Paulo Maia e Carmo Via do MeioO inesperado Mestre Mao Qiling Xu Zhaohua (1662-1722), que usou expressivos pseudónimos literários como lanchi, ou yibi, «louca por orquídeas» e «jade como mulher», foi uma das reconhecidas poetas que, no início da dinastia Qing, reflectiram sobre o lugar instável das mulheres que, se bem confinadas ao gineceu, possuíam já uma cultura literária que lhes permitia a expressão em forma de poemas, pinturas ou ensaios literários das mais subtis tonalidades da sua apurada sensibidade. O modo como essas mulheres na transição dinástica Ming-Qing, referidas depois como guixiu, «damas cultas» ou cainu, «mulheres de talento», adquiriam esses conhecimentos quando raramente se ausentavam de suas casas, variava. Mas no seu caso, como de outras igualmente ousadas, essa aprendizagem dependia de um homem literato mais velho com o qual não tinha qualquer relação familiar. Mao Qiling (1623-1716), esse seu preceptor, foi uma das mais extraordinárias figuras entre os homens de letras que asseguraram a continuidade da cultura literária. Um destino improvável que partiu, aliás, de uma recusa. Nascido em Xiaoshan (Zhejiang) após a queda dos Ming sentindo-se, como outros literatos e cultores das artes, incomodado pelos novos poderes que pareciam ignorar a tradição milenar, vagueou sem destino pelas regiões do baixo Changjiang. Mas afinal o que receava não se verificou e ele aproveitou uma abertura decretada pelo imperador Kangxi para se apresentar em 1679, já tarde em relação ao habitual, ao exame imperial e a sua vocação aproveitada por exemplo na redação da Mingshi, a «História dos Ming». Participaria noutros projectos imperiais, mas a partir de1687 vai para Hangzhou onde viverá a ambicionada vida retirada dos homens de letras, longe da poeira vermelha das cidades. E, numa das artes que conhecia, a da pintura, figurou esse lugar que era uma disposição do espírito. Mao Qiling alude num rolo vertical designado Pescador solitário numa embarcação, ou Songling yuyin, «Pinheiros na colina, pescador escondido» (tinta sobre papel, 63,5 x 35,6 cm, no Metmuseum) à figura modesta, sem ambições mundanas, do homem solitário que numa embarcação pesca sem isco num rio infindável. Xihe, Rio do Oeste, de resto era um dos seus nomes literários e o que aparece na edição das suas obras completas. E se no vasto Império os rios desaguam no Oriente, no Oeste é que estão as nascentes, ir para lá era regressar às origens. Como filólogo, Mao Qiling estudou a origem de palavras e conceitos antigos, debatendo questões que no seu tempo se colocavam quanto à interpretação dos Clássicos, ou o excesso de antagonismo que os neo-confucianos colocavam entre o desejo humano e o princípio da bondade celeste. Essa clarividência permitia-lhe apreciar a poesia de autoras como Xu Zhaohua que elogiava a longanimidade, a resistência à adversidade, e o jade que toma a temperatura de quem o toca.
Sara F. Costa Via do MeioÓpio e Hegemonia – O imperialismo britânico na China contemporânea Habituados a observar potências europeias a escravizar e colonizar diversos espaços pelo globo, a China da dinastia Qing não estava interessada em negociações com os países ocidentais. Para além de querer manter distância em termos diplomáticos e relacionais, não sentia necessidade de importar nenhuma manufactura ocidental, ou seja, não dependia de nenhuma importação. Vários países europeus, contudo, faziam comércio com a China pois tinham interesse em produtos chineses, principalmente no chá, porcelana e seda. Estes produtos eram particularmente apreciados pelos britânicos. A atitude chinesa não era bem vista por parte da Grã-Bretanha que se exibia perante a Europa como potência hegemónica dominante. Uma vez que a Grã-Bretanha importava da China grandes quantidades de chá, seda e porcelana, via a sua balança comercial bastante desequilibrada com vantagem para os chineses. Isto aconteceu até se aperceberem de um produto altamente lucrativo plantado na sua colónia Índia que podia vir a interessar aos chineses: o ópio. Para além de lucrativo, este produto tinha também o poder de enfraquecer em larga escala este país-continente que se afigurava tão interessante enquanto mercado para as potências europeias. Com a introdução e rápida propagação do ópio na sociedade chinesa, o governo de Pequim decidiu proibir a comercialização do narcótico que estava a ser devastador e a constituir um dos mais graves problemas de saúde pública da história do país. Esta decisão é vista pelo governo britânico como uma afronta às suas liberdades comerciais. Após a introdução, comercialização e disseminação do ópio na China em 1839 a Grã-Bretanha declara a Primeira Guerra do Ópio. A sua narrativa oficial recai na importância da abertura das portas da China ao comércio internacional, por uma questão de ordem, estabilidade e paz. Este ensaio pretende refutar a tese da paz pelo comércio aludindo a este contexto histórico. Quando analisada objectivamente a situação económica internacional da época, o interesse comercial da Grã-Bretanha na China era mais do que evidente. Constituía um grande mercado e, se enfraquecido e dominado, mais uma colónia com muita mão-de-obra a explorar. Ou seja, por detrás de uma narrativa que desejava apenas uma ordem dita moderna, mundial e que, acima de tudo, conduzia à paz, existia um acentuado interesse material no mercado chinês que não fosse prejudicial como o era para os britânicos até à data. Para além do interesse material, o interesse soberano também estava presente, não estivesse ele representado naquela que viria a ser a colónia britânica de Hong Kong. O Mandato do Céu e o Sistema de Cantão O isolamento do governo de Pequim constituía um modelo económico paralelo ao modelo ocidental e não se coadunava com a crença generalizada na Europa do séc. XIX de que a integração numa ordem internacional de direito e de comércio era a única possibilidade de um estado soberano ser reconhecido como civilizado e, consequentemente, como pacífico – já que se tornaria transparente, previsível e, segundo Palmerston, moderno (Palmerston, 1840). Contudo, o Império de Qing não partilhava esta crença. Por esta altura O Mandato do Céu[i] (天命, em Pinyin: Tianming)[ii] era ainda o modelo de governação seguido. De acordo com este modelo, a diplomacia e o comércio internacional eram formas de reconhecimento da proeminência chinesa. O mandato não implicava obrigatoriamente uma relação bélica com os povos vizinhos. Tal como os Estados Unidos, a China achava ter um papel especial na ordem universal e todos eram livres de usufruir dos privilégios que transmitia o contacto com a sua cultura. Contudo, em antítese aos Estados Unidos, nunca manifestou desejo de disseminar os seus valores pelo mundo: limitava-se a conseguir que os estados estrangeiros se considerassem Estados Tributários da China. O comércio internacional entre os chineses e os estrangeiros formou o primeiro local de encontro Sino-ocidental da era moderna. Ainda que o porto Xiamen em Fujian, tenha constituído a principal porta de trocas comerciais com o Sudeste Asiático e a costa chinesa, após 1759 Guangzhou tornara-se porta oficial para os encontros com europeus. O “Sistema de Cantão” como ficou conhecido no ocidente, foi organizado a partir de linhas tipicamente chinesas: o governo comissionava uma das famílias chinesas de mercadores para actuarem como controladores das trocas comerciais com o estrangeiro. Estes mercadores formavam uma associação conhecida por Cohong, que respondia ao comando de um oficial especialista no comércio de Guandong, normalmente um manchu enviado da corte imperial em Pequim, conhecido pelos estrangeiros como o Hoppo. Os Cohong e o Hoppo tinham a tarefa de taxar as importações dos estrangeiros e especialmente as exportações de chá e seda. Até 1834, quando a Companhia Britânica das Índias perdeu o apoio real para monopolizar as trocas comerciais com a China, a Companhia tinha-se adaptado a este particular Sistema de Cantão. Durante as épocas de trocas, o conselho de diretores da Companhia Britânica das Índias em Londres vivia na “British Factory” (centro de comércio e residência), nos bancos do rio, fora da grande capital de Guangzhou, de Outubro a Março. Na época sem trocas de Abril a Setembro, eles retiravam-se para o único espaço chinês concessionado a europeus, a cidade portuguesa de Macau. Para os chineses, a acumulação de interesse europeu na costa sudeste exigia um método eficiente para lidar com os “bárbaros do mar ocidental” como eram oficialmente designados. Habituados a observar potências europeias a escravizar e colonizar diversos espaços pelo globo, a atitude totalitária de Qing não estava interessada em grandes negociações com os “mercadores bárbaros”. Não era autorizada a concessão de um espaço de representação estrangeira na capital – embaixadas[iii] – e raramente eram admitidos à corte em Pequim representantes estrangeiros. Quando tal acontecia, era expectável que estivessem familiarizados com o ritual de prostração perante o imperador[iv]. Este ritual de prostração é um importante detalhe na missão britânica liderada por George Macartney em 1793 a Pequim para conhecer o imperador Qianglong. O seu objetivo era pedir que o império Qing respeitasse aqueles que eram na altura os direitos internacionais mínimos dos quais a Europa gozava em quase todo o resto do mundo: comércio livre, embaixadas permanentes e igualdade de soberania. Até então os europeus não tiveram outra opção a não ser reduzirem-se ao papel de suplicantes na ordem tributária chinesa – o comércio com os bárbaros era considerado não mais do que um tributo ao grande Império do Meio. A Missão Macartney foi um fracasso a vários níveis, uma vez que apelando e tentando demonstrar a superioridade técnica e científica do ocidente, não conseguiu levar a cabo nenhuma das negociações que lhe tinham sido encomendadas. Esta atitude chinesa era particularmente ofensiva para a Grã-Bretanha mas o PIB da China era ainda mais ou menos sete vezes o da Grã-Bretanha e daí o imperador considerar que era Londres que precisava de ajuda e não o contrário (Maddison, 2006). As potências ocidentais em ascensão não tolerariam por muito mais tempo um mecanismo diplomático que se referisse a eles como “bárbaros” que pagavam tributo ou um comércio sazonal apertadamente regulado num único porto. Depois da missão Macartney a Grã-Bretanha do topo civilizacional do ocidente, ficara particularmente ofendida. Uma única ordem mundial – Do comércio para a paz Com a balança comercial desequilibrada face ao desinteresse chinês pelas manufacturas britânicas, a insistência na importação sem restrições de ópio para a China foi a solução encontrada por estes para conquistarem finalmente o mercado chinês. O ópio foi introduzido de forma ilícita e com o propósito claro de viciar a população chinesa no único produto que poderia apresentar lucros para a Grã-Bretanha. Quando o ópio começou a circular no país, Pequim fez uma tentativa de regulação e venda do produto. Contudo, a destruição progressiva das populações e os problemas de saúde pública que rapidamente se tornaram visíveis um pouco por todo o país, levaram a corte a proibir a sua comercialização. Para uma Grã-Bretanha que começava a proibir a globalização da escravatura (da qual tinha sido, paradoxalmente, percursora) de forma a afirmar a sua superioridade moral perante o resto da Europa, a comercialização do ópio provocava aos ocidentais uma certa sensação de embaraço. Mas não era só do ponto de vista ocidental que a comercialização do ópio era vista como um embaraço. O mandatário oficial para erradicação do ópio na China, Lin Ze Xu, chegou a pedir à rainha Vitória que esta se encarregasse de suprimir o comércio do ópio não só na China como nos territórios indianos da Grã-Bretanha de onde os relatos de degradação profunda provocada pela massificação do uso da droga se faziam já ouvir um pouco por todo o mundo (Tse-hsu, 1839). Lin faz um ultimato à Grã-Bretanha em que ameaçava acabar com a exportação dos produtos chineses caso os britânicos não acabassem com a comercialização do ópio. Certo de que o grande império chinês não poderia sofrer retaliações de maior, a corte chinesa subestimou as capacidades militares estrangeiras já bem mais desenvolvidas que as chinesas – que nunca teve que travar grandes batalhas depois da unificação do império devido a formas mais requintadas de ligar com a guerra, como as que podem ser estudadas no clássico Arte da Guerra de Sun Tzu. Séculos de supremacia tinham distorcido o sentido da realidade da Corte Celestial. A pretensão de superioridade só acentuava a humilhação inevitável (Kissinger, 2011). O comissário britânico Palmerston escreve de volta para a corte chinesa e defende claramente o seu ponto de vista: os sistemas legais chineses tinham, de acordo com os princípios jurídicos ocidentais, caducado há muito tempo e, por isso, o próximo passo do Governo Britânico era o de enviar de imediato uma armada para bloquear os principais portos chineses, tomar «todos os navios chineses que possa encontrar» e tomar «uma parte conveniente do território chinês» até Londres obter satisfação. (Palmerston, 1840). [v] Os resultados da interação entre a esmagadora força ocidental e a gestão psicológica típica da China, resultou em dois tratados: o Tratado de Nanjing e o Tratado de Bogue. A China tinha que pagar à Grã-Bretanha seis milhões de dólares de indeminização, ceder Hong Kong e abrir cinco portos costeiros em que seria permitida residência e comércio ocidentais (Guangzhou, Ningbo, Shanghai, Xiamen e Fuzhou). Chegara ao fim o “Sistema de Cantão”. Os britânicos obtiveram ainda o direito de fazer comércio directo que não passasse por Pequim e o poder de exercer jurisdição sobre os seus nacionais residentes nos portos chineses do tratado. Isto significava que os comerciantes de ópio estrangeiros estariam sujeitos às leis dos seus próprios países e não da China. Este princípio de «extraterritorialidade» acabou por representar o declínio do poder imperial. A seguir às concessões permitidas à Grã-Bretanha, muitas outras potências ocidentais quiseram vir reclamar o seu pedaço. O Mandato de Céu terminara e fora substituído pelo conceito ocidental de Soberania. A tese da paz pelo comércio A tese da paz pelo comércio defende que este reduz a probabilidade de conflitos armados entre estados numa lógica de interdependência em que o liberalismo comercial assume um papel central na condução à paz, ultrapassando desta forma a lógica conflitual defendida pelos teóricos realistas. A organização do comércio internacional (WTO) apresenta vários argumentos que fundamentam o facto de que o comércio entre estados soberanos conduz à paz, nomeadamente defende que os comerciantes têm menos tendência para gerar conflitos com os seus clientes (World Trade Organization, 2003: 2); o segundo argumento é o de que as disputas são tratadas de forma construtiva nos procedimentos das instituições e organizações. Os adeptos da paz liberal argumentam que a interdependência reduz o conflito porque o conflito reduz as trocas comerciais. Interdependência económica promove a paz porque o conflito é inconsistente com laços económicos que promovam o benefício mútuo (Polachek & Xiang, 2008). A tese foi, contudo, ao longo do tempo mudando de base empírica. Num primeiro tempo em que o conceito operativo essencial se chama “vantagens comparativas”. É o tempo da vida económica internacional que ficou conceptualizado nas teorias tradicionais do comércio internacional. Cada Estado explora as vantagens competitivas que tem no sistema internacional. Onde dantes tínhamos unidades políticas, temos agora unidades económicas. A partir dos anos 80 esta passa a ser uma malha de relações bilaterais sendo assim a globalização a perda desta referência nacional. A guerra anglo-chinesa foi apresentada pelo governo britânico como um processo necessário em que os fins justificavam os meios. Apesar do universalmente reconhecido fracasso ético e moral da disseminação ilícita de um narcótico com vista à abertura forçada de um estado às legislações do comércio internacional, o pedido de desculpas oficiais pelo Reino Unido nunca foi formalizado, nem mesmo aquando da recuperação da soberania de Hong Kong pela República Popular da China em 1997. A imposição de uma única ordem mundial do comércio defendia um mundo mais pacífico mas neste episódio histórico podemos observar que após a abertura ao comércio livre, as invasões e tentativas de colonização por parte das potências ocidentais continuaram a fomentar a guerra na China numa lógica de expansão de poder e de soberania. 完 Notas [i] O Mandato do Céu tem as suas origens no pensamento confuciano desenvolvido por Mencius (372 – 289 a.C.) e foi seguido desde então como forma de justificar a legitimidade dos imperadores. [ii] Pinym e Wade-Giles são os dois sistemas de romanização da língua chinesa utilizados neste trabalho. [iii] Exceção feita à Rússia, já que os seus avanços no leste representavam uma ameaça iminente para a China. Em 1715 os Qing concederam a possibilidade da instalação de uma missão ortodoxa russa em Pequim. [iv] Conhecido como Cautau, o ato de prostração perante o imperador era uma forma de saudação ou de veneração ao imperador que implicava tocar com a testa no chão três vezes. [v] «Lord Palmerston to the Minister of the Emperor of China» (Londres, 20 de fevereiro de 1840) Consultado emhttp://www.chinaforeignrelations.net/node/247 [19 de Novembro de 2012]
Paulo Maia e Carmo Via do MeioAs Discípulas de Yuan Mei Li Longji (685-762), que seria recordado como o imperador Xuanzong de Tang (r. 712-56), regressava ao local de um crime para iniciar o doloroso processo a que o poeta Bai Juyi (772-842) chamaria o «longo remorso». Nesse lugar da colina Mawei onde por razões de Estado fora morta a concubina Yang Yuhuan, mais conhecida como Yang Guifei, diz o poeta: «ele e os seus ministros olharam-se nos olhos uns dos outros, as suas roupas molhadas de lágrimas». Mas quando os cavalos chegaram às portas do palácio, contrariando os seus sentimentos, «os lagos e os jardins permaneciam tranquilos;/ Os hibiscos nas águas do lago Taiye, os salgueiros do palácio Weiyang, «o que não acaba». / Mas os hibiscos eram a sua face, os salgueiros as suas sobrancelhas,/ Olhando para eles, como poderiam as lágrimas deixar de correr?» As palavras do poeta do Canto do eterno remorso (Changhen ge) ressoariam muitos anos depois, dando uma inolvidável forma a confusos sentimentos. No século XVIII, de repetidas, essas palavras eram já um lugar-comum e um poeta insubmisso ousou desafiá-las. No poema Mawei, regressando à fatídica colina, Yuan Mei (1716-1798) escreveu: «Não cantarei o Canto do remorso perpétuo de antigamente,/ Desde que existe a Via Láctea, esse rio de prata, que há pessoas separadas./ Nas suas aldeias com fossos de pedra, quando o marido se separava da esposa,/ Mais lágrimas se derramaram do que as que o imperador chorou no Pavilhão da longa vida.» Yuan Mei alardeava uma liberdade espelhada no espaço de um jardim que edificou como um auto-retrato, na tradição do que fizeram literatos como Wang Wei; «Se é o jardim que traz conforto aos nossos olhos, é também o jardim que oferece ao homem um refúgio de si mesmo.» Nascido em Hangzhou junto ao Lago do Oeste, levou para o terreno que adquiriu na área de Nanquim e que nomeou Suiyuan, «Jardim da Acomodação», aproveitando o nome Sui do anterior proprietário escrito porém de outro modo, certas características do celebrado Lago como as Vinte e quatro cenas com os respectivos poemas. A partir desse horto sem muros, o Senhor do Jardim da Acomodação, Suiyuan xiansheng, revelou uma ousadia que lhe permitia, por exemplo, superar as barreiras que separavam a educação de homens e mulheres. Como mostrou ao encomendar uma rara pintura. Wang Gong e You Shao foram os dois pintores solicitados por Yuan Mei para executar um inédito rolo figurando um convencional encontro de literatos mas que em que só participam, além de Yuan Mei, senhoras letradas. Em As discípulas do Mestre de Suiyuan (rolo horizontal, tinta e cor sobre papel, 41 x 308,4 cm, no Museu de Xangai) literatas, como a pintora Liao Yunjin (1766-1835) que por momentos levanta o pincel enquanto pinta um ramo de ameixieira conversam e convivem, atestando a ousadia de Yuan Mei que não aceitava preconceitos quanto à instrução de senhoras.
Hoje Macau Via do MeioMemórias de um espelho antigo ou o espelho que prende demónios De Wang Du. Tradução de Miguel Lenoir O que é um espelho? Qual o seu poder, além de reflectir imagens? A literatura chinesa mostrou-se desde sempre fascinada com os espelhos e deles extraiu magníficos pedaços de prosa, além de reconhecidos versos. Hoje apresentamos um famoso conto de Wang Du (王度), que foi um académico e escritor da era Tang, conhecido pelas suas contribuições para a literatura clássica chinesa. Ele é particularmente associado ao género chuanqi (传奇), uma forma de ficção clássica chinesa (relatos do extraordinário) que floresceu durante a dinastia Tang. A obra de Wang Du é importante pela sua influência na literatura chinesa posterior e pelo seu papel no desenvolvimento da ficção clássica chinesa. DURANTE A DINASTIA SUI, havia um tal de Hou Sheng em Fenyin que era um grande académico. Wang Du tratava-o frequentemente com a mesma cortesia que se deve a um professor. Quando Hou Sheng estava a morrer, deu a Wang Du um espelho antigo e disse: “Com ele, todos os tipos de espíritos malignos ficarão longe”. Wang Du aceitou o espelho e guardou-o com muito carinho. O espelho tinha oito polegadas de diâmetro e a parte central convexa, na parte de trás do espelho, fora feita para parecer um unicórnio agachado. À sua volta, está dividido em quatro direcções: este, sul, oeste e norte, com tartarugas, dragões, fénixes e tigres distribuídos por ordem. Fora das quatro direcções estão os Bagua e, para além dos Bagua, estão as posições das doze horas de Zi a Hai, cada uma com animais que representam as horas. Para além das “horas e dos animais”, há vinte e quatro caracteres à volta do espelho. A caligrafia parece escrita oficial e os pontilhados estão completos, mas não se encontram em nenhum dicionário. Quando o sol brilha sobre ele, a caligrafia e a pintura do verso do espelho penetram na sombra, e até os mais pequenos pormenores podem ser vistos com clareza. Se pegarmos nele e lhe batermos, o som será cada vez mais nítido e prolongar-se-á por um dia inteiro. Em Maio do sétimo ano de Daye, Wang Du demitiu-se do seu cargo de censor e regressou a Hedong. Quando Hou Sheng faleceu, ele ficou com o espelho antigo. Em Junho do mesmo ano, Wang Du regressou a Chang’an e ficou em casa do anfitrião Cheng Xiong, em Changlepo. Cheng Xiong tinha recentemente contratado uma criada, muito direita e bonita, chamada Arara. Depois de Wang Du se ter instalado, estando a arrumar a sua roupa, pegou no espelho para se mirar. Quando Arara o viu à distância, ajoelhou-se imediatamente até sangrar e disse: “Não me atrevo a viver mais aqui!” Wang Du foi então procurar o seu mestre e perguntou-lhe porquê. Cheng Xiong disse: “Há dois meses, um convidado veio do leste com esta serva. Nessa altura, a criada estava muito doente, por isso o hóspede deixou-a aqui e disse: ‘Eu levo-a quando voltar’. Ela ainda não regressou. Não sei porque é que a criada está assim”. Wang Du suspeitou que ela era um demónio, por isso pegou num espelho e perguntou-lhe. Ela disse: “Poupa a tua vida! Vou mostrar-te quem sou e o que sou imediatamente”. Wang Du tapou o espelho e disse: “Primeiro explica a tua situação, depois mostra quem verdadeiramente és e eu poupo-te a vida.” A criada curvou-se algumas vezes e contou a sua história: “Eu era originalmente uma raposa de mil anos que vivia debaixo do grande pinheiro, em frente ao Templo Fujun, na montanha Hua. Mudava frequentemente de corpo para confundir os outros e por isso talvez merecesse a morte. Quando fui perseguida pelos Fujun, fugi para entre o rio Amarelo e o rio Weishui, onde me tornei afilhada de Chen Sigong. A família Chen tratou-me muito bem e casou-me com Chai Hua, um homem da sua terra. Mas eu e Chai Hua não nos dávamos bem, pelo que fugi novamente para leste e passei pelo condado de Hancheng, onde fui apanhada por Li Wu Ao, que por ali passava. Wu Ao era um homem rude e tem andado por aí comigo como refém há vários anos. Segui-o até aqui há pouco tempo e aqui me deixou à pressa. É que, inesperadamente, ele encontrara um espelho celestial, e não havia maneira de escapar mesmo que me tornasse invisível.” Wang Du disse-lhe novamente: “Tu és uma raposa velha. Se te transformasses num ser humano, não seria prejudicial para os outros?” A criada respondeu: “Não é prejudicial mudar de forma para servir os outros; só quando se muda de imagem para escapar à supervisão do rei e para enganar as pessoas. Aqueles que são odiados pelos deuses têm de morrer naturalmente”. Wang Du disse novamente: “E se eu te deixasse viver?” Arara disse: “Já que gostas tanto de mim, como me atrevo a esquecer a tua bondade? Mas estou reflectida no espelho celestial. Não posso escapar. Sou humana há muito tempo e tenho vergonha de voltar à minha forma original. Por favor, põe o espelho de volta na caixa e deixa-me beber à vontade e morrer!” Wang Du disse: “Se puser o espelho de volta na caixa, não vais fugir?” Arara sorriu e disse: “Ainda agora me disseste palavras simpáticas e prometeste deixar-me viver. Fugir depois de teres escondido o espelho? Não posso. Como fui apanhada pelo espelho celestial, não tenho forma de escapar. Só espero que eu possa aproveitar as coisas boas da vida nos momentos que me restam!” Wang Du voltou imediatamente a guardar o espelho na caixa, encomendou vinho e comida e convidou todos os vizinhos da família de Cheng Xiong para com ela beberem e rirem. A criada ficou muito bêbeda, abanou as roupas, dançou e cantou: “Espelho precioso, espelho precioso! Que triste destino o meu! Desde que me transformei em ser humano, Quantos apelidos já mudei até agora? Embora a vida possa trazer alegria, Não ficarei triste mesmo se morrer. Por que deveria eu estar relutante em deixar-te? Fica neste mundo conturbado!” Depois de cantar e fazer algumas vénias, transformou-se numa velha raposa e morreu. Todos os presentes suspiraram de espanto.
