 180 anos, provém do Calendário Huangdi (黄帝历). Segundo o livro Lüshichunqiu-zunshi (吕氏春秋-尊师), Huangdi no ano 2698 a.n.E ordenou a um dos seus oficiais, Da Nao (大挠), a feitura do calendário. Outro livro, Wu Xing Da Yi (五行大义) da dinastia Sui refere ter Da Nao usado os Cinco Elementos (五行, Wu Xing), combinando as mudanças de energia (气, qi) do Céu/Sol/yang e da Terra/Lua/yin, o que deu os 10 Tian Gan (天干, Caules Celestes) e os 12 Di Zhi (地支, Ramos da Terra) e da combinação dos dois criou o ciclo de 60 anos. Os nomes dos Caules Celestes e dos Ramos da Terra foram dados por Da Nao. Em Sichuan Yanting na aldeia Panya foi encontrado uma estela que no topo referia Tianhuangshi (天皇氏) ter sido a primeira pessoa a usar o nome Ganzhi (干支) para separar os anos. Ganzhi refere-se à combinação de Tian Gan e Di Zhi. Jia (甲), o primeiro Tian Gan, combinado com Zi (子), o primeiro Di Zhi, é o primeiro ano dos 60 e Jia Zi serviu também para dar o nome ao ciclo de 60 anos. No sistema solar existiam nove planetas, (apesar de Plutão ter agora deixado de ser considerado um planeta), e Mu Xing (木星, Júpiter) e Tu Xing (土星, Saturno) estão alinhados a cada vinte anos. Já estes dois planetas e Shui Xing (水星, Mercúrio) em sessenta anos ficam no mesmo alinhamento. Em cento e oitenta anos, todos os nove planetas (Vênus, Mercúrio, Terra, Marte, Júpiter, Úrano, Saturno, Nepturno e Plutão) encontram-se num alinhamento completo. Tal não muda e esta dimensão do Tempo está sequenciada no San Yuan Jiu Yun (三元九运), reflectindo este o Céu que separa o Tempo em ciclos. Os antepassados ao estudar o Céu descobriram a relação com os planetas do sistema solar e assim encontraram o ciclo de vinte anos do alinhamento dos planetas Júpiter e Saturno com o período (运yun) de vinte anos. O mesmo ocorreu com o alinhamento dos planetas Júpiter, Saturno e Mercúrio, cujos 60 anos se liga com um Yuan (元). Quanto aos 180 anos do alinhamento completo dos nove planetas, conecta com um Zheng Yuan (正元), corresponde a um San Yuan Jiu Yun. BEI DOU JIU XING Também se descobriu que as nove estrelas da Constelação Ursa Maior (Bei dou jiu xing, 北斗九星, Mapa do Grande Carro) [7 estrelas mais brilhantes (Bei dou qi xing, 北斗七星) com as outras duas estrelas, cuja luminosidade é muito fraca zuofuxing (左辅星) e youbixing (右弼星)], afectam o ocorrido na Terra, correspondendo cada uma das nove estrelas a vinte anos, dando o resultado de 180 anos. A estrela número 1 da Bei dou jiu xing, a Dubhe (天枢, Tianshu) no Feng Shui é denominada Tanlang (贪狼); a estrela número 2, Merak, (天璇 Tianxuan) conhecida no Feng Shui por Jumen (巨门); a número 3, Phecda (天玑 Tianji) no Feng Shui chamada Lucun (禄存). A 4 Megrez (天权Tianquan) onde começa a bifurcação é pelo Feng Shui denominada Wenqu (文曲). A estrela 5 Alioth (玉衡, Yuheng) na ponta do trapézio, no Feng Shui é denominada Lianzhen (廉贞); a 6 Mizar (开阳, Kaiyang) no Feng Shui chamada Wuqu (武曲); a da ponta, a estrela 7 Alkaid (瑶光, Yaoguang) no Feng Shui designada por Pojun (破军). As outras duas estrelas, cuja luminosidade é muito fraca, a estrela 8, zuofuxing (左辅星) e a número 9, a youbixing (右弼星). Estas as estrelas do Mapa do Grande Carro, Constelação Ursa Maior (Bei dou jiu xing, 北斗九星). O sistema da dimensão do Tempo, San Yuan Jiu Yun (三元九运) com nove períodos (yun) de 20 anos cada, pode ser ligado com cada um dos 9 planetas do sistema solar, ou conectado com uma das 9 estrelas da Constelação Ursa Maior (Bei dou jiu xing, 北斗九星), e assim se percebe como cada estrela nos irá afectar num período 20 anos. No último dos San Yuan Jiu Yun (三元九运) com 180 anos, o ciclo baixo (xia yuan下元) com 60 anos, entre 1984 até 2043 está conectado no Yi Jing com o hexagrama n.º 50 Ding Gua (o Caldeirão), trigrama superior Fogo [duas linhas inteiras, com uma quebrada no meio] sobre trigrama inferior Madeira [duas linhas inteiras tendo na base uma quebrada]. “As linhas (yao) que compõem este hexagrama formam a imagem do caldeirão; abaixo estão as pernas sobre as quais está o bojo, em seguida as alças e acima as argolas usadas para carregá-lo. Esta imagem do hexagrama original sugere também a ideia da cozinhar”, pois a madeira é colocada a alimentar o fogo. Cada hexagrama (gua) tem seis linhas (yao) e cada linha controla dez anos. Na quarta linha (2014-2023), linha inteira (yang yao masculina), mas havendo uma linha mutável (o velho yang a corresponder ao número 9) na quarta posição, significa: “Ding com uma das pernas quebradas”. A respeito dessa quarta linha que faz a ligação entre o que se encontra em baixo ao que está em cima, Confúcio comenta: “Carácter fraco numa posição de destaque, pouco saber com grandes planos, força diminuta aliada à grande responsabilidade, raramente escaparão ao infortúnio”. O ano de 2023 fez de fronteira entre o fim do 8º período (yun) de 20 anos, que começou a 4 de Fevereiro de 2004 às 19h56m e finalizará às 16h28m de 4 de Fevereiro de 2024, quando abre o 9.º período (yun) de vinte anos (2024-2044) conectado no Yi Jing com o hexagrama n.º 30 Li Gua, significa Aderir (Fogo).
