O vento nas ameixieiras de Wang Shishen

Shitao (1642-1707), o pintor peripatético, vagueando pela região de Jiangnan, «a Sul do grande rio Changjiang» figurou um poeta erguendo-se num barco, olhando impressionado para uma enorme massa rochosa e escreveu os versos:

Enquanto o vento vai soprando

na Ravina Ocidental

quem permitiu que o poema

se completasse sozinho?

Tanta pena da ameixieira,

a solitária do frio,

que não tem companhia.

Daqui apenas se avistam

os poucos ramos que sobraram,

Flores caídas enchem já o chão

e a Primavera ainda não terminou.

Um coração amargurado,

apertado como uma semente,

consegue persistir

em tais pensamentos constantes (…)

A pintura numa folha de álbum (Reminiscências de Qinhuai, tinta e cor sobre papel, 25,5 x 20,2 cm, no Museu de Arte de Cleveland) é exemplar do seu processo como pintor literato individualista para quem o crescente simbolismo da pintura como que pedia o contraste dinâmico com a palavra poética. Essa figura do indivíduo solitário no meio da paisagem está presente em muitas das suas pinturas e até foi assim que ele fez o seu Auto-retrato supevisionando a plantação de pinheiros.

Um outro pintor, seu contemporâneo e da mesma região de Jiangnan, habitante da cidade de Yangzhou, também figurou esse sujeito sensível que da natureza recebe sinais de lentas ou delicadas mutações. Wang Shishen (1686-1759) faria uma rara pintura de um homem caminhando ao frio com um jarro de barro, que se presume cheio de neve para ser derretida e feita água, quem sabe se para o chá, aproximando-se da vedação de uma habitação coberta com um telhado de palha, a que chamou Pedindo água de neve (rolo vertical, tinta sobre papel, 91 x 26,8 cm, no Museu de Arte da Universidade de Princeton).

Wang Shishen, o pintor de Anhui que escolheu o nome artístico de Chaolin, «aninhado na floresta», ficaria conhecido pelas suas pinturas de ameixieiras. Um álbum de oito pinturas de Paisagens e flores no Metmuseum (tinta e cor sobre papel, 20,3 x 25,1 cm) será um modelo a mostrar a potenciais compradores a sua habilidade de pintor profissional na rica região comercial ao longo do Grande Canal. Mas noutras pinturas, como Flores de ameixieira, no Museu de Arte de Cleveland (rolo vertical, tinta sobre papel, 144,4 x 75,7 cm) descreve uma situação típica das actividades dos literatos: «

Em busca de flores de ameixieira com amigos,

Aproveitamos a frescura de um dia claro,

Sinto leves os meus sapatos pretos e as meias de algodão,

Que belos os bosques diante da porta deste antigo templo,

Caminho para a frente e para trás,

como se habitasse numa pintura.

Noutro poema diz:

O distinto badalar de um sino

rompe o silêncio nas montanhas,

Mil anos depois todos os heróis

das Seis dinastias estão esquecidos,

Sob uma janela budista

apreciamos os dias ociosos,

Ramos e flores de ameixieira

guardam para si todo o vento Leste.

18 Out 2023

Confúcio na cultura portuguesa – 4

Por António Aresta

(continuação do número anterior)

III

Em Portugal, o Visconde de Villa-Moura (1877-1935), publica na revista “A Águia”, propriedade e órgão da Renascença Portuguesa1, no Nº 99\100, de Março-Abril de 1920, o conto ‘O Boneco’2. A revista “A Águia” era uma importante publicação mensal de literatura, arte, ciência, filosofia e crítica social, dirigida por António Carneiro e Álvaro Pinto. Ora, esse conto, ‘O Boneco’ é, nada mais, nada menos do que Confúcio.

O Visconde de Villa-Moura, de seu nome completo, Bento de Oliveira Cardoso e Castro Guedes de Carvalho Lobo, nobilitado pelo Rei D. Carlos em 1900 com o título de Visconde, era formado em Direito pela Universidade de Coimbra, grande proprietário rural em Baião, no Douro, e autor de uma obra literária muito extensa e variada3 , esteticamente acondicionada no decadentismo e politicamente muito próximo do integralismo lusitano. João Alves4 , um dos seus primeiros estudiosos, defende que “António Nobre e Vila-Moura foram os criadores do decadentismo em Portugal”.

Por sua vez, António Cândido Franco refere que a “sua obra, quando exalta o erotismo e pugna pelo amor livre, apresenta afinidade com a de Teixeira Gomes e procura as suas fontes gradas em Fialho, no Fialho das perversões rebeldes, a quem de resto dedicou um livro-estudo, Fialho de Almeida (1917), e em Camilo, o Camilo do amor pecaminoso e dos amantes penitentes, a quem também dedicou vários trabalhos, entre eles, Camilo Inédito (1913) e Fany Owen e Camilo (1917)”5. Bem diferente é a crítica de Óscar Lopes6 que não esconde o seu ferrete ideológico, comunista, quando aponta as questões “esteticistas e fascistas” ou o “sentido monarco-fascista e católico integrista” que julga ter encontrado em alguns dos seus livros. Amigo e correspondente de Fernando Pessoa, a obra do Visconde de Villa-Moura está por descobrir, por estudar, quiçá por reeditar.

O conto de Villa-Moura, ‘O Boneco’, foi dedicado a António Cândido7, a águia do Marão, como lhe chamou Camilo Castelo Branco, e apresenta-nos a história de António Marcos, um burguês muito rico e misógino, que vivia com uma velha criada, Teresa, completamente isolado da mundanidade e que “estudava uma interpretação individualista do platonismo, que alterava num sentido mais aristocrático8”.

Em casa “mandava o espírito de Platão, de Aristóteles, de Séneca, de criaturas, em que a Teresa nem por fumos sonhava, e …. um boneco, um autêntico e precioso boneco, a figura de Confúcio, em fina porcelana9”. Com um remoque subtil aos colecionadores e a outros amantes da chinoiserie dizia que “a figura de Confúcio, que Marcos havia trazido de Saxe, e não directamente da China, era uma maravilha. Por ele tinha seguido pelo Elba até ao Báltico, para policiar o seu acondicionamento e jornada10”.

Afinal ‘O Boneco’, Confúcio, era um relógio falante : “o Dr. Kong falava, não já para expor aos seus três mil discípulos a súmula do Ta-hio, mas sobre a pressão dum botão disfarçado em flor à fímbria da túnica, para cantar, numa voz metálica, a característica e impressionante voz dos surdos, aquela legenda do fatídico relógio de Colónia : Todas as horas ferem, a derradeira mata !…11”. Percebe-se que o autor manifestava algum incómodo por se perorar com muita frequência sobre Confúcio e seus ensinamentos, sem ler as suas obras e os comentários dos seus discípulos, porque as repetições se assemelhavam a transgressões no limite das deturpações.

O relógio estava colocado numa estante e “arrumavam-se a seus pés, suas principais obras, o Ta-hio (Grande Estudo), o Tchung-yung (Fixidez do Meio) e o Lung-yu (Diálogos Morais) – flores exóticas da Filosofia, e que ali figuravam como outros tantos símbolos da alma recta e compungida do iluminado12”. Um dia, já muito doente, e sentindo a morte a aproximar-se, António Marcos chama a criada e manda queimar num braseiro todo o seu grande sistema filosófico, “uma interpretação individualista do platonismo, que alterava num sentido mais aristocrático”13, escrito em cadernos durante anos a fio, suspirando, “foi um passatempo!14”. A “Teresa, que andava como sonâmbula naquela tragédia da mais extravagante alquimia, em breve ateou fogo à papelada, que brilhava sobre os restos negros a espiguilha misteriosa e vermelha, logo morrente, da filosofia de António Marcos, e lhe levara uma vida a grafar”15.

Entrega à criada um documento assinado por si, conferindo-lhe a posse de ‘O Boneco’ : “por ele é teu o Chinês da sala grande ! É o melhor traste da casa! Nunca o vendas! E se algum dia sentires miséria, antes o partas! Chover-te-á dos seus cacos a abundância! 16”. Dito isto, morreu. Então, a velha Teresa, atormentada pela morte do patrão e apatetada pela insólita herança que lhe coube, “entrou na sala grande quase a correr, e sem dar conta da multidão de figuras, que , aquela hora, envoltas do fumo, pareciam igualmente partir, dirigiu-se ofegante, nervosamente agarrada à figura fria do Dr. Kong, para a camara torva do Morto.

Mas antes que chegasse junto do defunto, perto do qual pensara em pousá-lo, ao passar pela cruz de pau negro que, fronteira ao leito, se espalhava, a toda a altura da parede, embaraçou-se nas réguas do velho sinal, pelo que o pesado fardo lhe deslizou dos braços, desfazendo-se no chão, em cacos, por entre a chuva dos mais finos tinidos, à mistura do grito civilizado, amarelo, dalgumas centenas de esterlinas, que António Marcos havia confiado de suas entranhas para prover ao futuro da maquinal companheira de sempre17”.

O humor camiliano está presente neste desfecho inesperado, onde uma pequena fortuna em libras de ouro, guardada nas entranhas de ‘O Boneco’, parece pulverizar os remorsos da velha ética confuciana.

Esta exumação da dimensão sapiencial dos ensinamentos confucianos está em linha com uma modernidade pendurada num sistema de conceitos que mais tarde se irão alimentar de Marx, Nietzsche e Freud , na ressaca da erosão dos valores e dos poderes após o termo da primeira grande guerra.

IV

O Confúcio de Manuel da Silva Mendes e o Confúcio do Visconde de Villa-Moura, continuam a ser um e um só.

Silva Mendes valoriza a inquietação do pensador e a sinceridade dos combates que travou para colocar em prática as suas ideias, o ser contra o ter. Este idealismo , profundamente ligado a um devir emocional, constrói uma ética e uma moral de pensamento e acção, dentro de uma realidade inexoravelmente maior do que o alcance da individualidade. A liberdade é a grandiosa energia, a substância da vida em comunidade autêntica. Nas derivações históricas do confucionismo, a liberdade parece transformar-se numa espécie de exílio moral ou numa nota de rodapé da história dos povos.

O Visconde de Villa-Moura, preocupado com o excesso amplificante da razão confuciana, introduz um jogo irónico no pathos do seu auditório, misturando o vil metal, o ouro, com a angústia e a solidão existenciais, porque, reflecte de si para si, “nas letras, como afinal em tudo, os ignorantes têm em menos estima o feitio do que o peso. São para o Pensamento, para a Ideia, o que o ourives estúpido é para o oiro lavrado. Fiam da balança o que ninguém pode fiar deles, do seu juízo, naturalmente muito reduzido em poder de selecção, em critério de escolha18”.

Depois de ter lido O Mandarim, de Eça de Queiroz, encontrou na desconstrução de um símbolo da moda intelectual, Confúcio, o caminho para uma abordagem polissémica da consciência infeliz , de Hegel e de quase todo o idealismo alemão. É nesse referencial de melancolia que afirma19, “Eu leio Nietzsche como os estudantes de piano tocam escalas – por exercício”, terminando o conto sem devolver à velha criada o sentido da responsabilidade pela sua nova identidade. E é nesta incisão nietzcheana que se pode inscrever o seu erotismo misógino quando afirma, “amai o amor, não ameis exclusivamente alguém !”20 em contraponto com essa descrição com tantas estranhas referências : “a boca do Filósofo, de expressão fixa, fria como a boca da rocha, somente aberta ao fio branco e gelante da mais cristalina doutrina, jamais havia inspirado, em sua vida consciente, o perfume dum beijo ; ignorando, de igual sorte, a alma dos lírios, chagas olorosas da crosta terrena, mudável ao sabor das estações, tal qual a pele das cobras, que em seus infinitos ninhos, aquela abriga !”21.

Contudo, teremos de esperar vinte e três anos, por Agostinho da Silva que publica em 1943, uma breve e singela biografia, O Sábio Confúcio22, isto é, um Confúcio popular e acessível a todos , com uma cuidadosa aproximação a uma diferente espiritualidade.

Era o regresso do Confúcio do povo, com ideias simples e eufóricas no indefinível sagrado\profano das argumentações, disponível para ser aprisionado pela retórica negra do poder político.

ANEXO

Carta da Associação de Confúcio23

Aos Exmos. Srs. Directores em Ch’io-chao e Ch’un-chao

De há muito que a montanha da Barra (Má-chu-kók) era tida como um lugar célebre.

Os literatos compunham nela as suas odes e gravavam nas suas pedras, sem nunca isso lhes ser proibido por pessoa alguma.

Por exemplo, Sai-u, em Chit-kóng, Pak-fá-chao, em Uai-chao, e em todos os distritos, prefeituras e províncias que tenham lugares por pouco célebres que sejam, jamais se proibiu que pessoas fossem passear e disfrutar das paisagens desses lugares e gravar poesias nas suas pedras.

Isto são manifestações próprias de indivíduos de raça culta que, quando lhes vem inspiração, compõem as suas estrofes, deixando assim vestígios da sua passagem para os vindouros, e nunca ninguém lhes pôs qualquer embaraço.

Daqui se vê que em todo o mundo se procede do mesmo modo, mesmo nas regiões as mais afastadas.

Os sentimentos dos homens têm sido mesquinhos nestes últimos tempos mais próximos, resultando disso a depressão da doutrina mundial.

Se não procurarmos expandir a doutrina de Confúcio, não poderemos efectuar a regeneração da humanidade. É isso o que nos preocupa constantemente.

No ano cíclico Iam-sôt, a sede da Associação de Confúcio em Pekim, no intuito de expandir a doutrina de Confúcio, dirigiu uma carta à filial de Macau, convidando-a a que propagasse a mesma doutrina e gravasse uma lápide para esse fim, a fim de servir de recordação.

Em vista disso, reunimo-nos em sessão (cópia de cuja acta vai junta) e, considerando que a montanha da Barra (Má-chu-kók) é um dos sítios aprazíveis de Macau e onde existem blocos e pedra imponentes, cheios de inscrições poéticas, resolvemos, no ano passado, contratar operários para, num desses blocos, gravar as letras Ch’eong-meng-k’óng-kao (que a doutrina de Confúcio se torne resplandescente), esculpindo-se também neles, para servir de recordação, os motivos que nos levaram a fazer isso e os nomes dos promotores.

Esses trabalhos ficaram concluídos em dois meses.

O nosso fim único e exclusivo era ter um meio que fizesse constantemente lembrar a todos as doutrinas de Confúcio, tal qual o tambor e o sino servem para chamar a atenção dos seres viventes.

Além disso, Confúcio é o mestre arquissecular dos chineses, e o seu nome, mesmo na Europa, é venerado grandemente pelos literatos de fama.

Quando resolvemos mandar fazer a referida inscrição, não nos passou pela mente que havia de aparecer alguém que a fosse borrar. Não sabemos se esse acto foi feito com a vossa aprovação. No entanto, certos como estamos da vossa inteligência e cultura, não acreditamos, de maneira alguma que V. Exas. tivessem ordenado tal acto.

A crença nas religiões é do livre arbítrio de cada qual, conforme está decretado na constituição do País.

Não existe entre nós inimizade alguma.

Além disso, nenhuma outra religião hostiliza as doutrinas de Confúcio.

Ponhamos de parte o passado. Somos todos chineses e não devemos expor-nos ao ridículo dos estrangeiros.

O dia 18 do corrente é o 2402º aniversário do falecimento de Confúcio.

Com o fim de regularizar o nosso procedimento futuro, tencionamos restaurar a inscrição feita na pedra (da montanha da Barra) a fim de que a doutrina de Confúcio brilhe como o sol e a lua e possa incutir uma pequena parcela de rectidão no coração dos homens.

Sabendo perfeitamente que V. Exas. têm sempre muito a peito tudo o que se passa no mundo e que são modelos dos seus concidadãos, pedimos-lhes que nos auxiliem a proteger essa pedra, prestando assim culto à doutrina de Confúcio.

É-nos escusado chamar a atenção de V. Exas. , pessoas inteligentes e cultas, para o facto de que a nossa associação é uma corporação pública, constituída por todos os chineses aqui estabelecidos, e não uma corporação particular, formada apenas por dois ou três indivíduos.

É quanto temos a comunicar a V. Exas., rogando-lhes o favor duma resposta.

Desejamos-lhes saúde.

Acompanha esta uma cópia da acta da sessão.

Notas e referências:

(a.a.) Ch’oi-men-hin e Chiong-san-nông.

(selo) Filial da Associação de Confúcio de Macau.

9 da 4ª lua do ano 2475º do nascimento de Confúcio.

Idêntica carta foi enviada a cada uma das prefeituras de Ch’io-chao-Cheong-chao e Ch’un-chao.

Macau, Repartição do Expediente Sínico, 13 de Novembro de 1924.

Sobre a Renascença Portuguesa, ver Alfredo Ribeiro dos Santos, A Renascença Portuguesa : Um Movimento Cultural Portuense, prefácio de José Augusto Seabra, edição da Fundação Eng. António de Almeida, 1990, 285 pp. ; Paulo Samuel, A Renascença Portuguesa. Um Perfil Documental, ed. Fundação Eng. António de Almeida, 1990, 397 pp. .

Todas as referências a este conto remetem para a publicação na Revista ‘A Águia’.

Por exemplo : A Moral na Religião e na Arte, 1906 ; A Vida Mental Portuguesa : psicologia e arte, 1909 ; Vida Literária e Política, 1911 ; Nova Sapho, 1912 ; Doentes da Beleza, 1913 ; Camilo Inédito, 1913 ; Boémios, 1914 ; António Nobre : seu génio e sua obra, 1915 ; Fialho de Almeida, 1916 ; Grandes de Portugal, 1916 ; As Cinzas de Camilo, 1917 ; Pão Vermelho : sombras da grande guerra, 1924 ; Cristo de Alcácer, 1924 ; Irmã das Árvores, 1924 ; Entre Mortos, 1928 ; O Pintor António Carneiro, 1931 ; Novos Mitos, 1934.

“Vila-Moura e o Decadentismo Português”, in PRISMA, Revista Trimestral de Filosofia, Ciência e Arte, [direcção de Aarão de Lacerda], Nº 4, 1937, pp. 202-207.

“Visconde de Vila-Moura” , in Fernando Cabral Martins, coordenação, Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, Editorial Caminho, 2008, pp. 896-897.

Entre Fialho e Nemésio. Estudos de Literatura Portuguesa Contemporânea, Vol. I, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987, pp. 417-420.

António Cândido Ribeiro da Costa (1850-1922), natural de Amarante, formado em direito pela Universidade de Coimbra, grande orador, ministro, par do reino e presidente do parlamento. Integrou o célebre grupo dos ‘Vencidos da Vida’, com Eça de Queiroz, Guerra Junqueiro, Antero de Quental, entre outros. As suas obras principais são as seguintes : Princípios e Questões de Filosofia Política, 1878 ; Orações Fúnebres, 1880 ; Discursos e Conferências, 1890 ; Discursos Parlamentares, 1894.

A Águia, Nº 99\100, Abril e Maio de 1920, p, 79.

Idem, p. 82.

Idem, p. 83.

Idem, p. 84.

Idem, p. 84.

Idem, p. 79.

Idem, p. 87.

Idem, p. 87.

Idem, p. 87.

Idem, p. 88.

Vida Literária e Política, Porto, Magalhães & Moniz Editores, 1911, pp. 97-98.

“Flores de Vidro”, in Contemporânea, Revista Mensal, Ano III, Nº 10, Março de 1924, p. 11.

A Águia, Nº 99 e 100, Março e Abril de 1920, p. 80

Idem, p. 80.

Porto, Oficina de S. José, 1943, 29 pp.

Publicada pelo Padre Manuel Teixeira no Boletim Eclesiástico da Diocese de Macau [do qual era Director e Editor], Ano e Volume LXXVII, Janeiro-Fevereiro de 1979, Nº 888\889, pp. 106-108. O governador Gabriel Maurício Teixeira fez publicar no Boletim Oficial da Colónia de Macau, de 8 de Janeiro de 1942, a Portaria Nº 3327, a aprovação dos novos “Estatutos da Associação Confuciana de Macau”, completamente reformulados em relação aos anteriores, que eram de 1909.

17 Out 2023

Confúcio na cultura portuguesa – 3

Por António Aresta

(continuação do número anterior)

Em 1915 o professor Camilo Pessanha, poeta simbolista e sinólogo, profere uma conferência1 , em Macau, sobre a cultura chinesa e aborda inevitavelmente o legado de Confúcio deste modo : “Mas a verdade é que Foc-Sang salvando a obra de Confúcio, salvou, para transmitir à posteridade, todo o património intelectual do povo chinês. Confúcio foi principalmente um compilador. O conferente expôs, resumidamente, o objecto dos livros de Confúcio, um por um, mostrando como neles se encontram os antigos cantos, as antigas lendas, a velha história, as velhas leis, os velhos ritos e a velha moral do povo chinês.

A propósito do Livro das Transformações, anotado por Confúcio e já velho de mais de mil anos quando foi anotado, deu o conferente uma ideia da antiga concepção chinesa, dualista, do Universo, e dos dois símbolos pelos quais essa concepção é ordinariamente representada : o ma-li-u e os oito kua – de que o conferente fez o esboço no quadro preto e explicou o sentido. Concluindo esta parte da sua exposição, disse o conferente que da própria natureza da obra de Confúcio, do seu duplo carácter de enciclopédia e de monumento étnico colectivo, resulta em grande parte o alto prestígio que ela tem disfrutado sempre, e continuará a disfrutar através dos séculos, entre o povo chinês.

É e continuará a ser o livro sagrado da China, porque nela o povo chinês encontra, na sua expressão mais adequada, mais alta e mais pura, o seu próprio pensamento e o seu próprio sentimento – a própria alma chinesa”. Por estas palavras se infere o seu continuado estudo da cultura e da filosofia chinesas, que três anos antes já tinha confidenciado ao seu amigo Carlos Amaro2 : “E qual outro poderia ser aqui senão estudar a língua chinesa, os costumes chineses, a arte chinesa ? A solidão intelectual e moral nestes meios é absoluta”.

Abrindo um parêntesis para mostrar o atraso da nossa historiografia filosófica. Perto do fim dos anos trinta M. Gonçalves da Costa3 publica um estudo pioneiro em língua portuguesa sobre a filosofia chinesa antiga, lamentando “o ostracismo a que nas escolas do Ocidente se votavam as ricas fontes da sabedoria Oriental, procedendo-se como se a investigação filosófica se esgotasse nos sistemas gregos e seus comentadores escolásticos católicos”4. O autor considera Confúcio como o “mestre que se tem de ouvir para que a China volte à sua tradição e ao seu significado no mundo”5.