Hoje Macau Via do MeioO escravo Kunlun Lembrai-vos: os aposentos das mulheres são bem guardados; e terríveis as ordens do rei. — Se isso te impede, mortal tímido, Indra saberá introduzir-te no gineceu. Stéphane Mallarmé, “Nala e Damaiantî”, Contos Indianos. A visita ao Príncipe Durante a Era da Grande-Passagem, a terceira estabelecida pelo Imperador Daizong, um dos magistrados mantinha relações de amizade com o mais ilustre dos servidores do Estado daquele tempo, um Príncipe que ocupava o cargo de Ministro Emérito de Primeira Patente. Este homem de guerra, entre outros feitos, era celebrado por ter reconquistado duas cidades caídas às mãos dos rebeldes capitaneados por An Lushan. O magistrado, que admirava o Príncipe, tinha um filho, um mancebo de nome Gui, acabado de nomear oficial na Guarda Imperial das Lâminas Cortantes, ala que recrutava jovens da alta aristocracia. Um dia o pai enviou-o a casa do prestigiado ministro, com o intuito de indagar sobre o seu estado de saúde; e talvez também com a esperança de dar a conhecer o talento do filho ao ilustre amigo. Gui era um belo moço, de rosto puro como o jade, de modos calmos mas decididos, cujo discurso claro e elegante secundava uma natural simpatia e segurança. Recebido pelo Ministro, este ordenou a uma das suas cantoras que levantasse os estores, e fê-lo entrar nos seus aposentos. O jovem saudou-o com respeitosa vénia, e transmitiu a mensagem do pai. Muito agradado pela presença do visitante, o ilustre Príncipe fê-lo sentar, e logo iniciaram uma interessante conversa. Uma taça de pêssegos e um enigma Em frente deles, três favoritas de grande beleza, em volta de uma minúscula mesa, dedicavam-se com extremo cuidado a cortar pêssegos vermelhos em finas fatias, deitá-las em taças de ouro, e regá-las com creme. O ministro ordenou então a uma delas, a que vestia de musselina vermelha, que apresentasse uma das taças ao hóspede. Gui, tão jovem que não sabia como se comportar diante das belas cortesãs, corou embaraçado, não ousando começar a comer. Notando isso, o ministro disse à jovem vestida de vermelho que o servisse com a colher, o que ela fez de imediato, enquanto o olhava com um sorriso malicioso. Até que chegou o momento de Gui se retirar. Na despedida, ao saudar o ministro, este disse-lhe: “meu jovem amigo, vem visitar-me sempre que tenhas tempo livre; não faças cerimónia com esta idosa pessoa.” E com um gesto, ordenou à favorita de vermelho que o acompanhasse até à saída do pátio. No portal, quando Gui se virou para se despedir, viu que ela levantava três dedos, e depois virava três vezes a palma da mão. Em seguida, tirando do corpete um pequeno espelho redondo, mostrou-lho, repetindo: “ Repara bem! Repara bem!” E logo se retirou para o interior da mansão, sem dizer nem mais uma palavra. De regresso a casa, o moço contou ao pai como se passara a visita, repetiu os cumprimentos do ministro, e recolheu ao seu gabinete de estudo. Aí se manteve perdido em sonhos, sem dar pelo tempo passar, de espírito ausente, num vazio na alma. Ninguém em casa compreendia o que se passara para ele ter mudado assim. Sem pensar em comer, não fazia mais nada a não ser cantarolar o seguinte poema: No Monte dos Imortais vi uma deusa sorrindo com o olhar, estrela cintilante A lua deslizando pelo portal vermelho a beleza de neve iluminava tristemente Durante a dinastia Tang, não raramente famílias abastadas tinham servos oriundos dos Mares do Sul, vulgarmente chamados Escravos Kunlun, em referência aos montes desse nome. Também em casa do pai de Gui havia um escravo Kunlun, de nome Mole, muito devotado ao seu jovem senhor. Nesta ocasião, fitando-o, perguntou: “que tendes no coração que justifique esse ar desalentado? Porque não confias no teu fiel servo?” Ao que Gui respondeu: “Que sabem vocês, para não pararem de me questionar sobre um assunto que diz respeito apenas à intimidade do meu coração? ” “Quero saber. Tenho fé que conseguirei encontrar uma solução”, retorquiu o servo. Instigado pela inabalável confiança com que o outro argumentava, o jovem oficial contou-lhe o sucedido em casa do ministro, ao despedir-se da bela cortesã vestida de cassa vermelha. “Só isso? ” comentou Mole “nada de mais! Porque não me contastes logo, em vez de ficar a remorder inquietações?” E de imediato Mole desvendou o mistério da linguagem gestual: “qual a dificuldade de entender a mensagem da bela? Se levantou três dedos, é porque na residência do ministro moram dez cortesãs, cada uma em seu pátio, e ela habita na moradia número três. Virar a palma da mão para cima três vezes, indica quinze dedos, o que aponta para o número quinze, obviamente. Quando ao pequeno espelho redondo que ela mostrou, significa que na noite de quinze, a lua será redonda como aquele espelho.” Feliz por ver enfim desvendado o mistério dos enigmáticos sinais, Gui perguntou a Mole como poderiam fazer para corresponder ao pedido da jovem. Mole explicou, rindo: “a noite de quinze é amanhã. Preciso de dois cortes de seda azul-escuro, para vos mandar fazer um fato justo. Como na mansão do ministro um cão feroz guarda a entrada do pátio das cantoras, nenhum desconhecido consegue passar. A besta não hesitaria em devorá-lo pois é vigilante como Argos e feroz como um tigre. Trata-se de um animal da raça Menghai de Haizhou; ninguém no mundo, a não ser este vosso servo seria capaz de o dominar. Esta noite vou desancá-lo para vos servir.” À meia-noite Mole partiu armado de um malhete de correntes. Ao regressar afirmou que o cão estava morto, e que não havia obstáculos à execução do plano. Na noite seguinte Gui gratificou o servo com um excelente repasto de carnes e vinhos finos. À terceira hora, meteram-se a caminho. Gui ia quase invisível, vestido com um fato justo ao corpo, em seda azul-noite. Voando sobre as muralhas Ao chegar à muralha da casa do ministro, Mole, carregando o amo às costas, saltou uma dezena de cercas até penetrar no pátio das cantoras e parar em frente da terceira porta. A barra de madeira da fechadura não tinha sido colocada atravessada nos batentes esculpidos em cruzamentos entrelaçados; uma lanterna dourada brilhava suavemente no interior. Os intrusos ouviram os suspiros da jovem, sentada junto da porta, como se esperasse alguém. Tinha retirado os brincos de esmeralda e a pintura carmim do belo rosto. Com a voz repassada de tristeza, também ela sussurrava uma cantilena, afinal tão enigmática como a linguagem das mãos: Saudoso do seu amor, o rouxinol em pranto furtivo lhe arrebatou as jóias sob as flores O azul ainda deserto, a espera sempre vã em vão a flauta de jade suspira o seu desgosto. Àquela hora estavam os guardas todos adormecidos. O silêncio da noite pairava sobre o pátio. O moço afastou o cortinado e entrou. Durante um instante, ela ficou sem palavras. Depois acercou-se dele, tomou-lhe as mãos, como para se assegurar que era a pessoa que esperava, e disse: “ Eu sabia que só um jovem Senhor tão inteligente como tu seria capaz de entender a minha mensagem sem palavras! Mas pergunto a mim mesma de que poderes mágicos dispôs para conseguir chegar até aqui sem entraves.” Gui confessou então que fora Mole a engendrar o plano e pô-lo em prática. Ela riu do fato azul-escuro que moldavas formas do rapaz, e dos saltos sobre as cercas e muralhas, e perguntou: “Onde está esse vosso fiel servo?” Gui apontou o biombo atrás do qual o escravo esperava. A jovem convidou Mole a entrar e serviu-lhe uma taça de vinho. Então narrou a Gui a história da sua curta existência: “Nasci numa abastada família perto da fronteira do norte. O meu senhor actual, que na altura comandava ali a armada da guarnição, de força me tomou como concubina. Não tive forças para me dar a morte, pelo que vergonhosamente sobrevivi. Agora o pó branco e o carmim da pintura do rosto disfarça o meu coração atribulado de desgosto. Os manjares servidos com pauzinhos de jade, os incensários de ouro onde ardem os mais dispendiosos perfumes, os corta-ventos com incrustações de nácar, as pérolas e as esmeraldas adornando as belas adormecidas sob cobertas bordadas, nada apaga o opróbrio da servidão. Sinto-me em cativeiro. Já que o teu bom servo dispõe de poder sobrenatural, poderá ele libertar-me desta prisão? Dou-vos tudo o que tenho, e se for preciso morrerei sem lamentos; mas seria feliz se pudesse servir-vos como escrava. Diga-me o Senhor o que pode fazer por mim.” Gui, muito pálido, continuava em silêncio. Mole falou por ele: “Já que está decidida, Senhora, não haverá dificuldades. Vá preparar a sua bagagem, tão rapidamente como possível.” Em grande júbilo ela fez três idas e vindas, empacotando o seu enxoval. Mole avisou: “Vai nascer o sol, apressemo-nos.” Levantou os dois jovens, colocou-os nas suas costas, e voltou a sobrevoar as altas muralhas sem que um só ruído alertasse quem ainda dormia. Já em casa, deixou os dois jovens no gabinete de estudos de Gui, onde este escondeu a moça. Na mansão do ministro só durante a manhã deram pelo desaparecimento da bela concubina em musselina vermelha, logo depois de terem descoberto o cadáver do cão. “Os nossos muros são altos e vigiados dia e noite, e os portões são fortemente aferrolhados” pensou o príncipe, alarmado. “Não deixaram pistas, como se tivessem voado! Deve ter sido um desses perigosos Justiceiros, aliados dos rebeldes. O melhor é não deixar propalar o sucedido, só serviria para revelar fragilidades da minha casa e atrair inimigos.” Fuga na primavera A jovem cortesã ficou escondida nos aposentos de Gui durante dois anos, até que um dia de Primavera, quando estavam em flor as balsaminas, tomou um palanquim e foi passear no Parque dos Meandros do Rio, em Quijiang. Um homem do ministro reconheceu-a de relance e correu a adverti-lo. O ministro, surpreendido, convocou Gui, que não sendo de carácter dissimulado, resolveu não mentir. Contudo, explicou que nada teria sido possível sem a ajuda de Mole. “A culpa é sem dúvida da rapariga” concluiu o ministro. “Mas como ela se manteve ao vosso serviço durante dois anos, não seria decente retomá-la em minha casa. Contudo, é meu dever punir Mole, pois ele pode constituir um perigo público.” De imediato ordenou a cinquenta dos seus guardas, armados até aos dentes, que fizessem um apertado à casa de Gui para capturar o escravo Kunlun. Durante essa espectacular diligência houve quem visse o servo Kunlun voar sobre as altas muralhas, de adaga em punho, como se tivesse asas, rápido como um gavião. Debaixo de uma chuva de flechas, sem uma só o ter atingido, desapareceu num abrir e fechar de olhos. Em que direcção e com que destino, ninguém viu. Durante mais de um ano, o ministro, em pânico, rodeou-se de uma guarda especial de soldados armados de sabres e alabardas. Uma dúzia de anos mais tarde, alguém da família de Gui viu Mole numa tenda do mercado de Luoyang, vendendo drogas, elixires e ervas medicinais. Tinha um ar fresco e folgazão, e o seu rosto estava como sempre fora, inalterado. Faro, 14-7-2025, Fernanda Dias, reconto
Hoje Macau Via do MeioLágrimas e crocodilos – Chega de moralismo e lamentos pela «armadilha» industrial chinesa Por Wang Zichen Imagem: Wang Qingsong, Can I cooperate with you, fotografia120x200cm,2000 Recentemente, os comentários norte-americanos pintaram um quadro em que a China executa um plano calculado, há muito arduamente elaborado, para atrair empresas estrangeiras para o seu mercado, apenas para extrair a sua tecnologia e estimular os concorrentes nacionais – acabando por descartar as empresas estrangeiras depois de terem cumprido o seu objetivo. Nesta narrativa, uma empresa americana após outra é vítima da suposta armadilha da “tecnologia para o mercado” de Pequim: primeiro a Motorola, depois a Apple e agora a Tesla. Dois artigos recentes do Wall Street Journal sobre a China (8 de julho e 15 de julho, 2025) resumiram este ponto de vista, contando como a Motorola ajudou a alimentar a indústria de telecomunicações da China apenas para ser ultrapassada, e como a estrela da Tesla na China se desvaneceu à medida que os fabricantes locais de veículos eléctricos cresceram. Cada artigo levava os leitores a uma conclusão precipitada – por exemplo, um terminava com a pergunta: “Como acha que as empresas americanas devem abordar a China actualmente?”, e o seguinte com a pergunta: “Acha que os EUA devem apertar ainda mais as suas restrições tecnológicas à China?” Estas perguntas reforçam o ângulo de que as empresas estrangeiras foram vítimas ingénuas e a China a beneficiária astuta, em vez de convidarem a um debate aberto. Esta perspectiva unidimensional ganhou ainda mais força com vozes como a do antigo estratega da Casa Branca, Steve Bannon, que foi citado no Financial Times esta semana, troçando a propósito de “as empresas americanas terem passado décadas a ser enganadas, a ser ludibriadas pelo Partido Comunista Chinês, a transferir as jóias da coroa da nossa tecnologia. E, por isso, não receberam nada”. Segundo Bannon, as empresas ocidentais foram essencialmente enganadas – seduzidas pelo mercado chinês, despojadas do seu know-how e deixadas com os bolsos vazios. (Não importa que Bannon tenha forrado o seu próprio bolso com o dinheiro de um vigarista chinês fugitivo.) Este tipo de narrativa é cativante, sim, mas é também profundamente enganadora. Assenta num tom moralizador e condescendente que simplifica demasiado uma realidade muito mais complexa. Implícita nestas narrativas está a presunção de que a hierarquia global de domínio tecnológico – há muito liderada por empresas ocidentais – deve permanecer fixa para sempre. O tom subjacente é que as empresas ocidentais têm um direito natural à sua liderança e que, se as empresas chinesas as alcançarem ou ultrapassarem, deve haver algo de malicioso em jogo. Há um sentimento quase palpável de indignação pelo facto de um “arrivista” do mundo em desenvolvimento se atrever a desafiar a ordem estabelecida. Esta mentalidade trata o sucesso anterior das empresas ocidentais como legítimo e o avanço das outras como uma violação, ignora a realidade histórica de que todas as grandes potências industriais se ergueram aprendendo com os outros. No passado, o próprio Ocidente tomava emprestada ou roubava tecnologia livremente: como disse uma análise da Associated Press: “A nação emergente era um antro de pirataria intelectual” – no final do século XVIII e início do século XIX, essa “nação pária” eram os Estados Unidos, cujo Secretário do Tesouro Alexander Hamilton apoiou o roubo de segredos industriais britânicos. Os primeiros americanos pirateavam projectos de máquinas têxteis e atraíam artesãos britânicos; na verdade, os EUA eram “a China do século XIX”, nas palavras de um artigo da Foreign Policy de um vencedor do prémio Loeb. Só depois de se tornarem líderes industriais é que os Estados Unidos defenderam protecções rigorosas da Propriedade Intelectual. Ao recriar os processos de desenvolvimento industrial e de difusão do conhecimento como sendo exclusivamente nefastos quando a China o faz, a narrativa actual associa o avanço nacional à ilegitimidade. Confunde a perda de um monopólio ocidental com a perda de justiça. O tom moralizador faz mais do que provocar cepticismo intelectual – gera uma espécie de ressentimento. É como se o domínio ocidental na inovação fosse considerado a ordem natural e qualquer desafio fosse automaticamente suspeito. Estas narrativas, envoltas na linguagem da justiça e da “batota”, soam muitas vezes a lamentos velados pela perda de privilégios. Dizem aos leitores o que devem pensar – a China é má, o Ocidente foi enganado – em vez de encorajar uma análise genuína do modo como a tecnologia e o poder funcionam efectivamente numa economia globalizada. O resultado é menos jornalismo do que ideologia, alimentando uma espécie de ansiedade tecno-nacionalista que substitui a indignação moral pela clareza analítica. Durante décadas, a estratégia industrial da China assentou no princípio da troca de acesso ao mercado por tecnologia – algo explicitamente articulado por Deng Xiaoping já na década de 1980. Longe de ser uma armadilha, tratou-se de um negócio deliberado e transparente que permitiu que ambas as partes beneficiassem. Tomemos como exemplo a General Motors (GM). A GM entrou na China na década de 1990 através de uma empresa comum e, em 2010, a GM estava a vender mais carros na China do que nos Estados Unidos. A procura de automóveis na China constituía uma enorme oportunidade de mercado, e o sucesso da GM, outrora, tornou-se uma parte vital do seu negócio global. As vendas da GM na China atingiram um pico de 4 milhões de veículos por ano no final da década de 2010, o que a tornou no maior mercado automóvel do mundo. Era uma relação mutuamente benéfica – a China dava acesso a um mercado enorme e em rápido crescimento, enquanto a GM ganhava um elevado volume de vendas e eficiência de fabrico. Agora, considere a Apple. Ao longo da última década, a Apple obteve cerca de 227 mil milhões de dólares em lucros operacionais provenientes da China, o que representa mais de um quarto dos seus lucros totais durante esse período. Os lucros da Apple foram reforçados pela montagem dos seus iPhones na China, onde os custos de mão de obra eram mais baratos e fabricantes como a Foxconn tratavam da produção em massa. Esta parceria permitiu à Apple obter enormes poupanças de custos, ao mesmo tempo que construía uma cadeia de abastecimento de classe mundial na China. Este não é um caso isolado. Nos primeiros anos de atividade da Tesla na China, a empresa recebeu um apoio substancial do governo chinês, incluindo a primeira fábrica estrangeira detida a 100% em Xangai, que também facilitou terrenos e empréstimos. As vendas do Modelo 3 da Tesla dispararam na China e a empresa tornou-se um dos veículos eléctricos mais vendidos no país. A ascensão dos fabricantes chineses de veículos eléctricos, como a BYD e a NIO, pode ter diminuído a quota de mercado da Tesla, mas trata-se de concorrência em ação. A política da China para atrair actores estrangeiros como a Tesla não consistiu em roubar a tecnologia da Tesla, mas sim em introduzir um “catfish” [firma que vem agitar o mercado] e criar um ambiente competitivo que levasse os fabricantes nacionais a inovar. De facto, a Tesla beneficiou muito com a sua presença na China e o mercado local de veículos eléctricos explodiu devido a essa presença. É essa a natureza dos mercados competitivos: surgem novos actores e mesmo as empresas dominantes enfrentam a concorrência, o que leva todos a fazer melhor. A história da Motorola também foi contada com um toque de nostalgia, que, por exemplo, referia que “a entrada da Motorola não se limitou a construir um mercado; ajudou a construir uma China moderna”. Esta versão, devidamente apimentada com citações de um antigo executivo da Motorola, lamenta a forma como a Motorola se arruinou a si própria devido à generosidade forçada para com a China, omitindo convenientemente algum contexto fundamental. A empresa também perdeu a sua liderança devido a erros estratégicos. Não conseguiu antecipar a revolução dos smartphones e ficou irremediavelmente atrás da Apple e da Samsung, incapaz de igualar a inovação do iPhone ou o boom do Android que se seguiu. E para terminar a ironia, considere este conto pouco conhecido: no final de 2003, a Huawei tentou vender-se à Motorola. A relação comercial entre os EUA e a China nunca foi um caso em que um lado foi enganado e o outro planeou um grande roubo. As empresas ocidentais tomaram decisões calculadas para entrar na China e, em troca de acesso ao mercado, partilharam alguma da sua tecnologia. A narrativa de que a ascensão da China é um “longo golpe” ignora as contrapartidas legítimas e calculadas feitas por todas as partes. A China não “enganou” estas empresas; ofereceu-lhes acesso ao seu mercado em crescimento em troca de conhecimentos, que a China utilizou para construir a sua própria base industrial. Em última análise, a história da ascensão da China tem a ver com concorrência – tal como o Japão e a Coreia do Sul competiram outrora com as empresas americanas, a ascensão da China no domínio da tecnologia faz parte de um padrão global de concorrência industrial. Isto não torna as acções da China “maliciosas”; é apenas a forma como o mundo funciona. O Ocidente não tem direito ao domínio eterno da tecnologia e a ascensão da China não deve ser vista como um “roubo”, mas como um desafio competitivo que obriga todos a inovar e a adaptar-se. De facto, os monopólios do conhecimento e a protecção da propriedade intelectual por parte de poderosas empresas transnacionais sediadas em países de elevado rendimento estão a conduzir a uma intensa concentração da riqueza e do poder das empresas, travando assim o desenvolvimento económico nos países de baixo rendimento. Um artigo recente de Cedric Durand e William Milberg expõe este ponto de forma vigorosa. Os autores constatam um enorme aumento do rendimento internacional gerado pelos direitos de propriedade intelectual entre a década de 1980 e a década de 2010, que se destina quase exclusivamente aos países de elevado rendimento (dominados pelos Estados Unidos). Em 1980, o rendimento gerado pelos pagamentos internacionais relacionados com a utilização da propriedade intelectual era bastante igual em todo o mundo. Em 2016, este rendimento foi cem vezes superior nos países de rendimento elevado do que nos países de rendimento baixo e médio (323 mil milhões de dólares contra 3 mil milhões de dólares). Devemos também reconhecer que as empresas transnacionais dos países de elevado rendimento – os principais beneficiários das patentes – dependem totalmente da mão de obra e dos sistemas de produção dos países de baixo rendimento para gerar lucros. Por exemplo, a inovação e os lucros inesperados da indústria tecnológica dos EUA não seriam possíveis sem a mão de obra de países como a China e a Índia. De facto, o artigo supracitado de Durand e Milberg sublinha explicitamente que as grandes empresas tecnológicas sediadas nos Estados Unidos obtêm lucros enormes principalmente porque tiram partido do seu poder na economia mundial, e não porque inovam. Quando muito, os países de rendimento elevado devem aos países de rendimento mais baixo enormes quantidades de tecnologia devido ao facto de tirarem partido da sua mão de obra e competências. Existe um equívoco comum de que as empresas chinesas estão a ultrapassar as empresas americanas. Embora isso seja verdade em alguns sectores – e esteja a acontecer cada vez mais -, a ascensão capitalista da China tem, na verdade, impulsionado o poder estrutural dos EUA em certos aspectos, especialmente ao gerar mais lucros para as empresas americanas. Um estudo de Sean Starrs conclui que a maioria das indústrias globais continua a ser dominada por empresas americanas , ajudadas pela ascensão da China. Starrs salienta que tanto os investimentos na China como as importações de factores de produção da China permitiram às empresas americanas manter o seu domínio global. Em conclusão, a narrativa da China como uma “armadilha” maliciosa para as empresas estrangeiras é uma moralização fácil e hipócrita que ignora as realidades complexas da concorrência global e do avanço tecnológico. Se aspiramos genuinamente a um mundo mais justo e próspero – uma aspiração que não é universalmente partilhada, mas pela qual vale a pena lutar – a verdadeira questão é saber porque é que tão poucos países subiram com sucesso a escada tecnológica. Em vez de se deixarem enganar pela propaganda de Wall Street, talvez os países em desenvolvimento pudessem tentar tirar uma página do livro chinês para nivelar o campo de jogo – tanto com os países ricos como com a China – na criação de uma paisagem global mais equitativa.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioAs figuras muito lá de casa que Su Hanchen observou Zhao Gou (1107-1187), o imperador Gaozong (r.1127-62), viveu o dificíl tempo de recriação da dinastia Song, quando em 1127 os seus membros foram forçados, pelos nómadas Jurchen, a abandonar a capital Bianjing (actual Kaifeng) em direcção ao Sul. E não foi imediatamente que a corte em fuga encontrou uma nova capital. Desses tempos inquietantes com que se iniciava a dinastia Song do Sul (1127-1279) o itinerário da fuga fê-los passar por Nanquim, de onde foram até à actual Shangqiu, depois Yangzhou até fixarem uma nova capital em Linan (actual Hangzhou) em 1129. Xiansheng cilie (1115-1197), a esposa do imperador, ou simplesmente a imperatriz Wu de Song que era, como ele amante das artes do pincel, recordou com amargura esses tempos num poema breve: «Aqui belas ameixas definham cedo e pessegueiros varridos pelo vento ficam de súbito despidos,/ Na claridade do anoitecer, contemplo com alegria o disco de jade na abóboda celeste./ Em Yangzhou conheci bem a face branda da brisa de Primavera,/ Comparando todas as flores estas, em geral, nada se assemelham às outras.» Tudo, aliás, seria um pouco diferente. Por influência da filosofia Neo-confuciana buscava-se agora a reforma da sociedade de baixo para cima. Vendo obras de pintores, notar-se-á uma tendência para diminuir o tamanho das pinturas, abandonando os grandes cenários com a grande montanha dominando visualmente outras mais pequenas sugerindo uma ordem que vem de cima, e emerge uma forma de representação mais próxima, de cenas mais íntimas ligadas ao quotidiano. Um exemplo dessa mudança vê-se nas obras de Su Hanchen (1094-1172), um pintor da Academia imperial, patrocinada pelo pai de Gaozong, o inspirado imperador Huizong (1082-1135). Numa pintura feita num leque redondo (tuanshan) vê-se uma Senhora sentada diante de um toucador num jardim (tinta, cor e ouro sobre seda, 25,2 x 26,7 cm, no Museu de Belas Artes de Boston). Vista de costas, o seu rosto aparece no espelho que ela segura na mão direita, sublinhando o facto de estarmos admirando um momento privado. Su Hanchen seria, no entanto, mais reconhecido por dois temas que se tornariam géneros dentro da pintura figurativa. As cenas de crianças a brincar, yingxi tu, mostradas em diferentes ambientes e os vendedores de bujigangas, huolang tu, transportando uma imensa parafernália de objectos, em geral artigos baratos acessíveis a todos. Ambas, figuras capazes de provocar uma incontida alegria. Em duas pinturas que estão no Museu do Palácio Nacional, em Taipé (uma delas, um rolo vertical, tinta e cor sobre seda,181,5 x 267,3 cm) junta os dois temas, mostrando o vendedor ambulante acolhido por crianças oriundas de famílias ricas. Num pressentimento do que viria a seguir. Afinal, com um território menor, a dinastia retomada no Sul por Gaozong seria até mais próspera que no Norte.
