José Simões Morais Via do MeioSegredos da seda (14) – Eclosão dos ovos e apuramento da linhagem O principal trabalho do Instituto Langzhong Can Zhong Chang é a produção de ovos da Bombix mori e como centro de pesquisa manter sobre vigilância apertada uma descendência feita de gerações provenientes da investigação e selecção, concluído nos cruzamentos entre crisálidas fêmeas e machos de diferentes origens geográficas. Já nos finais da Dinastia Ming, o cientista Song Ying Xing escreveu Exploração das Obras da Natureza, a tratar sobre a técnica de cruzamento de diferentes bichos-da-seda. A postura dos ovos feita na Primavera é uma parte guardada para a continuação da linhagem do ano seguinte e com a restante criam-se gerações para alimentar de casulos as fábricas durante todo o ano. No Instituto Langzhong Can Zhong Chang a cada óvulo é colocado um único espermatozoide e daí nasce um ser, obtendo-se melhorias pela genética na qualidade do animal e do fio. Serve também de conselheiro científico aos produtores que com amoreirais lhe compram ovos, sendo as lagartas entregues uma semana depois de nascerem. Visitámos as estufas com resmas de páginas cheias de ovos guardadas e constantemente analisadas para triagem, qual estabelecimento de sementeira onde os ovos do bicho-da-seda são vendidos, como lembra Victor Caruso no Manual Prático do Sericicultor [Edições Melhoramentos, São Paulo, Brasil, 1947], mas logo adverte: “Nenhuma conveniência há em serem produzidos pelos próprios criadores…” pois, “sem os devidos conhecimentos e desprovidos de aparelhagem adequada, a começar pelo microscópio para o exame das mariposas, os criadores incorreriam no risco de criar ovos provenientes de mariposas atacadas de pebrina”. [Percebe-se estar o animal com essa doença quando o corpo aparece ‘sarapintado’ com manchas do que parece ser pimenta numa pele arroxeada.] “Os ovos são vendidos já prontos para a eclosão. O criador não precisa ter outro trabalho a não ser, na posse da caixinha em que se encontram, distribuí-los numa superfície lisa em lugar arejado, sem raios directos do Sol e ao abrigo de formigas e outros insectos”. “Decorridos poucos dias, às vezes dois ou três, se dá o nascimento, ou como se diz na linguagem sericícola – a eclosão. Em casos excepcionais, muitas vezes devido à baixa temperatura, a eclosão demora oito ou dez dias, facto que não deve alarmar ninguém”. E continuando com Victor Caruso, “se tudo correu bem, os ovos esparramados, cuja cor vai clareando progressivamente, começam a picar, sempre pela manhã. No primeiro dia nasce um número muito reduzido de bichinhos, que são chamados espias. Já no segundo dia, com o romper do sol, há o que se chama o grande nascimento. A superfície da caixa parece uma grande mancha escura que se movimenta e as cabecinhas muito negras e luzentes das larvas dão uma nota característica. Na terceira manhã o nascimento continua, menor, todavia” e mesmo depois ainda há eclosão, “que se costuma desprezar. Vejamos como deve proceder o sericicultor, com referência ao nascimento verificado nos três dias. A diferença de um ou dois dias, nesse caso quer dizer muito. O período da vida de larva dura 24 a 30 dias; e o espaço de 24 ou 48 horas de atraso não permite que seu crescimento seja igual, uniforme, como convém, sob muitos pontos de vista. Para corrigir esse inconveniente, o sericicultor tem os devidos meios: dá-lhes mais calor e aumenta-lhes o alimento. O processo é este: Os bichinhos que nasceram na primeira manhã serão colocados no lugar mais abaixo do castelo [armação para os tabuleiros feitos por tiras de bambu entrelaçada onde sobre uma cama de tenras folhas ficam as larvas]; os que apareceram no segundo dia ficarão no tabuleiro imediatamente superior e os nascidos em último lugar vão para o tabuleiro mais alto. Isto porque, quanto mais elevado, tanto mais quente é o tabuleiro. Quanto ao alimento, deve-se agir reforçando a ração de folhas às larvas colocadas nos dois tabuleiros mais altos. Ordinariamente, daremos cinco rações às larvas que não vão ser igualadas [as nascidas no primeiro dia expostas no tabuleiro mais baixo]; mas daremos sete às nascidas no segundo dia e nove às nascidas no terceiro dia. A temperatura mais favorável, por ser mais alta e o aumento das folhas de amoreiras, farão com que o desenvolvimento das larvas seja favorecido”. A eclosão dá-se de manhã e as minúsculas larvas com um a dois milímetros de comprimento logo na manhã seguinte começam vorazmente a comer e rapidamente crescem. DIVIDIR EM GRUPOS De uma onça [25 a 30 gramas] de sementes nascem cerca de 40 mil lagartas (sirgos) que necessitam de folhas de dez amoreiras para se alimentar e produzem 50 kg de casulos, mas se ao mesmo tempo se fizer uma produção de quatro ou cinco onças, a produção de casulos baixa para 25 kg por onça. Daí, melhor fazer a separação em várias criações. Para se conseguir uma maior produção e de melhor qualidade é preferível dividir cem ovos em grupos de dez, do que os criar todos juntos. Isto tem a ver com o facto de a eclosão não ser simultânea, a provocar grandes dificuldades, só colmatadas pela utilização de incubadoras. Antes da existência destas, em Portugal usava-se colocar à noite os ovos na cama, por baixo dos cobertores, aquecidos pelo calor do corpo dos sericicultores. Durante o dia, os ovos eram transferidos para junto à lareira, num local onde o calor fosse brando. Em Chacim, Trás-os-Montes, “às mulheres eram distribuídas bolsas de camurça onde se guardava os ovos do sirgo, que chocavam ao calor dos seios. Eclodidos passavam à “casuleira”, casa onde se penduravam ramos de amoreira, e onde o sirgo crescia e começava a tecer o casulo.” (História Breve de Chacim e dos Paços da Seda de António Menezes Cordeiro, artigo publicado na revista “Caminhos”, 1997, Câmara Municipal de Macedo de Cavaleiros.) O brasileiro Victor Caruso volta a advertir os sericicultores: “Quando se verificar essa demora, não cometa o criador o disparate, como fazem alguns principiantes, de lhes dar calor para apressar o nascimento. Em alguns lugares da Europa havia, e ainda talvez haja, o péssimo costume de provocar a eclosão colocando os ovos entre os colchões, no seio e nas axilas o que, sem dúvida, priva de ar e predispõe a doenças as larvinhas prestes a sair do ovo. Essas práticas devem ser inteiramente abolidas, aguardando-se o nascimento espontâneo”. Ao sétimo dia, quando a cabeça do embrião se começa a ver através do ovo, o lugar deve ser colocado sem luz entre dois a três dias. A eclosão dos ovos deve corresponder ao período da existência de verdes escuras folhas tenras nas amoreiras. LANGZHONG, UM MUSEU VIVO Para despedir de Langzhong, chegamos à torre pagode Zhongtian e subindo ao andar superior, a vista expande-se por uma área de 1,5 km² sobre a cidade antiga. A maior parte das casas são térreas, algumas de pedra e tijolo do início da dinastia Qing com pátios interiores e os compartimentos para aí virados. Outras de dois andares feitas em madeira colocadas encostadas umas às outras e ocupadas ao nível da rua maioritariamente por lojas. Muitos dos telhados são encimados por uma composição em sobreposição de telhas a criar desenhos com formas geométricas variadas. No tecto da base da torre Zhongtian encontra-se uma enorme bússola usada no Feng-Shui, a marcar o centro da cidade e de onde partem nas quatro direcções as ruas que levavam às portas da muralha, agora destruída. Sabemos terem os actuais governantes o sonho de reconstruir a muralha a envolver a cidade, parecendo as obras junto ao rio ser um começo no preparar as estruturas, para conseguido o dinheiro a fazer renascer. No primeiro andar encontramos a estátua de Fu Xi segurando nas mãos o bagua por si criado. Daí vamos ao Templo de Zhang Fei construído há 1700 anos e como relíquia cultural está desde 1996 sobre protecção do Estado. O general Zhang Fei aqui viveu os últimos sete anos como comandante da guarnição e no ano da sua morte em 221, Liu Bei declarou-se Imperador Han do reino de Shu (221-263) com o nome de Zhao Lie Di (221-223), fazendo a capital em Chengdu. A Zhang Fei, depois de morrer foi dado o título de Grande Marquês (Huanhou). Passados mais de mil e quinhentos anos, já durante a dinastia Qing, um governador da província de Sichuan começou a compilar as histórias deste grande general e reportou-as ao Imperador Jiajing (1796-1820) que, percebendo ali estar uma grande personagem da História, lhe conferiu a título póstumo de Imperador Huanhou. Foi-lhe erigido uma estátua, mas no momento de colocar os atributos apareceu um problema. Se Zhang Fei fora ministro do Imperador Liu Bei, não poderia ser ao mesmo tempo imperador e ministro e, por isso, a estátua do Imperador Huanhou segura nas mãos a placa de jade levada pelo ministro quando ia resolver assuntos do Estado com o Imperador. Resolvido o problema, Zhang Fei tornou-se em espírito Imperador no coração do povo e, por outro lado, um leal ministro, e isto caracteriza a população de Langzhong. Ao fundo do templo está o mausoléu com o corpo, mas a cabeça de Zhang Fei encontra-se enterrada em Yunyang, na municipalidade de Chongqing, no terceiro templo dedicado a este herói do Período dos Três Reinos. Ao contrário de outras cidades turísticas, esta ainda tem a população a viver na zona antiga permitindo aos visitantes usufruir do quotidiano familiar ao passear pelas ruas pedonais, onde apenas veículos de duas rodas podem circular. Mulheres sentadas ao sol conversam, enquanto as crianças brincam na rua, ou tomam o pequeno-almoço de sopa de arroz e rissóis cozidos a vapor. Percorrendo a cidade antiga, vejo Langzhong como um museu vivo, relembrando outro paraíso, Hangzhou, capital da província de Zhejiang, com o maior número de museus temáticos da China e onde no Museu da Seda ocorreu o nosso primeiro contacto com o ciclo do bicho-da-seda. Retornávamos à zona da origem dessa fibra.
Hoje Macau Via do MeioO Regresso de Lu Guang na Primavera Su Dongpo (1036-1101), o poeta e pintor que conhecia a vontade dos pintores se identificarem com o objecto pintado, interrogando-se sobre a pintura Eminentes moradas de imortais, do inclassificável Guo Zhongshu (c.929-977) e enlevado sobre a paisagem figurada escreveu: «Um templo daoísta pousado no meio da neblina, quem é aquela pessoa debruçada na cerca?» A questão constantemente repetida pelos homens de cultura que conheciam a tradição, ainda reverberava no século dezoito quando o erudito autor do tratado Pushan Lunhua, Zhang Geng (1685-1760) lembrando autores que admirava, disse: «Xu Ben era honesto, puro e muito refinado enquanto Lu Tianyou e Fang Fanghu foram para lá do mundo objectivo e assim ficaram livres da poeira do Mundo e não enclausurados nos limites dos caminhos vulgares. No Liji, o Livro dos Ritos diz-se que “Aquilo que nasce da virtude é superior e o que se faz por métier é inferior”, o que é uma grande verdade.» Um desses pintores, Lu Tianyou, também conhecido como Lu Guang (c.1300-depois de 1371) que, possuindo grande erudição, viveu livre das obrigações dos funcionários imperiais durante a transição dinástica Yuan-Ming, que ocorreu cerca de 1368, exerceria um grande fascínio sobre outros eminentes pintores. Entre aqueles que assumiram a influência do seu espírito independente encontram-se o monge Hongren (1699-1769) ou Fang Yizhi (1611-1671). No rolo vertical Amanhecer de Primavera no terraço do elixir (Dantai chunxiao, tinta sobre papel, 61,6 x 26 cm, no Metmuseum) feito à volta de 1369, figurou uma imponente montanha onde se aninha um templo daoísta e, mais acima, um terraço com uma cerca onde não se avista ninguém debruçado. No suave amanhecer em que regressava à sua nativa Suzhou, o pintor parece pressentir o Mundo em mudança como um exemplo da alquimia do Dao. Lu Guang, nessa pintura que fez para o seu amigo Boyong, acrescentou o poema: Durante dez anos vagueei, sem morada certa e longe de todos os cuidados do Mundo, Agora, regressando pelo rio, vejo coisas diferentes da maioria das pessoas; Vapores transparentes como o jade flutuam no céu sem chuva, Raios de um elixir sobem irradiados de um poço e tornam-se nas nuvens do amanhecer. De pé ao vento seguro-me ao meu bastão rematado por uma crossa de dragão, Há muito tempo que sinto saudades de escutar a música que tocavas, soprando o teu luansheng ao luar. Feliz de estar com o venerável imortal e longe de estrategas militares, Sentados, admirando pinturas, falamos sobre literatura. Estariam também olhando, debruçados sobre a montanha pintada, atentos ao sopro da mudança, quiçá recordando aquela qualidade que o historiador Sima Qian (145-86 a. C.) notou sobre as Três montanhas sagradas: «À distância parecem nuvens, mas à medida que nos aproximamos alojam-se na água e no fim acabam sendo sopradas pelo vento.»
Ana Cristina Alves Via do MeioA Simbologia do Dragão na Cultura Chinesa I – A Simbologia do Dragão O Ano do Dragão inaugura a 10 de fevereiro. Será de Madeira Yang. Traz prosperidade, sucesso, poder e felicidade. Serão privilegiadas a imaginação, a criatividade e a responsabilidade. A cor da sorte será o verde e o elemento a Madeira, que expandirá a energia e o poder criativo do dragão. Serão privilegiados artistas e profissionais independentes e criativos. Onde encontrar então a génese da leitura simbólica do Dragão na cultura chinesa? Por um lado, nos mitos, por outro, na caligrafia. O dragão tem uma existência lógica, que desagua num longo caminho ontológico, já que a sua descrição física conjuga o melhor de todos os animais existentes, como nos revelam as representações da dinastia Tang, nas quais surge com cabeça de camelo, uma pérola mágica na boca, donde se solta por vezes uma nuvem que se transforma em água, outras em fogo, para mostrar que ele controla os poderosos reinos do céu e da água. Tem olhos de coelho, orelhas de vaca, corpo de cobra, patas de tigre, barriga de sapo, escamas de carpa, garras de falcão, e assim por diante. Ele é a máxima potência natural, já que reúne o que há de melhor no reino animal, sendo ainda a máxima entidade sobrenatural, ao apresentar-se como comandante supremo das águas do céu, dos mares, dos rios e até das que correm subterrâneas na terra. O dragão chinês não se limita a possuir o poder supremo natural e sobrenatural, ele é ainda a máxima entidade humana, o rei-sacerdote, que governa a terra, porque foi investido para tal pelo céu, como nos indica a leitura realizada pelo Dr. Ong Hean- Tatt (1996), a partir do caracter 龍 (Lóng): No lado esquerdo do carácter observa-se a forma de um guardião humano, que encarna o poder divino e protege as coisas sagradas, ao passo que o lado direito não surgia nas escritas mais antigas como a Oracular (1400-1100 a. C) ou a de Bronze (1100-300 a.C), tendo sido acrescentado no período do Pequeno Selo (300 a. C) à figura humana . Este ostenta em ambas as mãos algo de sagrado. À direita vemos uma longa linha, simbolizando a veste santificada do sacerdote, onde figuram os três traços característicos da água, porque o dragão é a divindade das chuvas e dos rios. Nos mitos chineses, o dragão surge associado ao primeiro imperador mítico chinês, Fuxi (伏羲) e a sua irmã ou consorte, conforme as versões. Fuxi é considerado o pai de todos os chineses, o Dragão Azul, como lhe chamam. Simboliza o maior dos homens, o patriarca da grande nação espiritual chinesa, o dominador do Cavalo-Dragão (龍馬 lóng-Mǎ), que emergiu das águas do Rio Amarelo (黃河 Huáng Hé) , tendo-lhe concedido a possibilidade de decifrar os oito trigramas fundamentais da cultura chinesa, que formam a base do Clássico das Muações ( 《易經》 Yìjīng), por entre o emaranhado da sua crina. Fuxi e Nüwa (女媧) eram metade humanos, metade dragões, como se pode verificar pelas representações deles. Por isso, foram os criadores supremos: Fuxi da cultura chinesa e Nüwa dos seres humanos (女媧造人Nǚwā zào rén) . II – O Dragão no Clássico das Mutações Entre os oito trigramas que são o fundamento do Clássico das Mutações, e condição de possibilidade dos 64 hexagramas, o mais importante é o do Céu ( 乾 Qián), composto pela força conjugada dos dois trigramas do Céu. Vale a pena seguir a apresentação e desenvolvimento deste hexagrama, tal como nos é oferecido por John Blofeld . O Céu surge como o princípio criativo, cujas principais características são ser masculino e ativo. Este princípio é personificado pelo dragão, o sacerdote-rei, que une o céu e terra, por via da participação em ambos os princípios. O primeiro hexagrama simboliza as forças celestiais em ação e o labor da pessoa superior sobre si própria. Aqui refere-se, numa leitura taoista, a pessoa superior, porque para os confucionistas e para a tradição chinesa, se menciona claramente um homem superior, representado por um dragão que voa nos céus. Eis então o texto de Qian (乾): O Princípio Criativo. Sucesso Sublime! A persistência na causa certa traz recompensa. 9 para o lugar do fundo: o dragão escondido evita a ação. 9 para o segundo lugar: o dragão é visto a céu aberto; é vantajoso visitar um grande homem. 9 para o terceiro lugar: o Homem Superior ocupa-se o dia inteiro e a noite encontra-o completamente alerta. A desgraça ameaça – sem erro. 9 para o quarto lugar: é preciso saltar nas profundezas, sem erro! 9 para o quinto lugar: o dragão voa nos céus; é vantajoso visitar um grande homem. 9 para o lugar de topo. Um dragão voluntarioso – que desgraça! 9 para os seis lugares – Um bando de dragões sem cabeça – felicidade. (乾卦《初九:元亨利貞/潛龍無用; 九二:見龍在田,利見大人; 九三:君子終日乾乾,夕惕苦厲,無咎; 九四或躍在淵,無咎;九五飛龍在天,利見大人。上九:亢龍有悔;見君龍無首,吉》) A análise das linhas em consonância com a interpretação de Blofeld e com a tradição chinesa, mostra-nos o que se espera do dragão chinês quando este se identifica com o rei e/ou o homem superior. Ele é o governante por excelência: no céu, enquanto princípio divino; na terra por incorporação do mesmo. Há, porém, um trabalho de construção ética que deve ser realizado para que o dragão terreno, o governante sábio e santo, possa atuar. Assim, e como indica a primeira linha, o dragão está a construir o seu ser, trabalha sobre si próprio, oculto dos seus eventuais pares humanos. O diálogo é interior e as pontes para o exterior são feitas por meio da captação das suas raízes e cruzamento com as energias universais do céu e da terra. Após este trabalho a solo, o dragão na segunda linha, sai para o mundo dos seus pares, procurando a orientação daqueles cuja sabedoria é capaz de o iluminar. Depois regressa a si mesmo na terceira linha, de forma a realizar os princípios e ensinamentos recebidos do que escolheu para mestre. Na quarta linha o dragão que almeja chegar a rei-sábio deve saltar nas profundezas. Este salto é importantíssimo. Através dele, separa-se do pior de si mesmo e, por isso, também se pode afirmar que se ultrapassa, salta sobre si e, simultaneamente, salta em si, conseguindo alcançar o mais profundo da sua natureza, o que lhe permitirá a fusão com a verdadeira realidade. A partir do momento em que dá o salto, a que no Ocidente chamaríamos de fé, libertou-se. No entanto, nesta altura volta a correr grandes riscos, porque uma iluminação à solta é, na tradição filosófica chinesa, algo de muito perigoso, por isso o dragão é aconselhado na quinta linha a procurar outra vez a orientação daqueles que escolheu para seus mestres, já que a finalidade não é expressar a sua criatividade e estilo próprios, mas integrar-se numa comunidade, a que deve servir de exemplo, sem se impor. Na linha do topo adverte-se que um dragão voluntarioso pode provocar grandes dissabores a si e aos outros. Esta leitura política do primeiro hexagrama não é abusiva, sendo confirmada pela interpretação conjunta das seis linhas, onde somos informados que a felicidade é obtida quando um conjunto de dragões voa sem cabeça, ou melhor, sem cabecilha. Do ponto de vista político, a ditadura de um iluminado (usual na China antiga) é, no maior dos Clássicos da Filosofia Chinesa, fortemente desaconselhada. Nenhum sábio deve cultivar-se apenas para si próprio, nem acreditar que é dono absoluto da verdade. O que foi e o caminho que conseguiu percorrer até à sua libertação ética, política e espiritual ganha pleno sentido quando é conciliado e harmonizado com o conjunto de dragões nos quais se deve incluir. Este bando de seres superiores, chamemos-lhes assim, não tem líder, sendo essa a condição para haver boa sorte, já que segundo o conjunto das linhas um cabecilha traz má sorte. Pode concluir-se nesta interpretação do Princípio Criativo, título para o primeiro hexagrama, que a nação espiritual chinesa, embora dependa de um primeiro dragão mítico azul, Fuxi, se constitui e desenvolve quando um conjunto de seres, que se trabalha eticamente para fins políticos, se reúne. Após o que se erguem nos céus espirituais em conjunto, contribuindo com o que de absolutamente próprio conseguiram alcançar, a fim de atingir uma postura equilibrada e exemplar. Esta deve servir de exemplo a todos os seres que os observam da terra e lhes contemplam o voo. O conjunto de dragões «sem cabeça» pode ser visto como a primeira exigência ético-política do Clássico das Mutações para que se dê a transformação certa aos níveis social e político. Os governantes-sábios devem, por isso, empenhar-se no desenvolvimento das suas virtudes, entre as quais constam as quatro essenciais do governante: a bondade ou Humanidade (仁 Rén), a conduta perfeita, que depende da obediência aos Ritos (禮Lǐ ), a Justiça (義 Yì) e a Sabedoria (智Zhì). III – O Dragão Alquímico e a Geomância Onde ir procurar a raiz da leitura alquímica do dragão chinês? Há que regressar ao Clássico das Mutações para o fazer. Simplesmente não é possível recorrer ao apoio da linha confucionista, que nos transmite sobretudo uma leitura ético-política dos hexagramas, tal como a explorada no ponto anterior, encontrada em grandes sinólogos como Richard Wilhelm. O dragão alquímico revela-se nos comentários da linha taoista ao Clássico das Mutações, por exemplo o de Thomas Cleary. O dragão celestial é apresentado na explicação do autor como o representante do Céu criativo, que desenvolve e dá fruição. Ele é o princípio divino que na terra age através do sábio. É divino sem deixar de ser natural, é o poder máximo de transformação e criatividade. É a primavera celestial que comanda a telúrica. A título de criador, atua, iniciando e consumando os processos, sempre em ligação com a natureza exterior, representada pelas quatro estações; mas também com a nossa natureza interior e energia que nos percorre: esta energia enraizada no primordial permanece oculta no temporal. Não pertence mais aos sábios, nem menos às pessoas comuns (…) Fundamentalmente cria, desenvolve e traz fruição e consumação espontaneamente . A energia alquímica surge logo na primeira linha yang (阳) do hexagrama celestial : Dragão escondido: não se usar . O nosso dragão interior prepare-se em estado de retiro para o casamento com o tigre, porque nós, tal como a terra, possuímos duas energias, figuradas no tigre e no dragão. O tigre é o representante da energia feminina, telúrica e escura, pesada e opaca, e o dragão, o representante da energia masculina, celestial, leve e clara. Ora o dragão não pode prescindir do tigre. Do ponto de vista geomântico e alquímico precisa absolutamente dele para complementar as paisagens exterior e interior. Na segunda linha, quando o dragão sai de si para o exterior, digamos para um passeio na campo ou na natureza, ele vai à procura de uma pessoa grande, um (a) mestre que o possa orientar para a criação do seu embrião espiritual, por meio de um trabalho realizado em conjunto sobre a sua força celestial, a fim de libertar o halo espiritual que o conduzirá à longevidade e à imortalidade. Por isso labora empenhadamente na terceira linha para a realização da união de forças feminina e masculina ao nível telúrico, isto é, abdominal. A fim de o casamento entre o tigre e o dragão seja bem-sucedido, nenhuma das forças pode prevalecer. Elas devem encontrar-se em perfeito equilíbrio, para que seja realizado novo encontro de forças no coração, situado na quarta linha, após o dragão ter saltado sobre o abismo em si mesmo . A partir daqui o dragão está na zona do espírito. Para realizar o salto, teve de espiritualizar o tigre, que o vai auxiliar a voar em céu aberto. Ele sente-se, na quinta linha bem, livre e planando totalmente iluminado. Na tradução de Cleary (1986:42) O dragão está no céu: é benéfico ver uma grande pessoa , que lhe facultará a continuação do trabalho sobre as energias e mais uma transmutação espiritual do yin em yang, um terceiro casamento espiritual, ao nível da mente, criador do corpo fora do corpo. Sem orientação espiritual, o dragão corre o risco de se desequilibrar e cair na tentação mortal (porque o reconduzirá à terra), exposta na sexta linha, que é a da arrogância . Se vencer esta última tentação, consegue conjugar, como nos indica a leitura conjunta do hexagrama, a sua imagem espiritual com muitas outras, inserindo-se harmoniosamente num conjunto de dragões que voa sem cabeça. Bibliografia Alves, Ana Cristina. 2022. Cultura Chinesa, Uma Perspetiva Ocidental. Coord. Carmen Amado Mendes Coimbra: Almedina e CCCM. ___________. 2004 Representações do Feminino na Cultura Chinesa. A Mulher nos Discursos Filosófico, Religioso e Sociopolítico (tese policopiada). ___________. 2004.Uma Viagem de Muitos Quilómetros Começa por um Passo. Macau: Cod. Blofeld. 1965. The Book of Change. A New Translation of the Ancient Chinese I Ching (Yi King), with detailed Instruction for its Practical Use in Divination. London: Georg Allen & Unwin LTD. Cleary, Thomas (trad.).1986. The Taoist I Ching. Boston & London: Shambala. Legge, James (trad). 1990. The I Ching. The Book of China. Singapore: Graham Brash. 羅慷烈 (Luo Kanglie) 2005.«易經詳解與應用》香港三聯畫店. Shi Zhengyu.1997. Picture Within a Picture. An Illustrated Guide to the Origins of Chinese Characters. Beijng: New World Press. Tan Huay Peng. 1980. Fun with Chinese Characters. Singapore, Kuala Lumpur, Hong Kong: Federal Publications. Wang Suoying, Ana Cristina Alves. 2009. Mitos e Lendas da Terra do Dragão. Lisboa: Caminho. Wilhelm, Richard. 1989. I Ching or Book of Changes. Prefácio de C. G. Jung. London: Penguin Group. 張中鐸(ed) 1995《易經提要白話解》台南市:大孚.