Mas, o confucionismo possui uma significação flutuante, vaga e imprecisa6, ora como sistema religioso, ora como padrão ético, num percurso paralelo que se confunde. Sebastião Rodolfo Dalgado7 nota que o “confucianismo é o nome que os europeus dão à religião ou, antes, ao naturalismo ético, estabelecido na China por Confúcio, Kung-fu-tze, no século VI antes de Cristo”. Essa ambiguidade, longe de se filiar numa ética da virtude, pode ser colocada ao serviço de poderosos argumentos conflituantes com as liberdades e com o sistema político de governação. Simon Leys8, que é o pseudónimo do sinólogo Pierre Rickmans, marcou o ponto fulcral dessa ambiguidade : “Com efeito, o confucionismo de Estado deformou o pensamento do Mestre para o adequar às necessidades do Príncipe ; nesta ortodoxia oficial, faz-se um uso selectivo de todas as suas afirmações que prescrevem o respeito das autoridades, ao passo que outras noções, não menos essenciais mas potencialmente subversivas, são largamente escamoteadas – é o caso da obrigação de justiça que deve moderar o exercício do poder e, sobretudo, do dever moral dos intelectuais de criticar os erros do soberano e de se oporem aos seus abusos, mesmo à custa da própria vida. Como consequência destas manipulações ideológicas, o nome de Confúcio acabou por se ver estreitamente associado ao exercício milenar da tirania feudal. No século XX, para a elite progressista, a sua doutrina tornou-se sinónimo de obscurantismo e de opressão”. Também Bertrand Russell9 no seu já clássico The Problem of China, apontava alguns desvios à antiga pureza doutrinária.

E durante a revolução cultural maoísta, outro dos extremos do totalitarismo ideológico, escreve Henry Kissinger10, os “estudantes universitários e professores revolucionários de Beijing desceram à aldeia natal de Confúcio, jurando pôr termo à influência do velho sábio na sociedade chinesa de uma vez por todas queimando livros antigos, esmagando placas comemorativas e arrasando os túmulos de Confúcio e dos seus descendentes”. Ana Cristina Alves11, sinóloga portuguesa contemporânea, actualiza essas perspectivas, advertindo que “o confucionismo perdeu força na China durante o século XX, com a implantação das primeira (1912) e segunda repúblicas (1949). Actualmente está de regresso à casa-mãe e veio incorporado no Socialismo Espiritual dos novos tempos reformistas”.

A contribuição do génio romanesco de Agustina Bessa-Luís proporciona-nos esta síntese admirável em A Quinta-Essência12 : “Ricci não podia ficar indiferente ao pensamento de Confúcio, um agnóstico desprendido de toda a metafísica, criador duma moral fundada na natureza do homem sem os recursos do mistério. Isto devia confundir Ricci, para quem as práticas religiosas pertencem ao lado secreto da mesma natureza humana.

Possivelmente há muito de verdade na aproximação jesuíta do Cristo e de Confúcio, patente na fachada da igreja de S. Paulo. Não foi um simples discurso habilidoso, mas alguma coisa mais séria. Kongzi, o Confúcio dos padres da Companhia, ensinava quatro coisas : a moral, as letras, a lealdade e a boa fé. Ele furtava-se ao erotismo que, no seu tempo, desfrutava dum prestígio poético que lhe conferia qualidade recreativa e encantadora. Era uma tertúlia de mestre e discípulos em que tanto um como os outros interrogam e respondem. A dialéctica da teoria e da praxis foi introduzida por Confúcio antes de Marx a ter introduzido como ideia nova. A técnica do mestre baseava-se na polidez, ou nos ritos ; a civilização chinesa resultou desse enorme quadro de maneiras a que Ricci acabou por anuir”.

Claro que os extremos se conciliam, como notava Benjamim Videira Pires SJ13 que também escreveu um interessante artigo, “A Face Oriental de Cristo”14 , onde observa que a “esperança que Confúcio pôs na bondade da natureza humana, encontramo-la cumprida no Deus que assumiu essa natureza humana e nos anunciou a paz como o bem essencial desta vida”.

Mas, fiquemo-nos apenas pelos anos vinte do século passado, com dois autores ainda pouco conhecidos, um em Macau, Manuel da Silva Mendes, e o outro em Portugal, o Visconde de Villa-Moura, que se debruçaram sobre a vida e o legado de Confúcio. De modos bem diferentes, é claro.

II

Em Macau, Manuel da Silva Mendes (1867-1931)15, um dos representantes mais notáveis da intelligentzia portuguesa, professor, jurista e sinólogo cujos interesses intelectuais se centravam no taoísmo filosófico e na estética , tinha uma visão larga dos problemas, “a vida, para ser vida, tem de ser activa, contrariada, inquieta, difícil, penosa, agra mais tempo do que doce, fértil em surpresas, encaminhada a um ideal de irrealização certa. Quietismo, neste mundo sub-lunar, é biologicamente falando, como dizia o outro, sonolência, não te rales, deixa correr o marfim ; moralmente, é resolução covarde de viver”16. Esta ressonância heideggeriana da vida inautêntica parece ser um caminho problemático ao conflituar com as possibilidades da liberdade, que no limite se posiciona como um ataque à formação do ethos.

Publicou no jornal ‘O Macaense’, de 10 de Outubro de 1920, um pequeno artigo sobre ‘Confúcio’17, sintético mas de grande densidade especulativa e cultural. Adverte-nos Manuel da Silva Mendes, “não se leiam, porém, as obras do Sábio sem suficiente preparação”18. Porquê, perguntará o leitor curioso. Exactamente porque, “os tempos são tão recuados, tão diferentes das antigas as modernas linhas do pensamento, os antigos costumes e instituições estão tão longe dos modernos, é tudo tão diferente hoje do que era sob as antigas dinastias chinesas, que correm risco, sem que o leitor saiba transportar-se em mente a tão distantes tempos, os seus escritos de ficarem incompreendidos. Foi por isto que o Sábio, na Europa, durante séculos passou por ser meramente fundador de uma religião, a que se chamou confucionismo ; religião que todavia, qua tali na China nunca existiu nem Confúcio jamais pregou”19.

Na opinião de Manuel da Silva Mendes, o segredo da longevidade do legado de Confúcio, registado e difundido pelos seus discípulos, residiu na simplicidade contida neste pormenor : “ora, quanto os antigos sábios chineses ensinaram, pela mudança dos tempos, dos costumes, das instituições, se foi perdendo ou tornando obsoleto e seus nomes no olvido pouco a pouco foram caindo : só o de Confúcio, porque falou do coração humano, dos mais lídimos sentimentos da alma humana, daquilo que na Natureza não tem poder os séculos de alterar, ficou. E ficará ”20. Manuel da Silva Mendes captou muito bem a essência21 da ética e da moral confucianas, mas afastou-se de uma praxis que subalternizava as liberdades.

(continua)

Notas e referências

Transcrita inicialmente no jornal O Progresso, 21.03.1915. Reproduzida em Monsenhor Manuel Teixeira, Liceu de Macau, ed. Direcção dos Serviços de Educação, Macau, 3ª edição, 1986, p. 389.

Carta enviada de Macau em 21 de Setembro de 1912, em Daniel Pires, Camilo Pessanha : Correspondência, dedicatórias e outros textos, ed. Biblioteca Nacional de Portugal\Editora Unicamp, Lisboa\Campinas, 2012, p. 186.

Filosofia Chinesa Antiga : da ética à metafísica, edição do autor, 51 pp. , 1980. Este estudo data de 1937 e foi apresentado no Instituto Beato Miguel de Carvalho como tese de licenciatura em Filosofia, tendo sido publicado na Revista Brotéria em 1939. O autor refere a amizade com Domingos Tang e o auxílio deste para elucidar algumas dúvidas. Sobre Domingos Tang, ver, Os Insondáveis Caminhos de Deus. Memórias de D. Domingos Tang SJ, Arcebispo de Cantão, 1951-1981 , Editorial A.O., Braga, 1990.

Idem, p. 5.

Idem, p. 11.

Mesmo nas línguas estrangeiras : Dicionário da Língua Galega de Isaac Alonso Estravís, Sotelo Blanco Edicións, 1995, p. 390 ; Dizionario Italiano Sabatini Coletti, Giunti, 1997, p. 557 ; Le Grand Robert de la Langue Française, Le Robert, Paris, 1992, Tome II, p. 816 ; The Oxford English Dictionary, Clarendon Press, Oxford, 1998, Vol. III, p. 719 ; The Collins Concise Dictionary of the English Language, Collins, 1989, p. 235 ; Diccionario de la Lengua Española, Real Academia Española, 1984, Tomo I, p. 358 ; Enciclopedia del Idioma de Martín Alonso, Aguilar, Madrid, 1958, Tomo I, p. 1175. Uma excepção, pode ser encontrada em Grand Usuel Larousse, Larousse-Bordas, 1997, Vol. 2, p. 1706.

Glossário Luso-Asiático, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1919, vol. I, p. 303.

Ensaios sobre a China, Livros Cotovia, 2005, p. 248.

“Apart from filial piety, confucianism was, in practice, mainly a code of civilized behavior, degenerating at times into an etiquette book”, London, George Allen & Unwin Ltd, 1922, p. 43

Da China, Quetzal Editores, 2011, pp. 216-217.

A Sabedoria Chinesa, Casa das Letras, 2005, p. 23.

Lisboa, Guimarães Editores, 1999, p. 347.

Os Extremos Conciliam-se (transculturação em Macau), Instituto Cultural de Macau, 1988.

O Clarim, Ano XXV, Nº 33, 24.08.1972.

A mais recente e completa edição da Obra Completa de Manuel da Silva Mendes : Manuel da Silva Mendes : Memória e Pensamento, organização de António Aresta e Rogério Beltrão Coelho,

Edição Livros do Oriente, 3 volumes [570 pp. + 539 pp. + 519 pp.], 2017\2018.

Sobre o autor, ver António Aresta, “Manuel da Silva Mendes : um intelectual português em Macau”, in Manuel da Silva Mendes : Memória e Pensamento, Vol. I , 2017, pp. 41-112 ; Amadeu Gonçalves, “Manuel da Silva Mendes : Entre Vila Nova de Famalicão e Macau”, idem, pp. 15-39 ; Tiago Quadros, “Do charme discreto do habitar. A Vila Primavera, locus amoenus de Manuel da Silva Mendes”, idem, pp. 113-121 ; Ana Cristina Alves, “O Tao de Manuel da Silva Mendes : do Tao Político ao Tao Poético”, in Manuel da Silva Mendes : Memória e Pensamento, Vol. II, 2018, pp. 21-34 ; António Graça de Abreu, “Manuel da Silva Mendes e Camilo Pessanha, a inimizade inteligente”, idem, pp. 49-60 ; Aureliano Barata, “Manuel da Silva Mendes : um olhar sobre Macau e o seu ensino”, idem, pp. 61-80 ; António Conceição Júnior, “O legado artístico de Manuel da Silva Mendes”, idem, pp. 83-100 ; Jorge Morbey, “Manuel da Silva Mendes, o homem e a sua circunstância”, in Manuel da Silva Mendes : Memória e Pensamento, Vol. III, 2018, pp. 15-21 ; Ana Cristina Alves, “Seis fotografias aéreas sobre a vida e obra de Silva Mendes”, idem, pp. 23-28 ; Maria dos Anjos da Silva Mendes, “Memória da Bisneta”, idem, pp. 31-44 ; Erasto Santos Cruz, “Excerptos de Filosofia Taoista & Questões de Tradução”, pp. 91-127 ; Carlos Botão Alves, “O Oriente na Literatura Portuguesa : Antero de Quental e Manuel da Silva Mendes”, idem, pp. 129-210 ; António Aresta, “Bibliografia de Manuel da Silva Mendes”, idem, pp. 489-499.

A Pátria, 27.07.1927. Republicado em Manuel da Silva Mendes : Memória e Pensamento, organização de António Aresta e Rogério Beltrão Coelho, Edição Livros do Oriente, 2018, Vol. III, pp. 330-331.

Utilizo a nova edição, Manuel da Silva Mendes : Memória e Pensamento, organização de António Aresta e Rogério Beltrão Coelho, Edição Livros do Oriente, 2017, Vol. I. , pp. 381-382.

Idem, p. 382.

Idem, p. 382.

Idem, p. 382.

Dentro desta abordagem, veja-se, Cheng-Tien-Hsi, China Moulded by Confucius. The chinese way in western light. Published under the áuspices of the London Institute of World Affairs, London, Stevens & Sons Limited, 1947 ; Guy S. Alitto, The Last Confucian : Liang Shu-ming and the Chinese dilemma of modernity, Berkeley, University of California Press, 1979.

16 Out 2023

Confúcio e a cultura portuguesa 2

Por António Aresta

(continuação do número anterior)

Em 1762 Confúcio é um dos temas principais no “Diálogo entre um Teólogo, um Filósofo, um Ermitão e um Soldado”1, que discorrem cordata e pedagogicamente sobre a moral, a geografia política e as ideias religiosas. O que se poderia aprender sem um rasgo de polémica , sem qualquer ousadia interrogativa ou afrontamento ideológico ?

Um livro popular, reconfortante para uma vida reflexiva simples e benevolente, era justamente a Vida y Pensamientos Morales de Confucio2 que desde 1802 conhecerá larga difusão nos meios cultos e esclarecidos portugueses, encontrando-se nas livrarias conventuais e nas bibliotecas dos Seminários. O estudo filosófico e pedagógico da moral3, da formação moral, foi uma preocupação constante nas escolas e no ensino particular e doméstico.

José Ignacio de Andrade é um importante orientalista português do século XIX, hoje injustamente esquecido, e um grande divulgador das ideias de Confúcio. O seu livro, publicado em dois volumes, Cartas Escriptas da Índia e da China nos Annos de 1815 a 1835 por José Ignacio de Andrade a sua Mulher D. Maria Gertrudes de Andrade4, abre justamente com uma epístola de Francisco Martins Barros, professor de língua latina no Colégio de Nossa Senhora da Conceição :

“………………..

De CONFÚCIO, philosopho sublime

Mostras os dogmas, e a doutrina mostras,

Que tantos evos tem regido a China.

O vício não desculpas, se elle surge,

Qual entre o flavo trigo e o joio inútil,

Lá mesmo n’esse Império, que elogias.”5

Outro amigo de José Ignacio de Andrade, P. F. O. Figueiredo, insere este soneto :

“ Confúcio douto, que a moral ensina

A reis, e a povos com saber profundo,

Se hoje surgisse do sepulchro fundo,

E lesse o que has escripto sobre a China ;

Se visse como o genio teu combina,

Em philosopho, quanto abrange o mundo ;

Em ti notara com prazer jucundo

Um discípulo da sua alta doutrina !”6

As ideias e os princípios morais e políticos de Confúcio estão omnipresentes e na “Carta L” José Ignacio de Andrade faz a difusão extensiva de umas dezenas de máximas, sem esquecer o pensamento de Mêncio. E a reflexão que faz é premonitória : “A nação chinesa, para suprir as instituições liberais, hoje em voga na Europa, tem os livros sagrados, respeitados como lei fundamental do estado : acham-se neles artigos mais vigorosos contra o despotismo, do que nas instituições mais democráticas da Europa e América ; todavia, sucede na China o mesmo, que em outra qualquer parte : se o que empunha o ceptro do poder é do temperamento de Nero, só resta a opção dolorosa de morrer, ou matá-lo”7. Até onde terão chegado estas ideias de José Ignacio de Andrade ?

Folheando “O Panorama. Jornal Litterario e Instructivo da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis”, de 12 de Maio de 1838, podemos observar uma gravura, ‘A Criminosa Perante o Mandarim’, a encimar um artigo sobre a administração da justiça no Celeste Império. Aí , o façanhudo mandarim prelecionava sob a égide de Confúcio. Nessa mesma publicação8 foi publicada a novela “O Feitor de Cantão”, cuja leitura é muito agradável e informativa. E, abrindo a popular “Encyclopedia das Famílias. Revista de Educação e Recreio”, no Nº 999, de 1895, deparamos com uma sintética definição do confucionismo enquanto religião : “ é um naturalismo, adoração de forças physicas, de caracter moral, tendo por base a benevolência ; como regra, modelar o presente e o futuro no pretérito e a veneração pelos antepassados. Confúcio foi o seu fundador e teve por principal apóstolo o philosopho Mêncio. Domina entre os chineses”. Detectamos também a presença dos ensinamentos de Confúcio nas áreas mais díspares, desde a história de A Mulher Através dos Séculos, de Marques Gomes, publicada em 1878, até à dissertação inaugural apresentada , em 1901, à Escola Médico-Cirúrgica do Porto, sob o título, O Suicídio Livre em Face da Religião, da Moral e da Sociedade, assinada por José Ferreira Viegas. Júlio Verne, com o popular romance As Atribulações de um Chinês na China10, publicado em 1879, contribuiu para o adensar do fascínio pela milenar civilização chinesa. No ano seguinte, em 1880, aparece O Mandarim , de Eça de Queiroz, cujo personagem reflecte em voz alta, “eu não compreendia a língua, nem os costumes, nem os ritos, nem as leis, nem os sábios daquela raça”11, sintetizando assim grotescamente a ignorância nacional, não obstante a nota de fina ironia, “sou bacharel formado ; portanto na China, como em Coimbra, sou um letrado !”12.

O antigo cônsul de Espanha em Macau, Enrique Gaspar y Rimbau, publica em 1887 o pioneiro romance de ficção científica El Anacronópete. Viaje a China – Metempsicosis13 , revestindo-se de especial interesse uma carta14 enviada de Macau, em 30 de Abril de 1879, onde discorre sobre o pensamento de Confúcio e de Mêncio, no contexto dos exames imperiais que conferiam a dignidade mandarínica.

Confúcio é, ainda, um nome popular e prestigiado, nas escolas e nos meios mais cultos da sociedade, tido como uma fonte de sabedoria e um símbolo da virtude. Por exemplo, Duarte Leite (1864-1950), professor, diplomata e político, iniciou-se na Maçonaria em 1892, na loja maçónica ‘União Latina’, no Porto, sob o nome simbólico de ‘Confúcio’15.

Historicamente tem sido recorrente a tentação de conciliar ou acentuar as convergências entre o cristianismo e o confucionismo, no quadro geral dos sistemas religiosos. Oliveira Martins na sua esforçada erudição16 também se debruçou sobre a moral confuciana : “Na China a reforma de Confúcio, fazendo abortar a evolução ulterior dessa mitologia pela pregação de uma moral extraída prematuramente do animismo primitivo, condenou a religião a um estado de precocidade caduca e à esterilidade consequente. Uma moral frequentemente digna do aplauso da sabedoria mais pura, veio assentar sobre uma concepção realisticamente selvagem do mundo ulterior. Dotado, pois, com uma moral prática civilizada, o chinês manteve uma mitologia primitiva, mostrando assim na esfera religiosa esse aspecto duplo de velhice e de infância, visível por tantos outros lados nas civilizações do extremo Oriente”. Em 1887, o reverendo John Ross17 lançou de novo uma vigorosa e sedutora campanha de harmonização de ideias e de princípios entre o cristianismo e o confucionismo, que parece ter sido muito bem sucedida. No Ocidente, o cristianismo parece ter absorvido e melhorado algumas ideias axiomáticas caras ao confucionismo, tais como a bondade, a amizade, a caridade, a hospitalidade ou a piedade, esvaziando e apagando o contexto ontológico original que poderia estar mais focado no refinamento, na conduta, na lealdade e na confiança. Sampaio Bruno publica O Brasil Mental em 1898 advertindo para um pormenor que parecia escapar aos mais atentos : “A religião positivista é, pois, exactamente como, na China, a doutrina religiosa de Kong-fu-tse (mestre Kong, Confúcio). É um naturalismo ético enxertado na religião política de Saint-Simon ; como ali se funda na dos Tchow, entendendo por isto, com Tièle, a ordem de coisas estabelecida, verosimilmente, pelo príncipe Tchow-Kong, assaz diferenciada do culto popular antigo. Consoante aqui, diversa da metafísica cristã (idealista, do tipo alexandrino) e só aceitando, não a dogmática, porém a disciplina católica”18.

Tem passado completamente despercebido o romance O Lobo da Madragoa19 publicado por Alberto Pimentel em 1904, onde se dá conta das venturas e desventuras de uma chinesa de Cantão em Portugal, cujo comportamento divergia dos padrões traçados pela moral confuciana. Em 1909 José da Costa Nunes, futuro Bispo de Macau, Arcebispo de Goa e Cardeal, publicará 24 Cartas da China20, onde entre outros assuntos, disseca com profundidade os pressupostos teóricos do confucionismo. Essa designação ‘Cartas da China’ estava em voga. José Gomes da Silva, médico e naturalista que deixou obra em Macau, também escreveu as suas Cartas da China no jornal ‘O Comércio do Porto’21, contemporâneas das Cartas do Japão assinadas por Wenceslau de Moraes. E é numa das suas Cartas do Japão que Wenceslau de Moraes analisa com invulgar argúcia o legado de Confúcio : “A moral de Confúcio, toda ela bonomia e singeleza, incompatível com a guerra, com a luta, poderia talvez ter feito a felicidade de toda a China em peso ; mas, para tanto, seria forçoso admitir o absurdo ou o impossível, isto é, ou que a China fosse o Mundo inteiro, ou que ela pudesse manter-se eternamente isolada dos outros povos. Confúcio não considerou os outros países, julgou-os insignificantes, acreditou no eterno isolamento da sua enorme pátria. E não teve o pressentimento, vago embora (mas quem há vinte e quatro séculos o tivera ?…), das estupendas energias de certas forças naturais – o vapor, a electricidade, a resistência do metal … – e da capacidade inventiva e irrequieta dos cérebros do Ocidente. Dormia a China ; ou pelo menos, deliciava-se na contemplação da Natureza ; nas artes e nas letras ; enquanto que as outras nações progrediam em ciência, armavam-se e mais tarde viriam afronta-la”22.

(continua)

Joaquim de Santa Rita, Academia dos Humildes e Ignorantes, Conferência XXVII, Tomo IV, Lisboa, 1762, Na Officina de Ignacio Nogueira Xistro, p. 212.

Traducidos del francês al castellano por D. Enrique Ataide y Portugal, Oficina de Aznar, Madrid, 1802.

Coleção e Escolha de Bons Ditos e Pensamentos Moraes, Politicos e Graciozos. Escriptos por *** . Lisboa, Na Officina de Francisco Borges de Souza, Anno MDCCLXXIX, 471 pp. ; Lições de Boa Moral, de Virtude e de Urbanidade. Compostas no idioma hespanhol por D. José de Urcullu e traduzidas para o portuguez da 3ª edição de Londres de 1828 por Francisco Freire de Carvalho, Lisboa, 3ª edição, Typographia Rollandiana, 1854, 246 pp. Com especial interesse para a moral confuciana, pp. 45-48 ; Outra obra importante : Pensées Morales de Confucius, recueillies et traduites du latin par M. Levesque, Paris, MDCCLXXXIII. Para além da introdução (pp. 7-62) são apresentados 230 pensamentos morais (pp. 63-175).

