Paulo Maia e Carmo Via do MeioTrês Procissões Pintadas Durante a Dinastia Tang Wu Daozi (c.680-759) foi um pintor da dinastia Tang cujo nome evoca a habilidade de criar em pinturas murais cenários tão credíveis, «ousados e livres como as ondas que se desenrolam no mar» num dos quais ele, na presença de um imperador, entrou e desapareceu por entre volutas de nuvens. Se é certo que hoje originais das suas obras ainda se não encontraram e, como ele, há muito tempo desapareceram, aqueles que as viram não esqueceram. Zhang Yanyuan escrevendo em 847, exclamou com admiração que «os deuses devem ter-lhe dado uma mão; porque a sua obra sondou a criação até ao extremo» (Lidai Minghua ji). Para além de Wu Daozi, outros executaram pinturas murais ou para serem penduradas nas paredes de templos e são hoje testemunho do espanto e do valor que tiveram naquele tempo e para diferentes religiões, certas atitudes e práticas. Alguns fizeram-no agindo para a corte da dinastia Tang e por isso reflectiram o sofisticado gosto dos soberanos e aristocratas. Um tema, no entanto, parece ser comum a vários delas. Para o Daoísmo, que mais do que em textos se exprime numa ortopraxia, olhar essas figuras entendíveis no contexto da prática religiosa é ao mesmo tempo deslumbrante e misterioso. Como se vê no rolo vertical Divindade daoísta da terra (tinta, cor e ouro sobre seda, 125,5 x 55,9 cm, no Museu de Belas Artes de Boston) que já foi atribuído a Wu Daozi representando Diguan, o que perdoa os pecados numa procissão, possui a gravidade com que os soberanos impressionavam os súbditos quando passavam, ocupando e dignificando o espaço que percorriam. Como também faz o Buda das luzes resplandecentes (tinta e cor sobre seda, 80,4 x 55, 4 cm, no Museu Britânico) que mostra a figura do Buda Tejaprabha deslocando-se num carro acompanhado de cinco planetas e que tem o mesmo efeito de sacralizar os lugares por onde transitavam. Zhang Huaiqing o discípulo que doou a pintura em 897, colocou nela o seu nome mostrando assim a eminência dos doadores e encomendadores no complexo de Dunhuang (Gansu) de onde provém esta invulgar representação. Pintores de outras religiões figuraram um mesmo desfile sagrado com o sentido próprio da sua tradição. Raras pinturas murais datadas dos séculos VII-IX, descobertas no início do século XX nas ruínas da antiga cidade de Qocho (Gaochang, Xinjiang) nas fronteiras do deserto de Taklamakan revelaram a antiguidade ali da presença da religião de Cristo. Uma delas mostra a procissão de Domingo de ramos (no Museu de Arte Asiática de Berlim) como se deduz por três personagens empunhando ramos de palmeira que se viram para uma figura maior (um sacerdote?) que traz na mãos um recipiente para a água e um turíbulo de onde se soltam volutas de incenso evocando o espírito, esse real invisível a que o pincel do poeta ou do pintor é capaz de dar um nome e uma aparência local.
Hoje Macau Via do MeioNotas poéticas de uma visita ao Templo de A-Má Por Cheong Kin Man Chio Tong I (falecido antes de 1777) foi um homem de letras confucianista natural de Macau, descendente de Zhao Yanfang (Chio In Fong), que tomou posse como Mandarim de Hèong-Sán (hoje Zhongshan) em 1386. Argumenta-se que o imperador Taizong (939-997) da dinastia Song (960-1279) é um seu antepassado. Passou uma vida modesta e deixou vários poemas em chinês clássico. Apelidado respeitosamente como “Senhor do Rio do Espelho”, o poeta só foi reconhecido quase um meio século depois da sua morte. No fim de 1828, o seu neto Chio Wan Sin, que exerceu funções na administração provincial, mandou gravar numa pedra do Templo de A-Má um dos poemas deixados pelo seu avô. Eis mais uma tentativa de transpor um poema clássico chinês, desta vez com versos heptassilábicos, num texto dodecassílabo em português: A terra vê a água, fim do sudeste À procura do Zen, vi gemas no portal Portas-Tigre, mil velas, um branco veste, Em Pescoço-de-Galo, jamais é o sol mortal Nas vias sinuosas, sapatos tiveste. Colina esculpida, nome imortal. Flores de ameixeiras, sob rochedo, A primavera r’vem, sem saber mais cedo. O título do poema é “Ascender ao Templo da Percepção do Mar no Mês do Sacrifício às Divindades” (臘月登海覺寺). Pondo-o numa tradução menos literal, aqui falamos de uma “Visita ao Templo de A-Má no Último Mês do Ano (Lunar)”. “Ascender”, porque não se trata de uma visita desierarquizada. É uma ida com respeito, provavelmente também com a intenção de homenagear as divindades. É, sobretudo, uma caminhada à Colina da Barra. Neste artigo estudamos este relato poético cantonense com traduções literais de cada verso, a fim de mais aprofundadamente apreciar uma pitoresca paisagem de Macau do século XVIII. Revelamos algumas curiosidades, da toponímia cantonense analógica sobre os animais, ao uso metafórico da língua clássica chinesa, e daremos um salto a um género de sapatos antigos “flexíveis” feitos para as caminhadas. Percepção do “mar” Os dois grandes caracteres vermelhos “海覺” (Hoi-K’ok), que o Monsenhor Manuel Teixeira se referia como “Percepção do Mar” em português, estão gravados numa grande rocha dentro do templo. O Templo de A-Má não é o único que tem a referência a “Hoi-K’ok” ou “Percepção do Mar”. Um templo com o mesmo nome, mas fundado quase um milénio mais cedo do que o ex-líbris de Macau, na capital histórica da China, Chang’an, onde o mar não se vê, desperta em mim um outro significado ao ler estes dois ideogramas: “o estado de ficar infinitamente iluminado”. Por sua vez, nos primeiros versos do poema que aqui lemos, está destacado um mar de Macau que o templo contempla: 地盡東南水一灣 嵌寶奇石向禪關 A terra vê a água, fim no sudeste À procura do Zen, vi gemas no portal [As terras terminam com uma baía de águas do sudeste O tesouro inserido (no Templo), as (suas) extraordinárias pedras indicam a casa de guarda que acede à iluminação budista (Zen)] O primeiro verso refere-se à localidade do templo. “Sudeste” é uma referência geográfica face a Hèong-Sán, sede do governo imperial (e provincial) chinês que tutelou Macau: a península é sita na direcção sudeste desta cidade chinesa. O segundo verso tem referências mais metafóricas. Compreendemos, aqui neste verso, que os dois caracteres 禪關 (sim kuan em cantonense ou chán guān em mandarim) são uma referência metafórica ao “acesso” ou “passagem fortificada” à “iluminação” religiosa ou espiritual. Nada tem isto a ver com uma fortificação, mas com o facto que a essência do Zen não é algo fácil de aceder. Os mesmos ideogramas, parece-me que, podem indicar igualmente a entrada do templo. Enquanto a magnificência do Templo de A-Má é constatável nos desenhos do quase contemporâneo do poeta em questão, George Chinnery (1774-1852), as rochas, muitíssimo referidas nos documentos sínicos e que ainda hoje vemos, verificam a autenticidade do segundo verso como uma descrição poética da vista e da arquitectura desse templo. Topónimos e animais 虎門雪送千帆白 Portas-Tigre, mil velas, um branco veste (Fu-Mun despede o tão branco de mil velas como neve) Luís Gonzaga Gomes traduz, na primeira versão portuguesa da “Monografia de Macau” de 1950, que o topónimo Fu-Mun (ou Humen em mandarim, a 70 km de Macau) significa “Porta do Tigre” ou, como se constata ao ler os documentos históricos, é também conhecido em português “Boca do Tigre”. “門” (pronunciado “mun” em cantonense) significa não apenas porta(s), mas também, como vemos na toponímia clássica chinesa, uma hidrovia estratégica. O nome “Porta do Tigre” é algo abreviado de “Passagem da Cabeça do Tigre” (traduzida igualmente pelo grande sinólogo macaense). Ainda segundo a mencionada “Monografia de Macau”, as duas Montanhas do Pequeno Tigre (Xiǎohǔ Shān) e do Grande Tigre (Dàhǔ Shān), “parecem-se com duas pérolas incrustadas no seio do mar”. A tradição cantonense diz que estas duas elevações foram imaginadas como um tigre sentado, daí os nomes. Ambas as montanhas, que são igualmente os cúmulos de duas ilhas, testemunham, na observação poética do natural de Macau, a muita circulação de transporte fluvial do século XVIII. Roda veicular: alusão ao sol e à lua 雞頸輪升萬壑殷 Em Pescoço-de-Galo, jamais é o sol mortal [Em Pescoço-de-Galo, a roda (o sol) leve (e faz com que) vermelha uma miríade de vales] No quarto verso, destacamos o caracter 輪 (lon em cantonense ou lún em mandarim), que significa efectivamente roda(s) de um veículo. Para além de ter o significado de sol no chinês clássico, este ideograma designa igualmente a lua (cheia). Isso tem a ver, justamente, com a forma de uma roda “desenhada” na escrita mais antiga chinesa e vê-se mesmo no componente à esquerda do caracter: o radical 車 representa uma tal roda, embora esta, na escrita impressa moderna, tenha a forma de um quadrado. É de notar que, quanto este ideograma visualizador foi inventado, o mais tardar no século XI a.C., a palavra tinha pelo menos duas rodas (redondas) nas suas diversas variantes, 䡛. Não foi até no Século VIII a.C., o mais tardar, que o caracter se foi simplificando, de com duas rodas a uma só roda. O chinês moderno tem, apenas com algumas excepções, símbolos redondos. Entretanto, como a escrita chinesa evoluiu para uma escritura quadrilátera, o caracter 車, representando originalmente uma roda, naturalmente redonda, foi ganhando a forma de quadrângulo igualmente o mais tarde no Século VIII a.C. Onde fica o Pescoço de Galo? Continuamos o tema de nomes de animais na toponímia clássica cantonense. Aqui na tradução do poema, “Pescoço-de-Galo” é um antigo nome cantonense menos conhecido na língua portuguesa. Gonzaga Gomes explica literalmente o termo “雞頸”, Kài-Kèang como “Pescoço da Galinha” ou Kâi-Kêang como “Pescoço do Galo, ou da Taipa” – Sabemos que o ideograma 雞 (kai) não manifesta o género gramatical. “Pescoço-de-Galo” é mais um exemplo de como os cantonenses denominam as localidades ao comparar as suas formas com as imagens de animais. É, segundo a tradição de Macau, uma elevação da ilha da Taipa que se localiza a este, ou melhor a desaparecida ilha que se integrou na Grande Taipa. Originalmente uma ilha à parte, “Pescoço-de-Galo” está ainda hoje nos nomes cantonenses de vários locais na Taipa. A cena das “velas (vistas) de Pescoço-de-Galo” era conhecida, entre a comunidade cantonense, como uma das “dez paisagens” nomeadas pelo co-autor da “Monografia de Macau”, Iân-Kuông-Iâm (1691-1758). Aqui, nos terceiro e quarto versos do poema em causa, o autor Chio Tong I evoca o hoje desaparecido cenário de muitíssimos juncos que passavam pelas águas de Macau, num vermelho do amanhecer. Numa Macau do século XVIII 迴磴人拖單齒屐, 摩崖徑勒有名山。 此來不覺春歸早, 笑指梅花試一攀。 Nas vias sinuosas, sapatos tiveste. Colina esculpida, nome imortal. Flores de ameixeiras, sob rochedo, A primavera r’vem, sem saber mais cedo. [Sinuosos caminhos de pedra! O homem usa sapatos de um só dente Penhascos com (textos de) estudos gravados, vias com inscrições, a famosa colina tem Assim, sem se reparar que a primeira cedo volta Rindo, aponto às flores de ameixeiras, prova-se uma caminhada] Cheong Mei I, vice-presidente da Associação da Literatura Moderna de Macau, e Tang Chon Chit, especialista local de mérito em matéria de poesia clássica cantonense, publicaram em 2020 um livreto em mandarim, “Inscrições em Pedra no Templo de A-Má de Macau” (título português constante na capa). A estudiosa, juntamente com o professor da Universidade de Macau, interpreta que Chio Tong I expressa uma certa identificação com a terra ao relatar o templo e os seus arredores com precisão. No quinto verso, parece que o poeta sobe à colina com um tipo de calçado em madeira, possivelmente tamancos, com dois “dentes” – isto é – dois pedaços de madeira para manter os pés acima do solo. Referidos como chinelos de um só dente no poema, julgo que se trata de antigos calçados com estes dois “dentes” de colocar e retirar: ao subir, sem o pedaço de suporte de frente; ao descer, com a peça de atrás retirada. Explicando-o à minha companheira polaca Marta, ela diz, “eine tragbare Treppe (que uma escada portátil)!” Relativamente ao sexto verso, sabe-se que o mero ideograma 山 (san em cantonense ou shān em mandarim) não diferencia entre colina(s) e montanha(s). Assim, este verso evoca em mim uma vastíssima paisagem. O poema, que parece até agora inédito na língua lusa, é concluído pelos últimos dois versos cuja ordem inverti na tradução poetizada. Ao imaginar o muito apreciado passeio numa primavera simbolizada pelas flores de ameixeiras, fico perdido entre mil vales e num reino de signos, gravados nas pedras da deusa A-Má. * Artista de desconstrução linguística, têxtil e vídeo em colaboração com Marta Stanisława Sala
José Simões Morais Via do MeioSecção do curso Superior do Changjiang (长江上游) O rio Longo, em chinês Changjiang (长江), conhecido também por rio Yangtzé, ou Yangzi (扬子), é o terceiro maior do mundo, depois do rio Nilo com 6690 km e o Amazonas de 6570 km. Designado por rio Azul, é o maior dos três grandes rios a atravessar a China, tendo 6363 km de comprimento, sendo ainda um dos cinco rios a cruzar o curso do Grande Canal. As fontes de água do Changjiang encontram-se no planalto tibetano e nas montanhas Kunlun [a Leste da cordilheira dos Pamir e para Oeste do Vale de Sichuan marca o final Norte do Planalto Qinghai-Tibetano] de onde nascem os dois rios, Dangqu (当曲) e o Tuotuo he (沱沱河), que ao se juntarem formam o rio Tongtian (通天河), um dos muitos nomes do Changjiang ao longo do seu percurso. As duas nascentes estão na montanha de Tanggula (唐古拉山, Serra Dangla): no lado da província de Qinghai, o rio Dangqu tem a fonte a 5170 m de altitude na montanha Xiasheriaba (霞舍日阿巴山, de 5395 metros); e na província do Tibete, o rio Tuotuo (ou Ulan Moron em tibetano) é formado na geleira a Oeste dessa mesma montanha de Tanggula, a Sudoeste do planalto tibetano, no seu mais alto pico Geladaindong. O Dongqu após 234 km e o rio Tuotuo depois de 336 km, juntam-se e formam o rio Tongtian (通天), que ainda na província de Qinghai percorre 828 km antes de seguir para Sudeste e juntar-se em Yushu (quarta maior cidade de Qinghai) ao afluente rio Batang (巴塘河). Aí, de Yushu Zhimenda (玉树直门达) até Yibin (宜宾) em Sichuan percorre 2308 km e passa a ser conhecido por Jinshajiang (金沙江, rio das Areias Douradas), outro dos nomes do Changjiang. Como rio Jinsha atravessa as províncias de Qinghai, Tibete, Sichuan, Yunnan e volta a Sichuan, onde termina. Na sua trajectória para Sul, alimentado por múltiplos afluentes, o rio Jinsha ao atingir a província de Yunnan envolve a cidade de Lijiang [localizada no planalto Yungui, ainda pertencente ao planalto Qinghai-Tibete] e pouco depois em Panzhihua, no extremo Sul de Sichuan, recebe as águas do rio Yalong (雅砻江), o mais comprido com 1637 km e principal afluente do Changjiang, proveniente das montanhas Hengduan [junção do planalto Qinghai-Tibete com o planalto Yunnan-Guizhou]. O rio Jinsha (金沙江) passa a correr para Nordeste por a província de Sichuan até Yibin (宜宾), onde termina a uma altitude de 305 metros. Após o afluente Minjiang desaguar em Yibin no Changjiang, este por atravessar Sichuan fica com o nome de Chuanjiang (川江) nos 1040 km até Yichang (宜昌), província de Hubei. Nos 410 km de Yibin a Chongqing, em Luzhou desagua o rio Tuo proveniente de Leshan e já no extremo Leste da península colina onde o centro de Chongqing se encontra, o afluente rio Jialing junta-se ao Chuanjiang, encontrando-se próximo daí as docas Chaotianmen, onde vamos para embarcar. Após Chongqing, a altitude do Chuanjiang passa a ser de 40 metros, percorrendo 630 km até Yichang (宜昌), onde termina o Curso Superior do Changjiang (长江上游) com 4504 km desde as suas duas nascentes. PERCURSO DAS TRÊS GARGANTAS Em 1991 chegamos à segunda cidade mais importante de Sichuan, Chongqing com a intenção de realizar de barco a descida do Rio Longo até Wuhan, passando por o famoso cenário turístico das Três Gargantas, numa viagem de três dias. Na compra do bilhete de barco havia a possibilidade de escolha para desembarcar nos portos fluviais de uma série de cidades existentes a jusante do Yangtzé [assim chamado o rio por os estrangeiros]. Em Chongqing inicia-se a parte navegável do rio para navios de grande porte e a viagem até Shanghai (Xangai) dura cinco dias e em sentido inverso, para percorrer os 2400 quilómetros contra a corrente, leva sete dias. Chongqing desde 1983 tinha já a parte financeira e económica sob o controlo do Governo Central, mas administrativamente os seus treze milhões de residentes pertenciam à província de Sichuan, então com 100 milhões, a mais populosa da China. Em 1997, devido à necessidade de construir a Barragem de Sanxia [三峡壩, das Três Gargantas] deixou de pertencer a Sichuan e tornou-se o Município Administrativo de Chongqing. Aquando da nossa primeira viagem por o Changjiang em 1991 ainda não havia referência alguma à Barragem Hidroeléctrica das Três Gargantas (三峡大壩, Sanxiadaba), cuja decisão governamental ocorreu no ano seguinte, ficando a obra pronta em 2008, tornando-se a maior barragem do mundo. Quando possível, o barco é um bom meio para viajar no centro e Sul (a parte mais populosa da China), sobretudo nas deslocações feitas por o interior. Apesar de vagarosas, são agradáveis viagens. Por água, [lembrar estarmos em 1991], conseguimos fugir às enchentes dos comboios e às más estradas do interior do país. Devido à lentidão deste transporte, a permitir repousadamente saborear a paisagem e a possibilidade de conviver com os chineses, faz dele um meio privilegiado. Esta vez o rio sofre uma cheia a inundar os campos, aumentando bastante a largura entre as margens. O barco partiu de Chongqing às 7 horas da manhã e após parar em Fuling e Fengdu, ancorou na margem esquerda do rio às 18 h em Wanxian, um dos dez importantes portos do rio. [Chamado agora Wanzhou, devido à construção da barragem perdeu quase metade da sua área urbana.] De Wanxian saímos às 4 horas para a partir das 8 da manhã navegar na zona das Três Gargantas e chegar a Yichang às 16 horas. Pouco depois de Wanxian, na mesma margem aparece Yunyang, onde atravessando o rio, na margem direita se encontra o Templo de Zhang Fei. Segue-se Fenhjie (Yong’an), antiga cidade capital do reino Kui durante a dinastia Zhou de Leste (771-256 a.n.E.), e para Leste após oito quilómetros inicia-se a Garganta Qutang. À sua entrada, na margem esquerda aparece a povoação-fortaleza de Baidi (Cidade do Imperador Branco, ou Celeste Dragão Branco). Aí, há mais de dois mil anos teve origem o antigo reino Bashu [a cultura Bashu tardia terá começado nos finais do Período Primavera-Outono (770-476 a.n.E.) e com doze gerações de governantes durou até 316 a.n.E., quando o reino Qin eliminou os Ba]. Já no Período dos Três Reinos, Baidicheng foi o local para o governante do reino Shu, Liu Bei (161-223) se retirar após derrotado por o reino Wu e ao sentir-se muito doente, entregou o filho Liu Chan a Zhuge Liang, o seu primeiro-ministro, para o orientar na governação; episódio conhecido por “Confiar o órfão em Baidi”. Navegando oito quilómetros entre altas falésias na Garganta Qutang, dizem-nos poder aí ver incrustados a meio da montanha caixões suspensos do povo Ba. A seguir aparece a Garganta Wu com 45 km de comprimentos e falésias em ambos os lados, onde no ano de 208 terá sido firmada a aliança entre os reinos Shu e Wu contra o Wei. Esta segunda garganta termina em Badong, na margem direita do rio e onde vive a minoria Miao e Tujia, que no passado desde as margens puxavam com cordas os barcos rio acima. Pouco depois, na margem esquerda do rio encontra-se Zigui (Maoping), o início da última das três famosas gargantas, Xilingxia, a mais comprida delas com 76 km. [No percurso desta garganta encontra-se construída em Sandouping, no distrito de Yiling, desde 2008 a Barragem Hidroeléctrica das Três Gargantas (三峡大壩, Sanxiadaba), onde a profundidade não natural, mas criada das águas do rio é de 320 metros.] Por fim, após 38 km está a comporta Gezhouba a deixar a embarcação numa cota cinco metros mais abaixo. Nos 200 km entre Fengjie e Yichang a largura do Chuanjiang varia entre os 300 e menos de 100 metros, dependendo da estação do ano. Em Yichang termina o Curso Superior do Changjiang e o barco faz a primeira grande paragem. DE BARCO ATÉ WUHAN De Yichang, a viagem de barco já no curso médio do Changjiang (长江中游) levou 22 horas até Wuhan. Ainda na margem do lado esquerdo do rio, agora chamado Jingjiang, apareceu pouco depois Jingzhou (província de Hubei). Seguiu-se Yueyang (o único porto internacional de Hunan) situada na margem direita e onde o lago Dongting a Nordeste se liga às águas provenientes do rio Longo. A localização do lago criou o nome das duas províncias, Hubei (a Norte do lago) e Hunan (a Sul do lago). De Yueyang, o Changjiang corre para Nordeste e por a província de Hubei vai até à sua capital Wuhan, onde o rio Han após percorrer 1532 km se torna seu afluente. O Hanshui (汉水) nasce na parte Sul das montanhas Qin (秦岭, Qinling) e percorrendo-as em longitude por o vale criado com a parte Norte das montanhas Daba [a separar Sichuan e Chongqing], passa na cidade de Hanzhong e do Sudoeste de Shaanxi flui para Leste, entrando na província de Hubei. Em Wuhan o Hanshui desagua no Changjiang, dividindo a cidade em três cidades: Wuchang (no lado direito do rio Longo, situa-se à frente da foz do rio Han); na margem Norte do rio Han está Hankou e a Sul, Hanyang, banhando o Changjiang as margens destas três cidades, que formam a capital da província de Hubei. De registar o enorme crescimento de Wuhan, quer populacional, quer em termos da criação de novas indústrias joint-venture com famosas marcas Ocidentais. A meio caminho entre Beijing (Pequim), Guangzhou (Cantão) e Shanghai, está Wuhan como centro do País do Meio, não sendo alheio o incremento dado por o governo central a esta zona especial. O desenvolvimento das vias rodoviárias ficou complementado em 1957 por a nova ponte de Wuhan, ainda então o orgulho dos chineses. Atracado o barco em Hanyang, vamos à cabine de seis camas em beliches que nos coube no bilhete de terceira classe e recolhemos a bagagem. A espreitar do postigo, termina a primeira deambulação no rio Longo, por onde iremos navegar até à foz, entre novas zonas e outras cidades.