José Simões Morais Via do MeioSegredos da Seda (13) Ovos do bicho da seda em Langzhong Estamos de volta a Langzhong onde ao visitar “Langzhong Can Zhong Chang”, o Instituto que trabalha desde 1938 na produção de ovos do bicho-da-seda para a província de Sichuan, somos recebidos pelo director Dr. Feng Guang Qiang. Ao saber o tema do nosso trabalho disponibiliza-nos uma grande quantidade de informação tanto sobre os ovos, como das doenças e os cruzamentos das Bombix mori, pois especialista nessas matérias. Oferece-nos o livro por si escrito, Jia Can Pin Zhong Xing Zhuang Jian Jie, onde dá conselhos aos produtores de Sichuan e lhes indica quais os melhores cruzamentos a fazer com as diferentes gerações de reprodutoras e as condições para os realizar. Com a finalidade de reprodução, o bicho-da-seda ainda no casulo, onde entrara lagarta e em metamorfoses, primeiro como crisálida e já transformada em mariposa segrega um líquido alcalino que fura uma das extremidades do casulo, aparecendo no buraco primeiro a cabeça, ocorrendo a saída com grande esforço pela manhã. A fase de mariposa dura normalmente três a cinco dias e esta não se alimenta pois não possui boca. Após um banho de Sol para secar o corpo das mariposas e soltar as asas coladas, o macho, atraído pelo odor sexual da feromona libertado pela borboleta fêmea e guiado pelas antenas vai ao encontro dela, que permanece imóvel. Acasalam unidos pelos extremos do abdómen e em baixas temperaturas ficam macho e fêmea assim mais tempo, por vezes longas horas, ou mesmo dias. No dia seguinte ao acasalamento, a fêmea põe os ovos, que chegam a atingir os quinhentos e permanece na área do local onde acoplou com as asas a deixar um pó assedado nos dedos de quem lhes toca. Dois a três dias do desovar as mariposas morrem, terminando o ciclo da Bombix mori. Com a preocupação de fazer eclodir as sementes quando as amoreiras têm já tenras folhas, no princípio de Maio, os cinzentos e minúsculos ovos do bicho-da-seda, recolhidos nas caixas de postura, num lugar fresco e limpo, são colocados separados uns dos outros durante dez dias nas incubadoras. [Em Portugal a mais usada foi a incubadora Castelete, feita com uma caixa de paredes duplas onde, numa câmara, três ou quatro gavetas, separadas dez centímetros umas das outras, são forradas com panos de linho ou algodão para a cama dos ovos. Além de terem na parte inferior uma lamparina de azeite para aquecer a câmara, contém também um aparelho destinado a espalhar a humidade através de um tubo onde corre água quente nas duplas paredes.] Aí a temperatura vai progressivamente aumentando, não devendo exceder 27º C e a humidade rondar os 85 por cento. Alguns dias após a postura dos ovos torna-se fácil distinguir, pela mudança da cor, quais os fecundados. Ao sétimo dia, quando a cabeça do embrião se começa a ver através do ovo, o lugar deve ser colocado sem luz entre dois a três dias. A SEMENTE, O OVO Para a postura colocam-se então panos, de preferência de cor branca, aos quais os ovos aderem devido à substância gomosa que os reveste. De forma oval, apresentam uma casca delgada e, no interior, encostada à parede tem a membrana vitelina a proteger uma massa semifluida, o vitellus, a partir do qual se forma o embrião, como em todos os ovos. Este desenvolve-se lentamente, criando os órgãos da larva que se alimenta das substâncias da membrana vitelina. Muito deste capítulo só foi possível escrever devido às explicações de João Faustino Masoni da Costa no livro Indústria da Seda, edição da Bibliotheca de Instrucção Profissional, sem data, mas publicado no início do século XX. De cor amarela, esses minúsculos ovos com cerca de um a dois milímetros têm cada um a massa de 0,65 miligramas e devem ser mantidos a uma temperatura uniforme, durante a gestação, cuja duração é de entre uma a duas semanas, tomando então uma cor acinzentada. Tal deve-se ao evaporar da água durante a oxigenação dos ovos, a eliminar a humidade e gás carbónico desenvolvidos logo após a postura. Se a água não for eliminada ficam bolorentos, mas se essa perda for excessiva haverá também um desequilíbrio nos líquidos internos. Em osmose, a diminuição de massa pela perda de água e anidrido de carbono é compensada por troca com o oxigénio do ar que absorvem, permitindo a respiração. Este hibernar do ovo, sem o qual não se dá a eclosão, passa por três períodos: o pré-hibernal, anterior ao abaixamento da temperatura, dura dois dias, o hibernal com sete dias, onde a temperatura se mantém muito baixa e o pós-hibernal, quando pelo calor se inicia a incubação e se forma o embrião. No Inverno, os ovos ficam longo tempo a incubar e não chocam. Entende-se assim a necessidade de conservar convenientemente os ovos para não definharem e estarem aptos a eclodir em tempo próprio. Na China do século V passaram os ovos da Bombix mori a ser guardados a temperaturas baixas, próximas do 0º C, ficando assim controlado o nascimento das larvas, permitindo a produção à medida das necessidades e ao longo de todo o ano. Há dois mil e quinhentos anos, como refere o Livro dos Ritos [“Li Ji”, 礼记], já se desinfectavam os ovos lavando-os na Primavera quando, devido ao calor, estão na fase final do chocar, evitando assim doenças transmitidas por bactérias alojadas na casca. Por isso, as sirgarias devem ser locais amplos, para manter uma temperatura constante e secos, com boa ventilação. A postura dos ovos feita na Primavera, a primeira produção do ano para dar origem a lagartas vigorosas, realiza-se no início de Maio, sendo guardada uma parte para usar dez meses depois na continuação da linhagem do ano seguinte e a restante na reprodução, a criar gerações para alimentar de casulos as fábricas durante todo o ano. Após casalar, cada mariposa fêmea é colocada dentro de um cilindro, a limitar o espaço de desova, pousado num cartão (a página) onde ao rodar vai em círculos depositando os ovos, ovais e achatados. Nas páginas mais valiosas encontram-se apenas as mariposas proveniente de anciãs reprodutoras e as posturas dos ovos são guardadas com cuidados imensos. Setenta e duas horas após a secagem do corpo da mariposa, esta é colocada em clorofórmio e vista ao microscópio, com uma ampliação de seiscentas vezes. Faz-se o historial e constata-se se está com saúde, ou infectada, ou se tem alguma alteração genética. A última produção de ovos do ano ocorre no Outono e estes serão usados para iniciar no ano seguinte a produção de casulos e parte, guardados para eclodirem em Outubro. Fica-se assim com ovos provenientes dos avós em dois períodos diferentes, servindo eles apenas para continuar o grupo de vigorosas lagartas reprodutores. Desses, após uma selecção, são rejeitados 40 por cento e em seguida queimados. Assistimos a uma dessas fogueiras, mas as páginas revelam ser de ovos dos pais retiradas após analisadas as posturas por conterem muitos ovos brancos, a significar não fecundados. Se um ovo apresenta algum indício de doença, a postura é recortada para análise e a página deitada ao fogo. Cosendo recortes de outras posturas com ovos da mesma geração refazem-se as páginas. Nos ovos que passam na análise das páginas inteiras, ou reparadas, estão os filhos e netos preparados para a produção de casulos. Os ovos dos avós, a servir para a reprodução, não são vendidos e as páginas com ovos dos pais têm cada uma 14 círculos cheios de sementes. Já as páginas com ovos dos bichos-da-seda filhos contam com a postura de 28 mariposas fêmeas. As sementes vendidas são as das mariposas filhas e netas e o preço por página, (para cerca de 14 mil ovos provenientes de 28 mariposas filhas, cada uma a pôr quinhentos ovos), é de 90 Yuan (9 Euros). O custo de uma página com 28 mil ovos de 56 mariposas netas é de 26 Yuan. Dados do Instituto Langzhong Can Zhong Chang de 2009. São necessárias dez amoreiras para alimentar cerca de 40 mil lagartas que produzirão 50 kg de casulos. A atenção dispensada pelos sericicultores às horas de alimentação, à qualidade das tenras folhas verdes escuras e não transportarem cheiros como o do tabaco para as sirgarias, que devem ter bom arejamento e uma temperatura estável de 25º C, leva à produção de sirgos de boa qualidade, a dar um bom filamento ao casulo.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioJin Chushi e o Quinto Rei Dos Infernos Bao Zheng (999-1062), nascido perto da actual Hefei (Anhui), mais conhecido como o «juiz Bao», permaneceria na memória popular como um homem justo, defensor de camponeses e gente comum contra injustiças perpetradas por corruptos. Quando estava no seu posto de magistrado em Duanzhou (actual Zhaoqing, também conhecida como Shiuhing, Cantão) escreveu um poema que é uma declaração de princípios: A essência da governação consiste em possuir sempre um coração limpo, A estratégia da vida é seguir sempre vias direitas. Um caule elegante tornar-se-á num pilar e o aço refinado nunca será torcido até se tornar um gancho. Ratos e pardais alegram-se quando as tulhas estão cheias, assim como raposas e coelhos se preocupam quando os prados secam. Os livros de História contêm as lições dos que já morreram; Não deixais apenas desonras aos vossos descendentes. Na evolução do sincretismo religioso em que a mitologia popular vai recebendo influências do Budismo e Daoísmo, a fama do juiz suscitaria a suspeita de que ele era na verdade o quinto rei, Yanluo wang, da série dos misteriosos Dez Reis do Inferno que actuam como juízes, e como tal aparece ainda hoje nas populares «notas do inferno» que se queimam nos templos. Na radiosa capital Youdu, ele reinaria sobre todos os outros reis de Diyu, um lugar correspondente ao conceito budista Naraka, e que se traduz como «prisão da Terra», um purgatório onde são julgadas as faltas dos que morreram e se preparam para reencarnar. Um conceito que se prestava às mais ousadas expressões da fantasia e como tal foi sendo recriado em pinturas murais de templos, como avisos. Entre os seus augustos autores conta-se o célebre Wu Daozi (act. c. 719-c.760) que terá feito uma pintura a fresco desse lugar tormentoso no templo Jingyun de Chang’an. Uma renovada curiosidade surgiria no século X quando aparece o apócrifo «Sutra dos dez reis». A que responderam atelieres de pintura, como um situado em Mingzhou, actual Ningbo (Zhejiang). Jin Chushi, um leigo budista dessa cidade, activo no fim do século XII, é o nome que consta numa série de dez rolos verticais (tinta e cor sobre seda, 129,5 x 49,5 cm, no Metmuseum) onde aparecem os dez reis-juízes sentados em faustosas cadeiras diante de painéis com paisagens apenas sugeridas, cada um com a jurisdição sobre um tipo de faltas e de pessoas. Atrás das suas barras, os magistrados têem a cabeça coberta com o tongtian guanfu, que indica uma «ligação directa com o céu», usado por imperadores em ocasiões especiais. Em baixo, figuras de pesadelo empurram os réus na expiação dos seus erros. No caso do quinto rei, algo que se verá noutras representações, existe um espelho para onde um demónio obriga o penitente a olhar. Será esse outro tribunal, o da consciência, o mais severo, que recordará as admonições de Bao Zheng?
José Simões Morais Via do MeioSegredos da Seda 12 – Sagradas Árvores e a eternidade O pensamento de Kongfuzi (Confúcio) enumera cinco importantes virtudes simbolizadas numa árvore. “A primeira, na raiz, encontra-se no procurar sempre o bem nos outros. A segunda, no tronco, relaciona-se com a justiça e rectidão. A terceira virtude está nos ramos e representa as formas de agir no campo ético e moral. A quarta, na flor, a sabedoria. E por fim o fruto, a fidelidade”. A árvore sem raízes não pode existir. As árvores dividem-se em dois grupos simbólicos: as árvores da vida, a expressar a fortuna e a longa vida da família e as árvores cósmicas, que representam o entendimento do Universo e dos fenómenos astronómicos. As árvores da vida [aeróbia], além de serem um símbolo de Civilização, são-no do Sagrado e plantadas a reflectir o Cosmos encontram-se nos pátios dos templos e mausoléus como meio para comunicar com o Céu. No Templo do Céu (Tiantan) em Beijing (Pequim) e nos mausoléus dos Ancestrais, Soberanos e Imperadores, assim como de notáveis filósofos chineses, existem florestas de ciprestes. Os quatro mil ciprestes do Parque de Tiantan, muitos com mais de oitocentos anos, servem para prestar homenagem ao Céu (Tian). Encontramos enormes ciprestes fossilizados nos jardins do Museu de Sanxingdui. Já no interior do museu, numa complementar exposição, imagens em fotografia de outras árvores Sagradas, Cósmicas e da Vida, provenientes de diferentes partes do Mundo. Cada um dos tipos de árvores representa diferentes funções, muitas ligadas por simbólicos rituais ao reino vegetal, a acordar o perdido no padrão animal com a estatutária autoridade de ser humano. Espelhos nos ciclos de consciência da Natureza expressavam concepções de mundos transmitidos por os Antigos Shu nas representações e mitos. Esse legado da cultura Wu Zhu dá a consciência englobante do Animismo (a Filosofia do Dao), onde ninguém é mais nem menos que o outro e os superlativos são a inferioridade de quem julga. Árvores e ervas, antepassados vegetais do reino animal e dos humanos, numa atitude passiva de não acção (wu wei) colocaram-se ao serviço do Outro dando algo que não vemos, oxigénio para respirar. Serviram-nos também como casas e a elas subindo, em vigia chegou-se ao Céu. Como seres antecederam o animal, no qual o humano já não se consciencializa e como vegetal, expressam a sensibilidade emocional do Espírito, a anima do vivo. [Lado feminino inconsciente do homem, assim Carl G. Jung define a anima.] No animus [lado masculino inconsciente da mulher], pelas árvores os deuses desciam à Terra e por elas ascendia-se ao Céu; caminho animista simbolizado no dragão a subir a árvore. Visualizam-se nos troncos talhados com dragões no Pavilhão Taihe do Palácio Imperial de Beijing e em 1724, cinzelados nas colunas do Pavilhão Palácio Dacheng do Templo de Confúcio (Kongmiao) em Qufu, onde se regista um trabalho tão esmerado que as tiveram de tapar com seda, quando o Imperador (?Qianlong?) aí foi prestar homenagem ao grande sábio Kongfuzi, pois melhor esculpidas que as do Palácio de Beijing. AMOREIRA FUSANG A árvore Fusang, considerada a amoreira sagrada, permitia também subir ao Céu e assim ligar o Céu à Terra. O pássaro Jinwu nas antigas lendas representava o Sol e inspeccionava o mundo durante o dia, empoleirando-se à noite nos ramos da árvore de Fusang. Na Mitologia eram dez aves irmãs encarregadas, uma por dia, de levantar da Árvore Sagrada e dar uma volta ao mundo, iluminando-o e aquecendo os seres vivos. Mas um dia todas as aves Jinwu voaram para o Céu e assim dez sóis apareceram de repente, tornando a vida na Terra insuportável. O arqueiro Hou Yi, chefe da tribo Yi durante o período do Soberano Yao (2357-2287 a.n.E.), disparando nove setas, acabou com nove dos dez sóis, deixando apenas um Sol afim de haver luz durante o dia e a vida voltar a desenrolar-se normalmente sobre a Terra. O calendário, na altura com ciclos de dez dias, estava em mudança e preparava-se um outro de uma nova engrenagem, a conjugar os ciclos solares e os lunares num ciclo lunisolar com a duração de 52 anos, chegando ele até à Dinastia Xia. É ainda usado no calendário dos chineses Miao e no continente americano por o povo Maya. Ao visitar em Sichuan o Museu de Sanxingdui [a 25 km da capital Chengdu e a 200 km de Langzhong] ficamos em contacto com esculturas a representar as árvores sagradas e cósmicas, numa exposição do encontrado nos fossos das escavações arqueológicas em Sanxingdui, capital do povo dos Antigo Shu, (Ba e Qiang), da Cultura Sanxingdui, no período Yufu (1700-1200 a.n.E.). Na China, estas árvores têm como mais representativas a de Fusang no Leste, a de Jianmu no Centro e a de Ruomu no Oeste, e apresentam conceitos e maneiras de reflectir o Universo, contendo várias características, funções e rituais, ainda hoje expostos em crenças populares e religiosas sobreviventes do Todo do Mundo Antigo. A árvore sagrada de Sanxingdui, espectacular exemplo de árvore cósmica na China, conjuga a Fusang e a Jianmu, sendo a sua principal função facilitar a ascensão ao Céu, ligando o Céu à Terra, os deuses com os humanos. Os deuses desciam à Terra por elas e os xamãs [ajudantes de Imperadores] ascendiam ao Céu; caminho animista simbolizado pelo dragão a subir a árvore. Na mitologia chinesa, a amoreira está associada ao Sol e no Ocidente significa circunspecção e prudência. ÁRVORE DO DINHEIRO A variedade de esculturas de árvores demonstra uma preocupação pelo Cosmos proveniente do sagrado Céu visto da Terra, tendo diferentes funções cada um dos tipos de árvores. Expressavam mitos dos antigos Shu. Do povo Qiang [com antepassados na tribo Yi de Fuxi e colocado a Oeste com os Ba, fugindo os Miao para Sul, após Huangdi derrotar Chiyou, chefe dos Dongyi] existe a árvore do dinheiro encontrada em Madao, Xichang (Sichuan) e tal como as árvores sagradas e cósmicas era também construída em bronze. A forma da árvore do dinheiro derivou das árvores celestes de Sanxingdui e como elas, ajudava os seres humanos a comunicar com os deuses. Quando lhe eram colocadas as moedas, reflectiam a luz do Sol. [Em Chiang Mai na Tailândia encontramos num templo duas árvores do dinheiro, uma com representações de folhas douradas e a outra com folhas prateadas, a Lua.] Já os pássaros das árvores do dinheiro eram vermelhos e encontravam-se entre o Sol e o seu brilho nas folhas. Quando a dinastia Xia (夏, 2207-1600 a.n.E.) foi substituída pela dinastia Shang (商, 1600-1046 a.n.E.) ocorreu a seguinte história ligada às amoreiras. Após cinco anos de Cheng Tang (成汤) ter destronado o Imperador Jie da Dinastia Xia e fundado a Dinastia Shang, a chuva não caiu. O povo estava desesperado e só após Cheng Tang ter orado na floresta de amoreiras começou a chover. Nas aldeias chinesas, as amoreiras nunca são plantadas em frente da porta de entrada das casas, pois o nome desta árvore, sang shu (桑树) tem a mesma sonoridade de sang shi (丧事), a significar um dos residentes da casa morrera, sendo normalmente o féretro com o defunto colocado numa tenda em frente à porta de entrada, esperando em corpo presente pelo menos três dias, ou por uma data mais auspicioso para ser sepultado. O papel feito com fibras da amoreira é conhecido por o nome de sang zhi (桑纸). A amoreira tem grande valor económico, sendo a madeira desta árvore recomendada para mobiliário, utensílios e instrumentos musicais, refere Wang Zhu Hao, no livro Árvores de Macau, (Câmara Municipal das Ilhas, 1997, Macau). “A casca das raízes, folhas e ramos novos são utilizados na Medicina Tradicional Chinesa para a cura da tosse, perda de sangue e inchaço e para a redução da pressão sanguínea. A fibra da casca é usada para produção de papel e algodão artificial. As amoras, os frutos da amoreira, são utilizadas contra a fadiga, tonturas, anemia e incontinência.” Associaram-se os humanos ao ciclo da vida do bicho-da-seda, que simboliza o conceito de eternidade, pois os antigos olhavam o acto da lagarta envolver-se no fio e formar o casulo como uma etapa para chegar ao Céu, depois da passagem por a Terra. Por isso, vestiam os defuntos com seda e ofereciam tecidos aos espíritos e deuses. Expressavam a esperança de ascender ao Céu e tornarem-se imortais, tal como julgavam acontecer à crisálida dentro do casulo, qual nave da imortalidade de onde sai transformada em mariposa. Vive três a cinco dias e após o acto sexual, a fêmea borboleta põe ovos e recomeça o ciclo do bicho-da-seda.