Lisboa, Imprensa Nacional, 1843. Conhecerá uma segunda edição em 1847. Esta obra foi reeditada sob o título Cartas Escriptas da Índia e da China, 2 volumes, introdução de Artur Teodoro de Matos, Livros do Oriente, Macau, 1998.

Idem, p. 25.

Idem, p. 29.

Idem, p. 280.

O Panorama, Vol. IX, 1852, pp. 75-76, 86-88, 91-93, 98-100, 106-107, 119-120, 125-126 e 131-132. A novela não está assinada.

Página 213. A revista, era dirigida por João Romano Torres, abre com uma “Homenagem ao Genial Poeta João de Deus” e toda a colaboração não está assinada. Contudo, grande parte dessa colaboração poderá ser associada a Lucas Evangelista Torres e aos seus filhos João Romano, Manuel Lucas e Fernando Augusto.

A edição portuguesa sob a chancela da Livraria Bertrand, Lisboa, s\d, tradução de Manuel Maria de Mendonça Balsemão

O Mandarim, 3ª edição, Porto, Livraria Internacional de Ernesto Chardron, 1889, p. 152.

Idem, p. 90.

Biblioteca Arte y Letras, Barcelona, 1887. Escreve 11 ‘Cartas al Director de Las Provincias’, todas datadas de Macau, a primeira de 26 de Setembro de 1878 e a última de 8 de Dezembro de 1882.

Idem, pp. 269-282.

Pedro Magalhães, Duarte Leite (1864-1950), Edição do Município de Lousada, 2014, p. 22.

O Systema dos Mythos Religiosos, Lisboa, Livraria Bertrand, 1882, p. 71.

The Chinese Recorder and Missionary Journal, Nº 1, Vol. XVIII, January, 1887. No ensaio, “Our Attitude towards Confucianism”, (pp. 1-11), esforça-se por explicar “… to show that Confucianism from un enemy can be converted into a friend helpful to Christian teaching”, p. 10. Na contemporaneidade, será Henrique Rios dos Santos SJ, a trilhar esse caminho com O Rosário Com a Igreja da China, edição da Fundação AIS\Apostolado da Oração, 2008, 127 pp. Seleccionou 35 Pensamentos de Confúcio, dizendo : “Oferecemos um pensamento de Confúcio (Kong Fu Zi) para cada mistério também, como um modo de dar a conhecer as pontes que se podem estabelecer entre a tradicional cultura chinesa e o cristianismo”, p. 6.

O Brasil Mental, prefácio de António Telmo, Lello Editores, 1997, p. 155.

Parceria António Maria Pereira, Lisboa, 1904.

Publicadas por Tomás Bettencourt Cardoso sob o título Cartas da China, edição da Fundação Macau, 1999.

Este diário matutino da cidade do Porto publicava nas primeiras páginas, por exemplo em 1905, as Cartas : de África, da Alemanha, do Paraguai, da Índia, do Japão, da Andaluzia, do Brasil, da Inglaterra, de Itália, dos Açores, de França, de Cabo Verde, de Espanha, etc. Sempre assinadas por correspondentes portugueses locais.

Wenceslau de Moraes, Antologia, Selecção de Textos e Introdução de Armando Martins Janeira, Prefácio de Daniel Pires, Veja, 2ª edição, 1993, p. 401.

13 Out 2023

Confúcio na cultura portuguesa – Subsídios para o seu estudo

Por António Aresta

Estudar sem reflectir é inútil, reflectir sem estudar é perigoso – Confúcio

[“Ditos de Confúcio”, tradução de Daniel Carlier, edição Jornal Tribuna de Macau, 2008]

I

A sabedoria e a ética prática de Confúcio, considerado como o sábio dos sábios, estão presentes na cultura portuguesa, com uma insuspeitada transversalidade, sobretudo desde os alvores do século XVII, entradas pela mão dos jesuítas.

A sinologia portuguesa e a sinologia de língua portuguesa , enquanto alargado corpus de conhecimento, não dispõem de um roteiro bibliográfico e historiográfico minimamente actualizado, o que não é muito compreensível se tivermos em conta a sua secular antiguidade. O caso de Confúcio é paradigmático, como se observará nesta breve introdução. Mas é apenas no século XIX que a imprensa periódica, os almanaques, as enciclopédias, os dicionários, os livros escolares ou outras obras de cultura geral espalham urbi et orbi concisos aforismos, um sugestivo cerimonial parenético ou suculentas máximas do pensador chinês, sobre quase todos os assuntos que tocavam a vida humana ou a governança da sociedade e os seus inimigos.

Suspeita-se, por vezes, que tudo quanto é atribuído a Confúcio não seja realmente da sua lavra. A analogia com Sócrates , sobretudo com o Sócrates platónico estará sempre presente. Julgo que valeria a pena seguir o rasto da influência das suas ideias e dos seus ensinamentos, isto é, a recepção de Confúcio em Portugal, que continua por fazer, incluindo o inventário da multiplicidade das edições das obras9 firmadas pela multidão dos seus discípulos.

Pela literatura de viagens, mas não só, ecoa uma ressonância dos seus pensamentos, de permeio com o fascínio pelo mistério sobre tudo quanto seja oriundo da grande China, que vamos encontrar, por exemplo, em “Algumas Coisas Sabidas da China”, provavelmente de 1562, da autoria de Galiote Pereira, no “Tratado em que se contam muito por extenso as Cousas da China” de Frei Gaspar da Cruz, de 1569 ou na “Relação da Grande Monarquia da China” do jesuíta Álvaro Semedo, escrita em 1637. Sem esquecer Tomé Pires ou Fernão Mendes Pinto.

Mas, serão mesmo outras narrativas a terem o monopólio da atenção do público generalista11, sempre atento ao pormenor e às grandes sínteses culturais sobre o extremo oriente e em particular sobre a China. Para as elites, Confúcio chegava em latim mas as polémicas eram servidas na língua francesa.

Não é piedoso esconder a fragilidade do pensamento português nesta área particular. Nas querelas entre as ordens religiosas, evidenciam-se conhecimentos e informações muito interessantes e actualizadas : “Os Letrados da China, que são das suas pessoas mais nobres e estimadas, se ajuntam todos os anos nos Equinócios da Primavera e Outono, em uma Aula, que chamam Miao, dedicada ao mesmo Confúcio…”.

Até os textos doutrinários faziam questão de evocar os feitos findos, no oriente longínquo, como se pode ler no comunicado aos portugueses, de 24 de Agosto de 1820, difundido pela Junta Provisional do Governo Supremo do Reino : “…espalhando pela Europa, espantada e invejosa, as preciosidades do Oriente e as riquezas de ambos os mundos”.

Quarenta anos depois, em 1860, na Apreciação Philosophica dos Descobrimentos Portugueses18, João Félix Pereira traça um severo juízo de valor associando “a mais torpe imoralidade” e a “sede do ouro” como as causas directas para a queda do “império oriental”.

(continua)

Referências bibliográficas e notas

António Aresta, “Confúcio”, Jornal Tribuna de Macau, 22.11.2017.

Em diferentes momentos, tenho procurado fazer uma sistematização da história da sinologia portuguesa : António Aresta, “Os Estudos Sínicos no Panorama da História da Educação em Portugal”, Revista Administração,Nº 38, Vol. X, 1997, pp. 1045-1069 .Como esta publicação é bilingue, a tradução chinesa está nas páginas 1177-1192 ; António Aresta, “A Sinologia Portuguesa, um esboço breve”, RC-Revista de Cultura [Instituto Cultural de Macau], Nº 32, II Série, 1997, pp. 9-18. Este estudo foi traduzido para chinês e para inglês, nas respectivas versões da RC-Revista de Cultura ; António Aresta, “A Sinologia”, in Adalberto Dias de Carvalho (coord.), Dicionário de Filosofia da Educação, Porto Editora, 2006, pp. 347-348 ; António Aresta, “Sinologia Portuguesa : Caminhos e Veredas”, in Miguel Castelo-Branco (coord.), Portugal-China . 500 anos, ed. Biblioteca Nacional de Portugal\Babel, Lisboa 2014, pp. 275-279 .

Para o caso de Macau, veja-se, Padre Manuel Teixeira, A Imprensa Portuguesa no Extremo Oriente, ed. Notícias de Macau, 1965, 2ª edição, Instituto Cultural de Macau, 1999 ; Daniel Pires, Dicionário Cronológico da Imprensa Periódica de Macau do Século XIX (1822-1900), ed. Instituto Cultural do Governo da R.A.E.Macau, 2015. O Jornal de Bellas Artes ou Mnemósine Lusitana. Redacção Patriótica. O número XXIII, de 1816, contém abundante informação sobre Macau e a China. A Revista Popular. Semanário de Literatura, Sciencia e Industria, cuja Redacção era assegurada por Joaquim Fradesso da Silveira, José Maria Latino Coelho, Francisco Pereira de Almeida e Augusto Gonçalves Lima, publicou no Nº 12 \ 1849, o conto chinês “A Trança do Mandarim”, com evidentes ressonâncias confucianas. Na contemporaneidade, o jornal da Diocese de Macau, O Clarim, não perdia a oportunidade para marcar a sua posição doutrinária. Veja-se o interessante artigo de Tooshar Pandit, “Confúcio e Karl Marx frente a frente”, O Clarim , 14.02.1965.

Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro para 1857. Com 410 artigos e 106 gravuras, Lisboa, Typographia Universal, 1856, 391 pp..

Na Encyclopedia Portugueza Illustrada, editada por Lemos & Cª, Successor, Porto, 1900-1909, publicada sob a direcção de Maximiano Lemos, III volume, surge uma informação abrangente sobre Confúcio e o confucionismo, destacando-se a seguinte ideia : “Todo o seu systema repouza sobre os deveres recíprocos dos homens, classificados por elle em relações entre principe e vassalo, pae e filhos, e entre concidadãos. O respeito aos pais, antepassados, ao nome, é o fundamento da família, e estes mesmos princípios aplica elle ao governo”. O Museu Literário, Útil e Divertido, Nº 5, Lisboa, na Impressão Régia, 1833, traz uma “Notícia do Império da China, segundo os mais modernos conhecimentos obtidos na Europa”, pp. 132-135.

Os dicionários eram uma importante fonte difusora de cultura, em termos práticos, generalistas e simples. Mas, frequentemente, misturavam os conceitos. Sobre Confúcio e o confucionismo. No Novo Diccionario da Língua Portuguesa, de Eduardo de Faria, Typographia Lisbonense, Lisboa, 1851, 2ª edição, lemos que Confúcio “ensinou uma philosophia toda prática”. Mas no Diccionario Popular (histórico, geográfico, mythologico, biográfico, artístico, bibliográfico e litterario), dirigido por Manoel Pinheiro Chagas, Typographia do Diario Illustrado, 3º volume, Lisboa, 1878, encontramos uma informação com mais detalhe. Confúcio “fundou uma escola meio philosophica, meio política, à qual a China deve essa civilização estacionária que ainda hoje ali impera. Essa escola não tem metaphysica, ocupa-se exclusivamente de economia social e de moral. Muitos consideram Confúcio como legislador, não o foi, foi apenas um philosopho e um moralista, mas a legislação chinesa toda se deriva da escola e do ensino de Confúcio, e foi ele que lhe deu a sua originalidade e o seu caracter imóvel”.

A título de exemplo, João Felix Pereira, Compendio de Geographia, para uso da instrucção secundária, edição do autor, 10ª edição, Lisboa, 1877 : “O grande philosopho Confucius foi contemporaneo de Salomão : seos escritos encerrão verdades mais sublimes do que as da philosophia de Pythagoras, Socrates e Platão”. E continua : “Debaixo do ponto de vista moral, diz-se, que os chins possuem as virtudes e os vícios do escravo, do fabricante e do negociante : reina um systema de tyrannia e de opressão, desde o soberano até ao rústico. As várias classes de mandarins não são melhores do que escravos de graduação superior, os quaes, por sua vez, oprimem, cruelmente o povo”, pp. 245 e 247. Ainda outro exemplo : Alberto Pimentel, Album de Ensino Universal. Livro de Instrução Popular, Lisboa, Officina Typographica de J. A. de Matos, 1879. Nas páginas 177\178, encontramos esta informação : “Religião de Confúcio : consiste num panteísmo filosófico e tem por chefe o imperador da China. É a religião dos homens letrados da China, de Annam e do Japão”.

Historia Universal. Primeira Parte. História Antiga, escrita em Francez pelo Abbade Millot e traduzida em Vulgar por J. J. B., Professor no Real Collegio de Alcobaça, 2ª edição, correcta e aumentada, Tomo Primeiro, Lisboa, na Typographia Rollandiana, 1801, 383 pp.. Sobre a China, pp. 90-98. A Confúcio, para além de divulgar algumas máximas, apresenta esta síntese : “A sua Filosofia consistia menos na especulação, do que na prática ; razão porque deitou mais depressa Sábios, que Discursistas”, p. 97 ; Damião António de Lemos Faria e Castro, História Geral de Portugal e suas Conquistas, oferecida à Raínha Nossa Senhora D. Maria I, Lisboa, Na Typographia Rollandiana, Tomo XI, 1788. As informações sobre a China e sobre Confúcio, pp. 147-161.

Algumas traduções : Os Analectos, tradução de Maria de Fátima Tomás, Publicações Europa-América, 1982, 127 pp. ; Quadras de Lu e Relação Auxiliar, tradução e notas de Joaquim Guerra SJ, Edição Jesuítas Portugueses, Macau, 1981\1983, 5 volumes ; Quadrivolume de Confúcio, tradução e notas de Joaquim Guerra SJ, Edição Jesuítas Portugueses, Macau, 1990, 615 pp. ; Conversações, M. Gonçalves de Azevedo, Ed. Estampa, 1991, 196 pp. ; Ditos de Confúcio, tradução de Daniel J.L. Carlier, edição Jornal Tribuna de Macau, 2008, 119 pp. ; As Quatro Obras : Discurso e Diálogo ; Suprema Educação ; Meio Constante, tradução do chinês , introdução e notas de Luís Gonzaga Gomes, Macau, Imprensa Nacional, 1945, 248 pp.

Na edição contemporânea de 1994, anotada e traduzida do italiano por Luís Gonzaga Gomes, com prefácios de Maria Edith da Silva, António Rodrigues Júnior e António Aresta, coeditada pela Direcção dos Serviços de Educação e Juventude\Fundação Macau, esta referência a Confúcio é significativa: “Este homem caiu, a todos os respeitos, nos tempos subsequentes, em tanta graça e apreço dos chineses e tão grande crédito alcançaram os livros que compôs e os ditos e as sentenças por ele deixados, que não somente o tem por santo, mestre e doutor do reino com o que dele se cita é estimado como coisa sagrada, além de existir, em todas as cidades do reino, templos, públicos, onde é reverenciado, com muitas cerimónias em dias marcados e, nos anos dos exames, uma das principais cerimónias é irem os novos graduados todos juntos prestar-lhe reverência e reconhecê-lo por mestre”, p. 103.

Eduardo Fernandes (Esculapio), Dois Anos de Troça. Gazetilhas publicadas em O Século (94-95). Revistas pelo autor e prefaciadas por António Campos Júnior, Lisboa, Empreza da História de Portugal, 1900, pp. 102 e 103.

Fialho d’Almeida, Pasquinadas : Jornal d’um Vagabundo, Porto, Livraria Civilização, 1890, pp. 238-244 : “O sr. Coelho de Carvalho, que enviou da China a Cesário Verde o seu retrato de mandarim…”, com a explicação minuciosa das insígnias mandarínicas ; Alberto d’Oliveira, Pombos-Correios (Notas Quotidianas), Coimbra, França Amado Editor, 1913, p. 321 : “A nova China, ainda antes de nos mostrar que tem cabeça, anuncia-nos solenemente que já tem chapéu. Mudar de fato pareceu-lhe tão urgente como mudar de regímen”. Gomes Leal , A Morte do Rei Humberto e os Críticos do ‘Fim d’um Mundo’, Lisboa, Parceria António Maria Pereira, 1900, p. 17 : “A China, a remota pátria dos mandarins e das sedas magníficas, dos xarões raros, e das pedrarias fabulosas, como visões de ópio, não quer ceder nenhuma das suas prerrogativas, nem ceder mais território algum à cobiça do comércio europeu ?…Salafrários, chatins, safardanas, sarrafacais !… Desprezam, pois, estes letrados mariolas sábios, com uma teimosia revoltante de povos inferiores, habituados a uma hedionda rotina, herdada de Confúcio, toda a luz benéfica e imaterial dos povos civilizados do Ocidente, que tanto benefício levaram à velha Índia, que ela está hoje morrendo de fome, de peste, de anemia….e da alegria espiritual e ferruginosa da civilização !…. Não se pode ser mais bárbaro !…. Há enfim só uma frase : – é chinês !”.

Carlos José Caldeira, Apontamentos d’uma Viagem de Lisboa à China e da China a Lisboa, Lisboa, Typographia de Castro & Irmão, 1852\3 ; Gregório Ribeiro, De Macau a Fuchau. Cartas a J.M. Pereira Rodrigues, Lisboa, Typographia Universal, 1866 ; Conde de Arnoso, Jornadas pelo Mundo : em caminho de Pekim, Porto, Magalhães & Moniz, 1895 ; Adolfo Loureiro, No Oriente. De Nápoles à China, Lisboa, Imprensa Nacional, 1896\7 ; José Morais Palha, Esboço Crítico da Civilização Chinesa, Macau, Typographia Mercantil, 1912 ; Alberto de Carvalho, Reminiscências do Oriente : apontamentos de viagem, Lisboa, Tipografia da Cooperativa Militar, 1914.

CONFUCIUS sinarum Philosophus sive scientia sinensis latine exposita, Ludovici Magni, Pariis, MDCLXXXVII, 563 pp. ; Ad Virum Nobilem, de cultu CONFUCII Philosophi et Progenitorum apud Sinas, Antverpiae, MDCC, 57 pp. ; Vera Sinensium Sententia de tabela Confucio &progenitoribus inscripta, cum ulteriore expositione & informatione de factis sinensibus controversis secundum PP. Societatis Jesu adversus novam allegationem textum Sinicorum factam presertim extractatibus PP. FF. Dominici Navarrette & Francisci Varo Dominicanorum, Anno MDCC, 468 pp.

Apologie des Dominicains Missionnaires de la Chine ou Reponse au livre du Père Le Tellier jesuite, intitulé, Défense des Nouveaux Chrétiens ; Et à L’éclaircissement Du P. Le Gobien de la même Compagnie, Sur des honneurs que les chinois rendent à Confucius et aux Morts. Par un Religieux Docteur et Professeur de Theologie de L’Ordre de S. Dominique. Tome Premier. À Cologne. Chez Les Heritiers de Corneille d’Egmond, MDCC, 392 pp. ; Relation du voyage fait à la Chine sur le vaisseau l’Amphitrite, en l’année 1698. Par le sieur Gio Ghirardini, peintre italien. A monseigneur le duc de Nevers, MDCC, 237 pp. Esta obra termina com uma “Lettre du Roy de Portugal au Cardinal Barberin Protecteur de cette Couronne”, datada de Lisboa, em 1699. Surpreendente é esta obra , L’Espion Chinois ou L’Envoyé Secret de la Cour de Pékin pour Examiner L’État Présent de L’Europe. Traduit du chinois, A Cologne, MDCCLXXXIII, em seis volumes. Obra sem menção de autor. O sexto volume contem abundantes referências a Portugal.

Resposta Compulsória à Carta Exhortativa, para que se retrate o seu Author das Calumnias que proferio contra os Reverendissimos Padres da Companhia de Jesus da Provincia de Portugal. E lhe dedica Francisco de Pina e de Mello, Moço Fidalgo da Casa Real e Academico da Academia Real de Historia Portugueza, Monte mor o Velho, a 26 de Junho de 1755, p. 60. No ano seguinte, este mesmo autor publica o Triumpho da Religião. Poema Épico-Polémico que À Sua Santidade do Papa Benedicto XIV dedica Francisco de Pina e de Mello, Moço Fidalgo da Casa de Sua Magestade e Academico da Academia Real da Historia Portugueza, Coimbra, na Officina de Antonio Simoens Ferreyra, Impressor da Universidade, Anno de 1756, 426 pp.

Collecção Geral e Curiosa de Todos os Documentos Officiais e Historicos Publicados por Ocasião da Regeneração de Portugal, desde 24 de Agosto, Lisboa, Typographia Rollandiana, 1820.

Lisboa, 1860, Typ. de José da Costa, p. 60.

12 Out 2023

A Face Inescrutável de Meng Haoran e Wang Wei

Ding Gao (?-1761), o autor do tratado Xiezhen mijue, «A fórmula secreta para pintar retratos» tinha bem claro que o escrevia numa demonstração de xiao, «amor filial», não apenas como forma de estimar os seus antepassados mas também para servir de exemplo de comportamento moral a quem se quisesse dedicar à arte e à técnica dos retratos pintados.

Como ele explica no texto original escrito em 1766, com o título Chuanzhen xinling, «Compreensão da transmissão da verdadeira semelhança», foi o seu bisavô Ding Yuchen quem primeiro desenvolveu o interesse da pesquisa dos segredos da arte que depois foram transmitidos ao seu avô, e depois a seu pai e que ele mesmo transmite ao seu filho. O tratado só seria publicado pela primeira vez em 1818, pelo seu filho Ding Yicheng (1743-depois de 1823) que também acrescenta um apêndice, Xuxinling, com oito questões, e mostra como uma série de diferenças se foram esbatendo durante a dinastia Qing.

Entre a maneira de pintar os retratos dos vivos, comemorativos ou de dignitários, muitas vezes executados por autores famosos por vezes designados yintu, «pintura das sombras», ou os de familiares falecidos, feitos geralmente por autores anónimos, que celebravam a alma dos antepassados, também chamados fushen «representação da alma».

Mas também se tornava mais ambígua a distinção entre pintores literatos e profissionais. A linguagem utilizada pelos autores junta aspectos da fisionomia popular que via na face um espelho da ordem cósmica mas também se apropria do vocabulário erudito da pintura de paisagens. Como ao dividir o rosto em Cinco Montanhas – a testa, o queixo, o nariz, a maçã do rosto direita e a esquerda; e Cinco rios – as orelhas, os olhos, a boca e as narinas. Mas uma outra categoria, a de retratos imaginados, que possuíam o prestígio da tradição como o Retrato de Fu Sheng sentado no chão, descontraído (rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 25,4 x 44,7 cm, no Museu de Belas Artes de Osaka) atribuído a Wang Wei (701-761) adquiriram grande popularidade na dinastia Qing.

Shangguan Zhou (1665-1750), na obra Wanxiaotang huazhuan onde figurou heróis de Estado e da cultura ao longo da História, não terá tido dificuldade em utilizar as feições convencionais de homens corajosos que exibem um excesso de energia ou as clássicas formas de mulheres belas (meiren) em retratos de corpo inteiro, a três quartos, numa linha clara que os torna leves e facilmente reproduziveis.