Amélia Vieira Via do MeioEstilhaços « …uma das suas cabeças parecia ferida de morte; mas a ferida de morte tinha sido curada. E maravilhados, todos os habitantes da terra foram atrás da Besta» Apocalipse, 13 Um livro do fantástico encerrará sempre muitas casualidades adicionais e outras que vamos acrescentando, porém, e ressalvadas as devidas comparações, ainda se admitia que a segunda quinzena de Julho traria coisas assim como as relacionadas com a temível estrela Algol fazendo conjunção com Marte e Úrano numa área reservada a partir do pescoço, inclusive. Mas se é certo que a sorte protege os audazes, já o azar nos bate à porta com os fragmentos dos impactos balísticos, que as balas, vá-se lá saber porquê, atingem mais os idólatras, que esses sim, em horas descomunais dão lições de grande abnegação e pura valentia. Acontece sempre a mesma estupefacção dianta da «Alice no País das Maravilhas» e do monumental livro do Apocalipse, faltando-lhes ali qualquer coisa de sustentabilidade humana, graça, leveza, e algum secreto amor. Mas nem por isso se deixam de revisitar como se fossem tratados das nossas próprias incompetências interpretativas, e não há que iludir a pouca capacidade e desconhecimento que a humanidade tem perante universos que escapam ao dom da sua própria sobrevivência. São dois livros brutais. Mas o que aqui nos traz é o arrojo do não baleado tendendo a um reino bem mais protegido que aquele de uma rainha de Espadas, um reino trevoso, que tem certamente os seus guardiões e precisa dele para um grande ataque final ao reino dos adormecidos. Aliás, todo aquele reino é já uma derrocada, o amigo, o inimigo, figuras patéticas: exemplos terminais de um estado civilizacional num espectáculo moribundo e senil que não lembra ao diabo. No entanto, a mal fadada estrela Algol preside à mais temível estrela de Perseus com cabeça de Medusa, essa Górgone que ele decapita com espada certeira tornando-se um semideus benigno e de grande coragem com referência mais tarde na Revolução Francesa – cortando tudo aquilo que ao corpo não pertencia. E as datas são as mesmas. Para os chineses ela foi considerada muito simplesmente como a esposa do diabo, mas a China parece muito distante destes confrontos mediterrânicos que galgaram o Atlântico até ao outro lado. Seja como for, estávamos já a festejar a Revolução Moderna da nossa civilização, mas eis senão quando interrompemos a Marselhesa. Hoje 15 de Julho, era Júlio César a nascer – e é claro que ninguém faz Revoluções no Inverno – e pensar que nada de profundamente significativo mudou nas trincheiras da nossa humanidade causa em todos nós reflexão e desespero. Ele nasce da primeira cesariana – daí, o nome César – que nesta Algol transcendente, capciosa e total, vislumbramos essa injustiça que os homens não podem esquecer. Há grandes terrores subterrâneos, supremacias tresloucadas, jovens efebos atirando contra velhos decrépitos e malsãos, e punhados de homens amantes esquartejando-se. Que Trump fosse ferido é sem dúvida de lamentar, mas isso não nos deve interessar; afinal, ele está aí para o que der e vier em todo este imbróglio, e que o outro esteja neurologicamente afectado pouco interesse também transmite, que a velhice se tornou uma constante com a qual todo o Ocidente tem de lidar, mas onde outros bem mais velhos parecem ainda muito mais respeitáveis, isso é um facto. «Quem semelhante à Besta? Foi-lhe dada uma boca para proferir palavras eloquentes, e deram-lhe também o poder de agir durante quarenta e dois meses»
António Graça de Abreu Via do MeioCidade de Xiamen厦门 (Amoy) mais a excelente ilha de Gulangyu鼓浪屿 No recuado ano de 1981, na Biblioteca Central de Xangai, onde não havia ainda ficheiros organizados numa língua estrangeira e os computadores estavam em absoluta gestação, pedi ao funcionário de serviço que me trouxesse livros e documentos em inglês ou em português sobre Aomen澳门, o nome chinês da nossa Macau. O pressuroso empregado apareceu-me uns dez minutos depois sobraçando uma resma enorme de livros, todos referentes a Xiamen厦门, a cidade costeira no sul da província de Fujian. Na altura, na China Popular pouco ou nada se sabia sobre Macau, e quem ouvia o nome associava-o frequentemente a um bairro de Hong Kong. O topónimo Aomen 澳门, que significa “porta da baía”, prestava-se a alguma confusão com Xiamen 厦门que se pode traduzir por “porta da mansão” dado que ambas as cidades são portos de mar situados no sul do império chinês. Na altura, ainda com tanta China por conhecer, parecia-me improvável um dia desembarcar de comboio, barco ou avião em Xiamen, a velha cidade de Amoy. Aconteceu no ano de graça de 2013, tendo chegado de avião exactamente desde Taipé, Taiwan, logo ali do outro lado do estreito da Formosa, coisa impensável há uma dúzia de anos. Mas hoje tudo são facilidades, com as ligações aéreas entre a capital de Taiwan e as principais cidades da China Popular. Xiamen ou Amoy – assim se leêm os dois caracteres厦门, primeiro em mandarim e depois no dialecto hokkien de Xiamen, variante do min do sul falado em Fujian –, é a segunda maior cidade da província de Fujian com 1,8 milhões de habitantes. Cresceu sobretudo a partir do século XVI quando as duas grandes cidades portuárias de Zhangzhou e Quangzhou que lhe estão próximas começaram a diminuir de importância devido ao assoreamento dos rios que lhes davam acesso marítimo. Por volta de 1545, o porto, ou portos de Xiamen dado que a ilha engloba vários embarcadouros ou cais, chegou a ser usado pelos navegadores e mercadores portugueses nas suas deambulações ao longo da recortada costa chinesa, nesta região polvilhada por mil ilhas, baías, embocaduras de rios, mares amarelos e terras de todas as cores. No século XIX, Xiamen era o grande porto por onde se escoava o chá, até então unicamente produzido na China. Após, a Guerra do Ópio (1839-1842), a sua importância cresceu dado ser um dos “Cinco Portos” abertos ao comércio internacional após a derrota chinesa na guerra às mãos dos ingleses e a assinatura do humilhante, para a China, tratado de Nanquim, em 1842. Os outros portos abertos foram Cantão, Fuzhou, Ningbo e Xangai. Hoje Xiamem é uma cidade airosa, desempoeirada, acho que quase livre de poluição. A proximidade do mar, o clima subtropical com chuvas frequentes, a própria abertura do centro urbano para o litoral, a natureza da terra fazem de Xiamen um dos lugares com melhor qualidade de vida em toda a China. E a cidade mantém um interessantíssimo centro histórico, com ruas e construções coloniais europeias que datam de finais do século XIX. Visita ao templo budista de Nanputuo. Inicialmente construído durante a dinastia Tang (618-907), o templo foi várias vezes arrasado e os pavilhões que tenho diante de mim são todos dos séculos XVIII e XIX. Resta a originalidade de terem sido construídos neste estilo chinês do sul da província de Fujian, com as extremidades dos telhados, às vezes sobrepostos, muito reviradas, os templos intensamente decorados e coloridos por fora e por dentro. Nanputou estende-se para o céu, ascendendo pela montanha que lhe fica por detrás o que, em termos de feng shui 風水favorece a sua localização, um monte atrás, o mar em frente, o céu por cima. Vale a pena subir algumas centenas largas de degraus para, do alto, em plataformas aqui e acolá com motivos budistas, se ter uma desafogada vista sobre esta parte da cidade e sobre o mar. Logo abaixo, encontramos o vasto campus da Universidade de Fujian, uma das mais famosas da China. Depois do templo, atravessei a pé todo o complexo universitário em direcção à praia que fica do outro lado. Últimos dias de Junho de 2013, as aulas e os exames estão a acabar, há novos doutores e doutoras que, academicamente paramentados à inglesa ou à americana tiram retratos e retratos junto ao lago central da sua Universidade. Nas janelas e varandas dos dormitórios dos estudantes há verdadeiros festivais de roupa a secar, mas a Universidade parece funcional, com departamentos e faculdades a ocuparem ora edifícios modernos, ora complexos dos anos vinte do século passado, bem conservados, tudo aparentemente bem equipado. As praias de Xiamen são um extenso sufoco por causa da quantidade de porcaria e dejectos que se acumulam na areia grossa e que bóiam nas águas mansas do Oceano Pacífico. Ali nem deu para molhar os pés. Em 1949, quando dos derradeiros combates entre comunistas e nacionalistas, antes da fuga definitiva destes últimos para Taiwan, os soldados de Chiang Kai-shek conseguiram segurar a pequena ilha de Jinmen金門, Kinmen ou Quemoy, no dialecto local, que se situa apenas três quilómetros a leste de Xiamen. Contra todas as expectativas ainda mantêm a ilha na sua posse, o que é motivo de interessada visita por parte dos turistas da República Popular da China que têm logo ali, ao alcance da mão ou de duas ou três braçadas, um território capitalista para comparar com a sua China de Mao Zedong e de Xi Jinping. Acabado de chegar de Taiwan, não fui à pequena ilha nacionalista de Jinmen. O melhor de Xiamen, para turista ver, espairecer e se surpreender é a ilha de Gulangyu, 鼓浪屿 mesmo em frente do centro da cidade, a menos de um quilómetro de distância que se percorre em sete minutos numa espécie de cacilheiro, sempre apinhado de chineses. A partir de meados do século XIX, depois da abertura do porto de Xiamen ao mundo, os estrangeiros começaram a chegar e fixaram-se sobretudo nesta bonita ilha de Gulangyu, com cerca de dois quilómetros de comprimento por um de largura. A ilha tem água doce, praias, imensa vegetação, tudo o que é necessário para a vida. Treze países, incluindo a França, a Grã-Bretanha e o Japão aqui estabeleceram os seus consulados e em 1903 Gulangyu passou a ser designada Território Internacional, tendo governo e polícia própria, a segurança era feita pelos shiks que, tal como aconteceu com os indianos que funcionaram como polícia em Xangai, os ingleses foram buscar ao norte da Índia. Curiosíssima é a arquitectura colonial dos cerca de 500 edifícios que foram construídos em Gulangyu, sobretudo entre 1890 e 1920 e que, restaurados, ainda se conservam. Trata-se de mais um museu a céu aberto, um conglomerado de casas e grandes mansões, de igrejas e jardins, de palácios e hospitais, tudo numa mais do que heterogénea mescla de estilos, nada sínicos, de talhe e arquitectura ocidental, ao modo do que se construía na Europa no início do século XX. Felizmente, e para satisfazer a multidão de turistas chineses — são tantos que diariamente chegam a atravancar o trânsito pedonal numa ilha que não autoriza veículos motorizados –, Gulanyu tem praias (também não muito limpas) e recantos sossegados onde se pode fruir a natureza, ou a nostalgia do encanto perdido do passado. E tem hotéis e pensões onde apetece ficar, sobretudo a partir de meio da tarde, após a saída da avalanche de turistas chineses. Então Gulangyu fica por nossa conta e que prazer ouvir um piano — a ilha conta com um estupendo museu com mais de cem pianos e órgãos de várias épocas –, olhar o pôr-do-sol, imaginar, mui ao de leve, as fantásticas histórias dos velhos habitantes de Gulangyu quando chineses abastados se passeavam de riquexó, homens de negócios europeus, de colete, casaco e gravata caminhavam pelas ruelas junto ao mar, e damas chinesas, mais do que formosas nas suas cabaias de brocado e seda, inebriavam a brisa da tarde. Numa das lojas de rua em Gulangyu, província de Fujian, República Popular da China, fiz uma compra absolutamente inédita em 36 anos de viagens e estadias no mundo chinês, uma peça em massa dura e pesada de plástico, com duas figurinhas, Mao Zedong e Chiang Kai-shek, ambos sentados num banco de jardim, abraçados e ternurentos, sorrindo para as gerações futuras. Malhas que o império tece…
Paulo Maia e Carmo Via do MeioAlopen e Yuchi Yiseng: Estrangeiros em Chang’an Li Shimin (598-649), que reinou como o imperador Tang Taizong, (r.626-649) numa magnimidade disponível, recebeu na sua capital Chang’an as mais exóticas personalidades, com quem partilhou a elevação do seu espírito. Nessa cordialidade para com os estranhos, que correspondia a uma calculada opção estratégica e cultural de posicionar o seu reino como guanzhong, uma terra «entre desfiladeiros», recebeu um dia um missionário oriundo de uma terra longínqua que veio caminhando ao longo da grande via continental hoje conhecida como a «Rota da Seda». De acordo com a inscrição numa estela encontrada no século XVII em Xian (Shaanxi), a antiga Chang’an, ele vinha de Daqin (o Império Bizantino) «descobrindo por entre o azul e as nuvens, trazendo os verdadeiros e sagrados livros; contemplando a direcção dos ventos, enfrentando dificuldades e perigos», e lá chegou no ano 635. Diz nessa inscrição que se chamava Alopen (Aluoben) e enunciava a religião de Jesus de Nazaré. Ouvindo falar o estrangeiro, Taizong não só o acolheu como permitiu que criasse uma igreja e continuasse a sua missão, que não viu muito diferente dos seus já conhecidos heróis daoístas ou sábios confucionistas, promovendo o convívio de todos. Até quase ao fim da dinastia Tang foi permitido aos missionários, os que vieram com o cristão assírio Alopen e depois deles, a estadia no Império. Até que foram expulsos, só regressando trezentos anos depois. É possível que o carácter «portátil» da religião de Alopen, necessitando de escassos meios para se mostrar; palavras, uma cruz, pequenas figuras pintadas ou esculpidas, facilitasse o procedimento de fazer esquecer a nova religião. Algo diferente sucedeu com a religião de Buda Sakyamuni, para a qual a existência de pinturas murais é parte integral do espaço construído dos seus templos para elucidação dos crentes e perplexidade dos visitantes. Na era de Taizong também chegou a Chang’an um artista budista cuja memória permaneceria nos tratados da pintura. Yuchi Yisang (Visa Irasanga, activo no século VII) veio do Reino de Khotan, na Ásia central (actual Xinjiang) para servir como guarda do palácio imperial, mas logo se notabilizou na decoração de templos budistas e daoístas nas regiões de Chang’an e depois de Luoyang. Sobre ele Zhu Jingxuan, escrevendo no fim dos Tang, a meio do século IX disse: «Os temas estrangeiros na pintura, figuras de fantasmas e formas exóticas, todos praticados por Yuchi Yiseng, foram quase completamente descontinuados.» (em Tangchao Mighua lu, «Sobre pinturas famosas do período Tang»). Da sua obra restam escassos exemplos e de difícil autenticação, entre eles, as figuras de duas mulheres do reino de Kusha, pintadas a tinta e cor sobre seda (Villa I Tatti, Florença). O seu corpo, a primeira fronteira da expressão do espírito, move-se em harmonia numa dança.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioYu Sheng e os Compêndios de Pássaros e Animais Ferdinand Verbiest (Nan Huairen, 1623-88) o missionário jesuíta flamengo que mostrou ao imperador Kangxi (r. 1661-1722) o vasto alcance da ciência desenvolvida no Ocidente, tem os nomes de duas das suas obras traduzidas como atestado de autoridade num dos extraordinários compêndios em que a arte e o conhecimento científico, unidos, fizeram a justa fama do admirável reino do imperador Qianlong (r.1735-96). Esse ambicioso albúm descritivo, escrito em duas línguas com caracteres manchus e sinográficos e meticulosamente ilustrado é também ele, não só testemunho do modo como o labor de pintores Europeus na corte imperial alterou certas percepções da representação dos volumes, como do sempre afirmado respeito pelos antigos, e até do sentimento de deferência e estima (xiao), traduzido habitualmente como «piedade filial» sentido por Qianlong em relação ao seu avô. No minucioso Niaopu, «Compêndio das aves» (tinta e cor sobre seda, 41,2 x 43,9 cm, nos Museus do Palácio de Pequim e Taipé) de 1751, onde se encontram aves reais e mitológicas, nativas e estrangeiras e que é entendido como um tributo ao imperador em reconhecimento do poder do seu reino de múltiplos mundos, as obras de Verbiest asseguram a origem do perú como ave originária do México, conhecimento adquirido pelas navegações europeias. Logo no início é afirmado que esta se trata de uma cópia de um original pintado por Jiang Tingxi (1669-1732) com poemas de Wang Tubing cerca de 1721 no tempo do imperador Kangxi e que nele se encontram os «trezentos e sessenta animais de penas» identificados no Liji, o Livro dos Ritos atribuído a Confúcio, e de que o fenghuang é «entre todos, o líder». Que é o primeiro pássaro representado, seguindo uma longa tradição, nomeado já na dinastia Shang (1600-1946 a. C.) e aqui pintado com o mesmo cuidado que os outros, que denotam uma atenta observação das aves na natureza, por dois pintores da corte, um dos quais se distinguiria no género huaniaohua, a «pintura de pássaros e flores» que inclui também a figuração de peixes ou insectos. Yu Sheng (também escrito Yu Xing, 1692-depois de 1767) fez o álbum das aves com Zhang Weibang (c.1725-c.1775) com quem continuou a inquirição taxonómica através de um Compêndio de animais, Shou pu (tinta e cor sobre seda, 40,1 x 42,5 cm, no Museu do Palácio em Pequim). Nele, a mesma atenção aos detalhes das figuras e dos textos escritos em duas línguas por oito altos funcionários, baseados em descrições em primeira mão de quem os observou, muitos deles emissários enviados pela corte ou por autoridades locais. Para além destes ambiciosos projectos,Yu Sheng dedicou uma particular atenção às flores, silenciosas manifestações de contínua renovação cujo perfume é capaz de evocar outros tempos, outros lugares, despertando nostálgicos sentimentos até dos confins do Império.