Ana Cristina Alves Via do MeioA Viagem com Características Chinesas Ana Cristina Alves* 26 de dezembro de 2023 Os sábios da antiguidade chinesa foram grandes viajantes. As primeiras referências à viagem remontam à mais alta antiguidade chinesa e à primeira de todas as obras, O Clássico das Mutações (《易經》), atribuída ao lendário imperador Fuxi (伏羲), que terá vivido há cerca de 3 mil anos. Recordo que ao meditar sobre a obra encontrei dois hexagramas contíguos, um deles completamente centrado no percurso, o 28º (大過卦 Dà Guò Guà) “Grande travessia”, o outro complementar, o 27º hexagrama “Cantos da Boca/Fornecendo Nutrição” (颐卦 Yí Guà). A complementaridade realiza-se a partir da conjugação dos trigramas Raio/Trovão (震 Zhèn) e Montanha艮 (Gěn) (27), Vento (巽Xùn) e Lago/Paul(兑 Duì) (28), porque entre os oito trigramas constitutivos deste livro, o Raio é oposto ao Vento e a Montanha ao Lago, numa habilidosa união entre elementos ativos, Raio e Vento, e elementos passivos, Montanha e Lago. A transformação é operada pela ação do raio dinâmico na montanha tranquila e do vento silvante que percorre o lago silencioso. Em Visitações (2022) conjuguei estes dois hexagramas complementares numa interpretação poética que denominei “Nutrição da Grande travessia” (颐卦/大過卦), que passo a apresentar: Um Raio no sopé da Montanha, A boca aberta e moderadamente farta, The corners of the mouth waiting for nourishment, Quando se deixa escapar a tartaruga, Ganha-se muita ruga, 十年無用, 利涉大川1 Crossing the great water It´s a blessing, Brings general happiness. É preciso não reter, Deixar-se ir, Por todos distribuir. Preponderance of the great, Go away, don´t wait. O Lago cresce sobre as Árvores, O Vento sopra com delicadeza, Apontando o caminho a seguir, É avançar sem desistir, Quem sabe mais à frente Se casa a graça com a desgraça. (Alves, 2022: 151) Pode-se interpretar a viagem, “a grande travessia” como uma forma de nutrição e desenvolvimento à maneira da tradição proverbial chinesa em “Os Oito Imortais atravessam os mares, cada qual revelando os seus poderes mágicos” (八仙過海各顯神通Bāxiān guò hǎi gè xiǎn shéntōng), eles ao passarem pelo mundo, cruzam-no sobrevoando o oceano em despique para revelarem os seus dons espirituais: um tem uma espada mágica, o outro um leque, há ainda quem possua uma flor de lótus, um cesto de flores, uma flauta, uma cabaça, uma mula branca, mas atenção a um deles que ostenta castanholas e encarna a figura do viajante, ele é Cao Guojiu(曹國舅Cáo Guójiù). Viveu, variando as versões, na dinastia Song (Duane, Huichinson 1998:73) ou Yuan (Lai, 1977: 27), era o irmão mais novo da rainha. Seguindo a versão de T.C.Lai, Cao Guojiu ter-se-á saturado da vida palaciana e resolveu conhecer mundo, ajudado por uma medalha oferecida pelo próprio governante, com a inscrição «O imperador deseja que o seu cunhado seja tratado, vá onde for, sempre como se estivesse acompanhado por Sua Majestade» (Lai, 1977:27). Quando saiu do palácio, Cao Guojiu correu a terra, desejando cultivar o Tao, sempre protegido pela sombra influente do Imperador, até que um dia Lü Dongbin ( 吕洞宾Lǚ Dòngbīn), um dos patriarcas imortais, disfarçado de mestre taoista, lhe fez ver a incorreção do comportamento e ele imediatamente deitou fora o salvo-conduto, em troca das bênçãos imortais. As castanholas são o seu símbolo. Elas produzem um som celestial que silencia tudo o resto para as escutar. Em chinês chamam-se castanholas Yin Yang (陰陽板Yīn Yáng bǎn), tendo por isso o maior dos poderes criativos do ponto de vista espiritual. A verdade é que este imortal só conseguiu libertar-se da esfera humana, quando em viagem dispensou favores e proteções mundanas, devotando-se por inteiro ao seu aperfeiçoamento. T.C. Lai relata ainda um episódio em que o viajante é testado por outros dois imortais; que querem saber se já o podem considerar entre pares. Lü Dongbin, o imortal da espada mágica, e Zhong Liquan ( 鈡离權 Zhōng Líquán ), o imortal do leque que proporciona longa vida aos vivos e ressuscita mortos. Questionam-no sobre o que ele está a cultivar nas suas andanças pelo mundo terreno, ao que ele responde que se encontra a cultivar o Tao (道 Dào), a Via ou Caminho. E eles prosseguem, inquirindo pelo Tao, ao que ele responde apontando para o céu; os imortais continuam: “‘Onde está o céu’?” (Lai, 1977: 29) e ele aponta para o coração, passando o exame com brio, porque “tinha entendido o Caminho” (Ibidem). Filósofos taoistas como Laozi (老子III. a.C?) ou Zhuangzi (莊子, c. 369 -286 a. C) possuem biografias muito semelhantes às de Cao Guojiu, sobretudo Zhuangzi, que recusa sistematicamente imiscuir-se na esfera mundana, rejeita propostas ministeriais ao serviço da ordem estabelecida, levando uma vida apagada e pobre, mas recompensadora do ponto de vista espiritual, já que faz a apologia do sábio modelar que se pauta pela quietude e afastamento da ordem político-social, deambulando livremente como uma pequena borboleta esvoaçando de flor em flor. Assim podemos ler, logo no capítulo inicial da obra homónima, intitulado “Vagueando em Absoluta Liberdade” sobre a metamorfose proporcionada pelo movimento que transforma peixes Kun (鲲) em pássaros gigantescos Peng (鹏), que voam do Mar do Norte ao Mar do Sul, também conhecido por Lago Celestial. A própria vida pode ser encarada como uma viagem de longa duração, e quanto mais longa melhor, sendo os percursos mais excelsos realizados por seres santos ou filósofos como Liezi (列子), também citado neste capítulo (Zhuangzi: 1999:7): “que viaja montando o vento de um modo livre e descontraído, volta à terra em quinze dias, nunca se deixando enredar na sorte mundana; porém, embora ele não tenha que andar, depende de algo.” (夫列子禦風而行,泠然善也,旬又五日而後反。 彼於致福者,未數數然也。 此雖免乎行,猶有所待者也。) Com a mudança de escola filosófica para a confucionista, que atualmente continua a reger o mundo chinês, agora mais cosmopolita e dialogante através dos seus institutos Confúcio, a viagem ganha tonalidades terrenas e pragmáticas, como viria a suceder no caso de Confúcio, na esperança de conseguir interessar os governantes da época pelos valores morais. Confúcio, entre os chineses o Mestre Kong (孔子), viveu de 551 a 479 a. C. O seu nome próprio era Qiu (丘) e o seu cognome Zhongni (仲尼). Nasceu no Sul da província de Shandong em Qufu. Oriundo de uma família da pequena nobreza, trabalhou para vários senhores feudais e teve alguns cargos oficiais. Chegou a primeiro-ministro de Lu em 501, mas por pouco tempo, porque o duque trocou os seus ensinamentos pelos encantos de um grupo de bailarinas, presente do duque de Qi, interessado em enfraquecer o estado de Lu, já que se tornara bastante forte. Desiludido com o mundo, regressou à sua terra e passou a dedicar-se exclusivamente à atividade pedagógica, iniciada em 497, tendo chegado a reunir 72 discípulos. Viveu os três últimos anos em Qufu, na sua terra natal e faleceu em 479 a. C. No entanto, o movimento de viagem é enaltecido, na obra dialogada que nos deixou, registada através dos seus discípulos, os Analectos (論語 Lúnyǔ), que inaugura da seguinte forma (《論語 • I-1》): 子曰:「學而時習之,不亦說乎?有朋自遠方來,不亦樂乎?人不知而不慍,不亦君子乎?」 Confúcio disse: “É ou não um gosto poder praticar em tempo devido o que se aprendeu? É ou não uma alegria receber amigos vindos de longe? Será um cavalheiro aquele que se ofende quando não se é apreciado?” Um cavalheiro (君子 Jūnzǐ), ou melhor, um futuro governante, só terá a ganhar com o confronto de ideias, que é possibilitado pela abertura do mundo e pelos viajantes que chegam desafiando com suas perspetivas diferentes. A viagem torna-se assim na tradição confucionista uma descida à terra, já não deambulam apenas os imortais e santos, cujas mentes vagueiam pelo cosmos, outros sábios mais pragmáticos encetam as suas travessias para dar a conhecer ao mundo princípios filosóficos e, no caso do Confucionismo, valores morais. Atualmente, os chineses viajam à procura de melhor vida. Andam por dentro e por fora da China. Quando passam de umas províncias para as outras são considerados imigrantes, como se pode ler em Compreender a China Contemporânea: um dicionário (2009), dirigido por Thierry Sanjuan, no artigo de Isabelle Thireau, e têm bastantes problemas por causa do sistema de registo de residência (戶口簿hùkǒu bù) “São assim qualificados como imigrantes e considerados problemáticos os indivíduos que não residem onde estão oficialmente domiciliados” (Thireau, 2009: 183/184). Contudo, dadas as assimetrias entre o campo e a cidade, sobretudo das megapolis, como Xangai, Beijing, regiões administrativas especiais, etc., as pessoas migram para tentar uma melhor sorte, mas nem sempre assim sucede, quando possuem menores recursos económicos ou culturais, ficando à mercê de direitos de residência temporários, que as obrigam a frequentes deslocações fora do domicílio oficial, e a enfrentarem situações salariais e sociais mais precárias, suscitando esta mobilidade geográfica desconfiança por parte dos residentes permanentes. De qualquer modo, dado o declínio populacional na China, a imigração é necessária, ainda que os imigrantes nem sempre sejam bem acolhidos, pelo que se têm vindo a associar de modo a serem capazes de dar resposta à pressão social encontrada: “Agrupam-se em alguns quarteirões em função da origem geográfica comum, criando escolas para os seus filhos.” (Thireau, 2009: 185), tal como encontramos estabelecimentos de ensino para filhos de chineses em Portugal. Aqui há concentração de chineses em certas zonas do país, como Lisboa (Martim Moniz, Almirante Reis), Porto, Faro, Aveiro, Braga e Leiria. Porém, mudou-se de registo, porque se passou da imigração para a emigração. O que tem trazido a segunda leva de emigração chinesa ao país é a mesma vontade de melhorar as condições de vida que impulsiona a migrar dentro de portas. Desta vez chegam-nos quadros qualificados, com cursos superiores, empresários e empreendedores que pretendem viver confortavelmente fora da terra de origem, de acordo com os melhores padrões das classes médias e médias altas da Europa desenvolvida ou dos Estados Unidos da América. De acordo com os dados de Henley & Partners no Global Private Wealth Migration Report 2023, conta-se com 13 milhões e quinhentos mil chineses a emigrarem ao longo de todo este ano. Os chineses partem cada vez em maior número, talvez para realizarem o dito “nascer como um dragão, viver como um tigre” (生龙活虎 shēnglóng-huóhǔ), significando esta aliança do par biológico primordial chinês, muito aplicada na geomancia, cumprir um projeto existencial repleto de energia (do dragão) e vigor (do tigre), onde enriquecer não parece ser decisivo, já que muitos apenas emigram, porque é mais fácil viver-se fora uma vida comum (“很多人移民国外并不是为了活得大富大贵,只是为了在国外更好地做一个普通人”2). Na realidade, a migração, seja dos que vêm de fora, como emigração, ou dos que são recebidos de dentro, a título de imigração, pode beneficiar os que migram, criando novas oportunidades de vida e riqueza para o país que acolhe esta força migrante, através das suas contribuições. As misturas fornecem ainda amplas possibilidades demográficas e culturais, favorecendo cenários multiculturais tão enaltecidos nos nossos dias; mas como é óbvio pode ter aspetos negativos, também muito enfatizados por determinados setores políticos, por causa do impacto negativo nos salários, da criação de desemprego, da pressão nos serviços públicos, do aumento das rendas e da potencial instabilidade social. Para o que migra, emigra ou imigra é a abertura de um novo caminho, mesmo quando é forçada pelas circunstâncias, como sucedeu com o exílio de grandes homens na China antiga, por exemplo, o poeta Su Dongpo (蘇東坡, 1037-1101), que se transformou num Mandarim andarilho, menos por vontade própria e mais por ditame imperial. No entanto, muitas das províncias para onde imigrou revelaram-se verdadeiras oportunidades de vida, como quando esteve em Cantão. Pode ler-se no seu último poema: 廬山煙雨浙江潮,未到千般恨不消。 到得還來沒事,廬山煙雨浙江潮。 Aqui apresentado na excelente tradução de António Graça de Abreu (2023: 171): Névoas de Lushan, marés de Zhejiang, Antes da viagem, nostalgias mil, Viajei muito, mas tudo muda, tudo permanece. Névoas de Lushan, marés de Zhejiang. O movimento de viagem é enaltecido, por ter um efeito terapêutico, é um espanta tristezas eficaz, mesmo que depois voltem os amargos de mente ou nunca tenham partido, a verdade é que o encontro com novas paisagens, vivências, e descobertas que vão sendo feitas ao longo do caminho, bem como as surpresas trazidas por novas relações, permitem uma mudança de cenário que atua positivamente no espírito e na vida de quem a realiza, ou até na nova terra onde se é recebido, ainda que o poeta viajante tenha plena consciência de que “tudo muda, tudo permanece”. Ontem e hoje assim se pensa no País do Meio, tudo se transforma na terra e nas gentes, mantendo-se, porém, a raiz que permite dizer sem contradição que o essencial fica na mesma, sendo a própria vida uma travessia de afastamento e/ou de completude, bem como de retorno num movimento regressivo ao fundamento. Para os chineses, estamos sempre a viajar, mesmo quando não saímos do lugar, à maneira do filósofo, do santo e do imortal nas suas caminhadas espirituais. Bibliografia @Aavest 美股预测.2023. 《移民的优点和缺点》 (Benefícios e inconvenientes da migração). Youtube. Disponível em: https://aavest.com/pros-and-cons-of-immigration/, acedido a 27 de dezembro de 2023. Alves, Ana Cristina. 2022. Visitações. Fafe: Labirinto. ______________. 2005. A Sabedoria Chinesa. Cruz Quebrada: Casa das Letras. Confucius «孔子».1994. Lun Yu «论语». Analects of Confucius. Ed. Bilingue, Beijing: Sinolingua. Duane, O.B; N. Huichinson. 1998. Chinese Myths & Legends. London: Brockhampton Press. Graça de Abreu, António (Org. e Trad.) 2023. Su Dongpo, Poemas. Lisboa: Grão Falar. 广东省 .2023.“不如换一个地方生活?2023年全球私人财富迁移报告发布”. Disponível em: https://www.sohu.com/a/716176593_120005859, acedido a 27 de dezembro de 2023. Lai, T.C. 1977. The Eight Immortals. Hong Kong: Swindon Book Company. Oliveira, Jorge Costa. 2023. “Declínio populacional e imigração – na China e noutros países”. Diário de Notícias. Disponível em https://www.dn.pt/opiniao/declinio-populacional-e-imigracao—na-china-e-noutros-paises-15879077.html: Wilhelm, Richard (Trad.). 1989. I Ching or the book of changes. London: Arkana, Penguin Books. Wong, Eva. 2001. Tales of Taoist Immortals. Boston & London: Shambhala. Zhang Fengyang. 2016. Os Chineses em Portugal: as razões da sua vinda e a sua situação atual. Dissertação de Mestrado em Estudos Interculturais Português/Chinês, orientada por Manuel Gama e Sun Lam. Disponível em: https://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/44336, acedido a 26 de dezembro de 2023. *Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM 10 anos sem sentido,/É vantajoso atravessar o grande mar. 广东省 2023“不如换一个地方生活?2023年全球私人财富迁移报告发布”. Disponível em: https://www.sohu.com/a/716176593_120005859
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO engenho do autor do Engenho de Água Li Zhi (1059-1109), um letrado da dinastia Song do Norte que entre os seus amigos contava eminentes espíritos livres, recordados na obra Jinan Xiansheng shiyou tanji, «Discussões com mestres e amigos», escreveu sobre outros antigos pintores que o impressionaram. Como o excêntrico e engenhoso Guo Zhongshu (c.910-977), autor do rolo vertical Viagem no rio quando a neve ia clareando, no Museu do Palácio Nacional, em Taipé, uma das mais impressionantes pinturas feitas no estilo jiehua, «pintura de limites». Em 1098, ao reflectir sobre dezanove Jardins famosos de Luoyang (Luoyang mingyuan ji) elogiou-o: «Quanto à pintura de construções arquitectónicas, torres, e pavilhões, Shuxian (seu nome alternativo) alcançou o seu próprio estilo, que era o mais maravilhoso de todos. Nas suas pinturas, as vigas dos telhados, as traves, pilares e barrotes são mostrados com espaços abertos entre eles, através dos quais nos podemos movimentar. Umbrais, lintéis, janelas e vestíbulos parece que podem realmente ser atravessados, abertos e fechados (…) E de tal modo que, ao desenhar um grande edifício tudo esta à escala e não existe a mais pequena discrepância.» Essa sofisticação da representação que impressionava os observadores alcançaria um ponto alto numa pintura em que o modo da figuração se adequa ao objecto representado. Esse rolo horizontal, que se encontra no Museu de Xangai, o Engenho de água (tinta e cor sobre seda, 53,3 x 119,2 cm) suscita imensa admiração e está envolto em dúvidas sobre a sua autoria ou o período histórico exacto em que foi feito. Wei Xian, um pintor das Cinco dinastias (907-960), é um dos nomes de autores apontados, porém uma interpretação daquilo que está na representação indicia um tempo posterior. O desenho meticuloso leva outros autores a atribuírem a sua autoria ao polímata que foi astrónomo e engenheiro mecânico entre outros, Zhang Sixun (activo durante o século X) já na dinastia Song. Zhang Dunli (?-1100), genro do imperador Yingzong (1032-1067), e a quem são atribuídas pinturas muito diferentes que mostram a vida despreocupada de aristocratas, como Jogando cuju num pátio como passatempo (folha de álbum, tinta e cor sobre seda, 28,2 x 29,7 cm, no Museu do Palácio Nacional, em Taipé), é outro possível autor da pintura do Engenho de água. Nela se percebe a vontade dos imperadores Song de alardear as inovações administrativas e tecnológicas. Como a da máquina que usava a força da água movendo uma azenha para moer o arroz e outros cereais, separando os grãos comestíveis da casca. Mas, desde os planificadores que, no canto superior esquerdo, se sentam para estudar o projecto, até à taberna no canto inferior direito onde trabalhadores descansam, existe todo um sistema tão organizado e laborioso que houve quem ali visse uma representação do neidan shu, a alquimia interna do daoísmo.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioZheng Min e as Recordações Das Montanhas Amarelas Zhuangzi, o clássico do século IV a. C. que escreveu sobre a «vadiagem feliz», afirmou que «O homem perfeito usa a sua mente como um espelho – sem procurar nada, não acolhendo nada, respondendo sem guardar. Assim consegue triunfar sobre as coisas sem se magoar». Essa vocação de «vaguear onde não há caminho», muitas vezes deslocando-se sobre as águas dos rios, nunca guardando nada senão memórias, foi sentida como um guia por homens de letras e pintores. Certas paisagens, como o cenário invulgar das Montanhas Amarelas (Huangshan), como que convidavam os passeantes para nelas inscreverem novos caminhos. Uma «escola de pintura» foi designada com o seu nome e dela participaram grandes mestres como Hongren ou Shitao. E os que eram originários da província de Anhui, onde se situam essas montanhas, como o pintor e poeta Mei Qing (1623-1697), deixaram desse convívio com a natureza testemunhos de uma viva impressão. Como no decurso de um passeio com familiares e amigos numa embarcação descendo um rio: «A chuva clareando, dir-se-ia um céu de Outono, Vamos descendo o rio Qing, navegando neste navio pintado, A cidade obscurecida e o campo vasto, As montanhas verdejantes tocam as ondas, Sons de flauta entristecem os poetas; Nos aposentos monásticos velhos monges meditam tranquilamente. Não há isco para o dragão que se não vê, Apenas a serena piscina de água.» O poema acompanha o rolo vertical Navegando no sopé da montanha Xiang (tinta sobre papel, 134,6 x 59,1 cm, no Metmuseum) onde outros amigos também escreveram poemas como um seu jovem discípulo Shi Runzhang que assinalou, não apenas o dia exacto em que decorreu o passeio – 21 de Maio de 1673, como lembrou o poeta Li Bai que por lá passou compondo poemas e como esse era também o lugar onde o imortal magistrado Dou Ziming pescou um dragão branco. Essas impressões em grupo de nada valiam se não fossem partilhadas. Zheng Min (1633-depois de 1683), pintor e poeta que terá participado nessa jornada e era de Shexian, igualmente em Anhui, terá sido o destinatário do rolo, mas também ele faria pinturas e poemas recordando as famosas montanhas para partilhar, lembrando caminhos solitários na memória. No álbum de nove páginas com pinturas e caligrafias Oito vistas das Montanhas Amarelas (tinta sobre papel, 24,1 x 14 cm, no Metmuseum) ele refez alguns dos lugares mais célebres das montanhas como o Cume de loto, a Ponte dos imortais ou o Pinheiro dragão enrolado, contrastando-os com poemas. O que o motivou foi um pedido do seu jovem amigo Chuzhen. Para isso recordou duas jornadas que fez por lá em 1670 e 1673, a última há já sete anos. E acrescenta que, se «no futuro, depois de todos os seus filhos se casarem», ele alguma vez lá for, «espero que leve este álbum com ele para comparar com os lugares reais. Serei então o seu guia.»