Há, porém, no seu álbum, dois retratos de poetas que são um desafio à representação do rosto. Meng Haoran (689-91-740), o poeta que despertou preocupado com as pétalas que caíram durante a tempestade, é representado sentado, de tal modo envolto nas suas vestes que do seu rosto só são visíveis os olhos, o nariz e o bigode. Wang Wei está sentado, relaxado, a cabeça voltada, dela apenas se vê a nuca.

10 Out 2023

Seda (4) – Deusas e Festas: Viagem da seda de Leste para Sichuan

Preparamo-nos para sair do recinto do Festival das Flores do Bicho da Seda (蚕花节, CanHua jie) na aldeia Hanshan quando uma placa de madeira apresenta a história de Ma Tou Niang:

“Há muito tempo, em redor da montanha Han vivia a família Wu, cuja filha era muito bonita e ainda criança, o pai educara-a em muitas e diversas matérias, da escrita, com uma excelente caligrafia, à poesia e na arte de manejar a espada. Era uma promissora rapariga.

“Um dia antes do festival Qingming, o pai Wu (武) com o seu grupo partira para combater em XinShi (新市), mas foi capturado. A filha, muito preocupada, espalhou a notícia pelas redondezas a dizer casar-se com quem conseguisse trazer o pai de volta em segurança. Escutando tal, o seu cavalo branco saindo a galope foi libertá-lo, trazendo-o salvo. Quando o senhor Wu soube da promessa da filha e vendo com quem ela teria de casar, ficou muito triste por aquele destino. Então ocorreu-lhe a ideia de substituir a filha por uma outra rapariga, Xiaoqing, para casar com o cavalo. Este, zangado magoou Xiaoqing e o senhor Wu, que vendo o comportamento do cavalo, o matou. A filha, muito triste com os acontecimentos, suicidou-se, ficando o seu corpo num túmulo no cume da montanha Han. No ano seguinte, transformada num bicho-da-seda ofereceu o fio expelido da sua boca para as pessoas tecerem panos e se protegerem do frio. Os sericicultores, em forma de agradecimento, construíram um templo no topo da montanha onde oferecem sacrifícios à rapariga e ao cavalo branco”.

Assim, todos os anos, aquando da festividade do Qingming, as pessoas da área ligadas aos trabalhos de seda juntam-se no Templo Can Hua venerando Can Hua Niang Niang (蚕花娘娘). Trazendo um casulo atravessado num ramo, seguem monte acima para em frente à escultura da deusa, junto ao seu túmulo se ajoelharem a reverenciá-la. Com três vénias agradecem e colocam incenso, velas e oferendas em frente à imagem.

Despertos por este conto, associamo-lo ao encontrado no livro Chinesices de Luís Gonzaga Gomes a narrar a história ocorrida na parte Leste da China, em que uma jovem foi envolvida pela pele de um cavalo e nesse tapete voador transportada até ao Oeste da China e em Shu (hoje província de Sichuan) apareceu num amoreiral metamorfoseada na forma de bicho-da-seda. Saindo do Leste como Imperatriz do Bicho-da-seda, Can Hua Niang Niang (蚕花娘娘), veio em Sichuan a ser Ma Tou Niang (马头娘), Senhora do Bicho-da-Seda, cuja tradução é Senhora com Cabeça de Cavalo, onde já Can Cong, o primeiro antepassado dos Shu Antigos, estava deificado Qingyi shen (青衣神), Deus das Vestes Verde-azuis.

Essa viagem do bicho-da-seda da parte Leste da China para Oeste, até Shu (Sichuan) remete-nos para o Neolítico, período de unificação das tribos, iniciada por Huang Di (o Imperador Amarelo), cuja esposa foi Leizu (a Imperatriz da Seda) de quem teve dois filhos, o mais velho Shao Hao e Changyi, pai de Gaoyang, depois chamado Zhuanxu, o segundo dos cinco Ancestrais Imperadores.

SEDA NO NEOLÍTICO

Na China, no sexto milénio a.n.E. (antes da nossa Era), mais provavelmente entre o século LV e L a.n.E., começou-se a olhar para as lagartas a enrolarem-se nos casulos e nasceu a curiosidade de os desfiar, encontrando os filamentos de seda. Um pote desenterrado em 1973, na povoação neolítica de Hemudu, situada em Yuyao, na província de Zhejiang, tem gravado quatro bichos-da-seda representados a bambolear, dando indicações de se prepararem para iniciar a formação do casulo e percebe-se, pela diferença com os actuais, não terem ainda sido domesticados, segundo The Story of Silk de Liu Zhijuan, editora Foreign Languages Press, 2006.

A Cultura Hemudu (5000-3300 a.n.E.), a jusante do Rio Yangtzé, ficou caracterizada por casas de madeira e bambu, cobertas a colmo, construídas sobre palafitas, sendo os habitantes pescadores e plantarem já arroz, tendo como totem um pássaro do Sol.

A sericicultura (cultura do bicho da seda) não foi inventada por uma só pessoa, mas é resultado de muitos milénios de experiência. Ao historiar tempos tão recuados, as datas muitas vezes contradizem-se, mas já a neolítica Cultura Yangshao (c.5800-3300 a.n.E.) fiava e tecia a seda. A meio curso do Rio Amarelo (Huanghe) e vale do Rio Wei originara-se um importante polo civilizacional, a Cultura Yangshao. Local privilegiado de férteis vales com abundância de alimentos e animais levou à fixação de famílias agricultoras, de caçadores e pescadores, começando rapidamente a ser densamente povoado. Contava já com instrumentos para fiar e tecer, como fusos, rocas, agulhas de osso tubulares e pentes de bater de madeira. Sabe-se hoje seguramente que se tecia com fio de seda no ano 3650 a.n.E., pois na província de Henan foi encontrado um fragmento de gaze com essa idade. Também um tear para fabricar panos de seda datado de 2500 a.n.E. foi descoberto em Fanshan, na província de Zhejiang.

Na parte Oeste da China, na actual província de Sichuan, conhecida antigamente por Shu, foi fundado em 2800 a.n.E. o reino dos Antigos Shu pelo clã Can Cong, que vivia em casas de pedra nas montanhas de Min, a Noroeste de Sichuan, hoje distrito de Maoxian, no desfiladeiro Canling guan, prefeitura de Diexi.

Can Cong, que significa um conjunto de bichos-da-seda, é considerado o primeiro rei dos Antigos Shu e foi deificado como Qingyi shen, (Deus das Vestes Verde-azuis), sendo o totem do clã muito provável o bicho-da-seda. Logo haveria também aqui quem já trabalhasse com a seda e nas árvores das amoreiras vivia o bicho-da-seda ainda em estado selvagem.

A Cultura Shu, centrada no Vale de Chengdu, foi dividida em dois períodos, sendo o primeiro entre 2800 e 800 a.n.E. conhecido por Cultura dos Antigos Shu e ocorreu durante a época dos Cinco Soberanos (Wu Di, 2500-2100 a.n.E.) e das dinastias Xia, Shang e Zhou do Oeste. Este período desenvolveu-se em quatro fases, correspondendo a primeira à Cultura Baodun (2800-1800 a.n.E.), altura em que aí viveram Can Cong e Lei Zu, que empreendeu o cultivo do bicho-da-seda e usou os filamentos retirados do casulo para tecer.
Lei Zu, considerada a primeira pessoa a dedicar-se à criação do bicho-da-seda, (começando assim a sua domesticação), desenovelou os casulos e usou os filamentos de seda para tecer. Várias são as lendas sobre Lei Zu, cuja tribo Xi Ling se situava nas terras do reino dos Antigos Shu (Gu Shu 古蜀), fundado nessa altura por Can Cong que, tal como o nome indica, está ligado à seda e a todo o processo.

O reino dos Antigos Shu criou um dos polos da civilização chinesa, a do curso superior do Rio Yangtzé (Changjiang). Segundo alguns historiadores, os Antigos Shu pertenciam à Cultura Longshan (2500-2000 a.n.E.), com dois polos a jusante, no vale do Rio Amarelo em Shandong e na área da foz do Rio Yangtzé. Esta complementava-se com o povo da Civilização do Rio Amarelo na segunda fase da Cultura Yangshao (3300-2200 a.n.E.), situada no vale médio do Rio Amarelo, actual província de Shaanxi, e originou-se do intercâmbio com a Cultura Longshan, recebendo mais influências do que deu e daí duas distintas culturas evoluíram e hoje distinguem-se pela cor dos potes de argila.

A partir de 2500 a.n.E. ocorreram grandes transformações na China, que de uma sociedade matriarcal se transformava em patriarcal, época de junção das tribos a viverem ao longo do Rio Amarelo, passando as culturas desenvolvidas das várias regiões a estar em estreito contacto pelas Planícies Centrais.

Por essa altura, o Imperador Amarelo (Huang Di, 2550-2450 a.n.E.) ao ver um robe tecido em seda admirou o espantoso trabalho e logo quis conhecer a talentosa pessoa que o confecionara. Seguiu para o território Shu e em Xi Ling Shi, onde vivia a tribo matriarcal Xi Ling, encontrou-se com Lei Zu, segundo o historiador Sima Qian chamada Wang Feng. O encontro terá agradado muito a Huang Di pois casaram-se, passando Wang Feng a ser designada por Yuan Fei, indicando ser a primeira esposa do Imperador Amarelo.

9 Out 2023

A Via do Meio chega hoje a Portugal

Hoje, dia 25 de Setembro, pelas 18,30 horas, será apresentado no Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, o número 1 da nossa revista trimestral Via do Meio, uma publicação em língua portuguesa totalmente dedicada à cultura chinesa, ao que se seguirá a sua distribuição por todo o país. Também hoje, ao mesmo tempo, na RAEM, será distribuído o número 3.

Raramente de Macau algo de regular chegou a Portugal, por isso sentimo-nos também pioneiros, nesta viagem de regresso, que muito tem para contar. Nos porões desta nau, a que chamamos revista, trazemos partes de uma civilização milenar, da sua História, da sua Literatura, dos seus costumes, da língua e das suas crenças, enfim, de uma cultura cujas raízes se estendem vastamente pelo tempo e cuja diversidade ultrapassa quaisquer expectativas.

Esta viagem não começou ontem, nem surge por acaso, ao sabor de um capricho ou de uma disposição momentânea. Pelo contrário,
ela nasceu com o Hoje Macau, logo nos seus alvores, e com o nosso entendimento de que um jornal não deve apenas informar, mas também proporcionar formação aos seus leitores. Sendo um media em língua portuguesa, pareceu-nos desde o primeiro momento importante servir de intermediário entre os que se expressam em português e a cultura chinesa, dando a conhecer a esta comunidade linguística que por aqui vive, as tessituras da cultura daqueles que os rodeiam, permitindo assim um melhor entendimento do que por vezes parece obscuro, além do prazer estético que o contacto com a poesia, a pintura e o pensamento chineses proporcionam.

Sabem os nossos leitores que há duas décadas publicamos regularmente traduções, ensaios, crónicas, entrevistas, etc., no âmbito da cultura chinesa, o que nos proporcionou um excelente acervo que a editora Livros do Meio, também parte do grupo Hoje Macau, tem publicado em livros. Editámos poetas, pensadores, memórias, sobretudo, textos que não se encontravam traduzidos, mas que entendemos como fundamentais para o conhecimento da China. E, como é óbvio, o nosso trabalho não acabou, nem se fica por aqui.

Desde o ano passado que Macau já conhece a Via do Meio. Trata-se de uma revista trimestral que reúne os artigos dos sinólogos que
colaboram connosco. Alguns há mais de uma década, outros companheiros recentes desta viagem de regresso, em que, pela Via do Meio, a língua portuguesa leva os valores orientais para Ocidente, como um dia trouxe os valores ocidentais para Oriente. E, finalmente, agora que chegámos a Portugal, é a todos esses companheiros de viagem que tenho de agradecer terem embarcado nesta nau onde se fala a China em português e realizado esta aventura sem procelas.

Ao que se diz, mais do que a viagem, mais do que chegar ao destino, o que importa é quem vem connosco.

PS: Antes do Natal, começaremos a publicar livros sobre cultura chinesa em Portugal, através da editora Grão-Falar. Alguns são grandes novidades. Hão-de ouvir falar disso.

25 Set 2023

O segredo da seda (2) – Seda fora da China

Na Península da Coreia o segredo da seda estava já desvendado há pelo menos três mil e duzentos anos, o que parece contradizer a anterior afirmação dada no primeiro artigo, onde referia ser a seda ainda há 1600 anos um segredo ciosamente guardado pelos chineses.

Tal se deve ao território da Coreia estar até ao ano 57 a.n.E. integrado na China, quando passou a haver três reinos: Shilla, no Sudeste, Koguryo no Norte e Paekje no Sudoeste, mas excepto pequenos períodos de autónoma soberania, como quando a Dinastia Han do Leste (25-220) terminou e a China foi dividida em três reinos (Wu situado no Centro e Sul da parte Leste, Han-Shu a Oeste e Wei a Norte e Oeste), a Coreia só se tornou verdadeiramente independente nos finais da Dinastia Tang (618-907). Até aí o reino de Shilla, o maior e mais poderoso dos três coreanos, com a ajuda chinesa conquistou no século VII os outros, unificando toda a península. O reino de Koguryo, sob a liderança de Wang Kon em 936 estabeleceu o novo reino de Koryo, orientando-o por uma ética essencialmente confucionista.

Daí as fontes chinesas referenciarem até ao século III a.n.E. o segredo da produção da seda e sua tecnologia ainda não tinham saído do país, quando um grupo de chineses se estabeleceu no Sudeste da Península da Coreia, começando por plantar amoreiras e criar lagartas do bicho-da-seda.

No ano de 199, segundo o livro Clássico de História do Japão (Nihon Shoki), o segredo da seda passou da Coreia para o Japão, sendo levados ovos da Bombix mori, dando-se então início à sericicultura (cultura ligada à criação do bicho-da-seda), com produção de seda.

Desde 238 e nos dez anos seguintes, em ‘diplomacia da seda’ a corte japonesa enviou por quatro vezes emissários ao Reino Wu [um dos três da China, com o mar como fronteira a Leste, sendo Sun Quan o primeiro imperador do Reino Wu (229-280) e tinha como esposa a Senhora Xu (?-229), uma excelente bordadeira, pintora e calígrafa] para convencer alguns artesãos a irem para o Japão e levarem a tecelagem, a maneira de bordar e criar tinturarias. Também da Coreia continuavam a ser enviados muitos técnicos. Tal permitiu ao Japão evoluir muito rapidamente na indústria da seda, na técnica do tecer e da estampagem, conseguindo mesmo alguns pigmentos.

Em 308, quatro experientes costureiras partiram da província de Zhejiang para a corte japonesa, tal como aconteceria cento e cinquenta anos mais tarde. É das mãos destas mulheres que apareceu no Japão o wafuku, (quimono), uma veste típica do Reino Wu e conhecida por “wufu”. De salientar a forte influência da Civilização Chinesa na Coreia e Japão.

OVOS DE BOMBIX

Como a Coreia e o Japão estavam localizados para Leste da China, no Pacífico, zona de povos então isolados e fora de contactos com o mundo do comércio do Oceano Índico, o segredo aí ficou trancado. O mesmo ocorreu quando no século V uma princesa chinesa resolveu “exportá-lo” ao abandonar o país para casar com o Governador de Khotan, um reino subordinado à China. Para não renunciar ao prazer das sedas levou no penteado escondidos ovos da Bombix mori, algo que dava morte se fosse descoberta, mas não o foi e assim, o conhecimento do segredo da seda avançou pela primeira vez para Ocidente da China.

Na Passagem de Yumen, a caminho do Oeste, no ano de 414 a princesa filha de um Imperador [provavelmente de Ming Yuan Di (Tuoba Si, 409-423) dos Wei do Norte (386-534), ou de An Di (Sima Dezong, 396-418) da dinastia Jin do Leste (317-420)] deve ter sentido um calafrio quando a embaixada que a acompanhava foi revistada na fronteira pelos guardas imperiais. O enviado do rei de Khotan, que acompanhava a princesa na viagem para o seu futuro país, tinha-lhe em segredo proposto esconder ovos da Bombix mori pois, se queria continuar a vestir sedas e agradar ao futuro marido, teria de levar ovos do bicho-da-seda para o seu novo país. Devido à condição de família real, não foi revistada por os guardas e assim saíram para Oeste da China, pela primeira vez na História, ovos do bicho-da-seda, algo pretendido pelos reis de Khotan já séculos atrás, desde a dinastia Han, mas nunca tinham conseguido aprovação da parte chinesa.

Os Partos Arsácidas (170 a.n.E.-224) desfaziam os tecidos de seda chineses para ter o fio e com ele criaram as famosas sedas brocado de Damasco, a panejar as paredes dos palácios. Tal como os partos, os sassânidas (224-651), seus sucessores na governação da Pérsia, eram loucos por seda e com os tecelões trazidos da Síria, após o ataque do rei sassânida Chapur II em 360, foi criada na cidade de Susa (a Sudoeste do país, hoje Irão) a indústria de tecelagem da seda.

O reino de Khotan foi o primeiro fora da China a fazer criação de bichos-da-seda e obter o tão valioso fio, no entanto, desde 414 o segredo da seda aí se manteve sem prosseguir mais para Oeste.

DESVENDADO O SEGREDO

Em 552, no reinado bizantino do Imperador Justiniano (527-565), dois monges nestorianos persas, que viveram longo tempo na China e onde aprenderam os segredos da produção da seda, conseguiram fazer passar, dentro de dois bastões de bambu ocos, sementes de amoreira e centenas de ovos da lagarta do bicho-da-seda. O segredo foi desvendado em Constantinopla, a capital do Império Romano do Oriente, ficando aí a antiga serica com o nome de diaspron.

Em 622, o imperador bizantino Heráclio conseguiu uma inesperada vitória contra os persas sassânidas e atribuiu a administração dos territórios aos árabes, começando assim a sua autodeterminação. Nesse ano, Maomé trocava Meca por Medina e a 26 de Setembro de 622 dava-se início à emigração (hégira, a tradução da palavra árabe hijra, a significar exílio, ou ruptura), data do nascimento da religião do Islão criada por Maomé, sendo o ponto de partida do calendário da Era Árabe-muçulmana. Após a morte do Profeta em 632, os árabes conquistaram Damasco na Síria em 635, Jerusalém na Palestina dois anos depois e em 640 o Cairo no Egipto. Seguiu-se a Pérsia, o Afeganistão e em 698 Cartago no Norte de África (actual Tunísia), de onde passaram para a Península Ibérica em 711. Os árabes não conseguiram tomar Constantinopla nem atingir a Europa Central, pois o exército muçulmano foi derrotado em Poitiers (actual França) por Carlos Martel em 732. Já na Ásia Central, após a Batalha de Talas em 751, nas proximidades de Tashkent, os árabes expulsavam os chineses do seu protetorado no vale de Fergana e levaram muitos artesãos capturados para trabalhar na grandiosa cidade de Samarcanda. Deste modo, muitos dos segredos civilizacionais, como as técnicas de fazer o papel e a seda, foram difundidos pelo imenso mundo islâmico. Com o domínio na Ásia, desde as portas do Extremo Oriente, Norte e Leste de África e Península Ibérica, foram os árabes a espalhar a produção da seda pelo mundo. De notar, a sericicultura era já praticada na Península Ibérica muçulmana no século IX, proveniente da Arábia e do Egipto, que no século VIII estavam a par de como era feita a seda.

Apesar do Ocidente saber desde o século VI como era produzida a seda e na posse da Bombix mori, pouco interesse aí houve para a desenvolver, pois os tempos eram de guerras, tanto territoriais como religiosas, e as armaduras não davam espaço a vestes transparentes e macias.

Com a revelação do segredo da produção de seda, muitos países logo trataram de arranjar lagartas Bombix Mori para fazer criação e plantar amoreiras para as alimentar. Na produção, a maior parte dos resultados foram fracos e assim se continuou a importar seda da China.

O florescente comércio entre o Oriente e o Ocidente diminuiu substancialmente devido à falta de procura de seda que, de um misterioso e precioso produto, se tornou num tecido remetido ao esquecimento, devido ao longo período de guerras a ocupar o estar dos importadores reinos e países do Oeste. Já na China e no Leste, Coreia e Japão, a seda estava no quotidiano, tendo havido um incremento na qualidade com o aparecimento de novos tecidos de seda.

13 Set 2023

O Jardim de Qian Weicheng – Era um Retrato de Qianlong

Weize (1286-1354) o monge chan budista que assumiria o nome Tianru, criou em 1342 um jardim em Suzhou (Jiangsu) ocupando uma área vizinha a um mosteiro, em memória do seu mestre, o abade Ben Zhongfeng, a que deu o nome de Shizilin, «O bosque dos leões», leões budistas que aludiam ao poder e à virtude do Buda. Entre as várias justificações para a escolha do nome do sítio, referido como um bosque pela densidade dos bambus ali existentes, incluíam-se: o lugar onde o mestre Zhongfeng atingiu o nirvana, o Pico do leão do monte Tianmu em Lin’an (Hangzhou, Zhejiang), a caprichosa forma das porosas pedras do lago Tai, que eram parte da composição do jardim e lembravam esse animal, e o eloquente Sutra da raínha Srimala do rugido do leão.

O jardim tornar-se-ia um lugar de culto atraindo homens de cultura, entre os quais o pintor Nizan (1301-74) que o recriou numa pintura em 1373, executada na forma que ele definiu; «os traços transcendentais do meu pincel têm uma aparência rústica; não buscam a semelhança com as formas» e que faria parte das colecções imperiais. Kangxi (1654-1722) numa das suas Visitas de inspecção ao Sul, em 1703, visitou o jardim o que, como muitas outras coisas que fez, muito impressionou o seu neto Qianlong (1711-99) que repetiu a visita seis vezes, na terceira das quais em 1765, lá deixou uma placa com dois caracteres zhenqu, «deleite verdadeiro», escrito pela sua própria mão. O que foi apenas uma das inúmeras manifestações do seu imenso apreço pelo jardim.

Na sua primeira visita escreveu um poema onde se nota o olhar previamente cativado pelo rolo de Nizan: «Conheço o Bosque do leão há muito tempo,/ Diz-se que foi criado pelo mestre Nizan./ De início supus que se escondia num vale remoto,/ Depois percebi que se encontrava numa cidade buliçosa. (…) A colina artificial parece uma montanha verdadeira,/ Mortais e imortais estão separados por uma curta distância.» E Qianlong encarregaria um pintor de recriar a forte adesão espritual que sentia ao lugar.