Hoje Macau Via do Meio元稹Yuan Zhen – Poeta e cavalheiro Editado por Miguel Lenoir Yuan Zhen (779-831) foi um poeta e académico chinês, e funcionário do governo durante a dinastia Tang. É conhecido pelas suas obras literárias, nomeadamente nos domínios da poesia e da prosa. Como poeta, político e académico de renome, desempenhou um papel crucial na formação da paisagem literária do seu tempo. As obras de Yuan Zhen são altamente consideradas pela sua profundidade emocional, beleza lírica e significado cultural, reflectindo as realidades sociais e políticas da época. A sua poesia continua a ser estudada e admirada pela sua influência duradoura na tradição literária chinesa. A poesia de Yuan Zhen caracteriza-se pela sua riqueza emocional e beleza lírica, reflectindo os tempos turbulentos da dinastia Tang. Os seus versos exploram frequentemente temas como o amor, a amizade, a perda e a transitoriedade da vida, captando a essência da experiência humana com eloquência e profundidade. Através da sua observação atenta do mundo que o rodeava, Yuan Zhen criou poemas que não só deliciavam os sentidos, como também ofereciam reflexões pungentes sobre verdades universais. Para além da poesia, as contribuições de Yuan Zhen para a literatura chinesa estenderam-se ao domínio da prosa, onde os seus escritos revelaram uma notável mistura de inteligência e criatividade. As suas obras foram célebres pela sua clareza de expressão, imagens vívidas e narração com nuances, revelando um profundo conhecimento da natureza humana e da sociedade. Para além dos seus esforços literários, Yuan Zhen foi também académico e político, defendendo reformas sociais e valores morais na sua capacidade oficial. O seu empenho na integridade, justiça e compaixão granjeou-lhe respeito e admiração entre os seus contemporâneos, solidificando ainda mais o seu legado como uma figura venerada da história chinesa. De um modo geral, a poesia e os escritos de Yuan Zhen continuam a encantar os leitores com a sua beleza intemporal e profunda percepção. Através da sua arte e intelecto, garantiu um lugar duradouro no panteão dos gigantes da literatura chinesa, inspirando gerações de poetas e académicos. Há várias traduções para inglês dos poemas de Yuan Zhen disponíveis em diversas colecções de poesia chinesa. Alguns tradutores que traduziram a obra de Yuan Zhen incluem Stephen Owen, Witter Bynner e Arthur Waley. Poderá encontrar os seus poemas em antologias de poesia da Dinastia Tang ou em colecções especificamente dedicadas à sua obra. As fontes online e as bibliotecas também podem ter traduções em inglês dos seus poemas para explorar e apreciar. Em português encontrámos unicamente o que transcrevemos, mais abaixo, neste texto. Como poeta, Yuan Zhen foi influente na formação do estilo literário do seu tempo e na inspiração de futuras gerações de poetas. O seu trabalho reflectiu o espírito da Dinastia Tang, conhecida como a idade de ouro da poesia chinesa, e foi considerado um dos “Oito Imortais da Taça de Vinho”, um grupo de poetas de renome que eram celebrados pelo seu talento e criatividade. A sua relação com a poetisa Xue Tao foi imortalizada em vários poemas, histórias e obras literárias. Eis alguns exemplos: A “História de Xue Tao”: Esta é uma lenda popular chinesa que conta a história da vida de Xue Tao e a sua relação com Yuan Zhen. Destaca a sua ligação emocional, os desafios que enfrentaram e o impacto duradouro do seu amor na cultura chinesa. Tanto Yuan Zhen como Xue Tao são referidos em várias obras literárias chinesas, incluindo romances, peças de teatro e ensaios. A sua história é frequentemente utilizada como símbolo do amor, da paixão e das complexidades das relações humanas. Ao longo do tempo, a história de Yuan Zhen e Xue Tao tornou-se parte do folclore e da mitologia chineses, com adaptações e recontagens que enfatizam diferentes aspectos da sua relação. Estes exemplos mostram a influência duradoura e o significado de Yuan Zhen e Xue Tao na literatura e cultura chinesas, tornando-os símbolos duradouros do amor e da expressão artística. Poemas de Yuan Zhen Palácio temporário➀ Desolado palácio dos imperadores, Florescem, no silêncio, vermelhas flores. Aias de cabelos brancos sentadas no lazer, Falando do Tang Xuanzong➁ e do seu viver. Nota: ➀Refere a residência provisória de um soberano em viagem. Aqui refere-se ao Palácio de Lian Chang, um dos palácios temporários mais grande da dinastia Tang, agora situado no atual condado de Yiyang, província de Henan. ➁Imperador da dinastia Tang (712-756), nasceu em Luoyang (685-762). Amanhece a Primavera Aos primeiros alvores do amanhecer, oiço um trovão, respiro o perfume das flores. Uma criança puxa a corda, faz soar um sino. No templo, há vinte anos, de madrugada, meu amor. tradução António Graça de Abreu Prosa A História de Yingying ou Yingying zhuan (莺莺传), composta pelo ilustre poeta Yuan Zhen (779-831) teve enorme impacto literário. Aqui o “extraordinário” não reside no sobrenatural, mas na feminilidade da heroína que afasta com altivez o namorado para se juntar a ele, um pouco mais tarde, por uma noite e só reaparece passados dez dias, comovida pelo longo poema que o seu amante decidiu dedicar-lhe. Desde então, ela regressa todas as noites para tornar a partir antes da alvorada, respondendo invariavelmente às suas perguntas com “Não consigo que seja de outra maneira.” Quando o amante lhe anuncia a sua partida iminente para a capital, ela não levanta nenhuma objecção. Repetidos insucessos nos exames fazem prolongar a separação e suscitam cartas de amor acaloradas que o herói se orgulha de compartilhar com as pessoas da sua intimidade. Porém, assustado por uma tal paixão, ele renuncia a revê-la e a desposá-la, justificando assim a sua atitude: “Entre os amigos de Zhang (张) que estavam ao corrente [dos factos] não houve nenhum que deixasse de o encorajar e que não se espantasse com a sua estranha conduta, mas a decisão de Zhang estava tomada. Como o nosso relacionamento era particularmente amigável, acabei por lhe conseguir arrancar estas palavras: “Regra geral, as criaturas excepcionais que devem o seu destino ao céu trazem infelicidade aos outros e, eventualmente, a eles próprias. Se ela tivesse encontrado alguém mais nobre e rico, teria aproveitado os seus encantos para se tornar favorita imperial e, chovesse ou fizesse bom tempo, transformar-se-ia num monstro inimaginável […] Sendo dotado de uma virtude fraca demais para triunfar sobre os seus males, considero que é mais razoável conter a minha paixão.” Um ano depois Yingying desposou um outro e Zhang casou-se longe dali. Porém, procurou voltar a vê-la, mas ela recusou recebê-lo, fazendo-lhe chegar secretamente este poema: Por ter perdido o brilho da minha beleza, ao ter emagrecido imensamente, mil remorsos deixam-me prostrada impedindo-me sair da cama. Sinto vergonha de ficar deitada, de modo algum por causa do outro. Mas sobretudo diante de ti por ter definhado tanto por tua causa. Tradução de Raúl Pissarra A dor da separação Depois de ver o vasto mar, nenhum veio d’água pode se comparar Dispersas, perto do topo do Monte Wu, não há iguais nuvens Muitas vezes passei pelas flores e não lhes poupei um olhar Pois metade do meu destino está no cultivo e, a outra metade, em você. Tradução de um blogger anónimo brasileiro
José Simões Morais Via do MeioO Grande Canal I | As montanhas Sagradas na China A Água é o Elemento do tema a abordar, “O Grande Canal”, logo os rios seriam os primeiros a serem introduzidos, mas então, qual a razão de começar por falar de Orografia (parte da geografia física que trata da descrição das montanhas)? Se a Índia tem rios e cidades sagradas, na China são sagradas as montanhas, sendo a mais alta do mundo com 8844,43 metros o Monte Qomolangma, nome proveniente da deusa tibetana da mãe Terra e conhecido por Evereste devido ao general George Everest nos anos 40 do século XIX por ali ter andado. Este monte pertence à Cordilheira dos Himalaias, formada há pouco mais de 10 milhões de anos, na Era Cenozoica, quando o continente indiano chocou com a placa euro-asiática continental provocando na zona do choque uma deformação, criando-se assim planaltos com 2 mil até 2,5 mil metros de altura, atingindo alguns cumes os 3 mil metros. Há três milhões de anos, os picos das montanhas dos planaltos tibetanos já atingiam os 4,5 a 5 mil metros de altitude. As altas montanhas na China situam-se sobretudo a Oeste, onde as faldas dos Himalaias chegam a Qinghai, Sichuan e Yunnan, tendo a cordilheira dos Pamir a Oeste de Xinjiang e a Norte, Tianshan. Importante para o nosso tema é a província de Qinghai onde no planalto Qinghai-Tibete nascem os rios mais importantes da China: o Huanghe (rio Amarelo), o Changjiang (Yangzi) e o Lancangjiang (rio Mekong, com 4350 km), que desagua no Vietname. Na província de Shaanxi, o rio Amarelo corre a Norte da cordilheira montanhosa Qinling e o rio Yangzi a Sul. Estendendo-se esta de Leste para Oeste, varia a altura dos montes dos 2000 aos 3600 metros e é considerada a divisão natural entre o Norte e o Sul da China, fazendo de barreira ao frio proveniente do Norte e à chuva do Sul. CRÓNICAS DAS MONTANHAS “No seu culto pela natureza, os primitivos habitantes da China não puderam deixar de ficar impressionados com as vertiginosas altitudes, que, só de longe em longe, surgem no seu vastíssimo solo, plano na sua maior extensão. Como todas as coisas deste mundo que, quanto mais raras, mais estimadas são, essas escassas montanhas, de admiradas, passaram a ser veneradas e, ainda mais respeito infundiram no ânimo dos seus adoradores, no dia, em que, nas suas vertentes, principiaram a enterrar os seus mortos”, escreve Luís Gonzaga Gomes no Chinesices Vol. VII e continuando com ele, “achando que os deuses-montanhas não podiam como os simples mortais, prescindir da companhia do elemento feminino, passaram a conceder-lhes esposas, a inventar-lhes aniversários e a erigir-lhes templos, para a celebração do seu culto. Entretanto, o espírito de hierarquia levou-os a ordenar estes deuses, em diversas categorias, conforme a altitude e a imponência das montanhas por eles personificados. Uma vez criado o culto pelas montanhas, cinco das mais majestosas elevações foram escolhidas para serem veneradas como divindades de maior categoria.” “Conjunto conhecido pelo nome de Ung-Ngók-San [Wuyue shan, 五岳山, As Cinco Montanhas Sagradas] que, pela sua situação geográfica, representavam os cinco pontos cardiais – os chineses consideram também o centro como um dos principais pontos no seu sistema de orientação – bem como, as Cinco Cores, os Cinco Elementos e as Cinco Estações, outras montanhas de somenos importância foram mais tarde e em épocas diversas também incluídas, na sua extensa lista de divindades. Os nomes dessas montanhas, a sua orografia e a sua orogenia, bem como as lendas que se teceram em volta delas, encontram-se registadas no “Sán-Kei” (Crónicas das Montanhas).” Será este o San Oi Keng, (山海经), em mandarim Shan Hai Jing, Clássico das Montanhas e dos Mares escrito por Liu Xiang e o filho Liu Xin entre 206 a.n.E. e o ano 23. É considerado o primeiro livro da literatura chinesa a falar sobre geologia e geografia. Com 31 mil caracteres, nos 18 volumes estão informações sobre montanhas, rios, jazigos de minerais e minas, assim como descreve costumes folclóricos, lendas e antigas histórias, medicina, tecnologia e ciência. “Quanto às ‘Cinco Montanhas Sagradas’, a sua festividade costuma ser celebrada no sexto dia da décima lua e tanto o budismo chinês como o tauismo não duvidaram em homologá-las para o seu culto. É por este motivo que existem crentes chineses que adoram o Imperador Amarelo, ou o Espírito do Centro, representado pelo Sông-Sán [嵩山, Song shan, a montanha sagrada do Centro], ou o Pico Central, e situado na província de Honám (Henan), estando cometido a esta divindade o encargo de presidir à vida dos lagos, rios, canais e florestas; o Imperador Encarnado, isto é, o Espírito de Hâng Sán, [衡山, Heng shan a montanha sagrada do Sul], ou o Pico Meridional, situado na província de U-Nám (Hunan), deus dos astros e de todas as criaturas aquáticas, incluindo os dragões; o Imperador Branco, personificação do Fá-Sán [华山, Hua shan a montanha sagrada do Oeste], ou o Pico Ocidental da província de Sán-Sâi [Shaanxi], divindade esta a quem está incumbida a protecção do reino mineral e avicular; o Imperador Negro, incarnação de Hang-Sán [恒山, Heng shan, a montanha sagrada do Norte, província de Shanxi] ou o Pico Setentrional da província de Tchit-Lei, senhor dos rios e do reino animal; e o Imperador Verde, personificação do T’ái-Sán [泰山, Tai shan a montanha sagrada do Leste em Shandong], ou o Pico Oriental da província sagrada de Sán-Tông, a quem estão entregues os destinos da humanidade, tanto neste como no outro mundo”, escreve Luís Gonzaga Gomes. MONTANHAS SAGRADAS DO BUDISMO As quatro montanhas sagradas do budismo na China são, Jiuhua shan na província de Anhui; Putuo shan em Zhejiang; Emei shan em Sichuan; e Wutai shan na província de Shanxi. Shanxi significa “a Oeste das montanhas” e fazia parte do território limite entre a civilização chinesa e as tribos nómadas do Norte, tendo por isso a Grande Muralha muita importância estratégica. Nessa província se encontram, a montanha Wutai a poucos quilómetros da montanha sagrada do Norte, Hengshan, e ainda a 75 km Sudeste de Datong, no concelho de Jiaocheng o Templo de Xuanzhong, construído no século V e onde nasceu a seita budista da Terra Pura. Na montanha Wutai formada por cinco colinas encimadas por planaltos existem 47 templos budistas de arquitectura tradicional chinesa. O Budismo aqui chegou na dinastia Han do Leste (25-220), sendo Xiantong, o segundo templo budista a ser construído na China. Conta a lenda, o bodhisattva (pusa) Wenshu ao passar por Wutai, sentindo-se inspirado por boas vibrações passou a divulgar os ensinamentos de Buda. O clima era de extremos, as colheitas sempre fracas e perante a vida de miséria do povo resolveu em viagem ir pedir emprestada ao Rei do Dragão do Mar do Leste (东海龙王Donghai Longwang) a pedra preciosa mágica conhecida por Xielongshi (歇龙石, Pedra do Dragão Descansado), comprometendo-se a devolver num prazo de trinta anos. Perante a grande prosperidade ocorrida desde então em torno da montanha Wutai, os habitantes, conseguindo grandes colheitas, foram erguendo templos para agradecer aos deuses, mas esqueceram-se de devolver a pedra mágica e passados os trinta anos, zangado o Rei do Dragão (龙王, Longwang) enviou o Dragão Preto (黑龙, Heilong) a Wutai para a recuperar. Este, sem a conseguir encontrar, circulou como um louco por entre as colinas e descontrolado deitou abaixo os seus cinco picos e daí o nome de Wutai, a significar Cinco Colinas Planas. Essa pedra Xielongshi encontra-se no pátio do Templo Qingliang construído em 472. Já o templo Xiantong, seguindo o modelo de palácio imperial, é o maior de Wutai com uma área de oitenta mil metros quadrados, tendo para ver, o pesado sino de bronze, duas das cinco torres octogonais em bronze de treze andares com sete metros de altura e a sala de bronze mandada construir por o Imperador Wangli (1572-1620) em memória da mãe Imperatriz Xiaoding (1545-1614), concubina do Imperador Longqing que em 1563 lhe deu o herdeiro da coroa. Nas paredes dessa sala foram esculpidos dez mil budas em alto relevo. CINCO MONTANHAS SAGRADAS DO TAOISMO As montanhas sagradas da China, passaram nos finais do século VI a ser as cinco montanhas sagradas para os taoistas. Ainda na província de Shanxi, após passar pela vila de Hunyuan, já na montanha sagrada do Norte Hengshan (恒山) descobrimos na ravina de Jinlong o templo Xuankong (mosteiro de Hanging). Uma barragem encontra-se oculta por trás da montanha de onde um enorme buraco jorra a água em cascata alimentando um pequeno ribeiro a correr por baixo do longo edifício construído nos finais da dinastia Wei do Norte (386-534), quando o nome de Datong era Pingcheng e capital dessa dinastia. No interior de um dos pavilhões soubemos ter muitas vezes sido destruído pela corrente do rio Heng e o actual edifício ser da dinastia Qing. A 25 e 50 metros do solo, numa concavidade da encosta, o complexo é todo em madeira e está suspenso por altas estacas. Composto por diversos pavilhões ligados por estreitos corredores e escadas, alberga uma quantidade de quartos onde se encontram mais de 80 estátuas, tanto de bronze, como de ferro, de pedra e de argila, esculpidas em diferentes períodos. Num dos salões encontrámos juntas as estátuas de Lao Zi (Lao Tzé), Kong Zi (Confúcio) e Buda (Sidarta). O templo Xuankong, incrustado e resguardado no monte Cuiping (翠屏), tem um ar frágil e não fosse estar há mais de 1400 anos naquele suspenso equilíbrio, não nos teríamos aventurado a nele entrar. De camioneta, nos anos 90 demoramos três horas para da montanha sagrada do Norte voltar à cidade de Datong. Na província de Henan, a montanha sagrada do Centro, Song shan (嵩山), situa-se na margem Sul do rio Amarelo e é um parque geológico onde se encontra o Templo de Shaolin. Como cadeia montanhosa está dividida em duas partes, a Oeste a montanha Shaoshi, situada a Noroeste da cidade de Dengfeng, conta com 36 cumes numa extensão de 64 km, de Luoyang a Zhengzhou, e dos sete picos tem um com mais de 1512 metros. Na encosta Oeste de Song shan encontra-se o mosteiro de Shaolin onde no ano de 527 chegou o monge Bodhidharma, o primeiro Patriarca do Budismo Chan e aí criou o wushu (kungfu) de Shaolin. Já na parte Leste, a montanha Taishi tem também 36 montes, totalizando assim a montanha sagrada do Centro 72 montes numa área de 450 km². Na província de Shaanxi, no concelho de Huayin, a cerca de 120 km a Leste de Xian a montanha sagrada do Oeste, Hua shan (华山) conhecida pela sua magnificência e ser muito íngreme e difícil de percorrer. Nos tempos antigos apenas tinha um caminho para a escalar e segundo a lenda o mestre tauísta Chen Tuan no século X aqui viveu em plena reclusão. Na dinastia Tang, a montanha Hua estava a meio caminho entre as capitais Chang‘an e Luoyang e o Imperador Xuanzong designou-a como montanha sagrada da família real Tang. No topo da montanha Hua, uma gigantesca pedra faz lembrar um machado cujo mito refere ser esse o mágico machado usado por Chenxiang [filho da deusa Huayue Sanniang e do marido, o mortal Liu Yanchang, ou Liu Xiang] para cortar a montanha e libertar a mãe, aí encarcerada como punição de violar as regras do Céu. O castigo dado a Huayue por o seu irmão mais velho Erlang Shen devia-se a ser ela uma imortal e por amor se juntar a um mortal. Na província de Shandong, a montanha sagrada do Leste, Tai shan (泰山) tem a reputação de ser o primeiro monte do mundo. Diz-se ser o Grande Imperador da Montanha do Leste, o Deus da Montanha Tai (Dongyue Dadi, descendente de Pangu) a governar sobre a vida das pessoas, dos mortos e das fortunas e a sua filha a princesa Aurora proteger as mulheres e crianças. Situada a Sul da cidade de Jinan, estende-se por mais de 200 km na direcção Leste-Oeste numa área de 426 km² e tem o pico mais alto a 1545 metros. Com duas entradas, a do Norte mais longa e pela porta Sul, na cidade de Tai’an inicia-se a subida de uma ingreme e longa escadaria até ao Céu dividida em dois lanços de quatro quilómetros cada para se chegar ao Palácio das Dádivas do Céu no Templo do Deus da Montanha Tai. Em Hunan, a montanha sagrada do Sul, Heng shan (衡山) tem 150 km de comprimento e 72 picos, situando-se no extremo Sul o pico Huiyan e oposto, a montanha Yuelu no lado Norte, num dos seis distritos urbanos da prefeitura de Changsha. O pico mais alto de Heng shan é o Zhurong (deus do Fogo) com 1300 metros. Foi a única não visitada das cinco montanhas sagradas e por isso a escassez da informação.