Ana Cristina Alves Via do MeioSinologia e Tradução Tudo muda, tudo é tudo, tudo é nada outra vez, neste mundo a vida como um jogo de xadrez. Su Dongpo, “Ao modo de Li Bai” 2023:144 Neste espaço se reflete sobre sinologia e tradução a partir da obra traduzida por António Graça de Abreu: Su Dongpo, Poemas, publicada em Lisboa, na editora Grão-Falar, 2023, estando também de parabéns o editor Carlos Morais José. Antes de tudo o resto, o realce para as delicadezas de Graça de Abreu, o livro é dedicado ao seu pai chinês Wang Renlun (王仁伦, 1929-2023), cuja paternidade o poeta e tradutor herdou por via da mulher. António Graça de Abreu (1947-) não é um noviço nem na poesia, já que entre as suas criações poéticas se contam os livros de poesia: China de Jade, 1997, China de Seda, 2002, Terra de Musgo e Alegria, 2005, China de Lótus, 2006, Cálice de Neblinas e Silêncios, 2008, A Cor das Cerejeiras, 2010 e Lai Yong, Bernardo e outros Poemas, 2018; nem na tradução poética tendo editado as antologias Poemas de Li Bai (1990, 2022), Poemas de Bai Juyi (1991), Poemas de Wang Wei(1993), Poemas de Han Shan (2009), Poemas de Du Fu (2015) e Poemas de Su Dongpo (2023), publicadas em Macau e, esta última já em Portugal. Pela tradução dos Poemas de Li Bai, António Graça de Abreu obteve o Prémio Nacional de Tradução 1990, do PEN Clube Português/Associação Portuguesa de Tradutores. Na obra Su Dongpo, Poemas começa por nos brindar, como é habitual nos seus trabalhos, com uma biografia do poeta em estudo, Su Shi (蘇軾1037-1101), cujo nome artístico é Dongpo(東坡), “A encosta do Leste” , enquadrada historicamente neste poeta da Província de Sichuan. A obra encontra-se ainda repleta de notas de Rodapé muito elucidativas sobre as circunstâncias de vida do “Mandarim nómada” (Graça de Abreu, 2023:16), de uma grande integridade que ao opor-se às reformas de Wang Anshi (王安石), terá transitado do “homem honesto a tolo” de acordo com a sabedoria confuciana (Graça de Abreu, 2023:20), que aconselha a dizer a verdade mas não a verdade toda, contra o que o poeta fez em memorandos ao imperador, pagando a sua frontalidade com o exílio e o degredo. “No seu labor de mandarim local foi constante a luta de Su Dongpo para tentar diminuir o sofrimento do povo”, diz-nos Graça de Abreu (2023: 22) , pelo que os seus poemas circulavam por entre a população, já que, como nos recorda o tradutor, a poesia era uma das formas de comunicação da dinastia Song(宋朝, 960-1279), o que só lhe dificultava a vida a nível político, pelo que não se libertou do cárcere, nem do julgamento, tendo sido semi-ilibado com um pequeno cargo de intendente das águas e o posto de oficial de uma unidade de treino residual sem direito a honorários estatais. Em termos práticos, estava exilado em Hubei (湖北), na vila de Huangzhou(杭州), onde viveu por um tempo pobre e livre, como agricultor, cultivando uns “socalcos de terra” na “encosta do leste”, o nome que escolheria para o representar poeticamente. Até ser transferido para o burgo de Linju, onde começaria a sua reabilitação oficial, chegando a secretário do primeiro-ministro (翰林, Hanlin), encarregue de redigir os éditos imperiais, além de participar no processo de nomeação dos mandarins. Tinha voltado ao poder. Veio ao de cima a sua faceta mundana de bom cozinheiro, passando à história como um dos 4 cozinheiros famosos da China clássica, com o seu “porco estufado à Su Dongpo” (Graça de Abreu, 2023: 166, nota 120). Ele acreditava encontrar a alma também no vinho, aproveitando a vida como mandarim de corte, até que farto da patifaria citadina se mudou novamente para o campo, ocupando o cargo de governador de toda a província de Zhejiang (浙江) ocidental, que incluía a bela cidade de Hangzhou. Era agora o comandante militar do distrito, que ajudou a desenvolver, sendo de relevo os trabalhos mandados executar no belíssimo Lago do Oeste (西湖). Mas a sorte não dura sempre e teve de regressar à corte assumindo novamente o posto de Hanlin. Porém, desta vez com mais dificuldade, pois os seus inimigos estavam cada vez mais poderosos. É novamente destituído de todos os cargos e enviado para Huizhou em Guangdong (广东惠州), onde vive satisfeito, pelo que tal muito desagradaria aos poderosos inimigos que angariara na corte. Estes em breve o desterram novamente, desta feita para Hainan (海南), uma ilha chinesa nos confins do Sul em frente ao Vietname. Assentaria em Danzhou (儋州), onde à época as condições nada tinham de atrativo. Com a morte do lúbrico imperador Zhezong (哲宗) em 1100, terminaria o seu exílio, já que a imperatriz-viúva, reinando enquanto Huizong (徽宗) crescia, perdoou aos exilados e comutou sentenças. Na viagem de regresso levava o filho Guo e o cão “Focinho Preto”, as suas companhias ao longo de três duros anos. Já em Nanquim (南京) adoeceu, encaminhando-se suavemente para a morte. Faleceu em 1101. António Graça de Abreu informa-nos ainda que Su Dongpo viveu nos tempos de apogeu da dinastia Song, na época em que “Apareciam os primeiros escritos sobre o fabrico da pólvora, inventara-se a bússola, pela primeira vez na história do mundo surgia o papel moeda, faziam-se rigorosos recenseamentos da população, importantes para o lançamento de impostos. Em 1030, o número de habitantes da China ultrapassava os cem milhões.” (Graça de Abreu, 2023: 13). Acrescenta o sinólogo tradutor que a China Song prestava atenção aos poemas daquele mandarim nómada e excêntrico para tantos: “Não podemos esquecer que a imprensa havia sido inventada na China, muito antes de, na Europa, Gutenberg ter metido as mãos a tal tarefa. Os chineses criaram pranchas de impressão onde agrupavam caracteres móveis em madeira, ou mesmo em metal que barrados com tinta eram depois prensados sobre papel de arroz, o que resultava em documentos de grande e fácil circulação. Os poemas, as gravuras, as folhas de livros eram impressos com facilidade e em grande quantidade, e ainda em vida de Su Dongpo as tiragens dos seus poemas chegaram a ser de milhares e milhares de exemplares.” (Graça de Abreu, 2023: 42) Seguimos com interesse as alusões biográficas do próprio tradutor, completamente identificado com o poeta, pode-se então ler na nota 6 “Bafejado pela sorte, com a complacência dos deuses, este raro tradutor da poesia de Su Dongpo, desceu já por cinco vezes o rio Yangtsé, entre 1983 e 2018, antes e depois da construção da barragem das Três Gargantas. São lugares de uma grandiosidade asfixiante, de inefáveis espantos e de diálogos semi-proibidos, permitidos, de longe a longe, com singulares divindades que descem das montanhas para saudar os homens.” (Graça de Abreu, 2023: 14). O Prefácio de Graça de Abreu é escrito por quem conhece muito bem a China tornando-se por isso numa extraordinária dupla narrativa de viagens, a do autor e a do tradutor, ambas descritas com grande mestria poética. Quanto à obra, os sinceros parabéns, ficando a aguardar, tal como sucedeu com os premiados Poemas de Li Bai (1990, 2021), uma edição bilingue. Quanto à tradução, o tradutor Graça de Abreu confessa “Quase nada sei, e contemplo o universo todo na arte abstrusa do tradutor. Uns pingos de clarividência, tentar conhecer umas resmas largas de caracteres, a sequência das palavras, passear pela língua chinesa, entender, não entender, espreitar cuidadosamente traduções inglesas e francesas.” (Graça de Abreu, 2023: 51). Confessa-se amigo do seu amigo poeta. Reflete sobre o trabalho de tradução, declarando que tem de comunicar na língua de chegada a “raiz original das palavras e um mesmo sentir” (Graça de Abreu, 2023: 52), ou seja, “a delicadeza, a suavidade, o encanto e a frescura da grande poesia clássica chinesa”(Ibidem). Apoia-se numa citação de Giorgio Sinedino para defender a coautoria do trabalho de tradução, feito a 4 mãos, as do autor e as do tradutor. Recorre também aos três grandes princípios de Yan Fu(嚴復1854-1921), a fidelidade (信 xìn), a fluência e legibilidade (达 dà) e a elegância (雅 yǎ)numa tentativa de procurar harmonizar as línguas de partida e de chegada. E adiante especifica, apoiando-se na especialista em Su Dongpo, Min Xiaohong (1963-), que a tradução deve apenas ser fiel ao sentido e, numa alusão a Nuno Júdice em nome de George Steiner, refere o ato de “contrabando” existente na tradução, onde para Nuno Júdice se verifica uma velada “traição”. (Graça de Abreu, 2023: 53) O tradutor conclui “No que me diz respeito, sei que no poema traduzido tem de estar a voz e o sentir do poeta chinês, mais a minha própria leitura poética, em língua portuguesa” (Ibidem). Expõe que se apropria do espaço poético dividindo-o com Su Dongpo, ombreando com nomes como o de Arthur Waley (1889-1966), António Feijó (1859-1917), Gil de Carvalho e Adelino Ínsua, mas o livro que aqui se traz conta com 160 poemas, sensivelmente metade da poesia de Su Dongpo ( Graça de Abreu, 2023: pp. 54/55). Dá-nos o seguinte exemplo de tradução na forma de uma quadra (绝句 juéjù ) neste caso de sete sílabas (七绝Qījué), 中秋月 暮 云 收 尽 溢 清 寒 银 汉 无 声 转 玉 盘 此 生 此 夜 不 长 好 明 月 明 年 何 处 看 Lua do Meio Outono Anoitece, novelos de nuvens desaparecem na limpidez fria do céu, em silêncio, a Via Láctea dá a volta na abóbada de jade. Se esta noite, no nosso existir, não fruímos prazeres, no próximo ano estaremos onde, contemplando o luar? Vai-se procurar analisar algumas das técnicas de tradução empregues nesta coautoria, menos de contrabando, mais de empatia, já que uma boa tradução implica um entendimento profundo do autor, uma partilha de sentires e ideias e, no que respeita à tradução poética, uma comunhão ou identificação estética, no entanto não são a mesma pessoa, ainda que autor e tradutor possam pertencer a idêntica comunidade espiritual. E isso nota-se por exemplo em aspetos formais. Su Dongpo recorre a rimas, sobrevoadas pelo tradutor (寒 rima perfeitamente com 盘 e imperfeitamente com 看 ). O ritmo da rima é substituído por um trabalho pictórico, vejamos então verso a verso. No primeiro verso, Anoitece, novelos de nuvens desaparecem na limpidez fria do céu (暮 云 收 尽 溢 清 寒) , “nuvens juntas”, recebem uma acréscimo linguístico figurativo, como que uma pincelada a salientar a ideia em “novelos de nuvens” e depois é introduzido o substantivo “céu”, evidenciando o forte trabalho criativo por parte do tradutor que conjuga a “limpidez fria” com o céu. No segundo verso da quadra, em silêncio, a Via Láctea dá a volta na abóbada de jade(银 汉 无 声 转 玉 盘) há uma apropriação metafórica, apresenta-se a leitura sugestiva da via láctea silenciosa, enquadrando-a no prato de jade, que é interpretado como a “abóbada celeste” onde gira a via láctea, numa outra interpretação de um qualquer outro tradutor no seu papel de coautor, a via láctea podia ser o próprio prato de jade a girar. No terceiro verso, Se esta noite, no nosso existir, não fruímos prazeres (此 生 此 夜 不 长 好), há um acréscimo de sentido, o poeta- tradutor interpreta a transitoriedade (不长) ligada aos prazeres, e não à noite e à vida (此生此夜)fazendo uma apologia do gozo e não da efemeridade da existência, tendo optado traduzir hao (好) por “fruímos prazeres” e não pelo adjetivo “boa”, ligando-o à noite e à vida, pelo que esteve lado a lado com o autor a compor um sentido, permitido sem dúvida, já que Su Dongpo tinha apreço pelos prazeres da vida, mas também pela transitoriedade da existência tão bem figurada na ideia de “nuvens passageiras”. No quarto e último verso, no próximo ano estaremos onde, contemplando o luar? (明 月 明 年 何 处 看) dá-se uma tradaptação, ou seja, a tradução do sentido do verso, adaptando-o à língua portuguesa com a introdução do sujeito: estaremos onde (何处看). Resumindo nesta tradução poética o tradutor por sua autoria acrescentou termos, interpretou metáforas, optou por sentidos e adaptou o estilo da poesia clássica chinesa à portuguesa. E andou bem? Com certeza porque na realidade é um coautor de pleno direito. Refere Su Dongpo citado por Graça de Abreu a propósito de um outro poeta clássico chinês, Wang Wei (王维,701-761), “Os seus poemas são pinturas, as suas pinturas são poemas” (2023:35), este também foi traduzido pelo sinólogo na obra Poemas de Wang Wei (1993). Vejamos um exemplo retirado desta obra (Graça de Abreu, 1993: 128/129): 渡河到清河作 汎舟大河裏 積水窮天涯 天波忽開拆 郡邑千萬家 行復見城市 宛然有桑麻 回瞻舊鄊國 淼漫連雲霞 Ao atravessar o rio, chegando a Qinghe1 Atravesso o rio num barco de junco, vastas águas estendendo-se até aos confins do céu. De súbito, abre-se o céu, rasgam-se as ondas, eis a cidade, centenas de lares. Avança o barco, o povoado diante de mim, como tufos de amoreira ou prados de cânhamo. Olho para trás. Lá longe, o meu país natal, a imensidão das águas entre brumas e nuvens. Neste belo quadro poético, volta-se a encontrar a mesma coautoria empática por parte do tradutor, que vai pintando palavras com o poeta chinês ao longo da folha portuguesa. Esquecem-se rimas perfeitas e imperfeitas (涯/麻; 拆/家/霞), privilegiando a visualidade musical, acrescentam-se palavras como pinceladas a enfatizar os elementos pictóricos, por exemplo, “junco” a “barco” no primeiro verso Atravesso o rio num barco de junco (汎舟大河裏); reduzem-se sentidos no quarto verso, optando por centenas em vez de milhares eis a cidade, centenas de lares (郡邑千萬家); introduz-se o sujeito, ausente na poesia nos quinto e sétimo versos Avança o barco, o povoado diante de mim (行復見城市) e Olho para trás. Lá longe, o meu país natal (回瞻舊鄊國); escolhem-se significados no oitavo verso de acordo com o sentir poético do autor em conjugação com o do tradutor, quando em lugar de “nuvens róseas” (霞)se opta por brumas a imensidão das águas entre brumas e nuvens (淼漫連雲霞). E tudo funciona às mil maravilhas para quem lê: capta-se a ideia, há musicalidade nas palavras, e somos transportados para uma paisagem sublime. Su Dongpo é comparado a Bai Juyi (772-846), por Arthur Waley, mas ultrapassa-o em mestria de acordo com António Graça de Abreu (2023:56). Podemos encontrar exemplos de tradução do poeta que viveu entre o século VIII e IX em Poemas de Bai Juyi (1991), onde se nota que há mais tradução e menos coautoria empática (Abreu, 150-151): 花非花 花非花, 雾非雾, 夜半来, 天明去。 来如春夢幾多時 去似朝雲無覓處 Flor, não há flor. Bruma não há bruma. Noite vem, A aurora vai. Vem o sonho da breve Primavera E vai, nuvem da manhã, sem deixar rasto. Este é um trabalho de tradução bem-feito, mas não de transformação (o que poderia ter dado: flor sem flor/bruma sem bruma…) como tantas vezes sucede nos poemas traduzidos de Wang Wei e Su Dongpo, para estes últimos casos de coautoria gosto de pensar que o poeta António Graça de Abreu se apropriou devidamente de um espaço espiritual que naturalmente lhe pertence. Conclui-se com o poema de Su Dongpo que espelha bem as dificuldades sentidas por este mandarim nómada, num mundo oficial chinês tantas vezes avesso à sensibilidade poética, que Graça de Abreu primorosamente nos soube transmitir (Graça de Abreu, 2023: 64): Para o meu irmão Su Zhe, recordando o passado em Mianchi Semelhante a quê, a vida dos homens? Gansos selvagens pisando a neve e a lama, deixando suas pegadas, ao acaso, e levantando voo, outra vez. Para leste, para oeste? Falecido o velho monge, suas cinzas sob o pequeno pagode, caiu o muro onde outrora gravámos um poema. Nesses tempos, tão difícil a viagem, ainda recordas? Longa a caminhada, imenso o nosso cansaço, oiço ainda o zurrar da mula coxa. Bibliografia Graça de Abreu, António (Org. e Trad.). 2023. Su Dongpo, Poemas. Lisboa: Grão-Falar. _______________________________2021. Cem Poemas de Li Bai 李白诗一百首. Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim. __________________. 1991. Poemas de Bai Juyi. Macau: Instituto Cultural de Macau. ___________________. 1993. Poemas de Wang Wei. Macau: Instituto Cultural de Macau. No sul da província de Shanxi
José Simões Morais Via do MeioSegredos da Seda (11) Langzhong, JARDIM DO PARAÍSO NA TERRA Capital do reino Ba desde 330 a.n.E., Langzhong foi conquistada em 314 a.n.E. pelo reino Qin, que integrou o povo Ba na sua população. Mas a cultura Bayu manteve-se, continuando a população a vestir-se, a dançar e cantar como por aqui fazia desde a dinastia Shang (1600-1046 a.n.E.). Sabemos por o livro História dos Reinos Huayang (Huayang Guozhi) ter o povo Ba ajudado o Rei Wu, do reino Zhou, a derrotar a dinastia Shang, pois a noite antes da batalha foi passada ao som dos seus cânticos. Chamada Longyuan até 713, por o Imperador Xuanzong (712-755) da dinastia Tang ter esse mesmo nome, Li Longji (685-762), foi o da cidade mudado, passando a ser Langyuan, a significar , como continuou muitas vezes a ser designada por poetas, mesmo após ter o nome de Langzhong. Na dinastia Tang a povoação considerada o Jardim do Paraíso na Terra ganhou enorme projeção. O Imperador Xuanzong, grande patrono das artes, ouvindo falar das belezas do Rio Jialing enviou o pintor Wu Daozi a registar o cenário e assim poder usufruí-lo através da arte. O artista visitou Langzhong e ficou encantado com o rio e as montanhas, regressando à capital Chang’an (actual Xian) sem esboço algum. Repreendido por o Imperador, num dia executou de memória o quadro com o título “300 li de Cenário do Rio Jialing”, argumentando, <só se atinge a compreensão das coisas quando elas se formam na mente>. Entramos na cidade antiga pela Porta Zhuangyuan, onde gravados estão os nomes de quatro eruditos daqui nativos que atingiram o primeiro lugar (Zhuang Yuan) no derradeiro exame imperial na capital. Fora do normal era também o número de Oficiais aqui nascidos. A cidade é uma das duas existentes na China onde ainda é possível ver um Gongyuan, local onde se realizavam os Exames Imperiais de Província e tem a particularidade de nos inícios da dinastia Qing serem aqui feitos por quatro vezes, entre 1652 a 1660, esses exames para o Segundo Grau Literário, Xiangshi, de onde saíram aprovados 253 juren, sendo 58 originários de Langzhong. Tal se deveu a Chengdu, a capital da província, nessa altura ainda não ter sido conquistada pelos manchus e daí, apesar de cada província apenas contar com um Gongyuan, Sichuan apresenta dois. Os habitantes são muito orgulhosos da sua cidade devido à História e produtos aqui produzidos. Se a publicidade ao bife Zhang Fei está por todo o lado, o vinagre Bao Ning feito de arroz, milho e da casca de trigo é conhecido além província. Pela cidade antiga, casais de turistas chineses dedicam-se a fazer compras de produtos tradicionais, salientando-se os edredões produzidos nas muitas lojas de seda após encamisados os restos de casulos numa pequena armação em /\. Em forma de sacos, com 60 cm de comprimento e 40 cm de largura, ficam dependurados e postos a secar. São depois esticados por quatro funcionárias até ganharem tamanho, conseguindo atingir uma superfície de dois por dois metros e por camadas, encerradas num tecido a fazer de coberta. Vendem-se com três diferentes gramagens consoante o número de camadas, aproveitando-se os casulos furados de onde as mariposas saíram e os restos do casulo desfiado até aparecer velada no interior a crisálida morta. Outros antigos processos e técnicas para o processamento dos casulos estão expostos em muitas lojas. Na cidade antiga encontramos a fábrica de seda Xin Da a ocupa uma grande área, pois contem a parte de fiação, tecelagem e tinturaria, apesar de se preparar a sua transferência para fora desta zona protegida. Outras fábricas de seda já foram colocadas na parte moderna da cidade, onde se encontra o Instituto ‘Langzhong Can Zhong Chang’, a trabalhar desde 1938 na produção de arbustos de amoreiras e de ovos do bicho-da-seda para os sericicultores da província de Sichuan. ALIMENTO da Bombix mori Regressamos ao amoreiral do ‘Langzhong Can Zhong Chang’, pois das folhas da amoreira provém o melhor alimento para as lagartas do bicho-da-seda. Podem também comer folhas de outras árvores e vegetais, no entanto a qualidade da seda depende muito do alimento ingerido pelas lagartas, sendo as melhores as folhas da espécie Morus alba, a amoreira branca inicialmente cultivada no Nordeste da China, nas Coreias e Japão, estando agora espalhada por todos os lugares onde se produz seda. O cultivo de amoreiras por sementeira remonta ao século XVI a.n.E., reinava a dinastia Shang (1600-1046 a.n.E.). Durante a Dinastia Zhou do Oeste (1046-771 a.n.E.) podavam-se os ramos para melhorar a qualidade das folhas e permitir a seiva mais recheada de nutrientes chegar aos novos rebentos. No Período dos Reinos Combatentes (475-221 a.n.E.), através de poda e enxertos, criou-se um subtipo de amoreira com porte já não de árvore, mas de arbusto, conhecido por lusang. Para o obter semeava-se conjuntamente com milho-miúdo e quando a planta da amoreira atingia a altura da cana de milho, era cortada rente com uma foice. Na Primavera seguinte surgia o rebento, mas a amoreira já deixara de crescer como árvore e tornara-se um arbusto, facilitando imenso o estafante colher diário das tenras folhas realizado entre 22 a 35 dias para alimentar a lagarta durante o seu crescimento. Devido à qualidade excepcional das folhas da amoreira branca Lu de Shandong, um Imperador da Dinastia Han (206 a.n.E.-220) mandou aí plantar muitas árvores, assim como abrir unidades de produção e tecelagem. No Templo de Kaiyuan, na cidade costeira de Quanzhou, província de Fujian, existe uma amoreira com mil e trezentos anos, do tempo da Dinastia Tang (618-907). Devido ao incremento da rota marítima entre as dinastias Song (960-1279) e Yuan (1271-1368) foi desenvolvida no Sul da China a técnica de enxerto que, para além de rejuvenescer as árvores, prevenia doenças. Referenciado estava um antigo amoreiral na parte Nordeste do lago Tai, próximo de Wuxi na província de Jiangsu, fertilizado com os excrementos dos peixes e caranguejos do lago, mas durante as nossas investigações não o encontramos. Em Macau, a amoreira mais antiga está em Coloane, na povoação de Ká Hó, no recinto do antigo asilo de leprosos. A ultrapassar os cem anos, em 2020 colapsou devido à passagem da tempestade tropical severa ‘Higos’, mas continuou viva, a crescer e a criar raízes, estando muitas partes do tronco infestados por cupins, como referido numa placa nela colocada. Freixo de Espada à Cinta [em Trás-os-Montes, Portugal] apresenta a Morus alba (amoreira branca), originária da China e trazida por os árabes no século IX, que a plantaram por Trás-os-Montes e aí estabeleceram sirgarias. Com copa estreita e arredondada, ramos longos e muito ramificados, é uma árvore de folha caduca, bem aclimatada em Portugal, floresce em Maio e frutifica de Maio a Agosto. Em Macau a floração começa em Janeiro e vai até Março, quando desabrocha a folha e acontece a frutificação, que se estende até Abril. As folhas caem de Novembro a Fevereiro. (Árvores de Macau Wang Zhu Hao, edição CMI, 1997 Macau). No quintal do Centro de Artesanato de Freixo de Espada à Cinta encontram-se plantadas amoreiras brancas e negras, sendo-nos chamada a atenção para quatro tipos de folhas existentes. Além de diferentes recortes, com margens serradas, em algumas por o tacto se sente serem felpudas no lado inferior. Já a Morus nigra (a amoreira negra), com uma grande copa, é originária do Irão e do Cáucaso, sendo bem conhecida nos países mediterrânicos, estando em Portugal bem aclimatada. De porte com dez a doze metros de altura tem um tronco “revestido da sua casca grossa, gretada e de cor escura que serve para fabricar cordas e mesmo tecidos”, segundo Wang Zhu Hao, que complementa: A madeira, quando acabada de cortar, tem “cor amarelo-clara que depois escurece. O alburno é branco e pouco abundante. Por se sentir pouco as alternâncias de muita humidade ou de grande seca, a madeira é usada na tanoaria, cavilhas para os barcos e marcenaria. Olivier de Serres refere a folha de amoreira preta faz a seda grosseira, pesada e muito compacta, sendo boa para galões, mas menos apreciada para tecidos finos”. “A amoreira preta caracteriza-se por rebentos curtos, grossos e peludos; as folhas grandes em forma de coração, duras, grossas e espessas, ásperas no toque em ambas as faces e recortadas com dentes desiguais, de cor verde-escuro na face superior e verde-mar nas costas.” Já os frutos da amoreira negra são um pouco maiores aos da amoreira branca e têm um sabor mais agradável, apesar de também acidado. Nascem com uma cor verde, passando a vermelho e quando maduros são negros de sabor açucarado-ácido. Oriundas da América, a Morus rubra (amoreira encarnada) e a Morus celtidifolia são nesse continente as adequadas, se não houver a espécie Morus alba para alimentar a Bombix mori, existindo ainda a Morus insignis. A amoreira é uma árvore que precisa de pouco tratamento e cujo período de vida varia entre os sessenta a setenta anos, existindo algumas seculares e milenares. “Poucas árvores oferecem um conjunto de vantagens, sob o ponto de vista da agricultura como a amoreira, pela variedade de produtos que dela se obtêm”, segundo Wang Zhu Hao, em Árvores de Macau.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA Exactidão do Palácio Mirífico de Yuan Yao Qinwang Zheng, ou Zheng, o rei de Qin (259-210 a. C.) depois de vencer seis Estados combatentes em 221 a. C. imaginou um reinício da História que começava pela sua própria designação que passou a ser Qin Shihuang di, o «Primeiro monarca esplendoroso». Das diversas leis, formas e práticas vigentes nos outros Estados fez uma só, das muitas muralhas que protegiam cada um deles, fez só uma Grande muralha de dimensões desmesuradas, Wanli changcheng; mandou queimar livros que pudessem pôr em causa o seu pensamento e para alardear o seu vasto poder mandou erigir um fabuloso palácio em Epang no ano 212 a.C.. O destino das várias acções seria desigual. É certo que huangdi passaria a ser a nomeação de todos os futuros poderosos dirigentes a que chamamos «imperadores»; a extensa muralha, sempre acrescentada, permaneceria como um desafio; as ideias que se lhe opunham, pela sua natureza, nunca seriam contidas; o palácio de dimensões exageradas não seria acabado e como clara figuração do seu poder, objecto da ira do rebelde Xiang Yu que acabaria por conquistar Xianyang, a capital do seu reino, situada perto da actual cidade de Xian. Mas o fogo que consumiu o palácio Epang, além das ruínas, deixou intacto o ambicioso sonho de pedra. Muitos anos depois o poeta dos Tang, Du Mu (803-852) que nunca o viu, refez na imaginação a prodigiosa construção (…) «que se estendia por mais de trezentos li, tapando o sol no céu e desde o Norte da montanha Lishan ziguezagueava para Oeste e depois virava direito para Xianyang. Dois rios (Wei e Jing) fluíam no seu curso brando em direcção aos muros do palácio. A cada cinco passos havia uma torre, a cada dez passos, um pavilhão com corredores que serpenteavam como seda ondulando. E as pontas dos beirais eram projectadas como bicos de pássaros. Cada estrutura tirava partido do terreno, mas todos estavam engenhosamente entretecidos, ou cada um aposto ao outro.» (…) Yuan Yao (activo entre 1720-80), o pintor profissional de Yangzhou (Jiangsu), propôs mais de uma vez as formas que poderia ter o palácio que se estendia numa colina entre dois rios. Numa dessas pinturas no Museu de Belas Artes de Boston, a Vista imaginada do palácio Epang (tinta e cor sobre seda, 172,6 x 127 cm), ele utilizou o método jiehua, «pintura de limites» ou feita com réguas, e o estilo gongbi, o pincel minucioso para reproduzir o efeito de espanto que causaria a visão da construção que figurou em harmonia com a paisagem. Adequação entre o estilo e o deslumbramento do objecto pintado que Yuan Yao partilhava com o seu familiar Yuan Jiang (1670?-1755?) outro pintor de Yangzhou com quem foi por vezes confundido. Mas se a impressão de opulência e esplendor do palácio na pintura espelhava a estabilidade política e económica do tempo, isso contrastava fortemente com a era da imensa vontade de Qin Shihuang.