Qian Weicheng (1720-72) que não pertenceu à Academia imperial, viajou com o imperador em duas das visitas imperiais ao Sul e delas fez várias pinturas, confirmando a sua intimidade com Qianlong. Em Vista total do Bosque dos leões (rolo horizontal, tinta e cor sobre papel, 38,1 x 187,3 cm, na Universidade de Alberta) o jardim é reconhecível através da representação das suas feições mais proeminentes e vistas cénicas mas é sobretudo um espaço tranquilo, ao lado de Suzhou, que por metonímia funcionava como um retrato do seu dono, que nele podia passear e agir de modo privado através do olhar e do espírito. Qianlong mandaria repetir o jardim em duas propriedades suas; no Palácio de Verão e no Retiro de montanha para escapar ao calor, em Chengde (Hebei) mas com a pintura bastava desenrolá-la, estender o braço e ver.

11 Set 2023

O segredo da seda (1) – Uma cintilante preciosidade

Os tecidos de seda chegavam a Roma, mas não se sabia de que material eram feitos e ainda há mil e seiscentos anos era um segredo ciosamente guardado pelos chineses.

Havia uma mercadoria proveniente do Extremo Oriente algo “nunca vista”; – a serica, um tecido cuja sensação era a quem o usava de andar despido. Em 112 a.n.E. (antes da nossa Era), roupa delicada e cintilante feita de um tecido leve, macio, fresco, fino e maleável, vestia em Roma os imperadores. A seda, cujos caminhos para Ocidente se faziam em 106 a.n.E. pela Pérsia (actual Irão) até Roma, aí chegava conjuntamente com especiarias, peles e lacas. Em sentido inverso, para a China iam os cavalos de Fergana, assim como linho, lã, vinho e vidro.

No Egipto, uma estátua de alabastro de 1353-1336 a.n.E. representando uma filha da Rainha Nefertiti e do Faraó Akhenaton parece vestida com uma túnica de seda.

O grego historiador e geógrafo Heródoto (c.485-420 a.n.E.) [nascido na cidade grega de Halicarnasso, hoje Bodrum na Turquia] descreveu todos os povos até às Montanhas de Tian (Tianshan) na China e segundo Vitorino Magalhães Godinho, o conhecimento de Heródoto (cerca de 450 a.C.) chegava ao Indo, Mar Cáspio até ao Rio Oxus (Amu-Dária). “Paradoxalmente, à primeira vista, o Ocidente só tem do Oriente, durante longos séculos, uma visão sumária.”

Os gregos conheciam os chineses por Seres e “Serica” era o nome dado à seda, que entre o século X e o IV a.n.E. viajava da China até à Grécia. As colónias gregas vinham-se estabelecendo entre o século VII e VI a.n.E. em torno do Ponto Euxino, o Mar Negro. No ano 500 a.n.E. encontrava-se seda chinesa em Atenas, testemunhada tanto nas vestes das figuras de vasos gregos, como nas esculturas do Parténon, mas sendo o tecido de seda um material frágil não logrou chegar até aos nossos dias.

A seda apareceu como cabeça de mercadoria pela “primeira vez” na Índia e Ásia Central via Caminhos do Sudoeste da China e segundo registado em Arthasastra por Kautílya, (primeiro-ministro de Chandragupta), no século IV a.n.E. vestia a corte Maurya na Índia.

O grego Aristóteles (384-322 a.n.E.) refere-se aos casulos da Bombix e aos tecidos que deles se obtêm, na sua História dos Animais. Mas no ano 77, Plínio o Velho (27-79) escreveu Naturalis Historia, onde se lê, “a seda cresce nas folhas de uma árvore e retira-se em forma de fio ao banhar as folhas na água.” Assim, no século I os romanos pensavam crescer a seda nas árvores, quando já os chineses há trinta e cinco séculos se dedicavam à sericicultura (cultura ligada à criação do bicho da seda).

Nos finais do século III a.n.E., os romanos emergiram como principais rivais dos gregos no Mediterrâneo. Em 133 a.n.E. os territórios romanos incluíam toda a Itália, a própria Grécia, a maior parte das zonas do Norte de África e Turquia. O Império gerava enormes lucros e os cidadãos romanos iniciaram uma crescente procura dos artigos de luxo provenientes do Oriente.

O Império Romano estendia-se para Oriente quando se “começou” a ouvir falar de um povo e de uma região estranha. Era o “primeiro” conhecimento para os romanos de um país misterioso, para lá do longínquo horizonte, a que chamaram País dos Seres. Mas o acesso dos romanos ao comércio do Oriente era limitado, pois os produtos vinham através de intermediários e por isso a um preço final exorbitante.

Entre os romanos e os chineses encontravam-se os persas, mais propriamente os partos, sucessores na Pérsia dos gregos de Alexandre, que tinham o domínio sobre as rotas terrestres e o acesso às rotas das Especiarias através do Golfo Pérsico.

Os Partos Arsácidas (170 a.n.E.-224) adoravam seda e como consumidores apaixonados, já no século II a.n.E. importavam enormes quantidades desse tecido, levando no ano 105 à troca de embaixadas entre a Pártia e a China. Assim se abriu oficialmente um comércio bilateral e longas caravanas atravessavam a Ásia Central trazendo esse tão procurado produto.

A seda chegava em grandes quantidades e os panos eram quase sempre desfeitos para nas tecelagens da Síria-parta voltarem a ser tecidos ao gosto dos padrões locais e dos compradores romanos, pois o fio de seda estava proibido de sair da China. Nas balanças em Roma, a seda era mais cara que o ouro, devido aos inúmeros impostos cobrados durante a viagem para Ocidente. Como intermediários, os partos tentavam impedir os romanos de fazerem comércio diretamente com a China e já quando no ano de 97 uma delegação chinesa da dinastia Han do Leste (25-220) chefiada por Gan Ying chegou a um porto do Golfo Pérsico, querendo navegar para o Egipto, cruzando o Mar Vermelho para atingir o Mediterrâneo, foi dissuadida pelos partos como viagem longa e arriscada.

Assim, os partos continuaram a controlar o negócio da seda chinesa e daí serem para o Império Romano os seus grandes inimigos.

SEDA LEVA ROMANOS À BANCARROTA

No ano de 53 a.n.E., Marcos Licinius Crassus, governador da Síria, que conjuntamente com César e Pompeu formavam o Triunvirato e dirigiam o Império Romano, resolveu ir para Leste numa campanha contra os partos. À partida da Síria, os presságios eram maus e depois, longos dias passaram até ocorrer a batalha de Carrhes. Trinta mil soldados romanos, flagelados por setas e assustados pelo desfraldar dos amarelos estandartes de seda a brilhar ao Sol, foram estrondosamente derrotados pelos partos e Crassus morto. Uma das piores derrotas dos romanos, sendo a primeira vez que muitos romanos viram panos de seda. Em 40 a.n.E. os partos conquistaram a Síria e a Palestina, mas foram daí expulsos dois anos mais tarde. No entanto estavam sempre a meio caminho entre os romanos e os chineses. Por isso, em 31 a.n.E. o romano Imperador Augusto sem conseguir conquistar os Partos, que regulavam os preços dos produtos provenientes do Oriente, mudou de política e ocupou o Egipto, tornando-o numa província romana. Aproveitou Alexandria, na época um dos principais portos de entrada das especiarias e de outros produtos luxuosos, e mandou construir uma frota de grandes barcos, abrindo por via marítima a rota do Egipto à Índia. Os romanos passaram a ter acesso ao Oceano Índico pelo Mar Vermelho, via para fugir aos partos e receber os produtos oriundos do Extremo Oriente.

No ano 27 antes da nossa Era, o Império Romano ia da Lusitânia à Mauritânia e englobava a costa do Mediterrâneo, abarcando a Grécia, a Capadócia, a Síria, a Judeia e do Egipto até Cartago. Roma ocupava Petra no ano de 106 e para controlar os locais onde afluíam os produtos chineses adicionou ao Império em 216 Edessa e Palmira no ano 273.

As especiarias, lacas, sedas e outros produtos de luxo do Oriente chegavam como nunca antes tinha acontecido e em troca os romanos enviavam para a Ásia metais, tintas, tecidos, drogas e produtos de vidro. No entanto, Roma comprava mais do que vendia e o ouro rapidamente se esvaia dos cofres. Plínio queixava-se das fortunas gastas em produtos de luxo importados, entre os quais a seda, precioso produto mais caro que o ouro e consumido desenfreadamente, o que levou o Império Romano à bancarrota.

Devido ao afastamento no século I a.n.E. dos nómadas xiong-nu das fronteiras Norte da China, estes [conhecidos por hunos no Ocidente] empurrando para Oeste os povos seus familiares a viver na Ásia Central, criaram uma enorme agitação no que viria a ser a Europa, provocando uma interna movimentação de povos. Em 330, o Imperador Constantino transferia a capital do Império Romano para Bizâncio (Istambul), passando-se esta a denominar Constantinopla. Roma permaneceu capital do Império da parte Ocidental quando em 395 se deu a divisão do império em duas partes. Os godos, encurralados pelos hunos (os xiong-nu), tomaram Roma em 476, terminando com o Império Romano do Ocidente. Já o recheio tinha passado para Constantinopla, a capital do Império Romano do Oriente.

A seda era o segredo mais bem guardado da China e quem tentasse levá-lo para fora do país era punido com pena capital. A constante pergunta centrava-se: -De onde vinha a seda? Outra questão era saber o nome do país ou países que a produzia, pois os chineses desde o século IV recebiam, tanto por mar como por terra, muitos estrangeiros e dependendo do período histórico da visita das embaixadas e os caminhos que tomavam, (umas vezes dividido em diferentes reinos, outras unificado num grande país), levava os viajantes a conhecerem-no por diferentes nomes.

7 Set 2023

Etimologias médicas

Lê-se num artigo de Kan-Wen Ma, intitulado “Sun Yat-sen (1866-1925), a man to cure patients and the nation – his earlier years and medical career” a propósito do pensamento do médico, seguidor da medicina ocidental, que foi baptizado cristão, revolucionário e fundador da República da China, vindo a ser o seu primeiro presidente (1912), a seguinte defesa a partir de uma citação de um dos Clássicos, mais exatamente do Livro da História “O maior dos médicos cura primeiro a nação e depois o povo”.

Este revolucionário, cujo papel foi decisivo para a derrocada da dinastia Qing em Outubro de 1911, assumiu o cargo de primeiro presidente provisório da recém-fundada república chinesa, sendo rapidamente afastado do poder por outros mais ambiciosos do que ele, nomeadamente Yuan Shikai (袁世凱 Yuán Shìkǎi)

Sun Wen (孫文Sūn wén) ,nome de nascimento, que o liga à cultura e à escrita, sendo o nome de criança Di Xiang (帝象Dì xiàng) , que o relaciona com o poder imperial; teve como nome oficial, Sun Deming (孫德明 Sūn Démíng), que o caracteriza como virtuoso brilhante e, ainda, entre outros, os nomes literários começaram com Ri Xin (日新Rì Xīn), evocando um sol novo; e evoluíram para Sun Yat-sen, no registo de Cantão, ou Sun Yixian (孫逸仙 Sūn Yìxiān), na pronúncia do Norte, onde se alude a um transporte até à imortalidade ou, ainda, Sun Zhongshan (孫中山 Sūn Zhōngshān), com a carga geográfica da proximidade à sua terra natal na província de Cantão. Todos estes nomes descrevem bem a personalidade de Sun Yat-sen, o letrado revolucionário em busca da virtude e da imortalidade, com o corpo bem enraizado na sua terra natal.

Daí que não surpreenda que o pensamento deste médico, ao jeito ocidental, e cristão por nascimento, seja, quando expresso, bastante conservador, em busca da tradição chinesa, para que possam ser afastados certos males cosmopolitas, a fim de curar uma nação ferida por sucessivas levas de invasões estrangeiras, dos manchus às guerras do ópio e ao pensamento da Nova Cultura, refletindo valores ocidentais. Por isso, se por um lado, adere à necessidade de unir a teoria e a prática, bem como à defesa pragmática de que o bem e o mal se podem definir pelas suas consequências práticas, por outro num documento que serviu de base ao movimento nacionalista em 1924, na forma de uma série de lições, intitulado Os três Princípios do Povo, mais exatamente na Lição 6, defende o nacionalismo e a moralidade tradicional contra os valores “intoxicantes” da Nova Cultura: “Esta característica moralidade do povo chinês ainda não foi esquecida hoje. Primeiro vêm a lealdade e a piedade filial, depois a humanidade e o amor, a lealdade e o dever, a harmonia e a paz.” (Sun Apud Baskin, 1984: 650).

Aqui se assume a perspetiva do médico que tenta libertar o país e o seu povo de valores alienígenas, que adoecem ou contaminam os chineses, já que tão ou mais graves do que as maleitas do corpo parecem ser as do espírito.

Recuando uns bons séculos, mais concretamente, até por volta dos séculos V e IV a.C, vamos encontrar um dos quatro grandes médicos da antiguidade chinesa (四大名醫 Sì dà míng yī): ele é Bian Que (扁鹊 Biǎnquè), e tem nome de planta e pássaro, concretamente, de pega, um pássaro muito auspicioso, que une o mundo natural ao espiritual, às letras, a que pertence indissoluvelmente ligado enquanto componente do caractere tradicional da palavra “escrita” (寫 xiě), e lá está o pássaro na base, onde não vislumbramos a plumagem da pega, preta, branca e azul, mas acreditamos que sim, já que só uma ave tão palavrosa e conversadora poderia estar na origem do exuberante sistema escrito chinês. Especialmente relevante é o facto de a este médico do período dos Estados Combatentes (戰國 Zhànguó) serem atribuídos quatro métodos essenciais da Medicina Tradicional Chinesa (中醫 Zhōngyī): a observação (望診 wàngzhěn), a auscultação e o recurso ao olfato para a identificação dos cheiros (聞診 wénzhěn), a interrogação (問診 wènzhěn) e a medição das pulsações (切診 qièzhěn), sendo também a interrogação essencial no diagnóstico, ou melhor, a conversa de pássaro.

Um outro aspecto que desde muito cedo se distinguiu nos médicos chineses, e em Bian Que com grande destaque, foi a relação que estabeleceu entre ética e prática médica. Diz-nos Bai Jingfeng em Episodes in Traditional Medicine (1998) que o fundador dos quatro métodos de diagnóstico tinha preceitos muito rigorosos, que ficariam conhecidos como as seis regras (Bai, 1998: 69). Primeiro, não tratava aqueles que abusavam do seu poder, oprimindo terceiros; segundo, não tratava gente gananciosa e obcecada pela riqueza; terceiro, não se dispunha a colaborar com uma certa aristocracia dissoluta que se comportava extravagantemente; quarto, não recebia quem revelasse ter os princípios yin (陰) e yang (陽) em desequilíbrio; quinto, não procurava curar quem estivesse já demasiado fraco para receber tratamento; sexto, não tratava quem acreditasse em bruxarias.

Há uma história proverbial muito conhecida ligada à sua biografia, intitulada 《諱疾忌醫》(Huìjí-jìyī), que numa tradução à letra significa “evitar a doença para evitar a cura”, podendo encontrar uma correspondência pelo sentido em Português no provérbio “não há maior cego do que aquele que não quer ver”. A história ilustra na perfeição a aplicação da quinta regra, mas também algo essencial na medicina tradicional chinesa, como veremos adiante.

Resumidamente, o Rei do Estado de Cai (蔡國) , o Marquês Huan (桓侯) convida o médico Bian Que para o seu palácio. Bastou ao experiente médico observar a cor da pele do Marquês para logo lhe detetar o início de uma doença, apressou-se a avisá-lo, acrescentado, mas não se preocupe porque a sua maleita ainda está na fase inicial. O rei levou-a mal ao médico a franqueza do diagnóstico, recusando-se a admitir a doença: “Eu estou bem, não tenho qualquer doença (我很好, 没有病)” (北京语言学院编, 1984: 128), depois mal o médico virou costas, teceu comentários desagradáveis a respeito dele e sobre os médicos em geral. Passados dez dias, Bian Que voltou a encontrar o Marquês Huan, aconselhando-o novamente a que procurasse tratar-se enquanto era tempo, já que a doença tinha evoluído e estava então ao nível dos músculos. Passados mais dez dias, Bian Que voltou a cruzar-se com o rei, dizendo-lhe com um ar consternado que a doença se entranhara, estava então já ao nível dos intestinos e estômago, tornando-se muito perigosa. O Marquês voltou a ignorar os conselhos do médico. Houve ainda oportunidade para novo encontro, mais dez dias volvidos, mas dessa vez Bian Que já nada disse ao rei, voltou-lhe as costas e foi-se embora. Perante tal comportamento, o governante estranhou, mandando emissários para obter explicações. Ao que ele declarou já nada poder fazer pelo monarca. Houve um tempo em que o poderia ter salvo, quando a doença ainda era superficial, mas já era tarde demais, porque lhe tinha atacado a medula óssea. Passados cinco dias o rei sentiu-se mal, sem quaisquer forças, mandou então chamar o médico, que, seguindo o seu quinto preceito, nem sequer tentou curá-lo, aliás já nem se encontrava nos seus domínios.

Moral da história, não vale a pena “tapar o sol com a peneira”, procurando “enganar-nos a nós próprios” quando estamos doentes, porque tão má como a doença do corpo, ou até bem pior, pode ser a mental, que, mais ou menos conscientemente, nos leva a cometer erros muito graves que podem conduzir inclusive à morte, quando não das pessoas, das relações e das oportunidades. Há um tempo certo para tudo, mas saber reconhecê-lo depende da saúde do corpo inteiro, mente incluída. É essa ligação essencial e primordial entre o lado físico e o mental que tem conduzido gerações de médicos chineses a privilegiarem aquilo a que hoje chamamos diagnósticos diferenciados, dando relevo à observação de cada caso como uma história única, apenas captável através de um diagnóstico rigoroso que inclua a observação física atenta e a interrogação/conversa não menos concentrada, seja ao nível individual, seja ao nível dos estados, como bem viu Sun Yat-sen, pois de nada adianta a cura individual, quando não há uma transformação ética coletiva a acompanhá-la, já que quando países inteiros adoecem, serão poucos aqueles que conseguirão manter a sanidade mental.

Por fim, recorde-se a etimologia de “medicina e curar” (医 yī), no chinês simplificado é apenas constituída por uma seta (矢 shǐ) que se retira da aljava (匚 fāng) para atacar o demónio da doença; no chinês tradicional (醫 yī), conta também com o componente de vinho (酒 jiǔ), essencial na sua função de elixir.

O certo é que o médico só tem o poder de desferir uma seta certeira, aquela que realmente cura, com a ajuda do paciente, ou seja, quando este está em equilíbrio e revela abertura e disponibilidade para operar a transformação necessária que o conduza ao caminho da saúde. Se a mentalidade geral for adversa, se o paciente não quiser, ou se as circunstâncias não o permitirem nem vale a pena tentar atirar a seta, porque ela nunca acertará no alvo, já que este último é animado e comunicante e só existe em diálogo.

Bibliografia

Bai Jingfeng. 1998. Episodes in Traditional Chinese Medicine. Beijing: Chinese Literature Press
Baskin, Wade (ed) 1984. Sun Yat-sen. Classics in Chinese Philosphy. New Jersey: A Helix Book.
北京语言学院(编)1984《成语故事选》.北京:外文出版社.
Kan-Wen Ma. 1996. “Sun Yat-sen (1866-1925), a man to cure patients and the nation – his early years and medical career”. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/096777209600400309London: Journal of Medical Biography; 4, 161-170.

*Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM

5 Set 2023

Sobre Buda

Crónica de Sofia Yao

O que aconteceu ao viajante? As nossas pernas já não precisam de aguentar a caminhada que nos trouxe até aqui? Os meus olhos já não são obrigados a suportar o peso de qualquer visão, a bem do futuro, é preciso calcar o passado.

Oh, Boddhisatva desta querida Terra, com tal força e ainda precisas de um protector. Choras pelos fracos que abandonaram o teu corpo? Desta vez o viajante não tinha crenças: uma jornada de vitória, uma manifestação de Canibalismo. Dentro do silêncio, afirmaste a tua narrativa. Suspenso, tu ponderas. Dizem que o pensamento é a arma mais poderosa. Quem? Quem precisa dos nossos pensamentos e são eles alguma vez transportados pelos lamentos, ou nunca podem escapar ao destino da tinta e do papel?

Só através do pensamento eu me torno o teu soldado e, no entanto, comecei a pensar porque prometeste libertar-me.

Secretismo dentro de montanhas, dentro de cavernas. O solilóquio é uma actuação; quem disse que eu queria vir a ter uma resposta? Ter companhia sem conversação, ter medo, mas também demonstrar força. Com os vapores dos cozinhados, todos regressamos ao vinho, à Terra.

Digo que existem suficientes pessoas sensatas neste Planeta! Tantas teorias, mas nenhum conteúdo. Não se pode atingir a sabedoria sem encontrar a solução para uma obsessão não resolvida. Para contemplar cada camada da nossa fixação: fascínio, paixão, limitação, co-existência. Temos de sair do nosso palácio não só para nos apercebermos de que existem outros reinos, mas para ver as pessoas, o invasor, o monge.

Lamento Boddhisatva, mas não tenho a tua força. Tenho de destruir o pedestal que distingue o corpo da mente. Sob a violência carnavalesca, o nosso corpo é destruído, sem que eu tenha possibilidade de ver a tua mente. Tenho de permanecer fiel às minhas sensações. Para deixar que o meu corpo faça voar um papagaio chamado mente.

Os comentários satíricos sobre os nossos actos de violência não justificam o acto em si. Porque é que nos sentimos confortáveis connosco próprios quando entramos na pele do “observador”? A câmara torna-se os nossos olhos renovados, sempre nítida, sem interferências da realidade permutável. Um gosto de beleza distorcido, onde um Buda na sua plenitude se torna indigno de nossa visão, porque a sua plenitude nos é incompreensível. Talvez precisemos da sua destruição para alcançar um sentimento de auto-piedade.

5 Set 2023

A versão de Shen Yuan do rolo que evoca Bianjing

Meng Yuanlao (c.1090-1150), um funcionário governamental que viveu em Bianjing (actual Kaifeng, Henan) dos treze aos vinte e sete anos, sendo depois forçado a abandonar a cidade capital dos Song do Norte, partindo para o exílio em Hangzhou, escreveu uma nostálgica recordação desse lugar. Que se lê como uma ilustração da expressão «menghua», um sonho projectado no passado de um paraíso perdido, por vezes referido como a utopia do imperador Amarelo sobre Huaxu, a terra da harmonia e felicidade perfeitas.