Hoje Macau Via do MeioContos tradicionais chineses recontados por Fernanda Dias O travesseiro prodigioso O travesseiro do sono Despojou-o dos dias sobrepostos Acalmou-lhe a voz dos ossos A fome da terra Devorou o seu nome Como se não tivesse acontecido nada Yao Jingming, A noite deita-se comigo. Na estalagem Corria a Era Kaiyuan. Um sacerdote taoista, conhecido como Mestre Lu, famoso por comunicar com os imortais, ia em peregrinação pela estrada de Handan, capital do Estado de Zhao, quando parou para descansar na Hospedaria dos Caminhantes. Retirou o chapéu de viajante, desapertou o cinto, sentou-se encostado ao seu bornal, e soltou um profundo suspiro, apreciando o merecido repouso depois da longa jornada. Foi então que reparou num jovem viajante vestido com uma curta túnica de burel, que acabava de desmontar do seu poldro negro, para passar a noite na hospedaria. Vendo que partilharia a esteira com o velho mestre, o moço, que disse chamar-se Liu, saudou-o com cortesia, e, como é hábito entre viajantes, logo trocaram impressões de viagem e partilharam aventuras insólitas, o que os fez rir de bom grado, como velhos amigos. Por fim o jovem Liu soltou um melancólico suspiro, e, chamando a atenção para a sua farpela coçada e suja, disse: “o que um homem tem de suportar, por viver num mundo hostil!” Ao ouvir este lamento, o velho respondeu com doçura: “tu aparentas excelente saúde, és um rapaz muito bem apessoado, porque te queixas, quando estávamos a passar um bom momento, numa agradável cavaqueira? ” Então Liu prosseguiu: “ Como não hei-de lamentar a triste vida que levo? Sendo aspirante a letrado, faço tudo para alcançar mérito, para ter um nome e chegar ao menos a general ou a ministro. Poderei então sentar-me a comer numa mesa como a das nobres famílias, bem fornecida de tripés com toda a espécie de manjares, ouvindo música sublime. E sobretudo, enriquecer a família e cobrir de glória o meu clã. Estarei feliz no dia em que alcançar estes propósitos. Tenho sacrificado a juventude devotado aos estudos; dediquei todo o entusiasmo às artes literárias; esperava ao menos ao fim destes anos ter direito à púrpura do mandarinato! Mas aqui estou eu, montado no meu poldro, por essas estradas a caminho dos campos e levadas! Como não sentir desânimo e frustração? ” Com a voz embargada, calou-se por finalmente, mas os seus olhos estavam marejados de lágrimas que teimavam em ficar retidas nas pestanas. Nisto assomou o estalajadeiro, que anunciou alegremente que tinha acabado de pôr a cozer ao vapor umas saborosas papas de milho-miúdo glutinoso. Em silêncio, Mestre Lu aproveitou a interrupção para esquadrinhar a fundura do seu bornal, de onde retirou um travesseiro de cerâmica, que estendeu a Liu, dizendo: “Pousa a tua cabeça sobre o meu travesseiro, e conhecerás finalmente honra, glória e todos os prazeres que ambicionas. ” Com ambas as mãos o jovem Liu recebeu o singular travesseiro. Era uma antiga peça de cerâmica de um admirável azul, com aberturas nas duas extremidades. O moço pousou-o na esteira, sem por um momento sequer duvidar das virtudes ocultas de um objecto que pertencia a um virtuoso mestre taoista. Naquela abençoada era, cada pedra, cada nuvem, cada fenómeno astrológico, cada obra de arte criada por mãos de artista, encerrava em si não só um simbolismo determinado, mas presságios aleatórios, inenarráveis prodígios, significados ocultos, avisos de futuras trevas e tribulações, ou grandes feitos e honrarias. Foi pois em confiança total que o jovem letrado se inclinou para o objecto maravilhoso, e logo as duas aberturas se alargaram como portais de templo, mostrando o interior suavemente iluminado. Liu entrou sem entraves, e depois ergueu-se e saiu do portal azul. Estava em casa! O feliz enlace Uma donzela de Ribeira-clara, cuja família os pais de Liu conheciam, tinha chegado à idade de casar. Era uma menina de grande formosura, e, por acréscimo, o seu dote vinha aumentar confortavelmente a fortuna do esposo. Casaram, e conheceram a ventura do amor. Feliz e confiante ao lado da sua educada esposa, Liu começou a vestir-se com esmero, e a escolher criteriosamente os meios que frequentava. No ano seguinte, passou nos exames e recebeu o grau de Jinshi, a mais prestigiosa categoria, que lhe proporcionava o acesso a uma bela carreira de Mandarim; e logo trocou o burel de estudante pela toga de Secretário dos Arquivos Imperiais. Sendo o mais baixo cargo dos dezoito graus para atingir o mandarinato, era no entanto um estádio reservado aos jovens letrados, prometidos a uma bela carreira. Em breve um decreto o destacou para o comando da Guarnição da Sub-Prefeitura de Weinan, que, estando sobre a dependência da prefeitura da capital, deixava antever boas oportunidades de acesso a cargos no Governo Central. O que se confirmou, quando foi transferido para os Censos e nomeado Analista dos Factos e Gestos de Sua Majestade, sendo logo de seguida promovido a Redactor dos Éditos Imperiais. Estava agora a meio do percurso para o topo da carreira. Três anos mais tarde partia para dirigir a Prefeitura de Tongzhou, próximo da capital, a que se seguiu o cargo de Governador de Shaanzhou, e das cinco respectivas prefeituras na região de Henan. Muito dedicado aos projectos públicos, começou por empreender a construção de um canal a Oeste de Shaanzhou, o que vinha facilitar a navegação em toda a região, melhorando o fluir das embarcações, para comodidade da população e grande benefício dos mercadores. Instados pelo povo, os notáveis fizeram erigir uma estela, imortalizando na pedra o mérito das iniciativas da sua governação. O que talvez tenha contribuído para que Liu fosse de novo transferido, desta vez para Bianzhou, onde assumiu o cargo de Comissário Imperial da Circunscrição de Henan. De tal modo desempenhou as suas atribuições nesse cargo, que se viu enfim nomeado como Prefeito na capital. A Campanha contra os Bárbaros Naquele ano o Imperador Xuanzong, fazendo jus ao seu título de Shenwu Huangdi, o Divino Guerreiro, empreendia uma campanha contra os Rong Di, para enfim recuperar os vastos territórios que tinham sido anexados por aqueles bárbaros do Oeste. Simultaneamente, dois chefes tibetanos tinham contra-atacado e ocupado a região entre Guazhou e Shazhou. Na desordem bélica que se instalou entre o Rio Amarelo e Huang, o governador Wang Junhuan foi assassinado. O povo, inquieto, temia acima de tudo a vida sem lei nem ordem. Foi então que o Imperador fez apelo aos méritos de comando de Liu, e às suas capacidades para gerir tempos de crise, nomeando-o Vice-Presidente do Tribunal dos Censores, isto é, chefe operacional desse tribunal, que acumulava com o cargo de Governador Militar da Província a Oeste do Rio Amarelo. Dedicado de corpo e alma a esta nobre tarefa, Liu venceu os invasores, derrotou mil exércitos, e retomou novecentas mil léguas de território. Aí fez construir e equipar três grandes praças-fortes, a fim de assegurar a protecção dessa região estratégica. A população das zonas de fronteira, grata pelo estabelecimento da paz, levantou uma estela em seu louvor no Monte Juyan. De regresso à corte, foi recebido com valiosas recompensas e os seus feitos registados nos Arquivos do Império. Em consequência, foi nomeado Vice-presidente da Função Pública, mas rapidamente alcançou o cargo de Ministro das Finanças e a atribuição do título de Grande Mestre do Recenseamento. Muitos nobres e letrados comentavam a sua fidelidade às boas causas, a sua humildade e a sua conduta desinteressada. O povo das terras que servira com zelo pronunciava o seu nome com gratidão e respeito, comentando a sua cortesia, modéstia e generosidade. E contudo… A inveja Onde proliferam as raras flores da competência e do mérito, e surgem os eflúvios das honrarias e recompensas, inevitavelmente, nos recantos sombrios desse ingrato meio, cresce também a erva ruim da inveja. O Primeiro-ministro vivia envenenado pelo mais sombrio ciúme. Manobrando com falsidade os seus atrozes desígnios, fazia um trabalho de sapa, no intento de conseguir a perda do rival. Não perdia nenhuma ocasião de espalhar rumores e calúnias, que insidiosamente faziam o seu caminho até aos ouvidos da Corte. O Imperador, na dúvida de haver algum laivo de verdade em tanta maledicência, exilou Liu longe da Corte, no cargo de Magistrado em Duanzhou, na região de Cantão, que, à época, era conhecida pelo clima malsão. Porém, três anos mais tarde, tendo arrefecido a sanha da inveja, a Corte reconsiderou; Liu foi convocado e admitido como Conselheiro, o que consistia em estar permanentemente à disposição do Imperador. Esta proximidade trouxe reconhecimento do seu carácter por parte da Corte, e novamente foi promovido para o cargo que tinha sido do seu inimigo, cabendo-lhe regulamentar os trâmites do Alto Secretariado e da Chancelaria. Contando com a leal colaboração de Xiao Song, director do Alto Secretariado, e Pei Guangting, presidente da Chancelaria Imperial, manteve durante uma dezena de anos as linhas da sua orientação política, realizando projectos com discrição e inteligência. Três vezes ao dia conferenciava com o Imperador, dando contas das suas iniciativas e de mudanças benéficas a implementar, e desse modo ficou conhecido como Sábio Ministro. Contudo, nada é mais resistente do que a erva daninha, e de novo os intriguistas da Corte manobraram para o denegrir. Mais uma vez caluniado, acusaram-no de tentativa de conjura com os comandantes das fronteiras, que, corrompidos com cargos e presentes, testemunharam contra ele. Assinado o decreto de prisão, os guardas da prefeitura, vieram com larga escolta surpreendê-lo em casa. Desesperado, ferido no seu mais profundo sentimento de honra, Liu virou-se para sua esposa e desabafou, num profundo lamento: “em nossa casa em Shandong, eu possuía seis ares de boa terra de cultivo, que nos dava alimento, e um bom lar ao abrigo de intrigas. Por que perniciosa ambição me cansei a subir na carreira? Tenho tantas saudades da minha túnica curta de burel, e das cavalgadas no meu poldro preto a caminho de Handan! Enfim! A vida não retrocede conforme a vontade dos mortais. ” Dito isto desembainhou um punhal, mas num ápice a esposa travou-lhe o gesto, percebendo que ele intentava cortar a garganta. Fazendo da fraqueza força, a nobre dama lembrou-lhe maus momentos passados, a vasta obra realizada, e as suas obrigações como pai de família. E Liu, entendendo que não estava só, retomou coragem para agir em defesa própria. Não sabemos como derrotou traidores e presumidos cúmplices. O que sabemos é que, protegido pelos eunucos, com quem sempre fora cortês, conseguiu que a pena de morte que lhe tinha sido aplicada fosse comutada em expulsão para Huanzhou. Banido, mas não esquecido. Anos mais tarde o Imperador desinteressou-se dos denunciantes, reconheceu o erro e entregou-lhe a gestão do Alto Secretariado. Atribuiu-lhe o título de Duque de Yan, e cumulou-o de favores, na esperança de o fazer esquecer as injustiças de que fora vítima. Opulência e declínio Liu voltou a gozar as bênçãos de uma tranquila vida familiar, com a sua devotada esposa e os seus talentosos cinco filhos. Jian, o primeiro, obteve o grau de doutor e um cargo no Gabinete de Avaliação do Mérito; Zhuan, o segundo, tinha assento nos Censos; Wei,o terceiro, era assistente no Departamento dos Sacrifícios Imperiais; Ti, o quarto, era Comandante em Wannian. O quinto, o jovem Yi, era já suplente num dos grandes departamentos do Estado. Todos se tinham casado com jovens educadas, oriundas de boas famílias, e já tinham dado aos pais uma dezena de netos. Por duas vezes banido para os confins do Império, Liu tinha conseguido vencer os obstáculos e retomar o caminho da honra, com o apoio da família. À beira da idade sénior, viajava, frequentava letrados e cortesãos. Por toda a parte, na Corte ou na província o seu nome era conhecido e respeitado, e a suas advertências eram ouvidas. Amante de arte e dos belos atavios, rodeado de luxo, diz-se que nos pátios para lá dos jardins, na ala oeste da sua mansão, viviam cantoras e bailarinas de celebrada beleza. Possuía vastos domínios, faustosas residências secundárias, cavalos soberbos, presentes que acumulara ao longo dos anos. Nada mais tinha a desejar! Mas o homem sabe que um frágil fio liga tudo o que vive à obsolescência. O seu vigor declinava, a sua mente aspirava ao repouso, longe das intrigas da Corte e da luta por bens e prestígio. Quando adoecia, choviam as mensagens da Corte indagando da sua saúde. Os mensageiros cruzavam-se no caminho da sua casa, e os médicos afadigavam-se receitando elixires que deveriam devolver-lhe a energia e o poder. Quando Liu sentiu o fim próximo, ditou a seguinte carta, dirigida ao Imperador: Este vosso servo era apenas um estudante de Shandong, feliz nos campos em flor da sua terra, quando o destino lhe proporcionou um encontro com Vossa Majestade Imperial, e a Vossa generosa protecção o fez atingir os mais altos cargos, excepcionais distinções, e os mais prestigiosos favores. Portador dos estandartes imperiais, subiu os degraus do estrado de honra, indigno de tão insigne favor. Assim vivi, entre o Palácio e os confins da Província. Insignificante servo, que tantas vezes caiu em opróbrio, mesmo quando avançava prudentemente, como a raposa que caminha sobre gelo fino. Pensando no futuro, ignorei o inevitável avançar da idade. Este ano completo oitenta anos de vida, ainda no pleno usufruto da minha posição. Eis que a clepsidra chega ao fim do seu périplo. O meu corpo chega à decrepitude. O meu fim não tardará. Beneficiei indevidamente da Vossa benevolência; os trabalhos que concretizei não mereceram a luz do Vosso apreço. Sinto que vou desligar-me da Vossa presença sem ter conseguido expressar a devoção e a profunda gratidão que voto à Vossa Imperial Pessoa. Na despedida, permita-me apresentar este humilde testemunho da minha gratidão. Em resposta, o Imperador fez-lhe chegar o seguinte édito: A tua eminente virtude foi o Nosso principal suporte. Longe, consolidaste a orla de protecção; internamente favoreceste a harmonia. Cabe-te o mérito da paz e da prosperidade dos últimos vinte anos. Fazemos incessantes votos pela tua cura desde que sabemos dos teus recentes problemas de saúde. Está contigo a Nossa mais terna compaixão. Enviamos Gao Lishi, Comandante da Intrépida Cavalaria à tua cabeceira, para que Nos traga notícias do teu estado. Pelo amor que Nos dedicas, encarecidamente te rogamos que tenhas cuidado com a tua saúde. Na esperança de boas notícias, contamos com o teu completo restabelecimento. Nessa mesma noite Liu morreu, e a sua alma juntou-se aos antepassados. O despertar Liu espreguiçou-se e bocejou. Estava na Hospedaria, deitado na esteira. O sábio taoista estava sentado a seu lado, e informou-o de que as papas de milho glutinoso ainda não estavam prontas. Em redor tudo estava como dantes. O crepúsculo ainda tingia de belas cores a estrada para Hanan. Erguendo-se, Liu viu na semi-obscuridade o brilho perfeito da cerâmica azul do velho travesseiro. “Não passou de um sonho?”, pensou. “Assim são as etapas da vida”, confirmou o velho como se lhe tivesse ouvido o pensamento. O moço quedou-se perplexo um bom momento. No seu íntimo sabia que devia agradecer ao seu companheiro pela valiosa lição, e disse: — “Acabo de experimentar a vida das benesses e a das humilhações; da miséria e da fortuna; de entender as causas das derrotas e das vitórias. Conheci todas as emoções: as alegrias do coração e a desolação das perdas. Mestre, ensinaste-me como livrar-me da escravidão do desejo. Para sempre serei grato à lição do travesseiro de cerâmica azul.” Dito isto, com um suave sorriso, inclinou-se numa sentida saudação. Saiu para a estrada e assobiou ao seu poldro negro. Ecoou o trote nas lajes do pátio da hospedaria. Liu montou, saudou mais uma vez, e partiu.
Hoje Macau Via do MeioA memória de lótus dourados que rivalizam com o Sol Zhang Tingyu (1672-1755), o único alto funcionario, político literato e historiador que, caminhando por «ruelas apertadas com o espírito aberto» (liu chi xiang), resistiu às disputas internas e guerras de ambições que ocorreram ao longo das sucessivas transições entre três brilhantes imperadores da dinastia Qing (1644-1911) – Kangxi, Yongzheng e Qianlong – também foi pai de três influentes cultores das artes do pincel. O mais velho dos três, Zhang Ruoai (1713-46), na sua vida breve de apenas trinta e três anos, como certas estrelas que muito brilham mas duram pouco tempo, deixou do seu pincel traços que não seriam esquecidos. Em pinturas como um retrato de Qu Yuan caminhando e cantando (Quzi xingyin tu), poderá ver-se uma representação exemplar da sua condição de criador literato leal ao imperador. Qu Yuan (c.339-278 a.C.) o poeta símbolo da integridade moral e fidelidade nacional era uma figura com quem os literatos gostavam de se identificar. Das muitas pinturas em álbuns que fez por encomenda imperial nota-se uma curiosa representação de um lugar especial, acarinhado pelos três eminentes imperadores e que já fora pintado por outros pintores da corte, o pavilhão na ilhota Ruyi, diante do monte Yanxun dentro do complexo da Estância imperial de montanha em Chengde, onde os monarcas passavam o Verão. Nesse ábum Bishu shanzhuang tu bing Qianlong tishi ce, «Ilustrações da estância de Verão de Chengde com poemas do imperador Qianlong», que está no Museu do Palácio Nacional, em Taipé, o imperador escreveu o poema Lótus dourados que se comparam com o sol. Na ilustração ao lado, vêem-se enclausuradas entre longos e geometricamente exactos corredores cobertos, plantadas de modo sistemático, flores de pétalas de um amarelo alaranjado. Zhang Ruoai não acrescenta qualquer outro elemento que perturbe a exactidão das construções em que se multiplicam abstractas linhas rectas rodeadas por água e o verde das árvores, criando uma impressão de irrealidade, intemporal como um pensamento que surge em meio à natureza. As grandes e raras flores plantadas, designadas jinlian hua, «lótus dourados» (trollius chinensis) ou flores do globo dourado, dado o aspecto dos longos estames que crescem formando quase uma esfera, vinham do monte Wutai, em Shanxi, e como outras plantas e edifícios da estância de Verão ilustravam a diversidade do império dos Qing. Outras características das flores como o seu florescimento na época em que lá se encontrava o imperador, a ligeira toxicidade que impedia que fossem tocadas, a cor semelhante à usada exclusivamente pela família real, tornavam-nas especialmente simbólicas. Os três imperadores escreveram poemas sobre a flor, mas Qianlong, que escreveu num seu retrato o poema É um, são dois, Shiyi shier, sabia que a identificação entre duas coisas sugere sempre uma terceira.
Hoje Macau Via do MeioBudismo na China: Piedades populares (continuação do número anterior) Embora as principais escolas tenham desempenhado papéis históricos significativos e sejam importantes para a compreensão de muitos aspectos do budismo chinês, elas representam apenas uma parte das várias tradições budistas que se desenvolveram na China. Além disso, envolveram principalmente as elites clericais e os seus seguidores da classe alta, com uma exceção parcial do movimento da Terra Pura, que se difundiu mais amplamente. Consequentemente, as principais escolas – especialmente as de orientação escolástica, como a Huayan e a Shelun – tiveram relativamente pouco impacto direto na vida religiosa do povo comum, que adoptou uma variedade de crenças populares e práticas cúlticas que muitas vezes esbateram as linhas de demarcação que separavam o budismo do taoísmo e da religião popular. Os elementos-chave da visão do mundo budista que moldaram as perspectivas prevalecentes e orientaram os comportamentos religiosos quotidianos incluem as crenças na reencarnação e na lei do karma, que no final do período medieval também se tornaram amplamente aceites fora da comunidade budista. Estas crenças fomentavam uma preocupação prevalecente com a obtenção de uma recompensa cármica favorável, que trazia bênçãos na vida atual – incluindo benefícios utilitários como a acumulação de riqueza ou o gozo de uma vida longa e saudável – e assegurava um renascimento auspicioso na vida seguinte. A acumulação piedosa de karma positivo ou saudável podia envolver todo o tipo de gestos rituais e actos meritórios, juntamente com o cultivo de toda a gama de disciplinas espirituais incluídas no caminho de prática e realização do bodhisattva. Entre as práticas mais prevalecentes estavam a doação de caridade, a observância de preceitos éticos e a adoração de vários Budas e bodhisattvas. Grande parte das doações religiosamente selecionadas destinava-se a apoiar a construção ou manutenção de mosteiros, o que também envolvia o apoio ao clero residente. Os generosos donativos dos leigos eram também dirigidos para a construção de várias estátuas, santuários e outros objectos ou locais de culto, incluindo stūpas e pagodes. Os budistas estavam igualmente envolvidos em acções de caridade destinadas a aliviar a pobreza, a doença e outras formas de sofrimento. Para esse fim, estabeleceram várias formas de organizações de caridade que prestavam valiosos serviços sociais à comunidade em geral. Outra expressão comum da piedade budista era a adesão a preceitos éticos. No nível mais básico, isso implicava a observância dos cinco preceitos tradicionais para os leigos budistas, que envolvem a abstenção de matar, roubar, mentir, má conduta sexual e consumo de álcool. Alguns leigos empenhados, e ainda mais mulheres leigas, também receberam os preceitos do bodhisattva, que se baseavam no (presumivelmente) apócrifo Fan wang jing (Escritura da Rede Brahma). Outra prática prevalecente inspirada no ideal de compaixão universal do bodhisattva era a observância de uma dieta vegetariana, que se encontra entre as caraterísticas definidoras do budismo chinês. Consequentemente, durante o período medieval, a organização de banquetes vegetarianos comunitários tornou-se uma caraterística proeminente dos festivais budistas e de outras celebrações públicas. Embora se esperasse que todos os membros do clero fossem vegetarianos, o vegetarianismo era opcional para os seus apoiantes leigos, embora a adoção parcial ou total de um estilo de vida vegetariano fosse (e ainda seja) amplamente vista como uma marca de compromisso com o caminho budista. Ao longo da história da China, as manifestações predominantes da fé budista foram geralmente impregnadas de sentimentos devocionais e articuladas através de uma série de actos e observâncias rituais. De facto, o devocionalismo e o ritualismo estavam entre as caraterísticas mais difundidas e facilmente reconhecíveis do budismo chinês. Para além dos serviços litúrgicos regulares que faziam parte das rotinas monásticas quotidianas, o calendário ritual estava também repleto de muitos outros festivais, celebrações comemorativas e outros rituais públicos. Algumas formas de práticas ritualizadas, como as recitações de sūtra e as elaboradas cerimónias de arrependimento, podiam durar longos períodos – dias ou mesmo semanas de cada vez. O mesmo se pode dizer da série de palestras públicas que forneciam uma exegese sistemática de textos canónicos populares. Todos estes eventos eram também fontes significativas de receitas para os mosteiros, pois atraíam muitos leigos que faziam donativos generosos. Os budistas chineses tinham uma variedade de escolhas no que diz respeito a objectos de culto e adulação. O panteão budista é complexo e vasto, povoado por um grande número de Budas, bodhisattvas e outros tipos de divindades. Para além de Śākyamuni (Shijia mouni), o Buda histórico, existem também muitos outros Budas celestiais que, supostamente, partilham todos a mesma natureza fundamental, identificada como o “corpo da verdade” (dharmakāya r fashen), que não é outra coisa senão a essência sem forma e inefável da realidade última. Os Budas mais populares são Vairocana (Pilushena), o sublime Buda cósmico que figura nas Escrituras Huayan, Amitābha (Emituo), que preside à sua lendária terra pura no oeste, e Bhai ajyaguru (Yaoshi), o Buda da cura. Há também Maitreya (Mile), o futuro Buda, que é frequentemente referido como um bodhisattva. Após a era Tang, ele foi representado principalmente como o Buda gordo e risonho, uma imagem onipresente baseada no monge Budai, do século X. Ao longo da história do budismo chinês, todos estes Budas foram amplamente venerados e implorados como fontes supremas de autoridade espiritual ou de poder salvífico. O mesmo se pode dizer dos principais bodhisattvas, alguns dos quais são também comummente representados como encarnações consumadas das principais virtudes budistas. Por exemplo, Avalokiteśvara (Guanyin), de longe o bodhisattva mais popular e um objeto de culto generalizado em toda a China e no resto da Ásia Oriental, é representado como a personificação da compaixão (ver Yü 2001). Enquanto na Índia Avalokiteśvara era tradicionalmente retratado como uma figura masculina aristocrática, na China sofreu uma espécie de transformação de género: a partir do século X, o bodhisattva passou a ser representado numa série de formas femininas. Outros bodhisattvas amplamente adorados incluem Mañjuś ī (Wenshu), a personificação da sabedoria, e K itigarbha (Dizang), que se diz descer aos vários infernos para salvar os seus infelizes habitantes. Os cultos dominantes dos bodhisattvas também se tornaram intimamente associados à prática da peregrinação. Este facto é exemplificado pelas quatro principais montanhas budistas da China – Putou, Wutai, Jiuhua e Emei – cada uma das quais é identificada como o principal santuário de um bodhisattva-chave. De acordo com os costumes e ideais Mahāyāna prevalecentes, especialmente o ethos da compaixão universal, a realização de rituais e a participação em todo o tipo de práticas eram supostamente dedicadas ao bem-estar e à salvação de todos os seres vivos. No entanto, muitas vezes as principais fontes de motivação eram muito mais pessoais ou subjectivas. Havia, naturalmente, o objetivo básico da salvação pessoal; no entanto, este era frequentemente misturado ou substituído pela procura de todo o tipo de benefícios mundanos, não só para o próprio, mas também para os membros da sua família. A inclusão de outros baseava-se na crença de que o mérito acumulado pela dádiva ou patrocínio de determinados rituais poderia ser direcionado para a realização de objectivos específicos, incluindo a salvação de outras pessoas. Esta crença estava em sintonia com atitudes profundamente enraizadas e com as observâncias rituais habituais centradas no culto dos antepassados, que se tornaram elementos-chave da vida social e religiosa chinesa muito antes da introdução do budismo. Ao proporcionar locais de encontro para o clero budista foi capaz de se integrar ainda mais nas matrizes sociais e culturais centrais da vida chinesa. Isso também lhe permitiu explorar fontes adicionais de apoio económico, mesmo que a realização de rituais para compensação monetária levasse frequentemente a negligenciar outros aspectos da vida monástica, incluindo a prática contemplativa. Declínio e renascimento da era imperial tardia As principais crenças, doutrinas, práticas, escolas e instituições que são emblemáticas do budismo chinês desenvolveram-se todas durante o primeiro milénio da história da religião na China. O núcleo principal do cânone também estava praticamente completo antes do final da era Tang, embora muitos textos adicionais tenham sido escritos ou compilados durante os séculos seguintes. De um modo geral, os impactos do budismo na cultura e sociedade chinesas foram visivelmente mais fracos durante o segundo milénio, que coincide, na sua maior parte, com a era imperial tardia da história chinesa. Estas realidades, juntamente com outros factos históricos relacionados, levaram Kenneth Ch’en, na sua influente história do budismo chinês, a esboçar a história do budismo durante este período como uma narrativa de declínio progressivo, uma queda gradual em relação às glórias da era Tang (Ch’en 1964: 389-454). Esta ampla caraterização não é, na sua maior parte, problemática, sendo aceite pela maioria dos budistas e académicos da Ásia Oriental. O mesmo se pode dizer dos historiadores da China imperial tardia, que, entre outras coisas, chamam a atenção para as formas como a tradição confucionista ressurgente, especialmente na versão neo-confucionista for- mulada por Zhu Xi (1130-1200), eclipsou largamente o budismo a partir do período Song. Há, no entanto, algumas vozes discordantes que divergem da narrativa dominante de declínio, representadas principalmente por académicos americanos que trabalham sobre o budismo da era Song. Na sua vontade de sublinhar a importância da época e do tema que estudam, alguns chegaram mesmo a sugerir que o budismo Song, afinal, merece corretamente o epíteto de “idade de ouro” do budismo chinês (Gregory e Getz 1999: 2-4). É verdade que o estudo de Ch’en está bastante desatualizado e que muitas das suas interpretações, incluindo partes do seu tratamento largamente desdenhoso do budismo chinês posterior, podem ser questionadas. Além disso, há uma série de questões que complicam o mapeamento de trajectórias históricas mais vastas, e o mesmo se pode dizer das comparações quantitativas e qualitativas de diferentes épocas. No entanto, sem entrar nos pormenores de argumentos específicos ou das circunstâncias que conduzem a este tipo de debate académico, a essência básica da narrativa geral de Ch’en sobre o budismo na China imperial tardia permanece mais próxima da realidade histórica do que as tentativas pouco convincentes de revisionismo histórico acima mencionadas. Mesmo assim, é verdade que houve um considerável florescimento do budismo durante a era Song. Durante este notável período de efervescência cultural, os mosteiros budistas e outros locais de culto continuaram a ser importantes misturas na paisagem social, e a religião tinha numerosos seguidores entre as elites sociopolíticas e os plebeus. Os mosteiros budistas continuavam a albergar numerosos monges e a ser objeto do impacto budista nas artes durante este período é evidente nas muitas estátuas graciosas e nas belas pinturas que apresentam temas ou imagens budistas. O mesmo se pode dizer dos escritos de intelectuais notáveis, como Su Shi (1037-1101), o famoso escritor, poeta, pensador e oficial, que esteve entre as principais personalidades da era Song. Apesar dos sinais de declínio intelectual e institucional, durante a era Song houve desenvolvimentos notáveis numa variedade de áreas, incluindo o escolasticismo Tiantai e a produção literária Chan. Além disso, muitos elementos do budismo chinês tardio que ainda hoje são evidentes foram formulados durante a era Song. Isso inclui as codificações peculiares da vida monástica representadas pelas “regras de pureza” (qinggui) que foram desenvolvidas pela escola Chan, que era a tradição de elite dominante do budismo Song. Outros exemplos são as várias formas de piedade popular incluídas na tradição da Terra Pura, vagamente estruturada (discutida no capítulo de Jimmy Yu neste volume), e alguns dos principais estilos de prática contemplativa, epito- mizados pela abordagem “observando a frase crítica” (kan huatou) da meditação Chan que foi defendida por Dahui (1089-1163). Estas e outras caraterísticas do Budismo Song foram também exportadas para a Coreia e para o Japão, com ramificações significativas para o desenvolvimento subsequente do Budismo em ambos os países. Na sua maioria, não se registaram muitos desenvolvimentos inovadores ou mudanças de paradigma notáveis após a era Song. A falta de inovação e criatividade em áreas como a especulação filosófica, a exegese das escrituras, o desempenho ritual ou o desenvolvimento institucional foram acompanhados por uma prevalência de atitudes conservadoras. Mesmo quando houve tentativas intermitentes de reavivamentos budistas, estas envolveram frequentemente evocações de glórias passadas e esforços algo frustrados para recapturar elementos-chave de antigas tradições budistas. Isso é evidente, por exemplo, no renascimento das formas clássicas do Chan durante o século XVII, que, entre outras coisas, envolveu a imitação de estilos retóricos e de ensino iconoclásticos que, de acordo com a tradição popular do Chan, estavam ligados aos grandes mestres das eras Tang e (em menor grau) Song. Isso incluía a gritaria ritualizada e o espancamento de estudantes. Embora este tipo de actos dramáticos se destinasse supostamente a evocar o verdadeiro espírito do Chan, eram também criticados por serem pouco mais do que representações teatrais, destinadas principalmente a impressionar audiências monásticas e leigas não sofisticadas (ver Wu 2008). Isso não significa que o budismo tenha deixado de ser uma parte notável da paisagem religiosa na China imperial tardia. No entanto, em muitas áreas significativas, o budismo foi ensombrado por uma ortodoxia neo-confucionista abrangente que não só dominava a vida intelectual, social e política, como também proporcionava aos literatos vias apelativas de cultivo espiritual. A relativa fraqueza do Budismo é evidente na falta de respostas convincentes e eficazes aos desafios colocados pela primazia do Confucionismo. Ao mesmo tempo, um olhar mais atento sobre a sociedade chinesa local revela que a relação entre o budismo e o neo-confucionismo era um pouco mais complexa do que muitas vezes se supõe. Por exemplo, durante o final da era Ming (1368-1644), muitos membros da nobreza local, apesar da sua educação e lealdade neo-confucionista, eram visitantes frequentes e importantes patronos de mosteiros budistas (Brook 1994). Havia também as actividades de uma variedade de reformadores budistas – como Yunqi, Zhuhong (1535-1615) e Zibo Zhenke (1543-1603) – que tentaram formular novas respostas a situações sociais e culturais em mudança. Alguns deles foram também bastante bem sucedidos na mobilização dos leigos. Entre os acontecimentos significativos que tiveram lugar durante o período imperial tardio, esteve a transmissão de formas tibetanas de budismo para algumas partes da China, incluindo a capital imperial de Pequim. A introdução inicial do budismo tibetano ocorreu no início da dinastia Yuan (1271-1368), durante o reinado do grande Khublai Khan (r. 1260-1294), o fundador da dinastia e o primeiro monarca mongol a estabelecer um domínio estável e duradouro sobre a China. Na sequência da conquista mongol do Tibete em 1252, Khubilai Khan e as elites mongóis viraram-se para o budismo tibetano como a sua religião de eleição, embora continuassem a manter uma política geral de tolerância religiosa. O mais notável missionário budista tibetano foi o ‘Phags-pa Lama (1235-1280), que foi convidado para a capital mongol. Aí ofereceu instrução religiosa a Khubilai e a outros membros da corte imperial. ‘Phags-pa e os seus seguidores também transmitiram várias formas de rituais e práticas tântricas que estavam em voga na altura. As variedades tântricas do budismo tibetano e mongol foram também patrocinadas pelos governantes manchus da dinastia Qing (1644-1911). Isto foi parcialmente motivado por considerações políticas, uma vez que os imperadores Qing estavam interessados em consolidar a sua influência sobre o Tibete e a Mongólia. O imperador Qianlong (r. 1735-1795) chegou mesmo a apresentar-se como uma encarnação de Mañjuśri (Wenshu), o popular bodhisattva que era adorado como uma personificação da sabedoria. No entanto, estas formas exóticas de budismo tiveram pouco impacto na vida religiosa dos súbditos chineses governados pelos manchus, uma vez que os estilos tradicionais chineses de culto e prática permaneceram dominantes no meio budista mais vasto da China Qing. Uma grande perturbação durante a última parte da dinastia Qing, que teve consequências particularmente negativas para a sorte do budismo, foi a violenta rebelião de Taiping (1850-1864), que pôs de joelhos a outrora poderosa dinastia. Liderados por Hong Xiuquan (1814-1964), que se inspirava no cristianismo e se autoproclamava filho de Deus, os zelosos rebeldes tinham má vontade para com o budismo e muitos mosteiros budistas foram danificados ou destruídos durante este período sangrento e angustiado.