José Simões Morais Via do MeioSegredos da Seda (10) Langzhong, centro da seda Shu O início dos trabalhos para a produção de seda acontece nos últimos dias de Abril, com uma limpeza rigorosa ao local onde se vão processar as operações para a criação do bicho-da-seda. Além de outros utensílios, expostos ao Sol a desinfectar estão largos e baixos pratos feitos de ripas de bambu entrelaçadas onde as lagartas de Bombix mori irão crescer. Tal permite prevenir doenças no ovo e da larva, e em conjunto com a necessidade de diariamente serem colocadas frescas folhas tenras de amoreira para as alimentar, leva à obtenção de bons resultados na produção, tanto em qualidade como quantidade de seda, si chou (丝绸). De referir que cada lagarta deve consumir dez a quinze quilogramas de folhas de amoreira até se envolver no casulo e com quinhentos produzem-se 150 gramas de seda crua, a dar para tecer 1,8 m² de tecido. Observamos esse procedimento em Wuxiang e Tongxiang, mas ele está espalhado por toda a zona de Jiangnan (Sul do Changjiang, o Rio Yangtzé) e agora em Sichuan, onde na cidade de Langzhong, a 120 km Nordeste de Yanting, descobrimos o centro de produção da seda Shu. Foi um acaso a levar-nos a ela, que a par com Lijiang, Pingyao e Senxian, é considerada uma das quatro mais bem preservadas cidades antigas da China. O nome de Langzhong aparecera referenciado ao estudarmos o general Zhang Fei, pois aqui está um dos seus mausoléus. Mas a ancestralidade do lugar provém de aqui ter sido concebido Fu Xi (2852-2738 a.n.E.), o primeiro Ancestral da civilização chinesa, que por três vezes se deslocou a Langzhong onde apreendeu as forças yin e yang e combinando-as inventou os trigramas, deixando em caves ao redor gravado o livro de pedra com o Bagua chamado Yu Ye Shi Shu (玉页石书). Também a Deusa Mãe do Oeste, Xiwangmu, terá aqui vivido. O astrónomo Luxia Hong, inventor da Esfera Armilar, nasceu nesta cidade durante a dinastia Han do Oeste e Zhang Dao Ling (34-157), o fundador do tauismo religioso, passou de 126 a 144 em Langzhong e começou a propagar a sua doutrina em 141, formando o grupo ‘Via dos 5 Alqueires de Arroz’, mais tarde conhecido por ‘Via dos Celestes Mestres’ (Tianshidao). Langzhong era um dos centros da mágica cultura Wu Zhu, herança esotérica ancestral da região ligada com Lao Zi (c.591-c.511 a.n.E.) e da religião animista bon proveniente das montanhas do Oeste de Sichuan e levada até ao Tibete ainda antes da nossa Era. Lugar abastado nas qualidades que oferece, não fosse um local de excelente Feng-Shui (auspiciosa localização dada pelas correntes do vento e da água), pois rodeada pelo Rio Jialing por três lados (Sul, Oeste e Leste) e protegido a Norte pelo monte Panlong, tendo num maior perímetro a circundar montanhas com uma altura ideal por não retirarem Céu à cidade. Os adivinhos, geomantes e astrónomos Yuan Tiangang e Li Chunfeng aqui estiveram ao serviço de Li Shimin, o segundo Imperador da dinastia Tang Taizong (626-649), quando no Sul de Sichuan em 648 ocorreu a queda de um meteorito e um tremor de terra a prognosticar mudança de imperador ou de dinastia. Yuan Tiangang chegou a Langzhong e logo se apercebeu das características únicas do lugar e ao subir à montanha Jinping, no outro lado do rio e de frente para a cidade, encontrou o corpo do Dragão, que desembocava no monte Panlong sobranceiro à povoação. Mandando escavar parte da encosta cortou o veio do Dragão e assim o monte deixou de poder gerar um imperador. Quando por diferentes caminhos Li Chunfeng aqui chegou, ao seguir o Dragão encontrou já a montanha a ser mutilada e uma fonte a libertar o qi (energia) deste. História escutada no Museu do Feng-Shui situado junto à parte muçulmana da cidade antiga. Li Chunfeng viria a escrever o livro “Tui Bei tu” (Empurrado pelas costas), com sessenta desenhos, cada um tendo um título, um poema e um hexagrama do Yi Jing. Du Fu (712-770), poeta da dinastia Tang, escreveu sobre este lugar referindo ser morada de deuses. Langzhong é ainda a Meca da China islâmica, pois neste país o Templo Baba é considerado o mais importante do Islão e quando os islâmicos chineses não conseguem ir a Meca, visitam-no a colmatar essa falha. Situado no sopé do monte Panlong encontra-se o túmulo do vigésimo nono descendente de Maomé, Khoja Abd Alla, conhecido por Baba. Chegara à China em 1674, já na casa dos noventa anos, mas a sua juventude maravilhava quem com ele tratava. Conheceu Ma Ziyun promovido em 1685 a comandante chefe do Norte de Sichuan, com guarnição em Langzhong, que convidou Baba para aqui vir pregar. Este, durante um passeio encontrou o lugar e por achar ter muito bom Feng-Shui escolheu-o para erigir uma mesquita e aí ficar sepultado. Passando desta vida a 25 do terceiro mês lunar de 1689 foi-lhe construído o Pavilhão Jiuzhao para última morada. PRODUTOS DOS FRUTOS DA AMOREIRA Regressávamos ao hotel quando, ainda fora da cidade antiga, passamos por um edifício de madeira cuja cor vermelha indicia ser governamental, tendo a encimar uma tabuleta com a inscrição “Langzhong Can Zhong Chang”. Acabávamos de traduzir os caracteres e celebrávamos o encontro com o Instituto ligado à seda de Sichuan, o mote desta viagem, quando aí vemos entrar uma pessoa e a inquirimos sobre a possibilidade de fazer uma visita. Era o director, o Dr. Feng Guang Qiang, que logo nos encaminha até ao seu gabinete e após saber do nosso interesse, amavelmente nos actualiza com uma grande quantidade de informação, tanto sobre os ovos, como das doenças e os cruzamentos das Bombix mori, pois é especialista nessas matérias. Diz estar o Instituto inserido num complexo maior onde a fábrica de Vinagre e a do Vinho têm lugar pois trabalha com produtos ligados à produção da seda. Refere actualmente ali se estudar um novo produto, o vinagre de sorose, o fruto da amoreira que também serve para fazer vinho medicinal e entrega-nos os catálogos a promover esse vinho e o vinagre, levando-nos ao departamento onde se realizam as análises dessas experiências. Após essa visita, seguimos para o extenso amoreiral a perder de vista situado atrás do recinto, onde o nosso anfitrião indica serem arbustos da espécie Morus alba, uma das quatro espécies de amoreiras (sang, 桑) da China, sendo as restantes, Morus multicaulis, Morus bombycis e Guangdong Jingsang. No entanto, ficamos a saber existirem actualmente trezentas espécies de amoreiras, sendo uma delas especificamente plantada para dos seus frutos se fabricar o vinho. Este pode ter três diferentes teores alcoólicos, 11º, 15º e 30º, apesar de ao beber mais parecer um sumo por ser adocicado e faltar-lhe os taninos no paladar. É bom para prevenir as doenças cardiovasculares e diz-nos ser um bom rejuvenescedor, tal como o vinagre produzido da fruta da mesma árvore, cujos habitantes reportam servir para prevenir muitas doenças, dando o exemplo de não haver pessoas infectadas com H1N1 em Langzhong (estamos em Novembro de 2009). Em Nanchong, ainda na província de Sichuan, tinham-nos dito haver 216 espécies de amoreiras, sendo os frutos ricos em nutrientes com açúcar, aminoácidos e várias vitaminas e servem para tirar a sede, assim como tonificar o corpo. Morus L. Amoreira pertence à ordem das Urticales, família das Moraceae, género Morus, sendo uma árvore de folha caduca e embora se dê em toda a parte, não floresce em qualquer clima. Aqui a amoreira branca multiplica-se por semente, ou por estaca e rebentos, e sem deixar atingir o porte de árvore são podadas para ficar em arbusto e não ultrapassar a cintura do sericicultor. Além das suas folhas serem o melhor alimento para o bicho-da-seda, usam-se actualmente como efusão para beber, para comer como vegetais e para fins medicinais. Segundo refere Ana Maria Amaro, encontra-se registado no Shan Hai Jing (山海经) [Clássico das Montanhas e dos Mares, escrito entre 206 a.n.E. e 23 por Liu Xiang e o filho Liu Xin, considerado o primeiro livro da literatura chinesa a tratar sobre geologia e geografia] “o uso das folhas de amoreira na extracção de corpos estranhos dos olhos”, que adita, “na Dinastia Tang já se usavam as folhas de amoreira e amêndoas contra o beri-béri”. “As características da Morus alba estão nos rebentos delgados, lisos ou muito pouco peludos. As folhas são finas, de uma cor verde clara mais desvanecida no verso, lustrosas na face superior e macias ao toque”, refere João Faustino Masoni da Costa, n’ A Indústria da Seda. É uma planta dióica, pois cada pé ou dá flores masculinas ou flores femininas. Só das flores femininas nascem os frutos em forma de cacho peduncular com bagas no início rosadas e pretas quando maduras. Chamados em mandarim sangshen (桑椹), são amoras/soroses, (não confundir com a amora-silvestre, Rubus fruticosus, proveniente da amoreira-brava, uma rosácea), com um sabor ácido e pouco doce, mas agradável e rica em vitamina C, obtendo-se dele uma bebida semelhante ao vinho, vinagre, geleias e xaropes para combater as inflamações de boca e garganta e usada na medicina tradicional. As sementes para a criação de amoreiras provêm dos caroços dessa fruta e por isso, devem ser colhidas de uma Morus alba com uma idade a rondar os cinco, seis anos, e não podada nos últimos três anos. Após uma selecção dos frutos, os maiores e bem maduros, colocam-se dentro de um recipiente com água e desfaz-se a sua polpa com os dedos até os caroços ficarem isolados. Limpos, colocam-se à sombra espalhados sobre um pano a secar. A Primavera é a estação ideal para a sementeira e após um ano, as plantas passam para o viveiro e a enxertia, se for feita, só no ano seguinte deve acontecer.
Hoje Macau Via do MeioO Duque Ai – Xunzi Tradução de Rui Cascais O Duque Ai de Lu perguntou a Confúcio, “Desejo julgar na companhia dos homens bem-criados do meu estado para, junto com eles, o ordenar. Posso perguntar como devo fazer para os escolher?” Confúcio respondeu, “Viver no mundo de hoje, mas focar a nossa intenção na via dos antigos, viver com as roupas de hoje, mas envergar as vestes dos antigos – os que seguem isto e mesmo assim erram são muito poucos, certo?” O Duque Ai disse, “Se assim for, quem usar vestes da corte e sapatos da corte e puser no cinto uma placa oficial é uma pessoa exemplar?” Confúcio respondeu, “Não é necessariamente assim. Mas quem usa as vestes cerimoniais e anda na carruagem cerimonial não concentra as suas intenções no consumo de vitualhas [proibidas durante o jejum anterior aos sacrifícios]. Quem usa as vestes e sapatos do luto, se apoia numa bengala e come caldo de arroz não concentra as suas intenções em vinho e carne. Viver no mundo de hoje, mas focar a nossa intenção na via dos antigos, viver com as roupas de hoje, mas envergar as vestes dos antigos – são deveras poucos os que seguem isto, mas ainda assim há os que erram, certo?” O Duque Ai exclamou, “Bem dito!” Confúcio disse, “Existem cinco qualidades de pessoas. Há a pessoa vulgar, a pessoa bem-criada, a pessoa exemplar, a pessoa meritória e o grande sábio”. O Duque Ai disse, “Posso perguntar a que tipo de pessoa se chama vulgar?” Confúcio respondeu, “A boca da pessoa vulgar é incapaz de boas palavras e o seu coração não sabe controlar a expressão no seu rosto. Não sabe como escolher pessoas meritórias e homens de bem nos quais confiar, para que se preocupem por ela [com tarefas e assuntos]. Quando se esforça, não sabe onde aplicar o seu vigor nem no que deve trabalhar e, quando limita as suas inter-acções, não sabe onde tomar posição fixa. Nas suas escolhas diárias entre coisas, não sabe o que valorizar. Limita-se a vogar com as coisas como numa corrente sem saber onde regressar. Os seus cinco sentidos o governam e o seu coração obedece-lhes e se arruína. A alguém assim podemos chamar de pessoa vulgar.” O Duque Ai exclamou, “Bem dito! Posso perguntar a que tipo de pessoa se chama bem-criada?” Confúcio respondeu, “A pessoa bem-criada, mesmo que seja incapaz de praticar o Caminho e os seus métodos na totalidade, tem sempre um modelo apropriado para as suas acções e, mesmo sendo incapaz de bondade total, tem sempre ocasiões em que é capaz de o fazer. Por isso, não trabalha na aprendizagem de muitas coisas, mas labora em ser cuidadosa naquilo que compreende. Não labora em dizer muitas coisas, mas sim em ser cuidadosa naquilo que quer dizer. Não labora na prática de muitas coisas, mas sim em ser cuidadosa a respeito do padrão que segue. Assim, quando sabe algo é porque já o compreendeu. Quando diz alguma coisa é porque já a compreendeu. Quando pratica alguma coisa é porque já seguiu o seu padrão. Por isso, faz todas estas coisas com uma constância semelhante à de não podermos trocar a nossa natureza, vida e carne pelas de outrem. Assim, riqueza e um estatuto nobre nada lhe acrescentam. Um estatuto humilde e baixo não a diminuem em nada. A alguém assim podemos chamar de pessoa bem-criada”. O Duque Ai exclamou, “Bem dito! Posso perguntar a que tipo de pessoa se chama pessoa exemplar?” Confúcio respondeu, “A pessoa exemplar tem palavra e é leal, mas o coração não exibe a sua virtude. Tem ren [humanidade] e yi [justiça] na sua pessoa, mas a sua aparência não é arrogante. As suas reflexões e deliberações são penetrantes e claras, mas o seu discurso não é contencioso. Assim, aqueles que são hesitantes, como se estivessem prestes a ser capazes de alcançar [o Caminho], esses são pessoas exemplares”. O Duque Ai exclamou, “Bem dito! Posso perguntar a que tipo de pessoa se chama meritória?” Confúcio respondeu, “As acções da pessoa meritória conformam-se ao compasso e à linha de tinta, sem ferir as coisas fundamentais [com rigidez e inflexibilidade]. As suas palavras bastam para servir de modelo para todos debaixo do Céu, mas sem ferir a sua própria pessoa. Pode ser rico o bastante para possuir o mundo inteiro, mas ninguém sente ressentimento por isso. Pode espalhar a sua beneficência por todo o mundo sem se preocupar com ficar pobre. Alguém assim pode ser chamado de pessoa meritória”. O Duque Ai exclamou, “Bem dito! Posso perguntar a que tipo de pessoa se chama grande sábio?” Confúcio respondeu, “O grande sábio é alguém cujo entendimento abrange o grande Caminho, alguém que sempre responde às mudanças apropriadamente e distingue correctamente entre as disposições inatas e as naturezas da miríade de coisas. O grande Caminho é aquilo através do qual muda, transforma, emprega e aperfeiçoa a miríade de coisas. As suas disposições internas e naturezas são aquilo através do qual ordena o que é certo e o que não é, o que deve ser adoptado e o que deve ser rejeitado. Por esta razão, nas suas obras faz emergir grandes distinções sobre o Céu e a Terra, examinando atentamente o sol e a lua e compreendendo e dominando a miríade de coisas por entre ventos e chuvas. Misturadas e confusas As suas obras não podem ser seguidas. Verdadeiro descendente do Céu, É impossível reconhecer as suas obras. O povo comum é superficial, Incapaz sequer de o reconhecer como vizinho. A alguém assim podemos chamar de grande sábio”. O Duque Ai exclamou, “Bem dito!”