Hoje Macau Via do MeioA Rota das Especiarias e a história do Oriente e do Ocidente – Parte I Texto de Ritchie Lek Chi, Chan Primeiro contacto com a colheita de especiarias As especiarias fazem parte da vida das pessoas do Sudeste Asiático. Na Indonésia, famosa pela produção de especiarias desde os tempos antigos, tornaram-se numa necessidade para a população. Lembro-me do meu primeiro contacto com o processo de fabricação do cravo na Indonésia, quando era criança. Essa experiência levou ao meu interesse posterior pela história das especiarias. Mais tarde, através da exploração em várias línguas, descobri que existe muita informação sobre o comércio de especiarias e as suas rotas desde a antiguidade até à Idade Média. Mais tarde, após décadas de viagens ao redor do mundo, descobri muitas informações ocultas sobre o comércio de especiarias e as suas rotas desde os tempos antigos até a Idade Média. Após o século XVI, com a chegada dos portugueses, Macau teve também uma importante relação com o comércio de especiarias. Para compartilhar essas informações com os leitores, aqui fica este artigo. A colheita Quando eu morava em Jacarta, sempre que havia feriados prolongados na escola, o meu pai costumava “exilar-me” em casa da minha tia, por vezes durante mais de dez dias. A família da minha tia morava na cidade de Bogor. O clima nesta cidade é confortável e agradável. Podia ter contacto com a natureza e gostava de lá ficar. Bogor é uma cidade antiga cercada por quatro vulcões que abraçam esta povoação numa bacia a mais de 260 metros acima do nível do mar. Foi a capital do Reino de Sunda entre os séculos XII e XVI. Quando os holandeses governaram a Indonésia, a cidade tornou-se na sua capital. Embora a cidade esteja a apenas 66 quilómetros de Jacarta, o clima e o ambiente das duas cidades são muito diferentes. Bogor tem um clima fresco e húmido com chuvas abundantes. É o local com mais trovoadas do mundo e por isso é conhecida como a “Capital Mundial do Trovão”. O clima único e o solo vulcânico fértil tornam a vegetação local rica, e os tipos e quantidades de produtos agrícolas também são extremamente ricos. O nome chinês da cidade é “Mou”, que também pode significar “plantas luxuriantes”. Bogor tem um pouco de tudo isso. O mundialmente famoso Jardim Botânico Tropical e a Estação Experimental Agrícola também aqui estão localizados. A residência do Presidente da Indonésia foi construída ao lado do jardim botânico. Cada vez que passo por este lugar, vejo o cervo sika comendo pacificamente a relva verde no pasto verdejante (foto 1), como uma cena mágica do filme “The Wizard of Oz”. Voltando ao dormitório da escola onde moravam a minha tia e a sua família, atrás da casa havia uma pequena encosta coberta de mata do outro lado de um riacho. O riacho no sopé da encosta estava coberto de arbustos. Ao princípio, eu não sabia que tipo de planta eram esses arbustos. Só um dia obtive a resposta. Numa manhã clara, o meu primo levou-me até um arbusto cheio de botões de flores (foto 2). O cenário era muito lindo! Todos amarraram um saco de pano atrás da cintura e subiram a uma pequena árvore para colher os botões de flores que depois colocaram no pequeno saco. A tarefa repetiu-se durante alguns dias até que o trabalho de colheita dos botões ficou concluído. Com o tempo bom, todas as manhãs, dezenas de sacos de botões eram atirados no campo para aproveitar o sol. Cerca de três a quatro dias depois, os botões florais secos emitem gradualmente uma fragrância especial, que flutua sobre o enorme espaço. Esta fragrância familiar revela ser uma das famosas especiarias, o cravo (foto 3 ). Antiga rota das especiarias Quando se trata de intercâmbio cultural ou de comércio entre a China e o Ocidente nos tempos antigos, as pessoas geralmente pensam apenas na “Rota da Seda”, “Rota da Porcelana” ou “Rota do Chá”, etc., e raramente mencionam a “Rota das Especiarias”. Na verdade, o comércio de especiarias existe desde os tempos antigos. Podemos citar alguns artigos chineses e estrangeiros para confirmar esses dados históricos. Em 2021, o Arquivo Nacional da Indonésia publicou o livro “Arquivos Originais das Ilhas das Especiarias do século XVII ao XVIII” (Nota 1). O Arquivo Nacional da Indonésia colecciona materiais manuscritos sobre as Ilhas das Especiarias dos séculos XVII ao XVIII. Foi publicado em livro e anotado (Foto 4) para mostrar ao público a situação do comércio de especiarias nas ilhas naquela época. A introdução do livro descreve: “A Indonésia tornou-se um factor importante no desenvolvimento do comércio global nos séculos XVII e XVIII devido à sua produção de especiarias. Embora até agora não seja claro quando é que o comércio de especiarias atravessou os mares e chegou à Ásia, África e Europa. No entanto, as evidências existentes mostram que um dos materiais usados para preservar as múmias no antigo Egipto é o cravo. Várias evidências da Europa também mostram que os antigos gregos e romanos estavam familiarizados com o cravo, sobretudo na Mesopotâmia. Escavações arqueológicas na Ásia encontraram cravos na cozinha de residentes comuns.” Outro livro, “The Lands Beneath the Winds”, foi co–editado por vários estudiosos, historiadores, professores universitários, escritores e jornalistas indonésios conhecidos. O prefácio do livro contém um parágrafo sobre a “misteriosa rota das especiarias” e o conteúdo afirma claramente que “a Rota das Especiarias remonta a três mil anos”. Para escrever uma crónica completa e abrangente das rotas das especiarias, seria necessário viajar ao redor do mundo. John Keay (Nota 2) usou mapas antigos, relatos e histórias de viajantes, antigos diários de navegação e listas de navios para reconstruir as rotas de navegação dos egípcios, que foram os pioneiros do comércio marítimo de especiarias. “Marinheiros romanos e gregos vindos do Oeste, passando pela Península Arábica e encontrando rotas para a Índia e as ilhas indonésias, colhiam pimentas e gengibre. “(Nota 3) Comércio externo de especiarias de Macau Ao apresentar uma das especiarias, a “cânfora”, a versão em inglês da Wikipedia afirma: “A cânfora também é usada como substância anti-bacteriana. Em termos de anti-sepsia, o óleo de cânfora era um dos ingredientes usados pelos antigos egípcios na fabricação de múmias” (Foto 5). Lembro-me de ter assistido a um documentário que apresentava várias ilhas da Indonésia há alguns anos, mas infelizmente esqueci o título do filme. O conteúdo do filme é consistente com os fatos históricos declarados na Wikipedia. O vídeo apresenta Barus, uma pequena cidade no norte de Sumatra. O terceiro milénio a.C., era conhecido por ser rico em “cânfora”. De 1567 a.C. a 1339 a.C., durante a Décima Oitava Dinastia do Egipto, os egípcios viajaram por mar até Sumatra para obter cânfora como matéria-prima para fazer óleo de cânfora. A curta-metragem indica ainda que os antigos egípcios seguiram a rota marítima das especiarias até ao arquipélago indonésio para obter especiarias. Na verdade, o tempo pode ser adiado ainda mais. De 1938 a.C. a 1756 a.C., o rei da Décima Segunda Dinastia ordenou aos seus homens que cruzassem o oceano até as Ilhas Moluku, Molucas (Ilhas das Especiarias) na Indonésia para obter cravo, porque o cravo também era usado na preservação de múmias. Nesta época, a primeira dinastia apareceu na história chinesa – a “Dinastia Xia”. Esta dinastia inaugurou quatro mil anos de trono hereditário na China. Recentemente, visitei o Museu Marítimo de Macau e descobri que a história do comércio das especiarias também está exposta na sala de exposições. Embora as exposições sejam relativamente simples, raramente conseguem mostrar ao público que o comércio de especiarias tem uma relação histórica importante no mundo e em Macau (Foto 6). Além disso, os folhetos promocionais colocados nesta área expositiva apenas contam que a rota das especiarias existe desde a antiguidade. Parte do conteúdo é extraído da seguinte forma: “A maioria das especiarias é produzida em áreas tropicais da Ásia. Além de melhorar o sabor dos alimentos, civilizações antigas como Egipto, Índia e China sabem há muito tempo que as especiarias têm funções medicinais, anti-sépticas e de remoção de odores. A história mais antiga do uso humano das especiarias pode ser rastreada há 5.000 anos, embora o comércio de especiarias tenha começado por terra, o seu rápido desenvolvimento e impacto económico dependiam do transporte marítimo…”. (continua) Notas: 1-“A História das Especiarias”, Lucien Guyot (França), traduzido por Liu Deng. Primeira edição, 2006. Sociedade Yushan de Taiwan, página 44. 2-John Keay, historiador britânico, jornalista, apresentador de rádio e conferencista especializado em história popular indiana. 3-“Tales of The Lands Beneath the Winds”, Yanuardi Syukur, Dewi Kumoratih, Irfan Nugraha, etc. Negeri Rempah Foundation Publishing House, 2020. Página 8, parágrafo 2.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO Pincel Simpatico e o Carimbo Fiel de Wen Peng Wen Zhengming (1470-1559) regressou a Suzhou em 1527 depois de três desanimadores anos na corte para cumprir um antigo ideal dos literatos, materializado no relato do poeta Tao Yuanming (365-427), em que se entende o lugar do exílio como uma oportunidade para reconhecer e partilhar com alegria, e ao mesmo tempo, a vida interior, a natureza moral do indivíduo e a beleza do local que o acolhe. E aí se fala de Jiangnan, a «Sul do Grande rio Changjiang», em cujo espaço se encontra a grande cidade de Suzhou. Nela Wen Zhengming viveu, como convidado, num estúdio do famoso Zhuozheng yuan, o «Jardim do inábil administrador» que lhe inspiraria um ensaio e muitas pinturas e poemas. Nesse jardim que tem recantos com designações poéticas como Baixio das imensas fragrâncias, Horto que atrai os pássaros ou o Pavilhão dos pensamentos de grande alcance, o pintor reflectiu entre outras coisas, no modo como se poderiam transmitir as artes do pincel. Numa pintura recordou as palavras do seu mestre Shen Zhou (1427-1509) ao observar uma obra que ele fizera usando os estilos de dois antigos e venerados mestres: «Não se pode simplesmente tomar Jing Hao e Guan Tong e dizer que se tem um estilo de pintura. Só quando a arte vem de dentro é que se possui rios e montanhas.» E ele faria essa aproximação interior, notada noutras obras em que o seu pincel se confundiu de propósito com outros, como no rolo horizontal (tinta e cor sobre seda, 31,5 x 541,6 cm, no Museu do Palácio Nacional, em Taipé) A última ode do penhasco vermelho, imitando Zhao Bosu (c. 1123-82), onde também copia o texto de Su Shi que está na sua origem. Doutro modo, o seu nome apagou-se para que aparecesse o de Shen Zhou, numa prática reconhecida como daibi, «pincel emprestado». Wen Peng (1498-1573), o filho mais velho de Wen Zhengming, viria por sua vez a assumir essa discreta adesão ao modo de fazer do seu pai. Uma vontade de partilhar presente nas duas odes de Su Shi que os dois admiravam. Numa passagem da primeira, que o seu pai ilustrou e que se vê no Instituto das Artes de Detroit (rolo vertical, tinta sobre papel, 143 x 33,5 cm), lê-se: «A brisa clara sobre o rio, o luar resplandecente entre as montanhas; o ouvido recebe primeiro criando um som, o olhar encontra o objecto e surge a cor. São coisas que podemos receber de graça e nunca se gastarão. Porque estes são os infindos tesouros da Natureza, que estão aqui para tu e eu desfrutarmos juntos.» No álbum de pinturas Panoramas de Yixing (tinta e cor sobre seda, 31, 7 x 24, 2 cm, cada uma das dez folhas duplas, vendido na Christies) em cada cenário estão sempre dois amigos animados na partilha da beleza à sua frente. Wen Peng distinguir-se-ia também e sobretudo no entalhe de carimbos que, se é certo que atestam com autoridade o indivíduo, são uma marca a ser reconhecida pelos outros.
Hoje Macau Via do MeioUm olhar poético para Macau que atravessa séculos Cheong Kin Man * Antropólogo visual e artista de desconstrução etimológica. Os poemas de Macau, escritos em chinês clássico pelos poetas cantonenses, são pouco conhecidos mesmo entre a comunidade falante do idioma na RAEM. Passados vários meses de procrastinação depois de ouvir palavras de estímulo de Carlos Morais José, peguei aleatoriamente um poema com “versos regulamentados pentassílabos”, isto é, cada verso é composto de cinco caracteres sino-asiáticos. Trata-se de “Olhar para o Mar em Macau” (澳門覽海) com 24 versos e cada verso tem cinco ideogramas, com pontuação posteriormente adicionada. Neste poema, os versos com números ordinais ímpares terminam com uma vírgula, ao passo que os com números pares acabam com um ponto final. O poeta em causa é Zhang Mu (Cheong Mok em cantonense, 1607-1683), poeta, grande pintor de cavalos, viajante de toda a China. Traduz-se, ao ler uma biografia sua, certa melancolia menos bem escondida e provocada por uma dinastia morta, pois viveu num período no qual a China de maioria étnica Han foi conquistada pelos Manchus. Sabemos que o nome cantonense da Guia é Tong Mong Ieong, como também anotava Ana Maria Amaro. O topónimo cantonense significa, literalmente, “Oriente-Olhar-Oceano”. Foi justamente ali que Zhang escreveu esta obra prima. Ao traduzir – isto é, ler o mais intensamente – não cessei de ficar surpreendido como através da leitura de um tal texto, fico com uma mistura de muitas imagens não apenas da China mais clássica, mas também de uma Macau da grande actualidade. É, enfim, um poema escrito no meio do século XVII! Aqui apresentamos a minha modestíssima tentativa de transpor o poema pentassílabo num texto poetizado decassílabo, com algumas notas a fim de mais aprofundadamente apreciarmos o original. Autobiografia como preâmbulo Nascendo no mar, país possante, Maduro, encontro na tormenta, Com nobre aspiração constante, Ondas quebradas, mui água venta. Estandarte foi erguida guante, Navio “ganso-e-grou” ostenta. Apreciada a maravilha, As terras findam com a barquilha. 生處在海國, 中歲逢喪亂。 豪懷數十年, 破浪已汗漫。 故人建高纛, 樓船若鵝鸛。 因之慰奇觀, 地方盡海岸。 Natural de Liuzhou na província de Guangxi de hoje, Zhang Mu foi um dos grandes pintores do Lingnan (uma região cultural do sul da China) da era pós-Ming. Aqui o termo bissilábico, ou dois caracteres, “喪亂” (mortes e turbulências, ou “tormenta” na tradução poetizada) indica justamente o doloroso tempo de transição entre duas dinastias chinesas Ming e Qing, no meio do século XVII. Esta autobiografia do artista está concluída nos meros primeiros 20 caracteres chineses do poema. No quinto verso do texto asiático lê-se o termo “故人”, que está omitida na tradução. Literalmente, a palavra chinesa clássica signfica “gentes do passado” e pode ser igualmente traduzido “amigo/s”. Associando-me à atemporalidade chinesa clássica, tenho impressão que é mais apropriado traduzir literalmente “gentes do passado”: Foram os conhecidos que ergueram o estandarte. Quanto à formação de batalha “ganso-e-grou”, a expressão, que fica no sexto verso, deriva do antiquíssimo registo no clássico “Comentário de Zuo” (Zuo Zhuan, ou Cho Chün em cantonense) publicado no final do século IV antes da nossa era. O termo “ganso-e-grou” visualiza duas formas de batalhas na origem da palavra. O género de navio, que está referido no mesmo sexto verso do texto original, é uma embarcação guerreira com uma “torre” de três níveis, quer dizer, uma construção em cima da superfície deste navio militar da China clássica. Interessante seria uma associação deste poema à cartografia europeia e chinesa dos primeiros tempos da fundação de Macau. Os cartógrafos da época, como sabemos, sem poderem ver as realidades geográficas nos seus próprios olhos e dependendo inteiramente das descrições textuais, podem ter feito os mapas pictóricos de uma Macau sem diferenciar, ou pouco diferenciando as arquitecturas cantonense e europeia. Assim sendo, já imagino as caracas e outros navios portugueses, inseridos entre os juncos. Metrópole mundial do século XVII Bárbaros no este – o sol banha – Traduzindo, a China exaltam, Jades e pérolas se apanha, Feiras destas, luzes se ressaltam. No sonho, a sagrada montanha, Palácios de ouro, nuvens saltam, Céus cortados pelos pagodes, Cadeia de telhados, as odes. 西夷近咸池, 重譯慕大漢。 寶玉與夜珠, 結市異光燦。 若夢游仙瀛, 金宮赤霞爛。 危樓切高雲, 連甍展屏翰。 Primeira referência directa à presença europeia e à muito próspera cena comercial de Macau neste poema, o “banho do sol” é aqui uma tradução livre substituindo o nome do local mitológico chines, Xian Chi (Ham Chi em cantonense) onde, segundo a mitologia sínica, o sol banha durante o dia. Interpreto que é uma metáfora da chegada dos “bárbaros ocidentais” no “oriente”. No texto original em chinês, o nome, ou melhor, a expressão 夜珠, “luminosa pérola”, ou da forma mais literal, “pérola da noite” evoca em mim uma associação às luzes da noite de Macau de hoje. Com a expressão do “Grande Han”, trocada na tradução pela mera palavra China, não sei se o poema seria considerado, na época da sua escrita, politicamente correcto de ser circulado. Pergunto-me mesmo se uma tal simples denominação do país despertando a grandeza dos Han como a maioria étnica não causaria a pena de morte. Ao ler esta passagem, já estão visualizados, na minha cabeça, templos antigos que serviam igualmente como residências temporárias dos mandarins, mas não só: a arquitectura barroca cuja terminologia técnica a China clássica ainda não inventou. Até mesmo uns “arranha-céus” do século XVII – os altos pagodes que tocam os céus – estão em frente de mim. Fim da autobiografia, fim do relato Sobre águas, colinas divinas, Verdes, acidentadas, ligadas, Ondas transparentes, cristalinas, Um só barco, farras agradas. Volto com lufadas heroínas, De repente, as almas trocadas, Ondas raivosas! Sem fim aboio, Milhas d’rota, gemo sem apoio. 水上多神山, 青削屢續斷。 澄波或如鏡, 一葉亦足玩。 及爾長風迴, 氣色忽已換。 狂瀾渺何窮, 萬里生浩歎。 Esta passagem final, cujos últimos oito versos aqui agrupamos, relata mais uma cena que já não tem nada a ver com a Macau de hoje. Penso nos vários riachos na península de Macau que foram desaparecendo ao longo do tempo e que permanecem apenas nos nomes das ruas antigas. Está visualizado, sobretudo, no meu imaginário, uma China imperial dos grandes literatos, a qual espelha a vida frustrante de Zhang Mu, e concluída por ele próprio com “um longuíssimo suspiro” (traduzido aqui como “gemo sem apoio”), como se constata ao ler o original.
Hoje Macau Via do MeioAo som de Rumeng Ling 如梦令: Tradução comentada do poema “Como num sonho”, de Li Qingzhao Li Qingzhao 李清照 (1084-1155) é um nome que atrai geral aclamação. Mesmo dentro de um ambiente literário pouco favorável para a prática literária feminina1, ela conseguiu afirmar-se sempre como letrista, além de poeta. Nos nossos dias, Li recebe a reputação de “poeta primeira”; “a maior poeta da China”, “a mais talentosa de todos os tempos”, ou uma das “Quatro Maiores Compositoras da poesia da Dinastia Song”2, justificada por uma recepção crítica que reconhece sua obra poética como uma das mais importantes da poesia chinesa clássica. A poesia foi para ela uma tarefa dotada de alto sentido autobiográfico imanente à identidade feminina; e também um exercício de ontologia sobre a própria poesia lírica chinesa, que se encontrava em forte diálogo com a música, durante a Dinastia Song. O processo desta tradução comentada envolveu pesquisar em profundidade o poema “Como num sonho”, baseando-se em algumas coletâneas em língua chinesa dedicadas exclusivamente a poesia de Li Qingzhao. Ademais, foram consultadas algumas traduções em língua inglesa, que me servem de contraponto para expandir a leitura do poema e melhor sustentar as escolhas de tradução adoptadas. Assim, decidi apresentar o poema original, acompanhado da sua romanização em sistema pinyin e tradução caractere por caractere, com texto no horizontal, lido da esquerda para direita. No original também não é usado os sinais de pontuação. Após a apresentação do poema original, segue a tradução em língua portuguesa e os comentários de tradução, que visam comentar as particularidades estruturais do poema; apresentar a combinação rítmica utilizada; realçar seus aspectos semânticos e sonoros; comentar alguns traços distintivos do poema; fazer uma leitura comparada com outras traduções, revelando, verso por verso, seu conteúdo mais profundo. O poema original: 如梦令 《昨夜雨疏风骤》 昨 夜 雨 疏 风 骤 zuó yè yǔ shū fēng zhòu ontem noite chuva esparsa vento brusco 浓 睡 不 消 残 酒 nóng shuì bù xiāo cán jiǔ denso dormir não eliminar fragmento álcool 试 问 卷 帘 人 shì wèn juǎn lián rén tentar perguntar enrolar cortina pessoa 却 道 海 棠 依 旧 què dào hǎi táng yī jiù mas dizer haitang como antes 知 否 知 否 zhī fǒu zhī fǒu saber não saber não 应 是 绿 肥 红 瘦 yīng shì lǜ féi hóng shòu dever estar verde gordo vermelho magro Na tradução: Ao som de Rumeng ling Como num sonho: chuva e vento na noite passada Ontem à noite: vento bravo e chuva fina leve ebriez após sono profundo se preserva Pergunto à donzela que ergue a cortina disse: a mesma é macieira-brava Sabes? Não, não sabes estão gordas as folhas e magras as flores O poema acima, assim como a maioria escrito por Li Qingzhao, é um poema lírico chinês (词 cí). Esta forma poética caracteriza-se por ter dois títulos: o da melodia (词牌 cí pái), e título do poema (词题 cí tí). O uso de dois títulos na poesia lírica chinesa revela-se uma das principais características deste género, difundido na dinastia Song (960-1279). No original esta particularidade serve para diferenciar o padrão melódico para qual o poema foi escrito do poema em si, dado que podemos encontrar poemas diferentes com o mesmo título melódico. Essa discrepância entre o título da melodia e o título do poema é observada com muita atenção na tradução. Em exemplo, nas traduções em língua inglesa, é, muitas vezes, destacado com “ao som de”, como na de Ronald Egan: “To the tune ‘As If in a Dream”. A tradução em língua inglesa de Xu Yuanchong também se utiliza da palavra “som”: “Tune – ‘Like a dream’”. Em português, o título da melodia aparece em caracteres romanizados, destacado com “ao som de”, como simplesmente “Ao som de Rumeng ling”. O caractere 令lìng sugere a particularidade estrutural desta obra, que se define por ser uma canção curta (小令 xiǎo lìng). Segundo Ronald Egan (2013:327), este poema foi inspirado no último quarteto do poema “懒起” (lanqi)3 (“Lânguido para se levantar”, tradução minha), do poeta do período final da Dinastia Tang, Han Wo (韩偓, 842-923). O mesmo autor aponta adaptar “adapt” ou reescrever “rewrite” versos de poetas anteriores, de acordo com a sua identidade feminina, como uma das práticas preferidas de Li Qingzhao. Contudo, esta forma de escrever poesia não foi apenas usada por Li Qingzhao. Ainda Egan nos informa que poetas como Zhou Bangyan (1056-1121) e Su Shi (1037-1101) também eram conhecidos por adaptar versos de seus antecessores de acordo com seus estilos e identidades. Por outro lado, o poema original abriga-se ao esquema de rimas toantes, identificados no exterior de cada verso, com exceção ao terceiro verso (tendo em vista a apresentação do poema aqui disposta). É visível a repetição do vocábulo “u” no final dos versos: /zhou/, /jiu/, (…) /jiu/, /fou/, /shou/. A tradução portuguesa introduz o esquema de rima ABABCC: /fina/, /preserva/, /cortina/, /brava/, /sabes/, /flores/. Agora, partimos para a leitura dos versos do poema: 昨夜雨疏风骤 Ontem à noite: vento bravo e chuva fina O verso de abertura do poema enuncia os fenómenos naturais que ocorreram na noite de ontem. Nele, há ausência de elementos verbais. A tradução inglesa de Xu Yuanchong adiciona os verbos “soprar” e “ser/estar”: “Last night the wind blew hard and rain was fine”, como forma de explicitar a experiência da chuva e vento. Em português, faz o acréscimo do sinal gráfico (:), de forma a enunciar e descrever os eventos naturais ocorridos na noite anterior. O termo 雨疏 yǔ shū caracteriza uma chuva esparsa, que caiu de forma intermitente, como é entendido na tradução inglesa de Jiaosheng Wang: “Last night there was intermittent rain, a gusty wind”. Ainda, os elementos lexicais em 雨疏风骤 yǔ shū fēng zhòu (literalmente: chuva esparsa vento brusco) criam o efeito de paralelismo que podem ser lidos em horizontal: chuva-vento, esparsa-brusco. Na tradução, foi preservado este efeito semântico, ao incluir a palavra “bravo” em vez de “brusco”, e “fina” em vez de “esparsa”, de forma a criar não só o efeito de rima, mas também um verso mais conciso possível. 