Hoje Macau Via do MeioO despertar das mulheres chinesas e o declínio da natalidade Académicos reflectem sobre a baixa natalidade e o papel das mulheres hoje na China YIXIU WEI, WENDY WU, E JIA YUXUAN Wang Xianqing: Nos últimos anos, a taxa de natalidade na China registou um declínio acentuado. Será esta uma consequência normal de uma determinada fase do desenvolvimento económico, como quando o PIB per capita de um país atinge os dez mil dólares americanos e há um aumento simultâneo da educação das mulheres e das taxas de conclusão dos estudos universitários? Ou existem factores específicos exclusivos da China que estão a influenciar este fenómeno? Zhao Yaohui: Na minha opinião, a economia não é o único factor. As noções tradicionais de discriminação contra as mulheres ainda persistem, mas em comparação com as mulheres dos anos 70 e 60, as dos anos 80 e 90 sofreram mudanças significativas. Os seus conhecimentos, o seu nível de educação e as suas competências no local de trabalho ultrapassaram os dos homens. Há cem anos, nos Estados Unidos, as mulheres com formação superior podiam escolher a carreira em detrimento da família, sob forte discriminação de género, mas as mulheres chinesas escolheram sempre a família, mesmo as que tinham formação superior, o que indica a enorme pressão imposta pela cultura tradicional. No entanto, as mulheres nascidas nos anos 80 e 90 entraram numa nova fase: já não estão limitadas pela tradição e sentem-se obrigadas a escolher a família face à desigualdade de género. Este conflito entre as noções tradicionais e as capacidades e valores da mulher moderna marca uma das características desta geração e creio que é a principal razão para o declínio da taxa de natalidade feminina. Lei Xiaoyan: Concordo com o Professor Zhao. Não são apenas os factores económicos que levam ao declínio das taxas de natalidade; o desenvolvimento socio-económico trouxe também muitos outros factores que, colectivamente, contribuem para o declínio. No entanto, o declínio para níveis tão baixos é algo anormal. Os Estados Unidos também registaram um declínio das taxas de natalidade, mas não tão baixo como o da China, numa fase semelhante do PIB per capita. É claro que a política de planeamento familiar acelerou o declínio das taxas de natalidade. Além disso, os conflitos entre grupos sociais e os custos da maternidade são também factores-chave para o rápido declínio das taxas de natalidade para um nível tão baixo. Zhao Yaohui: De facto, as regiões com as taxas de natalidade mais baixas a nível mundial situam-se na esfera cultural da Ásia Oriental, incluindo a China, a Coreia do Sul e Singapura. Um ponto comum entre estas regiões é a prevalência da discriminação contra as mulheres e os sistemas patriarcais enraizados na cultura oriental. É essencial reconhecer o profundo impacto que estas normas sociais têm nas escolhas familiares das mulheres e considerar estratégias para enfrentar eficazmente estes desafios culturais. Huang Wei: Também concordo com o Professor Zhao. Não é exacto dizer que o crescimento económico conduz invariavelmente a uma redução das taxas de natalidade. A investigação indica que, em alguns casos, as taxas de natalidade aumentam com a melhoria das condições económicas, o que indica que as pessoas continuam a querer e a gostar de ter filhos. Isto demonstra que não existe uma relação directa e uniforme entre o crescimento económico e a diminuição das taxas de natalidade. Por exemplo, os Estados Unidos têm um nível económico relativamente elevado, mas não têm uma taxa de natalidade particularmente baixa. Alguns países europeus, economicamente mais avançados do que os países da Ásia Oriental, também mantêm níveis de natalidade mais elevados. Analisando os dados históricos e os dados transversais globais, a relação entre o crescimento económico e as taxas de natalidade não está diretamente correlacionada. De facto, existe uma relação positiva entre o crescimento económico e a promoção das mulheres. Numerosos economistas investigaram extensivamente esta área e, nos últimos anos, a relação causal entre o crescimento económico e a emancipação das mulheres tornou-se cada vez mais clara. No entanto, a relação causal entre o crescimento económico e as taxas de natalidade permanece relativamente ambígua. Zhao Yaohui: O principal factor é a melhoria do nível de educação das mulheres. Wang Xianqing: Porque é que os países da esfera cultural confucionista, como a China e outras nações da Ásia Oriental, apresentam taxas de natalidade relativamente baixas? Tradicionalmente, as mulheres chinesas dão grande importância à família. Será possível que, depois de receberem educação e de se tornarem esclarecidas, considerem o facto de não terem filhos como um dos indicadores significativos da sua independência? Zhao Yaohui: “Tenho o direito de escolher não casar” era quase inconcebível há um século atrás, quando o casamento era muitas vezes essencial para a sobrevivência de uma mulher. No entanto, a situação hoje é totalmente diferente. Actualmente, as mulheres já não precisam de depender de outra pessoa para a sua subsistência. Podem viver e trabalhar de forma independente, o que está intimamente relacionado com o facto de os níveis de educação das mulheres terem ultrapassado os dos homens. Wang Xianqing: Professor Zhao, referiu que os Estados Unidos entraram agora na quinta fase, em que muitas pessoas conseguiram um equilíbrio entre a família e a carreira. Mas, actualmente, na China, cada vez mais mulheres optam por não casar nem ter filhos para se concentrarem nas suas carreiras. Como explica este fenómeno? Zhao Yaohui: Nos Estados Unidos, embora o fenómeno das mulheres abandonarem o trabalho para cuidar da família após o parto ainda exista, em geral, as mulheres americanas conseguem equilibrar melhor a carreira e a família do que as gerações anteriores. Em comparação com as americanas, há mais mulheres chinesas que optam por concentrar a sua atenção na vida familiar, um fenómeno que se mantém até hoje. Apesar de algumas mudanças subtis, a situação geral permanece a mesma em termos absolutos. As mulheres americanas lutaram durante décadas ou mesmo séculos para encontrar formas de equilibrar a carreira e a família. A primeira fase envolveu a escolha entre as duas. Nas décadas de 1920 e 1930, as normas sociais não permitiam que as mulheres trabalhassem depois do casamento, pelo que só podiam trabalhar antes de se casarem. Na terceira fase, as mulheres deram prioridade ao cuidado da família e regressaram à carreira depois de os filhos terem crescido. Embora estas mulheres tivessem um período de carreira mais longo e pudessem trabalhar até à reforma, também perderam muitas oportunidades no local de trabalho devido às responsabilidades familiares. Tendo testemunhado a experiência infeliz das suas mães, as mulheres da quarta fase decidiram desenvolver primeiro as suas carreiras e adiar o parto. O adiamento do parto levou a que algumas mulheres não conseguissem conceber naturalmente, perdendo assim a oportunidade de ter filhos. Agora, na quinta fase, as mulheres americanas começam a equilibrar a família e a carreira e, graças a tecnologias como a reprodução assistida e o congelamento de óvulos, as mulheres podem equilibrar melhor estes dois aspectos. Na China, as mulheres, mesmo as que possuem diplomas universitários, têm sido historicamente obrigadas a casar e a ter filhos. Após a década de 1950, um número significativo de mulheres foi mobilizado pelo Estado para integrar a força de trabalho. No entanto, as noções tradicionais continuaram a ter um impacto profundo nas mulheres profissionais chinesas. Muitas vezes, enfrentavam o duplo fardo de gerir as suas carreiras e, ao mesmo tempo, serem responsáveis pelas tarefas domésticas, pelos cuidados com os filhos e pela assistência aos maridos após um dia de trabalho. Durante a era da economia planificada, as empresas disponibilizavam creches para ajudar as mulheres trabalhadoras a cuidar dos seus filhos, o que significava que as mulheres podiam regressar ao trabalho após alguns meses de licença de maternidade. No entanto, as creches foram basicamente canceladas após a reforma das empresas públicas em 2000. Apesar da eliminação deste tipo de apoio, continuou a ser convencional as mulheres não abandonarem os seus empregos para cuidarem dos filhos em casa. Na ausência de serviços de acolhimento de crianças, as mulheres tendem a escolher empregos mais flexíveis. Por exemplo, na década de 1990, havia muitas professoras nas universidades chinesas, o que é difícil de compreender para os americanos, porque nos Estados Unidos ser professor é altamente competitivo. Mas nessa altura, na China, os salários universitários eram baixos, pelo que muitos professores do sexo masculino optavam por exercer actividades comerciais, enquanto que, para as mulheres, o facto de não terem horário fixo de trabalho era conveniente para cuidar da família. No entanto, empregos fáceis significam muitas