Em Dongjing menghua lu, «Sonho do esplendor da capital oriental», editado pela primeira vez em 1187, a cidade é descrita como um lugar onde “A paz se prolongava dia após dia: viviam lá muitas pessoas e havia de tudo em abundância, jovens com longas tranças não se entretinham senão com danças e tambores, os mais velhos com os cabelos salpicados de branco não ligavam a escudos ou lanças. As estações e os festivais seguiam-se uns aos outros cada um com as respectivas situações para apreciar. Noites iluminadas por candeeiros e madrugadas ao luar, períodos de neve e tempos de floração, clamando habilidades e subindo alturas, formando reservatórios e jardins onde se pode passear. Erga-se o olhar e lá estão pérgolas verdes e quartos pintados, entradas bordadas e sombras preciosas. Carruagens decoradas competiam pelo estacionamento na Avenida Celestial e cavalos ajaezados lutavam para passar nas ruas imperiais. (…)”

Mas a mais comum evocação de Bianjiang é uma pintura intitulada Qingming shanghe tu, que se pode traduzir como «Sobre a margens do rio durante o festival Qingming» (rolo horizontal, tinta e cor sobre seda, 28,2 x 528,7 cm, no Museu do Palácio em Pequim) cuja autoria, no rolo, é atribuída a Zhang Zeduan (1085-1145) e mostra a buliçosa vida em torno do rio Bian. O seu singular fascínio originou inúmeras cópias e recriações das quais cerca de cem estão hoje em vários museus e colecções.

Shen Yuan (act. 1728-48) é autor de uma das mais intrigantes recriações (rolo horizontal, tinta sobre papel, 34,8 x 1185 cm, no Museu do Palácio, em Taipé) que se diz ter sido apenas um guia para outra versão colorida executada por cinco pintores da corte de Qianlong. No entanto ela exibe um domínio do desenho, da perspectiva e certos pormenores que a tornam ímpar. Nela está a única confirmação de que a cena decorre no festival Qingming, «o dia de varrer as sepulturas», através de três figuras que se vêem na primeira parte junto de um túmulo, num gesto evidente de quem chora, a eloquente expressão do pesar. Na parte central que representa a ponte dita «ponte arco-íris» onde no original um navio de grande porte se encontra em risco de bater ao passar criando um grande alvoroço, Shen Yuan resolve o perigo riscando linhas rectas que são os cabos que puxam o navio, guiando-o a partir das margens.

4 Set 2023

A riqueza e os seus deuses

Desde os tempos mais recuados houve quem na China desprezasse a riqueza. Podemos encontrar entre estes os seguidores mais fiéis das filosofias confucionista, daoísta e budista. O cavalheiro confucionista ou o sábio daoísta pouco ligam aos bens materiais. Para estas filosofias, mais importante do que a riqueza material, são os bens espirituais, que cada um vai desenvolvendo como pode: os valores morais, no caso confucionista, e os existenciais, impregnados de espiritualismo, no caso daoísta. Também aos budistas interessa, sobretudo, a libertação dos desejos materiais, a fim de escapar à terrível roda das reincarnações.

Mas, o certo é que, desde os tempos mais recuados muitos, muitíssimos, mesmo, têm sido os que, entre os chineses, amam devotadamente a riqueza. Estes situam-se a um nível mais popular, são a grande maioria da população. Não obstante, neles se incluem muitos dos eruditos, capazes de suspender, no dia-a-dia, com admirável facilidade, os preceitos filosóficos que vão transmitindo nas aulas, conferências e outros momentos teóricos das suas actividades.

Enfim, para a maioria, a riqueza é um bem inestimável. Há até um deus, o da riqueza, ou vários, dependendo das versões, a que as pessoas prestam culto de modo a enriquecer rápida e prolongadamente.

A riqueza, na China, tem uma dimensão religiosa e, por vezes, até mística. Este povo adora com fervor religioso certos bens materiais, como o dinheiro, o ouro, e todos os metais preciosos, as pedras, também preciosas e, em suma, todos os objectos vulgarmente catalogados como tesouros materiais.

A relação dos chineses com a riqueza abre-nos as portas ao estudo de uma religião materialista, onde este mundo e os seus bens são o verdadeiro modelo para um mundo sobrenatural, que só é superior na medida em que copiar, sem quaisquer alterações, a ordem estabelecida na terra.

Nesta mundividência, há uma mensagem bem clara a reter: não basta actuar no mundo laico para se ser rico, é preciso ter fé e procurar o auxílio e a protecção das divindades ligadas à riqueza, caso contrário a sorte não será favorável.

O deus da riqueza, Cai Shen, desdobra-se, em muitas versões, em dois: um militar, representado por Guandi, também conhecido por deus da guerra, e um civil que, não raro, aparece representado pelo ministro da antiguidade, Bi Gan. Este no livro da História é descrito como um servidor leal e justo, que sofreu martírios inenarráveis às mãos de um monarca cruel.

O deus, ou os deuses da riqueza, são adorados com fervores redobrados entre os mais desfavorecidos, como é natural. São-lhes erguidos vários templos e altares, onde abundam oferendas, como vinho, frutas e bolos. As divindades são, também, muito apreciadas em zonas e cidades comerciais, como Cantão e afins.

O deus civil é venerado por pessoas ligadas a profissões, carreiras e negócios que nada tenham a ver com o mundo militar. Já o deus militar é o protector de todos os indivíduos que, de algum modo, se relacionem com a guerra, como cutileiros, ferreiros, militares…

Estes deuses vivem, como já se disse, segundo o modelo da existência terrestre. Têm mulher, família, riquezas sem fim e uma corte poderosa. Despertam um fervor intenso nos seus fiéis tanto eles, como os seus acólitos.

Entre estes, um dos mais conhecidos é Liu Hai, habitualmente figurado por um menino com um colar de moedas à volta do pescoço. O rapaz faz-se acompanhar por uma criatura fabulosa: um sapo de três pernas, que devora moedas. Liu Hai é muito importante, do ponto de vista simbólico, pois mostra bem como, para a mentalidade chinesa, se interligam os desejos de riqueza e descendência masculina.

Outros acólitos da divindade da riqueza são os gémeos da harmonia: He He Er Xian. Estes revelam mais uma característica importante da maneira de pensar dos descendentes do dragão – o espírito familiar. A verdadeira riqueza não surge com indivíduos isolados, mas em união e, especialmente, em família.

A história do par de gémeos chega-nos através de uma lenda. Esta fala-nos de dois irmãos, nascidos de pais diferentes (nessa altura ainda não eram gémeos!), que deitaram mãos à obra, lançando-se ao negócio. Fizeram uma grande fortuna. Com a riqueza a aumentar, acabaram por se desavir. Separaram-se e só na oitava geração os descendentes se voltaram a unir, recuperando todos os bens de que os ancestrais tinham sido senhores.

A harmonia e a união trazem a riqueza e, também, a longevidade e felicidade. Esta última é, muitas vezes, simbolizada num morcego, que congrega, por homofonia, a riqueza e a felicidade.

Associada aos deuses da riqueza e seus acólitos, costuma surgir uma panela preciosa, que terá sido pescada por um homem de Nanjing, no rio Yanzi. O pescador pensou que o utensílio vindo às redes, seria útil para fazer a comida do cão, de modo que resolveu ficar com a panela. Para grande surpresa dele e da mulher, o objecto era mágico, logo tudo o que se punha lá dentro multiplicava-se indefinidamente. Assim sucedeu com a comida do cão, mas, também, com o gancho dourado da mulher, que, inadvertidamente, lhe escorregou da cabeça.

Outros símbolos ligados ao culto da riqueza são: um cavalo precioso, provavelmente de origem budista, de cuja boca se escapam jade, moedas de todos os tipos e outros bens valiosos e que, além disso, transporta um taça repleta de jóias; um dragão-moeda, já que o seu corpo é formado por um longo cordão de moedas; uma carpa, que, por homofonia, representa a abundância, além de inúmeros cestos e caixas a transbordar de tesouros.

Este mundo religioso da riqueza, repleto de seres e objectos sagrados, dá acesso ao crente a todo o tipo de bens preciosos: lingotes de ouro e prata, pedras preciosas, árvores mágicas, donde também saem moedas, e riquezas sem fim. Um grande número de frases auspiciosas, de inegável eficácia mágica, remata e coroa este cenário.

Os possuidores das belas frases caligrafadas podem estar certos de obter o que elas indicam. Para citar algumas, “longa vida, riqueza e posição social”, ou, apenas, “riqueza e posição social, ou “a visita do Deus da Riqueza”…

Na China, e um pouco à semelhança do espírito que anima certas filosofias cristãs do Norte da Europa, para se ser rico há, antes de mais, que acreditar. Em seguida, deve-se cultivar, incessantemente, as relações com os deuses, seus acólitos e nunca esquecer de ter sempre à mão a vasta gama de amuletos aqui referidos. Estes tanto produzem efeito a duas como a três dimensões.

28 Ago 2023

O que Li Shizhuo escreveu nas suas pinturas

Gao Qipei (1660-1734), o alto funcionário que se notabilizou pelas suas pinturas que dispensavam o pincel e utilizava de maneira bem-humorada as mãos e a ponta de uma unha que deixava crescer para o efeito, fez parte de uma família que, se não prolongou a sua intransmissível bizarria, enriqueceria a arte do pincel.

Um seu sobrinho, Li Shizhuo (1687-1770) mostraria um conhecimento invulgar da história da pintura reflectindo o gosto de sistematização e erudição característicos dos pintores ao serviço do imperador Qianlong (r. 1736-95) a quem serviu durante cerca de vinte anos. Filho de um alto funcionário terá sido no decurso de uma viagem com o pai à região de Jiangnan, que entrou em contacto com o eminente pintor Wang Hui (1632-1717) que teria um papel essencial no ressurgir de importância da pintura ortodoxa de paisagens no fim do século dezassete, com quem terá aprendido os fundamentos da arte. E na ausência de um manual de pintura seu, as inscrições que fez em pinturas constituem um corpo crítico revelador de um saber muitas vezes partilhado nos convívios dos literatos. Em Paisagem a partir de Wu Zhen (1289-1354) e Shen Zhou (1427-1509) que está no Instituto de Arte de Minneapolis (rolo vertical, tinta sobre papel, 65,2 x 32,8 cm) ele mostra um à vontade que não é isento de certo tom autobiográfico: «

As pessoas gostam das pinturas de Shitian (Shen Zhou) e dizem que alcançou os mistérios ocultos de Mei Daoren (Wu Zhen). No entanto elas não percebem que na realidade isso era uma tradição familiar que recebeu do seu pai, Hengji (Shen Hengji,1409-1477). Ontem passei em Guazhou (Yangzhou, Jiangsu) e sentado numa janela à chuva virada para as águas, pintei e pus os pontos (dian) nesta pintura cuja concepção está entre Wu e Shen.»

Na adopção desse «espírito dos antigos», guyi, foi consciente da síntese informada que fizera Zhao Mengfu (1254-1322) como na Paisagem no estilo desse mestre, no Smithonian (rolo vertical, tinta e cor sobre papel, 94,4 x 42 cm).

Li Shizhuo ao ler o tratado Bifa Ji, «Notas sobre o método do pincel», escrito em parte como um diálogo, actualizou o que nele se defende sobre a verdade do pintor. Em Paisagem a partir de Jing Hao (c.855-915) e Guan Tong (activo a meio do século X) alude a uma célebre distinção académica sobre o uso da tinta ou o domínio do pincel: «Jing Hao chamava-se a si mesmo Hongguzi.

Ele escreveu o Segredo da paisagem, e certa vez proclamou orgulhoso: “Wu Daozi poderá ser excelente com o pincel mas é deficiente com a tinta. Xiang Rong pode ser excelente com a tinta mas falta-lhe o trabalho de pincel”. E assim Honggu podia reclamar ser mestre dos dois. Como resultado Guan Tong procurou-o para seu instrutor. Ele foi realmente uma figura destacada do final da dinastia Tang. Aqui tentei mostrar o melhor de Jing Hao, escondendo os seus defeitos.»

28 Ago 2023

Dos quatro entendimentos e dos três tipos de coragem – Xunzi

Tradução Rui Cascais

Yao perguntou a Shun: “Como são as disposições inatas das pessoas?” Shun respondeu: “As disposições inatas das pessoas são verdadeiramente detestáveis! Por que razão perguntas acerca delas? Quando se tem esposa e filhos, a piedade filial para com os nossos pais diminui.

Quando os nossos apetites e desejos são satisfeitos, a nossa fidelidade para com os amigos diminui. Quando o nosso estatuto e salário sobem, a lealdade para com o nosso senhor diminui. As disposições inatas das pessoas? As disposições inatas das pessoas? As disposições inatas das pessoas são detestáveis. Porquê perguntares acerca delas? Só a pessoa meritória não é assim”.

Existe o entendimento do sábio, existe o entendimento da pessoa bem-criada e da pessoa exemplar, existe o entendimento da pessoa mesquinha e existe o entendimento da pessoa servil. Algumas pessoas, mesmo quando falam muito, demonstram a forma apropriada e conformam-se à categoria apropriada das coisas; são capazes de passar todo um dia argumentando as suas posições e, através de numerosas reviravoltas e uma miríade de mudanças as suas categorias orientadoras continuam inalteradas – esse é o entendimento do sábio.

Algumas pessoas, mesmo quando falam pouco, são directas ainda que reservadas no seu uso das palavras. Quando argumentam, conformam-se ao modelo apropriado como se fossem reguladas com exactidão pela linha de tinta do carpinteiro – esse é o entendimento da pessoa bem-criada e da pessoa exemplar.

Algumas pessoas têm um discurso descuidado e uma conduta desordeira. Na sua forma de lidarem com as coisas muito há que pode conduzir ao arrependimento – esse é o entendimento da pessoa mesquinha.

Algumas pessoas são precipitadas e imprudentes e não seguem as categorias apropriadas. Dispõem de várias competências e vasta experiência, mas não lhes dão bom uso. São rápidas na análise e de discurso refinado e fácil, mas não se preocupam com aquilo que dizem. Não se preocupam com o que é certo e com o que é errado e não separam aquilo que é direito daquilo que é torto. Por sua intenção, têm apenas colocar-se ao lado daqueles que desejam destroçar os outros – esse é o entendimento da pessoa servil.

Da coragem

Há o mais alto tipo de coragem, há o tipo de coragem médio e há o mais baixo tipo de coragem. Há alguns para quem existe um padrão central para todo o mundo, segundo o qual ousam estabelecer-se. Os antigos reis seguiam um certo modo de fazer as coisas e aqueles ousam aplicar o seu entendimento dele. Em cima, não seguem os senhores de uma idade caótica. Em baixo, não se conformam às gentes de uma idade caótica. Não se inquietam com o empobrecimento ou dificuldades que possam advir das coisas que envolvem ren [humanidade]. Não consideram riqueza e honra que possam de advir das coisas privadas de ren. Se o mundo os reconhece, deseja partilhar as dores e alegrias do mundo. Se o mundo não os reconhece, permanecem com independência e sós entre o Céu e a Terra e nada temem. Este é o mais alto tipo de coragem.

Há alguns que praticam os rituais com reverência e cujos pensamentos são contidos. Prezam, seguem e são fiéis a isso e dão pouca atenção aos bens materiais e à riqueza. Ousam promover e elevar aqueles que são meritórios. Ousam apontar e desvalorizar aqueles que não são meritórios. Este é o tipo de coragem médio.

Há alguns que dão pouca atenção ao seu carácter, mas muita importância aos bens materiais. Encontram consolo naquilo que conduz ao desastre e depois procuram libertar-se e escapar irresponsavelmente às consequências. Não se preocupam com a verdadeira disposição do que é certo e errado. Por sua intenção, têm apenas colocar-se ao lado daqueles que desejam destroçar os outros. Esse é o tipo mais baixo de coragem.

Fanruo e Jushi são nomes de grandes arcos dos tempos antigos. Contudo, se não tivessem sido formados pelo torno do criador de arcos não se teriam feito certeiros por si próprios. A espada Cong, que foi do Duque Huan, a espada Jue, que foi do Grão-Duque, a espada Lu, que foi do Rei Wen, a espada Hu, que foi do Lorde Huang, as espadas Ganjiang e Moye, que foram de Helü, assim como as espadas Jujue e Pilü, foram todas grandes lâminas dos tempos antigos. Contudo, se ninguém as tivesse amolado nunca se teriam tornado afiadas. Se ninguém as tivesse empunhado, nada poderiam ter cortado. Hua Liu, Qi Ji, Xian Li e Lü’er foram grandes cavalos dos tempos antigos. Contudo, sem controlo de freio e rédea à frente e sem a ameaça do chicote e da vergasta atrás, para não falar da perícia de Zao Fu na sela, não conseguiriam percorrer mil léguas num só dia.

Quanto às pessoas, mesmo que tivessem uma natureza inata excelente e os seus corações fossem sábios e capazes de discernir com argúcia, ainda teriam de buscar mestres meritórios a quem servir e escolher amigos meritórios com quem fazer amizade. Obtendo-se um mestre meritório para servir, tudo o que ouviremos são as instruções de Yao, Shun, Yu e Tang.

Obtendo-se um amigo meritório, tudo o que veremos é uma conduta leal, fiável, respeitosa e deferente. E então se fará progresso diário na direcção de ren e de yi[justiça] sem sequer nos darmos conta. Isso deve-se àquilo com o qual convivemos. Mas se vivermos ao lado de pessoas que não são boas, tudo o que ouviremos será trapaça, engano, desonestidade e fraude. Tudo o que veremos será uma conduta suja, arrogante, perversa, desviante e gananciosa. Além disso, sofreremos castigo e execução sem sequer nos apercebermos da sua iminência. Isso deve-se àquilo com o qual convivemos. Há um ditado segundo o qual “Se não conheceres o teu filho, observa os seus amigos. Se não conheceres o teu senhor, observa os seus companheiros.” Tudo depende daquilo com o qual convivemos. Tudo depende daquilo com o qual convivemos.

25 Ago 2023

Falando sobre as raízes da sabedoria – Cai Gen Tan 菜根譚

Tradução de André Bueno

(continuação)

330.

Quem não consegue ainda se controlar, deve afastar-se um pouco da confusão cotidiana, de modo que sua mente não veja o que a inquieta, e não se perca; assim, ele acalmará seu corpo e seu coração.

Quem consegue se dominar, deve voltar para a agitação da vida, pois sua mente vê, mas não se sente tentada ou atraída, e isso o ajudará ainda mais a superar as coisas do mundo.

331.

Quem ama silêncio, e detesta barulho, vai acabar buscando tranqüilidade fora do mundo cotidiano. Mas, sem o contato humano, a mente retorna ao seu estado original, e ela pode se inquietar e ficar ansiosa.

A quietude está na raiz do movimento;

Como compreender que eu e os outros somos um só?

Como esquecer a diferença entre quietude e movimento?

332.

Na montanha, a mente respira, e fica cheia de bons pensamentos;

Uma nuvem que passa, o canto das garças, isso incita a mente a voar;

Um riacho que murmura nas pedras, isso banha a mente em água cristalina;

Fazer carinho num zimbro ou numa ameixeira, isso dá um sentimento de segurança e retidão;

Com aves e cervos como companhias, a mente esquece imediatamente seus problemas;

Mas ao voltar ao mundo da agitação, uma pessoa não apenas volta a relacionar-se com as coisas, mas torna-se servo delas.

333.

Feliz, ande tranquilamente pelos pastos, descalço; as aves te acompanharão, e te farão esquecer seus problemas.

Deixe sua mente se fundir com a paisagem; sente sobre as pétalas caídas, observe as nuvens no Céu, e deixe o sentido de ‘eu’ desaparecer.

334.

Na vida, felicidade e tristeza surgem na mente.

Diz o Budismo: ‘a ganância é um fogo devorador, e um abismo de sofrimento’.

Ter desejos insaciáveis é como afundar num mar de amargura;

Mas apenas um pensamento bom é capaz de mudar o fogo para água;

Apenas um pensamento correto é capaz de levá-lo, como um bote, até uma margem segura.

Assim, os pensamentos são levados, de um lado ao outro, chegando aos extremos. Devemos, portanto, ser cuidadosos com a mente.

335.

Uma serra de corda corta a madeira, uma gota d’água fura a rocha; quem estuda o Caminho, deve ser constante.

A água que flui se transforma em canal, a fruta madura cai do pé; quem busca o Caminho, deve procurar a perfeição.

336.

Ao vencer os combates da vida, chega-se a um lugar em que a lua é clara, a brisa é suave, e a vida não é mais um mar de amarguras.

Ao limpar a mente das agitações, não se escuta mais o ruído dos cavalos e carruagens, e não é necessário fugir para a montanha para conseguir sossego.

337.

Quando as árvores e plantas murcham, os brotos nascem de suas raízes;

O inverno é gelado, mas quando o vento sopra e as cinzas voam, é porque o sol está voltando;

Mesmos nas solenidades funerais, pode-se perceber os sinais da vida;

Assim, apreciamos os espíritos do Céu e da Terra.

338.

Olhe a cor da montanha, quando chove; ela ganha uma beleza diferente.

Ouve o som de um sininho no meio da noite; ele fica muito mais claro.

339.

Vá para um lugar alto, e amplie sua mente;

Contempla a água, e deixe que ela leve seus pensamentos;

Leia um livro numa noite fria de inverno, e purifique seu coração;

Suba uma montanha, declame poemas para o Céu, e vá para além desse mundo.

340.

Para um coração aberto, dez mil tigelas são como uma vasilha de barro;

Para um coração mesquinho, um cabelo é tão grande como a roda de uma carruagem.

341.

Sem chuva, vento, flores e salgueiros, não existe a natureza;

Sem sentimentos, anseios, preferências e hábitos, não existe mente.

Somente quem controla as coisas, e não é escravo delas, tem sua vontade inspirada pelo Céu, e seus pensamentos encontram a justa medida.

342.

Somente quando uma pessoa compreende a si mesma, é que pode deixar as dez mil coisas se desenrolarem, conforme suas dez mil naturezas.

Somente quando se governa corretamente pela não-ação, sem reclamar méritos, mas deixando a natureza agir, essa pessoa pode ser dita sábia.

343.

Numa vida ociosa, pensamentos estranhos chegam como ladrões.

Numa vida ocupada, a natureza humana não pode ser percebida.

Não afaste totalmente as preocupações com o corpo e a mente, mas não evite, por completo, as preocupações com a natureza.

344.

A mente se perde em meio ao caos e a confusão;

Mas em silêncio, ela se esvazia por completo;

Ascende ao Céu, voa longe com as nuvens;

Refresca-se com as gotas de chuva;

Alegra-se, e entende o canto dos pássaros;

Acalma-se, e pondera sobre a queda das pétalas das flores;

Esse não é o paraíso?

Como compreender a verdade do mundo?

345.

Quando nasce uma criança, a mãe corre risco; riquezas guardadas atraem ladrões; assim, onde há razão pra comemorar, há que se preocupar também.

A pobreza ensina a simplicidade e a diligência; a doença ensina a cuidar da saúde; assim, onde há razão para se preocupar, há aprendizado também.

O sábio olha sorte e azar como coisas iguais, e esquece a diferença entre alegria e tristeza.

346.

O Ouvido aprende escutando; ouve os ventos sibilarem nos abismos e ravinas, mas depois que passam, tudo fica em silêncio.