浓睡不消残酒 leve ebriez após sono profundo se preserva Li Qingzhao começa o poema caracterizando as forças da natureza para, neste verso, revelar o seu estado de embriaguez, mesmo depois de uma noite de sono profundo. O verso pode ser lido como “embora dormida uma noite de sono, ainda não matei a embriaguez” da noite anterior. A definição da palavra 残 cán, pode ser entendida como equivalente aos adjetivos portugueses “incompleto”, “fragmentado”, ou mesmo “deficiente”, é usada no original para descrever uma embriaguez fraca, ou ainda leve, como é entendida na presente tradução portuguesa. O elemento lexical chinês 酒 jiǔ é, muitas vezes, traduzido por “vinho” nas traduções em língua inglesa, como na de Xu Yuanchong: “Sound sleep did not dispel the after taste of wine”. A tradução de Ronald Egan para o inglês também se utiliza da palavra vinho: “Deep sleep did not dispel the lingering wine”. Como explica o professor, poeta e tradutor Yao Jingming: “para os chineses, jiu indica um álcool feito de trigo, arroz ou sorgo. Para os portugueses, vinho significa álcool feito de uvas. Mesmo que as palavras sejam correspondentes, carregam significados diferentes”. Na tradução para o português, no lugar do termo 残酒 cán jiǔ, lemos “leve ebriez”, procurando reproduzir o estado em que a poetisa se encontra logo ao acordar, assim como no original. Por outro lado, o verbo 消 xiāo, que significa “eliminar”, “matar”, “dissipar”, está acompanhado da partícula negativa 不 bù “não”, juntos podem ser lidos como “não eliminado”, isto é, o efeito do álcool que preservou mesmo depois do sono profundo. Dessa forma, na tradução portuguesa, utilizou-se o verbo “preservar”, de forma a reproduzir este sentido. Foi acrescentado, ainda, o termo “após”, procurando trazer para a tradução o momento a seguir a noite de sono, implícito no verso original. 试问卷帘人 Pergunto à donzela que ergue a cortina Este verso começa com o termo 试问 shì wèn, que pode ser entendido tanto como “tentar perguntar”, quanto “cabe perguntar”, e termina com 卷帘人 juàn lián rén, que, segundo as notas de Hou Jian e Lü Zhiming, “refere-se à criada que enrola a cortina”. A tradução inglesa de Ronald Egan reproduz o termo 试问 como uma ação que estava em andamento no passado: “I tried asking the maid raising the blinds”. A escolha de Jiaosheng Wang, por outro lado, introduz o verbo “perguntar” simplesmente no presente: “I ask the maid rolling up the blinds”, aparenta com a tradução inglesa de Xu Yuanchong: “I ask the maid rolling up the screen” (1982), que está mais de acordo com a presente proposta em português. É evidente que a “pessoa” (人) que ergue a cortina está interpretada nas traduções inglesas como “criada”, concordando com a explicação de Hou Jian e Lü Zhiming. Em português, utilizamos a palavra “donzela”, de forma a criar um efeito mais poético. 却道海棠依旧 disse: a mesma é macieira-brava Aqui é o momento da fala da “donzela”, a personagem do verso anterior. Segundo Li Qingzhao, a “donzela” disse que “haitang (está) como antes”, o que indica que nada mudou depois da chuva e vento. Esta resposta, por um lado, é muito prosaica, reflete a visão comum da “donzela”; por outro lado, reflete a experiência e preferência distinta em relação às coisas do mundo exterior das duas personagens. O elemento da flora chinesa, 海棠 hǎitáng, é entendido como “flor da macieira-brava” ou “árvore da macieira-brava”, nas traduções inglesas de Xu Yuanchong: “The same crab-apple tree,’ she says, ‘is seen’”; de Jiaosheng Wang: “But she replies: ‘The crab-apple is lovely as before”; e de Ronald Egan: “What said the crab-apple blossoms were as before”, o que parece estar de acordo com a tradução portuguesa aqui apresentada. 知否 知否 Sabes? Não, não sabes… Neste penúltimo verso, há uso de reduplicação: 知否 知否 zhī fǒu zhī fǒu, o caractere 否 fǒu “não”, ao final do verso, é usado nos textos literários para indicar pergunta. Embora formulado como uma interrogação, este verso não pretende questionar, mas sim manifestar uma resposta negativa, uma recusa em relação à fala da “donzela”, construída no verso anterior, parecendo não estar sensível ao cenário real, que a autora irá descrever no último verso. O verso é, muitas vezes, interpretado como a fala da “donzela”, por exemplo, na proposta de Xu, ao usar aspas para realçá-la: “‘But don’t you know, / O don’t you know’” (2016). A interpretação está em consonância com a de Ronald Egan (2019): “‘Don’t you know?/ Don’t you know?’”. Em português, é entendido como a fala de Li Qingzhao, o que traduz uma reação contrária à da “donzela”. 应是绿肥红瘦 estão gordas as folhas e magras as flores O último verso é o mais apreciado pela sua capacidade expressiva de linguagem. Aqui, Li Qingzhao dá vida à “macieira-brava”, ao construir a expressão 绿肥红瘦 lǜ féi hóng shòu (literalmente: verde gordo vermelho magro), o que indica, “a macieira está verdejante e de vermelho murcho, fraco”. As cores verde-vermelho, como explicam os comentaristas, simbolizam o par de substantivos folha-flor. É visível o uso da personificação, na medida em que as características de seres animados gordo-magro são atribuídas às folhas e flores de haitang. Há também o uso de paralelismo: verde-vermelho, gordo-magro. Para alguns estudiosos, esta combinação de efeitos semânticos é uma inovação realizada por Li Qingzhao. Ela constrói o verso de acordo com a sua identidade, ao utilizar o caractere 瘦 (magra, frágil, débil), que pode subentender característica feminina. Na tradução inglesa de Xu o adjetivo magro é entendido como “lânguido”, o que não deixa de personificar a cor vermelha (flor): “‘The red should languish and the green must grow?’”. A escolha de Egan: “The green must be plump and the reds spindly”, buscou reproduzir o efeito da personificação com os adjetivos “forte” (plump) e “fininho” (spindly). Em portuguȇs, optamos por incluir “folha” e “flor” em vez de “verde” e “vermelho” e manter os adjectivos “gordo” e “magro”, como forma de reproduzir os efeitos usados no original. Ao que tudo indica, o poema retrata a transição do cenário primaveril. Começa com chuva e vento, o que nos oferece informações meteorológicas da noite anterior. Em seguida, reflete o estado psicológico da autora após o sono profundo, o diálogo com a “donzela”, e a forma diferente de sentir as mudanças do seu mundo exterior. No final do poema, a “macieira-brava” é personificada como “gorda” e “magra, o que reflete a relação entre Li Qingzhao e os seres inanimados. Neste momento, ela manifesta o seu lamento diante do cenário que marca a passagem da primavera, marcada pela chuva esparsa e vento bravo. Referências bibliográficas: Egan, Ronald (2013). The Burden of Female Talent: Li Qingzhao and Her History in China. Cambridge & London: Harvard University Asia Center. Egan, Ronald (2019). The Works of Li Qingzhao. Boston & Berlim: Walter de Gruyter Inc. Freire, Zerbo (2022). Li Qingzhao: Do amor à mais profunda solidão. Hoje Macau, outubro, 24, Via do Meio. Hou, Jian & Lü, Zhiming (1999). 李清照诗词评注 (Poesia de Li Qingzhao: Notas e comentários). Shanxi: Education Press. Wang, Jiaosheng (1989). The Complete Ci-poems of Li Qingzhao: A New English Translation. Philadelphia: Sino-Platonic Papers. Xu, Yuanchong (1982). 谈李清照词英译 (Comentário sobre a tradução inglesa da Poesia Lírica de Li Qingzhao). In Xu Yuanchong (2016), 文学与翻译: Literature and Translation, 399-497. Peking: Peking University Press. Yao, Jingming (2001). A poesia clássica chinesa: uma leitura de traduções portuguesas. Macau: Coleção Estudos de Macau, Centro de Publicação Universidade de Macau. Como nos conta o critico literário Ronald Egan: “Há pouca ou nenhuma evidência da emergência de comunidades de escritoras durante a dinastia Song, como sabemos que aconteceu no final da era Ming e Qing. No período Song, mulheres que eram alfabetizadas e escolheram escrever o fizeram quase inteiramente por conta própria, sem o conforto e encorajamento de outras mulheres e homens simpatizantes, que deram seu suporte à mulheres alfabetizadas nos séculos posteriores. Tudo o que sabemos sobre Li Qingzhao aponta para esse ser o caso dela. Ela não era membro de um grupo de mulheres literatas.” Contudo vale ressaltar: a educação que Li Qingzhao teve no seio familiar e, mais tarde, o suporte do seu primeiro esposo Zhao Mingcheng, as poetas do seu tempo não tiveram. Em chinês: 宋朝四大女词人 sòng cháo sì dà nǚ cí rén. Poema original: “昨夜三更雨,/今朝一阵寒。/海棠花在否?/侧卧卷帘看。” Na tradução: /ontem à noite, três chuvas plenas/ hoje, uma onda de frio/ a flor da macieira-brava está ou não?/ inclina na cortina para ver/.
Ana Cristina Alves Via do MeioA simplificação do mundo A linguagem tem muitas funções, salta à vista a de instrumento essencialmente social. Por meio da palavra, tanto oral como escrita, participamos no mundo, moldamo-lo à nossa imagem e semelhança e os mais inventivos chegam mesmo a recriá-lo. Tradicionalmente, os chineses atribuem a invenção da linguagem a Canjie, um dos ministros de Huangdi, o Grande Imperador Amarelo. Note-se que antes do aparecimento da linguagem social propriamente dita, já a religiosa tinha surgido pela mão de Fuxi, o Primeiro dos Cinco Imperadores Augustos. A linguagem na sua faceta social terá sido fruto, em algumas versões, da observação das pegadas dos pássaros, noutras da leitura atenta das carapaças das tartarugas. Diz-nos o quarto maior filósofo daoísta, naquela que ficou conhecida pela obra de Huainanzi, que “Canjie inventou a escrita, a fim de poder governar todos os oficiais e dirigir todos os assuntos. Os tolos utilizam-na para anotar o que não devem esquecer, os sábios servem-se dela para transmitir pensamentos profundos antes de desaparecerem. Os perversos utilizam-na para deixar registadas mentiras que os desculpem da morte de muitos inocentes.” (Huainanzi, cap. 8, in Anthologie des Mythes et Légends de la Chine Annciene, org. de Rémie Mathieu, Gallimard, 1989) Interessa-nos reter a justificação socio-política chinesa para o aparecimento da escrita. Na versão mais positiva, surgiu para organizar e governar os homens, na mais negativa, acrescentamos nós, é um excelente instrumento de domínio. Pensamos com a linguagem e não antes dela, comunicamos e impomos, quanto temos força para tal, também através dela. Sabia bem esta lição o Primeiro Imperador Ying Zheng, que subiu ao trono com o nome de Qin Shihuang, à letra o Primeiro Imperador dos Qin. Este conseguiu impor o reino Qin a todos os outros Estados Combatentes, entre 230 e 221 a.C. O Primeiro Imperador unificou o país, centralizou o poder económico, político e administrativo. Impôs uma só moeda e padronizou a linguagem, com base na escrita do pequeno Selo ou Xiaozhuan, isto é, na grafia utilizada no reino de Qin. Contra a ânsia uniformizadora e redutora do Imperador, reagiu, como é fácil de perceber, a maioria dos intelectuais à época, muitos deles filiados na tradição confucionista, completamente avessa a modelos padronizadores e a simplificações. Começaram a correr históricas satíricas sobre o Imperador e ele respondeu previsivelmente: mandou queimar todos os livros, à excepção dos cientificamente úteis, aqueles relativos à medicina, agricultura e outros domínios directamente relacionados com a sobrevivência das gentes. Mas deixemos o construtor da Grande Muralha e do Exército de terracota repousar o sono dos grandes… A reter, a simplificação da escrita utilizada como arma política centralizadora. Mais tarde, durante as dinastias Han, tanto do Oeste como do Leste, a linguagem escrita voltaria a sofrer novos processos de simplificação, o primeiro, com a adopção da Escrita Oficial, ou Lishu, por volta do século 3 a.C. e o segundo, entre o século 2 e 3 d.C, com a adopção da Escrita Regular, ou Kaishu, também denominada de Escrita Verdadeira ou Zhenshu – o estilo predominantemente quadrado que ainda hoje vigora entre os chineses, quando utilizam os caracteres, sobretudo, para funções sociais. Os séculos foram correndo e as simplificações no domínio da escrita abrandaram, até que a chegada de missionários ocidentais à China, nomeadamente a de Mateus Ricci, volta a trazer a questão da linguagem chinesa para primeiro plano. Novamente as necessidades comunicativas falaram mais alto. Como colocar a mundividência chinesa ao dispor dos ocidentais? Ricci optou, no início do século XVII, pela utilização do alfabeto latino para transcrever os caracteres chineses. Após a sua tentativa, outras se seguiram, sendo de destacar as do francês Nicolas Trigault, que publicaria em 1625 um livro intilulado: UM GUIA PARA INTELECTUAIS OCIDENTAIS e, sobretudo, a do inglês Thomas Francis Wade, que, após as Guerras do Ópio, em 1867, publicaria um alfabeto fonético para a linguagem chinesa, conhecido por sistema Wade, que, não só perdurou até aos nossos dias, como é bastante semelhante ao próprio Pinyin, isto é ao alfabeto latino chinês, reconhecido oficialmente no presente pelos chineses. Às tentativas ocidentais para transcrever foneticamente a linguagem chinesa, com recurso ao alfabeto latino, vieram juntar-se os esforços chineses, nascidos da nova mentalidade que, em 1911 transformou, com Sun Yat-sen, o Império do Meio em República do Meio. Os republicanos criam um sistema fonético, o Zhu Yin Zi Mu, que deveria vigorar em todo o país. Neste tipo de transcrição, recorria-se a 37 símbolos para registar todas as palavras no dialecto de Pequim. Como já anteriormente sucedera, houve a necessidade de mexer na linguagem para a tornar uniforme, isto é, extensível ao maior número possível. Não obstante, a linguagem escrita e os vários dialectos locais foram preservados. Por isso, aos olhos dos que tomaram o poder em 1949, este sistema possuía dois grandes defeitos: não era capaz de funcionar como base comum para unir todas as minorias nacionais, nem de promover o intercâmbio internacional, por não recorrer a um alfabeto latino, que pela sua simplicidade pudesse ser entendido tanto por estrangeiros, como servir de fundamento à criação de uma escrita, ausente de muitos dos dialectos nacionais. A transcrição fonética dos nacionalistas não implicava uma mudança radical na escrita, era uma uniformização ao nível oral e para consumo interno, entenda-se, para divulgação da mensagem e ideais republicanos. Em 1949 os comunistas tomaram o poder. Traziam consigo um mundo ideológico radicalmente novo. Eles não queriam pontes com a tradição, pelo contrário, a palavra de ordem era revolucionar e em todos os campos. Por um lado, necessitavam, para espalhar a “sua boa nova” de uma linguagem, que funcionasse como um instrumento social eficaz. Por outro, debatiam-se com um problema, como espalhar a nova mensagem se a maioria era iletrada? Havia que cultivar as pessoas sem demora, para tal precisavam de uma arma simples, eficaz, que chegasse rapidamente às massas. Ainda no ano de 1949 é criada em Pequim a Associação para a Reforma da Linguagem Escrita Chinesa e em 1952 é estabelecido, com carácter oficial, o Comité de Pesquisa para a Reforma da Linguagem Chinesa. Este Comité, como esclareceria Zhou Enlai, no discurso proferido, em 1958, aquando da aprovação final do Novo Alfabeto Fonético Chinês, tinha tido como principais objectivos: a simplificação dos caracteres chineses; a popularização de um discurso comum (Putonghua) e a criação de um alfabeto fonético chinês. Em 1956, o Conselho de Estado estabelecia o primeiro esquema para a simplificação dos caracteres chineses, como meio de erradicar iliteracia. Para a nova mentalidade, era necessária uma escrita com menos traços, que poupasse energia e tempo a professores e aprendizes, que permitisse, a um cada vez maior número de chineses, aprender e colocar o país no caminho do progresso científico. Também era fundamental para a propagação do novo mundo ideológico, um discurso comum, que tivesse como padrão o dialecto de Pequim. Este, com a ajuda de um alfabeto fonético passaria a facultar não só o intercâmbio nacional, pela criação de um sem-número de materiais linguísticos e de catalogação simplificados, como também o intercâmbio internacional. Foi então aprovado o Plano para o Alfabeto Fonético pelo Congresso Nacional Popular em 1958, que adoptou, como seu modelo, o alfabeto latino. A simplificação da linguagem chinesa possui características manifestamente chinesas. Aos olhos ocidentais, este sistema linguístico continua a ser tremendamente complicado. A nossa tendência é para simplificar a simplificação, por assim dizer. Por isso, nas transcrições fonéticas, esquecemos os acentos, que povoam individualmente as palavras e não existem por acaso, mas sim para evitar as homofonias, pródigas neste sistema linguístico. Esquecemos e seja o que Deus quiser. Mas esse esquecimento levanta um grande obstáculo para aqueles que sonham em transformar o chinês numa língua romanizada, pois embora seja possível olvidar os acentos em palavras soltas e frases curtas, uma transcrição fonética de um escrito chinês sem os tais grafismos, que marcam os tons, torna qualquer texto absolutamente incompreensível. No entanto, um escrito romanizado pejado de acentos, transforma a leitura, sobretudo se for de grande porte, num martírio. Por enquanto, o alfabeto fonético chinês é um instrumento de leitura e nada mais. Também não pretendia ser, pelo menos aos olhos das gentes do dragão, qualquer outra coisa. Não obstante, a simplificação da linguagem chinesa para consumo interno, funcionou. Esta estendeu-se a um maior número de pessoas e pagou um preço – leia-se, desejado – por isso. Cortou com a tradição. Hoje, a nova geração é incapaz de entender os textos clássicos nas suas versões originais. Assim, só para nós, estrangeiros, as simplificações linguísticas são reformas, para os chineses do continente foram uma verdadeira revolução que os pôs a olhar para um mundo novo, simplificado, sem raízes, onde o progresso e a ciência, mais do que palavras, são verdadeiros programas de vida, que doravante poderão, como religiosamente se acredita, ser concretizados por meio da escrita simplificada.
Hoje Macau Via do MeioPalavras de Zhu Xi aleatoriamente traduzidas Por Miguel Lenoir 1) Perguntou-se: “Será que primeiro existiu o padrão (li) e depois o sopro vital (qi)?” Zhu Xi respondeu: “O li e o qi não podem, fundamentalmente, ser falados em termos de antes e depois. Mas quando começamos a fazer inferências [sobre as coisas], então parece que primeiro existe o li e depois existe o qi…” Perguntaram-lhe sobre a Via e a sua operação (yong 用). Zhu Xi respondeu: “Se imaginarmos os ouvidos como a coisa em si, então a audição é a sua operação; se considerarmos os olhos como a coisa em si, então a visão é a sua operação.” 2) Foi perguntado: “As naturezas dos seres humanos e das coisas têm uma única fonte, então por que existem diferenças entre elas?” Zhu Xi respondeu: “No que diz respeito à natureza dos seres humanos, falamos de brilho e escuridão; no que diz respeito à natureza das coisas, há apenas desigualdade e bloqueio. O que é escuro pode tornar-se claro, mas o que já é irregular e bloqueado não pode tornar-se claro e penetrante.” 3 – Aquilo pelo qual os seres humanos passam a existir não é outra coisa senão a união do li e do qi. O li do Céu é de facto vasto e inesgotável, mas se não fosse o qi, então mesmo que houvesse li, não haveria nada para juntar à sua volta. Assim, é necessário que os dois tipos de qi (yin e yang) se misturem e interajam um com o outro para que se juntem; depois disso, o li tem algo a que se ligar. O facto de todos os seres humanos serem capazes de falar, agir, pensar e realizar projectos é tudo qi, mas o li está presente no seu interior. . . . [A substância daqueles que têm a inteligência mais elevada e daqueles que nascem sábios é o qi que é claro e não adulterado, sem um traço de escuridão ou turbidez. É por isso que nascer seabio e conduzir-se com facilidade não são capacidades que se adquirem através da aprendizagem. Foi o caso de Yao e Shun [reis míticos]. O nível seguinte, secundário, é quando só se pode alcançar a sabedoria através da aprendizagem, e só se pode chegar a ela pondo-a em prática. Ainda o nível seguinte é quando a dotação material é desequilibrada e também é obscurecida. Neste caso, é preciso fazer um esforço considerável: “O que os outros fazem uma vez, faz cem vezes; o que os outros fazem dez vezes, faz mil vezes. ” Só então se pode atingir o nível segundo a nascer sábio. Se prosseguirmos sem parar, então as nossas realizações serão as mesmas (que as daqueles que nasceram sábios). . . . 4 – A natureza em si não pode ser descrita. A razão pela qual podemos falar da natureza como sendo boa é que, olhando para a bondade do alarme e preocupação, deferência e cedência, e as outras [virtudes] entre os quatro inícios, podemos ver que a natureza é boa. É como quando se vê a clareza da água corrente: sabe-se que a fonte da água deve ser clara. Os quatro princípios são os sentimentos e a natureza é o li. Quando se manifestam, são sentimentos, mas na sua raiz são a natureza. É como quando se olha para uma sombra e se vê a forma. (ZZYL, capítulo 5, p. 89) 5 – O objeto da consciência é o li da mente (xin). A capacidade de consciencialização é a eficácia maravilhosa (ling 靈) do qi. “6 – A mente é o mestre (zhu 主) da natureza e opera através dos sentimentos. Portanto, é dito: “Antes que a felicidade e a raiva, a tristeza e o prazer se manifestem, é chamado de ‘equilibrado’ (zhong 中) e quando todos eles se manifestam e atingem sua medida adequada, é chamado de ‘harmonioso’ (he 和). A mente é o reino em que esse esforço ocorre. 7 Explicando a palavra “mente (xin)”, ele disse: “Uma palavra dirá tudo – ‘produção de vida’. O comentário do do Clássico das Mutações diz: ‘A grande potência (de 德) do Céu e da Terra é produzir.’ Os seres humanos nascem tendo recebido o qi do Céu e da Terra. Portanto, a mente deve ser humana, e se for humana, então ela produz.” 8. A mente é o qi refinado e luminoso. 9. A mente refere-se a um mestre. No movimento e na quietude há sempre um mestre; não é o caso que ele não opere num estado de quietude, e que apenas num estado de movimento haja um mestre. Quando falo de um mestre, quero dizer que existe uma ordem contínua que está naturalmente presente no interior. A mente une e junta a natureza e os sentimentos. Mas isso não significa que seja uma massa bruta, indiferenciada, junto com a natureza e os sentimentos, sem distinções. 10. Como já discuti anteriormente, a luminosidade e a consciência da mente são uma e a mesma coisa. Mas se pudermos distinguir entre a mente humana e a mente da Via , a primeira surge do egocentrismo do qi do corpo físico, enquanto a segunda se origina da correcção da natureza e do mandato (ming), e é por isso que, em termos da sua consciência, não são a mesma coisa. Por isso, enquanto o primeiro é precário e instável, o segundo é misterioso e difícil de perceber. No entanto, entre os seres humanos, nenhum deixa de possuir uma forma física e, portanto, mesmo os de maior sabedoria não podem deixar de possuir uma mente humana; além disso, nenhum deixa de possuir uma natureza e, portanto, mesmo os de menor inteligência não podem deixar de possuir a mente da Via. Os dois estão misturados na mente, e se não se sabe qual é o que o governa, então o que é precário será ainda mais precário, e o que é misterioso será ainda mais misterioso. Então, a orientação pública do li Celestial acabará por não ter forma de ultrapassar o egocentrismo do desejo humano. Se estiveres concentrado e refinado, então examinarás cuidadosamente os dois e não os misturarás. Se tiverem uma mente única, então protegerão a correcção da vossa mente original do coração e não se afastarão dela. Se conduzirem os vossos assuntos a partir desta perspectiva, e não desistirem nem por um momento, então, inevitavelmente, a mente da Via tornar-se-á o mestre da vossa pessoa, e a vossa mente humana obedecerá em todos os casos ao mandato. Então, o que é precário tornar-se-á estável, e o que é misterioso tornar-se-á manifesto. E na actividade e tranquilidade (dong jing 動靜), e no discurso e conduta, evitaremos naturalmente errar por excesso ou por deficiência. 11. “A brilhante luminosidade é originalmente como a mente é em si mesma; não é que eu seja capaz de torná-la brilhante. Quanto ao ver e ouvir dos olhos e ouvidos, aquilo pelo qual eles vêem e ouvem é a mente. Como pode haver formas e imagens [preexistentes] dentro dela? No entanto, quando os olhos e os ouvidos as vêem e ouvem, então também há formas e imagens nelas. Quanto à ampla luminosidade da mente, como pode haver coisas preexistentes nela? 12.Ele foi questionado sobre a afirmação [na Prática do Meio (Zhongyong)], “O estado antes que os sentimentos de felicidade, raiva, tristeza e prazer se manifestem é chamado de ‘equilíbrio’ (zhong 中).” Zhu Xi respondeu: “A felicidade, a raiva, a tristeza e o prazer podem ser comparados ao leste, oeste, sul e norte: quando não se inclinam numa determinada direcção, estão num estado de equilíbrio.”