Hoje Macau Via do MeioBudismo na China: Florescimento durante a Era Sui-Tang (continuação do número anterior) O Budismo atingiu o auge do seu desenvolvimento e impacto na sociedade chinesa durante as dinastias Sui (581-618) e Tang (618-907). Esta era é frequentemente evocada como a idade de ouro do budismo chinês, distinguida por uma combinação notável de engenho intelectual, vitalidade institucional, devoção fervorosa e criatividade artística. O período Tang é também invulgarmente aceite como o ponto alto da civilização chinesa, uma era de poder dinástico e prosperidade sem rival, celebrada pela sua sofisticação cultural, efervescência e cosmopolitismo. O ápice do budismo na China coincidiu, assim, com um dos períodos mais significativos da história chinesa, quando o Império do Meio emergiu como o país mais avançado e poderoso do mundo. Nessa altura, o Budismo era claramente a tradição religiosa mais prevalecente e influente na China, embora não fosse de modo algum a única. O confucionismo e o taoísmo também floresceram, no meio de um ambiente sociocultural positivo que fomentou aquilo a que hoje poderíamos chamar atitudes multiculturais e a aceitação do pluralismo religioso. Além disso, durante esta época, foram introduzidas na China várias outras religiões “ocidentais”, incluindo o zoroastrismo, o islamismo, o cristianismo nestoriano e o maniqueísmo. Durante a era Tang, os mosteiros, templos e santuários budistas eram uma mistura proeminente de paisagens urbanas e rurais. Os monges e os mosteiros eram símbolos altamente visíveis da presença generalizada do budismo em toda a China, o que tinha ramificações sociais, políticas e económicas significativas. A ordem monástica assumiu posições-chave de liderança religiosa e esteve na linha da frente dos principais desenvolvimentos institucionais e intelectuais. Embora a maioria dos líderes monásticos viesse de origens privilegiadas, havia também numerosos monges e monjas com uma educação mais humilde que atendiam às necessidades religiosas do povo comum. Chang’an, a principal capital Tang, tinha mais de 150 mosteiros e conventos, que albergavam milhares de monges e freiras. Os principais complexos monásticos da capital eram de grande dimensão, com numerosos edifícios, pavilhões e pátios. Eram também conhecidos pelo seu esplendor arquitetónico e pelo seu ambiente requintado. Com várias funções religiosas, que incluíam rituais realizados em nome da família imperial e da dinastia reinante, os mosteiros eram também importantes centros da vida social, bem como locais onde se realizavam variados eventos culturais. Luoyang, a capital secundária, não ficou muito atrás no que diz respeito à presença de estabelecimentos e actividades budistas, especialmente durante o reinado da Imperatriz Wu (r. 690-705), a única monarca feminina na história chinesa, que era conhecida pelo seu patrocínio ao budismo. Houve também notáveis construções e expansões em Longmen e Dunhuang, os famosos complexos de cavernas que estão entre os maiores e mais importantes repositórios de arte budista. A profusão de estátuas, frescos, inscrições e relevos que enfeitam os santuários das grutas são um testemunho impressionante das imensas alturas da criatividade artística de inspiração budista e do fervor religioso que caracterizaram esta época. Também nos dão a conhecer a gama de aspirações e motivações evidenciadas entre os fiéis budistas, que envolviam intrincadas intersecções de considerações religiosas, económicas, políticas e sociais. Muitos mosteiros famosos situavam-se também em capitais de províncias ou prefeituras. Havia ainda mais mosteiros situados em várias montanhas – como Wutaishan, Lushan, Tiantaishan e Nanyue – que, para além do seu papel primordial como centros de treino monástico, serviam também como importantes locais de peregrinação (para Nanyue, ver Robson 2009). Os oficiais e literatos Tang visitavam frequentemente este tipo de estabelecimentos monásticos, onde interagiam de perto com o clero budista. Muitos deles eram também patronos proeminentes e fervorosos apoiantes da causa budista. De um modo geral, os literatos desempenharam papéis essenciais no crescimento e transformação do budismo. Um bom número deles esteve mesmo ativamente empenhado na propagação das doutrinas e práticas budistas. Além disso, afirmaram o lugar central do Budismo na vida cultural e social chinesa e, em momentos-chave, defenderam a fé budista contra os seus vários detractores (Halperin 2006: 27-61). A influência generalizada do budismo na esfera cultural é claramente evidente na literatura e na poesia Tang, que evocam frequentemente temas, ideias e imagens budistas. Em várias inscrições escritas para mosteiros budistas e outros tipos de escritos, os literatos escreviam sobre a sua devoção pessoal e apresentavam testemunhos embelezados sobre a sublimidade ou a eficácia dos ensinamentos budistas. Exemplos copiosos de tais sentimentos podem ser encontrados nos escritos de poetas famosos como Wang Wei (701-761) e Bo Juyi (772-846, também conhecido como Bai Juyi). Ambos os poetas eram bem conhecidos pelos seus compromissos sérios com os ideais e práticas budistas, especialmente os associados ao nascente movimento Chan, pelo que não é surpreendente que a sua poesia estivesse imbuída de sentimentos budistas. Em muitos poemas, os tropos ou imagens budistas assumem um papel central, o que os torna fontes úteis para o estudo de atitudes e práticas laicas (ver Poceski 2007b). O crescimento do budismo teve também impactos notáveis nas esferas económica e política. Muitos mosteiros tinham estatuto oficial e recebiam financiamento do Estado. Uma vez que as doações religiosas eram vistas como um dos principais geradores de mérito espiritual, os donativos dos fiéis – que provinham das elites sociopolíticas, bem como da população comum – eram uma importante fonte de rendimento para os mosteiros. Alguns estabelecimentos monásticos eram também grandes proprietários de terras. Outras fontes de rendimento eram as actividades comerciais, como a exploração de lagares de azeite, moinhos e casas de penhores (Gernet 1995: 142-52, 167-86). Embora o Estado imperial patrocinasse as actividades religiosas e concedesse certos privilégios ao clero – nomeadamente a isenção de impostos e do serviço militar – também implementou uma série de políticas destinadas a controlar a religião e as suas instituições, que não eram necessariamente exclusivas da era Tang. Estas políticas incluíam o controlo das ordenações monásticas, a regulamentação da construção de templos e mosteiros e a imposição de restrições às actividades do clero e à sua liberdade de movimentos. Dado o relativo conforto da vida monástica e a grande dimensão do clero, que incluía indivíduos com todo o tipo de antecedentes e aspirações, um certo nível de laxismo monástico e de corrupção era um problema constante. Este facto suscitou críticas tanto do exterior como do interior da comunidade budista, juntamente com apelos ocasionais à purificação do clero. No decurso da história da China, muitas dinastias reinantes estavam empenhadas em utilizar o prestígio e a popularidade do budismo para os seus objectivos políticos. Foi esse o caso, nomeadamente, durante a dinastia Sui, que fez uso extensivo do budismo como parte da sua política global de unificação do país sob o seu domínio centralizado. A situação durante a era Tang era um pouco mais complexa e confusa, em parte devido a uma política oficial que dava precedência ao taoísmo. Ao longo da dinastia, o nível de patrocínio oficial do estado e as suas atitudes em relação ao budismo foram influenciados por uma variedade de factores, incluindo as piedades pessoais de cada imperador. Num dos extremos do espetro estava a já mencionada Imperatriz Wu, que ofereceu um apoio generoso e fez uso extensivo do Budismo como uma fonte chave de legitimidade para o seu governo, que foi único nos anais da história chinesa devido ao seu género (ver Weinstein 1987: 37-47). No outro extremo do espetro estava o Imperador Wuzong (r. 842-845), que durante o seu curto reinado iniciou uma das mais abrangentes e devastadoras perseguições anti-budistas. Embora a perseguição se tenha estendido a outras religiões “estrangeiras”, especialmente o zoroastrismo, o maniqueísmo e o cristianismo nestoriano, os monges e mosteiros budistas foram os seus principais alvos. O imperador ordenou a destruição ou o encerramento total dos mosteiros e de outros estabelecimentos budistas, a laicização do clero e a expropriação das terras e propriedades monásticas (Weinstein 1987: 114-36; Ch’en 1964: 226-33). A perseguição foi de curta duração, uma vez que o imperador seguinte, Xuanzong (r. 846-859), mudou rapidamente a política do Estado e tornou-se um generoso apoiante do budismo. No entanto, para alguns historiadores, este acontecimento traumático marcou o fim de uma grande era na história budista chinesa. Escolas do budismo chinês Ao nível da elite, as fases formativas da história budista chinesa foram, em grande medida, moldadas pela formação de tradições exegéticas discretas e pela sistematização de paradigmas doutrinais ou soteriológicos explícitos. Estes processos encontraram as suas expressões mais notáveis no desenvolvimento das chamadas escolas ou tradições do Budismo chinês. No entanto, ao discutir estas escolas, temos de ter em conta que o termo chinês para “escola” (zong) nos coloca uma série de desafios, dadas as suas múltiplas conotações e os seus usos ambivalentes numa série de contextos. O mesmo termo pode ser utilizado para designar o objetivo essencial de uma determinada doutrina (que pode estar associada a uma escritura específica, como o Huayan jing), uma tradição de exegese canónica ou de reflexão filosófica (por exemplo, Madhyamaka), uma sistematização de doutrinas ou práticas particulares, ou um grupo de praticantes que aderem a um conjunto de ensinamentos ou ideais. Muitas vezes, envolve uma combinação de várias destas possibilidades interpretativas. De um modo geral, no contexto budista chinês, a noção de escola não implica uma tradição sectária distinta, por exemplo, ao longo das linhas que se desenvolveram no budismo japonês posterior, que veio a incorporar uma variedade de seitas institucionalmente independentes, como Sōtō Zen, Jōdo, Tendai, Shingon e Nichiren. Não obstante a existência de identidades de grupo distintas ou divisões faccionais – ao longo das linhas daquelas que separam Chan de Tiantai, por exemplo – as escolas do budismo chinês não se desenvolveram em seitas discretas que tinham estruturas eclesiásticas autônomas ou amarras institucionais que as diferenciavam da corrente principal monástica. De facto, todas elas eram partes integrantes de uma tradição budista inclusiva, largamente associada à ordem monástica e ao cânone budista, que era capaz de acomodar uma vasta gama de abordagens e perspectivas. Esta tradição budista mais vasta estava aberta a todo o tipo de gestos ecuménicos e amálgamas sincréticas. Também tinha a capacidade de absorver todos os tipos de debates doutrinários e desacordos faccionais. É, portanto, inútil ou enganador falar de monges (ou praticantes) Chan como um grupo distinto, quer no sentido sociológico, quer no sentido institucional, uma vez que não havia ordenações separadas ou outros marcadores de entrada oficial na escola Chan. Assim, os monges associados ao Chan (bem como às outras escolas) eram capazes de acomodar várias identidades sobrepostas, contextuais e porosas. Estas identidades envolviam a sua participação simultânea no movimento Chan mais alargado e numa das suas linhagens, bem como a sua pertença à ordem monástica e à tradição budista comum, com a sua história rica, saberes cumulativos, literatura expansiva e instituições multifacetadas (Poceski 2007a: 103-06). Da mesma forma, mesmo quando estabelecimentos religiosos específicos eram marcados como “mosteiros Chan”, estavam abertos a todos os tipos de praticantes. Por exemplo, quando um sistema de mosteiros Chan foi estabelecido durante a era Song, eles foram sub-sumidos sob a designação oficial de “mosteiros públicos” (shifang conglin). Estes mosteiros estavam abertos a todos os monges devidamente ordenados e em boa situação. Apenas a sua abadia estava limitada aos detentores da linhagem Chan, que eram também membros proeminentes da ordem monástica principal. O mesmo acontecia com os mosteiros Tiantai, que pertenciam a uma categoria separada de mosteiros de “ensino” (jiao) (ver Schlütter 2008: 31-54). Além disso, quando a escola Chan desenvolveu códigos monásticos específicos para a regulamentação deste tipo de mosteiro, basearam-se em grande medida no Vinaya, o código canónico de disciplina monástica, e incorporaram também uma variedade de costumes e rituais que não eram de modo algum exclusivos da escola Chan (ver Yifa 2002, especialmente o Capítulo 2). Durante o início da história do Budismo na China, especialmente durante o Período da Divisão, a elite monástica preocupou-se em alcançar o domínio dos principais princípios doutrinários e sistematizações filosóficas da tradição indiana Mahāyāna, que foram trazidos para a China em várias fases distintas. No início do século IV, após a chegada de Kumārajīva à China, as tradições dominantes de aprendizagem escolástica e exegese das escrituras giravam em torno do texto e das doutrinas da escola Madhyamaka. As primeiras apropriações chinesas das doutrinas Madhyamaka são evidentes nos escritos de Sengzhao (374-414) – um dos principais discípulos de Kumārajīva – que se distinguem pela sua complexidade intelectual e criatividade, bem como pelo recurso extensivo à terminologia chinesa nativa na exposição de ideias budistas subtis (ver Liu 1994: 37-81). Durante o século VI, os textos e as ideias do Yogā āra tornaram-se objeto de intenso estudo e reflexão, seguidos de uma crescente popularidade das doutrinas da natureza búdica e do tathāgatagarbha (ver Paul 1984, especialmente a Introdução). Estas tendências coalesceram em torno da formação das escolas Shelun e Dilun, que eram principalmente tradições eruditas de exegese canónica centradas em textos selecionados, que envolviam segmentos estreitos e pouco ligados da elite monástica, reconhecidos pela sua perspicácia intelectual e perícia escolástica. Como os nomes das duas escolas indicam, seus principais pontos de partida textuais eram o Daśabhūmikasūtra śāstra de Vasubandhu (Shidi jing lun, geralmente abreviado para Dilun) e o Mahāyān graha de Asa ga (She dasheng lun, ou Shelun). Durante as eras Sui e Tang houve um ressurgimento do interesse pela literatura e ensinamentos Madhya- maka, representado principalmente pelos escritos e actividades prolíficas do famoso erudito Jizang (549-623), que tinha ascendência da Ásia Central. A escola Sanlun (Três Tratados) de Jizang é muitas vezes rotulada como uma versão chinesa de Madhyamaka, embora por uma variedade de razões, incluindo a integração por Jizang da doutrina da natureza búdica na sua sistematização idiossincrática da filosofia budista, a simples equiparação de Sanlun com Madhyamaka seja questionada por alguns académicos. Outros também sugeriram que a escola Tiantai tem igual direito ao título de herdeira e criadora da herança filosófica da tradição Madhyamaka (Swanson 1989: 16). Durante o início da dinastia Tang, houve também um interesse considerável numa variedade de doutrina Yogā āra, trazida para a China pelo famoso tradutor e peregrino Xuanzang, frequentemente referida como a escola Faxiang (Caraterísticas do Dharma). Entre as principais caraterísticas destas escolas contavam-se as suas estreitas ligações a textos canónicos, modelos teóricos e sistemas de análise filosófica de origem indiana. Embora todas elas tenham gozado de uma popularidade considerável durante os seus tempos áureos, acabaram por ser largamente suplantadas pelas novas escolas ou tradições que se tornaram proeminentes durante o período Sui-Tang, nomeadamente Chan, Huayan, Tiantai e Terra Pura, a cada uma das quais é atribuído um capítulo separado na Parte II ou na Parte III deste volume. Não tendo equivalentes exactos no budismo indiano ou da Ásia Central, estas escolas vieram a representar formulações exclusivamente chinesas da doutrina e prática budistas. Entre elas, Huayan e Tiantai são geralmente consideradas como representando os pontos mais altos do desenvolvimento doutrinário no budismo da Ásia Oriental, enquanto Chan e Terra Pura incorporam as abordagens dominantes ao cultivo espiritual, embora seja discutível se a segunda constitui realmente uma escola distinta. Os copiosos textos, crenças, doutrinas e práticas das quatro escolas foram também exportados para o resto da Ásia Oriental, onde se tornaram elementos centrais ou inluentes na formação das tradições budistas nativas. (continua)
Hoje Macau Via do MeioO Budismo na História da China Por Mario Poceski (continuação do número anterior) Apesar do seu sucesso a longo prazo na China, no processo de crescimento e assimilação, o budismo teve de ultrapassar uma série de obstáculos. A um nível básico, havia problemas linguísticos, uma vez que o chinês literário era muito diferente do sânscrito, a principal língua canónica da tradição Mahāyāna. Havia também desafios formidáveis relacionados com a superação das vastas diferenças de perspectivas intelectuais, valores culturais e predilecções religiosas que separavam a China da Índia. Em contraste com a transmissão do budismo a muitas outras partes da Ásia, onde a sua chegada foi associada à entrada de uma cultura superior, no contexto chinês a religião estrangeira entrou num país (ou numa área cultural e geográfica distinta) com um sentido bem estabelecido de auto-identidade e ricas tradições filosóficas, políticas e religiosas. No esquema chinês, a sua civilização era suprema, assente em valores duradouros e sustentada por instituições excepcionais. Aos olhos de muitos ideólogos e intelectuais chineses, a sua cultura era gloriosa e completa. Também tinha sábios ilustres, como Confúcio e Laozi, que nos tempos antigos revelaram os padrões essenciais do comportamento humano adequado e exploraram os mistérios intemporais do Tao. Por isso, parecia indecoroso que os seus compatriotas adorassem uma estranha divindade estrangeira ou seguissem costumes estranhos importados de terras distantes. Com a crescente influência do budismo na China medieval, alguns dos literatos, especialmente aqueles com predilecções confucionistas, articularam uma série de críticas à religião estrangeira. O objeto mais proeminente das suas críticas contundentes foi a ordem monástica (Sangha). Inicialmente, o monaquismo representava um novo tipo de instituição, sem equivalente na sociedade chinesa. Consequentemente, foi identificado por alguns oficiais como sendo potencialmente subversivo, ou pelo menos irreconciliável com o sistema sociopolítico tradicional da China. Por exemplo, a renúncia monástica aos laços sociais e a observância do celibato foram criticadas como sendo incompatíveis com o ethos confucionista dominante, que privilegiava o patriarcado e sublinhava a primazia das relações sociais, especialmente as centradas na família. Consequentemente, os monges eram criticados por se desviarem das normas sociais estabelecidas. Eram acusados de não serem iliais, sobretudo por não se casarem e não produzirem descendência masculina. Numa sociedade que louvava a piedade ilial como uma virtude suprema – que estava ligada ao culto prevalecente dos antepassados – tais acusações representavam sérios impedimentos à ampla aceitação do budismo e ao crescimento da ordem monástica. O budismo foi também rejeitado por oficiais e literatos xenófobos devido às suas origens estrangeiras (lit. “bárbaras”). Aos seus olhos, isso tornava-o hostil aos valores chineses essenciais e inadequado como religião para o povo chinês. Além disso, de acordo com alguns dos seus detractores, a ordem monástica era economicamente improdutiva, impondo um encargo financeiro excessivo e injustificável tanto ao Estado imperial como ao público em geral. Outro ponto de discórdia, com sérias implicações políticas, era a insistência da ordem monástica na sua independência institucional – ou, pelo menos, numa aparência de independência – que colidia com as opiniões prevalecentes sobre a autoridade absoluta do imperador e o primado do Estado chinês. Por vezes, estas críticas conduziram mesmo a apelos explícitos à proclamação do budismo, o que, em duas ocasiões distintas, culminou em perseguições conduzidas pelo Estado, sob as dinastias Wei do Norte (446-451) e Zhou do Norte (574-577). No entanto, estes foram apenas contratempos temporários, uma vez que em ambos os casos as comunidades budistas locais conseguiram recuperar rapidamente (Ch’en 1964: 147-53, 190-94). No final do século VI, nas vésperas da reunificação da China sob a dinastia pró-budista Sui (581-618), o budismo já tinha estabelecido raízes duradouras em todo o território da China. Durante o Período da Divisão, o budismo chinês também passou a desempenhar um papel central nos vastos processos de difusão cultural e realinhamento político que aproximaram outras partes da Ásia Oriental da esfera de influência da China. As formas chinesas de budismo do norte foram introduzidas pela primeira vez na península coreana durante o século IV e, ao longo dos séculos seguintes, houve um fluxo constante de monges coreanos que foram estudar para a China (ver o capítulo de Sem Vermeerch neste volume). Depois, no século VI, o budismo foi também introduzido no Japão, onde rapidamente se tornou proeminente. Em pouco tempo, o budismo tornou-se a religião nacional de facto do Estado insular e, nas épocas seguintes, continuou a exercer uma influência notável na cultura e na sociedade japonesas (ver o capítulo de Heather Blair neste volume). Formação canónica e classificação doutrinal Muitos dos monges missionários que entraram na China trouxeram consigo uma série de escrituras e outros textos budistas. Durante vários séculos, até ao início da era Tang, a tradução de textos canónicos para chinês foi uma das principais preocupações do clero budista e dos seus patronos leigos. O enfoque nos textos sagrados e a reverência que lhes era dirigida reflectiam as atitudes budistas tradicionais, mas eram também influenciadas pela orientação esmagadoramente literária da cultura chinesa de elite, na qual a palavra escrita era tida em grande consideração. Em muitas ocasiões, o Estado foi um dos principais patrocinadores de vários projectos de tradução. Os principais exemplos disso são as volumosas traduções produzidas pelos grandes gabinetes de tradução dirigidos por Kumārajīva (344-413?) e Xuanzang (ca. 600-664), provavelmente os dois tradutores mais conhecidos de textos budistas para chinês. Tanto o missionário Kuchan como o monge chinês trabalharam sob os auspícios imperiais em Chang’an, a capital imperial, ou nos seus arredores. Os seus gabinetes de tradução oficialmente sancionados estavam situados em mosteiros apoiados pelo Estado, com numerosos monges proeminentes a servir como seus assistentes. Xuanzang também era famoso pela sua peregrinação épica à Índia, de onde trouxe de volta numerosos manuscritos budistas, enquanto Kumārajīva era um expoente proeminente da doutrina do vazio, tal como proposta pela escola Madhyamaka. A tarefa de traduzir textos budistas para chinês foi um empreendimento monumental, não só devido aos desafios linguísticos, conceptuais e transculturais acima referidos, mas também devido à enorme dimensão dos vários cânones produzidos pelas principais tradições do budismo indiano. A tradição Mahāyāna, que se tornou dominante na China, tinha um cânone aberto, e os seus adeptos eram criadores especialmente prolíficos da literatura canónica. Também temos de ter em mente que, ao mesmo tempo que o Budismo crescia na China, o movimento Mahāyāna indiano passava por importantes desenvolvimentos e mudanças de paradigma, com impactos notáveis nas esferas doutrinal, literária e institucional. Desenvolvimentos notáveis no budismo indiano que tiveram lugar durante os primeiros séculos da Era Comum, que vieram a exercer inluências significativas no budismo chinês, incluíram o aparecimento de escolas distintas de orientação filosófica, como Madhyamaka e Yogā āra, cada uma das quais produziu extensa literatura. A emergência do movimento tântrico durante o século VII, apesar da sua ênfase nas práticas rituais, levou à produção de ainda mais textos. Muitos destes textos foram, a seu tempo, traduzidos para chinês, o que levou à criação de comentários sobre as escrituras e outras obras exegéticas. Assim, o cânone budista chinês estava em constante expansão e evolução, acabando por se tornar uma das maiores colecções de literatura religiosa do mundo (ver o capítulo de Jiang Wu neste volume). Entre os numerosos textos canónicos traduzidos por Kumārajīva, Xuanzang e outros tradutores notáveis estavam escrituras inluentes como a Escritura do Lótus, indiscutivelmente a escritura mais popular na China (e no Japão), bem como a Escritura Huayan, a Escritura Vimalak rti e a Escritura Amitābha. A origem indiana de alguns destes textos (por exemplo, as Escrituras de Huayan) é incerta, enquanto outros (por exemplo, as Escrituras de Amitābha) não foram assim tão influentes no país onde nasceram, mas, por uma série de razões, captaram a imaginação religiosa dos budistas chineses e vieram a exercer uma imensa influência no desenvolvimento do budismo chinês (e da Ásia Oriental). Algumas obras canónicas, especialmente os textos volumosos e multifacetados, como as escrituras do Lótus e de Huayan, foram abordadas de vários ângulos e utilizadas para uma multiplicidade de fins. Em certos meios intelectuais, serviram de ponto de partida para discussões filosóficas sofisticadas, incluindo reflexões metafísicas sobre a natureza da realidade (ver os capítulos de Haiyan Shen e Imre Hamar neste volume), mas também inspiraram uma série de práticas cultuais. Além disso, impulsionaram criações artísticas requintadas: inscrições caligráficas, pinturas de cenas bem conhecidas das escrituras ou esculturas de divindades nelas representadas. O envolvimento do estado imperial com o cânone não se limitou ao patrocínio de projectos de tradução. Estendeu-se também à encomenda de catálogos de textos canónicos, bem como à compilação e publicação do cânone budista, conhecido como a “Grande Coleção de Escrituras” (Da zang jing). Por vezes, o governo também reivindicou uma prerrogativa auto-designada para tomar decisões sobre o que deveria ser incluído ou excluído do cânone. Quando um determinado movimento ou seita budista entrava em conflito com o governo, isso podia levar não só à sua proibição como heresia subversiva, mas também à proscrição dos seus textos, como aconteceu com o famoso movimento dos Três Estádios durante a era Tang (Hubbard 2001). Com o tempo, o cânone cresceu não só em tamanho, mas também em termos da variedade de textos nele contidos. Por fim, muitos textos compostos na China