vezes um rendimento mais baixo e uma promoção mais lenta na carreira. Lei Xiaoyan: A tendência que acabámos de mencionar – de as mulheres optarem por ficar em casa em vez de trabalhar – tem de ser vista sob dois aspectos. Por um lado, algumas mulheres optam voluntariamente por ficar em casa e, por outro lado, algumas são obrigadas a fazê-lo. Nos anos anteriores, era mais uma questão de serem obrigadas a ficar em casa para cuidar dos filhos. Em anos anteriores, tratava-se mais de serem obrigadas a ficar em casa para cuidar dos filhos, enquanto atualmente se trata mais de uma escolha voluntária. Para que as mulheres optem voluntariamente por ficar em casa e renunciar ao trabalho profissional em favor dos cuidados com os filhos, é necessário satisfazer duas condições fundamentais: Em primeiro lugar, a sociedade deve reconhecer e respeitar os assuntos domésticos e os cuidados com os filhos como tendo a mesma importância que o trabalho profissional, valorizando assim os contributos das mulheres dentro de casa. Em segundo lugar, as mulheres que optam por ficar em casa não devem ter medo de se sentirem subordinadas aos seus maridos nem correr o risco de pôr em risco os seus casamentos devido à ausência de uma carreira. Só quando estas duas condições estiverem reunidas é que a decisão de as mulheres ficarem em casa para a educação dos filhos se tornará uma verdadeira escolha, livre da percepção de que é uma penalização. Wang Xianqing: O Professor Lei salientou o ritmo notável das mudanças nas taxas de natalidade, na educação dos filhos e nos níveis de educação das mulheres chinesas. No entanto, durante este processo, é essencial ter em consideração as áreas que foram bem tratadas e as que não o foram, em especial as que requerem uma reformulação cultural. Lei Xiaoyan: A China fez um excelente trabalho ao registar progressos significativos na educação das mulheres chinesas, permitindo-lhes atingir um nível de capital humano comparável ao dos homens. No entanto, a questão de saber se as mulheres podem garantir a igualdade de remuneração após o ensino requer uma análise mais aprofundada. Apesar de receberem a mesma educação e formação em termos de capital humano, as mulheres continuam a enfrentar desigualdades de género no local de trabalho. A discriminação de género e os preconceitos no local de trabalho dificultam o acesso a oportunidades e recompensas iguais. Estas questões exigem esforços contínuos para que se registem mudanças. Pergunta do público: Gostaria de fazer uma pergunta sobre a discriminação inversa do género. A discriminação inversa do género refere-se a situações em que a discriminação tradicional contra as mulheres por parte dos homens faz com que os homens sejam discriminados em determinados contextos sociais. Um exemplo notável é o serviço militar obrigatório exigido aos homens em muitos países, um mandato que não é alargado às mulheres. A discriminação inversa em função do género pode, em certa medida, conduzir a uma perda de benefícios para os homens. Como o professor mencionou anteriormente, os homens são sobrecarregados com a tarefa de apoiar financeiramente a educação dos filhos. Mas se os salários das mulheres forem mais elevados, isso pode aliviar um pouco a pressão sobre os homens para sustentarem a família, o que pode ser mais benéfico para os homens. Esta questão é causada por estereótipos de homens que pensam que as mulheres são mais vulneráveis, ou existem razões subjacentes mais profundas? Ou será que esta questão é, ela própria, uma falsa proposição? Huang Wei: Na verdade, penso que a discriminação de género e a questão que mencionou são duas coisas diferentes. Na minha opinião, a discriminação na investigação académica é diferente da discriminação na vida real; a discriminação na investigação académica refere-se a um fenómeno a outro nível. Por exemplo, na análise estatística, é frequente identificarmos resultados significativos negativos ou positivos e classificá-los como casos de discriminação. No entanto, a discriminação de que está a falar é mais parecida com a discriminação na vida real. Penso que não há nada que deva ser feito exclusivamente por homens ou mulheres. Trata-se mais de negociar para resolver problemas em pé de igualdade. Isto introduz outro conceito: a vantagem comparativa. Quem estiver mais apto para uma tarefa deve assumi-la, pois isso pode melhorar a eficiência. Por exemplo, eu sou uma pessoa descuidada, enquanto a minha mulher é mais meticulosa. Quando o nosso filho não está suficientemente agasalhado, posso esquecer-me de fechar o fecho do casaco. Mas quando chegamos a casa, a minha mulher chama a atenção para o facto, perguntando como é que eu me podia esquecer e se a criança se constipava, algo em que eu não tinha reparado. Penso que a divisão social do trabalho surge da necessidade de desenvolvimento económico, tornando mais eficientes as várias tarefas. O mesmo se aplica às famílias; as tarefas devem ser divididas de acordo com as características de cada pessoa. Através desta divisão do trabalho, podemos eliminar a discriminação e tornar toda a família e a sociedade mais eficientes e cheias de amor. Penso que esta é a direção correcta. Lei Xiaoyan: O que mencionou deve-se provavelmente a diferentes divisões de trabalho. Na nossa discussão, concentramo-nos na disparidade causada apenas pelo género em condições idênticas. Se não for esse o caso, a discriminação é causada por outros factores, como as diferenças nos níveis de educação. O Professor Zhao e eu realizámos um estudo sobre as diferenças cognitivas baseadas no género. A nossa investigação revelou que, entre a população idosa da China, as mulheres apresentam capacidades cognitivas mais limitadas e menos avançadas do que as suas congéneres internacionais. Em contrapartida, a nível mundial, quando avaliadas com base nos mesmos indicadores cognitivos, as diferenças entre os níveis cognitivos dos homens e das mulheres são mínimas, sendo que as mulheres demonstram frequentemente capacidades cognitivas mais elevadas. Explorámos as razões para este facto e descobrimos que um dos factores é a diferença nos níveis de educação e não a discriminação entre os sexos. No entanto, após uma investigação mais aprofundada, descobrimos que estas disparidades educativas têm origem no tratamento desigual de rapazes e raparigas durante a sua educação infantil, o que aponta, de facto, para práticas discriminatórias. Este facto sublinha a importância de não nos concentrarmos apenas nos resultados, mas de procedermos a uma análise exaustiva e científica para compreendermos os factores causais mais profundos. Pergunta do público: A Professora Zhao referiu que um dos principais obstáculos à participação das mulheres modernas na força de trabalho é o custo de oportunidade da participação laboral, especialmente em condições de mercado de trabalho difíceis. Os empregadores podem preferir contratar homens para evitar as implicações da licença de maternidade. Este é o maior custo de oportunidade para as mulheres. Embora políticas como a licença de maternidade alargada na China pareçam favorecer as mulheres, inadvertidamente elevam o custo da participação das mulheres na força de trabalho, tornando os homens uma opção mais rentável para os empregadores. A maternidade é uma responsabilidade conjunta do marido e da mulher. Como podemos fazer com que os homens suportem os mesmos custos que as mulheres de uma perspetiva económica? Como podemos garantir que as mulheres tenham as mesmas oportunidades de emprego que os homens quando procuram emprego? Huang Wei: A literatura existente oferece várias avaliações de políticas como a licença de maternidade. Por vezes, as políticas destinadas a proteger determinados grupos podem, inadvertidamente, prejudicá-los. Por exemplo, a regulamentação que impõe um salário mínimo para as pessoas com deficiência pode levar a que menos empregadores estejam dispostos a contratar pessoas com deficiência. O mesmo se pode aplicar às leis sobre o salário mínimo para todos os trabalhadores. Muitos académicos têm discutido a questão das políticas de licença de maternidade, mas ainda não existe consenso. O prolongamento da licença de maternidade revelou-se benéfico em alguns países e menos positivo noutros. Na China, alguns propuseram que os homens também fossem obrigados a gozar uma licença de paternidade igualmente longa quando as mulheres tiram a licença de maternidade. A questão da duração da licença de maternidade exige uma avaliação objetiva e realista, e a resposta mudará com o tempo. Penso que a resposta dos Estados Unidos a esta questão tem variado ao longo das últimas cinco fases. Por conseguinte, a questão da licença de maternidade continua a necessitar de um debate aprofundado. Zhao Yaohui: Esta questão envolve o tema de como reduzir a penalização da maternidade, que se refere à perda de oportunidades de emprego e de rendimento para as mulheres devido à maternidade. Afinal de contas, só as mulheres