Paulo Maia e Carmo Via do MeioUm homem velho a pescar sem anzol num rio frio Ma Yuan (c.1160-1225), justamente admirado e ilustre pintor da dinastia Song do Sul, é geralmente reconhecido como a primeira pessoa a representar um carretel, a bobina em que se enrola a linha da cana de pesca. Um pormenor singular numa surpreendente pintura figurativa em que apenas se mostra um homem Solitário pescando num rio frio (rolo vertical, tinta sobre seda, 141 x 36 cm, no Museu Nacional de Tóquio). E, de tal modo austera e desprovida de referências espaciais que, na sua abstração ela se percebe como um ponto-chave, não só daquilo que é a representação artística mas também como uma subtil inquirição à substância do tempo. Quem olhasse aquela figura pescando numa embarcação poderia recordar um ditado: «Só os mais persistentes chegarão à linha de pesca de Jiang Taigong». Que refere a história de Jiang Ziya (1128-1015 a. C.), um estratega que serviu o último soberano da dinastia Shang (séculos 16 -11 a. C.) que se tornara um tirano e que, já com cerca de oitenta anos, os cabelos brancos, foi descoberto pelo rei Wen de Zhou sossegado a pescar sem isco ou anzol no rio Wei, perto da actual Xian. Ele esperava sabendo que os peixes viriam quando estivessem prontos. E foi assim que chegado o tempo favorável, o rei Wen o contratou para grande glória do seu reino. Outra clara referência da pintura é o poema de Liu Zongyuan (773-819) Neve no rio, que termina com o verso Du diao han jiangxue, «Só, pescando no rio frio, à neve» em que a utilização da palavra du, traduzindo-se como «só», e não gu que seria «sozinho», «abandonado», prova que ele está ali por sua própria volição. Esse poema inspirador está na origem de muitas pinturas. E se um adepto budista poderia saber que um cenário frio como aquele pode ser o lugar propício para encontrar a iluminação espiritual, como prova o caso do «rapaz montanhas nevadas», nome de uma prévia encarnação do Buda Sakyamuni, uma pintura feita na dinastia Ming, levanta outras hipóteses quanto à razão de ele estar ali pescando. Shi Zhong (1438 – depois de 1506), o autor da pintura e do poema da Paisagem de Inverno com um pescador (rolo vertical, tinta sobre papel, 142, 2 x 32,1 cm, no Metmuseum) foi um pintor profissional de Nanquim cuja pincelada áspera se adequava à pintura dos cenários escarpados do Inverno. No sopé de uma dessas montanhas, Shi colocou o seu pescador de costas com chapéu de bambu e abrigo de palha, elementos que mostram a sua adesão à natureza, e uma comprida cana de pesca que quase chega à margem, mas cujo fio parece estar enrolado para trás e não cai na água.
José Simões Morais Via do MeioTravessia aérea de Portugal a Macau Foto: Blogue Macau Antigo Faz hoje 100 anos que o Major de Infantaria António Jacinto da Silva Brito Paes ao comando do avião Pátria II e o Major de Engenharia José Manuel Sarmento de Beires como piloto, em 1924, sobrevoavam Macau, concluindo o propósito da viagem a espelhar os novos tempos aéreos e assim homenagear os navegadores portugueses chegados à China desde 1513 e estabelecidos em Macau em meados do século XVI. Mas em 1924, na então colónia portuguesa, os hidroaviões existentes precisavam apenas de usar o rio ou o mar para aterrar ou levantar. O maior problema dos aviadores portugueses foi a aterragem, pois a cidade sem ter uma pista de terra não estava preparada para os receber. Daí, o plano programado logo à partida era poder evolucionar sobre Macau e poisar em Cantão. O raide aéreo iniciado a 7 de Abril de 1924 em Vila Nova Milfontes com destino a Macau foi o 1.º de responsabilidade da Aeronáutica Militar e teve como protagonistas os aviadores, Capitão Brito Pais, Capitão-tenente Sarmento de Beires e o mecânico sargento-ajudante Gouveia. Esta viagem era também a segundo na ordem da aviação portuguesa, pois a primeira fora incontestavelmente a de Lisboa-Rio de Janeiro realizada por Gago Coutinho e Sacadura Cabral com partida de Lisboa a 30 de Março de 1922 e chegada ao Rio de Janeiro a 17 de Junho de 1922. Segundo declarações de Brito Pais no fim da viagem de 1924, numa conferência proferida no Clube de Macau: . Já anteriormente, em Outubro de 1920, Brito Pais e Sarmento Beires fizeram a travessia aérea Lisboa–Funchal, mas o denso nevoeiro a envolver a ilha da Madeira impedira a aterragem do Cavaleiro Negro, um avião Breguet 14-A42, e daí terem dado meia volta e regressado a Lisboa. O combustível acabou e amararam no Atlântico, afundando-se a 400 km de Lisboa, sendo salvos por um navio inglês. Para o raide Vila Nova Milfontes – Lisboa – Macau de 1924, “um grupo de amigos” Capitães Jardim da Costa, P. Correia e o alferes Bensabat, adquiriram por subscrição um avião, oferecendo-o para a longa viagem programada, desde a Península Ibérica, passando ao longo da costa do Norte de África (na parte francesa e italiana) até chegar ao Egipto. A entrada na Ásia fez-se pelo Médio Oriente, seguindo para o Norte da Índia Britânica, percorrendo a parte Central da Ásia e o Sudeste até alcançar Macau. O bombardeiro comprado em França, um Breguet XIV, n.º 2 [BR16-Bn2], equipado com um motor Renault de 300 cavalos (CV), chegou às oficinas da Amadora em Junho de 1921 a fim de ser preparado para o raide. O aparelho sob a supervisão do então sargento-ajudante Manuel Gouveia começou a ser transformado, sendo-lhe instalado depósitos suplementares de combustível. Levado a 27 de Setembro de 1923 da Amadora para Vila Nova de Milfontes, na parte inferior foi-lhe pintada a Cruz de Cristo e as insígnias d’ Aviação Militar Portuguesa. Na fuselagem, toda de alumínio, lia-se um verso dos Lusíadas: ‘Esta é a ditosa Pátria minha amada’. No leme iam as cores nacionais com a esfera armilar e o escudo das quinas. O baptismo do avião Pátria realizou-se com toda a imponência a 3 de Abril pelas 12 h, acto celebrado pelo Bispo de Beja D. José do Patrocínio, sendo apadrinhado por D. Maria do Céu Brito Pais, irmã do aviador Brito Pais e pelo o major aviador Cifka Duarte, director da Aeronáutica Portuguesa [e por Decreto exonerado das funções pelo ministro da Guerra a 30 de Maio de 1924]. “As damas de Odemira ofereceram a flâmula para o aparelho levar.” Assim refere o P. Manuel Teixeira, de quem provem partes de textos desta crónica, a servir de informação para ser complementada e a trabalhar. Cem anos atrás O raide estivera planeado para ser apenas de Lisboa à Índia, parecendo ser esse o destino pois aí terminará a primeira fase da viagem, após 77 horas e 51 minutos de voo e percorridos em 30 dias 10.960 km. Na 15.ª etapa, partindo de Karachi para Agra a 7 de Maio de 1924, próximo de Jodhput na Índia, devido a um intenso vento são forçados a aterrar no deserto, junto à povoação de Bhudana, partindo-se as longarinas da fuselagem, e ficando o avião irremediavelmente inutilizado sem qualquer possibilidade de recuperação. A população do oásis conduz os aviadores portugueses até à linha férrea e assim conseguem chegar de comboio a Jodhpur, de onde entram em contacto com o governo português, recebendo autorização à compra de um novo aparelho. Após demoradas negociações com o Governo britânico da Índia conseguiu-se um De Haviland D.H.9A., preparado durante alguns dias e a 29 de Maio, após o vôo de ensaio, é baptizado Pátria II. Terminava a 30 de Maio de 1924 o interregno de 23 dias e retomavam de Lahore o voo para fazer a restante viagem para Macau. Até aí chegar, na primeira parte do Raide Vila Nova Milfontes–Macau, Pais e Beires após em Vila Nova de Milfontes, terra natal de Pais, fazerem experiências com bons resultados, recolhem a 23 de Outubro de 1923 o avião num hangar da Amadora para a 2 da Abril de 1924 ir outra vez a Milfontes numa viagem de 50 minutos. Daí, devido ao mau tempo, apenas a 7 de Abril às 6 horas da manhã Brito Pais e Sarmento Beires ocupam os seus lugares no Pátria e levantam voo rumo ao Oriente. As etapas da viagem, segundo relatório apresentado pelos aviadores, eram: Lisboa-Oran (Argélia); Oran-Karaman (Tunísia); Karaman-Tripoli (Tripolitania); Tripoli-Benghasi (Tripolitania); Benghasi-Cairo (Egipto); Cairo-Damasco (Síria); Damasco-Bagdad (Mesopotâmia, Iraque); Bagdad-Basra (Iraque); Basra-Bendes Abbas (Pérsia, Irão) e Bendes Abbas [em frente à ilha de Ormuz]-Karatchi (Índia Inglesa). A aterragem seria em Cantão, para poder evolucionar sobre Macau, visto a cidade não ter campo de aterragem. Seguem dia 8 para Málaga (Andaluzia, Espanha) e dali para Oran (a segunda maior cidade d’ Argélia), onde os espera o mecânico Manuel Gouveia, aí chegado de barco. Em Oran, inicia-se a 3.ª etapa da viagem ao longo da costa africana do Mediterrâneo percorrendo os 1230 km até Tunes (capital da Tunísia), onde Gouveia embarca, passando a voar com eles e finalizam essa etapa a 15 de Abril em Tripoli (então Tripolitania, hoje Líbia). A 19 de Abril, percorridos 3.105 km em 28 h 40 m e gastando no percurso doze dias, chegam a Benghasi (a segunda maior cidade da Líbia). Os aviadores dali pedem dinheiro para poder continuar a viagem, visto o Estado não ter concorrido para as despesas de tal aventura. “O pai do aviador Brito Pais em presença destes factos dispôs de todo o dinheiro que podia e o Aero Club nomeia uma comissão para angariar donativos composta pelos major-aviador Cifka Duarte, cap. de fragata Afonso Cerqueira, ten. Aníbal Paixão e José Júlio de Brito Pais Falcão. Tanto subscrições, como festas surgem logo em todo o país – revertendo o produto a favor do raide Lisboa – Macau.” Quando de Benghasi chegam ao Cairo a 20 de Abril, os aviadores tinham já percorrido 4.600 km. A etapa Cairo-Damasco (Síria) passa por Rayak (Riyaq, no Líbano) e a 23 estão em Damasco. Daí a Bagdad (Mesopotâmia, Iraque) onde a 27 se encontram para seguir até Basra (Baçorá, actual Iraque, antigamente pertencente à Mesopotâmia e desde 1 de Outubro de 1919 fora do Império Otomano, estava então na dependência do Reino Unido). Após 600 km, a 28 chegam a Bushire (Bushehr) no Irão, onde há demora por impedimento dos persas, que não ficam satisfeitos com os passaportes. Partem a 3 de Maio para Bender-Abas e de Chahbahar, no extremo sueste do Irão, chegam a 4 de Maio a Karachi, na Índia inglesa. Está-se na 15.ª etapa: Karachi-Agra. Dia 7 de Maio de 1924, um terrível vento força-os a aterrar no deserto e devido às condições difíceis, o avião parte-se, ficando irremediavelmente inutilizado, saindo ilesos os passageiros. Chegam de comboio a Jodhpur e seguem para Lahore. Conseguem um avião, preparado durante alguns dias e o voo de ensaio fazem-no a 29 de Maio. II FASE DA VIAGEM No Pátria II, retomam o voo a 30 de Maio para realizar a segunda parte da viagem entre Lahore, então Índia e hoje Paquistão até à China, a Macau. Devido ao espaço acanhado da carlinga desse avião, Gouveia não segue com eles, usando o comboio e barco para tentar sempre que possível acompanhar as escalas, segundo refere Fernando Mendonça Fava na Revista de Cultura de 2016. Agora num De Haviland DH9 baptizado Pátria II, a viagem a partir de Lahore, cerca de 500 km a Norte do local do acidente, no novo avião efectuarão mais 11 etapas, durante 21 dias totalizando mais 40 horas e 30 minutos de voo, percorrendo mais 6.610 km. De Lahore tocam sucessivamente Ambala, Allahabad, Calcutá, Atkyab, Rangoon, Bangkok, Oubon e Hanói. Aqui demoram-se devido às grandes chuvas e inundações. Apanhando uma aberta propícia, levantam voo às 10 horas da manhã de 20 de Junho, com céu limpo e entrando na China, segue o avião numa velocidade de cruzeiro de 170 km/h. “Mas vão ao encontro de trovoadas, que lhes queima o gerador. Que fazer? Retroceder para o primeiro aeroporto, que lhes ficava atrás (Fort Bayard), ou avançar para Macau? Decidem avançar, conseguindo sobrevoar Macau e avistar a Lapa, a Ilha Verde e Portas do Cerco; três vezes desceram a menos de 100 m, mas uma chuva torrencial barra-lhes a passagem, forçando a dirigirem-se para Cantão, quando conseguem avistar o caminho-de-ferro Kowloon-Cantão e resolvem segui-lo. Passados dois minutos sobre a linha férrea, o motor começa a falhar e obriga a uma aterragem forçada de emergência” [o motor parou antes do piloto alinhar o avião com o vento, para estabelecer uma abordagem final ao reduzido campo de aterragem]. Aos comandos, o piloto Sarmento de Beires efectua uma aterragem de emergência sobre o que julga ser um terreno aberto no meio dos arrozais. Num espaço curto, aos solavancos devido à irregularidade do solo, o aparelho acaba por embater num buraco escondido por água, partindo o trem de aterragem e a hélice. Afinal tinham aterrado num cemitério chinês, a dois quilómetros de Sâm-Tchan (Shum-Chum), próximo de Kowloon, Hong Kong e a cerca de 90 km de Cantão. Eram 14:48 horas e o tempo total de voo fora de 117 horas e 41 minutos, tendo percorrido 17.570 km. É o fim. Caminhando, seguem para a cidade de Sâm-Tchan, numa zona onde decorriam confrontações militares entre as forças nacionalistas do federalismo anarquista de Chen Jiongming e do exército republicano de Sun-Wen, conhecido por o nome de baptismo Sun Yat-sen. REGISTO DO DESEMBARQUE Vêm de comboio para Kowloon, sendo em Hong Kong calorosamente recebidos por residentes portugueses, à frente dos quais o cônsul de Portugal, Cerveira de Albuquerque. “Os portugueses de Hong Kong com manifestações de regozijo: recepções, almoços, jantares e cocktails no Clube Lusitano, no Clube Recreio e ainda a bordo do Pátria sob o Com. do Almirante Magalhães Correia, que levou os aviadores a todos esses locais. Ofereceram a hélice ao Cônsul Português de H.K., Cerveira de Albuquerque, sugerindo alguém ser leiloada e o dinheiro entregue aos aviadores, contanto ficar ela na posse do Clube Lusitano. Logo um anónimo ofereceu $500,00. A hélice, autenticada com as assinaturas dos aviadores, lá continua ainda, sobrevivendo ao vandalismo da ocupação japonesa de H.K. (1941-1945)”. À colónia britânica, a cidade de Macau enviou para receber os heróis a lancha-canhoeira Macau, que sob o comando do primeiro-tenente Santos Pedro fez durante a noite as 50 milhas de mar revolto, fundeando na manhã de 21 de Junho. Ainda nessa tarde aportava também em Hong Kong a canhoneira Pátria, da Marinha de Guerra Portuguesa, para levar a Macau os aviadores, que do barco realizaram a primeira comunicação telegráfica. Ao desembarcar em Macau a 25 de Junho, a população festivamente lhes atirou uma chuva de flores, entusiásticos vivas, estrepitoso estralejar de panchões e de música, dirigindo-se todos ao Leal Senado, para numa recepção cívica serem em sessão solene recebidos pelo governador Dr. Rodrigo José Rodrigues (1923-1925). “Houve ainda um Te Deum na Sé, discursos, poesias, banquetes, saraus, festas, cortejos, enfim, a exuberância latina a desbobinar todo o seu entusiasmo. Macau esteve em festa durante dias seguidos”, com homenagens e constantes aclamações por parte da população portuguesa, a precisar de festas para desopilar e esquecer a turbulência do dia a dia, com a chegada de muitos refugiados devido a tumultos em Cantão. A recepção do desembarque ficou registada em película por a Empresa Cinematográfica Macaense, criada em 1924 por Lucrécia Maria Borges, que em filme de propaganda realizou o documentário “O Voo Audaz das Águias Portuguesas”. Devido à tempestade, a passagem dos aviadores sobre Macau não foi captada. A Lei n.º1609 de 27 de Junho de 1924 promove-os por distinção ao posto imediato, segundo os dados de Beatriz Basto da Silva, adicionados neste artigo com muito texto do P. Manuel Teixeira e a complementar, os acrescentos de Fernando Mendonça Fava. Mais tarde, já em Lisboa serão os aviadores condecorados com o Grande Colar da Ordem Militar da Torre e Espada, pelo Presidente da República em cerimónia pública e muito concorrida no Terreiro do Paço. O Governador de Macau providenciou o regresso por mar dos aeronautas à Metrópole, via Estados Unidos. A 5 de Julho de 1924 partiram de Macau para visitar as comunidades portuguesas de Hong Kong, Cantão e Xangai, onde entusiasticamente foram saudados, assim como pelos portugueses residentes no Japão, Califórnia e na costa Leste dos EUA, de onde seguem para o Brasil. No Rio de Janeiro inauguram o estádio do Clube de Regatas Vasco da Gama. Já em Londres, são recebidos na Câmara Portuguesa de Comércio, com a presença do embaixador de Portugal Norton de Matos e por fim, seguem de Southampton no paquete inglês Arlanza para Lisboa, onde no dia chuvoso de 8 de Setembro de 1924 ninguém os esperava, pois o telegrama que anunciava a sua chegada extraviou-se.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO aniversário das flores no álbum de Dong Gao Cui Xuanwei, um velho eremita daoísta que vivia a Leste de Luoyang na dinastia Tang, regressava de uma longa jornada em busca de ingredientes para fazer um elixir, quando notou com admiração que plantas silvestres cresciam no seu jardim abandonado. No fim desse belo e inesperado dia de Primavera, a meio de uma noite banhada pelo luar, sentiu uma leve brisa e, do lado de fora da casa, apareceu-lhe uma jovem que, com as suas irmãs, lhe pediu abrigo para passar essa noite. Entraram no pátio doze ninfas que lhe explicaram que precisavam de se refugiar ali porque nesta altura do ano estavam sujeitas a grandes ventanias. Ele aceitou acolhê-las e, quando elas partiram no dia seguinte, dando-lhe como recompensa umas singulares pétalas que ele usou num remédio que lhe garantiu uma longa vida, disseram-lhe para colocar do lado oriental da casa uma bandeira vermelha. No ano seguinte quando, numa manhã de Fevereiro veio uma tempestade, as flores do jardim permaneceram intactas e assim sucedeu todos os anos a seguir. A história que associa os ventos chuvosos do fim do Inverno ao despontar das flores é relatada na Extensa relação da era Taiping xinguo (Taiping guangji) do século X, mas só publicada na dinastia Ming, retomada entre outros por Feng Menglong. E é referida como estando na origem da «Festa da manhã das flores» (Huazhaojie) que se celebra em Pequim no décimo quinto dia do segundo mês lunar e explica a razão do uso nesse dia das bandeirolas vermelhas. À comemoração das flores também se quiseram associar os literatos. O filho de um eminente pintor e funcionário imperial, Dong Bangda (1699-1769) encontraria uma forma original e engenhosa para celebrar as boninas. Dong Gao (1740-1818), igualmente funcionário imperial influente que também foi poeta e pintor, faria um álbum de doze folhas com vinte e quatro pinturas, todas acompanhadas de poemas e que está no Museu do Palácio Nacional, em Taipé, designado Ventos floridos da promessa. Partindo da ideia de que a chegada dos ventos da Primavera mostravam o cumprimento anual de um compromisso dos Céus de conceder a beleza e as cores ao Mundo para serem apreciadas por quem as soubesse admirar, ele ilustra os vinte e quatro ventos da promessa com flores que desabrocham nesse período de quatro meses. E que correspondem a oito termos solares (jieqi) do antigo Calendário lunisolar conhecido já na dinastia Zhou (1050-771 a.C.), chamado Tang li ou Nongli. Começando a seguir ao solstício de Inverno, no vigésimo terceiro termo chamado «pequeno frio» (xiaohan) quando «a energia do yang começa a aumentar» no início de um novo ciclo, Dong mostra a abundante variedade da natureza desde as flores da ameixieira (meihua) até às perfumadas e quase púrpuras flores da amargoseira do Himalaia (melia azedarach, fulin) no sexto período, da «chuva do milho» (guyu).