foram incorporados no cânone – ou melhor, nos cânones, uma vez que havia várias versões do cânone chinês. Isto incluiu numerosas escrituras apócrifas compostas na China, algumas das quais foram aceites como canónicas, tendo algumas delas se tornado bastante inluentes (ver Buswell 1990). Os casos em questão são o Tratado sobre o Despertar da Fé Mahāyāna (Dasheng qi xin lun) e a Escritura do Despertar Perfeito (Yuan jue jing), ambos os quais receberam extensa exegese e foram frequentemente citados numa grande variedade de textos que tratavam de temas filosóficos ou de questões relacionadas com o cultivo espiritual. Ainda mais numerosos foram os textos compostos por autores chineses, a maioria dos quais eram membros da ordem monástica. Exemplos deste tipo incluem várias obras históricas e a pletora de textos produzidos por monges associados a escolas budistas chinesas como Chan, Huayan e Tiantai. A proliferação de textos canónicos, juntamente com a variedade de diferentes perspectivas doutrinais e paradigmas soteriológicos neles expressos, tornaram-se repetidamente fontes de perplexidade para os budistas chineses, especialmente durante as fases iniciais da difusão da religião “indiana”. Toda a situação foi agravada pela forma aleatória como vários textos e doutrinas foram introduzidos na China. Por exemplo, qual era a relação entre as doutrinas Madhyamaka do vazio, das duas verdades e da origem condicionada, e as explorações matizadas do Yogā āra sobre a mente e a realidade em termos de categorias distintas como as três naturezas e as oito consciências? E as noções relacionadas com a natureza búdica e o tathāgatagarbha, que não eram muito influentes na Índia e entraram na China numa fase posterior do desenvolvimento doutrinal, mas que acabaram por ser aceites pela maioria dos budistas chineses como artigos de fé fundamentais e peças centrais da sua visão do mundo? Uma forma de lidar com esta proliferação de modelos teóricos e com a superabundância de significados foi a criação de taxonomias doutrinárias (panjiao, também designadas por classificações de ensinamentos), que se tornaram uma das marcas do escolasticismo budista chinês medieval. A criação de taxonomias doutrinais foi uma forma particular chinesa de lidar com a multiplicidade de textos e ensinamentos contidos no cânone, embora também estivesse relacionada com certas dificuldades religiosas e desenvolvimentos peculiares no seio da tradição budista medieval. De um modo geral, os esquemas classificativos reflectiam as sensibilidades intelectuais chinesas, especialmente a tendência para procurar a harmonia, a ordem e a inclusão. Adoptaram atitudes abrangentes e aparentemente ecuménicas em relação às tradições budistas cumulativas, que eram vistas como repositórios sagrados de verdades intemporais e significados sublimes. Afirmavam que, em última análise, existe apenas uma verdade, que é inefável e transcende todas as construções conceptuais. No entanto, há uma série de caminhos de prática e realização que conduzem à verdade múltipla, adaptados às aptidões espirituais distintas ou às capacidades de grupos distintos de praticantes. Ao mesmo tempo, os vários textos e ensinamentos foram organizados de forma hierárquica, de acordo com critérios pré-determinados e à luz de pontos de vista particulares. Por estes meios, as taxonomias também promoviam a superioridade de um determinado texto ou ensinamento, tornando-se assim ferramentas potencialmente úteis para o avanço de agendas proto-sectárias. Todos estes elementos são evidentes no proeminente esquema taxonómico criado por Fazang (643-712), uma figura de proa da escola Huayan e principal arquiteto do seu sistema doutrinário abrangente e sofisticado. Entre os cinco níveis de ensinamentos incluídos na taxonomia de Fazang, os ensinamentos da Escritura Huayan, que ele apelidou de “ensinamento perfeito”, ocupam a posição mais elevada. De uma forma que reflectia a sua própria perspetiva filosófica, Fazang também organizou os principais sistemas doutrinais do budismo indiano numa forma hierárquica, com a doutrina tathāgatagarbha acima da doutrinas das escolas Yogā āra e Madhyamaka (ver Gregory 1991: 127-43). Como é habitual nas taxonomias doutrinais chinesas, os ensinamentos Hīnayāna ou Pequeno Veículo foram colocados no fundo. Do mesmo modo, nos esquemas taxonómicos produzidos por Zhiyi (538-597) e pela sua escola Tiantai, a Escritura do Lótus, que serviu de texto fundador para o abrangente e engenhoso sistema de filosofia budista de Tiantai, foi exaltada como o texto mais supremo do cânone budista, embora com a ressalva de que nenhuma escritura, por mais pro- funda ou sublime que seja, tem o monopólio da verdade última. Para além disso, ao aplicar diferentes princípios de classificação, a escola Tiantai foi capaz de produzir várias nomenclaturas classificativas distintas. Isso é exemplificado pelos três esquemas taxonómicos conhecidos coletivamente como os “oito ensinamentos e cinco períodos”, que organizam a totalidade dos textos e ensinamentos canónicos em três grupos separados, em termos dos seus conteúdos doutrinários, meios de instrução empregues pelo Buda e os principais períodos na carreira de pregação do Buda. (continua)
Hoje Macau Via do MeioO Budismo na História da China Por Mario Poceski O budismo na China tem uma história notavelmente longa e complexa. Ao longo dos últimos dois milénios, a tradição budista exerceu uma grande influência em praticamente todas as facetas da vida religiosa chinesa, tanto a nível popular como de elite. Além disso, o budismo deixou impactos multifacetados e duradouros noutros aspectos da civilização chinesa, incluindo a história, a sociedade, as artes e a cultura. No processo de sua transmissão, aculturação e crescimento na China, o budismo passou por extensas mudanças e múltiplas adaptações. Como resultado do prolongado encontro com as tradições chinesas, as crenças, doutrinas, práticas e instituições budistas sofreram transformações de grande alcance, mesmo que, na sua maioria, mantivessem um sentido de identidade com a religião budista mais alargada que teve origem na Índia. Este processo de sinicação resultou na formação de uma tradição budista rica e diversificada que é quintessencialmente chinesa. O impacto destes desenvolvimentos também se fez sentir para além das fronteiras da China, uma vez que as formas chinesas de budismo foram transmitidas a outras partes da Ásia Oriental e do Sudeste Asiático que tradicionalmente se encontravam sob a esfera de influência cultural e política da China, nomeadamente a Coreia, o Japão e o Vietname. Consequentemente, o budismo chinês tem constituído tradicionalmente o núcleo de uma variedade de budismo pan-oriental asiático, e a familiaridade com os modelos e desenvolvimentos chineses é essencial para compreender as ricas heranças budistas de outros países da região. Introdução inicial do Budismo na China Os registos históricos chineses contêm uma série de referências dispersas sobre a introdução inicial do budismo na China, embora a sua veracidade possa ser posta em dúvida. Na verdade, não sabemos realmente quando o budismo “entrou” pela primeira vez na China; de qualquer forma, essa é uma noção problemática que pressupõe um único ponto de entrada oficialmente sancionado. Talvez o relato quase histórico mais conhecido desse género seja a história frequentemente citada sobre o sonho do Imperador Ming (r. 58-75 d.C.) acerca de uma divindade estrangeira mistificadora com tons dourados, que um dos conselheiros da corte identificou como sendo o Buda. Em resposta, diz-se que o intrigado imperador enviou uma expedição ao Ocidente em busca da divindade. A expedição terá trazido a primeira escritura budista a entrar na China, a Escritura em Quarenta e Duas Secções (Sishier zhang jing, que alguns estudiosos acreditam ser um texto apócrifo composto na China). De acordo com versões posteriores da história, a expedição enviada pelo Imperador Ming trouxe também dois monges budistas para Luoyang, a capital da China na altura. Em resposta, o imperador ordenou a construção do primeiro mosteiro budista, que foi mosteiro budista, que recebeu o nome de Mosteiro do Cavalo Branco (Ch’en 1964: 29-31; Zürcher 2007: 22). Embora esta história possa ser apócrifa, exemplifica uma tendência predominante para se concentrar na introdução “oficial” do budismo, que está ligada ao Estado chinês e ao seu governante. Tais associações tinham um valor propagandístico óbvio para a comunidade budista nascente no início da China medieval, uma vez que ajudavam a legitimar a nova religião. O tipo de estratégia de legitimação exemplificado pelas histórias contadas nas crónicas oficiais foi muitas vezes acompanhado de uma propensão para fazer recuar no tempo a chegada do budismo a solo chinês. Dadas as tendências chinesas predominantes para exaltar a antiguidade e evocar o passado historicizado, esta abordagem ajudou a melhorar as percepções públicas do budismo. Essas tendências são evidentes em duas lendas que atrasam a cronologia da chegada inicial do budismo e o ligam a monarcas famosos. A primeira lenda descreve a chegada de monges budistas à corte de Qin Shihuangdi (221-210 a.C.), o famoso primeiro imperador que uniu a China num único império (Zürcher 2007: 19-20; Ch’en 1964: 28). A segunda lenda estabelece uma ligação entre o rei Aśoka (r. 268-232 a.C.), o famoso monarca indiano que se celebrizou pelo seu generoso patrocínio do budismo, e a chegada de missionários budistas à China. Além disso, outra lenda frequentemente citada, mencionada em Hou han shu (História dos Han Posteriores), situa a chegada do Budismo à corte chinesa em 2 a.C.; neste caso, o primeiro transmissor foi um enviado da Ásia Central do reino de Yuezhi, que se situava em Bactria (Ch’en 1964: 31-32). Apesar das incertezas que ainda persistem quanto à fiabilidade histórica dos acontecimentos específicos descritos nestes relatos, podemos afirmar que o budismo já tinha pelo menos alguma presença na China durante o primeiro século da Era Comum. Existe mesmo a possibilidade de alguns budistas terem entrado na China mais cedo. A principal via de transmissão era a bem conhecida rede de rotas comerciais, normalmente designada por Rota da Seda, que se estendia desde a capital chinesa Chang’an até ao Mediterrâneo, ligando assim a China à Ásia Central, ao Sul da Ásia e ao Médio Oriente. O crescimento inicial do budismo esteve assim ligado ao comércio de longa distância, tendo a diplomacia também desempenhado um papel importante. Isto estava em sintonia com um padrão global significativo, uma vez que a disseminação do comércio ao longo da Rota da Seda estava intimamente relacionada com a transmissão e expansão de uma variedade de religiões, embora a guerra e os realinhamentos políticos também pudessem ter impactos notáveis. Nessa altura, impulsionado pelo seu carácter missionário, o budismo estava no bom caminho para se tornar uma religião pan-asiática, com um apelo universal e uma capacidade de transcender as fronteiras étnicas, linguísticas e culturais estabelecidas. A maioria dos primeiros monges e leigos budistas que entraram na China vieram com caravanas de mercadores da Ásia Central, uma área onde o budismo já tinha estabelecido uma forte presença. Consequentemente, embora a transmissão do budismo possa ser vista como o principal elemento de um intercâmbio cultural em grande escala que ligou a China e a Índia – duas grandes civilizações com longas histórias e culturas sofisticadas – os kushans, os sogdianos e outros centro-asiáticos foram também importantes actores históricos e intermediários fundamentais (ver o capítulo de Mariko Walter neste volume). Consequentemente, as listas de notáveis missionários budistas deste período são dominadas por monges da Ásia Central. Exemplos bem conhecidos dessa tendência são An Shigao (ativo por volta de 148-180), um parta que produziu as primeiras traduções de uma variedade de escrituras e estabeleceu padrões preliminares de tradução, e Lokak ema (n. 147?), um cita que alcançou grande aclamação pelas traduções de uma série de importantes textos Mahāyāna, incluindo as primeiras escrituras que pertenciam ao corpus da perfeição da sabedoria (ver Zürcher 2007: 32-36). No início, a maioria dos seguidores do Budismo eram presumivelmente imigrantes da Ásia Central. No entanto, desde cedo, a religião estrangeira atraiu também a atenção dos chineses nativos, um número crescente dos quais se inspirou nos seus ensinamentos e se sentiu atraído pelos seus rituais. À medida que os missionários estrangeiros introduziam uma variedade de doutrinas, práticas, textos e tradições budistas, os chineses faziam esforços concertados para se adaptarem à nova religião e compreenderem os seus elementos essenciais. Normalmente, os conceitos e ensinamentos budistas eram interpretados em termos de valores religiosos nativos e de estruturas intelectuais estabelecidas, e esta situação manteve-se durante um longo período. No final da dinastia Han, em 220, já havia uma série de estabelecimentos budistas em várias partes da China, e o cenário estava montado para o crescimento exponencial do budismo ao longo dos vários reinos e impérios que se ergueram e caíram durante o Período da Desunião (220-589). O colapso do domínio imperial da dinastia Han deu lugar a uma situação sociopolítica lânguida, marcada por um sentimento generalizado de fragmentação e pela emergência de múltiplos centros de poder político. As circunstâncias instáveis criaram também um clima de abertura intelectual e religiosa a novas ideias, que contribuiu para atenuar um sentimento persistente de superioridade cultural chinesa e de preconceito etnocêntrico. Este tipo de sentimentos foi acompanhado de um maior ceticismo em relação aos valores normativos e aos paradigmas sociorreligiosos de longa data. A longo prazo, a situação um tanto ou quanto lúbrica e imprevisível beneficiou provavelmente o crescimento do budismo. Crescimento durante o período de divisão Durante o Período da Divisão (também conhecido como Dinastias do Norte e do Sul), o crescimento do Budismo e a sua penetração na sociedade chinesa continuaram a um ritmo constante. No século VI, que marcou o fim deste período frequentemente turbulento mas também fascinante, o budismo tinha-se estabelecido como a tradição religiosa dominante na maior parte do reino chinês, concretizando assim um processo histórico prolongado a que Erik Zürcher chamou a conquista budista da China (Zürcher 2007). Numerosos seguidores e simpatizantes do budismo podiam ser encontrados entre os membros de todos os estratos da sociedade chinesa, desde os camponeses pobres até aos imperadores. As ideias e os artigos de fé budistas, incluindo as noções prevalecentes sobre renascimento, lei cármica, graça salvífica e perfetibilidade humana, passaram a permear a cultura chinesa e a influenciar a vida do povo chinês, mesmo quando este não subscrevia formalmente a fé budista. Durante este período, o budismo tornou-se também uma força dominante na vida intelectual e exerceu uma grande influência na sensibilidade estética e nas criações artísticas. Entre as recordações duradouras do extraordinário fervor religioso do período estão os objectos de arte budista que sobreviveram, muitos deles atualmente nas colecções de vários museus na Ásia, Europa e América. Existem também os notáveis complexos de santuários rupestres de Yun’gang e Longmen, que foram inicialmente construídos durante a dinastia Wei do Norte. A ordem monástica, que incluía tanto monges como monjas, também cresceu exponencialmente, com efeitos notáveis na economia chinesa (Gernet 1995: 3-25). Estes desenvolvimentos reflectiram-se na dimensão e esplendor arquitetónico dos principais mosteiros, especialmente os situados nas capitais das principais dinastias (por exemplo, Luoyang), que não eram muito diferentes dos palácios imperiais (ver Yang 1984). À medida que uma vasta gama de textos e ensinamentos budistas foi introduzida na China, os budistas chineses mostraram desde cedo uma clara preferência pela tradição Mahāyāna. Com o estabelecimento de um tipo inclusivo e eclético de Mahāyāna como a corrente principal do Budismo, os seus ideais centrais e crenças fundamentais tornaram-se parte integrante da paisagem religiosa chinesa. Isso incluiu a exultação do ideal do bodhisattva, especialmente a sua virtude central de compaixão universal, bem como a fé numa multiplicidade de Budas supremamente sábios e compassivos que se manifestam numa multiplicidade de mundos através de um cosmos infinito, repleto de virtudes sublimes e poderes inspiradores. O crescimento bem-sucedido do budismo baseou-se, em grande parte, no apelo considerável de seus ensinamentos, rituais e práticas, que surgiram numa profusão muitas vezes desconcertante de formas e variedades. Incluíam rituais solenes de arrependimento e outras cerimónias religiosas que eram frequentemente encenadas em grande escala, juntamente com raras reflexões filosóficas sobre a natureza da realidade. Havia também vários tipos de práticas devocionais, técnicas contemporâneas e observâncias éticas. O budismo também provou ser útil como instrumento de legitimação política, especialmente para os governantes das dinastias do norte, a maioria dos quais não eram chineses nativos. Para os Tuoba Wei e outras tribos governantes do norte, o ethos universalista do budismo era apelativo, pelo menos em parte, devido à sua utilidade sociopolítica, especialmente tendo em conta os desafios que tinham de enfrentar quando governavam populações étnica e culturalmente diversas. Exemplos impressionantes da estreita relação entre o budismo e o Estado eram as identificações ocasionais do imperador com o Buda (McNair 2007: 7-30). Para além disso, a fragmentação política desta época fomentou o aparecimento de variações regionais notáveis no seio do budismo chinês. Os estudiosos contrastam tipicamente o estilo de budismo do norte, com a sua ênfase na taumaturgia, ascetismo, envolvimento político e prática cúltica, com o tipo de budismo supostamente mais suave que prevalecia no sul, pelo menos entre as elites aristocráticas que se deleitavam com discussões intelectuais abstrusas, em grande medida inspiradas pela perfeição da literatura sapiencial (Ch’en 1964: 121-83). No entanto, o meio budista meridional não era de modo algum avesso à mistura entre religião e política. Por exemplo, deu origem ao mais famoso (ou notório) monarca budista da história chinesa: O Imperador Wu da Dinastia Liang (r. 502-549), conhecido pelas suas demonstrações públicas de piedade budista e pelo seu extravagante patrocínio de monges e mosteiros. Os variados elementos novos trazidos pelo budismo enriqueceram e alargaram os contornos da vida religiosa e cultural chinesa. Ao mesmo tempo, certos aspectos do budismo evocaram comparações ou analogias com elementos das tradições religiosas nativas, especialmente as do taoísmo. Após o seu surgimento inicial como religião organizada durante o segundo século da Era Comum, o taoísmo experimentou um desenvolvimento substancial durante o período de divisão, que em muitos casos se cruzou com o crescimento do budismo. Muitos chineses ignoraram as caraterísticas únicas ou as fronteiras distintas que separavam as duas religiões – especialmente a nível popular – o que inicialmente facilitou a aceitação e assimilação do budismo. Com o tempo, a relação entre os dois tornou-se cada vez mais complexa. De um modo geral, esta relação era de complementaridade, pois havia numerosos casos de influências e interações mútuas, mas também havia tensões e contestações, que giravam frequentemente em torno de competições contínuas pelo patrocínio (para as ligações rituais e textuais, ver Mollier 2008). (continua)
Hoje Macau Via do MeioContos tradicionais chineses recontados por Lin Yutang O Homem que vendia fantasmas (Do “Soushenchi”, século IV) Quando Sung Tingpo, de Nanyang, era ainda rapaz estava passeando certa noite quando encontrou-se com uma fantasma. Perguntou à aparição quem era e ela respondeu que era uma fantasma. – “Quem és tu?” perguntou por sua vez a fantasma. Tingpo mentiu e respondeu – “Eu também sou um fantasma.” A fantasma então quis saber para onde ele ia e Tingpo informou – “Estou a caminho para a cidade de Wanshih.” – “Também vou para lá,” afirmou a aparição. Assim puseram-se a caminhar juntos. Após uma milha, se tanto, a fantasma disse que era estupidez estarem andando ambos quando um podia carregar o outro, por turnos. – “óptima idéia,” achou Tingpo. A fantasma pôs Tingpo às costas e depois de ter andado uma milha disse – “Tu és pesado demais para um fantasma. Tens certeza de que és mesmo um fantasma ?” Tingpo explicou que ainda era um fantasma novo e que, por conseguinte, ainda pesava um pouco. Tingpo, por sua vez, pôs-se a carregar a fantasma, mas ela era tão leve que tinha a impressão de não estar a carregar nada. Assim foram caminhando, revezando-se, até que Tingpo perguntou à companheira qual era a coisa que metia mais medo aos fantasmas. – “Os fantasmas têm um medo horrível da saliva humana”, foi a resposta. Lá foram andando, andando, até que chegaram a um rio. Tingpo deixou que a fantasma fosse adiante e observou que ela não fazia barulho algum ao nadar, mas quando ele entrou n’água, o fantasma ouviu o estalar na água e pediu-lhe uma explicação. Tingpo explicou novamente – “Não se surpreenda, pois ainda sou muito novo e não estou ainda acostumado a atravessar uma corrente.” No momento em que se aproximavam da cidade, Tingpo começou a carregar a fantasma nas costas apertando-a fortemente. A fantasma pôs-se a gritar e a chorar lutando para apear-se, porém Tingpo apertou-a com mais força ainda. Ao chegar às ruas da cidade, soltou-o e a fantasma se transformou num bode. Tingpo cuspiu no animal para que ele não pudesse transformar-se outra vez, vendeu-o por mil e quinhentos sapecas e foi para casa. Eis a razão do ditado de Shih Tsung: “Tingpo vendeu um fantasma por mil e quinhentos sapecas.” É Maravilhoso ficar bêbado (Do “Soushenchi”, século IV) Ti Xi era um nativo de Chungshan e sabia fazer “vinho de mil dias”, capaz de manter um homem embriagado durante mil dias. Havia um homem no mesmo distrito chamado Xuan Shih que desejou provar o vinho em sua casa. No dia seguinte ele foi ver Ti Xi e pediu-lhe um trago; este último respondeu – “Meu vinho ainda não está completamente fermentado e não ouso oferecê-lo.” – “Quero prová-lo assim mesmo”, disse Xuan. Ti Xi não pôde dizer “não” e deu- lhe um copo. – “é delicioso,” observou Xuan, “quero outro copo.” – “Deve ir para casa agora,” replicou Ti Xi. “Volte outro dia. Só esse copo o embebedará por mil dias.” Xuan saiu parecendo um tanto tonto e ao chegar em casa morreu sob a influência do vinho. A família jamais desconfiou de nada: chorou-o e enterrou-o. Após três anos, Ti Hsi disse para consigo mesmo – “Xuan a esta hora já deve estar acordado. Preciso ir vê-lo.” Quando chegou à casa de Xuan perguntou se este estava. A família surpreendeu-se muito e disse – “Morreu há muito. Até já tiramos o luto.” Ti Xi ficou aflito e disse – “O quê! Foi efeito do meu maravilhoso vinho, capaz de embebedar um homem por mil dias. Ele deve estar a acordar agora mesmo.” Deu, então, ordens para que a família de Xuan abrisse o sepulcro e o caixão para ver o que tinha acontecido. Ergueu-se uma nuvem de vapores da tumba, nuvem que se elevou até os céus e em seguida procederam a abertura do caixão. Quando a tampa foi retirada, viram o homem “morto” abrir os olhos, bocejar e dizer – “Oh! como é delicioso ficar bêbado!” Depois perguntou a Ti Xi – “Que vinho é esse que tu fazes? Um só copo produziu esse efeito. Acabo de acordar. Que horas são?” As pessoas que estavam perto riram muito à custa dele mas, devido a forte exalação da tumba, cheiro intenso que lhes entrou pelas narinas, todos ficaram bêbados por três meses. É bom não ter cabeça (Do “Luyichi”, século IX) No tempo de Han Wuti (140-87 A. C.), Chia Yung de Qangwu servia como magistrado em Yüchang. Um dia saiu para dar combate a bandidos. Foi ferido e teve a cabeça decepada. Mesmo assim, o corpo montou a cavalo e voltou ao campo. Os soldados, e o povo que ali estava, ficaram admirados e Yung falou pelo peito – “Fui derrotado pelos bandidos e eles cortaram-me a cabeça. Digam-me francamente se é melhor ter cabeça ou ficar sem cabeça ?” Os homens lamentaram-no e disseram – “É melhor ter cabeça.” E Yung replicou – “Não penso assim. Andar sem cabeça também é bom.” Como a língua sobreviveu aos dentes (Liu Hsiang) Zhang Zhuang estava doente e Lao Zi veio visitá-lo. Este disse a Zhang Zhuang: – Estás muito doente. Não tens nada que dizer ao teu discípulo? – Ainda que não me pergutasses, eu ia dizer-te – replicou Zhang – sabes porque uma pessoa não deve descer do carro quando chega à aldeia? – Não significa este costume que as pessoas não devem esquecer sua terra de origem?- replicou Lao Zi. – Ah, sim… Mas deixe-me perguntar outra coisa; sabes porque uma pessoa deve correr ao passar debaixo de uma árvore alta? -Significa que se deve respeitar os mais velhos, disse Lao Zi. – Ah, sim…então Zhang Zhuang escancarou a boca e mostrou sua língua para Lao Zi, pedindo que ele olhasse bem lá dentro, dizendo: o que você vê agora? – A sua língua, mestre – disse Lao Zi. – Os meus dentes estão aí? – perguntou o velho. – Não – replicou Lao Zi. – E sabes porquê? – perguntou Zhang Zhuang? – Não durou a língua mais tempo por ser flexível? E não caíram os dentes por serem mais duros? – retorquiu Lao Zi. -Ah, sim… disse Zhang Zhuang – acabas de aprender o Tao. Não tenho mais nada te ensinar. A Coruja e a Codorniz (Liu Hsiang) Uma coruja em viagem encontrou com uma codorniz, e esta perguntou: “para onde vais, coruja”? A coruja respondeu: “vou para oeste, pois as pessoas da aldeia reclamam muito do meu piar”. Disse-lhe então a Codorniz: “aceite uma sugestão: muda o teu pio ou vão te odiar onde quier que vás”. O cego e o sol (De Su Dongpo) Era uma vez um cego de nascença. Nunca tinha visto o sol e perguntava às pessoas como era. Alguém lhe disse: “é como uma bandeja de latão”, e quando o cego, um dia, deu com uma bandeja pendurada, ouviu o som de metal e guardou-o como recordação do sol. Um dia, porém, tocaram sinos de bronze e o cego pensou que era o sol. Até que alguém lhe disse: “a luz do sol, na verdade, é como uma vela”. Um dia, o cego apalpou uma vela e pensou que esta era a forma do sol. Assim, um dia encontrou um pedaço de bambu no chão e pensou tratar-se do sol. O Sol é muito diferente do sino ou do bambu, mas o cego não pode ver isso porque nunca viu o sol. O Tao é mais difícil de ver do que o sol e por isso os homens são como o cego. Ainda que façam comparações, exemplos e tratados, o Tao será como o sol para o cego, parecido com uma bandeja, com um sino ou um bambu. Sempre imaginaremos uma coisa, esquecendo outra. Assim, os homens afastam-se cada vez mais da verdade, dando-lhe aparências através de nomes. Todos estes enganos são tentativas de compreender o Tao.