podem dar à luz filhos. É um facto inegável e um papel que os homens não podem substituir. O parto em si não é o problema, uma vez que as mulheres podem continuar a trabalhar até ao parto sem quaisquer problemas físicos. O que importa é depois do parto – se as mulheres são desvalorizadas no local de trabalho, se se tornam menos importantes ou se se tornam um fardo para os seus empregadores. As políticas devem centrar-se em aliviar os encargos das mulheres para facilitar o equilíbrio entre as suas responsabilidades profissionais e pessoais, tornando-as assim mais atractivas para as empresas. Por exemplo, há uma falta significativa de serviços de acolhimento de crianças dos 0 aos 3 anos, período durante o qual as mulheres dedicam muitas vezes um esforço substancial aos cuidados infantis, enfrentando desafios como o de arranjar uma ama. Este facto pode ter um enorme impacto no seu trabalho. A disponibilização atempada de serviços de acolhimento de crianças permite que as mães enviem os seus filhos para uma creche pouco tempo depois da licença de maternidade, o que aumenta a possibilidade de um melhor desenvolvimento da carreira dessas mães orientadas para a carreira. Por conseguinte, é importante minimizar o impacto negativo do parto nas mulheres, permitindo-lhes equilibrar eficazmente o trabalho e as responsabilidades do parto. Perspectivas para a nova geração de mulheres chinesas Tradicionalmente, as mulheres chinesas, mesmo face à discriminação, tinham poucas opções para além de casar e ter filhos. A situação das mulheres chinesas solteiras e sem filhos era historicamente mais difícil do que a das suas congéneres americanas. No entanto, nas últimas três décadas, registaram-se progressos consideráveis no estatuto das mulheres no local de trabalho. A proporção de mulheres que atingiram o ensino superior ultrapassou a dos homens, graças à universalização da Lei do Ensino Obrigatório e à expansão das matrículas nas universidades na década de 1990. A adesão da China à OMC provocou uma forte expansão dos empregos de colarinho branco, proporcionando muitas oportunidades de emprego para as mulheres. Apesar disso, as atitudes discriminatórias tradicionais em relação às mulheres ainda prevalecem na sociedade chinesa. Persistem fenómenos como a violência doméstica, os preconceitos de género que favorecem os homens e o grave desequilíbrio dos papéis de género nos agregados familiares. Mesmo as mulheres que ocupam posições de topo no local de trabalho são frequentemente sobrecarregadas com a maior parte das tarefas domésticas. As práticas discriminatórias contra as mulheres são ainda mais comuns nas zonas rurais. Além disso, o fenómeno do “funil de carreira” limita severamente o desenvolvimento das mulheres no local de trabalho. Tomando as universidades como exemplo, há muitas mulheres com doutoramento, mas uma proporção menor de mulheres entre os professores, ainda menor entre os professores associados e extremamente rara entre os professores catedráticos. O mesmo se passa nos serviços públicos. O número de mulheres diminui à medida que se passa para o nível de secção, de gabinete e mesmo de ministro. Este fenómeno merece a atenção e a investigação das pessoas. Pessoalmente, a situação actual das mulheres chinesas é semelhante à quarta fase de desenvolvimento das mulheres americanas mencionada anteriormente. As capacidades das mulheres foram reforçadas sem precedentes, mas a discriminação e os constrangimentos contra as mulheres continuam a existir. Perante esta contradição, muitas mulheres poderão optar por permanecer solteiras e sem filhos, uma tendência que poderá intensificar-se no futuro. Para ajudar as mulheres chinesas a alcançar um equilíbrio entre a carreira e a família, é necessário criar um ambiente social verdadeiramente equitativo. Para o conseguir, é fundamental defender três mudanças fundamentais: 1. Alterar as percepções discriminatórias e reformular a cultura tradicional. Os homens mais velhos e outros membros da família também devem adotar o conceito de igualdade de género. As sogras devem encorajar os filhos a fazer mais tarefas domésticas e a partilhar os encargos domésticos das noras. 2. A sociedade deve criar um ambiente de trabalho propício ao desenvolvimento familiar, proporcionando horários de trabalho o mais flexíveis possível. 3. A sociedade deve esforçar-se por oferecer serviços de acolhimento de crianças de elevada qualidade e a preços acessíveis, colmatando a lacuna substancial que existe atualmente, em especial para as crianças dos 0 aos 3 anos. Esta lacuna obriga frequentemente muitas mulheres a abandonar oportunidades de carreira promissoras em profissões com rendimentos elevados e a optar por empregos menos competitivos para cuidar das crianças. A nossa convicção é que os avanços tecnológicos e do mercado podem eventualmente retificar numerosos preconceitos e distorções cognitivas e comportamentais relacionados com o género. No entanto, este processo requer um período de tempo significativo. Por conseguinte, é imperativo que a sociedade no seu conjunto trabalhe proactivamente para criar um ambiente mais favorável às mulheres. In Pekingology
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA Viagem de Huang Xiangjian em Busca Dos Seus Pais Sakyamuni, o Buda histórico, é muitas vezes representado na companhia de dois dos seus discípulos: Ananda à sua esquerda e Mahakasyapa, à sua direita. Deste último, o reservado amante da solidão Mahakasyapa, diz-se que se recolheu numa gruta entre três picos da montanha Kukkutapada, em Magadha na Índia, onde está meditando à espera de Maitreya, o Buda do futuro, para lhe entregar as vestes e a tijela de esmolas que recebeu de Sakyamuni. De modo sobrenatural monges budistas que viviam na montanha das Nove Curvas, Jiuqu shan, na Prefeitura de Dali, no sudoeste de Yunnan, relocalizaram ou sobreimpuseram nesse lugar, desde então sagrado, a montanha indiana e passaram a designá-la, traduzindo o nome original como montanha Jizu, a «montanha do pé de galinha», porque é formada por três elevações à frente e uma atrás, exactamente como os dedos das patas das galinhas. Na altura da transição Ming-Qing, a montanha Jizu tornara-se uma das Cinco montanhas sagradas do Budismo, depois de Wutai, Emei, Putuo e Jiuhua e povoada, nas palavras do viajante Chen Ding, por «setenta e dois grandes templos, trezentos e sessenta mosteiros e um número incalculável de pequenos santuários.» O pintor de Wuxian (actual Suzhou, Jiangsu) Huang Xiangjian (1609-1673) fez uma pintura (Jornada para a reunião familiar, rolo horizontal, tinta e cor sobre papel, 31,4 x 550 cm, no Museu de Arte da Universidade de Hong Kong) figurando uma peregrinação a esse lugar invulgar como parte de uma não menos excepcional viagem em que mostrou a sua elevada consideração e cumprimento da virtude da ética confuciana sobre o Amor pelos pais (xiao). Tendo o seu pai, Huang Kongzhao, sido nomeado em 1643, magistrado na distante Província de Yunnan no fim da dinastia Ming, dá-se o conflito dinástico. Ao fim de sete anos sem saber notícias dos pais, resolveu iniciar uma caminhada de quinhentos e cinquenta e oito dias, percorrendo cerca de seis mil quilómetros para os ir buscar. Huang Xiangjian descreveria as dificuldades que passou: (…) «Vendo que as rachas nas rochas tornavam impossível caminhar, rastejei com as mãos e os joelhos durante mais dois ou três li para atingir o templo Tuzhu, lá no cume.» Mas no fim da pintura, em que mostra trinta e um lugares históricos, religiosos ou marcos geográficos faz uma grata exclamação: «Mas o meu pincel não consegue descrever as maravilhas para lá de maravilhosas e os perigos para além de perigosos que atravessei em dez mil li. Chegando ali perguntava-me se não estava já deveras numa outra esfera.» Quando voltou dessa viagem em busca dos pais, refez a memória da jornada em pinturas que evidenciaram o seu carácter leal. Porque ao percorrer territórios e pressentindo que na paisagem, como na montanha Jizu, algo dentro parecia palpitar, cumpriu a vontade do pai que se tornara um devoto budista.