Hoje Macau Via do MeioLin Huiying e a nova poesia Texto e tradução de António Izidro O descontentamento pelo clima político e social do país sob o domínio estrangeiro agravou-se a partir de 1915. Exigia-se, por um lado, resposta mais contundente e eficaz das autoridades governativas, enquanto circulava no seio dos intelectuais e nas universidades a necessidade de um novo conceito de cultura e novos pensamentos para a nação fragmentada. Era necessário romper as obsoletas mentes clássicas. Em França decorria a Conferência de Paz de Versalhes de 1919 que, entre outras deliberações, propor-se-á a manutenção da ocupação japonesa em territórios chineses, não obstante os protestos, em vão, da delegação de Pequim. A notícia da derrota da diplomacia chinesa chegou à capital no dia 2 de Maio e no dia seguinte as universidades reuniram-se para tomar uma acção – a manifestação no dia 4 Maio. Cerca de três mil estudantes concentraram-se na Praça de Tiananmen em protesto contra o regime, contra a cultura, a tradição, vistos como responsáveis pelo desastre nacional de uma nação amarrada por filosofias e conceitos obsoletos. Em pouco tempo, a manifestação estender-se-ia por quase todo o país. Empresários, operários e camponeses uniram-se em greve, seguiram-se as repressões, prisões de estudantes, que agravaram ainda mais o caos. Sem outros meios para travar o descontentamento nacional, o governo republicano caiu no dia 13 de Junho. Terminaram as repressões, os estudantes foram libertados e detidos os traidores da pátria. Uma nova indicação foi dada à delegação chinesa em Paris: “Não se assina o tratado de Versalhes.” Um movimento estudantil a acordar a nação inteira e a provocar a queda de um governo, bem ao jeito do ditado popular da autoria de Mao Zedong que diz que para incendiar um bosque basta uma centelha. A história da China é repleta de manifestações, motins e outros fenómenos de insurreição, cujos desfechos são lições que reis, imperadores e governantes não prescindem. O movimento estudantil de 4 de Maio de 1919 alcançou os objectivos, não porém com efeitos imediatos, mas permitiu lançar o conceito de nova cultura, da limpeza semântica. A semente começou a germinar ao nível das liberdades, dos direitos da mulher na educação, nas artes, na literatura. Defendia-se o abandono da escrita clássica, dos velhos conceitos morais e filosóficos de inspiração confuciana que impediram a monarquia de sacudir o jugo estrangeiro, enfim, a criação de um novo ambiente social, cultural e político e uma nova forma de poetizar. Foi neste clima renovado que Lin Huiying (1904-1955), escritora, a primeira mulher arquitecta chinesa, foi estudar belas-artes nos Estados Unidos da América, destacando-se como professional na restauração e conservação do património cultural chinês. Contrastando o seu reconhecido mérito em projectos, designs e trabalhos de arte, como escritora, Lin Huiying, autora de uma vasta obra literária, revela o lado lírico da sua personalidade, as emoções, e sobretudo o profundo enamoramento pelos sentimentos, pela saudade. Em «Não desfaças» (escrito em chinês moderno) publicado na colectânea de 1936, depreende-se que há por parte da autora a conservação de uma realidade que não está mais presente, mas por ela perseguida; a interrupção, mas para ela atemporal, do afecto pelo amigo que faleceu, o sujeito passivo neste discurso directo, a quem pede para não desfazer o afecto e a amizade que uniram os dois. Afinal, tudo continua igual, a fluir, no mesmo luar, nas mesmas estrelas, no mesmo eco que soa no vale da montanha. 别丢掉 这一把过往的热情 现在流水似的 轻轻 在幽冷的山泉底 在黑夜,在松林 叹息似的渺茫 你仍要保存着那真 一样是明月 一样是隔山灯火 满天的星, 只有人不见 梦似的挂起 你向黑夜要回 那一句话 你仍得相信 山谷中留着 有那回音. Lin Huiying Não desfaças Aquele afecto ardente do pretérito que de mansinho flui como água no remanso da fonte sob a montanha no escuro da noite, no pinheiral, por entre suspiros indistintos. Conserva aquela mesma realidade tua, na lua do mesmo luar, na mesma intangível chama, nas estrelas onde pendurámos sonhos, cobrindo o céu. Juntos não as veremos de novo. Assomes na escuridão da noite por creres que as mesmas palavras se conservam naquele mesmo eco e ressoam naquele mesmo vale, daquela mesma montanha. «Tu és o abril na terra» é uma tentativa de esculpir a imagem da filha recém-nascida, com elementos audíveis e visíveis da natureza, concretos e abstractos: brisa, névoa, solenidade, inocência, estrelas, flores… num cenário conjugado com a época de abril. 你是人間的四月天 我説 你是人間的四月天 笑響點亮了四面風 輕靈在春的光豔中交舞着變 你是四月早天裏的雲煙 黃昏吹着風的軟, 星子在無意中閃, 細雨點灑在花前 那輕,那娉婷, 你是 鮮妍 百花的冠冕 你戴着 你是天真,莊嚴你是夜夜的月圓 雪化後那片鵝黃, 你像 新鮮初放芽的綠 你是, 柔嫩喜悦,水光浮動着你夢期待中白蓮 你是一樹一樹的花開 是燕在梁間呢喃你是愛,是暖 是希望 你是人間的四月天. Tu és o Abril na terra Digo, tu és Abril na terra, sorriso luminoso dos quatro ventos, a bailarina em metamorfose, leve no brilho da primavera. Tu és a névoa das manhãs de abril, a brisa suave que sopra ao crepúsculo. As estrelas faíscam ao acaso a chuva borrifa gotas diante das flores. Levezinha, elegante formosura, és tu corola de branca flor cingida à cabeça. Tu és inocência, solenidade, tu és a lua cheia das noites da amarelada neve derretida. Tu és a frescura verde dos rebentos a tenra alegria, o lótus branco do teu sonho, flutuando em águas luzidias. Tu és a flor desabrochando em cada árvore o grinfar das andorinhas por entre as vigas. Tu és amor, és brandura, és a esperança. Tu és o Abril na terra. 笑 笑的是她的眼睛,口唇 和唇邊渾圓的漩渦。 艷麗如同露珠 朵朵的笑向 貝齒的閃光里躲。 那是笑 神的笑,美的笑 水的映影,風的輕歌 笑的是她惺松的鬈髮 散亂的挨著她耳朵 輕軟如同花影 痒痒的甜蜜 湧進了你的心窩 那是笑 詩的笑,畫的笑 雲的留痕,浪的柔波 Sorriso (exaltação do sorriso feminino) São seus olhos, são seus lábios, rodopio de remoinhos junto aos beiços a competir com a beleza do orvalho. No brilho de cada dente escondido brota a flor de um sorriso, aquele sorriso, sorriso divino, belo, reflectido nas águas, cantado pelos ventos. Sorriso são cachos adormecidos do seu cabelo esparsos, aconchegados aos ouvidos, leves como sombras floridas prurido açucarado invadindo os corações É aquele sorriso, sorriso poético, pitoresco, como vestígios de nuvens esvaídas, como mansas ondas encristadas. 深夜裏聽到樂聲 這一定又是你的手指 輕弹着 在這深夜,稠密的悲思。 我不禁颊邊泛上了红 静聽着 這深夜里弦子的生動。 一聲聽從我心底穿過 忒凄凉 我懂得,但我怎能應和? 生命早描定她的式楊 太薄弱 是人們的美丽的想象。 除非在梦里有這麼一天 你和我 同來攀動那根希望的弦。 Escuto melodia em alta noite Tenho a certeza: são os teus dedos uma vez mais, dedilhando suave nessa noite imersa em densa mágoa. Sem me poder conter, o rubor sobe-me pelas faces Serenamente, escuto as cordas vibrando noite adentro. Os sons trespassam a minha alma, tão desolada. Entendi, mas como hei-de corresponder? O destino já me entregou a sina, tão frágil. Como é belo imaginar esse dia que só o sonho pode trazer tu e eu trepando por uma corda de esperança
Paulo Maia e Carmo Via do MeioAs Nuvens Sobre a Mesa de Yang Jin Tao Hongjing (456-536), o sábio daoísta multifacetado nascido em Moling, perto da capital Jiankang, a actual Nanquim e que seria autor de estimados textos que esclareceriam o Dao, como o Zhengao, a «Declaração do Aperfeiçoado», teve desde muito cedo a intuição de que o lugar a que pertencia, a sua pátria electiva, era no meio das montanhas Juqu, hoje designadas Maoshan. Para lá se dirigiu desde 492 e apesar da distância e do isolamento, a sua fama de eremita erudito, yinshi, foi-se estendendo sempre ao longo dos mais de oitenta anos da sua vida que decorreu num período especialmente turbulento que viu sucederem-se treze imperadores. O mais memorável de entre eles era também uma personalidade notável capaz de reconhecer a luz que brilhava no escuro no meio das montanhas. Xiao Yan (464-549) que fundaria uma nova dinastia terá consultado Tao Hongjing para escolher um nome auspicioso para o seu reinado. Desde então chamado imperador Wu de Liang (r. 502-549) uma palavra de múltiplos sentidos que incluem a ideia de uma cadeia montanhosa, não cessou de honrar o daoísta a quem atribuiu o título de «chanceler das montanhas» e para quem mandou erigir, onde ele vivia, o eremitério Zhuyang guan, a «Abadia Yang da cor cinábrio». Entre os dois desenvolveu-se uma fecunda relação literária e espiritual nascida da aparente contradição entre um homem que aprofundava o Dao e outro que foi responsável por uma progressiva disseminação e sinização do Budismo, que declarou como religião oficial do Estado. No final ambos reconhecendo os méritos do outro, contribuindo para a heterogénea religião nacional. Da conversação literária entre os dois foi guardado um esclarecedor poema de Tao Hongjing dirigido a Xiao Yan: Perguntou-me o que há de tão interessante nas montanhas, e há tantas nuvens brancas pairando sobre os cumes. Mas só cada um, por si só, as pode admirar. Não as podemos segurar nas mãos para vo-las apresentar, senhor. Yang Jin (1644-1728), um pintor erudito que contribuiu para a exuberante riqueza visual exibida pela dinastia Qing no seu desejo de assumir a herança cultural vinda de dinastias precedentes, colaborando com o seu mestre Wang Hui (1632-1717) na ilustração das Viagens ao Sul do imperador Kangxi, prolongaria aquele inolvidável diálogo através de um poema. Numa pintura feita para o álbum de dezasseis folhas, Paisagens a partir de antigos mestres (tinta e cor sobre papel, 27, 9 x 30,8 cm, no Metmuseum) em que participam outros cinco pintores, sobre uma paisagem enevoada ao estilo de Mi Fu (1051-1107) escreveu: A chuva abandonando as vastas regiões despovoadas faz as cores da madrugada transparecem e surge o azul celeste dos vapores de montanhas distantes. Nuvens brancas enchem a minha mesa ao desenrolar a pintura. Quem pode dizer que elas não podem ser enviadas a um senhor?
Ana Cristina Alves Via do MeioPanda: Um importante símbolo chinês Ana Cristina Alves, Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM O Panda (熊猫 Xiōngmáo), numa tradução literal “urso-gato”, ou Grande Panda (大熊猫Dàxiōngmáo), é um importante símbolo da China. A sabedoria proverbial diz muito sobre ele. Comece-se pelo nome que nos apresenta um urso ou de um grande urso, com o qual os chineses se identificam, não apenas do ponto de vista geográfico, já foi preservado e guardado por eles como um tesouro de valor inestimável, mas porque tem uma aparência física com a qual os descendentes do Dragão imediatamente se identificam do ponto de vista afetivo, já que é grande, fofo e redondo, recebendo por isso o epíteto de “Rolante”(滚滚 Gǔngǔn). Ele é “brincalhão e ingénuo” como indica a expressão proverbial (憨态可掬hāntài-kějū), portanto o melhor amigo que as pessoas podem ter na pândega. Além disso, a sua atitude é uma verdadeira lição de vida, já que está sempre satisfeito com o seu destino, como se lê numa outra expressão proverbial, na qual se afirma que é “tranquilo e satisfeito” (悠然自得 yōurán-zide); somam-se a estas, novas características que distinguem o seu carácter: “autocontrolado e vigilante” (泰然自若 tàirán-zìruò), não entra em pânico, permanecendo sempre alerta, o que é associado, do ponto de vista cromático, à conjugação do preto e do branco no seu pelo. Como relata Wolfram Eberhard em A Dictionary of Chinese Symbols (1986:35), nos tempos em que Mao Zedong (毛泽东) se quis dissociar da antiga União Soviética, corria na China que havia dois tipos de mascotes, o bom panda chinês e o urso mau soviético, ao ponto de terem surgido versões da história do Capuchinho Vermelho, nas quais o lobo mau era substituído por um urso pardo russo. O Panda proverbial é ainda “vagaroso e deliberado” (慢条斯理màntiáo-sīlǐ), mas essa lentidão pensada confere-lhe a postura correta na vida. O passo estugado, o querer fazer muito em pouco tempo, o estar constantemente a produzir e em crescimento, seja por que motivo for, material ao espiritual, conduz à morte prematura. A deliberação deste urso na redução da velocidade, não implica excesso de racionalidade, como se pode verificar pela atitude espontânea e humilde, transmitida no modo oscilante e despreocupado como se move, “abanando a cabeça e o rabo” (摇头摆尾yáotóu-bǎiwěi). Recebe ainda muita simpatia entre as gentes do País do Meio por ser tão “desajeitado e fofo” (笨拙可爱bènzhuō-kě’ài). Num outro dito é descrito como “inteligente e vivo” (聪明伶俐cōngmíng-línglì), vivacidade esta que deixa transparecer nos saltos, manifestando a vigorosa alegria com que atravessa a existência “aos pulos” (活蹦乱跳huóbèng-luàntiào) . Aliás, ele vive sem qualquer atenção à sua “imagem social”, “movendo-se como se não houvesse ninguém por perto (旁若无人pángruò-wúrén), numa falta de cuidado pelo retrato, que se irá encontrar em muitos chineses. Enquanto urso, o panda simboliza “a fecundidade masculina, a virilidade e a força” (Steens, 1980: 354). Acrescenta Wolfram Eberhard (1986: 34) que ao representar o homem, quando alguém sonha com ursos terá filhos do sexo masculino, encontrando-se ainda ligado a um imperador mítico chinês, o Grande Yu (大禹Dàyǔ), que era, tal como o seu pai, multifacetado: aquele que soube dominar o dilúvio na China, abriu canais e conduziu as águas dos rios até ao mar, a fim de os dragar, podia transformar-se num urso. Dayu casou com Nujiao (女娇), a quem matou de susto quando assumiu o aspeto de urso, numa das suas metamorfoses essenciais, para mais facilmente abrir um túnel na montanha Xuanyuan. Ora a mulher que lhe ia levar a comida, quando viu um enorme mamífero atrás de si com a voz do cônjuge, morreu de susto: “Nujiao ouvia a voz do marido, mas quando voltava a cabeça só via um urso em sua perseguição. Apavorada, correu até à montanha Song (Songshan 嵩山), onde caiu exausta, transformando-se numa estátua de pedra” (Wang, Alves, 2009: 86). Teve ainda a gentileza de lhe deixar o filho que transportava no ventre, a pedido dele, abrindo-se a estátua por milagre celestial. O Panda não é apenas a mascote da China, que simboliza o homem, remete ainda para importantes símbolos astrológicos, as duas Ursas, a Maior e a Menor, e dentro destas constelações de sete estrelas para cada, pode ser visualizada na Ursa Menor a Estrela Polar. O Norte, a orientação suprema, irmã da Maior, onde se firma o trono do Imperador Celestial (上帝Shàngdì). Portanto, o Panda da terra está ligado aos seus ancestrais astrológicos, as Ursas, que conferem a orientação correta a seguir nos céus, mas como firmamento e terra pertencem a um mesmo cosmos, este animal pode e dever conferir o caminho a seguir no nosso planeta, onde foi eleito modelo filosófico existencial pelos chineses, sobretudo quando os protagonistas dos nossos dias surgem um tanto desnorteados, à procura de uma guia, como é o caso da narradora de “Ursa Maior”, um conto de Macau contemporâneo na voz artística feminina de Mong Shi “O tempo em que eu via a Ursa Maior parece-me agora completamente remoto (…) Escondo-me na colina do Monte, escondo-me debaixo das árvores desta pequena cidade, com os olhos enevoados, com os olhos perdidos, oriente, ocidente, sul e norte, todas as direções em confusão; mas continuo a guardar o hábito de erguer os olhos no céu à noite à procura da Ursa Maior, a constelação que tenho no meu coração…” (Mong: 1998: 183/4). Por que razão o Panda é ainda modelo existencial na China? Antes de mais, porque nos primórdios, tal como os outros mamíferos da espécie, era carnívoro, mas progrediu em direção a uma nutrição vegetariana, alimentando-se essencialmente de bambu. Tal significa no oriente chinês um caminho de vida mais simples e despojado, revelando ainda grande tenacidade e adaptabilidade na luta pela sobrevivência. Além disso, é um importante símbolo de preservação da biodiversidade nesta nova era do socialismo ecológico chinês. Quase em vias de extinção, aquele que um dia andou por terras asiáticas e muito recentemente só podia ser encontrado na China, estava a perder-se não fosse o esforço constante da nova política verde assumido pelas autoridades políticas e científicas do país. É ainda um excelente representante zoológico da cultura chinesa pela configuração cromática. A aliança entre o preto e o branco no seu corpo transporta logo a dois dos principais símbolos da filosofia chinesa, o Yin (阴 Yīn) feminino e Yang (阳 Yáng) masculino, que vemos também representados no emblema do Taiji (太极 Tàijí ), o “Supremo último” com que o país se exporta em termos de Soft Power pelo mundo. Ora o emblema, que surgiu no âmbito da Alquimia Interior, revela a via espiritual para obtenção do autodomínio, controlo espiritual, longevidade e até imortalidade. Um dos representantes mais destacados da escola alquímica foi Chen Tuan (陈抟, c. 906-989), o autor do Taiji (Alves, 2007:81), que ao simbolizar o autodomínio, se cruza não apenas nas cores com as características atribuídas ao urso chinês. Se o panda adulto representa o homem, é natural que os chineses encontrem grandes semelhanças entre as crias de pandas e humanas, o que de facto sucede, sobretudo no que respeita a emissão de sons vocálicos. Mas podemos ir mais longe nas analogias em termos filosóficos. O modelo existencial encarnado pelo panda aproxima-o do estilo de vida proposto pelos taoistas. Ele é ingénuo, brincalhão, porém, ao mesmo tempo, alerta na sua espontaneidade. Oferece-se à existência despojado de artifícios. O seu vegetarianismo remete-nos para os três tesouros taoistas: a compaixão, a frugalidade e a simplicidade (《道德经•67》我有三宝 /持而保之/ 一曰慈/ 二曰俭/ 三曰不敢为天下先). E a maneira de estar na natureza deste mamífero recorda o modelo de recém-nascido oferecido pela experiência biográfica de Laozi (老子), inspirando assim silenciosamente os que o quiserem seguir, a partir do capítulo 20 do Clássico da Via e da Virtude (《道德经•20》), de cuja segunda parte apresento a minha tradução: 众人皆有余 Todos têm em excesso 而我独若遺 Só a mim me falta tudo 我愚人之心也哉 Sou completamente idiota! 沌沌兮 Tão obscurecido 俗人昭昭 As pessoas vêm claro 我独昏昏 Só eu sou confuso 俗人察察 Os outros são perspicazes 我独闷闷 Eu retraio-me 澹兮若海 Ondulante como o mar 恍兮若无止 Numa deriva sem fim 众人皆有以 Todos têm utilidade 而我独顽似鄙 Mas eu que estúpido e desprezível 我独异于人 Sou diferente dos outros 而贵食母 Alimento-me do seio da Mãe Tal como um panda gigante, remato, rolando e vagueando pelos bambuais, agarrado ao seio da Mãe Natureza e ao sopro vital da terra, bamboleando-se redondo e pacífico. Bibliografia Alves, Ana Cristina. 2007. A Mulher na China. Lisboa Editorial Tágide. Eberhard, Wolfram. 1986. D Dictionary of Chinese Symbols. Hidden Symbols in Chinese Life and Thought. Tradução de G. L. Campbell. Londres e Nova Iorque: Routledge. Graça de Abreu, António. 2013. (trad.) Laozi. Tao Te Ching. O Livro da Via e da Virtude. Ed. Bilingue. Lisboa: Nova Vega. Steens, Eulalie. 1980. Dictionaire de la Civilization Chinoise. Du neólitique au début de la dynastie Qing (XVIIe siècle). Prefácio de Alain Decaux. Editions du Rocher. Mong Shi. 1998. “A Ursa Maior”. Sete Estrelas. Antologia de Prosas Femininas. Trad. Maria José Trigoso. Apresentação de Tong Mui Siu. Macau: Instituto Cultural de Macau. Wang, Alves. 2009. Mitos e Lendas da Terra do Dragão. Lisboa: Caminho. Webgrafia 形容熊猫的成语有哪些 (Quais são os provérbios descritivos do panda?). Baidu. https://zhidao.baidu.com/question/1179336365885654819.html 南宫问天2019熊猫的故事 The Story of Panda Taotao IPanda- 《你不知道的大熊猫故事》大家的成就 (Sabes qual é a história do panda Chengjiu?) | CCTV纪录https://www.youtube.com/watch?v=DcEG2FxoDos
José Simões Morais Via do MeioSeda, a rainha das fibras Lei Zu estudou o ciclo de vida do bicho-da-seda, o qual hoje está classificado como pertencente à classe dos Insectos, ordem dos Lepidópteros, família dos Bombicídeos, género Bombix, sendo a espécie Bombix mori quem produz o fio de seda de melhor qualidade. A seda é segregada quando a lagarta atinge o estado adulto e começa a expelir um filamento pela boca num movimento em 8 para construir o casulo. O longo filamento contínuo a poder atingir perto de mil metros é constituído por fibroína, o constituinte principal da seda natural, produzida por duas glândulas sericígenas tubulares, longas e voluteando, situadas nas partes laterais anteriores do abdómen da lagarta. Esses dois canais laterais juntam-se num compartimento mais largo, na parte média do abdómen, onde os dois filamentos compostos pela fibroína são envolvidos por uma substância gomosa, a sericina, um líquido glandular. Num único filamento é expelido por um tubo situado na parte inferior da boca e quando exposto ao ar endurece, tornando-se resistente. É com esse filamento que a lagarta, ao girar, se vai envolvendo e construindo o casulo de fora para dentro, levando entre três a cinco dias, mas há locais onde fica feito em apenas 24 a 72 horas. Dentro, a lagarta após expelir todo o filamento fica com o corpo atrofiado e em metamorfose transforma-se em crisálida, cinco a seis dias depois de terminar a construção do casulo. Antes de ser domesticado há cinco mil anos, o bicho-da-seda era muito mais forte e o filamento por ele expelido de qualidade superior e de maior resistência ao produzido hoje. Actualmente não se encontra no estado selvagem e por isso, tudo aqui descrito apenas corresponde à sua forma domesticada. O ciclo de vida da Bombix mori consiste em quatro fases: ovo (também chamado semente), lagarta (sirgo, ou larva após sair do ovo), crisálida (ou pupa) e mariposa (borboleta nocturna ou imago). Vive normalmente de quarenta e cinco a setenta dias, desde que do ovo sai a minúscula larva e em períodos de crescimento vai, três ou quatro vezes mudando a capa (invólucro exterior) e já como lagarta adulta fecha-se num casulo, por si construído, para se proteger durante o período de transformações operadas no seu corpo. Tendo expelido o fio da seda para a construção do casulo, a glândula serígena, até então o órgão mais desenvolvido, atrofia e dá lugar ao aparelho reprodutor. O corpo alongado da lagarta por metamorfose transforma-se numa crisálida e depois em mariposa, quando fura o casulo para sair. Após acasalar, a mariposa fêmea Bombix mori desova e do ovo retorna à fase larvar. SERICICULTURA Como referido, até ao século VI a China foi o único país a praticar a sericicultura (cultura ligada à criação do bicho da seda) bem desenvolvida na província de Shandong já nos inícios do século XIV a.n.E., pois os artigos de seda tinham uma enorme procura, tanto na parte social, como económica, por ser um produto muito apetecível nas trocas. Nas dinastias Shang (1600-1046 a.n.E.) e Zhou do Oeste (1046-771 a.n.E.), o sistema de trabalho nas sirgarias estava já dividido em cem funções, supervisionadas por funcionários especiais. O termo sirgaria provém de sirgo, bicho-da-seda, derivado do latim sericum, nome conhecido para a seda na Antiguidade Greco-Romana, sendo na China o animal denominado can (蚕) e a seda si chou (丝绸). A raiz do carácter a representar a seda (si, 丝) está ligada à dos instrumentos musicais e tal como o de bicho da seda (can, 蚕), tecido de seda (bo, 帛) e amoreira (sang, 桑), foram gravados em ossos de oráculo e em carapaças de tartaruga do século XII a.n.E.. Por essa altura, a seda passou a ser apenas para uso exclusivo da corte chinesa e nas cores dos tecidos se distinguiam os cargos. Assim o amarelo era reservado ao Imperador e à Imperatriz e o violeta para a família real. Ministros e altos dignitários vestiam de azul, roxo os oficiais de segunda e o preto para o restante pessoal ao serviço da corte real. Durante a dinastia Shang (1600-1046 a.n.E.) começaram a plantar-se amoreiras de Norte a Sul da China. Na Dinastia Zhou do Oeste (1046-771 a.n.E.) foram semeadas em grande escala quando floresceu a procura de seda e se deu um enorme incremento na criação do bicho-da-seda. A indústria estava concentrada em torno do vale do Rio Amarelo, quando nos primeiros séculos do último milénio antes da nossa Era, tecidos de seda foram transportados pela Sibéria para a Ásia Central. Para se perceber a importância da seda, o processo de produção da seda, desde colher as folhas de amoreira, ao tecer e tingir os tecidos, aparece descrito em dois dos cinco Clássicos chineses: no Livro dos Ritos (Li Ji) e no Livro das Odes (Shi Jing). Da dinastia Zhou do Leste (770-256 a.n.E.) um tecido brocado já tingido foi encontrado em 2007 num túmulo na província de Jiangxi, onde na aldeia Lijia, jurisdição de Jing’an, ficou a descoberto a existência de uma indústria têxtil. A produção da seda era supervisionada pelos oficiais da corte. No Período Primavera-Outono (770-476 a.n.E.), começou um rápido desenvolvimento na produção de seda que, em crescente contínuo de mil anos, atingiu o apogeu durante a Dinastia Tang, por volta do ano 750. Os papagaios de seda já esvoaçavam pelo céu entre os séculos V e IV a.n.E.. No Período dos Reinos Combatentes (475-221 a.n.E.), ao chinês que fosse sericicultor e soubesse prevenir as doenças do bicho-da-seda era-lhe dado meio quilo de ouro e ficava isento do serviço militar. Sobretudo nos reinos Chu e Qi, a produção de seda ocupava muita gente, a do campo na criação do bicho-da-seda e muitos dos habitantes da cidade a desfiar os filamentos dos casulos até chegar à confecção do tecido. Segundo os registos da época, os oficiais vestiam-se de seda e esta era um dos presentes mais preciosos. No livro Mengzi de Mêncio (372-289 a.n.E.) encontra-se uma passagem a referir: Quando em 139 a.n.E. o Imperador Han, Wu Di (140-87 a.n.E.), enviou Zhang Qian à Ásia Central pelos caminhos do Oeste, este aí encontrou uma série de produtos chineses de Sichuan, como laca, bambu e a seda Shu. Daí se perceber serem já utilizados os caminhos do Sudoeste para fazer chegar à Índia e Ásia Central as mercadorias chinesas. Assim num período anterior à abertura dos caminhos do Oeste, a seda percorria já os caminhos do Sudoeste da China, atravessando rios e montanhas, trocada de mão em mão até chegar à Índia e nessa dispersão ganhou existência noutros lugares como na Ásia Central, onde Zhang Qian viajando directamente para Oeste a encontrou. Com a dinastia Han (206 a.n.E.-220) ficam abertos e protegidos os Caminhos para Oeste, sendo o produto predilecto e o mais transportado a seda, por isso lhe deu o nome. Então, as técnicas de estampagem e os teares desenvolveram-se ainda mais. A China tinha a seda como o seu tecido, a Índia produzia algodão, o Egipto o linho e da Babilónia provinha os tecidos de lã. Das principais variedades de fibras naturais, conjugando com a lã e o algodão, a seda é superior em cinco de oito propriedades específicas e comparando com as fibras sintéticas, como o nylon e o poliéster, é superior em maciez, na finura da fibra e na facilidade de ser tingida. Já na retenção de humidade é só igualada à lã, tal como a seda uma fibra natural.