Os estados da mente são como a lua refletida no lago; quando o céu está vazio, não se vê nada.

Assim, se esquece a diferença entre “isso” e o “eu”.

347.

Quando o coração está enredado em honras e benefícios, tudo o que se faz ou se diz no mundo termina em tristeza;

Não se conhece as nuvens brancas, o vento puro, o rio que corre, as pedras amontoadas, o rosto das flores, a alegria dos pássaros, ou o canto do lenhador que ecoa no vale.

Mas quem as conhece, se acalma; e a tristeza vai embora, pois foi ele mesmo que sossegou sua mente.

348.

Observe as flores quando estão pra desabrochar; beba vinho somente até ficar um pouco tonto; dessa forma, aproveita-se muito mais as coisas.

Observe as flores em todo o seu esplendor; beba até ficar bêbado; dessa forma, tudo que é bom fica ruim.

Quem tem uma alta posição, deveria refletir um pouco mais sobre essas coisas.

349.

As plantas crescem nas montanhas, sem que alguém lhes dê água ou estrume, e seu sabor é delicioso;

As aves voam pelos campos, sem que alguém as crie ou lhes dê comida, e seu sabor é incomparável;

Dá-se o mesmo com quem convive com o vulgar, mas não é contaminado por ele, mantendo sua pureza original. Tal pessoa não é um exemplo?

350.

Cultivar flores, plantar bambus, brincar com as garças, observar os peixes, tudo isso deve ser feito com atenção.

Quem o faz de forma vazia e displicente, sem perceber a beleza da natureza, é aquele que os confucionistas chamam de ‘superficial’, e os budistas de ‘ pretensioso’.*

O que pode haver de bom nisso?

*no original, ‘pessoa de boca e ouvido’ (=superficial); e ‘pessoa ignorante e arrogante’ (=pretensioso). [O primeiro despreza conhecer; o segundo ‘pretende’ que conhece.]

351.

O Educado que vive nos bosques e montanhas leva uma vida austera, honesta, simples, e está sempre satisfeito;

O camponês dos prados leva uma vida simples e ignorante, mas conserva sua ingenuidade e pureza;

Quem foge do mundo das coisas pra depois voltar a ele, se transforma num mísero negociante; seria melhor ter morrido nos campos, sem contaminar seu corpo e alma.

352.

Tome cuidado quando ganhar fortunas sem razão, ou desfrutar de alegrias não-merecidas; pode ser um teste, uma tentação imposta pelo Céu.

Há gente de visão limitada, que sempre cai nessas armadilhas.

353.

A vida humana é como uma marionete:

Se as cordas estão em suas mãos, livres, desembaralhadas, e você pode movê-las como quiser;

Então, você controla sua vida, e nada pode manipulá-lo;

Só assim livra-se das cordas do mundo.

354.

Vantagens e desvantagens surgem juntas; quem sabe disso, abaixo do Céu, entende que a felicidade é a não-ação.

Um antigo provérbio diz:

‘Aconselha o soberano a deixar de lado suas conquistas, pois apenas uma vitória deixa dez mil crânios apodrecendo no campo’

E também:

‘Deixa em paz todas as dez mil coisas abaixo do Céu, e não se importe se sua espada enferrujar na bainha por mil anos’.

Quem compreende essas palavras, pode amansar um coração impulsivo e violento, como se o refrescasse debaixo do sol.

355.

Uma mulher indócil pode corrigir-se, e virar monja; um homem mesquinho pode controlar-se, e seguir o Caminho num templo.

Por isso, os templos servem para o refúgio e a correção dos perdidos.

356.

Quando as ondas chegam até o Céu, quem está no barco não se assusta, mas quem está de fora, fica amedrontado;

Quando acontece um tumulto numa festa, quem está no salão não se impressiona, mas quem vê de fora, fica apavorado;

Por isso, o sábio, quando está dentro de alguma situação, projeta sua mente para fora dela.

357.

Aja menos, erre menos;

Menos amigos, menos confusão;

Fale menos, menos equívocos;

Preocupe-se menos, menos aporrinhação;

Menos astúcia, mais integridade;

Quem mais trabalha* todo dia, sem cessar, forja grilhões para si mesmo, por toda a vida.

*[Planeja, ambiciona, executa ações em proveito próprio, busca proveito, etc. Outro sentido possível é o de não esgotar-se, mesmo sendo o trabalho digno.]

358.

Calor e frio podem ser evitados em qualquer estação, mas a inconstância das pessoas não;

A inconstância pode ser controlada, mas não cura a irascibilidade;

Quem controla a inconstância, e cura o coração irascível, alcança a paz no coração e a calma do espírito, como se lhe soprasse uma brisa primaveril.

359.

Meu chá não é o melhor, mas eu sempre tenho um bule cheio;

Meu vinho não é o mais fino, mas sempre tenho uma botija cheia;

Meu alaúde é simples, mas toca bem;

Minha flauta é pequena, mas não é desafinada, e me alegra;

Em viver a vida de modo simples, eu não sou tão bom quanto Fuxi, mas me contento em dizer que chego perto de Jikang e Ruanji.*

*Fuxi, primeiro sábio das eras primitivas chinesas; Jikang e Ruanji são integrantes do mítico grupo dos sete sábios do bosque de bambu, ascetas desapegados da vida social, e dedicados a uma vida despojada.

360.

O budismo ensina: ‘siga a natureza’;

O confucionismo ensina: ‘siga o apropriado’;

Esses ensinamentos são a bóia com que atravessamos o Mar da vida.

Os caminhos do mundo são vastos e ilimitados;

Busque o Topo, e você terá mil dificuldades;

Acostume-se com sua vida, sem pretender altas posições, e você viverá em paz de espírito.

* O Cai Gen Tan菜根譚foi escrito no século XVI pelo erudito Hong Yingming 洪應明 (ou Hong Zicheng洪自誠, 1572-1620), próximo ao final da dinastia Ming大明 (1368-1644). (…) Hong buscava estabelecer uma analogia entre as três grandes correntes do pensamento chinês em sua época: Confucionismo, Daoísmo e Budismo Chan (Zen). O livro de Hong é uma apresentação de trezentos e sessenta aforismos sobre os mais diversos aspectos da vida, sempre baseado nos ensinamentos das três grandes linhas.

22 Ago 2023

Zhang Ruocheng, a Viela Estreita e o Espírito Livre

Zhang Tingyu (1672-1755), o erudito e historiador que dirigiu a compilação da História dos Ming, foi também um político notável ao serviço de três sucessivos imperadores; Kangxi, Yongzheng e Qianlong, num tempo em que em que a grandeza e o poderio do império dos Qing alcançou um ponto alto. E mesmo se, no fim da sua vida as relações com Qianlong se deterioraram, ele seria o único funcionário oficial superior de etnia han durante a dinastia Manchu, a ter uma tabuleta póstuma em sua memória no Templo dos antepassados, Taimiao, junto da Cidade Proíbida.

Conhecendo a sua biografia, dir-se-ia que essa capacidade de adaptação a um tempo de grande convulsão interna, apoiada numa facilidade de comunicação pela convergência da elevação dos espíritos, era para ele uma herança familiar. Em Tongcheng (Anhui) onde nasceu e de onde era originária a sua família, é conhecida uma história sintetizada num «provérbio» em que o seu pai é o protagonista. Diz-se que Zhang Ying o seu pai, funcionário na corte, recebeu um dia uma carta dos familiares que estavam na casa de família que lhe pediam para resolver uma disputa com o vizinho do lado acerca dos limites das duas casas, que os tribunais locais não conseguiam solucionar. A resposta de Zhang Ying veio na forma de um poema que dizia: «Escrevem-me uma carta de tão longe, a grande distância só por causa de um muro, Toda uma confusão só por causa de um ou dois metros. Olho para a Grande Muralha, longa de dez mil quilómetros, Passado é já o tempo do seu construtor, o imperador Qinshihuang.»

Os familiares entenderam e num gesto de condescendência recuaram o muro, um metro. O vizinho, olhando para o gesto também percebeu e recuou igualmente o seu muro um metro, criando entre as duas propriedades uma congosta com cerca de dois metros de largura. A situação exemplar para a resolução de conflitos seria até hoje referida com os três caracteres liu chi xiang, «ruela apertada, espíritos abertos».

Zhang Tingyu teria três filhos que serviriam o imperador e que se distinguiram nas artes do pincel em que a moral e a estética eram padrões que qualificavam os literatos. Ruoting (1726-1802) na caligrafia, Ruoai (1713-46) mostrou agudeza de abservação e domínio da alegoria na pintura de pássaros e plantas, e Ruocheng (1722-70) faria pinturas de paisagens em que a proporção era indiferente à dimensão. Num longo rolo horizontal, Viajando até ao sagrado cume do Sul (34,9 x 632,6 cm, no Museu de Arte do Condado de Los Angeles) os lugares figurados são identificados em pormenor, como num mapa. Noutro pequeníssimo rolo, vendido no mercado (Bonhams) com inscrição de Qianlong (tinta sobre papel, 3,8 x 16,5 cm) feito para ser colocado numa «arca de muitos tesouros», duobao ge, revela intimidade com o imperador esteta que valorizou a sua própria família como um tesouro.

21 Ago 2023

Dai Zhen, a benevolência e o desejo

Andei a ler a PESQUISA SOBRE O BEM, de Dai Zhen (戴震 Tai Chen, em Gilles-Wade), um filósofo do século XVIII (1723-77), da escola confucionista da dinastia Qing. Este pretendeu regressar às origens, afastando-se propositadamente dos neo-confucionistas dos períodos Song e Ming, cujas teorias estão impregnadas de ideias daoístas e budistas.

Dai Zhen foi um filósofo que teve a felicidade de ser reconhecido no seu tempo, apesar de ter reprovado cinco vezes nos exames imperiais. Nunca chegou a mandarim, mas contribuiu decisivamente para a cultura do seu tempo, nos campos da matemática, geografia, fonologia e, naturalmente, da filosofia.

A obra PESQUISA DO BEM, como o próprio título indica, é muito influenciada pelas teorias de Mengzi, ou, à portuguesa, de Mâncio.

Para Mengzi (372-289 a.C), o homem é bom por natureza, por isso a bondade é a virtude-fundamento da humanidade. Ora Dai Zhen, já em pleno século XVIII vem contribuir para recuperar e desenvolver esta linha de pensamento avançada no século III a. C.

Para o filósofo, o bem é uma teia composta por três virtudes: a benevolência, a justiça e a propriedade. Só o homem bom, justo e correcto vive humanamente. Por isso, deve cultivar, antes de mais, a benevolência, que é a raiz de todas as outras virtudes. Esta define-se, ao nível corpóreo, como uma força criadora, que actualiza as forças criadoras do Céu e da Terra, também elas benevolentes. Estas conjugam-se entre si e com o homem numa harmonia pré-estabelecida.

Assim, o Céu é criativo, a Terra receptiva e “quem adquire a força produtiva do Céu e da Terra é benevolente. Quem obtém os princípios de ordem e da razão, é sábio” (Tai Chen’s Inquiry into Godness, Honolulu, East-West Center Press, 1971, p. 69).

Os princípios morais advêm da sábia conjunção da razão e da sensibilidade. Com Dai Zhen, a bondade passa a ser perspectivada em termos de força produtiva, mas sem prescindir de um enquadramento racional. Este é um grande avanço para o aparecimento de uma nova filosofia chinesa, que procurará colmatar o fosso criado por posições filosóficas extremistas, defensoras de idealismos e materialismos exacerbados.

Assim, papel de destaque conferido à bondade não leva o filósofo a esquecer que os desejos, sobretudo quando absolutizados, podem ser verdadeiramente perniciosos, por isso defende sempre a acção condutora e auto-controladora da mente nos assuntos humanos.

No entanto, a razão não entra em conflito com a sensibilidade, muito pelo contrário: a bondade, enquanto força – e força de amor – é a “virtude mais elevada”(p. 70), não se limita à esfera humana, estende-se a todo o universo: “a força produtiva do Céu e da Terra assenta na benevolência” (p. 71)

Mas em que consiste exactamente esta benevolência universal que o filósofo iluminista defende?

Ela é uma força e pode ser definida como desejo. Que os homens e toda a natureza tenham desejos, nada de mais natural para Dai Zhen, com uma ressalva: estes desejos para serem realmente bons, isto é, para estarem de acordo com a ordem da natureza, não podem ser egoístas. Diz-nos o filósofo: “ Quem tenha desejos sem egoísmo, é benevolente” (p.72).

Se pensarmos bem, o que tem dado ao desejo tão mau nome, apesar de todas as tentativas de salvação, vindas nomeadamente da área psicanalítica ocidental, é o facto de ele se expressar como uma força individual, poderosa, avassaladora mesmo, com tendência a assumir-se totalitariamente naquele em que faz a sua aparição.

Alguém cegamente possuído pelo seu desejo torna-se egoísta e insuportável para os outros. No entanto, já alguém que lide sabiamente ou racionalmente com a sua sensibilidade, é um sábio, porque deixou falar em si todos os aspectos da sua natureza.

O homem só é verdadeiramente superior quando faz com que “os seus desejos se conformem aos princípios da razão e da correcção “(p.97). Mais do que recalcar os instintos, interessa controlá-los e tirar o melhor partido deles, porque, não esqueçamos, é na sua força que se manifesta a virtude da benevolência.

Esta força tão boa, tão positiva, encontra-se um pouco por toda a parte, por exemplo: “no crescimento dos troncos, das folhas, dos botões e dos frutos das árvores(…), por isso a capacidade da actividade criativa é chamada benevolência”(p.74)

Segundo o filósofo, a natureza do homem – com os seus desejos, sentimentos e poder racional – não podia ser melhor. Há até um acordo básico entre toda a natureza, uma harmonia pré-estabelecida à maneira de Leibniz, que coopera para tornar a vida fácil àquele que, não só deixa falar a sua natureza benevolente, os seus desejos, como também procura desenvolver a sua pessoa, seguindo o exemplo dos sábios e o estudo aturado dos clássicos.

“O caminho de suster e manter a vida encontra a sua chave em desejos, o caminho da simpatia e profunda compreensão encontra a sua chave em sentimentos. Isto porque os desejos e os sentimentos são os signos do natural.”(p. 75) E, um pouco adiante: “Os desejos formam o caminho do Homem, estão enraizados na natureza humana e encontram expressão no dia-a-dia”(p. 76). Nada têm de vergonhoso ou pecaminoso, traduzem-se em expressões amorosas que temos para com os amigos, os familiares e os filhos. Para este filósofo tão inovador, quando expressamos a nossa natureza em equilíbrio, estamos a cultivar o caminho do Céu.

O pior inimigo da benevolência é, como já referi, o egoísmo e o seu maior amigo a lealdade. O Céu ao dar e a Terra ao receber estão a ser benevolentes. O homem, se proceder de acordo com eles, também dá e recebe. Logo, o melhor antídoto para o egoísmo, que mata a benevolência, é justamente o altruísmo. A natureza contém em si os princípios da razão e da bondade, há que segui-los sem medo, sendo fácil e simples como ela.

O homem de Dai Zhen, este todo sensível e racional, tem que lutar contra dois inimigos. Um deles já conhecemos, situa-se ao nível da sensibilidade e é o egoísmo, que se define como satisfação exclusiva de desejos privados; o outro, é a confusão que se apodera das mentes, ao entrarem em contacto com os outros e com o mundo. Ora um homem confuso torna-se facilmente iludível e estúpido, o remédio para contornar este obstáculo mental está na educação e no estudo.

Resumindo, libertamo-nos da confusão por meio do estudo e auxiliados pela virtude da fé e libertamo-nos do egoísmo através de acções leais e compassivas, atingindo assim o núcleo da teia de virtudes formada pelo bem: “sendo leais, podemos agir com benevolência, tendo fé podemos realizar a justiça e possuindo compaixão, no que diz respeito às outras pessoas, podemos praticar a propriedade”(p. 101)

Mas não esqueçamos que, para o filósofo, o “protótipo” das virtudes é a benevolência, esta força altruísta que pode ser desenvolvida com lealdade: “um homem que tem os seus próprios desejos e que também tem em consideração os desejos dos outros, é benevolente. Um homem que tem os seus próprios sentimentos e, também, tem em consideração os sentimentos dos outros, é sábio”(p.105).

Logo, depois das máximas humanas ‘amai-vos uns aos outros’ e ‘não faças aos outros o que não queres que te façam a ti’, creio que podemos avançar com nova, desta vez inspirada neste filósofo tão original: faz aos outros aquilo que eles benevolentemente desejem.

20 Ago 2023

O Gu e o Da E

É sobejamente conhecido que os excessos da juventude acarretam, por vezes, consequências trágicas e irreparáveis. Infelizmente, a história fervilha de exemplos que vão do malogrado Ícaro a ídolos recentes do rock’n roll, ancorados em razões que ultrapassam o nosso modesto objectivo. Ora também a famosa Montanha do Sino, na parte norte da Cordilheira do Oeste, assistiu a uma história do género com repercussões na fauna que desde então ali passou a habitar.

Em tempos já esquecidos, reinava na Montanha do Sino um deus chamado Zhuyin (Dragão-Tocha), que era suposto ser responsável pela luz e pelo breu, pela chuva e pelo vento. Além dele, nesta montanha abençoada, cabriolava também o seu filho Gu (que significa Tambor), geralmente na companhia de Qinpi, seu amigo de folguedos.

Com o tempo, as brincadeiras de rapazes tornavam-se cada vez mais ousadas e distantes da protecção paterna. Os dois mancebos atreviam-se a fazer incursões noutras terras, por vezes distantes da sua montanha natal. E foi precisamente numa dessas temerárias excursões à encosta sul do Monte Kunlun que Gu e Qinpi mataram Baojiang, ele próprio um deus menor. A razão que os levou a cometer este teocídio não é relatada em nenhum documento credível. Provavelmente, nenhuma razão os movia, a não ser demonstrarem a si mesmos o seu poder: coisas de rapazes com problemas de afirmação identitária que, pelos vistos, também ocorrem entre seres divinos.

No entanto, apesar da tenríssima idade dos dois meliantes, o crime não ficaria impune. Ao saber da morte de Baojiang, o Imperador do Céu (outras fontes garantem ter sido Huangdi, o Imperador Amarelo) condenou-os à morte e ele próprio os executou sobre um abismo situado nos contrafortes da Montanha do Sino.

Sendo seres de origem divina, ao morrerem imediatamente se metamorfosearam em dois animais de singulares características. Gu adoptou a forma de uma ave com corpo de coruja, bico direito, marcas amarelas e cabeça branca que, quando resolve emitir sons, o que lhe sai da garganta é semelhante ao canto do cisne, embora no grasnar do Gu não sejam reconhecidas tendências mórbidas.

A tradição afirma que avistar um gu é sinal de que uma grande seca vai afligir aquela região. De notar ainda que, na sua primeira vida, antes de ter ocorrido a referida metamorfose, Gu possuía um corpo de dragão encimado por uma cabeça humana.

Já da antiga forma de Qinpi não existe descrição. Sabemos é que, depois de executado, se transformou numa fabulosa ave de rapina, com corpo de águia, salpicado de negro, cabeça branca, garras de tigre e bico encarnado.

Dão-lhe o nome de Da E, que significa Grande Falcão. A sua aparição, temperada por assustadores grasnidos, é augúrio da proximidade de uma guerra fratricida.

E, nestes preparos, assim andam os dois pela Montanha do Sino: duas aves de rapina, talvez inseparáveis, senhoras dos céus e das encostas escalavradas daqueles montes perdidos na imaginação da China Antiga.

18 Ago 2023

“Toda a beleza tem algo em comum: a absoluta necessidade de ser vista!”

Um ponto de situação com Michael Xincheng Du, coleccionador de arte e de antiguidades chinesas, especialista na cultura pré-histórica Hongshan, aproximadamente 10.000-5.000 aec.

 

Quando era jovem, dirigia um bem-sucedido negócio de consultoria em Shenzhen, que, na altura, era a cidade modelo da China do futuro. Por uma curiosa reviravolta do destino, Michael instalou-se no Canadá e entregou-se de corpo e alma ao ainda mais curioso mundo da arte e do coleccionismo de antiguidades, conquistando um grande número de admiradores em todo o mundo. O que é que o move? A Beleza!

A arte e cultura são tesouros através dos quais a humanidade se expressa. Por isso, na sua opinião, a Beleza é o legado derradeiro?

Beleza é poder. A Beleza espoleta a inigualável paixão humana pela criação e estimula o melhor do nosso intelecto e força espiritual, patenteados em artefactos soberbos. A beleza transcende o prazer estético: é o único instrumento humano eficaz para a auto-descoberta!

A Beleza é um assunto sério. Foi a sua auto-descoberta após três anos de hiato devido à pandemia?

Conhece Oscar Wilde… O esteta dizia que ser belo é melhor do que ser bom. Eu diria que o belo é mais inteligente do que o inteligente. Tenho dificuldade de falar da pandemia. Como sabe, tive de suspender a actividade do meu espaço de leilões de arte, que tinha inaugurado pouco antes do surto da doença. A Baozhen International Art Auction House está localizada na Península de Shandong, a província natal de Confúcio, e abrange no total uma área de aproximadamente 32.000 metros quadrados, dos quais 2.000 são dedicados a exposições permanentes. Além disso, temos espaços educativos e de entretenimento e lazer. Estava ansioso para fazer algo que verdadeiramente me apaixonasse. Temia não vir a cumprir a minha missão nesta vida.

Encontrou a sua paixão em algo mais ancestral do que antigo — a misteriosa cultura Hongshan, situada entre os anos 10.000 e 5.000 AC.

Tenho de admitir que é um assunto muito controverso. Os historiadores tradicionais não sabem como lidar com este período. Tudo na Cultura Hongshan contradiz a cronologia oficial, não só da História chinesa como da História mundial! A Cultura Hongshan parece sugerir que a história humana fez planos que não nos atrevemos a sondar. Neste momento, estou a trabalhar em conjunto com o Museu Hanjiangxue, o maior museu privado da China. O seu fundador, Qiu Jiduan, possui uma colecção impressionante que transcende a Cultura Hongshan. O museu clama por explicações que exijam o menor número de conjecturas. Estou, em conjunto com Qiu Jiduan, a planear a realização de uma série de televisão com 30 episódios que funcionará como uma janela única para audiências internacionais. Eu e minha equipa estamos a trabalhar numa proposta ousada para explanar os ciclos da civilização chinesa. É algo que nunca foi feito a uma escala tão ambiciosa e que eu simplesmente adoro!

Vai provar que a mitologia chinesa é inventada a partir de eventos reais?