Anabela Canas Via do MeioA senhora – 3 Havia um amor combinado, um casamento. Entre famílias respeitáveis e para a vida. A dele com cultura, o teatrinho de marionetas delicadas e livros. A outra, com terra. Das três cartas de tradição, só a primeira foi entregue. A de noivado, com o contrato entre famílias. As datas de nascimento dos noivos, analisadas e estudadas por quem sabia, compatíveis e auspiciosas. As famílias contentes. Segurança e idoneidade. Ele menos jovem. Ela, muito. Não lhe conhecera o olhar e poucas vezes se avistaram. Seria talvez entregue – o olhar baixo, de modéstia combinada – contra a carta do dote, ou ela no seu todo, com a terceira e última carta de contrato entre famílias, a do casamento em si. Que a levaria a sua casa para sempre. Chegaria de olhar novo nunca desvendado, para a cerimónia de união entre estranhos e desconhecidos. Não se sabe o que lhe voaria por detrás dos olhos. Dos dele, uma suave tristeza quase invisível, ante tamanha submissão. Mas nunca chegou a ser. Sem anúncio, o fragor da revolução quebrou o contrato, como um puzzle desmanchado. Liberto, só percebeu a nova dimensão das coisas, quando poisou os olhos pela primeira vez noutra face, rubra, aveludada e sorridente. Uma curva particular da nuca, que rodara para ele um rosto, um fervor e uma energia em que nada fora combinado. Iluminados por um mundo desconhecido e nunca imaginado – uma janela sobre a paisagem – aqueles olhos vivos e directos. Pura ilusão, deixarem-se conhecer. O desafio do futuro, num olhar. A tornar-se duro com o tempo. ∞ Casaram. Um entusiasmo juvenil. Uma réstia de esperança. Na cumplicidade do amor. Na confiança, no desabafo. E, um dia, um baque surdo, interior e definitivo. Muito mais tarde, rever antigos cartazes da revolução, em traseiras de lojas de amigos, era como encontrar de novo aquela face em muitas outras. Rosadas e frescas, queixos levantados e ideias em uníssono. Mas cada vez menos com as dele. Uma espécie de esplendor e declínio da fé na revolução. Na sua intuição honesta dos direitos atropelados mortalmente. Era o que o homem pensava. A perder o norte. A pensar, fora do pensamento único. A murchar por dentro ainda novo. No campo de trabalho, afastado do ofício. Como se dele fosse arrogantemente vaidoso e não de forma poética ou sonhadora, dependente. As proibições e tudo o que despoletavam de revolta em si. E um dia, mesmo, de ter mais filhos. O nó final. Na garganta. E foi. Quando se quebrou o resto da amarra. E passou a ter uma alma mais velha do que os anos. Para sempre. Talvez o velho tivesse sido no silêncio, como uma janela sobre a cegueira e os direitos atropelados. Humanos. Mortalmente humanos. Sobre as proibições e a revolta em si. Pensamentos cruzados sobre os ângulos da vida e os da arte. E da liberdade, a falta. Um dia, mesmo essa de ter filhos. Foi o nó final que o fechou. Visto o rosto dela sem crítica, sem afecto – um instrumento obsoleto e pouco válido, talvez – e como sem nele adivinhar a mágoa. Ficou a criança do meio. O menino de futura bolsa à cintura, relógio grande e ombros pouco firmes. A primeira, menina que não vingara mais do que as primeiras horas, no campo longínquo de olhares médicos e de condições maiores do que o fervor e a outra menina entregue para quem a viesse a querer se viesse e até lá num limbo institucional. Contra a sua vontade sem discussão. A alma, escondida cada vez mais ao fundo naqueles olhos lineares, acabou por esmorecer um pouco mais. E também por isso um dia foi. Sob esse olhar implacável, imaginado nas suas costas. ∞ O homem muito velho. Sem se saber como fora ali parar. À zona impessoal da Areia Preta. Onde não pertencia. Também ali. ∞ Foi mais tarde, quando notou que nada o prendia a lado nenhum. E pensou no sinal alarado de chumbo que lhe tapava meio rosto, marca de nascença. De separação de tudo como o seu rosto em dois, metade clara, metade escura, como um fumo denso a cobrir o malar e meia fronte, e como num teatro de luzes e sombras. Mas o futuro ainda cantado pelas figurinhas, passado e fantasia. E as horas em sítios de passagem, a fazer vozes, a imitar instrumentos que não tinha, e a olhar com melancolia o montinho de moedas pequenas no chão, a crescer devagarinho, deixaram de ser o sentido dos dias. Foi deixando o ofício e deste esperava um mínimo. Depois, já só para si. E tão pouco. Há um suave compêndio de mágoas em cada curva do tempo. A batida do coração em surdina progressiva. A trabalhar cada vez menos, desencantado de ganhos. Uma biblioteca pública onde vive os dias, sobretudo os de chuva, tornados maiores, sem fito, e uma biblioteca privada, mental, onde lê as inscrições do desapontamento que desfolha até esgotar. Passa sempre algum tempo ali. Não que lhe apeteça muito ler, já. Fica simplesmente a sentir o cheiro do papel, na companhia de jornais e do silêncio dos livros. A lembrar os que conhecia. O pequeno edifício octogonal enche-lhe o coração de conforto. Como uma casa. Ali, ao jardim de S. Francisco. Para lá se dirigia dias a fio, guiando os passos e descendo a cidade lentamente, para se sentar no meio do silêncio e dos livros. E do resmalhar dos jornais dobrados firmemente por quem lia. Só as segundas-feiras eram tristes, de um certo desamparo, porque não abria. A mais antiga biblioteca pública e a que mais amava. Como casa sua. Quando foi deixando de trabalhar mais do que para uma sobrevivência reduzida ao mínimo. Passos divididos como sempre mas evitando a fronteira. ∞ A baía. A biblioteca hexagonal, a mesa de fórmica na zona norte, a mala poisada numa rua no centro. A voz a doer. A cama ao lado da parede húmida. Uma cartografia diária o fato guardado e revisitado. (continua…)
Amélia Vieira Via do MeioPedra «Tu és Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja» Um tempo mineral inaugura uma marcha doce como a espuma do mar. Jesus dá o sinal para uma jornada que já não será escrita a Fogo como as «Tábuas da Lei» e convoca o seu discípulo para uma grave e completa aventura-Pedro era um discípulo muito querido- não obstante no momento amargo disse que não conhecia aquele homem, mas tudo se passou na maior perfeição já que os desígnios são de condição supra-humana. Estamos no deserto, e a edificação de qualquer coisa escapa ao vegetal, daí o minério ser tão importante. Disse ainda que as portas do Abismo nada poderiam contra ela, e outras informações lhe terá passado que desconhecemos. Esta Pedra, tenaz, impossível de desvendar, este minério que vem da estrutura tribal das gentes, é a origem do próprio nascimento de Deus. A noção patriarcal é por demais evidente enquanto corroboração ao duro minério, estamos quase perto de Saturno, o deus impiedoso que devora os filhos, e nem Abraão escapa diante do pedregulho onde em lágrimas esteve pronto a degolar seu Isaac. Esta saga que envolve a vida mineral é de uma rudeza sem limites, é um tumulto agreste entre as esferas masculinas na dureza e no poder que se mantiveram intactas até aos nossos dias. E o que tem isto a ver com a nossa espuma? Quase nada. Em Portugal por exemplo, a ocupação de antenas informativas de futebol, geringonças políticas, atavismos de morgados, explanações de incompetentes, estabelecem domínio que desejaríamos menos ilustrativos. Mas a Pedra está no sangue patrístico destas estruturas! A Pedra que brota água a um Povo sedento será ainda assim a imagem ejaculatória de uma qualquer dádiva que forneça vida, e no prólogo a acontecer, se não fosse pedra, nada de milagroso em suspensão acontecia. A tenacidade imperiosa como o masculino teceu este formato, impediu que outras formas de vida tivessem espaço conversável no mundo, e por isso se volveu tão duro. Estranhas enfermidades se acumularam para edificação da estátua humanizada do Homem vazio. Ele pode estar entre a espécie complementar procurando a sua alma e nunca a encontrar. O roteiro da Pedra tende para a petrificação, e qualquer movimento é sempre uma ânsia de a implementar. Nós, tecido mais vegetal, observámos o desastre, mas a Flor é frágil em seu domínio: ela “nasce, morre, renasce…” tem pétalas de orvalho, e pertence a outra Encíclica. Mortas as estruturas, elas reclamam a sua neutralidade, uma espécie de carbono, mortos os arquétipos, eles fulminam os corpos com desorientação apetecível, e a Pedra quase arde no meio da tempestade. Estamos curvados perante o Maciço Central da desintegração, e isso não deverá ser o problema maior, mas sim, o que fazer com o resto desta humanidade que nos advém. A Pedra já se foi, não há Tábuas, Templos conquistáveis, e passámos há muito o esteiro das edificações. Quando Deus quiser, que se faça nuvem, que nós transbordamos de mistério.