José Simões Morais Via do MeioSegredos da Seda (9) Seda, a rainha das fibras Lei Zu estudou o ciclo de vida do bicho-da-seda, o qual hoje está classificado como pertencente à classe dos Insectos, ordem dos Lepidópteros, família dos Bombicídeos, género Bombix, sendo a espécie Bombix mori quem produz o fio de seda de melhor qualidade. A seda é segregada quando a lagarta atinge o estado adulto e começa a expelir um filamento pela boca num movimento em 8 para construir o casulo. O longo filamento contínuo a poder atingir perto de mil metros é constituído por fibroína, o constituinte principal da seda natural, produzida por duas glândulas sericígenas tubulares, longas e voluteando, situadas nas partes laterais anteriores do abdómen da lagarta. Esses dois canais laterais juntam-se num compartimento mais largo, na parte média do abdómen, onde os dois filamentos compostos pela fibroína são envolvidos por uma substância gomosa, a sericina, um líquido glandular. Num único filamento é expelido por um tubo situado na parte inferior da boca e quando exposto ao ar endurece, tornando-se resistente. É com esse filamento que a lagarta, ao girar, se vai envolvendo e construindo o casulo de fora para dentro, levando entre três a cinco dias, mas há locais onde fica feito entre 24 e 72 horas. Dentro, a lagarta após expelir todo o filamento fica com o corpo atrofiado e em metamorfose transforma-se em crisálida, cinco a seis dias depois de terminar a construção do casulo. Antes de ser domesticado há cinco mil anos, o bicho-da-seda era muito mais forte e o filamento por ele expelido de qualidade superior e de maior resistência ao produzido hoje. Actualmente não se encontra no estado selvagem e por isso, tudo aqui descrito apenas corresponde à sua forma domesticada. O ciclo de vida da Bombix mori consiste em quatro fases: ovo (também chamado semente), lagarta (sirgo, ou larva após sair do ovo), crisálida (ou pupa) e mariposa (borboleta nocturna ou imago). Vive normalmente de quarenta e cinco a setenta dias, desde que do ovo sai a minúscula larva e em períodos de crescimento vai, três ou quatro vezes mudando a capa (invólucro exterior) e já como lagarta adulta fecha-se num casulo, por si construído, para se proteger durante o período de transformações operadas no seu corpo. Tendo expelido o fio da seda para a construção do casulo, a glândula serígena, até então o órgão mais desenvolvido, atrofia e dá lugar ao aparelho reprodutor. O corpo alongado da lagarta por metamorfose transforma-se numa crisálida e depois em mariposa, quando fura o casulo para sair. Após acasalar, a mariposa fêmea Bombix mori desova e do ovo retorna à fase larvar. SERICICULTURA Como referido, até ao século VI a China foi o único país a praticar a sericicultura (cultura ligada à criação do bicho da seda) bem desenvolvida na província de Shandong já nos inícios do século XIV a.n.E., pois os artigos de seda tinham uma enorme procura, tanto na parte social, como económica, por ser um produto muito apetecível nas trocas. Nas dinastias Shang (1600-1046 a.n.E.) e Zhou do Oeste (1046-771 a.n.E.), o sistema de trabalho nas sirgarias estava já dividido em cem funções, supervisionadas por funcionários especiais. O termo sirgaria provém de sirgo, bicho-da-seda, derivado do latim sericum, nome conhecido para a seda na Antiguidade Greco-Romana, sendo na China o animal denominado can (蚕) e a seda si chou (丝绸). A raiz do carácter a representar a seda (si, 丝) está ligada à dos instrumentos musicais e tal como o de bicho da seda (can, 蚕), tecido de seda (bo, 帛) e amoreira (sang, 桑), foram gravados em ossos de oráculo e em carapaças de tartaruga do século XII a.n.E.. Por essa altura, a seda passou a ser apenas para uso exclusivo da corte chinesa e nas cores dos tecidos se distinguiam os cargos. Assim o amarelo estava reservado ao Imperador e à Imperatriz e o violeta para a família real. Ministros e altos dignitários vestiam de azul, os oficiais de segunda em roxo e o preto para o restante pessoal ao serviço da corte real. Durante a dinastia Shang (1600-1046 a.n.E.) começaram a plantar-se amoreiras de Norte a Sul da China. Na Dinastia Zhou do Oeste (1046-771 a.n.E.) foram semeadas em grande escala quando floresceu a procura de seda e se deu um enorme incremento na criação do bicho-da-seda. A indústria estava concentrada em torno do vale do Rio Amarelo, quando nos primeiros séculos do último milénio antes da nossa Era, tecidos de seda foram transportados pela Sibéria para a Ásia Central. Para se perceber a importância da seda, o processo da sua produção, desde colher as folhas de amoreira ao tecer e tingir os tecidos, aparece descrito em dois dos cinco Clássicos chineses: no Livro dos Ritos (Li Ji) e no Livro das Odes (Shi Jing). Da dinastia Zhou do Leste (770-256 a.n.E.) um tecido brocado já tingido foi encontrado em 2007 num túmulo na província de Jiangxi, onde na aldeia Lijia, jurisdição de Jing’an, ficou a descoberto a existência de uma indústria têxtil. A produção da seda era supervisionada pelos oficiais da corte. No Período Primavera-Outono (770-476 a.n.E.), começou um rápido desenvolvimento na produção de seda que, em crescente contínuo de mil anos, atingiu o apogeu durante a Dinastia Tang, por volta do ano 750. Os papagaios de seda já esvoaçavam pelo céu entre os séculos V e IV a.n.E. No Período dos Reinos Combatentes (475-221 a.n.E.), ao chinês que fosse sericicultor e soubesse prevenir as doenças do bicho-da-seda era-lhe dado meio quilo de ouro e ficava isento do serviço militar. Sobretudo nos reinos Chu e Qi, a produção de seda ocupava muita gente, a do campo na criação do bicho-da-seda e muitos dos habitantes da cidade a desfiar os filamentos dos casulos até chegar à confecção do tecido. Segundo os registos da época, os oficiais vestiam-se de seda e esta era um dos presentes mais preciosos. No livro Mengzi de Mêncio (372-289 a.n.E.) encontra-se uma passagem a referir: Quando em 139 a.n.E. o Imperador Han, Wu Di (140-87 a.n.E.) enviou Zhang Qian à Ásia Central pelos caminhos do Oeste, este aí encontrou uma série de produtos chineses de Sichuan, como laca, bambu e a seda Shu. Daí se perceber serem já utilizados os caminhos do Sudoeste para fazer chegar à Índia e Ásia Central as mercadorias chinesas. Assim, num período anterior à abertura dos caminhos do Oeste a seda percorria já os caminhos do Sudoeste da China, atravessando rios e montanhas, trocada de mão em mão até chegar à Índia e nessa dispersão ganhou existência noutros lugares como na Ásia Central, onde Zhang Qian viajando directamente para Oeste a encontrou. Com a dinastia Han (206 a.n.E.-220) ficaram abertos e protegidos os Caminhos para Oeste, sendo o produto predilecto e o mais transportado a seda, por isso lhe deu o nome. Então, as técnicas de estampagem e os teares desenvolveram-se ainda mais. A China tinha a seda como o seu tecido, a Índia produzia algodão, o Egipto o linho e da Babilónia provinha os tecidos de lã. Das principais variedades de fibras naturais, conjugando com a lã e o algodão, a seda é superior em cinco de oito propriedades específicas e comparando com as fibras sintéticas, como o nylon e o poliéster, é superior em maciez, na finura da fibra e na facilidade de ser tingida. Já na retenção de humidade é só igualada à lã, tal como a seda uma fibra natural.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioLu Wenying, as Cores da Pintura e a Intuição da Chuva Huizong (r.1100-1126), o imperador que cultivou as artes do pincel, terá lançado uma provocação entre os pintores da sua corte que consistia na figuração em pinturas de versos que ele propunha. Um desses versos pode ser traduzido como: «Vai o cavalo galopando pisando flores, os seus cascos exalando fragrâncias.» Houve quem respondesse pintando um cavalo galopando livre numa floresta de flores caídas. Porém o que mereceu o aplauso do monarca mostrava: indícios de tinta vermelha no centro, o perfume, e duas borboletas esvoaçando assustadas, o cavalo acabara de passar. Essa escolha sobre como representar ideias imbuídas do ritmo da vida, o desafio próprio da pintura, foi revelando o engenho dos autores. Um pintor na dinastia Ming mostrou em dois exemplos, uma particular adequação da intenção do criador ao formato da pintura. Juntamente com Lu Ji (act. c. 1439-1510), Lu Wenying (1421-1505) encenou num rolo horizontal a celebração num jardim, como era já então um tema habitual entre eruditos, o sexagésimo aniversário de três altos funcionários. Nesse Encontro no jardim de bambu (Zhuyuan shouji, tinta e cor sobre seda, 33,8 x 395,4 cm, no Museu do Palácio, em Pequim) estão pintados, de maneira ritmada e em etapas como convém a um lento desenrolar, doze literatos sentados, alguns nas sofisticadas cadeiras portáteis de «costas de ferradura», jiaoyi. São reconhecíveis pelas suas cabeças ornadas pelo wushamao, o tipo de chapéu de tecido preto com duas asas exclusivo dos funcionários da corte, e estão acompanhados de sete jovens criados, um dos quais dança com um grou, o pássaro da longevidade. Todos estão identificados com uma espécie de filactério. Entre eles estão retratados os dois autores do rolo, vestidos cada um com uma das duas cores com que por vezes é referida a própria arte da pintura, danqing, o vermelhão do pigmento do cinabre (dansha) e o verde-azul do ciano (qinglu, azurite). Lu Wenying, pintor de Zhejiang, que tal como Lu Ji foi chamado à corte no reinado de Hongzhi (r.1487-1505), também intuiu a vocação do rolo vertical para apreender uma visão única. Na pintura Tempestade numa vila junto do rio (Jiangcun fengyu, tinta e cor sobre seda, 170,5 x 103,4 cm, no Museu de Arte de Cleveland) o olhar, pelo enganoso processo da percepção simultânea, inunda-se com a violência da água precipitando-se, inclemente. Mas se é certo que estão figuradas ondas alterosas, bandas oblíquas de tonalidades da tinta que sugerem bátegas e mesmo dois homens que se protegem com uma cobertura de palha e um guarda-chuva, o olhar descobrirá uma pequena figura que parece sorrir numa janela. Dentro de casa, protegido da intempérie, um rapaz observa o mesmo que nós: está dentro e fora da pintura. Como alguém que esteja diante da pintura, ele olha a chuva que cai mas que não saíu do pincel do pintor.
Hoje Macau Via do MeioHenri Michaux na China Henri Michaux (1899-1984) nasceu em Namur (Bélgica). A sua infância solitária e rebelde, marcada por uma educação num colégio jesuíta, foi um elemento fundador da sua obra literária. As suas viagens (América do Sul, África, Ásia, Médio Oriente) foram uma grande fonte de inspiração. Michaux também experimentou a mescalina nos anos 50 e explorou o seu potencial de criação literária e visual. As suas obras exploram a angústia do ser-no-mundo, os abismos interiores, o imaginário e outros lugares. Os textos que se seguem são extractos de Un barbare en Asie, publicado em 1933, quando do seu regresso de uma viagem à Índia, à China e ao Japão. A habilidade dos chineses Os chineses são artesãos natos. O que quer que seja que se possa encontrar através de remendos, os chineses já o encontraram. O carrinho de mão, a impressão, a gravura, a pólvora, o papagaio, o taxímetro, o moinho de água, a antropometria, a acupunctura, a circulação sanguínea, talvez a bússola e muitas outras coisas. A escrita chinesa parece ser uma linguagem de empresários, um conjunto de sinais oficinais. Os chineses são artesãos e artífices qualificados. Têm os dedos de um violinista. Sem habilidade, não se pode ser chinês, é impossível. Mesmo comer, como eles fazem com dois pauzinhos, requer uma certa habilidade. E eles procuraram essa habilidade. Os chineses podiam inventar o garfo, que cem povos descobriram, e usá-lo. Mas este instrumento, que não requer nenhuma habilidade para ser manuseado, é-lhes repugnante. Na China, não existe o trabalhador não qualificado. O que é que pode ser mais simples do que ser um ardina? Um ardina europeu é um miúdo impetuoso e romântico que anda por aí a gritar a plenos pulmões: “Matin! Intran! 4ª edição”, e vem atirar-se aos vossos pés. O ardina chinês é um especialista. Examina a rua que vai percorrer, observa onde estão as pessoas e, colocando a mão sobre a boca, atira a voz, aqui em direcção a uma janela, ali num grupo, mais à esquerda, enfim, onde deve ser, calmamente. Para que serve estragar a voz, onde não há ninguém? Na China, não há nada que não possa ser feito com habilidade. A “face” dos chineses Nada ofende os chineses. Uma criança tem um medo terrível da humilhação. O medo da humilhação é tão chinês que domina a sua civilização. É por isso que são tão educados. Para não humilharem os outros. Eles humilham-se para não serem humilhados. A delicadeza é uma forma de evitar a humilhação — Sorriem. Não têm tanto medo de perder a face como de fazer com que os outros a percam. Esta sensibilidade, verdadeiramente doentia aos olhos do europeu, confere um aspecto especial a toda a sua civilização. Têm o sentido e apreensão do “diz-se que…”. Sentem-se sempre vigiados… “Quando se passeia num pomar, se houver maçãs, cuidado para não tocares nas cuecas, e se houver melões, cuidado para não tocares nos sapatos. Eles não têm consciência de si, mas da sua aparência, como se estivessem eles próprios no exterior e se observassem a partir daí. No exército chinês, houve sempre uma ordem: “E agora, façam um ar terrível!” Até os imperadores, quando os havia, tinham medo de ser humilhados. Falando dos bárbaros, os coreanos, diziam ao seu mensageiro: “Vê se eles não se riem de nós.” Ser motivo de troça! Os chineses sabem ofender-se como ninguém e a sua literatura contém, como era de esperar de homens polidos e facilmente magoados, as mais cruéis e infernais insolências. Un Barbare en Asie, Gallimard, Paris, 1933. A China e o signo O Chinês tem o génio do signo. […] E só o teatro chinês é um teatro para o espírito. Só os chineses sabem o que é uma representação teatral. Os europeus há muito que deixaram de representar o que quer que seja. Os europeus apresentam tudo. Tudo está lá, no palco. Tudo, não falta nada, nem sequer a vista da janela. Os chineses, pelo contrário, colocam o que representa a planície, as árvores, a escala, à medida que são necessários. Como a cena muda de três em três minutos, não há fim para o mobiliário que tem de ser instalado. O seu teatro é extremamente rápido, como o cinema. Eles conseguem representar muito mais objectos e exteriores do que nós. A música indica o tipo de acção ou sentimento. Cada actor chega ao palco com um fato e uma cara pintada que dizem imediatamente quem ele é. Não é possível fazer batota. Podem dizer o que quiserem. Nós sabemos em que acreditar. A sua personagem está pintada no seu rosto. Se for vermelho, é corajoso; se for branco com uma risca preta, é um traidor, e nós sabemos quão traiçoeiro é; se tiver apenas um pouco de branco no nariz, é uma personagem cómica, e etc.. Se precisa de um grande espaço, simplesmente, olha a lonjura. E quem é que olharia para a distância se não houvesse um horizonte? Quando uma mulher tem de coser uma peça de roupa, começa logo a coser. Apenas ar puro passa entre os seus dedos: no entanto (pois quem quereria ar puro?) o espectador experimenta a sensação de coser, da agulha a entrar, a sair dolorosamente do outro lado, e até tem a sensação adicional de que na realidade se sente o frio, e tudo. E porquê? Porque o actor imagina a coisa. Aparece nele uma espécie de magnetismo, feito do desejo de sentir o ausente. […] Hoje, talvez pela milésima vez, vi crianças (brancas) a brincar. O primeiro prazer que as crianças geralmente obtêm do exercício da sua inteligência está longe de ser o julgamento ou a memória. Não, é a ideografia. Põem uma tábua no chão e essa tábua torna-se um barco, concordam que é um barco, põem outra mais pequena, que se torna um passadiço, ou uma ponte. Depois, quando alguns concordam com isso, uma linha irregular ou fortuita de luz e sombra torna-se a linha de costa para eles e manobram em conformidade, de acordo com os seus sinais, embarcam, desembarcam, zarpam, sem que uma pessoa desinformada possa saber do que se trata e que há aqui um barco, uma ponte ali, que a ponte foi levantada… e todas as complicações (e são consideráveis) em que vão entrando gradualmente. Mas o signo está lá, evidente para aqueles que o aceitaram, e o facto de ser o signo e não a coisa é o que os encanta. A maneabilidade do signo seduz a sua inteligência, porque as coisas em si são muito mais embaraçosas. Neste caso, foi bastante demonstrativo. Estas crianças brincavam no convés de um barco. É curioso que este prazer dos signos tenha sido durante séculos o grande prazer dos chineses e mesmo o cerne do seu desenvolvimento. Un Barbare en Asie, Gallimard, Paris, 1933. Tradução de Carlos Morais José
Ana Cristina Alves Via do MeioAlém da Grande Muralha I Um Pouco de História A Grande Muralha (长城 Chángchéng), estendendo-se por mais de cinco mil quilómetros entre Jieshi, Liaodong a Leste, e Lintao, atual distrito de Minxian em Gansu, a Oeste, nasceu em 214 a.C por ordem do Primeiro Imperador, Qin Shihuang (秦始皇), o unificador da China, que pôs termo ao período dos Estados Combatentes (战國, 476-221 a.C), fundando a dinastia Qin (秦, 221-206 a.C). Esta teve um propósito histórico-geográfico definido, separar os chineses, sobretudo os sedentários Han (汉), constituídos por uma população agrícola e pacífica, das tribos nómadas das estepes mongóis e da Manchúria. Ergueu-se como uma enorme fortaleza, com tropas estacionadas em posições estratégicas. Muitos foram os chineses que pagaram com o seu sangue, a construção da muralha e por sinédoque do próprio país em cada guerreiro que caía no combate aos invasores vindos de além da Grande Muralha como os mongóis, que fundaram a dinastia Yuan (元, 1206-1368) ,e os manchus da dinastia Qing (清 1644-1911), apenas para citar os casos de invasão mais persistente. A Grande Muralha tem o sentido figurativo imediato de inexpugnável, apesar de sabermos que não o foi. Representa ainda, pelo lado positivo, a heroicidade em louvor de todos os que contribuíram para este feito notável, que implicou a proteção da civilização e cultura chinesas por muito tempo, mas, pelo lado negativo, recorda quanto sofrimento e dor implicou a sua construção e a defesa da própria China. Por exemplo na expressão proverbial, aqui traduzida literalmente, “A Construção da Grande Muralha por Qin Shihuang será avaliada pelas gerações futuras” (秦始皇修长城-功过后人评Qínshǐhuáng xiū Chángchéng-gōngguò hòurén píng), surgindo este provérbio associado às lágrimas amargas da Menina Mengjiang (孟姜女Mèng Jiāng Nǚ), que protagoniza uma das mais belas e tristes histórias de amor da China. Resumindo, a menina de nascimento mágico, já que vem ao mundo dentro de um melão, é partilhada por duas famílias vizinhas muito amigas, a família Meng e a Jiang, do Sul da China, de Songjiang (松江). Ostenta no próprio nome a junção das duas famílias, cresce feliz por entre carinhos e abastanças até certo dia se cruzar com um garboso rapaz, Fan Xiliang (范喜良), estudante dedicado que procurava escapar ao triste destino de recrutamento para trabalhar na construção da Grande Muralha, que já havia sacrificado muitas vidas, dadas as péssimas condições de trabalho. Foi recebido pelo casal Meng e em breve conquistava toda a gente da família, incluindo a Menina Mengjiang. Denunciado por um criado ambicioso que almejava à mão de Mengjiang, vieram os soldados que o forçaram a ir trabalhar para a Grande Muralha. Mengjiang viu-o partir inconsolável e, adiante, conseguiu convencer os pais a visitar o marido para lhe levar agasalhos, a fim de o proteger do agreste Inverno do Norte. Quando chegou à Passagem de Shanghai (山海关), contaram-lhe que o marido sucumbira aos trabalhos forçados, engrossando assim o número de mortos. O seu desgosto foi tal, que o Céu se compadeceu: “De repente, ouviu-se um enorme estrondo, a que se seguiu o desmoronamento de uma parte da muralha, numa extensão de 400 quilómetros, revelando o cadáver do noivo, entre muitos outros” (Wang, Alves, 2009:119). Enfim, o imperador ficou muito zangado com o sucedido, mas logo quis perdoar à donzela, ao ver a sua beleza, transformando-a em concubina. Ela não aceitou e acabou por se deitar ao mar, morrendo afogada. Se a história nos fala de tanto sacrífico por amor ao país, o provérbio aponta também para uma outra dimensão, em que serão as gerações vindouras a julgar os aspetos positivos e negativos desta obra imperial, na qual os seres humanos são sacrificados à comunidade, ou melhor, ao labor em prol da colectividade. De acordo com a tradição da China, a Grande Muralha deu confiança aos chineses, sobretudo da maioria étnica Han, sentiam-se protegidos por ela, muito embora tivessem consciência do que era pedido a quem a construísse e aos que continuaram pelos séculos a defendê-la, pelo que ela se transformaria num dos símbolos fundamentais da civilização chinesa ao longo dos tempos: para os nacionais, ela representa positivamente a nação e a condição de possibilidade do próprio país; para muitos estrangeiros, figura negativamente a China como um espaço fechado, hermético, cujos habitantes são muito difíceis de entender. 