Hoje Macau Via do MeioFio escarlate – Contos tradicionais chineses, recontados por Fernanda Dias Volta a ter orgulho ao atear teu lume mesmo sozinho na casa vazia um vermelho sem brilho não te baste José Tolentino Mendonça, Teoria da fronteira Preocupações de um chefe militar O Governador Militar de Luzhou, de nome Xue Song, teve a dada altura uma serva de nome Hong Xian, cujo significado é Fio Escarlate. Tocadora exímia de cítara de Ruan, também possuía profundos conhecimentos dos clássicos e de história. O governador confiava-lhe a correspondência e a redacção das comunicações, de tal modo que tinha o hábito de se referir a ela como a sua “secretária particular”. Fio Escarlate possuía também, além da cultura, uma intuição singular. Uma vez, por ocasião de uma grande festa na residência, ela abordou Song para comentar: A melodia deste tambor dos bárbaros Jué soa tão melancólica! O tamborileiro deve estar preocupado por algum motivo. Xue Song, que também apreciava música, chamou de parte o homem, que lhe confidenciou ter falecido a esposa na véspera, mas, por precisar de trabalhar, não tinha pedido escusa para fazer o luto. Song logo o dispensou, mandando-o regressar a casa. Nessa época, as duas margens do Rio Amarelo não tinham ainda recuperado a paz da Era da Suprema Virtude, no dealbar do reino de Suzong, e o exército da Justiça Esclarecida estava acantonado na praça-forte de Fuyang. O governador Xue Song recebera ordem para aí reforçar a sua presença, e reduzir a influência dos rebeldes a Leste da montanha. Dado que o comando tinha também a função de reabilitar os sobreviventes da rebelião, a Corte ordenou a Song que casasse a própria filha com o filho de Tian Chengsi, governador militar de Weibo; e o filho com a filha de Linghu Zhang, governador militar de Huazhou: essas alianças matrimoniais aumentariam o poder das três praças-fortes, que se reforçariam umas às outras, à medida que os nascimentos viessem incrementar os laços de família. Acontece que o governador Tian sofria de um mal crónico, que se agravava com o vento quente do Verão. Por isso ele costumava dizer que, se fosse possível mudar-se para leste das montanhas, onde se respira ar fresco e puro, a sua vida poderia prolongar-se por mais algumas décadas. Tratou então de recrutar na sua Unidade os homens mais destemidos; reuniu três mil, a quem chamava “os rapazes da minha residência secundária” e a quem tratava com a máxima deferência. Desta ala destacava trezentos homens para a guarda da noite da sua morada, enquanto esperava que fosse determinado um dia propício para se instalar em Luzhon. Quando Xue Song soube disso, pareceu-lhe que estes preparativos belicosos não auguravam nada de bom. Maus presságios o assaltavam, dia e noite, a pontos de falar sozinho, resmungando sabe-se lá o quê, magicando sobre como poderia escapar ao perigo de dissidência da parte do vizinho. Uma vez, ao entardecer, Song calcorreava os cem passos, fazendo ressoar a bengala nas lajes do pátio do seu pavilhão pessoal, agitando as delicadas peónias nos vasos de faiança. A noite caía e o portal estava já cerrado, quando Fio Escarlate lhe tolheu o passo, dizendo: “Senhor, há um mês que não dorme nem se alimenta convenientemente. Sinto que algo de muito grave o perturba. São as notícias do país vizinho?” Xue Song desabafou: “O assunto comporta grande perigo. Não és tu quem poderá resolvê-lo.” Ao que a jovem replicou: “A minha humilde pessoa, talvez conheça o meio de vos livrar desse tormento, senhor. Não custa experimentar.” Song contou em então em pormenor do que se tratava e concluiu: “Se eu perder este território que herdei do meu avô, cairiam para sempre em ruína e esquecimento vários séculos de sacrifícios, actos meritórios, e altos favores do Estado! ” “Senhor, não vale a pena tanta aflição. Deixai-me ir a Weibo para colher informações e ver por mim própria qual a real situação. Se eu me meter ao caminho na primeira hora, estarei de volta na terceira, para receber as vossas instruções. De qualquer modo, esperai o meu regresso.” Fio Escarlate mostrava-se confiante. Song, preocupado, respondeu: “Não te sabia dotada de poderes sobrenaturais. Mas que poderei fazer, se não resultar e te acontece alguma desgraça? ” “Nada de mal me poderá acontecer durante tão curta viagem”, garantiu ela. Dito isto, entrou nos seus aposentos e preparou-se para partir. A missão de Fio Escarlate A bela Hong Xian levantou os cabelos, fez um rolo à moda dos Wuman e prendeu-o com um gancho de ouro em forma de Fénix. Vestiu uma túnica curta bordada a púrpura e enfiou umas sandálias leves, atadas com cordões azuis. Na faixa do peito escondeu um fino punhal ornado de figuras de dragões, e na fronte traçou o nome do deus da Estrela Polar. Fez uma última reverência ao governador, e, num ápice, desapareceu. Xue Song regressou ao seu quarto, fechou os dois batentes da porta, e cheio de apreensão, sentou-me de costas para o lampadário, para meditar na penumbra. Tinha o hábito de beber alguns goles de vinho antes de dormir, mas, naquela noite, ergueu a taça nove vezes, sem sentir embriaguez, e passou a noite em claro. De madrugada, ouviu gemer o vento vindo dos lados da aurora. Aproximou-se do átrio para averiguar; era Fio Escarlate que regressava, leve e silenciosa como uma folha caindo sobre a relva aljofrada de orvalho. Aliviado por vê-la regressar sã e salva, Xue Song perguntou como tudo se tinha passado. “De modo nenhum eu poderia falhar a minha missão, disse ela. “Nem morta nem ferida? Inquiriu Song, quase sarcástico.” Ao que a jovem respondeu: “Não chegámos a isso! Contentei-me em trazer como penhor um pequeno cofre em ouro que estava à cabeceira da cama”. E logo narrou a sua extraordinária aventura: “Cheguei à Sede de Comando de Weibo três quartos de hora antes da meia-noite. Andei por todo o lado sem obstáculos, e depois de ter atravessado várias salas, descobri o quarto de dormir de Tian Chengsi. Ouvia o ressonar dos homens da guarda pessoal dormindo na galeria, soando como fanfarra de trovões. Ouvia os soldados percorrendo as salas em redor do pátio, trocando palavras de ordem sibilantes como a nortada. Empurrei sem ruído o batente esquerdo da porta do quarto, levantei o cortinado do leito, e ali estava o velho Tian, ressonando, encolhido, a cabeça pousada sobre uma pele de rinoceronte pintada, com o toutiço preso numa rede de gaze amarela. Perto do travesseiro cintilava uma espada ornamentada com as sete estrelas da Ursa Maior. Junto da espada jazia escancarado um pequeno cofre em ouro no qual estavam gravados os oitos caracteres cíclicos da sua data de nascimento e o nome do deus da Estrela Polar, o que fazia daquele cofre um objecto mágico de valor pessoal. No interior cintilavam belas pérolas, e em redor pairava um perfume suave. Tian, que fazia gala do seu poder sob os estandartes de comando, e a quem todas as ambições eram permitidas, ali estava, mergulhado nos seus sonhos do Pavilhão das Orquídeas Perfumadas. Pressentiria ele que a sua vida estava à mercê das minhas mãos? Valeria a pena capturá-lo para depois o libertar, feri-lo, ou simplesmente, matá-lo? O tempo passava, a luz das candeias e das tochas retraía-se, os incensários já só continham cinzas. Surgiam por todo o lado guardas armados em profusão. Servas ainda ensonadas encalhavam nos biombos, afastando as cobertas com um último bocejo. Outras, semi-adormecidas, pegando nas toalhas, debandavam em busca de um gabinete de abluções disponível. Retirei as jóias ao comandante, pendentes e alfinetes; atei-lhe o casaco aos calções, tudo isto sem que ele acordasse, como se estivesse desmaiado. Já tinha decidido trazer o cofre. Saí pela Porta do Oeste da cidadela, pronta a percorrer duzentas léguas, quando vi o Terraço de Bronze lá no alto, e as águas do rio Zhang que velavam de bruma o horizonte a nascente. A madrugada tremeluzia sobre a planície, enquanto a lua descia, langorosa, e mergulhava na floresta. Empolgada pela alegria do alvorecer e pela perspectiva de regresso após a incerteza de tamanha aventura, quase esquecia o objectivo da minha missão. Mas, alertada pela gratidão que devo à vossa pessoa, persisti, e assim, depois da terceira hora, percorri em idas e vindas setecentas léguas, pelas cinco cidades daquela região, observando as movimentações de tropas, animada pela esperança de resolver as vossas preocupações.” Tendo compreendido o plano da sua fiel secretária, Song apressou-se a despachar um cavaleiro com a seguinte mensagem para Tian Chengsi: A noite passada, um estrangeiro vindo de Weibo veio confessar-me que se tinha apropriado de um cofre em ouro que estava à vossa cabeceira. Não podendo guardar um objecto roubado, e descobrindo pelos motivos esculpidos que se trata de um tesouro pessoal, venho restitui-lo a quem pertence, com os meus respeitos. Partiu a galope sob as estrelas o mais veloz dos mensageiros do comandante, e chegou ao destino antes da meia-noite. O exército inteiro andava ali numa roda-viva, em grande aflição, procurando o cofre sumido. O enviado bateu ao portal com o cabo do chicote, e solicitou uma audiência urgente. Quando viu Tian, que vinha precipitadamente ao seu encontro, estendeu-lhe de imediato o cofre, e de seguida a carta. Ao lê-la, Tian não cabia em si de comoção e espanto. Nessa noite reteve o mensageiro no seu pavilhão, mandou servir uma ceia de festa em íntima companhia, e cumulou-o de presentes. No dia seguinte, despediu-o, encarregando-o de levar a Xue Song trinta mil cortes de seda, duas centenas de cavalos de raça e outros objectos em conformidade com o que para ele representava o cofre restituído, acompanhados da seguinte mensagem: Já que eu tive a minha garganta e a minha cabeça à mercê das vossas boas graças, devo reconhecer o meu erro e não vos dar mais cuidados. Considero-me às vossas ordens, assumo os nossos laços de parentesco, e intento colocar-me ao vosso serviço, como o vazio do meio da última roda ao serviço do carro. Não saberia manejar o chicote de cocheiro senão para avançarmos. O serviço de ordem que estabeleci e a que dei o nome de “rapazes da residência secundária” tem como exclusiva intenção proteger o meu domicílio de salteadores e intrusos, e não esconde nenhum outro intuito. Deixemos daqui em diante que eles retirem as suas armaduras e regressem pacificamente aos trabalhos no campo. Quando, ao fim de alguns meses as relações amistosas entre o Norte e o Sul do rio Amarelo retomaram, Fio Escarlate avisou que ia partir. No momento da despedida Xue Song exclamou, mortificado: “Nasceste na minha casa há dezanove anos! Onde queres tu ir? Sabes que preciso de ti, como podes sequer mencionar que me deixas?” Um erro na vida passada Então, serenamente, Hong Xian, a bela Escarlate, fez a seguinte confissão: “Na minha vida anterior fui um homem, ervanário de profissão. Percorria montes e vales, lagos e ribeiras, colhia ervas medicinais que vendia nos mercados e feiras de cidades e aldeias. Acompanhava-me o Livro de Shennong, o Divino Jardineiro, no intuito de socorrer o povo quando alastravam epidemias e outras doenças. Um dia, quando passava por uma dessas aldeias, trouxeram-me uma mulher no termo da gravidez, que sofria de oclusão intestinal. Tratei-a com uma maceração em vinho de flores de dafne, o tóxico trovisco-louro. A dose que administrei não pode controlar o veneno, do que resultou a morte dos gémeos e da mãe. Responsável por esse triplo assassinato, fui condenado pelo tribunal infernal a renascer mulher! Devia ter nascido numa família vil, mas uma boa estrela fez-me vir ao mundo na vossa casa, onde cresci rodeada de afeição até aos dezanove anos, e onde recebi educação e favores. Felicitemo-nos, porque a Dinastia atingiu o cume do prestígio desde a sua fundação. É preciso agora pôr fim à desordem provocada por aqueles que perturbam a Ordem Celestial. Fui a Weibo para vos dar testemunho da minha gratidão. As muralhas e os fossos dos dois territórios estão daqui em diante protegidos, e a população está em segurança. Inspirar temor a um rebelde e assegurar a paz a um herói, não foi uma tarefa fácil para uma simples mulher como esta vossa serva. Assim resgatei a falta da outra vida. Esse feito permite-me purgar a culpa e restaurar o meu ser original. Poderei então renunciar à poeira do mundo, elevar o meu espírito fora do plano das coisas, purificar o meu sopro, e morar no exterior do ciclo Vida-e-Morte. “ Se ficares,” tentou ainda Xue Song “dou-te mil peças de ouro, para assegurar a tua subsistência num Ermitério.” Ao que Fio Escarlate respondeu: “como poderíamos nesta vida fazer planos para uma vida futura?” Compreendendo que não conseguiria retê-la, Song mandou servir um banquete de despedida na sala principal. Nessa noite, perante todos os convidados, Song pediu ao poeta Ling Chaoyang para compor um poema, pois queria cantar um dueto com a homenageada, e ouvi-la tocar cítara pela última vez. O poeta escreveu então estes versos: O canto da apanhadora de castanhas-de-água enche de dor a barca de madeira de magnólia. Ó torre dos cem passos onde se dissolve a alma semelhante ao fim da deusa da ribeira Luo na bruma do imenso azul de águas perpétuas. Acabada a canção, Xue Song não se coibia de mostrar a sua dor. Fio Escarlate, chorando, fez mais uma vez uma sentida reverência. Saiu da sala do banquete fingindo tropeçar de embriaguez e desapareceu. Hong Xian já não estava em parte alguma. «Hongxian» é um dos oito contos chuanqi recolhidos em Ganze yao (甘澤謠) ou Baladas da Chuva Oportuna, de Yuan Jiao (袁郊; fl. 868). A protagonista Hong Xian é um exemplo de nüxia (女俠) ou «cavaleira errante», uma personagem comum na ficção da dinastia Tang, ou seja, uma mulher intelectualmente e culturalmente realizada, que não se destaca pela sua beleza, mas pelos seus talentos.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioA Antecipação de um Encontro Num Leque de Zhu Ling Gao Gu (1391-1460), um político e calígrafo da dinastia Ming, escreveu em 1447 um comentário numa pintura do sacerdote daoísta Fang Congyi (1301-1392) que se encontra no Metmuseum, intitulada Montanhas enevoadas em que, a certa altura, diz: «Os portões da casa de montanha parecem tão quedos como se lá não estivera ninguém. Isto será ou um lugar eleito por imortais, ou alguma visão suprema do mundo dos mortais.» Admirando a cadeia montanhosa, Gao estende a dúvida à própria representação, envolta em nuvens e nevoeiros, em que as montanhas dir-se-iam dotadas de uma leveza que em breve as faria soltar-se e voar. Essas montanhas pesadas e leves ao mesmo tempo eram um limiar, um lugar propício para encontros desde os mais improváveis aos mais certos da amizade. Foi uma dessas reuniões menos assombrosas mas não menos deslumbrantes que ficou registada pelo pintor Zhu Ling (c.1635-c.1680) na pintura Embarcação de regresso às montanhas da Primavera, em formato de um leque dobrável (tinta e cor sobre papel, 18 x 50,5 cm, na Colecção Kaikodo, Hawai). Chegando a uma cadeia montanhosa junto de um rio vem, numa embarcação guiada por um barqueiro, um literato que ansiosamente vira a cabeça antes de chegarem, apesar de não estar ninguém na margem. Ao lado um poema breve: «Pinto uma cena sublime e eloquente, cedendo à fantasia de captar os sons das montanhas. Procurarei entregá-la a este homem das montanhas sonoras, que chegará nesta altura para nos encontrarmos e depois regressará.» Pode-se imaginar que esse habitante das montanhas, que uma vez por ano desce para um encontro, seja alguém como o seu amigo próximo Wan Shouqi (1603-1652) que, dois anos após a queda dos Ming, se torna um monge e retirado se dedicou só às artes do pincel. E que por vezes ilustrou histórias daoístas na fronteira da credibilidade, como a de Fei Changfang, possuidor de um bastão que lhe permitia viajar inacreditáveis distâncias. Zhu Ling não só seguia nas suas pinturas o estilo característico de Huang Gongwang (1269-1354), o mestre autor do rolo Refúgio nas montanhas Fuchun, com a acumulação de pequenos traços separados cun, «rugas», para descrever as formas das montanhas, como o seu nome alternativo (zi) deriva de uma frase sua. Adoptado por uma família rica, em criança, teria exclamado na altura: Huang gongwang zi jiu, «O senhor Huang há muito desejava ter um filho», cuja primeira parte Huang gongwang seria adoptada como o seu nome, e a última Zijiu como o seu nome alternativo. Zhu Ling tirou dessa frase dois caracteres do meio, Wangzi para serem o seu nome alternativo. No leque que pintou antes do figurado momento de antecipação da reunião, Zhu Ling anotou: «Durante o último Inverno de 1661 pintou e, divertindo-se, inscreveu-a para seu grande prazer, o seu discípulo Zhu Ling de Changzhou.»
Hoje Macau Via do MeioComo Gu Bing Iluminou a História da Pintura Michal Piotr Boym (Bu Migé, 1612-1659), o missionário jesuíta polaco, no seu infatigável labor de mostrar à Europa a língua, os costumes, a fauna e a flora que encontrava no Império do Meio, incluiu entre as inumeráveis revelações que acompanhavam o inédito mapa da Magna Cathay, cinco figuras desenhadas por um autor local e impressas em xilografias. Entre ela a flor mu furong, o hibiscus mutabilis, ou rosa da China, que possui a admirável capacidade de, a cada manhã apresentar uma cor branca ou rosada e no fim do dia, ao entardecer, revelar a cor vermelha como se fora um prémio outorgado à sua existência sob a luz solar. O autor dessas figuras, o pintor de Hangzhou Gu Bing, activo entre 1594 e 1603, realizara uma proeza notável e inédita na história da arte em qualquer lugar do mundo, ao juntar à enumeração dos nomes e biografias breves de pintores, poemas, comentários e ilustrações exemplares do seu estilo e modo de proceder. Reproduzidas em xilogravuras, no formato portátil de 26,9 x 41,9 cm, tinham o potencial de mostrar a um muito maior número de observadores uma arte até então reservada a um número limitado de pessoas. A esse conjunto de cento e seis pintores, apresentados de modo cronológico, desde o lendário Gu Kaizhi à corrente dinastia Ming, editado em 1603, deu-lhe o nome de Lidai minggong huapu, «Álbum de senhores famosos através de sucessivas dinastias». De notar a palavra huapu, «registo de figuras» já usada antes para designar um tratado, uma colecção, um guia ou um manual. E o mais raro uso da palavra laudatória e reverencial gong, «senhores», para referir os pintores. O álbum alcançaria grande divulgação, chegando até às ilhas do Japão onde foi particularmente acarinhado pelos pintores proíbidos de viajar ao estrangeiro. Conhecido também como Gushi Huapu, «Álbum de pinturas do mestre Gu», mesmo quando a figura do seu autor, que seguiu um percurso incomum, foi por vezes esquecida. Gu Bing ficara orfão desde muito cedo mas tivera a sorte de ter um avô que o quis poupar ao fastidioso trabalho de decorar os clássicos, imprescindível para se apresentar aos exames imperiais e em vez disso lhe deu a ver os mais excelentes exemplos de caligrafias e pinturas. E depois, ele mesmo se deslocou às mais veneradas montanhas e visitou ilustres literatos, acabando por fixar a sua morada numa cabana no sopé da montanha Wu, a sudeste do Lago do Oeste. Em 1599 aceitou, brevemente, uma posição na Cidade Proíbida no Wuying dian, o «Pavilhão do valor militar», na altura usado pelo imperador para se reunir com literatos como pintores ou poetas e onde terá tido oportunidade de observar reconhecidas obras da história da pintura. Que depois usou na sua obra, onde os traços esquemáticos na madeira jamais poderiam imitar a complexidade das pinturas mas seriam um precioso auxiliar da memória.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioGu Kuang, que tornou o corpo leve como uma pluma Wang Qia, o pintor daoísta da dinastia Tang (618-906), seria recordado como criador de uma «escola» de pintura designada pomo, «tinta espalhada» que valorizava o gesto espontâneo do pincel para tornar visível algo que é naturalmente invisível. Um modo de representação que buscava a comunicação entre o espírito do autor e o do observador convidado a discernir a finalidade da criação através da exposição do processo. Uma disciplina exigente, reconhecida até séculos depois por ilustres teóricos como Dong Qichang (1555-1635), que colocava muito alta a barreira a partir da qual essa pintura podia ser exercida: nada menos que no modo de Wang Wei (701-61), o reconhecido fundador da pintura dos letrados: «Só depois de alguém ser como Wang Wei é que poderá usar a maneira pomo de Wang Qia». Exemplos oriundos do pincel desse criador são hoje dificilmente observáveis e da ténue biografia dele preservada, resta quase só o sedutor eco de um nome que remete o ouvinte para a expressão da substância do espírito. Há porém um outro nome que nas histórias da pintura lhe está muitas vezes associado, o de Gu Kuang (727-821), de quem as pinturas hoje também são raras mas de quem se guardaram poemas que indiciam uma imponderável presença. Em Um poema do palácio, nota-se a disponibidade para sentir a torrente abundante mas subtil da beleza captada pelos sentidos, como a que vem no vento ou num som: «Numa alta torre de jade, meio caminho para o céu, começa uma canção soprada na flauta,/ O vento entrega no palácio o som harmonioso do palrear e dos risos das raparigas que a habitam./ O brilho do luar resplandece enquanto se escuta o pingar da noite escoando-se na clepsidra,/ As águas, rebrilhantes como cristais, dir-se-iam uma cortina desenrolada sobre o rio do Outono.» Mas o poeta e pintor, desiludido com as intrigas que embaraçavam as suas funções ao serviço do palácio, retira-se do serviço público e passará a usar o nome bem daoísta Buweng, o «Velho recluso». Gu Kuang obtivera o grau jinshi, que lhe permitia ser um funcionário imperial em 757, no tempo instável do imperador Tang Suzong, cujo reinado (756-62) ficaria marcado pela preocupação em acalmar a revolta de An Lushan que se alastrara como um fogo florestal. Revolta que obrigara à abdicação do seu pai, o imperador Xuanzong e à consequente condenação à morte da sua concubina favorita, um facto relatado no plangente poema de Bai Juyi (722-846), Canto do remorso perpétuo. Nascido em Yunyang (actual Danyang, Jiangsu) após uma vida entristecida pela morte de um filho, desloca-se com a família em 792 para a cadeia montanhosa de Maoshan, a Sul de Jurong, onde receberá a graça de um novo filho aos setenta anos. Quando vai para lá, escreve um propósito: «Escondido em Maoshan; para tornar metais básicos em ouro,/ Para tornar o corpo leve como uma pena.»
Ana Cristina Alves Via do MeioOutra vez os Piratas Ana Cristina Alves – Investigadora Auxiliar e Coordenadora do Serviço Educativo do Centro Científico e Cultura de Macau Têm corrido rios de tinta sobre a fundação de Macau, assim como sobre a fundação de Lisboa. Esta última os académicos consideram mais prudente, depois de devidamente analisadas as etimologias, ficar a dever-se a fenícios ou tartéssios (Rocha, 2007), mas que a lenda remete poeticamente para Ulisses, desde Luís Vaz Camões até Fernando Pessoa. Assim se lê no início do Canto Oitavo de Os Lusíadas, que os primórdios de Portugal encontram as suas raízes míticas em Luso, filho e companheiro de Baco, e as de Lisboa em Ulisses (Camões, 1997, VIII.5): Ulisses é que faz a santa casa À deusa que lhe dá língua facunda; Que se lá na Ásia Tróia insigne abrasa, Cá na Europa Lisboa ingente funda. Nada mais a propósito do que os ilustres lusitanos descenderem de deuses, bem como os seus espaços geográficos terem sido fundados por heróis gregos de inigualável valor como Ulisses, cujo engenho guerreiro e arte de marear a todos excedia. Daí que alguns séculos volvidos Fernando Pessoa, no segundo poema épico que os portugueses mais valorizam, a Mensagem se refira a Ulisses apontando para a sua dimensão mitológica e para a realidade incontornável que esta sustenta, já que “o mito é o nada que é tudo” (Pessoa, 1986, 24): Assim a lenda se escorre A entrar na realidade E a fecundá-la decorre. Em baixo, a vida, metade De nada, morre. Os mitos e as lendas oferecem à realidade muitas vezes o melhor que esta tem, na sua qualidade de projeção revelam ideias e ideais, fornecendo um importante manancial onde se manifesta o inconsciente, mas também o consciente coletivo de um povo. Ulisses guerreiro e navegador é o patriarca encontrado à medida para fundar a capital de um país de indomáveis guerreiros que fez frente a poderosos impérios, como muçulmano, o romano e, mais tarde, o espanhol e que havia de descobrir o caminho marítimo para a Índia, aportando mais além na Ásia Extrema, sem nunca perder a sua faceta cavalheiresca. Esta seria magistralmente louvada no Canto VI de Os Lusíadas no episódio dos doze de Inglaterra, entre os quais figurava Magriço. Eles saberiam defender a honra das suas damas à espada, revelando uma valentia imensa, narrada por Veloso (Camões, 1997, VI. 48): Este, que socorrer-lhe não queria Por não causar discórdias intestinas, Lhe diz: Quando o direito pretendia Do Reino lá das terras Iberinas, Nos Lusitanos vi tanta ousadia, Tanto primor e partes tão divinas, Que eles sós poderiam, se não erro, Sustentar vossa parte a fogo e ferro. Este cavalheirismo havia de ser uma constante no imaginário português, não apenas com damas, mas com todos aqueles que se vissem em apuros. Assim sucedeu em Inglaterra, assim haveria de suceder no Sul da China, quando os portugueses auxiliaram os chineses a limpar os mares de piratas e em recompensa lhes foi permitida uma existência sossegada em Macau. De facto, mesmo que estando apenas perante um mito ou uma lenda, esta só por si já teria a sua razão de ser, pois revela uma determinada imagem coletiva que os portugueses têm de si mesmos e que muito contribui, em termos de valor existencial, para orientar a conduta da população: eles estão aí onde são precisos, no socorro aos mais desprotegidos, numa mão a espada, na outra o coração. Esta é imagem que uma vez mitificada, pode ser aquele “nada que é tudo”. Relativamente à fundação de Macau, o estudioso (a), depara-se com uma interessante mistura entre o mito e a realidade: primeiro vem a realidade, depois surge a lenda, e esta última terá infinitamente mais peso, senão atente-se nas seguintes informações de pensadores e historiadores insuspeitos. Luís Gonzaga Gomes , em Macau – Um Município com História (1997) no capítulo “Teses divergentes sobre a origem de Macau ”, defende que existem várias teses sobre a fundação de Macau enquanto espaço chinês governado por portugueses a partir de 1557, sendo que esta data não exclui que os portugueses já tivessem andado por aquelas paragens desde 1555, altura da carta de Fernão Mendes Pinto, onde pela primeira vez surge citado o nome de Macau relacionado com os portugueses. Quanto às teses são três as mais credíveis: “1) Macau foi doada aos portugueses; 2) esta doação foi feita em recompensa dos serviços prestados por portugueses na destruição de piratas; e 3) a ocorrência teve lugar no ano de 1577” (Gomes, 1997, 26) Mais adiante, depois de apresentar diversos pontos de vista, ligados a letrados notáveis, tanto portugueses, incluindo Álvaro Semedo, como chineses, defende que “Macau fora doada aos portugueses, pelo motivo já exposto, qual seja o de recompensar o feito valioso da destruição da pirataria nos mares do sul da China ” (Gomes, 1997, 37). Neste sentido, é mencionado por vários autores, e de forma tão deturpada quanto expetável, o nome do temível chefe dos piratas, que terá valido o famoso édito imperial ou chapa, ele é denominado Tchang Si Lao, ou Sam Chislao, ou Charempum, Litauquiem, ou Similao (Gomes, 1997, 37). Tal constatação não exclui outras leituras mais comerciais da obtenção desta plataforma, que também foi comercial, na China, sendo inclusive avançado um preço para o pagamento do foro do chão em Da Ming Shi (大明史História da Dinastia Ming) citado por A.J. H. Charignon, de 20 mil taéis de direitos por Macau. (Gomes, 1997, 34). Vai-se encontrar a coexistência de ambas as versões em Cronologia da História de Macau. Séculos XVI-XVII organizada pela historiadora Beatriz Basto da Silva (1992),que faz remontar um importante episódio de aniquilamento de certo e perigoso pirata Lam Chin a 1547, numa descrição do funcionário chinês Lam Hei-Yuen, que remata do seguinte modo “ e assim os piratas que tinham agido à vontade durante 20 anos foram vencidos num só dia. Isso mostra que os Fu-Lan-Chi3 não são piratas, mas pelo contrário protegem-nos contra eles, eles não fizeram nenhum mal ao nosso povo, mas até fizeram bem aos chineses” ( Yuen apud Silva, 1992, 33), sendo apresentado na mesma cronologia o ano de 1554 como aquele em que se dá o primeiro acordo verbal por Leonel Sousa, que legaliza a situação do pagamento de direitos comerciais e “os portugueses são autorizados a comerciar livremente na zona que viria a ser Macau”. (Silva, 1992, 39), datando de 1557 nesta cronologia o estabelecimento dos primeiros portugueses em Macau, data que concorda com a avançada por Luís Gonzaga Gomes, bem como no suicídio do pirata Chan-Si-Lau e na derrota dos piratas do Rio das Pérolas, além de Leonel Sousa “obter autorização para firmar o assentamento anterior dos portugueses em Macau (…) em princípio esta é a data aceite para a Fundação de Macau.” (Silva, 1992, 43). Na realidade, verifica-se a coexistência das duas origens mais prováveis para a fundação de Macau na Cronologia de Beatriz Basto da Silva. Pergunta-se: teria sido o acordo verbal e o subsequente assentamento, com o pagamento do foro do chão, possível se não tivesse sido verificado o efetivo auxílio dos cavalheiros e guerreiros portugueses às autoridades chinesas, através da ajuda concreta aos comerciantes locais que se viam constantemente pressionados por corsários que então abundavam nos mares da China e do sul da China? A limpeza do terreno marítimo, proporcionada por uma desenvolvida tecnologia, ao tempo a melhor do mundo, muito contribuiu para que ajuda se tivesse tornado concreta e real, merecendo aos poucos dum povo do extremo oeste da Europa a confiança de um outro do extremo leste da Ásia e só porque foi realmente útil no combate aos piratas a realidade se pôde tornar uma lenda, já que desde o início qualquer das leituras era válida, mas parcial. A fim de obter uma leitura correta e imparcial do que se passou, crê-se que é necessário conjugá-las, compreendendo o quão decisivo foi no bom relacionamento dos dois povos o combate aos piratas, sem eles, não teria havido Macau, enclave governado por estrangeiros em território chinês. Referências Bibliográficas Aresta, António, Celina Veiga de Oliveira. 2009. Macau, Uma História Cultural. Lisboa: Editorial Inquérito, Fundação Jorge Álvares. Barros, Leonel. 2003. Memórias Náuticas – Macau. Macau: Associação Promotora da Instrução dos Macaenses (APIM). Camões, Luís Vaz. 1997. Os Lusíadas. Introdução por Silvério Augusto Benedito. Notas de António Leitão. Braga: Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses. Gomes, Luís Gonzaga. 1997. Macau – Um Município com História. Organização, Prefácio e Notas de António Aresta e Celina Veiga de Oliveira. Macau: Leal Senado de Macau. Pessoa, Fernando. 1986. Mensagem.使命啟示 Tradução de Jin Guo Ping (金國平). Macau: Instituto Cultural. Rocha, Carlos. 2007. “Etimologia de Lisboa, outra vez”. In Ciberdúvidas da Língua Portuguesa. https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/etimologia-de-lisboa-outra-vez/19407, acedido a 30 de junho de 2025. Silva, Beatriz Basto da. 1992. Cronologia da História de Macau. Séculos XVI-XVII: vol. 1. Macau: Direcção dos Serviços de Educação. Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, sendo as opiniões expressas no artigo da inteira responsabilidade dos autores” https://www.cccm.gov.pt