José Simões Morais Via do MeioZhuge Liang | Pedir emprestado Jingzhou No ano de 208, a morte por doença em Xiangyang de Liu Biao (142-208), governador da província de Jing (Jingzhou em Hubei) desde 192 e a administrar o centro da China na zona média do rio Yangzi a englobar grande parte das actuais províncias de Hubei, Hunan e Sudoeste de Henan, deixou Liu Bei (161-223) desamparado, pois o autoproclamado representante da casa real Han, sem ter uma base esperava o momento adequado para lhe solicitar o patrocínio por também ser membro da família real. A Liu Biao sucedeu como governador de Jing o filho mais novo Liu Cong, mas apenas durante esse ano pois o general Cao Cao chegou com um grande exército de 200 mil homens para o combater. Os oficiais de Liu Cong avisaram-no não ter número suficiente de soldados para o confrontar e melhor seria render-se. Pretendia ele resistir e lembrou-se poder pedir ajuda a Liu Bei, mas os conselheiros avisaram-no se Liu Bei conseguisse resistir a Cao Cao também ele perderia o lugar. Assim, sem informar Liu Bei decidiu render-se a Cao Cao e este apontou-o como inspector da província de Qing [parte da actual província de Shandong] para o afastar, dando-lhe o título de marquês. Encontrava-se Liu Bei em Fancheng [a Norte de Xiangyang] e foi obrigado a fugir para Sul devido ao exército de Cao Cao ir ocupando a região entregue por Liu Cong. Era imenso o número de fugitivos e Liu Bei dividiu-os, viajando Guan Yu de barco por o rio Han com o plano de se encontrar em Jiangling, nas margens do rio Yangzi, com o numeroso grupo que por terra seguiu. Nessa fuga, ao seu exército foram-se integrando muitos dos homens que serviram Liu Cong e se juntaram aos inúmeros civis familiares com imensas bagagens. Cao Cao com a sua cavalaria apanhou o vagaroso cortejo onde seguia a família de Liu Bei e foi a acção de Zhang Fei com 20 cavaleiros, ao se colocar na rectaguarda do grupo em fuga, a permitir a Liu Bei e Zhuge Liang terem tempo para escapar. Estava-se em Outubro de 208 e essa pequena confrontação ficou conhecida por a batalha de Changban, onde Zhao Yun no seu cavalo atravessou o exército wei levando nos braços Liu Chan, filho de Liu Bei. Conta a História ter Liu Bei ficado muito contente quando viu chegar esse famoso general, mais do que o salvamento do seu filho. Conseguiu o exército de Liu Bei chegar ao rio Yangzi e ainda no ano de 208 Liu Bei por conselho de Zhuge Liang fez uma aliança com Sun Quan para lutar contra o exército de Cao Cao, sendo este derrotado na célebre Batalha da Falésia Vermelha (赤壁之战), impedindo Cao Cao de ocupar as terras a Sul do rio Yangzi. As forças dos dois aliados perseguiram as tropas de Cao Cao e em Jiangling ocorreu no Inverno de 208 a batalha de Jiangling, que sucedeu à anterior batalha de Yiling em Wulin (hoje Honghu em Hubei). Após um ano de pesadas perdas, tanto de material de guerra como de soldados, Cao Cao ordenou ao seu primo, o general Cao Ren (168-223), retirar e assim Jiangling com o resto da prefeitura de Nan ficou nas mãos das forças de Sun Quan, que logo apontou o general Zhou Yu (175-210) para ficar à frente dela. A província de Jingzhou tinha sete prefeituras (jun) situadas entre a parte média do rio Yangzi (Changjiang). Com o rio Yangzi como linha de defesa, Liu Bei e Sun Quan controlando a parte Sul aí fizeram as suas bases. Assim o exército de Cao Cao passou a ocupar todo o Norte da província de Jing (Nanyang jun e Jiangxia jun, mas apenas a parte a Norte do rio Yangzi), pois a parte de Jiangxia jun a Sul do rio era controlada por Sun Quan, que tinha também Nanjun, com o centro administrativo em Jiangling e jurisdição sobre Xiajun (hoje a Noroeste de Tongcheng, Hubei), Hanchang (hoje a Sudeste de Pingjiang, Hunan), Liuyang e Zhouling (a Nordeste de Honghu, Hubei). Já o território de Liu Bei era a Oeste do rio e compreendia quatro prefeituras a Sul da província de Jing: Wuling (hoje Changde, Hunan), Changsha, Guiyang (próximo onde hoje está Chenzhou, Hunan) e Lingling (hoje Yongzhou, Hunan), tendo Liu Bei apontado Liu Qi (o filho mais velho de Lu Biao e irmão de Liu Cong) como governador. Com a morte de Liu Qi nos finais de 209, Liu Bei ocupou o cargo de governador dessas quatro prefeituras da província de Jing e colocou o centro administrativo do seu território em Gong’na, situado em Nanjun. A História de Zhuge Liang pedir emprestado Jingzhou (Jie Jingzhou, 借荆州) ocorreu em 209, quando o general Lu Su (172-217) propôs ao seu líder Sun Quan entregar a Liu Bei parte da prefeitura Nan para Zhuge Liang tomar conta, pois era a zona mais difícil de defesa devido a estar na fronteira com o território de Cao Cao. No entanto, o general Zhou Yu opôs-se e só após a sua morte em 210 a proposta de Lu Su foi aceite por Sun Quan, sendo entregue Gong’an, parte de Nan jun, para Zhuge Liang a defender. Em 211 Liu Bei passou o seu centro de governação para Sichuan e no ano seguinte Sun Quan após fortificar Nanjing e mudar-lhe o nome para Jiankang aí se instalou. Em 213, Cao Cao é primeiro-ministro de Xiandi e por ser quem mandava, obrigou o imperador a dar-lhe o título de rei de Wei. Em 215, Liu Bei e Sun Quan fixaram a fronteira dos seus territórios em Xiang, no Hunan e o general Cao Cao conquistava o pequeno Estado a Sul de Shaanxi e em Sichuan, controlado até então pelo movimento “A Via dos Mestres do Celestial”, quando o neto de Zhang Ling, o sábio Zhang Lu se rendeu. Cao Cao deu a Zhang Lu o título de duque de Langzhong e o movimento passou a ser reconhecido pois ficou submetido ao general. ABRIR AS PORTAS AO INIMIGO No Romance dos Três Reinos (San Guo Yanyi, 三国演义) está a história do iludir com uma cidade vazia, onde se narra, certa vez no ano de 219 encontrava-se Zhuge Liang [a História refere ser Zhao Yun] à frente da defesa da cidade de Hanzhong, quando esta foi cercada por um grande número de tropas wei. Na altura ele só contava com uma pequena guarnição e usando o seu grande conhecimento da psicologia humana ordenou abrir as portas da cidade ao inimigo e sozinho encontrava-se na praça principal confortavelmente a tocar música no seu guqin. Tal espantou o comandante das forças inimigas que, suspeitando ali haver algum truque e com medo de ser uma armadilha, retirou-se com as suas tropas sem atacar. Liu Bei encontrava-se em Chengdu a preparar a capital do reino Shu, Zhang Fei em Langzhong e Guan Yu a comandar a guarnição Shu em Jingzhou, quando o reino Shu foi atacado pelo exército Wei com 30 mil soldados comandados pelo general Zhang He. O general Zhang Fei, arranjando 10 mil homens conseguiu-o estrategicamente vencer na Passagem de Wakou. História gravada com a espada numa pedra por o próprio Zhang Fei de tão eufórico estava e registada no Romance dos Três Reinos. Em 220, Guan Yu, um dos grandes generais de Liu Bei e comandante da guarnição de Jingzhou, estando ocupado numa batalha fora de muralhas contra as forças Wei de Cao Cao, foi apanhado por um ataque surpresa do exército Wu, que conquistou a cidade e o matou. Eram então os reinos Shu e Wu aliados e devido a tal essa aliança rompeu-se, levando Liu Bei em 222 a liderar uma expedição punitiva contra Wu, sendo a decisiva batalha pelejada em Yiling (a Norte do distrito de Yidu, província de Hubei). PERÍODO DOS TRÊS REINOS A morte no ano de 220 do general Cao Cao (155-220), a governar a dinastia Han do Leste desde 196 em nome do Imperador Xian (189-200), levou o seu filho Cao Pi (187-226) a destronar Xian Di, terminando assim a dinastia Han e deu início ao Período dos Três Reinos (三国鼎立, 220-280). Cao Pi proclamou-se imperador do reino de Wei (220-265), situado a Norte do rio Yangzi, com a capital em Luoyang, tendo como religião o Dauismo. Teve cinco governantes, sendo o último Cao Huan, o Imperador Yang (260-265). Sun Quan em 222 criou a Sudeste o reino Wu (222-280) ascendendo ao trono em Wuchang (hoje Ezhou, Hubei), mas o seu reinado começou no ano de 229 em Huanglong, quando se autointitula imperador Da Di (229-252) e logo de seguida mudava a capital para Jianye (hoje Nanjing). Sucedeu-lhe o filho Sun Liang (243-260) que reinou como Rei Kuai Ji entre 252 e 258, quando foi destronado pelo regente Sun Lin. Este não teve tempo para ocupar o trono, pois logo foi morto pelo seu irmão Sun Xiu, que como Jing Di governou o reino Wu de 258 a 264. Depois ocupou o trono o seu sobrinho Sun Hao (242-284), que fora tornado príncipe pelo fundador do reino Wu, Sun Quan. Uma ofensiva das tropas Wei contra as de Wu em 252 fracassou e desde 264, o cruel e extravagante Sun Hao reinou até 280, quando a China foi de novo reunificada por Sima Yan, o imperador Wu (265-290) da dinastia Jin (265-420). Já o reino de Shu (221-263) encontrava-se situado a Oeste da China (atual Sichuan) e teve apenas dois imperadores, Liu Bei como Zhao Lie Di (221-223) e Liu Shan como Imperador Hou Zhu (223-263). O FIM de Zhuge Liang Zhuge Liang como primeiro-ministro de Zhao Lie Di escolheu novas e talentosas pessoas para ajudar no governo e melhorou muito as relações com os numerosos grupos éticos que viviam isoladas pelo Sudoeste, unindo-as em torno de Li Bei, descendente da família imperial dos Han. Segundo Bai Shouyi em An Outline History of China: “Como primeiro-ministro do reino Shu, Zhuge Liang trabalhava arduamente para desenvolver a produção agrícola em Sichuan. Apontou oficiais especiais para ficarem à frente do antigo Canal represa Dujiang e mandou fazer muitos outros trabalhos relacionados com a água. Para assegurar um ambiente de paz ao reino, tomou a iniciativa de melhorar as relações com as minorias étnicas a habitar onde hoje são as províncias de Guizhou e Yunnan e fortalecer as relações políticas, económicas e culturais entre o povo Han e essas minorias étnicas.” Liu Bei antes de morrer, o que aconteceu em 223, confiou ao seu primeiro-ministro Zhuge Liang o filho e apesar de Liu Chan se tornar um governante decadente, o estratega continuou a ajudá-lo mantendo-se como seu tutor, sem dar ouvidos aos que o aconselhavam a tomar conta do governo do reino Shu. Voltou à inicial política de aliança com o Wu para combaterem o reino Wei. Em 227, Zhuge Liang recomendou a Liu Chan enviar rapidamente para Norte as tropas contra o rival reino Wei, antes de este se tornar ainda mais forte. Aspirando ocupar as Planícies Centrais, controladas pelo reino Wei e recuperar a causa da casa dos Han, Zhuge Liang liderou as forças Shu em cinco expedições, num confronto entre dois estados militares dirigidos por conselheiros legistas. Mas essas expedições por ele realizadas falharam e na última em 234, Zhuge Liang passou desta vida com cinquenta e três anos na planície de Wuzhang, hoje Meixian, província de Shaanxi, quando pelejava contra as forças do Imperador Ming (Cao Rui, 226-239) do reino Wei que tinham ao comando o general estratega Sima Yi (179-251). As tropas Shu regressaram a Sichuan. Desde então o poder Shu declinou, tendo o reino Wei se tornado o mais poderoso e em 263, o exército de Wei chegou a Chengdu e anexou o reino Shu. Dois anos depois, em 265 um dos ministros Wei, Sima Yan (236-290), neto do general Sima Yi, usurpou o trono e fundou a dinastia Jin do Oeste (265-316), com a capital em Luoyang. A China é de novo reunificada em 280 quando Sima Yan, já como imperador Wu Di (266-290), conquistou o reino Wu a Sun Hao, terminando assim o Período dos Três Reinos. Zhuge Liang (181-234) guiara talentosamente toda a sua mitológica existência, pautando-a de grande ponderação e sabedoria. Deixou ao mundo preciosas lições de estratégia, na resolução das batalhas em que entrou e segundo a tradição, é-lhe atribuída por volta do ano 232 a invenção do (carrinho de mão), tendo ainda criado a flauta de canas vermelha, instrumento musical muito usado pelos grupos éticos ligados ao povo Miao.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA vontade de Zhu Zhifan em contemplar Nanquim Su Dongpo (1037-1101), o poeta cuja vida atribulada o conduziu aos mais inesperados recantos do Império, seria sempre recordado como um viandante. Certo dia em Danzhou (Hainan) a terra onde passou exilado, os últimos três anos da sua vida, saíu de casa para ir visitar o seu amigo Li Ziyun e foi surpreendido pela chuva. A dificuldade não o demoveu, e pedindo emprestados a um camponês, um chapéu de palha e umas socas de madeira, continuou o seu caminho. Pessoas que viam passar o literato com as suas longas vestes de funcionário imperial misturadas com a lhaneza dos acessórios rurais, riam-se e diz-se até que cães, denotando a estranheza, ladravam à sua passagem. Mas a figura do poeta e a sua longanimidade, encapsulados na expressão Dongpo liji (Dongpo com chapéu de palha e socas) perdurariam e mais tarde, quando se começou a celebrar de forma metódica a sua vida e o seu aniversário, essa memória foi avidamente recuperada em pinturas e esculturas que até hoje celebram o herói cultural. E é assim que ele surge, caminhando e inclinando-se ligeiramente para levantar a fímbria dos seus vestidos para que não se arrastem na lama, numa pintura (rolo vertical, tinta sobre papel, 92 x 29 cm, no Museu Provincial de Guangdong), atribuída ao pintor literato de Nanquim, Zhu Zhifan (1558-1624). De maneira característica, diz-se que essa seria já uma cópia de uma outra, executada pelo pintor Li Gonglin (1049-1101), que efectivamente conheceu o poeta, conferindo-lhe veracidade. Noutras pinturas Zhu Zhifan ilustrou lugares distantes como no álbum Expedição ao Norte (dezoito folhas, tinta e cor sobre seda, 21,7 x 27,4 cm, no Museu Britânico) onde evoca a trágica narrativa sobre Cai Wenji, a poeta que foi levada para a terra dos Xiongnu, além das fronteiras do Império. Porém, seriam sobretudo as viagens dentro e à volta da sua cidade natal de Nanquim que o cativariam. Zhu Zhifan escreveu logo no início do século dezassete uma relação sobre a cidade de Nanquim referida pelo antigo nome Jinling que, dado o seu sucesso seria editada, revista e aumentada com poemas em 1624 e desenhos de Lu Shoubo sob o nome de Jinling Tuyong, «Odes ilustradas de Jinling». Dela constam não apenas descrições de quarenta lugares panorâmicos para observar a orbe mas também a imaginação, as histórias e lendas que os lugares despertaram. A vontade de fazer a obra nasceu, como ele refere na introdução, do seu próprio desejo de ver e documentar esses lugares, afinal parte de uma celebrada prática cultural entre os literatos designada woyou, «viajar deitado». A mesma vontade que levou Su Dongpo a não desistir da intenção de dialogar com o seu amigo, indiferente à chuva, como quem sabe que há algo que não se pode perder. Uma intuição que se percebe na tradução da palavra «curiosidade», haoqi, que denota a busca de algo bom e raro.
José Simões Morais Via do MeioZhuge Liang pede emprestado o Vento Leste No último artigo sobre Zhuge Liang (181-234) referimos por engano ser Xü Shu seu genro, mas como anteriormente escrevemos era Huang Chengyan, que apresentara a filha Huang Yueying ao Dragão Adormecido advertindo-o apesar de feiosa era a Jovem Fénix dotada de muitos talentos a complementar com os atributos do estratega. No Romance dos Três Reinos (San Guo Zhi, 三国志) faz-se referência a Zhuge Liang ter pedido emprestado três coisas: Flechas, o Vento Leste e Jingzhou. Se usar barcos com cobertura de colmo para pedir emprestado flechas (cao chuan jie jian, 草船借箭) foi já narrado no último artigo, seguimos aqui com o episódio de pedir emprestado o Vento Leste (JieDongFeng, 借东风), encontrando-se ambos registados nesse ficcional livro. Esses dois episódios ocorreram em 208 entre os meses de Julho a Novembro durante a Campanha dos Penhascos Vermelhos em Chibi (província de Hubei) cujos exércitos conjuntos de Liu Bei e Sun Quan tinham apenas cinquenta mil homens enquanto no campo contrário, Cao Cao contava com 230 mil soldados. Nessas histórias a contracenar com Zhuge Liang aparece o general e estratega Zhou Yu (175-210) ao serviço de Sun Quan (182-252), mas a sua personagem é apresentada inferiorizada em relação ao estratega de Liu Bei (161-223). Sun Jian (155-191), aliado do senhor feudal Yuan Shu, morrera em 191 na batalha de Xiangyang quando combatia Liu Biao, apoiante do lorde feudal Yuan Shao [cujas tropas no ano 200 foram derrotadas por Cao Cao]. Sun Ce (175-200, com nome de cortesia Bofu) era o filho mais velho de Sun Jian e separou-se de Yuan Shu para o qual o seu pai trabalhara e rumou para Sudeste onde estabeleceu a fundação do seu território durante a dinastia Han de Leste e desde 195 ocupava o Baixo-Yangzi na parte Leste da China. Teve ao seu serviço o general Zhou Yu seu genro, pois ambos casaram com as irmãs Qiao [Sun Ce com Da Qiao e Zhou Yu com Xiao Qian] e quando o Sun Ce foi assassinado no ano de 200 Zhou Yu passou a servir o irmão mais novo e sucessor Sun Quan. Os vales do baixo curso do rio Yangzi, na parte Sudeste da China, ficaram dominados por Sun Quan (182-252) após conseguir acabar com uma rebelião de muitos, que o achavam sem força suficiente para ser um bom líder. Cao Cao propõe-lhe enviar um dos filhos para Xudu [actual Xuchang em Henan para onde em 196 Cao Cao mudara a capital da dinastia Han do Leste quando Luoyang ficou devastada por a guerra e como quartel-general para aí levou o Imperador Xian, vindo a servir depois como capital do reino Wei], para se estabelecer boas relações entre eles, mas devido aos conselhos de Zhou Yu, Sun Quan não aceitou tal proposta. Liu Bei (161-223), desde 207 contava com o estratega Zhuge Liang à frente do seu exército Han-Shu, pois considerava-se representante da casa real Han. Como não tinha uma base e esperava o momento adequado para solicitar o patrocínio do também membro da família real Liu Biao, que após a batalha de Xiangyang se tornara em 192 Prefeito de Jingzhou a administrar grande parte do centro da China, na zona média do rio Yangzi, lugar que ocupou até à sua morte em 208. PEDIR EMPRESTADO O VENTO LESTE No Inverno de 208 para 209, Cao Cao com um exército de 230 mil homens parte para Sul a conquistar Jingzhou (no curso médio do Yangzi, província de Hubei), então quartel de Liu Bei e de onde expandia o seu domínio para Oeste. Sun Quan, sentindo-se também ameaçado pela força dos Wei, resolveu juntar-se a Liu Bei, mas o exército de ambos não chegava a metade do de Cao Cao, que apresentava ainda uma imensa armada. Após o sucesso de Zhuge Liang pedir emprestado flechas (cao chuan jie jian, 草船借箭) e em três dias ter conseguido as cem mil flechas requeridas por Zhou Yu (175-210), tal levou a aumentar ainda mais a inveja, mas precisando de combater o enorme exército de Cao Cao teve de se manter unido ao grande estratega. No episódio conhecido por Pedir Emprestado o Vento Leste (JieDongFeng, 借东风) os dois estrategas em conjunto planearam usar o fogo para derrotar o general Cao Cao e trataram de muitos outros pormenores como o de colocar um dos seus, fingindo ter desertado das fileiras e ir ter com Cao Cao para lhe dar algumas ideias. Sabiam Cao Cao não se sentir confortável a viver no barco e então esse desertor deu a ideia de ligar os barcos para ficarem mais estáveis e não balançarem muito. Quem iria combater aquela enorme frota era o general Zhou Yu, que ao ir de barco vistoriar o inimigo após chegar dessa inspecção ficou doente. O principal conselheiro de Sun Quan, o general Lu Su (172-217) vendo-o naquele estado e encontrando-se em guerra ficou preocupado e foi ter com Zhuge Liang a pedir-lhe ajuda. Este disse-lhe para não se preocupar, pois tinha o medicamento para o seu General e assim os dois foram ter com o enfermo e quando lá chegaram Zhuge entregou uma carta por si escrita a Zhou Yu, segredando-lhe estar ali o seu medicamento. Ao ler, Zhou Yu logo se levantou sorridente e exclamou: exacto. A carte dizia: Tudo está pronto, o que é preciso é Vento Leste. A enorme armada de Cao Cao subira o rio Yangzi e aportara a Noroeste, enquanto eles estavam fundeados a Sudeste e para o plano resultar, usando o fogo para combater Cao Cao, era precisou ter o vento de Leste. No entanto, durante muitos dias o vento soprou sempre de Norte. Ofereceu-se Zhuge Liang para durante três dias pedir Vento Leste, mas com a condição de lhe fazer um Templo onde pudesse requerer os favores do Céu para ser concedido tal vento. Mandou Zhou Yu preparar tudo para dali a três dias, por volta das quatro, cinco da manhã, pois o vento chegaria. E assim foi! Às quatro da manhã desse terceiro dia, Zhou Yu escutou uma forte ventania e logo percebeu ter chegado o Vento Leste. Imediatamente, com o vento de feição enviou dez dos seus barcos carregados de combustível ao encontro da armada de Cao Cao. Quando estavam próximos ateou o fogo aos seus barcos e o vento encarregou-se de o passa para toda a frota de Cao Cao, que por estarem as embarcações todas juntas e bem amarradas umas às outras não puderam fugir. Toda a armada ardeu como previsto, ficando assim esta completamente destruída. Cao Cao derrotado voltou para Norte, desfazendo-se assim o seu sonho de conquistar o resto do país. Pertencente à campanha dos Penhascos Vermelhos, a Batalha de Yiling não precisou de usar nenhum soldado para acabar com a enorme frota de Cao Cao e logo, mais uma vez com a excelente ideia de Zhuge Liang. Tal mais ainda acirrou o ódio de Zhou Yu e com um enorme rancor, logo enviou os seus homens para o matar, mas Zhuge Liang abandonara já o acampamento. Só depois desta batalha Liu Bei conseguiu criar o seu próprio exército e onze anos depois, em 219 estabelecer o reino Han-Shu.