2 Literatura relativa à Grande Muralha Note-se o sentimento de muralha que nos é transmitido por Wang Wei ( 王維701-761) poeta, pintor, calígrafo, músico e eremita, traduzido por António Graça de Abreu em 1993. Na obra intitulada Poemas de Wang Wei, pode ler-se “Subindo à torre da muralha de Hebei”, um dos troços da Grande Muralha (Abreu, 1993: 46/47): Na aldeia, sobre a falésia de Fu o Pavilhão dos viajantes, entre bruma e nuvens. Do alto da muralha, contemplo o sol poente, o rio distante espelha as montanhas verdes. Nas águas uma luz brilha em barca solitária, anoitece, pescadores e aves de regresso. Adormecem os espaços do céu e da terra e meu coração em paz, como o grande rio. 登河北城樓作 井邑傅巌上 客亭雲霧間 高城眺落日 極浦映蒼山 岸火孤舟宿 漁家夕鳥遠 寂寥天地暮 心與廣川閒 A paisagem do alto da muralha transmite uma sensação de imenso bem-estar e paz ao poeta. Este sente-se bem e protegido, embora nunca utilize a primeira pessoa, como é de regra na poesia clássica chinesa, mas nós podemos intuir o seu sentir por meio dos traços que empresta à paisagem, ele é como a barca solitária deslizando suavemente pelo rio, e todo este cenário é recolhido, como que cuidado atentamente por aquele espaço fechado, onde até há lugar para os viajantes poderem descansar, eles próprios em movimento e transformação como o rio, que flui incessantemente sob o olhar fixo e vigilante das pedras que constituem a muralha. Já Li Bai ( 李白,701-762), o grande contemporâneo de Wang Wei, também traduzido por António Graça de Abreu, prefere destacar o simbolismo guerreiro da Grande Muralha em “Lutámos a sul das muralhas” (战成南)1 (Abreu, 2021: 184/185) : a sua história de violentas batalhas, os Qin que a construíram, os Han e os imensos combates, o sangue dos soldados, os cadáveres, terminando com o pensamento, citação do capítulo 31 do Clássico da Via e da Virtude (《道德經》) obra fundante do Taoismo atribuída a Laozi (老子): Para quê generais sem exército? Abomináveis e cruéis as guerras! O homem de bem só obrigado as faz. (士卒涂草莽,将军空尔为。 乃知兵者是凶器, 圣人不得已而用之。) Pela mesma linha vociferante contra guerras e muralhas se ergue Du Fu (杜甫, 712-770), outro dos expoentes poéticos da China, ainda traduzido por António Graça de Abreu, muito embora reconheça na Grande Muralha um dos principais marcos da civilização chinesa e por isso a refere, lingando-a a uma das grandes festividades do calendário lunar chinês, a da Pura Claridade em poema homónimo ( 清明 Qīngmíng), no qual o poeta se declara cansado, triste, velho, doente em viagem pela “Grande Muralha”, pelo “reino de Qin”, pelo “Império Han”. Neste poema, a imponente construção a simboliza a memória coletiva e a ligação aos antepassados, pelo que apresento a segunda parte do mesmo (Abreu, 2015: 464/465): O regresso pela estrada da Grande Muralha púrpura, Um dos meus acende o lume com ramos verdes do ácer. Nas vilas do reino de Qin, pavilhões, pagodes entre flores e fumo, No império Han montanhas e rios de brocado, Chuva da Primavera, mais cheio o lago Dongting, Claros os trevos de água, triste o coração do velho de cabelos brancos. (旅雁上雲歸紫塞 家人鑽火用青楓 秦城耬閣烟花裏 漢主山河錦繡中 風水春來洞庭闊 白頻愁殺白頭翁 Foram rolando os tempos até chegarmos ao aforismo hoje por todos os chineses conhecido, aqui numa tradução direta: “Só é um verdeiro Han, quem foi à Grande Muralha” (不到长城非好汉Bù dào Chángchéng fēi hǎohàn). Este surge no poema de Mao Zedong (毛泽东) escrito em outubro de 1935, significando que um verdadeiro chinês, representado pela maioria étnica Han, tem espírito de luta, é herói, já que é capaz de percorrer passo a passo os cerca de cinco mil quilómetros de muralha, que se estende no Norte da China, sendo este e outros feitos de carácter sobre-humano que o distinguem, em prol de ideais maiores. Não é inocente a alusão à Grande Muralha, já que constitui historicamente o marco de uma nova era, a de uma China unificada. 《清平乐·六盘山》 天高云淡,望断南飞雁。 不到长城非好汉,屈指行程二万。 六盘山上高峰,红旗漫卷西风。 今日长缨在手,何时缚住苍龙? Eis a minha tradução: Serenata à Alegria Pacífica na Cordilheira Liu Pan2 No Céu claro surgem nuvens auspiciosas, à distância, vislumbram-se gansos rumo ao Sul. Só é herói quem percorra de lés a lés a Grande Muralha. nos picos altaneiros da Cordilheira Liu Pan, Bandeiras vermelhas agitam-se ao vento Oeste. Agora que a Revolução é tecida pelo Partido comunista, não será altura de enrolar o Partido Nacionalista? A Grande Muralha, símbolo da defesa do país, contra forças estrangeiras e/ou nacionais aliadas a estrangeiros, teve lugar de destaque durante o Maoísmo mais exacerbado. Hoje em tempos de Reforma e Abertura, que foram inaugurados por Deng Xiaoping (邓小平,1904-1997), o presidente da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês entre 1978 e 1983, lançou o plano de Reforma e Abertura da China (改革开放Gǎigé kāifàng), e manifestou uma vontade política muito diferente da expressa por Mao Zedong. Esta linha foi continuada por Xi Jinping (1953 -), nomeadamente no programa da Nova Rota da Seda (新丝绸之路 Xīn sīchóu zhī lù), que se viria a impor com a subida deste ao poder em 2013. É então introduzido um princípio directivo, “Uma Faixa, Uma Rota ” (一带一路Yīdài yīlù) que para se concretizar integralmente depende do sucesso de modernizações e de invenções, bem como da ligação entre a China e o resto do mundo, por onde se escoam pessoas e se comunicam conhecimentos, através de corredores terrestres e marítimos. É neste novo tempo que o poeta Yao Jingming (姚京明, 1958 – ), cujo nome artístico é Yao Feng (姚風), nascido em Beijing, mas a viver há muitos anos em Macau, onde é professor catedrático da Universidade de Macau, se tem distinguido por uma vasta obra poética e pela ligação entre as culturas e línguas portuguesa e chinesa, o que lhe valeu prémios e distinções como a Ordem Militar de Santiago da Espada. Na sua poesia mostra-se filho de um novo tempo, porém sem esquecer a importância do peso da história para a civilização chinesa. Em 長城隨想及其他, obra traduzida para inglês em 2014 por Kit Kelen (客遠文), Karen Kun (管婷婷) e Penny Fang Xia (房霞), sob o título de Great Wall and Other Poems, dedica alguns poemas inteiramente à Grande Muralha, logo no início do livro, recordando a sua importância enquanto esforço coletivo, que exigiu tanto aos chineses enquanto pessoas, conduzindo-os ao sacrifício extremo de pagaram com a sua própria vida a manutenção do país. Após lembrar repetidamente o papel deste importante símbolo nacional na história, na guerra e como monumento vivo à união nacional, e ao sofrimento causado nos que o construíram e por ele lutarem, termina com um poema muito bonito, numerado a 8, sinal de prosperidade na China e de infinito em todo o lado, onde se coloca junto aos arautos do novo tempo, que ultrapassam a Grande Muralha rumo às portas abertas, à liberdade (Yao, 2014: 25) e ao sentimento de pertença ao mundo inteiro, sem muros nem quaisquer divisões: 太陽脫掉夕陽 再次升起 我醒来了 從群山中醒来 從石頭中醒来 從一個個夢境中醒来 從一個個“我”中醒来 我再次开始行走 沿着這條起伏的大道 向著山海關 向著東方 我要走出長城 我要走向大海 走向遼闊自由的世界 Aqui fica a minha tradução para este belíssimo poema O sol deita-se Para de novo se erguer Eu despertei De cada cordilheira acordo De cada pedra acordo De cada sonho acordo De todos os eus acordo E torno a avançar Acompanhando as voltas do caminhar Rumo à Passagem de Shanhai3 Rumo ao Oriente Quero ir além da Grande Muralha Quero ir em direção ao mar E ao vasto mundo da liberdade Referências Bibliográficas Graça de Abreu, António (Trad.) 1993. Poemas de Wang Wei. Macau: Instituto Cultural de Macau. __________________2021. Cem Poemas de Li Bai 李白诗一百首. Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim. __________________2015. Poemas de Du Fu 杜甫詩選. Macau: Instituto Cultural da R.A.E. de Macau. Baidu. 2023. “不到长城非好汉 ”https://baike.baidu.com/item/%E4%B8%8D%E5%88%B0%E9%95%BF%E5%9F%8E%E9%9D%9E%E5%A5%BD%E6%B1%89/3556008, acedido a 14 de novembro de 2023. Wang Suoying, Ana Cristina Alves. 2009. Contos e Lendas da Terra do Dragão: Lisboa: Caminho. Yao Feng (姚風).2014. 《長城隨想及其他》Great Wall and Other Poems. Tradução de Kit Kelen(客遠文), Karen Kun (管婷婷) e Penny Fang Xia (房霞) . Respeita-se o registo escrito em que nos são oferecidos os poemas, de modo que este artigo apresenta poemas em chinês simplificado e tradicional, de acordo com os textos originais. Cordilheira Liupan no Norte da China. Passagem de Shanhai no Extremo Oriental da Grande Muralha. 2
Paulo Maia e Carmo Via do MeioAs crianças que aguardavam por Tao Yuanming Wang Qihan (act. 950-75), autor de uma célebre pintura de um Literato que limpava os ouvidos ao lado da qual Yongcheng, o quarto filho do imperador Qianlong, escreveu que aquela era uma obra que «circulara, deliciando muitos olhares», também concebeu outra representação que mostra uma fina sensibilidade capaz de provocar a mesma sensação de inesperado deleite. Numa folha de álbum (tinta e cor sobre seda, 43 x 33,2 cm, no Museu de Belas Artes de Boston) de Mulheres e crianças junto de um lago com lótus diante de um salgueiro (simbolizando a ausência do pai?) apresenta uma cena íntima e familiar: junto de um bebé, uma mãe que cultiva as artes e as letras, como se vê nos rolos de pinturas e caligrafias e um qin atrás dela. O que explicará o gesto leve e o olhar brando com que levanta o braço para acalmar as brincadeiras mais irrequietas de outras crianças que estão num pátio à sua frente. Se bem que invulgar entre as obras dos literatos, esse género de figuração de mulheres e crianças, ou apenas crianças, tornar-se-ia uma característica única da pintura das seguintes dinastias Song e Yuan, depois repetida em obras impressas e artes decorativas, como espelho exemplar da harmonia familiar nas dinastias seguintes. Porém, de modo típico, nessa altura a atenção ao espaço da intimidade familiar estava ancorada na sublimidade literária das palavras de poetas como Tao Yuanming (365-427). Em Regresso a casa (Guiqu laici, poema IV) o poeta recorda com alegria os que o esperavam ao chegar ao seu refúgio campestre: «(…) E então vi a minha casa de família, Cheio de alegria pus-me a correr, Um rapaz meu criado veio receber-me Meus filhinhos esperavam-me à porta (…) Os três caminhos quase não se distinguiam mas os pinheiros e os crisântemos ainda lá estavam. Segurando as crianças pela mão, entrei na minha morada (…)» A descrição, feita com tal detalhe inspiraria inúmeros pintores. He Cheng (1224-depois de 1315) foi um dos autores de vários rolos horizontais que recriam essa situação como o anónimo, dos mesmos anos de 1300, que está no Museu de Arte de Cleveland ou o feito a partir de um original de Qian Xuan (1239-1301), que está no Metmuseum (tinta e cor sobre papel, 106,7 x 26 cm), que se tornariam um tema querido por pintores, sobretudo depois do rolo horizontal de Li Gonglin (c. 1049-1106) que está no Smithonian (tinta e cor sobre seda, 37 x 521,5 cm). Deles faz parte a encenação desse encontro com as crianças, que torna visíveis os sentimentos do poeta ao regressar. Um pediatra da dinastia Song, Qian Yi (c.1032-1113) escreveu sobre esse olhar de ternura do poeta e da mãe, na pintura de Wang Qihan: «Acredito que disseminar o afecto é uma responsabilidade das pessoas de bem. Cuidar dos mais novos é uma instrução que nos foi passada pelos sábios. Como poderemos não propagar essa protecção?»
José Simões Morais Via do MeioSeda (8) – Deusas e Festas Mausoléu da deusa da Seda Lei Zu (嫘 祖) Ainda na província de Sichuan, em Qing Long shan no lugar de Jin Ji (Galo Dourado), após a visita à escola onde existira o importante e antiquíssimo templo de Lei Xuan Gong (嫘轩宫), em honra de Lei Zu e cujo nome a conecta ao marido Xuan Yuan (Huang Di), seguimos entre campos agrícolas por um carreiro ao mesmo nível, mas para o outro lado do monte, a visitar o Mausoléu de Lei Zu. Passamos por casas agrícolas feitas de terra onde, por vezes se vê um casal de idosos. Com os filhos fora, o trabalho do campo ainda é feito, mas as forças não dão já para a produção do bicho-da-seda. Acompanha-nos o Senhor Wang Shao Mo, zelador do mausoléu desde 2001 quando este foi reconstruído, pois ficara destruído durante o período da Revolução Cultural. Nesta nossa visita em 2009, já o pórtico estava edificado, tendo à frente um altar e para trás o cume do monte. Nele incrustado, uma pedra escurecida com os caracteres do nome de Leizu enquadrada em caixilho com o mesmo tipo de pedra a tornear a esse nível o monte que alberga a sepultura. As obras estavam paradas e inacabadas ficando duas pilhas de blocos de pedra, a mesma usada em todo o recinto, parecendo criar os limites para o projecto, que foi depois desenvolvido. Segundo informações encontra-se já realizado, com a encosta a levar ao pórtico toda terraplanada e retiradas as árvores aparece uma alameda com escadas e uma rotunda escultórica alusiva a quem ali vivera e está sepultada. Ainda então, para chegar ao mausoléu subia-se uma ladeira a colocar-nos perante uma estrutura feita em pedra, onde se iniciavam as escadas que por duas vias conduzem a um excelente miradouro. Após a passagem de um pequeno túnel, a fazer de porta, outro lanço de escadas diverge em outras duas escadarias laterais. Por fim atingimos a plataforma empedrada, com o altar de frente para um pequeno monte de terra e conforme regista uma placa colocada no mausoléu, aí repousa Lei Zu. Está escondida pela enorme estela onde se lê Lei Zu Fen, a confirmar assim, novamente, ali ser o monte-túmulo de Lei Zu. A estela está pousada numa estranha, mas bela figura de um ‘bixi’, um dos filhos do Dragão, em forma de tartaruga e envolvido por uma ampla estrutura de pedra feita em 2001 como escultura, onde emergem grandes rostos esculpidos, qual figuração amerindia. Segundo uma lembrança do Sr. Wang, em frente ao Mausoléu de Lei Zu em 1998 foi realizada a dança do Dragão, mas em vez de serem os homens a transportar o dragão foram as mulheres a segurá-lo, tendo a cabeça a forma de bicho-da-seda. Colocadas as oferendas na longa mesa de pedra, acendemos os enormes paus de incenso vendidos no local pelo nosso interlocutor e que nos corrige a posição, pois “a mulher deve situar-se no lado direito do homem”. Pegando no incenso com as duas mãos, inclinamos a cabeça três vezes em homenagem à Deusa da Seda, depositando-os em seguida no incensório. Muito do projecto do mausoléu ficou por concretizar pois o dinheiro faltou. Laterais ao mausoléu, as grandes piras de pedra para o fogo estão por completar e a possante vegetação já delas tomou conta, escondendo-as. Diz haver mais de cem templos nas redondezas dedicados a Lei Zu. INSTITUTO DAOISTA Já no regresso a Yanting, virado para a estrada reparamos no grande templo situado no sopé do monte, com uma enorme imagem da mãe da seda Lei Zu no muro das escadarias exteriores, tendo dois dragões a fazer de corrimão, o do lado esquerdo amarelo e azul no direito. Era o Instituto Daoista, onde nas paredes do interior de um salão estão colados papéis narrando histórias lendárias relacionadas com o trabalho da deusa iniciadora da produção de seda. Numa lemos existir uma grande e lisa pedra onde Lei Zu costumava trabalhar, quando à mão fazia o tecido de seda. A Deusa Wang Mu Liang Liang, mãe do Imperador Celeste, ao assistir a esse árduo trabalho no confeccionar tal tecido, pediu ao filho para enviar a Deusa das Tecedeiras a ensinar a promissora rapariga a fazer o tear e com ele tecer a seda. Outra história relata haver um lugar conhecido por “Pote de Três Pés”, onde no local existiam três pedras. Lei Zu costumava aí desfiar os casulos. No início, o trabalho era muito vagaroso, levando-a a pensar como improvisar um meio mais rápido. Um dia, muito cansada adormeceu e sonhou com um idoso a caminhar lentamente com a ajuda de uma bengala e a dirigir-se a ela dizendo para não se preocupar, pois era o Tu Di (deus local da terra) da montanha, enquanto lhe entregava três pedras para servirem de suporte ao pote onde deveria colocar água do poço antigo e aí cozer os casulos, pois desse modo os conseguiria desfiar rapidamente. Acordando, Lei Zu dirigiu-se à montanha onde viu colocadas em triângulo as três grandes pedras e assim seguiu os conselhos transmitidos pelo protector ancião. Muitas outras histórias pela parede se encontram e contá-las todas tornar-se-ia fastidioso, mas não resistindo deixo traduzida uma outra. Lei Zu andava aflita pois os ratos comiam-lhe as lagartas e por isso, quedava-se de guarda à entrada da gruta onde produzia já o bicho-da-seda. Certa vez apareceu um estranho animal e devido à sua presença os ratos não se aventuravam a lá entrar e assim Lei Zu colocou-o de guarda à sua produção. Essa estranha criatura não era mais do que um gato, animal que segundo a História só apareceu na China durante a Dinastia Zhou do Leste (771-256 a.n.E.). Daí o gato não pertencer ao grupo de doze animais que responderam ao chamamento do Imperador Celeste e formam o zodíaco chinês. Estas algumas das histórias que cobrem as paredes do Templo daoista, reescritas em diferentes épocas. Na teoria do Feng-Shui, o Dragão tanto representa o Imperador, como uma invulgar montanha e por isso, não é de estranhar ser Qing Long shan (Montanha do Dragão de Jade) o local da sepultura de Lei Zu, esposa de Huang Di e Deusa da Seda. Pela perspicácia das observações de Lei Zu (Lui-Tch’ôu em cantonense), no olhar uma lagarta a construir o casulo para nele se transmutar e renascer como borboleta, percebemos a Natureza simbólica do Ser Vivo e chegados ao humano, vestimos com seda esse estar e continuamos a viagem pela China. A cada ano, entre o oitavo dia do primeiro mês e o décimo dia do segundo mês lunar, o Imperador e os seus súbditos celebram Xian Can, a dar início à produção de seda. O oitavo dia do primeiro mês lunar é o aniversário do bicho-da-seda e o décimo dia do segundo mês lunar o aniversário de Lei Zu. Celebrações tão grandes que se comparam às do Aniversário dos Imperadores, lembra-nos na dinastia Tang (618-907) Zhao Rui (赵蕤, c.659-742). A Professora Ana Maria Amaro refere: “pelos antigos registos chineses realizavam-se em Shu (Sichuan) todos os anos, do primeiro ao terceiro mês do calendário lunar, feiras de Bombix mori que passavam por quinze cidades e tinham muitos compradores.” ESPÍRITO PROTECTOR Na viagem para Yanting, o nosso olhar cruza-se por três vezes com blocos de pedra colocados na berma da estrada e onde a população local realiza oferendas. Traz-nos à memória as alminhas espalhadas por muitas estradas do Norte de Portugal, normalmente a marcar lugares onde devido a um acidente alguém morrera. Estes blocos de pedra esculpidos com rostos algo monstruosos podem ser observados pela China em muitas povoações, normalmente a proteger as esquinas das casas. “Pedra Transcendente e Preservativa, costuma estar colocada em lugares sujeitos a más influências”, segundo o padre Manuel Teixeira que refere, “A cabeça da pedra é habitualmente talhada à maneira da cabeça dum tigre, em cuja fronte se grava o carácter Wóng (王), Rei. É este o transcendente tigre real, o emblema do poder do espírito protector, Sék Kôm Tóng” (石敢当, Shi Gandang em mandarim). “Data das primeiras dinastias o costume de outorgar títulos honoríficos (como marquês) às pedras e outros objectos inanimados. Crê-se que a bravura de certas pessoas corajosas pode passar para a pedra com a cabeça de tigre.” Chegamos à vila de Yanting já de noite e pago o quarto do talvez único hotel da pequena povoação, arrumadas as bagagens logo saímos para conseguir apanhar ainda aberta alguma cozinha, das que na praça se preparam para fechar, tal o adiantado da hora. São nove da noite e num dos cantos da praça um ecrã gigante passa um filme. Celebra-se nesse dia uma festa no Templo de Guanyin e atraídos pelos foguetes para aí seguimos já com o estômago aconchegado. Estafados regressamos ao hotel após um dia pleno. Preparamo-nos para deitar quando nos batem à porta. O recepcionista vem acompanhado por dois homens que se apresentam como da polícia e ali nos questionam da razão da visita àquele lugar tão recôndito do país. Numa vistoria rápida às bagagens, despedem-se pedindo desculpa pelo incómodo. Só mais tarde soubemos ser frequente virem estrangeiros a estes longínquos locais à procura de antiguidades e levarem peças roubadas dos túmulos para serem vendidas em Hong Kong e Macau, seguindo daí para fora da China.