Hoje Macau Via do MeioWang Wei e a poesia do silêncio Wang Wei (701-761) é um grandes poetas da dinastia Tang e um dos maiores de toda a poesia chinesa. Nasceu em Qixian, província de Shanxi. Com apenas dezoito anos, obteve a aprovação nos difíceis exames imperiais que garantiam a subida ao mandarinato e ao poder. Cumpriu depois, durante quase toda a vida, o labor de funcionário ao serviço da corte. Mas adorava a natureza e, tal como Han Shan, foi um dos primeiros poetas a enveredar e a assumir o budismo chan. Outono no lago A água é pensativa como um céu cinzento e o chilrear das lavadeiras ocultas pelos bambus volteia suavemente sobre a água sem uma ruga os salgueiros despidos miram-se em silêncio no lago O perfume do Estio suspira e esvai-se. Como retê-lo antes que se extinga? tradução António Ramos Rosa O segredo da arte de pintar Na arte de pintar, o trabalho do pincel e da tinta é o mais perfeito porque, tendo embora a sua origem na natureza, só se conclui mediante a habilidade do criador. Assim, um pequeno quadro de algumas polegadas pode conter mil coisas, abarcar o Este e o Oeste, o Norte e o Sul. Basta um leve pincel para fazer nascer a Primavera e o Verão, o Outono e o Inverno, e todas as paisagens do mundo. Para pintar uma paisagem, é preciso concebê–la antes de empunhar o pincel. tradução António Ramos Rosa Na alta torre No alto da torre, para a despedida Rio e planície no crepúsculo se perdem. Voltam as aves: pôr do sol O homem caminha cada vez mais longe. tradução Gil de Carvalho Adeus a Yuan, o segundo, ao partir em missão para Anxi Na cidade de Wei, a chuva matutina Fez assentar a poeira leve do ar. Tudo está verde na estalagem Verde como as folhas novas do salgueiro. Peço-te que esvazies uma vez mais a taça Tu vais para Oeste, além fronteiras, e não tens lá amigos. tradução Gil de Carvalho No pavilhão do lago Numa pequena barca no meio do lago o meu amigo e eu o coração alvoroçado Alcançámos o pavilhão e sentámo-nos a beber enquanto os lótus floresciam por todo o lado. tradução Jorge Sousa Braga No bosque de bambus Sento-me solitário entre os bambus pego no alaúde e começo a cantar Perdido na espessura do bosque ninguém a não ser a lua sabe onde me encontrar tradução Jorge Sousa Braga Despedida Porque não desmontas do cavalo e bebes um copo? Desiludido retiras-te para as montanhas do sul Não tenho mais perguntas. Podes partir Nuvens brancas se arrastam no céu azul. tradução Jorge Sousa Braga Na montanha Nas águas do Ching afloram pedras brancas Debaixo do céu frio raras folhas rubras Trilha da montanha sem gota de chuva O azul do vazio molha as nossas roupas tradução Haroldo de Campos O refúgio dos cervos montanha vazia não se vê ninguém ouvir só se ouve um alguém de ecos raios do poente filtram na espessura um reflexo ainda luz no musgo verde tradução Haroldo de Campos Miscelânea Cavalheiro que vem da minha terra! Deves saber as notícias de lá No dia em que partiste, notaste, em frente à cortina bordada, Se as flores das ameixeiras desabrocharam? tradução Aristein Woo Despedida Aqui desmonta, bebe deste vinho. Amigo, aonde leva teu caminho? Ouço-te a fala em desconcerto ao mundo. Buscas refúgio nas colinas do sul. Sem mais perguntas; vai, não te detenhas. Derivam nuvens brancas para sempre. tradução Ricardo Portugal/Tan Xiao Canção da bela de Luoyang Habita aqui em frente a bela de Luoyang, um rosto puro de menina de quinze anos. O marido usa arreios de jade no cavalo baio, os criados servem pedacinhos de carpa em pratos de ouro. No seu lar, pavilhões vermelhos, antecâmaras pintadas, pessegueiros rosa, salgueiros verdes debruçando-se sobre os telhados. Ao sair, sob um véu de seda, deixa o pavilhão dos sete perfumes, ao regressar, escondem-na leques preciosos, cortinados com nove flores. O marido rico, jovem como a Primavera, ultrapassa Li Jun em esplendor e fausto. Apaixonado pela menina de Jade Verde, ensina-a a dançar, feliz, oferece aos amigos pequenas árvores de coral. Nasce o dia, extinguem-se as nove velas do candelabro, as chamas esvoaçam como pétalas de flor, não cessaram ainda jogos e canções. Dia e noite, a gente importante da cidade vem de visita, em reverência como às beldades de outrora. Quem pensa na menina de Yue, de pele de jade, pobre, ignorada, lavando roupa nas águas do rio? tradução António Graça de Abreu Poema mesclado De manhã, quebrei um ramo de salgueiro, quando vos vi na muralha da cidade. Dizem ser eu a mais bela do reino de Zhou, pertenço ao clã dos Qin, mas sou casada. Minhas pulseiras de esmeralda voltam-se para vós, na penumbra desaperto a minha camisa de seda. Os cavaleiros chegados do leste falam da morte do meu esposo, na guerra. Peço-vos, sede gentil para comigo, trazei canecas de jade, meu amigo. tradução António Graça de Abreu A Lua sobre o rio do Leste A lua sai de dentro da montanha, eleva-se, devagar, sobre o portão da casa. Mil árvores perfuram a humidade do céu, nuvens negras voam no espaço. De súbito, o luar embranquecendo a floresta, a terra respira no orvalho frio. Águas de Outono cantam nas cascatas, uma névoa azul paira sobre as rochas, sombras partidas abraçam cumes vazios. Como num sonho, tudo é transparente, puro. De pé, à janela, diante do rio, de madrugada, sonolento, sem pensar. tradução António Graça de Abreu Merendando com os monges da montanha Fu Avançado nos anos, conheci princípios puros, claros, hoje, cada vez mais afastado da multidão. Espero a vinda dos monges da montanha solitária, já varri a entrada do meu humilde lar. Depois de picos e nuvens, ei-los por fim chegados à pobre casa de colmo, o meu lar. Sentados em esteiras, comemos pinhões, queimamos incenso, lemos os sutras. Extingue-se o dia, acendemos lanternas, anuncia-se a noite, tocamos o qing. Ao compreender que a quietude é fonte de alegria, a vida concede-nos a liberdade serena. Porquê tanta pressa em regressar? No mundo tudo é vazio e nada. tradução António Graça de Abreu Para o magistrado Zhang Gosto da quietude no entardecer dos anos, o coração livre, ausência de mil coisas, a alegria de voltar à velha floresta. A brisa dos pinheiros desenlaça minhas vestes, raios de luar acariciam o som da cítara. Perguntas: “Qual a verdade suprema?” Vamos ouvir, lá longe, entre os canaviais, a canção do pescador. tradução António Graça de Abreu Oferecendo de beber a Pei Ti Vem beber um copo e descansar, os homens mudam sempre, como as ondas do mar. Nós dois temos envelhecido juntos, apesar dos reveses, continuamos vivos. O primeiro a habitar uma casa de portões escarlates pode sorrir, ao olhar os outros de chapéu na mão. Tu sabes, basta um pouco de chuva para reverdecer a erva dos caminhos. O vento da Primavera é ainda frio mas os botões das flores quase desabrocham. Porquê tanta pergunta, tanta luta, os negócios do mundo, as nuvens flutuantes? Descansa, deixa fluir a vida, e vem jantar comigo. tradução António Graça de Abreu Linhas Os anos passam, eu cansado de escrever poesia, por companhia, apenas a velhice. Numa outra vida, o acaso fez de mim poeta, numa outra existência, o destino fez de mim pintor. Incapaz de lançar fora usos esquecidos, o mundo me conhece poeta e pintor, sabe o meu nome, identifica o meu estilo. O meu coração ainda ninguém conhece. tradução António Graça de Abreu
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA Via da Descoberta de Fang Yizhi Nicolas Trigault (Jin Nige,1577-1628), o missionário jesuíta que publicou em Hangzhou no ano de 1626 um primeiro glossário de romanização de palavras chinesas, o Xiru ermu zi, «Auxílio para os olhos e ouvidos dos literatos ocidentais», fê-lo como o nome indica para ajudar os Europeus que contactavam com uma língua muito diferente da sua. E, no entanto, alguns anos depois, entre os literatos locais houve quem estivesse atento a esse sinal pioneiro de compreensão, como de resto estava a muitas outras formas e meios de expressão. Fang Yizhi (1611-1671) elogiou esse modo económico e elegante de fazer «cada conceito ligar-se a uma única palavra e cada palavra a um único sentido, como no distante Ocidente, onde os sons se combinam com os conceitos e palavras se formam de acordo com os sons». Era a livre opinião de um letrado que fez parte daqueles súbditos dos Ming que se sentiam incómodos durante a mudança dinástica (yimin) o que influiria de modo drástico na sua vida. Nascido em Tongcheng (Anhui) numa família onde se cultivavam as letras e desde cedo ligado a um grupo literário designado Fushe, «Sociedade da restauração», razão porque teve de partir para o Sudeste disfarçado de vendedor de remédios, ramo do conhecimento que viria a dominar. A percepção que teve desse caminho em adaptação constante – dele são conhecidos trinta e nove nomes – expressou-a no poema Du wang, «Vou sozinho»: Meus queridos companheiros estão todos dispersos, Pela minha parte vou sozinho para os bosques. Num único ano mudei de nome três vezes, Nove em dez palavras atormentam os meus ouvidos. Habituei-me a ouvir notícias da guerra, A minha mágoa aprofunda-se com a chuva e o vento. Não será difícil cessar de existir, Mas a falta de algum amigo causar-me-ia imensa dor. Fang Yizhi deixaria tocantes pinturas que são as pegadas dessa via em que se fez acompanhar da memória de antigos pintores, como na folha de álbum Velhas árvores e pinheiros, imitando Nizan (26,8 x 2 cm, no Museu de Hunan). Mas ele que viria a abraçar a vida de monge itinerante do Budismo chan, com o nome monástico Yaodi Yuzhe, o «humilde galeno», sabia de lugares onde peregrinos eram acolhidos como a natureza recebia a vida humana, o que figurou no rolo vertical Um templo oculto nas montanhas (215,5 x 84 cm, tinta sobre papel, no Museu Nacional de Arte da China). Sentindo-se acolhido dispôs-se a conhecer de um modo objectivo. Foi o que propôs no livro Wuli xiao shi, «Notas sobre o princípio das coisas» onde se lê: « Entre o céu e a terra tudo é medicina, tudo é uma coisa, tudo tem uma causa. Não há nada sem yin e yang, qi ou sabor bem como mutuas interações e transformações. Com um método: Quando seguires a razão até um ponto que não consegues entender, vira-te para algo que entendas, para o dominar – usa o concreto para compreender o escondido.