Hoje Macau Via do MeioDigitalização de museus na China atrai milhões de pessoas Novas tecnologias para manter e divulgar o passado Quando o metaverso se encontra com os museus, os visitantes podem viajar até ao passado para construir edifícios antigos, viajar com animais selvagens ferozes como os leões e os elefantes brancos das lendas chinesas. As exposições digitais de relíquias culturais tornaram-se cada vez mais uma forma importante de as trazer de volta à vida. Com os avanços da tecnologia moderna, a digitalização já não se limita a simples ecrãs que mostram imagens de relíquias aos visitantes, mas inclui agora meios de alta tecnologia, como o metaverso, conteúdos gerados por IA e experiências interactivas que levam os visitantes ao mundo do património cultural. Em toda a China, foram desenvolvidos vários meios e esforços avançados para proteger, desenvolver e utilizar a cultura tradicional chinesa, numa tentativa de “aumentar a confiança cultural e promover o espírito nacional do país”, refere o Global Times. O Pagode de Porcelana No Ocidente, é um dos mais conhecidos patrimónios culturais chineses e, por vezes, visto como uma das Maravilhas do Mundo. O legado continua, pois aparece de vez em quando em várias séries de televisão e filmes americanos, na caixa de comida chinesa como um ícone do elemento cultural chinês. Trata-se do Pagode de Porcelana de Nanjing, uma das maravilhas do mundo medieval no antigo Templo de Bao’en, ou Templo da Gratidão Retribuída em chinês. O pagode foi construído no século XV na margem sul do rio Yangtze. A milhares de quilómetros de distância, o Grande Pagode de Kew continua de pé em Londres, funcionando como uma janela para a cultura chinesa para milhões de visitantes no Reino Unido. Sir William Chambers visitou a China por duas vezes e os seus grandes projectos de pagodes para a família real foram influenciados por gravuras que aí tinha visto do famoso Pagode de Porcelana de Nanjing. No entanto, o pagode foi quase todo destruído no século XIX devido à guerra. Felizmente, o palácio subterrâneo por baixo do templo escapou ao infortúnio e permanece intacto. Uma escavação arqueológica efectuada em 2008 descobriu relíquias budistas no palácio subterrâneo, enquanto uma torre de vidro e aço baseada no pagode original foi construída e aberta ao público em 2015. Com a ajuda de um projecto de digitalização, a torre original de nove andares, coberta de azulejos coloridos, pode ser vista de novo em vídeos de alta definição, tal como foi construída durante a dinastia Ming (1368-1644). “O rápido desenvolvimento da tecnologia, incluindo a digitalização, abriu muitas possibilidades para nos ajudar a proteger o nosso património e a trazer de volta à vida as relíquias culturais”, disse Wang Wenxi, curador do Museu das Ruínas do Grande Templo Bao’en de Nanjing. Como o pagode tinha sido destruído, era um desafio para o museu manter-se relevante, uma vez que o pagode parecia não ser mais do que uma história do passado para as pessoas de hoje. “É um processo duro e difícil e um problema comum enfrentado por muitos sítios patrimoniais na China e mesmo em todo o mundo”, disse Wang, cuja equipa tem vindo a explorar novas formas de promover o sítio. Para além da recriação digital do Pagode de Porcelana, foi introduzida tecnologia virtual para gerar um espaço metaverso no Museu das Ruínas do Grande Templo de Bao’en, através do qual os visitantes podem entrar num museu metaverso para explorar um pagode restaurado digitalmente. “No mundo digital, o restauro do pagode e as experiências interactivas ajudarão os visitantes a ligarem-se ao seu património e a sentirem melhor a esplêndida cultura de Nanjing”, observou Wang. “Isto traz este tesouro histórico e nacional da China de volta à vida.” Ao entrar no Museu das Ruínas do Grande Templo Bao’en, os visitantes já não precisam de procurar informações online. Em vez disso, podem “falar” com a “Rapariga Dragão”, uma curadora inteligente baseada em grandes modelos linguísticos, em qualquer altura e desfrutar de uma visita “privada”. Através de um programa interativo de realidade aumentada, podem também ligar entre si todos os locais do museu. Além disso, na opinião de Wang, os museus transmitem uma mensagem sobre o reconhecimento dos valores chineses de inovação e paz. O museu tem trabalhado com várias universidades em investigação histórica, arquitetura, digitalização e muito mais. Desde os artigos de porcelana com vidrados coloridos da dinastia Ming até aos intercâmbios culturais centrados no Grande Templo de Bao’en, “temos muito mais para fazer e muito está à nossa espera”. Expressões criativas Como viajantes europeus como Johan Nieuhof visitaram a torre em meados do século XVI e a deram a conhecer ao mundo, o museu espera ter mais projectos que possam continuar esta ligação global e promovê-la como um símbolo cultural da China. O Concurso para Inovadores em Património Cultural Imersivo Digital faz parte deste esforço. De acordo com Hu Lei, director-adjunto do Departamento de Criatividade Digital do museu, jovens de 34 cidades de 13 países participaram no concurso, utilizando experiências imersivas e tecnologia digital inovadora para interpretar e contar as histórias do património cultural perdido. “Pode despertar o interesse do público pelo património e apresentar expressões criativas a partir da perspectiva dos jovens”, afirmou Hu. O concurso é também uma plataforma de intercâmbio para técnicos e criadores de conteúdos, uma vez que a equipa técnica pode prestar mais atenção aos conteúdos e aprender a contar boas histórias, enquanto a equipa de conteúdos pode aprender mais sobre tecnologias de ponta. “É uma solução vantajosa para a proteção, exibição e educação do património cultural”, afirmou Wang. Grutas digitalizadas A preservação digital das antigas grutas da China tornou-se um assunto de interesse global, uma vez que as equipas chinesas de conservação digital utilizam tecnologias de ponta para restaurar o esplendor original destas antigas grutas e dos seus murais com grande precisão. Isto permite que pessoas de todo o mundo transcendam o tempo e o espaço e experienciem a vasta beleza da cultura das grutas, incluindo as conhecidas grutas de Yungang, na província de Shanxi, no norte da China, e as grutas de Dunhuang Mogao, na província de Gansu, no noroeste da China. Sun Bo, membro da equipa do centro de protecção e monitoramento do património cultural do Instituto de Pesquisa Yungang, disse que os esforços atuais de restauração e protecção das Grutas Yungang evoluíram da conservação tecnológica para a conservação digital. A criação de um laboratório digital no Instituto de Investigação de Yungang visa recolher dados e utilizar computadores para selecionar os materiais e os métodos de restauro que causarão menos danos às grutas. “A restauração das Grutas de Yungang não pode ser interrompida, mas minimizar os danos durante o processo é uma arte em si. O laboratório digital pode ajudar o pessoal a escolher os melhores métodos, destacando outro papel importante na digitalização do património cultural”, afirmou, acrescentando que a recolha de informações digitais em curso nas Durante o processo de recolha de dados, a equipa pode identificar danos subtis e riscos potenciais para as grutas e estátuas, o que ajuda a restaurar e atenuar os danos em tempo útil. Posteriormente, os dados e informações de alta precisão recolhidos serão processados utilizando tecnologia digital, “recriando” as Grutas de Yungang numa base de dados para fornecer dados sólidos e apoio visual para a conservação, restauro e mesmo reconstrução das grutas. Os meios de comunicação social referiram que a digitalização das Grutas de Yungang, que ostentam mais de 59000 estátuas complexas e requintadamente esculpidas de vários tamanhos, deu origem a um enorme volume de dados que exigirá um tempo considerável para ser processado digitalmente. “Os esforços digitais em curso estão a construir uma base sólida para a preservação precisa e permanente e para a utilização sustentável da informação sobre as Grutas de Yungang”, disse Hang Kan, director do instituto de investigação das Grutas de Yungang, acrescentando que dois terços do trabalho de recolha de informação digital para as grutas foram concluídos. Dunhuang Mogao atrai milhões A digitalização das Grutas de Dunhuang Mogao também alcançou resultados. Em Maio de 2016, foi oficialmente lançada a biblioteca de recursos “Dunhuang Digital”. Partilha imagens de alta definição de murais e explicações textuais de 30 grutas em todo o mundo. Utilizadores de quase 80 países e regiões usam a plataforma, que já recebeu mais de 22 milhões de visitas, informou o Guangming Daily. “A digitalização permitiu que as relíquias culturais deixassem os museus e chegassem a todos os cantos do mundo, estimulando o desejo das pessoas de ver os artefactos reais no local”, disse Su Bomin, chefe do Instituto de Pesquisa Dunhuang. Em abril de 2023, a “Gruta Digital”, criada pelo Instituto de Investigação de Dunhuang, foi oficialmente lançada, atraindo mais de 14 milhões de utilizadores no espaço de uma semana. Com o lançamento da versão internacional da “Caverna Digital”, os utilizadores estrangeiros podem “viajar através” da caverna com um único clique e apreciar a civilização chinesa representada por Dunhuang. Actualmente, o centro digital do Instituto de Investigação de Dunhuang reúne 110 técnicos profissionais de várias disciplinas, incluindo informática, fotografia, design artístico, direção de vídeo e animação, formando uma equipa interdisciplinar de talentos para a proteção do património cultural. A equipa de protecção do património cultural digital do Instituto de Investigação de Dunhuang também partilhou a experiência bem sucedida de levar a cabo projectos semelhantes de “Dunhuang digital” com outros países, incluindo Myanmar, cujo Templo Thatbyinnyu estava ameaçado após um grave terramoto. “A divulgação da cultura de Dunhuang pode permitir que pessoas de todo o mundo compreendam que a China, do passado ao presente, tem enfatizado os intercâmbios multiculturais e promovido o espírito de aprendizagem mútua”, disse Su.
Hoje Macau Via do Meio“O Código Shan Hai Jing” | Dupla de autores quer escrever nova versão da História Mundial Michael Du e Julie Oyang entabulam actualmente uma corrida ao texto de cortar a respiração, através da mais importante peça da literatura chinesa e do tesouro mais pesado da cultura chinesa e… mais além. Julie Oyang é uma crítica cultural e artística baseada na Europa, comentadora da cultura chinesa e filósofa visual. É professora convidada na Universidade de São José em Macau, e colaboradora da Via do Meio. Michael Du é um conhecedor da cultura antiga chinesa e detentor da maior colecção da civilização Hongshan do mundo. Foi o fundador da Haikou KiWen International Art & Culture Co. Ltd. Ambos os autores estão estreitamente envolvidos no Centro de Inovação e Empreendedorismo da Cultura Guangcai (Guangcai Culture Innovation and Entrepreneurship Valley), uma iniciativa de vanguarda apoiada pelo governo chinês para o intercâmbio académico e educativo internacional, que está actualmente a preparar-se para uma conferência de imprensa no Salão do Congresso do Povo em Pequim, e uma casa de leilões de arte com sede em Yantai, na província de Shandong. O Shan Hai Jing, em português Livro das Montanhas e dos Mares, foi legendariamente atribuído a Yu, primeiro imperador da dinastia Xia, e a um letrado chamado Boyi, o que remeteria a origem da obra para o segundo milénio a.E.C. Nele se descrevem plantas miríficas e seres exóticos, vulgo monstruosos, deambulando por espaços hoje ignotos. Via do Meio: O Shan Hai Jing é provavelmente um dos manuscritos mais antigos do mundo. O que é exactamente? Julie Oyang: Shan Hai Jing traduz-se literalmente por “Colecção das Montanhas e dos Mares”. O texto é um relato cultural e geográfico da China antes da dinastia Qin, o primeiro império chinês do século III a.E.C.. Contém também mitologia. No total, o livro fala de mais de 550 montanhas e 300 mares. A colecção completa, com cerca de 31 000 palavras, está dividida em 18 secções. O Shan Hai Jing foi, mais provavelmente, um compêndio de obras escritas por muitos autores numa língua antiga, semelhante ao chinês, e posteriormente editado por vários estudiosos chineses desde a dinastia Han Ocidental, com base na sua interpretação do texto “ilegível” e intrigante. A colecção inclui uma série de mitos, nomeadamente histórias da criação e do início da humanidade. Diz-se que o livro tem pelo menos 2200 anos. Mas o nosso palpite é que o Shan Hai Jing é muito mais antigo. Michael Du: Mas quanto mais antigo, queremos saber. Posso dizer com confiança que algumas das histórias datam de há pelo menos 6000 anos, até à civilização Hongshan, a minha área de interesse. Sugeriria mesmo que este livro raro nos fala de uma civilização mais antiga, anterior ao Grande Dilúvio, acontecimento que se deu globalmente — em todas as culturas antigas, aparentemente. Dediquei toda a minha vida à recolha e ao estudo dos artefactos de Hongshan e não apenas devido ao seu crescente valor de mercado: estou convencido de que a mitologia não deve ser tomada como um dado adquirido. O Shan Hai Jing não é um dado adquirido. É com a referência sólida a artefactos existentes que podemos agora dar um rosto ao texto antigo “sem rosto”. Um rosto que se aproxima de uma verdade histórica impressionante, que de outra forma se perderia para sempre. Via do Meio: Uma verdade histórica espantosa? Michael Du: Como a Julie disse, o Shan Hai Jing registou mais de 40 países, mais de 550 montanhas, 300 rios, etc., com criaturas antigas, monstros e geografia mítica. Um relato enciclopédico da visão que as pessoas têm do mundo, que se tornou uma fonte de inspiração para a cultura pop, intercâmbios interculturais e estudos comparativos. Durante o nosso próprio processo de escrita, comparámos o Shan Hai Jing com As Histórias, do antigo historiador grego Heródoto. As Histórias documentam a geografia, as pessoas, os recursos naturais, os diferentes costumes, as aves e os animais. Em particular, alguns dos monstros orientais descritos por Heródoto são bastante semelhantes aos do Shan Hai Jing. Em alguns mapas europeus da Idade Média, as áreas próximas da Índia eram frequentemente pintadas com monstros, cujos equivalentes podem ser encontrados no Shan Hai Jing. O monstro estrela do Shan Hai Jing, Zouwu, fez uma estreia global em Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald em 2018. Tão grande como um tigre, com um pêlo colorido e uma cauda mais comprida do que o corpo, o Zuowu é uma criatura auspiciosa que aparece apenas durante o reinado de governantes benevolentes. O Zuowu não mata um ser vivo para se alimentar. Portanto, é óbvio que a difusão do conhecimento antigo do Shan Hai Jing desde os tempos antigos é um tema académico interessante. Mas fizemos a nós próprios a primeira pergunta antes de começarmos a escrever o Código Shan Hai Jing: estes países, montanhas e rios, registados no texto chinês, estão em que região? Esta é uma pergunta muito importante que nunca foi feita antes. Acreditamos que este texto chinês não diz respeito apenas à civilização chinesa: o Shan Hai Jing diz respeito à civilização mundial. Via do Meio: É uma conclusão bastante surpreendente, não é? Então, com o Código Shan Hai Jing, pretende escrever uma nova versão chinesa da história mundial? Julie Oyang: Posso responder a essa pergunta. E devo dizer que todo o Shan Hai Jing parece algo composto por uma espécie de alquimistas antigos. A viagem entre o mito e a realidade é uma experiência humana comum que encontramos na grande literatura mundial, desde a Divina Comédia de Dante até ao jardim bifurcado de Borges. É claro que os verdadeiros alquimistas não transformam o chumbo em ouro; transformam o mundo em palavras, cada uma das quais é um puzzle labiríntico a tempo de ser decifrado por nós. Na sua Filosofia da História, Hegel defende que a essência da civilização e do seu progresso é a liberdade. No entanto, a história chinesa contrasta ou mesmo refuta a visão hegeliana da liberdade e do progresso. A civilização chinesa está profundamente enraizada na pluralidade através da “absorção de tudo o que está sob do céu”. Pode dizer-se que, a partir do Shan Hai Jing, a versão chinesa da história do mundo é apresentada como uma grande narrativa unificadora ou — como disse o historiador britânico Arnold Toynbee — uma “narrativa cosmopolita”. A liberdade significa conflito e a grande unidade significa a cessação do conflito. O universalismo chinês é a ideia de que os indivíduos ou os pequenos Estados devem abdicar de uma parte da sua liberdade para alcançar uma harmonia social global e a concórdia entre todos os Estados. O Shan Hai Jing mostra-nos que os chineses promoveram e praticaram a ordem universal de harmonia entre todas as nações do globo no mundo antigo. O objectivo ideal desta narrativa cosmopolita é “misturar e unificar o mar, as montanhas e o mundo” através de uma governação bem sucedida baseada no comércio. O Shan Hai Jing é o mapeamento da mais antiga rede de comércio! Se acreditarmos na Atlântida de Platão – sim, é bastante louco!, mas a colecção Hongshan de Michael Du abriu-me realmente os olhos e a mente. Assim, se Platão estiver correcto, podemos dizer que a civilização pré-diluviana era uma civilização espiritual e que a versão Ocidental da história mundial é a manifestação de uma civilização material. A civilização chinesa é uma civilização intermediária única, mas típica, a ponte entre as duas. Via do Meio: Atlântida? Hongshan? A ponte? Michael Du: O Shan Hai Jing descreve muitas bestas mágicas. Têm três cabeças, seis braços, asas múltiplas e outras características. Isto lembra-nos que a engenharia genética altamente desenvolvida e a tecnologia de clonagem já existiria num passado remoto. Os abundantes artefactos de Hongshan confirmam esta hipótese. Na minha opinião, Hongshan não é a Atlântida, mas uma memória dela! Hongshan preservou os mistérios e simbolismos únicos de uma civilização anciã pré-diluviana para ser espalhada pelo globo novamente no final da última era glacial. A civilização mais antiga foi designada Atlântida por Platão nos seus Diálogos. Tal como as criaturas do Shan Hai Jing, os atlantes têm poderes mágicos e comunicam por telepatia. Alguns atlantes eram seres parecidos com peixes, tal como a sereia de Hongshan! Hoje em dia é-nos difícil compreender estas coisas se não tivermos uma mente aberta. De facto, alguns investigadores acreditam que Hongshan é um laboratório extraterrestre. Miscellaneous Morsels from Youyang (酉陽雜俎) é um livro escrito por Duan Chengshi no século IX, durante a dinastia Tang. Centra-se em lendas e boatos chineses e estrangeiros, relatos de fenómenos naturais, pequenas anedotas e contos do maravilhoso e do mundano, bem como notas sobre temas como ervas medicinais e… tatuagens. O livro regista o encontro com um astronauta extraterrestre que informou dois homens que a Lua era feita de sete ligas (sete tesouros) e que a Lua era na realidade uma esfera coberta de montanhas e não um disco plano como se pensava. Disse-lhes que havia oitenta e dois mil lares de trabalhadores de manutenção na lua e que ele era um deles, antes de lhes mostrar as suas ferramentas, incluindo machados e cinzéis. Por fim, partilhou alguns alimentos lunares que pareciam bolas de arroz cristalino. Todos estes pormenores interessantes sobre a Lua foram registados no século IX! Não é alucinante? De certa forma, Youyang é um livro ainda mais estranho do que Shan Hai Jing. Mas estou a divagar. O que quero dizer é: quem somos nós para julgar e rejeitar? Via do Meio: Podem partilhar com os nossos leitores alguns dos mistérios e simbolismos únicos da civilização anciã pré-diluviana que Hongshan preservou e que ainda hoje estão vivos? Michael Du / Julie Oyang: Leiam o nosso livro e descubram.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO Retrato Fictício da Senhora Hedong Feng Menglong (1574-1646), o escritor e poeta da actual Suzhou (Jiangsu), em muitas das suas obras daria forma a um culto das emoções que se generalizava nesse final da dinastia Ming, desenvolvido em torno da palavra qing, que se refere a uma desinteressada e ardente simpatia pelos outros que, ao focar-se na importância das relações humanas, acabaria na acentuação do progressivo reconhecimento de mulheres inspiradas e inspiradoras. Na sua ambiciosa «História das emoções» (Qingshi), parte do sofisticado impulso enciclopédico que visa não apenas conhecer o Mundo mas também o discurso sobre o Mundo, Feng Menglong recolhe mais de oitocentas histórias que provam que «as coisas nesta vida são como moedas soltas; as emoções (qing) são a corda do cordel que as junta todas.» Entre esses relatos está o da jovem bela e talentosa Feng Xiaoqing, que não sobrevive à leitura do romance do Pavilhão das orquídeas (Mudanting, peça escrita em 1598 por Tang Xianzu) e cuja crónica confirma a fatídica relação entre o engenho e a tragédia quando entretecidos pelas emoções. Outro influente literato do tempo, Qian Qianyi (1582-1664) achava a história demasiado perfeita para ser verdade, desconfiando da imaginação do coleccionador de emoções, sem saber que a sua própria biografia se desenrolaria como um desafio à credulidade dos leitores. A sua relação com a cantora, dançarina e poeta Liu Yin (1618-1664) que escolheu o nome Liu Rushi, «ser como um salgueiro», a árvore que simboliza a emoção da dor da separação, foi-se contando ao ritmo de palavras ordenadas como coincidências ou rimas. A saudade que ela não quis sentir, fê-la despedir-se da vida quando ele perde a sua. Quem soube desses acontecimentos, guardou a memória dessa poetisa cortesã com admiração. E os retratos pintados com a sua figura seriam acolhidos com curiosidade. Wu Zhuo, um pintor activo no século dezassete, mais conhecido por pintar paisagens, figura como autor de um elegante e problemático retrato de Liu Rushi, aí designada por outro dos seus nomes artísticos. Nesse rolo vertical (tinta e cor sobre seda, 119,5 x 62,3 cm, no Museu de Arte de Harvard) pode ler-se numa inscrição: «Pintado para a senhora Hedong por Wu Zhuo de Huating, no Outono de 1643 na quinta de montanha da Água que limpa (Fushui shanfang)». Referências tão específicas, como o nome artístico de Liu Rushi, Hedong Jun ou o nome da quinta de Qian Qianyi, emprestam um tom de veracidade desmentida pela própria pintura. Como a pose descontraída, carismática com uma perna levantada e indecorosa para a esposa de um circunspecto literato. Porém, o seu olhar directo para o observador transmite uma intranquila sensação de proximidade. E é esse olhar que serve de ponte entre «os que expressam as emoções e aqueles que as não revelam e vivem em mundos diferentes», como Feng Menglong escreveu.