Hoje Macau Via do MeioContos tradicionais chineses recontados por Lin Yutang O Julgamento entre duas mães (Salomão na China) Em Yingchuan dois irmãos moravam na mesma casa e suas esposas estavam esperando filhos. A mais velha perdeu o filho logo ao nascer, mas não deixou ninguém saber do fato. Quando a mais nova deu a luz ao seu filho, a mais velha roubou-o a noite, e assim questionaram sua posse durante três anos. Quando o caso foi levado ao conhecimento de Huang Pa, Primeiro Ministro, ele ordenou que a criança fosse colocada a dez passos de distância das duas mães. A um sinal seu as duas mulheres correram para o menino e pareciam dispostas despedaçá-lo de preferência a abandoná-lo. A criança chorava desesperadamente e a mãe receou feri-la, abandonando-a então. A mulher mais velha ficou muito satisfeita ao passo que a mais nova parecia inconsolável. Nesse momento Huang Pa declarou – “A criança é filha da mais jovem”. Processou a mais velha e ela foi, de facto declarada culpada. (Do Fengshut’ung, século II) A Cinderela chinesa Certa vez, antes de Qin (222-206 a.C.) e Han havia um chefe das cavernas da montanha a quem os nativos chamavam chefe Wu. Ele se casou com duas mulheres uma das quais morreu deixando-lhe uma menina chamada Yeh Hsien. Essa menina era muito inteligente e habilidosa no bordado a ouro e o pai amava-a ternamente, mas, quando êle morreu, viu-se maltratada pela madrasta que seguidamente a forçava a cortar lenha e mandava-a a lugares perigosos para apanhar água em poços profundos. Um dia, Yeh Hsien pescou um peixe com mais de duas polegadas de comprimento e que tinha as barbatanas vermelhas e os olhos dourados. Trouxe-o para casa e o pôs numa vasilha com água. Cada dia o peixe crescia mais e tanto cresceu que, finalmente, a vasilha não lhe serviu mais e a menina o soltou numa lagoa que havia por trás de sua casa. Yeh Hsien costumava alimentá-lo com as sobras de sua comida. Quando ela chegava à lagoa, o peixe vinha até a superfície e descansava a cabeça na margem, mas se alguém se aproximasse não aparecia. Esse hábito curioso foi notado pela madrasta que esperou o peixe sem que este lhe aparecesse. Um dia, lançou mão de astúcia e disse à enteada: – “Não está cansada de trabalhar? Quero dar-lhe uma roupa nova.” Em seguida fêz Yeh Hsien tirar a roupa que vestia e mandou-a a várias centenas de li para trazer água de um poço. A velha, então, pôs o vestido de Yeh Hsien e estendeu uma faca afiada na manga da blusa; dirigiu-se para a lagoa e chamou o peixe. Quando o peixinho pôs a cabeça fora d’água, ela o matou. Por essa ocasião, o animalzinho já media mais de dez pés de comprimento e, depois de cozido, mostrou ter sabor mil vezes melhor do que qualquer outro. E a madrasta enterrou seus ossos num monturo. No dia seguinte, Yeh Hsien voltou e ao aproximar-se da lagoa verificou que o peixe desaparecera. Correu para chorar escondida no meio do mato e nisso um homem de cabelo desgrenhado e coberto de andrajos desceu dos céus e a consolou, dizendo: – “Não chore. Sua mãe matou o peixe e enterrou os ossos num monturo. Vá para casa, leve os ossos para seu quarto e os esconda. Tudo o que você quiser peça que lhe será concedido”. Yeh Hsien seguiu o conselho e pouco tempo depois tinha uma porção de ouro, de jóias e roupas de tecido tão caro que seriam capazes de deleitar o coração de qualquer donzela. Na noite de uma festa tradicional chinesa, Yeh Hsien recebeu ordens de ficar em casa para tomar conta do pomar. Quando a jovem solitária viu que a mãe já ia longe, meteu-se num vestido de seda verde e seguiu-a até o local a festa. A irmã, que a reconhecera virou-se para a mãe dizendo: – “Não acha aquela jovem estranhamente parecida com minha irmã mais velha ?” A mãe também teve a impressão de reconhecê-la. Quando Yeh Hsien percebeu que a fitavam, correu, mas com tal pressa que perdeu um dos sapatinhos, o qual foi cair nas mãos dos populares. Quando a mãe voltou para casa encontrou a filha dormindo com os braços ao redor de uma árvore; assim pôs de lado qualquer pensamento que pudesse ter sido acerca da identidade da jovem ricamente vestida. Ora, perto das cavernas, havia um reino insular chamado T’o Huan. Por intermédio de forte exército governava duas vezes doze ilhas e suas águas territoriais cobriam vários milhares de li. O povo vendeu, portanto, o sapatinho para o Reino T’o Huan, onde foi ter às mãos do rei. O rei fêz as suas mulheres experimentá-lo, mas o sapatinho era cerca de uma polegada menor dos das que tinham os menores pés. Depois fez com que o experimentassem todas as mulheres do reino sem que nenhuma conseguisse calçá-lo. O rei, então, suspeitou que o homem que o tinha levado o tivesse obtido por meios mágicos e mandou aprisioná-lo e torturá-lo. Mas o pobre infeliz nada pôde dizer sobre a procedência do sapato. Finalmente, emissários e correios foram enviados pela estrada para irem de casa em casa a fim de prenderem quem quer que tivesse o outro sapatinho. O rei estava muito intrigado. A casa foi encontrada, bem como Yeh Hsien. Fizeram-na calçar os sapatinhos e eles couberam perfeitamente. Depois ela apareceu com os sapatinhos e o vestido de seda verde tal como uma deusa. Mandaram contar o caso ao rei e o rei levou Yeh Hsien para seu palácio na ilha juntamente com os ossos do peixe. Assim que Yeh Hsien foi levada, a mãe e a irmã foram mortas a pedradas. Os populares apiedaram-se delas, sepultando-as num buraco e erigindo um túmulo a que deu o nome de “Túmulo das Arrependidas”. Passaram a reverenciá-las como espíritos casamenteiros e sempre que alguém pedia-lhes uma graça no sentido de arranjar ou ser feliz em negócios de casamento tinha certeza de que sua prece era atendida. O rei voltou à sua ilha e fêz de Yeh Hsien sua primeira espôsa. Mas durante o primeiro ano de seu casamento, ele pediu aos ossos do peixe tantos jades e coisas preciosas que eles se recusaram a conceder-lhe mais desejos. Por isso o rei pegou os ossos e enterrou-os bem perto do mar, junto com uma centena de pérolas e uma porção de ouro. Quando seus soldados se rebelaram contra ele, foi ter ao lugar em que enterrara os ossos, mas a maré os levara e nunca mais foram encontrados até hoje. Essa história me foi contada por um velho servo de minha família, Li Shih-yüan. Ele descendia de um povo chamado Yungchow e sabia de muitas historias estranhas do sul. (Do “Yuyang Tsatsu”, século IX) A Lenda de Ch’ienniang Ch’ienniang era filha de Chan Yi, um oficial em Hunan. Tinha um primo chamado Wang Chou, rapaz inteligente e bonito. Tinham sido criados juntos desde a mais tenra idade e como seu pai gostasse muito do menino tinha dito que faria de Wang Chou seu genro. Ambos ouviram essa promessa e, como a menina fosse a única filha e estivessem sempre juntos, cada dia mais se afeiçoavam um ao outro. Já agora eram dois jovens e continuavam, entretanto, a se tratar como parentes íntimos. Infelizmente o pai da jovem era o único que nada percebia. Um dia, um jovem oficial veio pedir-lhe a mão da filha e ignorando, ou esquecendo, sua promessa primitiva, ele consentiu fazendo com que Ch’ienniang, desesperada entre o amor e a piedade filial, quase morresse de dor, causando tal desgosto ao rapaz que êle resolveu sair para outras terras de preferência a ficar ali e ver sua amada tornar-se a esposa de um outro. Assim, inventou um pretexto e informou o tio de que precisava ir para a capital. Como o tio não conseguisse persuadi-lo a ficar, deu-lhe dinheiro e presentes e preparou um banquete de despedida para ele. Wang Chou, triste por ter de separar-se da amada, pensou na partida durante toda a festa dizendo a si mesmo que era melhor partir do que viver ali vendo seus, sonhos despedaçados. Assim Wang Chou saiu num barco da tarde e antes de estar a algumas milhas de distância já a noite caíra. Disse ao barqueiro que amarrasse o barco na praia e descansasse a noite. Não conseguiu dormir e, por volta da meia-noite, ouviu passos ligeiros que se aproximavam. N’alguns minutos o som pareceu bem perto do barco. Ergueu-se e perguntou – “Quem pode ser a esta hora da noite ?” – “Sou eu, Ch’ienniang,” foi a resposta. Surpreso e encantado, levou-a para o barco e ali ela lhe contou que esperara ser sua esposa. que o pai não tinha procedido bem para com ele e que ela não suportava a separação. Receava, outrossim, que ele, só e viajando por terras estranhas.. pudesse ser tentado a suicidar-se. Eis porque recaíra na censura da sociedade e na cólera dos pais e viera seguí-lo para onde quer que fosse. Assim ambos ficaram satisfeitos e continuaram a viagem juntos: para Szechuen. Passaram-se cinco anos de felicidade e ela o presenteou com dois: filhos. Porém não tinham notícias da família e diariamente ela pensava nos pais. Era essa a única coisa que lhes empanava a felicidade.. Ele: não sabia se os pais ainda viviam e quais as condições e, certa noite, começou a contar a Wang Chou como se sentia infeliz e, por ser a filha única, como se considerava culpada de grande impiedade- filial por ter deixado os velhos pais dessa maneira. – “Tem um coração cheio de amor filial e estou de acordo com você,” disse-lhe- o marido. “Já se passaram cinco anos; certamente não nos guardam rancor. Voltemos para casa.” Ch’ienniang exultou ao ouvir isso e assim fizeram todos os preparativos para voltar para casa com os dois: filhos. Quando o bote chegou à cidade natal, Wang Chou disse a Ch’ienniang – “Não sei qual o estado de ânimo de seus pais. Será melhor que eu vá para verificar.” Seu coração palpitava ao aproximar-se da casa do sogro. Ao vê-lo, Wang OIou ajoelhou-se pedindo perdão; Ao ouvir isso, Chang Yi surpreendeu-se e disse – “De quem esta falando? Ch’ienniang jaz inconsciente em sua cama nesses últimos cinco anos, desde que você nos deixou. Ela jamais abandonou o leito. – “Não estou mentindo,” disse Wang Chou. “Ela está passando bem e esperando por mim no barco”. Chan Yi não sabia o que pensar, por isso, mandou duas servas ver Ch’ienniang. Elas a viram sentada, bem vestida e feliz e até disse às servas para que falassem com seus pais o quanto os amava. Amedrontadas, as duas servas correram para casa para dar essas novas e Chang Yi ainda ficou mais intrigado. Nesse ínterim, aquela que estava na cama ouviu as novidades e parece que sua enfermidade desapareceu e os olhos brilharam. Levantou-se da cama e vestiu-se, ajeitando-se diante do espelho. Sorrindo e sem proferir uma palavra, encaminhou-se diretamente para o barco. A que estava no barco, preparava-se para tomar o caminho de casa e assim encontraram-se nas margens do rio. Quando as duas chegaram perto uma da outra seus corpos confundiram-se num só, com roupas em duplicatas, e surgiu a antiga Ch’ienniang tão jovem e encantadora como nunca. Os pais ficaram satisfeitíssimos, porém pediram aos servos que guardassem segredo e nada dissessem aos vizinhos a respeito do que acontecera, a fim de que não houvesse comentários. Eis porque ninguém, exceto os parentes mais chegados da família Chang, jamais soube desse estranho acontecimento. Wang Chou e Ch’ienniang viveram como marido e mulher durante mais de quarenta anos antes de morrerem. (Supõe-se que esta história tenha ocorrido em torno de 690 d.C.) (dinastia Tang)
José Simões Morais Via do MeioHuzhou, capital dos pincéis A noroeste da província de Zhejiang visitamos Huzhou, atraídos por um dos tesouros da pintura chinesa, os pincéis. Após a compra do mapa, percebemos pelas manchas verdes estar esta cidade recheada de jardins. De triciclo chegamos a um hotel de duas estrelas, apesar da oferta de alojamento no de quatro estrelas, com os descontos, apenas por mais uns trocados nos permitir gozar uma qualidade superior de conforto. Com as malas já no quarto, é na recepção que ficamos a saber da existência na cidade de um Museu do Pincel. Considerada a capital dos pincéis, pois segundo um ditado, os pincéis de Huzhou, o papel de arroz Xuan de Xuanzhou (Anhui), a tinta da China de Huizhou (também em Anhui) e a pedra Duan para a tinta de Zhaoqing (Guangdong), são os quatro tesouros da pintura chinesa. Logo na viagem para o hotel deu para perceber ser a cidade pequena pois, desde o terminal de autocarros, em dez minutos estamos no centro, percorrendo metade da avenida principal que longitudinalmente a divide. Agora caminhando, vamos ter a um canal com esplanada nas margens. Parece um bom local para na sombra, tranquilamente refrescar do Sol do meio-dia. Estamos no jardim Hebin. Ainda a sentar e logo de longe nos acenam com um copo e uma garrafa termos. Após um gesto afirmativo, trazem um copo cheio de folhas de chá verde e água quente num recipiente térmico, que sobre a mesa fica para nos servirmos. Logo aparecem engraxadores que por um reminbi retiram o pó aos sapatos, dando-lhes uma pequena polidela. Os vendedores de óculos rapidamente atormentam o repouso e um tocador de ehru experimenta, com uns sons de amplificador, cativar-nos a usufruir de umas quantas músicas. Mas a sua pequena introdução à música de “Yue liang wo di chin” (A Lua Representa o meu Coração) revela ser mais incomodativa do que cultural. Espreitando uma movimentada, mas estreita rua pedonal onde, apesar dos edifícios em redor estarem desenquadrados do ambiente, uma recente porta de dragão (longmen) dá acesso à parte da cidade onde um estar de tempos já longínquos se perpetua. Outro longmen, este antigo e feito de madeira, dá a entrada ao templo Fumiao, que será do mesmo período e onde o pavimento sofre arranjos. No exterior, um sem número de vendedores de antiguidades espraiam os artigos pelo chão. Passamos por lojas de roupa e entre duas dessas lojas, um cubículo com um balcão onde algumas pessoas esperam que do grelhador a carvão em brasa fiquem prontas as espetadas de diferentes pedaços de carne enfiada num longo palito. Petiscamos carneiro para enganar o estômago, pois começam a ser horas de jantar. Vamos caminhando atentos aos restaurantes, que ao longe se distinguem, pois marcados por lanternas redondas vermelhas. Avenida dos hotéis É na rua Hongqi Lu, onde se encontram a maioria dos hotéis, que devido ao aspecto escolhemos o restaurante, após passar por muitos de comida rápida, tanto chineses, como das duas principais marcas estrangeiras. À entrada, uma parte de venda para o exterior com muita procura, indica-nos estar num bom lugar. Os pensamentos disfarçam o tempo de espera, quando nos dizem ser o restaurante de pré-pagamento e que não há lista para escolher os pratos. As carnes já cozinhadas são na sua maioria de churrasco e estão expostas no sector de vendas, por detrás de vidros. Cinco e meia da tarde e já com as senhas compradas para a refeição, escolhida pelos pratos das mesas dos clientes ali a jantar. É-nos servido tofu embebido em molho de soja e uma malga de rissóis cozidos com recheio de carne, a boiar numa sopa. Comida barata para servir de jantar após o emprego. Embebidos no sabor, somos interrompidos por uma pedinte, corcovada, de certa idade, que parece pedir dinheiro. Oferecendo o que estamos a comer, logo toda a comida é esvaziada para a tigela e nem o molho sobra. Perante tamanha fome, constatada mais tarde quando a vimos numas escadas a comer, ainda lhe oferecemos dinheiro para outra refeição. A mendicidade é um fenómeno recente na China, apesar de ter havido sempre dois tipos de pessoas que pelas ruas andam e que parecem pedintes. Aqueles que vagueando vivem pelo destino, indiferentes e cujas pessoas lhes oferecem os alimentos e os que de lugares mais pobres migram para as cidades. Claro que também já há pedintes de profissão. O som de música sai das lojas e o restaurante de comida rápida estrangeira usa uma potente coluna onde uma jovem empregada dança ao som de músicas para crianças, espevitando-as a acompanhá-la. Procuramos provar as especialidades da terra e por isso, no restaurante do hotel Huzhou, de duas estrelas, provamos pratos referenciados como de cozinha local. Foi-nos servido uma flor de peixe, prato de peixe que depois de assado num molho agridoce, fica retorcido com a sua pele a servir de cálice em forma de flor e assim apresentado. Mas é no hotel Zhebei, de quatro estrelas, que uma cozinha requintada nos dá a provar um tofu que guardamos com saudade. O preço é mais barato que o anterior. Este restaurante fora recomendado por duas jovens, que esperavam os seus amigos e a quem uma empregada pede ajuda para comunicar connosco, quando um dia subimos ao segundo andar de um restaurante de comida cozinhada na mesa, o vulgar hot-pot. Ao perceber que apenas servem espetadas de vegetais, de carne ou marisco, para serem cozidas na panela aquecida sobre um bico de gás no centro da mesa, levantamo-nos e preparamo-nos para sair. Solicitamente nos perguntam em inglês a razão de irmos embora. Aí entram as duas jovens estudantes universitárias em Hangzhou, que de férias viviam em casa da família. Explicando não ser esta a comida que nos apetece, aproveitamos para perguntar por outros restaurantes de comida regional. Como que desculpando Huzhou por não ter muitos restaurantes, apresentam como o melhor e de preço barato o restaurante do hotel Zhebei. Após um lauto manjar e como ainda é cedo, já que na China se começa a jantar às cinco da tarde, voltamos à avenida e logo a seguir ao hotel de onde vínhamos, surge um outro, também de quatro estrelas, o Internacional Huzhou. Continuando pelo mesmo passeio, encontramos a loja de seda Tian Yun. Depois uma loja de pincéis, onde há para todos os tamanhos e preços, chegando pincéis com cabo em porcelana, ou de bambu, a custar milhares de yuans. Museu dos pincéis Mergulhando no passado de Huzhou, entrando por uma das ruas mais pitorescas da cidade. Uma igreja cristã domina a rua e em redor, lojas ocupam a parte debaixo das casas de dois andares. Pelos solidéus nas cabeças de algumas pessoas, percebemos que alguns dos negócios pertencem a muçulmanos. Depois de recusar ser fotografado, um vendedor de tangerinas oferece-nos uma deliciosa peça de fruta. Continuando, a curiosidade leva-nos ao encontro da ponte de pedra com três arcos construída em 1539, com algumas pedras ornamentais incrustadas. Daí e para Sudoeste, vamos até ao jardim da casa museu do pintor e calígrafo Zhao Mengfu (1254-1322). Este era nativo de Wuxing (hoje Huzhou), tendo como nome de cortesia Zi’ang e pseudónimos Songxue, Oubo e Shuijinggong Daoren. Era um príncipe descendente da dinastia Song, mas que serviu a dinastia Yuan dos mongóis como oficial na Academia Hanlin. Como pintor, era especialista na representação de cavalos e usava recriar temas e estilos dos antigos mestres, com cores simples para fazer as paisagens. Além de mestre nas técnicas da dinastia Tang, foi um exímio calígrafo, considerado um dos quatro principais na História da Caligrafia Chinesa. Já no jardim, a serenidade com que o verde da vegetação se conjuga no lago com o castanho dos pavilhões de repouso, ou nas madeiras das casas de chá, leva-nos a ali ficar longo tempo, recriando figuras com a reflexão nas águas das pedras ornamentais. Temos de sair do jardim para visitar o Museu dos Pincéis que, apesar de estar englobado no mesmo recinto, tem uma entrada autónoma. Os pincéis de Huzhou estão referenciados como os melhores do país e por isso há que ver como são feitos. Em termos cronológicos, o pincel foi inventado nos finais do século III a.n.e. por Meng Tian, um comandante militar da dinastia Qin. No entanto, percebe-se pelos vasos pintados de diferentes culturas neolíticas, que deve ter existido há pelo menos cinco mil anos. Por isso, Meng Tian estará ligado, não à invenção mas, ao aperfeiçoamento dos pincéis. Também a cidade de Huzhou não é o verdadeiro local de produção dos melhores pincéis, mas ganhou esse título já que em tempos antigos Shanlian, no concelho de Wuxing, província de Zhejiang, se encontrava sobre a sua jurisdição. Os pincéis de caligrafia aí feitos tiveram o seu apogeu durante a dinastia Yuan e ainda hoje estão considerados entre os melhores de toda a China. Quatro etapas são necessárias para se fabricar o pincel hu, e usa-se a pelagem do coelho, da cauda de doninha e dos pêlos de cabra. Após a gordura ser retirada com sumo de tília, são cortados os pêlos em tamanhos iguais e entram numa solução para os limpar. Depois são unidos na base com goma arábica e após secar, enfeixados com um atilho que os une ao cabo de bambu. Com o pincel feito na sua estrutura passa-se a outra fase do processo. Os pêlos são besuntados numa papa feita de algas para os colocar juntos e com o enrolar de um fio é-lhes criada uma ponta, a parte mais importante do pincel. Esse fio que passa pelos pêlos, numa volta dá a forma de cone e serve também para retirar o excesso da papa aglutinadora. Com extrema paciência e habilidade, os pincéis são limpos, arredondados, criando-lhes uma ponta, ficando com uma boa elasticidade. Depois o pincel, já pronto, passa para as mãos de outro funcionário, onde no cabo de bambu são gravados os caracteres Tian Kuan Trade Mark, que substituiu a antiga marca “Dupla Cabra”. Os pincéis (hao) de pêlo de cabra são macios e servem para escrever pequenos caracteres, os de pêlo de coelho são duros e os da cauda da doninha estão entre os dois, tendo grande elasticidade servem para a caligrafia de grandes caracteres. Por vezes faz-se uma mistura dos diferentes pêlos, usando-se também os de outros animais. Há pincéis de todo o tipo de tamanhos, servindo uns para pintar e outros para caligrafar. Os melhores para a caligrafia chinesa são os de mistura de pêlo de coelho e cabra. Os pincéis hu foram muito usados na corte imperial. Na outra parte do museu, está a sala do pintor Zhao Mengfu com os seus utensílios e algumas obras, onde também não faltam as pedras gravadas. Apesar do museu ter uma secção de vendas, após sair do recinto museológico e já na rua, um conjunto de lojas dedica-se à venda de produtos para pintura chinesa. Deixando os pincéis, visitamos o mercado e atravessando uma ponte de madeira em forma de zig-zag, percorremos outra parte antiga da cidade. Estendais de roupa escondem vendedores com sacos cheios de folhas de chá acabadas de colher e que pertencem à primeira colheita do ano, a melhor. A nossa estadia em Huzhou serve também para visitarmos locais a uma hora de autocarro, como Anji, para ver o museu do Bambu e já fora da província de Zhejiang, em Jiangsu, Dingshan, referenciada como o local de produção dos melhores serviços de chá. A margem Sul do Taihu é a linha de fronteira entre o distrito de Huzhou, na província de Zhejiang e a província de Jiangsu, por onde o lago Tai se expande.
Hoje Macau Via do MeioO pensamento durandiano e o imaginário chinês (2) Por Chaoying Durand-Sun (continuação do número anterior) De 1994 a 2016, entre quatro “continuos” de tradução, Hommes, bêtes et démons de Qian Zhong-shu para a Gallimard, Florilège de Su Dong-po para a You-Feng, L’Épopée des Trois Royaumes de Luo Guan-zhong em cinco volumes para a You-Feng, e uma série de adaptações de romances clássicos chineses em Lian huan hua (banda desenhada chinesa) novamente para a You-Feng: Publiquei três monografias, incluindo duas sobre o imaginário rabelaisiano que alargam as ideias desenvolvidas na minha tese: Les Mythologies de Rabelais (1996); Rabelais. Mythes, images et sociétés (2000); e uma sobre o imaginário chinês aplicando a mitocrítica comparativa e a mitanálise: Essais sur l’Imaginaire chinois. Neuf Chants du Dragon. Mas o que me ensinou muito sobre a investigação do imaginário foi a minha participação em cerca de vinte colóquios internacionais ou publicações universitárias no seio da vasta rede de CRIs, tanto franceses como estrangeiros (chineses, belgas, romenos, italianos, espanhóis, canadianos, etc.), o que me permitiu aprofundar os meus conhecimentos sobre o estudo do imaginário através de uma variedade de temas: “Un Saint Antoine chinois au Gobi” (in Saint Antoine entre mythe et légende, 1996); “L’âge d’or, du Tibre au Fleuve Jaune” (in L’Imaginaire des âges de la vie, 1996); “Le statut saturnien de l’âge de la Grande Concorde (Datong)” (in L’Âge d’or, 1996), “Esquisse d’une structuration de l’imaginaire chinois” (in Imaginaire et Littérature II. Recherches Francophones, 1998); “Rédimer Babel, une Pentecôte rabelaisienne?” (in Études sur l’Imaginaire. Mélanges offerts à Cl.-G. Dubois, editado por G. Peylet, 2001); “Atlantides chinoises” (em Atlantide et autres civilisations perdues de A à Z, editado por J.-P. Deloux e L. Guillaud, 2001) e “L’Atlantide du… Pacifique?” (in Atlantides imaginaires, réécriture d’un mythe, editado por Ch. Foucrier e L. Guillaud, 2004); “Une méthode directive de la naissance et de la disparition des choses: Le Livre des Mutations (Yijing) (in Loxias: Éclipses et surgissements de constellations mythiques. Littérature et contexte culturel, champ francophone, editado por A. Chemain-Degrange, n.º 2-3, 2002); “Essai sur l”androgynie’ du vêtement en Chine” (in L’Entre-deux de la mode, editado por F. Franchi e P. Monneyron); “La pérégrination vers l’Ouest (Xiyou-ji) et les Cinq Points Cardinaux chinois” (in Imaginaires des Points Cardinaux. Aux quatre angles du monde, editado por M. Viegnes, 2005); “Un chaudron rempli de jiao-zi, ou l’imaginaire nocturne de la cuisine chinoise” (in Les Cahiers européens de l’Imaginaire, n.º 5, março de 2013, pp. 188-194); “Les structures fondamentales de l’imaginaire dans L’Épopée des Trois Royaumes de Luo Guan-zhong. Contribution à la mythocritique durandienne” (in “Actualité de la mythocritique. Hommage à Gilbert Durand”, Esprit Critique, editado por F. Gutierrez e G. Bertin, 2014 e a sua versão italiana: Le structture fondamentali dell’immaginario in L’Epopea dei Tre Regni di Luo Guan-zhong Contributo alla Mitocritica durandiana”, trans. M. Pia Rosati, in Atopon, 2015 e Posfácio para Actualité de la mythocritique. Hommage à Gilbert Durand); “Le mythe du Graal dans la légende arthurienne européenne et dans L’Épopée des Trois Royaumes de Luo Guan-zhong”, comunicação para as Journées de Littérature, Culture et Tradition arthurienne, Congrès ibérique, editado por J. Miguel Zarandona, Universidade de Valladolid-Soria, 18-19 de novembro de 2016, etc. Escrevi também quatro artigos sobre a receção da obra de G. Durand: “Gilbert Durand et l’Imaginaire chinois” (in Symbolon, Bachelard: Art, Littérature, Science, 8/2012); “Gilbert Durand et l’imaginaire de l’Orient” (in L’Imaginaire durandien. Enracinements et envols en Terre d’Amérique, editado por R. Laprée e Ch. Bellehumeur, 2013) e “Gilbert Durand au château de Novéry” (em Gilbert Durand. De l’enracinement au rayonnement, textos compilados por A. Chemain-Degrange e P. Bouvier, 2016), e “L’art et la pensée: univers pictural et anthropologique de Gilbert Durand” (em Gilbert Durand Peintre, catálogo da exposição “L’Aurore dans le crépuscule”, editado por C. Durand-Sun, 2016), que acaba de ser publicado graças ao generoso apoio dos amigos de Gilbert Durand. Para além destes trabalhos individuais, realizámos também duas publicações e um livro em colaboração com G. Durand: “Renversement européen du dragon asiatique”, publicado três vezes, em Rôle des Traditions populaires dans la construction de l’Europe. Saints et Dragons, n.º 86-87-88, Cahiers internationaux de symbolisme, 1997; Rôle des Traditions populaires dans la construction de l’Europe. Saints et Dragons. Tradition Walonne, n.