Anabela Canas Via do MeioA senhora – 2 E fora, um pouco mais ao lado, de novo o olhar incisivo do homem chinês, talvez a medir a estranheza ali daquele seu ser estrangeiro. A olhar a chuva miúda que começa a cair desapiedada ou triste. Os elementos que polvilham momentos alongados numa indiferenciação de registos – ou seria a sua mente a desfocar, numa fantasia em fuga – acinzentam e escurecem um pouco mais em redor e a chuvinha miúda cai direita e inabalável. Nada se move senão fios de chuva paralela às paredes, ténue mas incisiva. Quase a descrever uma certeza de intemporalidade conveniente. Como o cigarro do homem de idade, lá para trás, subitamente mais devagar, até parar por completo o tempo. A senhora, estaca vagamente encostada à parede de um prédio como os outros, dilui-se sem antes nem depois e indiferente a isso. Na intenção de olhar o céu. Olha para cima: são sombras chinesas. Pensou, mas não disse. Mais ninguém de costas paralelas à parede do edifício, ao seu lado a olhar para cima, para dizer. Ficou-se ali, à espera. Talvez que a chuva parasse de persistir. Num leve encantamento, face virada para cima, olhar detido naquele rendilhado negro a recortar um céu claro e enevoado, um cinzento mais limpo do que tantos tons dos prédios, sem nuvens desenhadas distintamente. Restos de um toldo enferrujado e carcomido de tempo e dessa humidade impiedosa para as matérias corrosíveis. E a chapa, recortada em contraluz a negro, num desenho a lembrar a filigrana de figuras de um teatro de sombras. Delicadas no contorno, a substituir o volume que não há e a cor que não há aqui. Pensa nessas marionetas de pele, animadas por varas. Na profusão de cores e símbolos, cuidados no detalhe e formas que nunca se verão, senão obscurecidas em sombra. Vizinhas. De uma humanidade que se apresenta, também ela, por detrás de uma tela de sentidos moradores no olhar de quem vê. Um contra- luz de ilusões. Como esta terra de que se é e não se é. O que teria visto o homem velho, na sua figura errática. Imaginada a partir de um certo grau de inexistência, inspirou-o na sua procura de entendimento de si e do lugar. Como ao espelho, recortou-a tal e qual como uma metáfora de sombra. ∞ O homem velho sofria de desnorte. Indeciso entre o para sempre e o nunca mais. Por bússola, somente as varas que produziam gestos. E nestes, histórias. E nas histórias, futuro. Movimentava marionetes de três varas desde menino, uma habilidade e uma rapidez a gerir sentidos nas articulações, cada vez maiores e quase inacreditáveis numa pessoa só. Com tanto futuro para contar. A cabeça cheia de livros. Cujo eco, incontido, circulava naquele olhar filiforme, alongado misteriosamente na distância que a terra permitia – e a memória – como um mecanismo de máquina fotográfica. A pupila como um diafragma, tão fechado que produzia acuidade no olhar, e uma profundidade de campo quase infinita. Olhar contemplativo. Calado demais, excepto nas histórias. A fugir progressivamente dos contornos familiares, lendas, histórias de encantar e enredos de fantasia histórica. E a ganhar um cunho de fina ironia e irresistível análise social, mesclada de um sarcasmo a pedir duplas leituras que não seriam fáceis de adivinhar em todo aquele seu silêncio. A tornar-se imprevidente e a provocar naquele tempo um crescente temor na família. Do que viesse a suceder. Um pouco já de costas e o país grande atrás de si. Imenso, desconhecido, agora em ondas – estas – de região para região ao sabor da febre de uma mão de ferro a dissolver estruturas, famílias, afectos, ofícios. Entusiástica, implacável, revolucionária, a apontar o dedo à arrogância de ofícios do intelecto e das artes e a empurrar para os campos de trabalho sério, energia, vida e silêncio de si, de cada um como indivíduo. Para aprendizagem da humildade obrigatória e como castigo, às vezes, de nada. Pensava e observava, à deriva e com a perplexidade devoradora, fora do pensamento único. O desfile de familiares, amigos ou conhecidos pelas ruas, exibindo o castigo público e letreiros ao pescoço. Pelas ruas como coisas que não eram donas de si. Ou marionetas de pele humana. Humilhadas ante os seus. A paisagem próxima da pobreza do sul. E da humildade da profissão de artista que se consolava do excesso de realidade, inventando uma só para si e aceite. Antes da grande senhora. Antes das imperiosas condições para o sonhar e o criar o sonho. Vender sonhos a prazo. Talvez sonhos, talvez tempo, ou país, ou futuro possível. Mas isso antes que o sonhar fosse delimitado, com a nitidez a que os sonhos custam a adaptar-se. Era o que o homem pensava. A perder o norte. Antes de ser velho. Quando a família se desmembrou. Dispersa por campos de trabalho. A redesenhar a alma. ∞ Uma estranha melancolia a desenhar-se a par com o crescendo tumultuoso da revolução. Que não encontrou terreno fértil no seu íntimo onde avolumava desilusão e crítica, serenamente guardadas a sete chaves. Segredo mal guardado pelas figurinhas faladoras naquele tom meio cantado em falsete, que tudo contavam por meias palavras. Carinhosamente produziu-as, finamente recortadas com uma infinidade de ferramentas e saberes de família, que envelheceram depois sem ele. Longe. Perdidas lá, na beira da terra grande. Desnorte por ser do sul. Donde alongava uns olhos de vidro obscuro muito escondidos nas pálpebras semicerradas e talvez mesmo por isso atirados mais longe. Para essa virtualidade do rio, líquida como um tempo. Ou para dentro de si mesmo. Numa desligada relação com o real físico que o cercava e foi avolumando férrea e irreprimível, ao ponto de prender, sufocar e insinuar a vontade da fuga. A inevitabilidade. Pela água, como um salto no tempo. Que o separava do pequeno território de Macau. De ouvir falar. Ali em frente. Como um tempo possível a desenhar-se na mesma medida da angústia que o ia tomando. ∞ Havia um dragão atrás de si e um dragão na sua frente, na fuga. Ambos com a bocarra escancarada e incandescente como tempo a engolir em cores diferentes. E o intervalo, um limbo a competir pelo lastro de cinzas. O renascer. Se sim ou não, depois se verá. Na alma só o dragão branco, aquele que nunca ninguém vê. (continua…)
Hoje Macau Via do MeioDe Xunzi e do seu mérito – palavras finais Yao perguntou a Shun: “Desejo fazer vir para o meu lado todos debaixo do Céu. Como posso fazê-lo?” Shun respondeu: “Atém-te à unificação mental sem desvio. Atende ao que é ínfimo sem preguiça. Sê incansavelmente leal e fiel. Se te ativeres à unificação mental como o Céu e a Terra, se atenderes ao que é ínfimo como ao sol e à lua, se a lealdade e integridade te preencherem por dentro, jorrando por fora e manifestando-se a todos os homens, então todos debaixo do Céu estarão já como que na tua sala. Que mais poderias fazer para os atrair?” O Marquês Wu de Wei estava a fazer planos e tentar delinear exactamente o caminho certo e nenhum dos seus ministros conseguia acompanhá-lo. Deixou a corte com um semblante feliz. Wu Qi entrou a visitá-lo e disse: “Já ouviste a história do Rei Zhuang de Chu de algum dos teus ajudantes?” O Marquês disse, “Como é a história do Rei Zhuang de Chu?” Wu Qi respondeu: “O Rei Zhuang de Chu estava a fazer planos e tentar delinear exactamente o caminho certo e nenhum dos seus ministros conseguia acompanhá-lo. Deixou a corte com um semblante preocupado. O Duque Chen de Shen entrou a visitá-lo e perguntou: ‘Por que razão deixou sua majestade a corte de semblante preocupado?’ O Rei Zhuang disse: ‘Estava a fazer planos e tentar delinear exactamente o caminho certo e nenhum dos meus ministros conseguia acompanhar-me. É por isso que estou preocupado. Há um ditado de Zhong Hui que diz: Um senhor feudal que conseguir por si próprio achar um professor tornar-se-á um verdadeiro rei. Aquele que conseguir encontrar amigos verdadeiros tornar-se-á um tirano. Aquele que tiver quem questione as suas políticas sobreviverá. Aquele que faz planos sozinho, sem a companhia de alguém tão bom como ele, perecerá. “Dada a minha falta de mérito e o facto de nenhum dos meus ministros me conseguir acompanhar, quererá isto dizer que o meu estado está perto de perecer? E por isso devo estar preocupado?” Wu Qi disse: “O Rei Zhuang de Chu considerou isto razão para se preocupar, mas tu, meu senhor, consideras isto razão para estares feliz.” O Marquês Wu de Wei deu um passo atrás e fez repetidas vénias, dizendo: “O Céu enviou-te para corrigir os meus erros”. Bo Qin estava a preparar-se para regressar a Lu. O Duque de Zhou dirigiu-se ao professor de Bo Qin, dizendo: “Estás prestes a partir. Será possível falares dos melhores aspectos e virtude do meu filho?” Ele disse: “O seu carácter é magnânimo. Gosta de confiar em si próprio e é cauteloso. Estas três coisas são precisamente os seus melhores aspectos e virtudes”. O Duque de Zhou disse, “Ora essa! Tu acabas de considerar os erros de uma pessoa como os seus melhores aspectos e virtudes! A pessoa exemplar gosta de confiar na Via e na virtude e, assim, o seu povo regressa à Via. Quanto à ‘magnanimidade’ do meu filho, ela vem do seu agir indiscriminado. No entanto, tu o elogias! “Quanto ‘ao seu amor por confiar em si próprio’, é por isso que é de visão estreita e mesquinho. Mesmo que a força da pessoa exemplar seja comparável à de um búfalo, ela não compete com o búfalo para se vangloriar da sua força. Mesmo que corra como um cavalo, não compete com o cavalo para se vangloriar da sua velocidade. Mesmo que o seu entendimento seja comparável ao de uma pessoa bem-criada, não compete com ela para se vangloriar do seu entendimento. O meu filho compete com outros porque a sua atitude é a de provar que é igual a eles. Ainda assim, o elogias! “Quanto à sua ‘cautela’, é isso que o faz superficial. Já ouvi dizer que ‘Quem não ultrapassa os limites nunca encontrará uma pessoa bem-criada’. Quando encontramos uma pessoa bem-criada perguntamos: ‘Haverá alguma coisa que me esqueci de examinar?’ Se não lhes atendermos, as coisas importantes deixarão gradualmente de vir à nossa atenção. Se esse for o caso, então seremos superficiais. A superficialidade do meu filho deve-se ao seu modo de estimar pouco as pessoas. Mas tu o elogias! Deixa que te diga: na minha relação de filho para com o Rei Wen, na minha relação de irmão mais novo para com o Rei Wu, e na minha relação de tio para com o Rei Cheng, não sou inferior em comparação com ninguém debaixo do Céu. Contudo, há dez pessoas que consulto depois de lhes oferecer presentes de saudação. Há trinta pessoas que consulto depois de reciprocar os seus presentes de boas-vindas. Há mais de cem pessoas bem-criadas que trato com cortesia [de modo a obter o seu conselho]. Há mais de mil pessoas com as quais falo e a quem peço contas exaustivas [dos assuntos do estado]. De entre todas estas, só encontrei três pessoas bem-criadas capazes de endireitar a minha própria pessoa e acertar tudo debaixo do Céu. A fonte de onde obtive estas três não se encontrava entre aquelas dez ou trinta, mas entre as cem e as mil. Por estas razão, trato os homens de elevada posição com menos cortesia e os de baixa posição com mais. Todos pensam que forço os limites e também que aprecio as pessoas bem-criadas. E, por isso, as pessoas bem-criadas vêm até mim. Quanto vêm, é quando verdadeiramente vemos as coisas. Quando verdadeiramente vemos as coisas, sabemos onde estão o mal e o bem. Deves ter cuidado com isto! “Usar o estado de Lu para tratar as pessoas com arrogância é arriscado. Aqueles que têm apreço por um salário oficial podem ser tratados com arrogância, mas aqueles capazes de corrigir a nossa pessoa não devem ser tratados com arrogância. Aqueles que são capazes de corrigir a nossa pessoa abandonam o estatuto nobre e vivem humildemente. Abandonam a riqueza para viver na pobreza. Abandonam o lazer e trabalham arduamente. Os seus rostos são escuros, mas não perdem de vista a sua posição apropriada. Por esta razão, os princípios condutores de todos debaixo do Céu não se extinguem e a boa cultura e forma apropriada nunca são destruídas”. Há uma história que conta como um oficial fronteiriço de Zenqiu encontrou Sunshu Ao, à época primeiro ministro de Chu, e disse: “Ouvi dizer que: ‘Aqueles que ocupam posições oficiais por muito tempo atraem o ciúme das pessoas bem-criadas, aqueles que têm generosos salários oficiais são objecto do ressentimento do povo comum e aqueles de alto estatuto são objecto do ressentimento do senhor’. Tu és primeiro ministro de Chu pela terceira vez, mas não ofendeste as pessoas bem-criadas nem o povo comum de Chu. Como não?” Sunshu Ao disse: “Fui primeiro-ministro três vezes e, de cada vez, o meu coração tem sido menos presumido. Com cada aumento do meu salário oficial, o exercício da minha generosidade tem-se alargado. A cada engrandecimento do meu estatuto, a minha prática dos rituais tem sido mais reverente. Assim, não ofendi nem as pessoas bem-criadas nem o povo comum de Chu”. Zigong colocou uma questão a Confúcio: “Serei subordinado de alguém, contudo ainda não sei conduzir-me”. Confúcio disse, “Ser subordinado de alguém? Não será isso como o solo? Se nele escavarmos profundamente, nele encontraremos uma fonte [de água] doce. Se nele plantarmos, os cinco cereais crescerão. Ervas e árvores sobre ele se multiplicam e nele se alimentam bestas e aves. Durante a vida, estamos sobre ele. Ao morrer, nele entramos. Sem cessar prodigaliza-nos méritos. Ser subordinado de alguém, não será isso como o solo?” No passado, o estado de Yu não empregou Gongzhi Qi e, por isso, [o estado de] Yu engoliu-o. O estado de Lai não empregou Zi Ma e, por isso, [o estado] de Qi engoliu-o. O tirano Zhou esventrou o Príncipe Bi Gan e, por isso, o Rei Wu sucedeu-lhe. Estas pessoas não se aproximaram dos meritórios nem empregaram os sábios e, por isso, os seus estados foram destruídos. Os provedores das doutrinas dizem, “Xunzi não foi tão bom como Confúcio”. Mas isso não é assim. Xunzi foi coagido por uma idade caótica e ameaçado com severos castigos. Em cima, não havia líderes meritórios. Em baixo, encontrou a violência de Qin. Ritual e yi [justiça] não eram praticados. O ensino e a transformação não eram praticados. As pessoas de ren [humanidade] eram bloqueadas e abafadas. Debaixo do Céu, todos viviam nas trevas. Quem fosse de conduta perfeita era atacado. Todos os senhores feudais eram supremamente desviantes. Nesse tempo, os sábios não eram autorizados a deliberar, nem os capazes eram autorizados a governar. Os meritórios não eram empregues. Presos nas suas fixações, lordes e superiores não tinham claridade de visão. As pessoas meritórias eram rejeitadas e expulsas. Contudo, Xun Zi formulou no seu coração o intento de se tornar sábio, embora fingisse uma aparência de loucura de modo a mostrar ao mundo uma fachada de estupidez. As Odes dizem: “Era iluminado e sábio e a isso recorria para proteger a sua pessoa”. Esta é a razão da sua reputação não ser clara, de serem poucos os seus seguidores e aliados, do seu brilho não ser conhecido por toda a parte”. Quando os letrados de hoje encontram as palavras que dele restam e os ensinamentos que deixou, apercebem-se de que são modelos e padrões suficientes para todos debaixo do Céu. Onde quer que [estes letrados] residam, esse lugar tem as qualidades do espírito. Por onde quer que passem, esses lugares se transformam. Se observarmos a sua excelente conduta, verificamos que Confúcio não o ultrapassa. Como o mundo não examina cuidadosamente as coisas, é dito que [Xunzi] não era um sábio. Porquê? Porque naquele tempo o mundo não era ordenado. Xunzi não encontrou o tempo certo. A sua virtude era como a de Yao e Yu, mas poucos no mundo o entendiam. Os seus métodos e técnicas não foram usados e o povo olhava-o com suspeição. Todavia, o seu entendimento era extremamente claro, cultivava a Via e corrigia a sua conduta, tornando-se num modelo a seguir. Triste a sorte de tal pessoa meritória… Era digno de ter sido um rei soberano. Mas aqueles que estão entre o Céu e a Terra não o compreendiam, preferindo louvar [o ladrão] Jie e [o tirano] Zhou e matar os bons e meritórios. Bi Gan foi esventrado. Confúcio ficou retido em Kuang. Jie Yu evitou o mundo. Jizi fingiu ser louco. Tian Chang espalhou o caos. Helü monopolizou a força bruta. Os maus fizeram fortunas; os bons sofreram catástrofes. Agora, os provedores das doutrinas de novo ignoram a verdade desta questão, fazendo fé somente nas reputações. Agora, que os tempos são diferentes, de onde virá a reputação de Xunzi? Dado não se ter envolvido na governação, como poderia ter demonstrado os seus méritos? E, contudo, as suas intenções haviam sido cultivadas e a sua virtude era abundante. Quem se atreveria a dizer que não era meritório?