A mitologia é um símbolo do sistema. Mas eu quero ver para além disso. A mitologia chinesa contém códigos cósmicos que revelam a criatividade humana na aurora da civilização, quando a humanidade experienciava o conhecimento científico do real bem como quando tentava entender a ciência da natureza de uma forma mais profunda. Ao designá-los simplesmente por mitos criamos um obstáculo que não permite tomá-los a sério. Aparentemente, são significativamente mais do que apenas histórias repletas de simbolismo e de metáforas. Há mais de 25 anos, descobri a Cultura Hongshan e senti-me muito atraído pela sua excentricidade. Os fantásticos enigmas que talvez um dia venham a rescrever toda a história da humanidade. Todos sabemos que a história é um local pouco seguro, mas agora pode tornar-se ainda mais perturbador.

Estou muito entusiasmada com a série de que falou. Pode falar um pouco mais sobre o assunto?

Os antigos egípcios tinham Nefertiti. Alguém conhece a Deusa da Criação Chinesa e a sua fulgurante e inteligente história de criação? Mas desta vez a minha abordagem é diferente. Quero fazer uma série de televisão épica: para mostrar pela primeira vez ao mundo a sua Beleza! Quanto mais me embrenho no mundo ancestral, mais me sinto inspirado e intrigado pela interrogativa que colocavam na origem da civilização! Estou empenhado em recuperar a beleza grandiosa da Deusa do Templo que representa a mais alta escala, o nível mais elevado e a expressão mais proeminente de crenças que podem mesmo não ser deste planeta.

Acredita que a Deusa do Templo da Cultura Hongshan é dedicada a visitantes extraterrestres que criaram a Humanidade com a sua tecnologia?

Tive longas trocas de ideias com o americano futurista Nova Spivack sobre este assunto. Estamos ambos convencidos que compreendemos mal o nosso passado — assim como no futuro nos irão compreender mal a nós. A série de televisão é uma boa forma de alargar a dança criativa das possibilidades. Também quero que cada vez mais pessoas adquiram conhecimentos sobre arte e cultura chinesa, que é imensamente desconhecida lá fora. Deve dizer-se mais vezes às pessoas que, apesar de tudo, o passado está vivo. O nosso passado civilizacional contém elementos secretos direccionados para o progresso e para o futuro. A energia da Beleza, que tem um poder nutritivo em todos nós.

Concordo consigo. A grandiosidade não vem de tentar alcançar o possível.

Admiro o alcance da visão de Qiu Jiduan pelas actividades que desenvolve há décadas e pela majestade da colecção exibida no seu museu privado. Tenho pena que o Museu Hanjiangxue não seja tão famoso como o British Museum ou o Louvre. Penso que é um erro. A civilização chinesa é requintada, refinada é seguramente “não aborrecida”. 30 episódios é o começo. Se eu apenas tentar trabalhar arduamente e me mantiver fiel a mim próprio, vou ser capaz de desvendar cada item do tesouro que é esta colecção de tirar o fôlego. Vou devolver o poder ilimitado do passado! Toda a beleza tem algo em comum: a absoluta necessidade de ser vista!

17 Ago 2023

Qiu Jin – Poesia e luta

Artigo de António Izidro

I

Foi um século de humilhação, bullying e de dominação agressiva do Império do Meio por potências estrangeiras a partir de 1840 até à recuperação, em 1945, do último reduto no nordeste de Shangdong ocupado por japoneses e alemães. Um período de vexames na história da China, marcado pelos conflitos armados Sino-brtiânicos por causa do ópio que a Companhia das Índias Orientais inglesa introduzia ilegalmente no território chinês, para envenenar o povo e equilibrar as contas do comércio com a China, a que se seguiram os conflitos com o Japão e a França e, claro, a ocupação da Aliança das Oito Nações em 1900 (Áustria- Hungria, Alemanha França, Itália, Japão, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos da América). Pelo meio, os chineses assistiram penosamente à assinatura de tratados desiguais a coberto dos quais as potências estrangeiras obrigaram a monarquia chinesa a ceder territórios, franquear portos marítimos, incorporando nesses tratados demandas indemnizatórias para reparar as guerras. Enfim, uma China humilhada, esquartejada, repartida pelas nações invasoras, o palco que o povo chinês coabitou com matanças, saques, escravização das mulheres chinesas e tudo o que as potências estrangeiras podiam fazer para consolidar a ocupação.

Qiu Jin (1875-1907) foi uma escritora defensora do feminismo e activista do movimento revolucionário de Outubro de 1911 que pôs fim ao regime monárquico. Nasceu em Fujian, filha de pai funcionário do governo e de mãe literata, pelo que Qiu Jin recebeu uma educação esmerada, especializando-se em história e literatura. Desde jovem eram já evidentes os dons de escrita e o grande patriotismo, nesse período conturbado da colonização estrangeira. Perturbava-a a incapacidade dos imperadores Qing, sofrendo derrota após derrota. Viu nascer a Rebelião dos Boxers, de 1899, movimento anti-colonislista e anti-monárquico, que foi repelido pelas tropas governamentais e a coligação das nações estrangeiras.

Com o coração magoado e desfeita em lágrimas, Qiu Jin partiu, em 1904, para o Japão e aí juntou-se às estudantes chinesas em Tóquio, pregando a salvação nacional e a defesa dos direitos da mulher. Os argumentos aduzidos iriam confirmá-la como destacada líder do movimento feminista, devido também aos seus dotes oratórios. Fundou dois periódicos, “Mulher Chinesa” e “Língua Vernácula”, como base do movimento, insistindo na emergência de quebrar as correntes do feudalismo, restituir a identidade à nação e no papel da mulher na implementação de uma nova cultura chinesa.

Os últimos anos da sua vida foram de maior envolvimento, tendo assumido a direcção escolar de Datong na província de Zhejiang, em cujas instalações montou o quartel do movimento, de onde eram enviados mandatários para promover a revolta. Ela própria percorria entre as cidades de Hangzhou e Xangai, delineando programas de acção e incitando o povo. No dia 6 de Julho de1907, Qiu Jin recebeu a notícia da malograda revolta da cidade de Anhuei. Após a prisão dos revoltosos, era iminente que o exército imperial também viesse cercar a escola. Aconselhada a abandonar, ela preferiu não fugir. “O sucesso de uma revolução oculta sangue”, dizia.

As cores do outono

Qiu é o apelido da escritora e agradava-lhe particularmente a palavra que significa outono, a estação do ano pintada pela cultura tradicional comum com as cores da desolação, dos sentimentos mórbidos. Os antigos eruditos escreviam deploravelmente que primavera era a inquietação das jovens diante do envelhecimento, vendo o tombar das flores e que no outono o sombrio tolda os olhos dos jovens, não lhes permitindo ver o fundo da estrada onde a sua heroicidade caminha. Outono esmorece a alma, e algo parecido escreveu Pessoa em Cancioneiros:

Esqueço-me das horas transviadas

o Outono mora mágoas nos outeiros

E põe um roxo vago nos ribeiros…

Hóstia de assombro a alma, e toda estradas…

(…)

No meu cansaço perdido entre os gelos

E a cor do outono é um funeral de apelos

Pela estrada da minha dissonância…

Qiu Jin foi presa no dia 10 de Julho de 1907 e decapitada no dia 15. Antes da execução, deram-lhe um folha de papel para assinar a confissão. Nela, a escritora e heroína escreveu tão só sete caracteres:

秋風秋雨秋煞人

Outono ventoso, outono chuvoso, outono fatídico

sobre mim se derrama

As obras de Qiu Jin oferecem uma visão sumamente reveladora do seu sonho e ideal em resposta ao período histórico conturbado em que vivia. São conhecidos cerca de 13 trabalhos, entre colecções de poemas, ensaios e romances produzidos. ´Sentimentos´ e ´Hora fremente´(em chinês clássico) foram compostos durante uma viajem ao Japão, onde encetaria acções de consciencialização às jovens estudantes chineses a aderirem ao movimento feminista. Notório é o estilo da escrita, cultivando ainda uma poesia muito atrelada à forma de poetizar dos antigos, não dispensando, por exemplo, evocar exemplos da antiga história análogos à situação política do seu tempo. De resto, pode-se ler nos poemas a mágoa pela pátria decadente, sem esconder um certo o sentimento de culpa de não ter contribuído mais para a causa revolucionária.

有怀

日月无光天地昏 沉沉女界有谁援?

钗环典质浮沧海 骨肉分离出玉门

放足湔除千载毒 热心唤起百花魂

可怜一幅鲛绡帕 半是血痕半泪痕

Sentimentos

Sol e lua sem luz,

céu e terra em densas trevas

quem deste abismo ajudará

a mulher a levantar-se?

Empenhei as minhas jóias

para atravessar o mar,

apartada da família,

sigo pela Porta de Jade.

Meus pés de mil venenos desenfaixo

e a alma das mulheres clama,

flores brancas em botão.

Dói-me este pobre lenço de seda fina,

metade de sangue manchado,

metade em lágrimas ensopado.

____________________

Porta de Jade – antigo posto de vigia na Grande Muralha que dava acesso às regiões do nordeste.

Panos dos pés – a nefasta tradição de as mulheres enfaixarem os pés com panos apertados para preservar a elegância feminina.

感时

莽莽神州叹陆沉,救时无计愧偷生。

搏沙有愿兴亡楚,博浪无椎击暴秦。

国破方知人种贱,义高不碍客囊贫。

经营恨未酬同志,把剑悲歌涕泪横!

A hora fremente

A pátria submersa no lamento verde de infindos prados

e como pesa nada ter para salvar o país.

Em grãos esparsos de areia desfez-se o reino de Chu,

as armas de Buó Lang surpreenderam o reino de Qin.

Pátria e povo destroçados,

ainda assim se erguerão desta infausta pobreza.

Deploro o esforço vão dos meus camaradas,

entoo a canção triste das espadas e das lágrimas.

___________________

Os ´grãos esparsos da areia´, a desagregação que levou o Reino de Chu a sucumbir no ano 223 a.C.

Buó Lang, a actual província de Henan onde Qing Shihuang, o unificador do império, foi surpreendido por um exército bem armado. A analogia que a poeta faz nestes dois episódios da antiga história com a ausência de unidade nacional da China do século XIX, feita prisioneira por nações estrangeiras manifestamente mais poderosas.

Não é difícil perceber quanto esta poetisa da revolta ansiava definir-se pela masculinidade e com ela contribuir vivamente à causa revolucionária. Aprendeu as artes de cavalgar e espada, não raras vezes surpreendendo vestida à rapaz nas actividades clandestinas, depois de aos 18 anos o pai lhe ter arranjado um casamento e em vão tentado fazê-la uma dama, enlace que, porém, não acabaria bem. Os néscios, desde logo o próprio marido, não entendem a essência da sua personalidade, dirá mais tarde num poema. Se a heroicidade cumpre por regra um trajecto, o início do seu envolvimento na libertação da pátria aconteceu numa das idas à capital, onde o movimento revolucionário em curso lhe tomou a alma. A compreensão que teve do estado do país propôs-lhe novas ideias, levando-a então a tomar a decisão de empenhar-se no movimento de salvação nacional e de libertação da classe feminina.

滿江紅 – 小住京華

小住京華 早又是中秋佳節

爲籬下黃花開遍 秋容如拭
四面歌殘終破楚 八年風味徒思浙

苦將儂 強派作蛾眉 殊未屑

身不得 男兒列 心卻比 男兒烈
算平生肝膽 因人常熱

俗子胸襟誰識我?

英雄末路當磨折 莽紅塵 何處覓知音?

青衫溼

O rio corre vermelho – uma curta estadia na capital

Estou na capital faz poucos dias,

o festival da Lua já espreita.

Flores nas cercas mostram-se amarelas,

purgam de impurezas o outono

Baladas de guerra ventam das quatro direcções

enquanto me liberto do cerco dos inimigos.

O sabor desta solidão de oito anos

traz-me saudade dos aromas da minha terra.

Forçaram-me a que donzela nobre me tornasse,

mas neste corpo de mulher,

sem poder perfilar com os homens,

bate um coração masculino

da ala dos que não se vergam,

mescla de alma e coração

por causas alheias ardia.

Hoje os néscios estranham

o espírito da minha essência.

Os heróis passam por provações

até ao fim do seu caminho

Imensidão, mundo de pó,

onde encontrarei uma alma gémea?

Pela minha veste escorrem lágrimas

_________________

«O rio corre vermelho» é um título comum a várias expressões artísticas sobretudo em poesia épica.

As baladas – referem-se aos conflitos pelo poder entre os reinos de Chu e Han ( séc. 3 a.C.). Durante o cerco, as tropas de Han entoavam baladas prenunciando a queda do Reino de Chu.

A mesma mágoa perante duas realidades: os problemas da nação e a saudade pela família, expressos neste desabafo a uma amiga em poema que, porém, transparece a pretensão da autora querer contornar a inquietação da alma, levando-a a compor em pusamán, uma versão vistosa usada em cânticos para danças da dinastia Tang, entoados por bailarinas da corte. Percebe-se a musicalidade da letra pusamán, que não é traduzível, mas a métrica são obrigatoriamente os versos pentassílabos e heptassilábicos.

菩薩蠻 – 寄女伴

寒风料峭侵窗户

垂帘懒向回廊步

月色入高楼

相思两处愁。

无边家国事

并入双蛾翠

若遇早梅开

一枝应寄来!

Mensagem para uma amiga – poema em versão pusamán

Ventos frios, janelas trespassadas,

divago pela casa, as cortinas bem fechadas.

De novo o luar ensopa este alto pavilhão,

e invade de tristeza meu saudoso coração.

No país todos os dias problemas redobrados,

duas mulheres atentas, os sobrolhos arqueados.

Se ameixeiras em flor, vires mais cedo este ano,

pensa em mim e por favor: Manda um ramo!

16 Ago 2023

Figuras femininas na mitologia chinesa

Na mitologia chinesa as deusas personificam virtudes e atributos tipicamente femininos. Retive algumas figuras, que me parecem particularmente importantes para um discurso sobre o feminino chinês.

A CRIADORA. Nu Wa , irmã ou esposa de Fuxi, o Primeiro Imperador, é a segunda na linha dos grandes imperadores míticos. Sobre esta força feminina, meia serpente, meia humana, há dois relatos famosos ligados à criação dos seres humanos. No primeiro, a deusa cria os seres a partir de um barro moldado pelas suas próprias mãos. Criou-os sozinha e porque, ao passear sobre a terra, sentia uma solidão imensa, já que apenas tinha por companhia a paisagem natural e os animais.
No segundo relato Nu Wa acasala com o irmão, depois de ter obtido licença prévia dos deuses, a fim de começar a humanidade. Em ambas as versões, e psicanálise à parte, parece-me importante frisar a ausência de um marido real. Na primeira versão, a deusa está completamente sozinha, na segunda é acompanhada por um membro da família no acto de criação, que não o seu marido de direito. Cabe exclusivamente à mulher chinesa tradicional, não só a concepção, como o acompanhamento e educação dos filhos. As criadoras solitárias sucedem-se na mitologia. Elas concebem pelo facto de comerem ovos de aves, tal como é o caso da Rapariga de Yousong que engole ovos de andorinha. Jian Di, a mais velha de duas irmãs muito belas, ficou grávida depois de ter engolido dois ovos de andorinha. E assim nasceu Xie, o patriarca do povo Yin. Ou, ainda, no mito da Criança Abandonada, Jiang Yuan, membro do clã Youtai, concebeu através do encontro com uma pegada de gigante. Deu à luz um filho, que primeiro abandonou e, depois, adoptou, após inúmeras peripécias. Este viria a ser o ilustre patriarca do povo Zhou.

A PACIFICADORA. É ainda Nu Wa quem nos apresenta uma das virtudes femininas mais apreciadas pelas “duas metades do céu”: a capacidade de harmonizar e até anular forças destrutivas. Em Nu Wa remenda o firmamento, a deusa surge a repor a ordem no mundo, após parte do céu ter desabado, muito possivelmente na sequência de um conflito entre os machos celestiais. Ela quer e consegue remendar o firmamento para que os seus filhos humanos possam voltar a viver bem.

A DUPLA. A figura da duplicidade é bem representada por Xi Wang Mu, ou seja, pela Rainha Mãe do Oeste. Esta deusa distante, que vive na Montanha de Jade, em Kunlun, é bastante masculina de aparência. Alguns investigadores chegam mesmo a levantar a hipótese de ela ter começado por ser um homem. A verdade é que, embora tenha forma humana, possui cauda de leopardo e dentes de tigre. Mas a sua duplicidade não se circunscreve ao domínio físico. Dela dependem as doenças, as calamidades e a própria morte, tanto na faceta positiva como na negativa. Assim, encontramo-la a espalhar pragas, mas também, a distribuir elixires e pêssegos da imortalidade. Recorde-se, a título de exemplo, o mito de Chang E voa para a Lua, onde a Rainha Mãe do Oeste recompensa com o elixir da imortalidade o arqueiro Hou Yi, pelo facto de ter abatido os nove sóis.

A ESTRANHA. É a figura típica da estrangeira, da mulher que não pertence ao povo chinês. As heroínas estrangeiras são sempre mais animalescas, mais bárbaras, mais selvagens, tal como aquelas fêmeas que pertencem ao Povo das Mulheres. São uma espécie de amazonas, que têm medo dos homens e morrem em contacto com os chineses. São altas e claras, possuem o corpo coberto de pêlos e ostentam uma farta cabeleira até aos pés. Não têm seios e amentam os filhos pela raiz do cabelo, que é branca. Quando dão à luz bebés masculinos, estes não conseguem ultrapassar os 3 primeiros anos de vida. Logo, estas mulheres, não podiam ser piores…

A TRABALHADORA. Também o mundo mítico se divide entre deusas que trabalham e deusas de enfeite. Nem todas as deusas trabalhadoras personificam o próprio trabalho. Há, no entanto, dois exemplos notáveis de criaturas míticas cuja função parece esgotar-se na acção laboral. O primeiro é o de Lei Zu, a mulher do Imperador Amarelo, que ensinou às chinesas a arte de fabricar a seda, o segundo é o da tecedeira. Recorde-se o trágica estória de amor do Vaqueiro e da Tecedeira. A tecedeira é filha do imperador celestial. Dela e das irmãs, mas sobretudo dela, dependem as belas cores das nuvens do céu. Numa visita à terra, a tecedeira acaba por se casar com um vaqueiro. Têm dois filhos e ela vive feliz, mas no céu, todo o panteão olímpico passou a andar muito mal vestido, porque a tecedeira deixou de trajar as nuvens com as lindas cores da manhã e do entardecer saídas dos seus dedos. Logo a deusa foi obrigada, pela sua família celestial, a regressar ao céu. O marido e os filhos foram atrás dela. No entanto, para que a tecedeira não seja distraída dos seus trabalhos, apenas se reunem uma vez por ano, no sétimo dia da sétima lua. O resto do tempo, ela, a estrela Vega, e ele, a estrela Altair, vivem separados pela via láctea.

A AMANTE. A figura da mulher que espera apaixonadamente o seu marido é admiravelmente representada por Nujia, a esposa de Yu, o Grande. Este foi o fundador da dinastia dos Xia. O imperador, ocupadíssimo e amantíssimo da sua terra mãe, lutou anos a fio para tornar a China um país viável. Atravessou montanhas, domou rios, e esteve tão ocupado nestas tarefas que durante treze anos não foi a casa. A mulher, ao expressar a sua dor profunda, compôs o primeiro poema de amor chinês: Ó homem que eu espero, saberás tu que o tempo é longo… ( Charles Meyer, in La FEMME CHINOISE, 4000 ans au Pouvoir, Lattes, 1986).

A MULTIFACETADA. Chang E é o melhor exemplo da deusa humana ou multifacetada. Ela é, dependendo das versões, curiosa, desobediente, insegura, ciumenta, amorosa, traída… A esposa de Hou Yi, que viria a ser a deusa da lua, a quem é dedicada a festa do Bolo Lunar, é humaníssima nos seus defeitos e qualidades. Sobre a sua história há inúmeras versões. Resumindo, tenho lido sobretudo a versão em que ela, movida pela curiosidade, descobriu o elixir que o marido havia guardado e o tomou às escondidas. Na versão de Huainanzi, compilada por Liu An, o arqueiro Hou Yi foi pedir o elixir da imortalidade à Rainha Mãe do Oeste para libertar a mulher da sua condição mortal. Mas Chang E não aguentou o tempo de austeridade e pobreza exigido para a purificação e bebeu o elixir sozinha, fugindo em seguida para a lua. No poema Tian Wen, composto por Qu Yuan, ela resolveu tomar o elixir, depois de ter descoberto que Hou Yi se havia enamorado pela mulher de He Po, divindade do rio. Num bailado mais recente, intitulado A Viagem à Lua, Chang E voou para o céu por ter sido enganada por Pang Meng, chefe de uma tribo e aprendiz de Hou yi, que para suplantar o mestre, não só lhe afastou a mulher, como acabou por o matar.

BELDADES PASSIVAS. A beleza é para os chineses um atributo essencialmente feminino. Os deuses escolhem deusas belas. Casam-se e vivem em sistema de concubinato numa harmonia perfeita. No relato das Damas de Xiang, as duas deusas do rio Xaing são de uma beleza inexcedível. As princesas da água, respectivamente Ehuang e Niuying , filhas de Yao, foram cedidas pelo pai a Shun, o quinto imperador. E foram todos muito felizes. Quanto Sun morreu as damas choraram abundantemente…

BELDADES ACTIVAS. Os chineses vivem deslumbrados e aterrorizados com beleza feminina. Abundam os relatos de perdição, por causa de belas megeras. Não têm conta as estórias de imperadores, nobres e até homens vulgares que “caíram nas garras” de damas muito sedutoras. Assim, cito dois entre os inúmeros casos famosos, Zouxin, o terceiro imperador Shang, distinguiu-se pelos seus actos malévolos. Tinha uma força extraordinária e adorava toda a espécie de prazeres. Possuía também uma concubina, Daji, a quem procurava satisfazer, através de suplícios horrorosos, que infligia aos que caíam em desgraça. Dizem que por ela se perdeu a dinastia Shang. Outro caso, este já na dinastia Zhou, é o do imperador You e da sua paixão por Baosi. Ela não ria e o imperador, que adorava a concubina, tentava que ela sorrisse. Até que um dia descobriu que o som do rasgar da seda lhe despertava um leve sorriso. Escusado será dizer que, a partir de então se rasgaram quilómetros de seda, por causa daquele sorriso. Mais tarde, You conseguiu que ela risse. Para tal mandava acender o lume numa torre tipo farol. Mas o fogo costumava chamar a atenção dos estados vassalos de Zhou para o facto do soberano necessitar de auxílio. Tantas vezes ele acendeu o lume só para ouvir o riso da sua concubina favorita quando os guerreiros acorriam em vão, que, certa vez, era mesmo preciso apoiar o imperador e ninguém se mexeu ao ver a fogueira. E assim se perdeu a dinastia Zhou.
A mais temida de todas as figuras femininas é a da bela activa, porque na China a bela não liberta o monstro, pelo contrário, revela o monstro…

14 Ago 2023