º 13, 1997; “Il Drago in Asia e in Europa” (trans. M. Pia Rosati, in Atopon Psicoantropologia Simbolica e Tradizioni Religiose, vol. VI, 2000 e 2007); “Il Drago in Asia e in Europa” (trans. VI, 2000 e 2007); “Du côté des montagnes de l’Est (Taishan). Imaginaire chinois de la montagne” (in Montagnes imaginaires, montagnes représentées, 2000); Mythe, thèmes et variations (2000), que se compõe de dez estudos sobre o imaginário, ligados pelo fio vermelho da “viagem antropológica” do imaginário, tratando sucessivamente do labirinto, do Minotauro, do deus mercurial, a árvore divina no imaginário ocidental, os orixás brasileiros, o Graal em todos os seus estados, a “identidade cultural” chinesa, a “grande concórdia” confucionista e o mito antonino chinês, o Tripitaka no Gobi em busca de sutras budistas… A maior parte destes contributos são uma aplicação, no texto e no contexto chineses, da mitodologia durandiana, da mitocrítica (de textos literários ou artísticos) e da mitanálise (de contextos socioculturais), pacientemente e meticulosamente desenvolvidas e postas em prática pelo próprio fundador do CRI, através dos seus numerosos livros e artigos: desde Le Décor mythique de la Chartreuse de Parme (1961), até L’Introduction à la mythodologie (1996), passando por Science de l’homme et tradition. Le nouvel esprit anthropologique (1975); Figures mythiques et visages de l’œuvre. De la mythocritique à la mythanalyse (1979); L’Âme tigrée (1980), etc. A nossa abordagem pretende ser comparativa, multidisciplinar, antropológica, fenomenológica ou “psicagógica”, com o objetivo de fornecer uma visão geral do pensamento chinês e do imaginário chinês, e de estudar as estruturas antropológicas do imaginário chinês através da literatura, mitologia, filosofia, sociologia, etnologia, antropologia, etc. – “O imaginário é o lugar do interconhecimento”, disse G. Durand – a fim de realçar a importância do imaginário chinês na história da China. Durand – para realçar o carácter primordial e fundamental do imaginário chinês, que não privilegia as estruturas heróicas do Regime Diurno, ao contrário do imaginário ocidental, mas dá maior importância às estruturas místicas e sintéticas do Regime Noturno. Ao contrário do Ocidente, geralmente conquistador, a China preocupa-se mais frequentemente com o equilíbrio, o diálogo, o convívio e a harmonia. Ao contrário da busca filosófica ocidental desde Sócrates, que se centra na imutabilidade do ser, o paradigma filosófico veiculado e transmitido pelo núcleo do pensamento chinês, o I Ching, o Livro das Mutações, preocupa-se com a impermanência das coisas e o domínio da mudança. Este facto é demonstrado pela dualidade chinesa não exclusiva, mas implícita, que está na base do I Ching, e que é tradicionalmente representada pelos dois princípios fundamentais ou duas forças primordiais, Yin e Yang, cuja união perfeita forma a famosa imagem de Tai Ji, o Governante Supremo, que é o modelo simbólico do Dao (Tao): o caminho, o método, a lei… para gerir e harmonizar as dez mil coisas do mundo. Confúcio disse: “Aos quinze anos, eu me dediquei ao estudo. Aos trinta, minha mente estava decidida. Aos quarenta, superei minhas incertezas. Aos cinquenta, descobri a vontade do Céu…”. Se pudermos extrapolar, se acreditarmos no grande mestre do pensamento chinês, Wu chi er zhi tain ming (五十而知天命), aos cinquenta anos, deveríamos descobrir a vontade dos Céus, e o CRI também deveria conhecer o desígnio celestial em relação ao seu próprio destino. O que é certo é que, segundo o Yi-jing, O Livro das Mutações, núcleo do pensamento chinês, o hexagrama quinquagésimo, Ding 鼎, o Tripé ou Caldeirão, é um sinal de muito bom augúrio, pois significa Fortuna Suprema, Sucesso e Prosperidade… e que o emblema do hexagrama, o carácter Ding 鼎, oferece a imagem do caldeirão: Na base estão os pés, depois o corpo, depois as orelhas, ou seja, as pegas, e, no topo, as argolas que servem para o transportar, e a imagem do caldeirão evoca a ideia de cozinhar, de alimentar. O hexagrama Ding também evoca a ideia de preparação de alimentos, com Xun, madeira ou vento, em baixo, e Li, fogo ou chama, em cima. Mas o caldeirão não é apenas uma vulgar peça de louça, um utensílio de cozinha, é também um objeto mágico, como o Graal arturiano, dotado de incorporação divina, e desde a Antiguidade que é um emblema do soberano e do Império e que carrega a imagem do mundo. Fundar um trípode significa literalmente fundar uma dinastia, um reino ou um império. Associado aos dois hexagramas Jing, o poço, e Ge, a revolução, a muda, que o precedem na procissão dos 64 hexagramas, o Ding evoca também a reforma, a transformação… Também se pode dizer que o ano do quinquagésimo hexagrama Ding, o Tripé, é o ano da boa sorte, do sucesso, da prosperidade. É por isso que, em 1995, a China ofereceu um Tripé gigante de bronze: “Tripé Maravilhoso do Século” (Shi ji bao ding 世纪宝鼎) à ONU em Nova Iorque pelo quinquagésimo aniversário da sua fundação_, e em 2015, o presente especial que o Presidente chinês Xi Jin-ping ofereceu à ONU em Nova Iorque para celebrar o seu 70º aniversário: O “Zun da Paz” (He ping zun 和平尊), adornado com uma série de animais fabulosos: dragão, fénix, elefante, Tao-tie… e nuvens auspiciosas, não é outro senão um dos avatares do tripé primordial Ding. Neste sentido, o CRI, enquanto “caldeirão alpino”, insere-se, de facto, na vasta constelação de caldeirões mágicos ou Graais iniciáticos, onde se forjaram, em tempos propícios e em lugares de génio, pelo menos duas ou três gerações de investigadores do imaginário… Em todo o caso, congratulamo-nos por ver tantos amigos reunidos para celebrar o jubileu do CRI e apresentamos as nossas sinceras felicitações pelo seu aniversário e os nossos melhores votos para o seu brilhante futuro… Esperamos que este colóquio inaugure um novo período de esplendor para a investigação sobre o imaginário, tal como anunciado por Jean-Jacques Wunenburger no seu artigo esclarecedor e entusiasta: “L’épistémologie de l’anthropologie de l’imaginaire selon Gilbert Durand”: “O pensamento de G. Durand continua, sem dúvida, a ser uma fonte de grande interesse para nós. O pensamento de Durand está, sem dúvida, ainda por compreender, descobrir, aprofundar e aplicar em novos domínios. A sua receção muda consoante a época e as categorias dominantes. É provável que os desenvolvimentos actuais das neurociências, a naturalização do espírito e os avanços da interculturalidade favoreçam uma nova sequência de receção, não só em França mas em todo o mundo…”_A décima segunda edição de Structures anthropologiques de l’Imaginaire, que acaba de ser publicada, parece ter chegado no momento certo, tal como o nosso colóquio de celebração do cinquentenário da fundação do CRI, para confirmar este feliz presságio. Em chinês, dizemos tian-shi di-li ren-he (天时地利人和): momento celestial, lugar favorável, entre pessoas consensuais da mesma convicção…
Hoje Macau Via do MeioO pensamento durandiano e o imaginário chinês Chaoying Durand-Sun Na preparação do colóquio do cinquentenário do CRI, reli mais demoradamente e com maior profundidade a obra seminal do fundador do CRI, Les Structures anthropologiques de l’Imaginaire_(SAI), e tive o prazer de encontrar, ou redescobrir, uma série de referências fascinantes e muito pertinentes, que confirmarão, reforçarão e completarão as ideias de correspondência recíproca, ou de conivência, entre o trabalho do antropólogo francês e a cultura e o imaginário chineses, que eu tinha identificado e desenvolvido nos meus dois artigos acima referidos. Eis alguns exemplos, fruto da minha feliz releitura: No “Livro Segundo: O Regime Noturno da Imagem”, o que se lê num dos exercícios da “Parte Primeira: A Descida e a Taça”: “O espírito das profundezas é imperecível; chama-se a Fêmea Misteriosa…” (p. 225_) , um verso retirado do Dao de jing (Tao-Te-King), O Livro do Caminho e da Virtude de Lao-zi, um dos pais do taoísmo chinês! Um adágio tão judiciosamente escolhido e emparelhado com a profunda e misteriosa passagem do poeta romântico alemão Novalis, para apresentar, explicar e ilustrar toda a quintessência e mistério do Regime Noturno da Imagem. Na mesma parte do livro acima referida, ao estudar os símbolos de inversão, em particular o esquema de duplicação por encravamento e o processo de “gulliverização” caro a Bachelard, depois de declarar que “na iconografia, esta duplicação gulliverizante parece-nos ser um dos traços caraterísticos das artes gráficas e plásticas da Ásia e da América”, G. Durand retoma os comentários de Claude L’Aquila sobre a “gulliverização” da imagem. Durand retoma as observações de Claude Lévi-Strauss sobre os motivos chineses do laço Tao (T’ao t’ieh), que se caracterizam não só pela duplicação simétrica, mas também pela transformação “ilógica” e pela duplicação do todo, ao mesmo tempo que o gulliveriza, e observa que o laço Tao “fornece um exemplo muito claro de gulliverização e de aninhamento através da duplicação de um tema” (p. 239). Trata-se, de facto, de um motivo tradicional chinês que representa a cabeça de um animal lendário, feroz e devorador (dragão, tigre, etc.), que adorna os sinos Zhong ou os vasos de bronze com tripé Ding, tesouros da antiguidade chinesa. Além disso, a forma dos caracteres chineses Tao tie 饕餮 dão a imagem de monstros devoradores, glutões ou gulosos, e especialmente na parte superior, a chave hu 虎 : o tigre; na parte inferior, a chave shi 食 : alimento, comida, ou comer, ingerir, beber… evidenciam a ideia concreta de comer, engolir, devorar… e a mais abstrata de avareza, gula, cupidez insaciável… A este propósito, notamos que uma máscara estilizada de motivos da gravata Tao aparece na contracapa do livro de A. Ghiglione sobre a visão no imaginário chinês e o pensamento da China antiga, e não creio que tenha sido escolhida por acaso. 9 Noutra passagem, um pouco mais adiante, ao estudar as cores no Regime Noturno da Imagem, o autor do SAI menciona numa nota: “Soustelle nota a importância das cores entre todos os povos que têm uma representação sintética do mundo, isto é, organizada como pontos cardeais em torno de um centro (chineses, pueblos, astecas, maias, etc.).” (p. 250) É verdade que no imaginário chinês dos Cinco Pontos Cardeais (Wu-fang 五方) – ao contrário do Ocidente, que tem quatro – o Centro está associado à Terra e à cor amarela, aspeto chave do simbolismo direcional chinês, que tive oportunidade de desenvolver na minha comunicação “A Peregrinação ao Ocidente (Xi you-ji) e os Cinco Pontos Cardeais Chineses”, no colóquio de Grenoble, em 2004, sobre o imaginário dos pontos cardeais, porque toda a cosmologia chinesa herdada do Yi-jing assenta numa base quinquenal constituída por Cinco Agentes ou Elementos (Wu-xing 五行): Metal, Madeira, Água, Fogo e Terra (金木水火土), que também deram origem a toda uma série de correspondências simbólicas essenciais à cultura chinesa: as Cinco Virtudes Fundamentais, as Cinco Relações Imutáveis, as Cinco Estações, os Cinco Órgãos dos Sentidos, as Cinco Vísceras, os Cinco Sabores, etc. 10 Algumas páginas mais à frente (p. 255), ao desenvolver o simbolismo da melodia nocturna, G. Durand comenta com M. Granet: “Estes devaneios sobre a ‘fusão’ melódica que se encontram em Jean Paul como em Brentano não são alheios à conceção tradicional chinesa da música; pode dizer-se que nos antigos chineses como nos poetas românticos, o som musical é vivido como fusão, comunhão do macrocosmo e do microcosmo […]”. Uma tal comparação de ideias ou reflexões de culturas muito distantes teria agradado a Qian Zhong-shu, que foi o próprio exemplo de abertura à universalidade das culturas (Hommes, bêtes et démons, Introduction, p. 11-12), e cujo estilo e verve são tão próximos dos de G. Durand… Algumas páginas mais à frente (p. 260), na sua análise do arquétipo da feminilidade em todas as culturas humanas, da “Mãe-Mar” da tradição chilena e peruana à “Mãe-Terra” dos antigos Incas, da Grande Deusa Aquática dos Índios à mestra aquática melusina e morganiana da tradição ocidental moderna…Para completar o quadro universal, evoca também a Stella maris chinesa Shing-Moo (Xing-mu) e o espanto dos jesuítas que evangelizavam a China quando se aperceberam que estes termos eram exatamente os mesmos que os utilizados na liturgia cristã: “lua espiritual”, “estrela do mar”, “rainha do oceano”… Exemplos como estes, reveladores do profundo interesse do autor pelas referências chinesas, abundam no SAI, para não falar de outras obras do autor, pois só na “Primeira Parte: A Descida e a Taça” do “Livro Segundo: O Regime Noturno da Imagem”, podemos ainda citar a alusão à prática de dar à luz no chão muito difundida na China (p. 262), ao ritual sepulcral dos antigos chineses de tapar os sete orifícios do cadáver, ritual esse que supostamente proporcionaria paz e imortalidade ao defunto (p. 270), à procura da intimidade do microcosmos para praticar a involução, entre os seguidores do Caminho ou do Buda (p. 278), e ao simbolismo do barco e da navegação marítima, tema recorrente na pintura tradicional chinesa (p. 286)… Todas estas descobertas e redescobertas conduzem a uma reflexão ou a uma evidência desta cumplicidade intelectual ou espiritual entre culturas diferentes, tão cara ao antropólogo francês e a um estudioso comparativo chinês chamado Qian Zhong-shu, pois é o tema preferido do eminente académico chinês do século XXI, cuja obra não é senão uma ilustração deslumbrante da fraternidade universal das culturas. “Os homens sempre pensaram igualmente bem”, disse Cl. Este acordo, um acordo tácito, entre o pensamento durandiano e o imaginário chinês é para mim um verdadeiro estímulo para enriquecer as minhas reflexões sobre estes dois temas que me são caros. Ao mesmo tempo, esta busca ou investigação confirma o aspecto, ou o acento, nocturno, místico e sintético do pensamento chinês e do imaginário chinês, que tenho tentado evidenciar nas minhas investigações sobre o imaginário chinês e comparado, ao longo dos últimos vinte e cinco anos… De facto, ao reler G. Durand, não posso deixar de pensar em Qian Zhong-shu, tão semelhantes são o seu espírito e o seu estilo, e as suas infinitas ressonâncias espirituais (Shen-yun神韵)! Qian é uma das maiores figuras literárias chinesas do século XXe tive a honra de traduzir para francês, para a coleção “Connaissance de l’Orient” da Gallimard, uma das suas colectâneas, Ren shou gui (Homens, feras e demónios), composta por quatro contos simultaneamente divertidos e mordazes, repletos de reflexões filosóficas e de referências religiosas e literárias. Nascido em 1910, filho de um professor de literatura clássica chinesa, Qian estudou em Oxford e na Sorbonne nos anos 30. De regresso à China, tornou-se curador-chefe da Secção de Livros Estrangeiros da Biblioteca Nacional da China, depois professor de inglês na prestigiada Universidade Qing-hua de Pequim, diretor de investigação da Secção de Literatura Clássica Chinesa do Instituto de Investigação da Literatura Chinesa e, de 1982 até à sua morte em 1998, vice-presidente da Academia de Ciências Sociais da República Popular da China. Estudioso da literatura, filósofo, sociólogo e antropólogo, e conhecedor da cultura chinesa e ocidental, Qian Zhong-shu, cujo nome próprio Zhong-shu significa Amante de Livros, destacou-se em quase todos os géneros: poesia, caligrafia, romances, crítica literária… e, sobretudo, o sumário de comentários Guan-zhui-bian, O Bambu e o Ponche, verdadeiro monumento da crítica literária chinesa e o auge da literatura comparada na China e no estrangeiro, caracterizado por uma gigantesca erudição no domínio da referência. Nos cinco volumes de ensaios – mais de 1800 páginas, escritas em chinês clássico -, Qian procedeu a um estudo meticuloso e aprofundado de todos os grandes temas (o homem, a natureza, a alma, a religião, o poder, o belo, o bom, o verdadeiro, a mudança, a imaginação, a tradução…) de dezenas de grandes obras canónicas chinesas: o Zhou yi, O Livro das Mutações, o Zuo Zhuan, Comentários do Mestre Zuo, o Shi ji – As Memórias Históricas de Si-ma Qian, os Discursos de Confúcio, as “prosas” de Lao-zi, Zhuang-zi, Lie-zi, Mo-zi, o Shi jing, O Clássico das Odes, o Chu ci, Elegias de Chu, o Huai nan zi… que abrange literatura, história, filosofia, psicologia, estética, linguística e filologia, citando mais de dez mil obras e milhares de escritores, poetas, filósofos e historiadores – cada estudioso é um Littré! – tanto chineses como estrangeiros (Platão, Aristóteles, Shakespeare, Hume, Gombrich, Pascal, Descartes, Boileau, La Fontaine, Rousseau, Hugo, Musset, Baudelaire, Bergson, Valéry…), Proust, Bachelard, Hegel, Kant, Leibniz, Goethe, Novalis, Cícero, Dante, Cervantes, ou Spinoza, Marx, Cassirer, Weber, Freud, Foucault, Strauss, Barthes, Jung, Lacan…). Se encontramos tanto em Qian como em Durand esta abertura à universalidade das culturas e este génio de assimilação, que é uma caraterística essencial da mentalidade chinesa – e também da japonesa – e que o Ocidente talvez tenha experimentado no auge do Renascimento no século XVII, com Erasmo, Guillaume Postel, Rabelais, Montaigne…, encontramos também em Qian como em Durand o mesmo espírito de síntese, a mesma erudição, a mesma acuidade intelectual. Os dois pensadores, que se conheciam e se admiravam mutuamente, destacaram brilhantemente, como que de comum acordo, a “fraternidade das culturas”. O pensamento durandiano ilumina o imaginário chinês Na preparação desta comemoração, tive também o prazer de reler a obra da minha amiga Anna Ghiglione, filósofa e professora de filosofia chinesa e de chinês clássico na Universidade de Montreal. A investigação de A. Ghiglione e a minha são totalmente convergentes e complementares. Para ela, como mostram as suas duas obras principais, o objetivo é estudar de perto, com precisão e raciocínio sequencial, a abstração no pensamento chinês antigo ou a visão no imaginário e na filosofia da China antiga. No primeiro livro dedicado à abstração no pensamento chinês antigo, os seus estudos afastam-se do orientalismo gregário e tradicional, destacando outros aspectos (esquecidos, negligenciados ou desprezados…) da cultura chinesa: a busca do conhecimento (correto), a lógica e a racionalidade, com base na tradição escriturística do período clássico (antes da fundação do Império em 221 a.C.), as reflexões de Dignes (o grande filósofo chinês) e as reflexões do filósofo chinês.C.), e mostra com clareza, rigor e humor os caminhos percorridos pelo pensamento abstrato na China. Na segunda monografia, a autora debruça-se ainda mais especificamente sobre a visão, examinando questões como: A civilização chinesa era “visual”? Qual o papel que os pensadores chineses da época clássica (durante o período conhecido como primavera e outono e os Reinos Combatentes) atribuíam à visão na sua compreensão da realidade? A autora analisa a visão e o olho (literalmente, como órgão do corpo, e figurativamente, como metáfora da mente e da sua atividade pensante) nos clássicos chineses de tradições tão diversas como o confucionismo, o taoísmo, o maoísmo (Mo-zi) e o legismo, bem como nas artes divinatórias e na mitologia. Analisa também a constelação de imagens linguísticas – cara a G. Durand – que giram em torno da visão, nomeadamente da luz e da escuridão, do espelho, do reflexo, da sombra e da claridade, com base numa riqueza de provas textuais – um método caro a Qian Zhong-shu. Esta abordagem original e audaciosa, inteiramente durandiana, permite-lhe concluir que, contrariamente a certas ideias preconcebidas, a China não era “cega” no sentido em que os seus mestres intelectuais atribuíam um papel significativo à visão na procura da sabedoria e no desenvolvimento da sensibilidade humana. 15 A este respeito, estamos totalmente de acordo com a análise de A. Ghiglione das atitudes “positivistas” de certos académicos chineses, de Confúcio a Lu Xun, passando pelos legalistas do período dos Reinos Combatentes e do período da Revolução Chinesa. A análise de Ghiglione das atitudes “positivistas” de certos académicos chineses, de Confúcio a Lu Xun, incluindo os legalistas dos Reinos Combatentes e o primeiro imperador da China, Qin Shi huang, os neo-confucionistas dos Song, Ming e Qing, e os “neo-confucionistas” modernos como Liang Shu-min, Feng You-lan, Qian Mu e Mu Zong-san: Liang Shu-min, Feng You-lan, Qian Mu, Mu Zong-san… Por outro lado, é de notar que, apesar das suspeitas e hostilidades dos confucionistas e dos legalistas, a corrente mágico-religiosa de inspiração taoísta nunca deixou de existir; apenas se disfarça, multiplicando as suas metamorfoses para melhor existir e se fazer ouvir, e continua a ser uma das fontes essenciais do imaginário e do pensamento chineses. O próprio Mao Ze-dong (Mao Tse-Toung), na sua célebre carta a Chen Yi sobre a poesia, declara que, para escrever poesia, é absolutamente necessário recorrer ao pensamento figurativo (Xingxiang siwei 形象思维) e, portanto, ao imaginário, à imaginação. E sabemos que Mao foi alimentado pelos clássicos confucionistas e taoístas, bem como pelos marxistas e leninistas, e que era um grande amante da poesia, da literatura e da filosofia. Ghiglione conhece-os bem e cita-os na sua obra. 16Também sensível às artes chinesas do pincel – a caligrafia e a pintura a tinta, que datam de há mais de 3000 anos e resistem ao desafio da modernidade – A. Ghiglione tentou reavivar o pensamento tradicional chinês através das artes visuais. Segundo a sua descrição, a sua iniciativa consiste em “adotar uma abordagem visual e prática do pensamento chinês” e visa tornar acessível o pensamento dos mestres do pensamento tradicional chinês através de modos de transmissão complementares à filologia (especialmente a análise de textos) e à apresentação de dados históricos – os dois pilares da sinologia tradicional – em particular através da exploração e produção de imagens materiais (pinturas de paisagens, figuras, etc.). Segundo ela, “o suporte não verbal das imagens permite-nos, para além da caligrafia, abordar os conteúdos textuais, nomeadamente para ultrapassar as dificuldades linguísticas”. Pondo em prática a famosa distinção feita pelo linguista Roman Jakobson entre três tipos de tradução: interlinguística, intralinguística e intersemiótica, e tendo em conta o aspeto pictórico da expressão escrita nos clássicos chineses e a dimensão incontornável da escrita chinesa, uma vez que os mestres do pensamento da antiguidade chinesa e os seus compiladores tecem o discurso filosófico através de imagens linguísticas, figuras de sentido e de estilo (metáforas, alegorias, analogias, mitos, parábolas, etc.)), e recorrendo à teoria do semitismo das imagens desenvolvida por G. Durand. Durand nos anos 60, no SAI, organizou duas exposições, uma, “Regards contemporains autour de la pensée chinoise ancienne”, no bairro dos artistas de Pequim, o Feng-tai, no Centre d’Échanges Culturels du Pont Marco-Polo, no verão de 2013, na qual tive a honra e o prazer de participar, e a outra, “La Chine des Sages en images”, na Universidade de Montreal, no Carrefour des Arts et des Sciences, na primavera de 2014. Como ela sabiamente salienta, “convém sublinhar que as pinturas, gravuras e fotografias dos pergaminhos que produzimos não são simples ilustrações de fragmentos de pensamento: a sua polissemia poética multiplica os caminhos da reflexão abstrata, soldando um elo dinâmico de troca entre figuração e concetualização. De facto, é impossível pensar sem imagens. Os antigos mestres chineses compreenderam claramente esta tendência geral da natureza humana para combinar o registo verbal (a língua, a fala e a escrita) com o imaginário (a produção de imagens linguísticas ou materiais)”. 17 Tendo como objeto comum a cultura e o imaginário chineses e na mesma linha do pensamento durandiano, a minha investigação é mais vasta, mais geral e mais sintética do que a do sinólogo da Universidade de Montréal. 18 Embora não tenha tido a sorte de viver os primeiros anos ardentes e apaixonantes do CRI, tive o grande privilégio de poder beneficiar, uns vinte anos mais tarde, de numerosos encontros importantes organizados pelo CRI de Grenoble e de realizar os meus “doze trabalhos” no seio dos CRI de França e de outros países. De facto, no final dos anos 80 e início dos anos 90, fui introduzido no estudo do imaginário pelo meu orientador de tese, o Professor Claude-Gilbert Dubois, e pelo LAPRIL de que era diretor, durante a preparação da minha tese na Universidade de Bordéus III. Intitulada Esquisse d’une mythologie rabelaisienne: essai de classification (Esboço de uma mitologia rabelaisiana: tentativa de classificação), esta tese tem por objetivo classificar as imagens rabelaisianas em torno de mitos (pacotes, enxames, constelações, etc.) simultaneamente fundamentais e universais: gigantes, peregrinações, batalhas, etc, Inspira-se já nas teorias da Nova Crítica, nomeadamente as do estruturalismo de Cl. Lévi-Strauss e as do “estruturalismo figurativo” de G. Bachelard, M. Eliade e G. Durand, com tímidas mas tenazes tentativas de abordagem comparativa com o imaginário chinês. Este estudo taxonómico do imaginário rabelaisiano à luz do pensamento durandiano permitiu-me, em primeiro lugar, formar uma ideia mais precisa e aprofundada do ambivalente e complexo Renascimento europeu, uma época simultaneamente “diurna” e “nocturna”, com as suas primaveras e os seus outonos, a sua grandeza e a sua decadência, e, em segundo lugar, para me colocar mais firmemente no caminho do conhecimento das minhas “duas culturas-mãe”, apoiando-me na mitocrítica e na mitanálise, esses novos humanismos que já não se contentam em fechar-se nas estruturas e constelações do Ocidente (grego, latim, hebraico…), mas querem estar “abertos” a outras culturas.), mas estão abertos a um comparatismo “aberto”. Após a defesa da minha tese (1991), prossegui a minha investigação de pós-doutoramento na Universidade de Genebra para preparar um diploma de especialização sobre o Renascimento, sob a direção de um professor do século XVI, M. Jeanneret, e de um professor de história da arte, J. Wirth. As duas dissertações que escrevi para o diploma foram sobre “Le problème de la langue unique et les rhétoriques de Rabelais” (“O problema da língua única e a retórica de Rabelais”) e “Le thème de la Fuite en Égypte dans la peinture flamande du xviesiècle” (“O tema da Fuga para o Egito na pintura flamenga do século XVII”). No primeiro ensaio sobre a língua rabelaisiana, procurei mostrar, com base na grande obra de Cl.G. Dubois, a mitocrítica durandiana e os estudos poéticos e retóricos de M. Jeanneret, a procura rabelaisiana da veracidade do discurso e da eficácia “bernardina” da palavra, que constitui, de facto, uma das caraterísticas da reflexão linguística e retórica ao longo do século XVII, a que chamei a “Redimensão de Babel”. Este artigo será publicado em parte com modificações e ampliações sob o título “Rédimer Babel, une Pentecôte rabelaisienne?” em Études sur l’Imaginaire. Mélanges offerts à Claude-Gilbert Dubois, editado por G. Peylet e publicado por L’Harmattan em 2001. O segundo ensaio, sobre o tema da Fuga para o Egito, é uma espécie de “variação” da minha investigação, que pretende ser ao mesmo tempo seiziémiste e comparatiste, ligando diferentes artes, literárias e visuais. Inspirado nas grandes reflexões de Jakob Boehme sobre o Egito e na mito-análise durandiana, procurei identificar e estudar três “mitos” da Fuga do Egito e do Repouso no Egito na pintura flamenga dos séculos xv a XVII: privilégio da paisagem, integração de toda a cena da Fuga e do Repouso numa vasta paisagem em contraste com o encolhimento italiano; ênfase no tema da alimentação: as tâmaras e o milagre da palmeira, o milagre da primavera, o milagre dos campos de trigo; a “emoção” da queda dos Ídolos, especialmente em Broederlam, Jean Colombe, Gérard David e Patinir. Este estudo mostra que a pintura flamenga na Flandres borgonhesa, nos séculos XIX e XIX, e depois na herança imperial dos Negritos, no século XVII, viu surgir uma infinidade de obras que se tornarão os alicerces da pintura ocidental, e que o “motivo” da “Fuga” e do “Repouso no Egito” fornecem as orientações pictóricas e simbólicas essenciais: a submersão dos temas religiosos na opulência das paisagens, a ênfase muito católica colocada no simbolismo “alimentar” da terra de refúgio egípcia e, finalmente, a oposição polémica (e quanto mais polémica se tornaria com a vaga de iconoclastia calvinista de meadosdo século XVII) entre o “verdadeiro” sacrifício de Cristo Alimento Divino, Panis angelorum, e os falsos sacrifícios aos ídolos “pagãos”… Este artigo será publicado no nosso livro em coautoria com G. Durand, Mythe, thèmes et variations, sob o título “Héliopolis-sur-Meuse, le thème de la Fuite en Égypte dans la peinture flamande du xviesiècle”. (continua)
Paulo Maia e Carmo Via do MeioOs bambus de Ke Jiusi que se cruzam ao crescer juntos Wu Zhen (1280-1354), um dos «Quatro mestres da dinastia Yuan», viveu em Jiaxing (Zhejiang) como muitos outros literatos desprezados pela burocracia da dinastia Mongol, da forma que se vê em muitas das suas pinturas: isolado como um eremita numa embarcação de pesca «Movendo lentamente o remo, pensando na casa para onde queria voltar, Pondo de lado a cana de pesca, como quem já não quer mais pescar.» Um seu vizinho e pintor chamado Sheng Mao (1313-1362), de Lin’an (actual Hangzhou), que se mudara para Jiaxing, vivendo como profissional dessa arte, tinha sempre em mente o ideal dos pintores literatos. Em duas pinturas no Museu Britânico que lhe são atribuídas vê-se numa um serviçal no meio da floresta, levando um livro na mão (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 99,6 x 29,2 cm), noutra um literato com as mãos escondidas pelo frio caminhando numa ponte coberta de neve em direcção a um pavilhão. O nome dado à pintura é: Lendo, alumiado no reflexo da neve. Em conjunto, o título e as duas pinturas parecem aludir a uma história referida por Liu Yiqing (403-444) em Shishuo Xinyu, «Novo relato das lendas do Mundo», sobre a figura histórica de Sun Sheng (c.302-373) que desde a mais tenra infância até à velhice sempre foi visto com um livro na mão e tão pobre que de noite, no Inverno, aproveitava o reflexo do luar sobre a neve para iluminar a sua leitura. Um exemplo de persistência da vontade de conhecer certamente apreciado pelos literatos, mas também de modo notável por um imperador da dinastia Yuan que reinou por duas vezes, chamado Tugh Temur (1304-1332) conhecido como Wenzong. E que, sendo estrangeiro, cultivou as artes, os costumes e tradições locais. Dos seus esforços para impôr a cultura local aos governantes mongóis destacar-se-ia a criação, na Primavera de 1329, da Kuizhang ge, a «Academia do pavilhão da estrela da literatura», que entre outras actividades como a compilação de textos clássicos também nomeou literatos capazes de reconhecer, estudar e comentar obras de arte. Alguns foram pintores, como um letrado de Zhejiang. Ke Jiusi (1290-1343) foi um desses eruditos (boshi) do Pavilhão Kuizhang de quem hoje se podem ler os comentários sobre pinturas e caligrafias de mestres antigos como Jing Hao (c.855-915) ou Jiang Shen (c.1090-1138). Nas suas próprias pinturas é notória a intuição na composição da paisagem, de que se vê um exemplo no Manual do jardim da mostarda. Ou num rolo vertical onde pintou dois altos caules cruzados de Bambus para o «Pavilhão da Virtude oculta» (Qingbige, tinta sobre papel, 58,5 x 132,8 cm, no Museu do Palácio em Pequim). Nessas duas hastes que crescem junto de sólidas pedras e que ao subir se cruzam, e em que aplicou o rigor da disciplina da caligrafia, terá espelhado a vontade da corte em acompanhar os grandes mestres solitários como Wu Zhen.