Jimson Kin Wa Hoi, presidente da Orquestra Sinfónica Jovem de Macau: “Macau é um espaço de cultura”

O presidente da Orquestra Sinfónica Jovem de Macau, Jimson Kin Wa Hoi, defende o apoio à música clássica e formação dos jovens. À frente da orquestra há duas décadas, o responsável revela ao HM detalhes sobre os próximos concertos, incluindo uma passagem por Portugal e o “24º Concerto da Nova Geração de Músicos 2025”, marcado para este domingo no Centro Cultural de Macau

 

Imagem: António Sanmfaurl_MacauNews

Comecemos por falar do espectáculo no grande auditório do Centro Cultural de Macau (CCM) este domingo. É uma grande oportunidade para revelarem o vosso projecto ao público.

Sim. Na verdade, a Orquestra existe desde 1997, quase há 28 anos. Ao longo deste tempo realizámos cerca de 100 concertos, no que chamamos de espectáculos com assinatura de Macau. A nova geração de músicos locais está, de facto, bastante entusiasmada com o espectáculo que vamos ter no próximo domingo.

A realização de concertos e participação em festivais é a parte mais visível do vosso projecto. Mas quantos músicos estão actualmente na orquestra? Até que ponto a orquestra é importante para os jovens que querem ser músicos?

Somos de facto a única orquestra juvenil em Macau que providencia formação específica neste género musical. Nesta fase, os jovens músicos podem ter a oportunidade de mostrar o seu talento. Tentamos, de facto, construir uma nova geração de músicos. Este tipo de espectáculo encoraja-os a aprender e sair mais, a estudar música ao longo dos anos, então é algo mesmo muito importante para eles. No espectáculo de domingo os músicos terão a oportunidade de tocar em orquestra, e este ano organizámos duas audições para a escolha dos solistas. Estou feliz por termos este ano um total de 33 grupos de jovens que participaram nessas audições, de onde foram escolhidos nove solistas.

É o director da única orquestra juvenil em Macau. Como descreve o panorama de formação musical dos mais jovens? Onde é preciso melhorar?

Sim, claro. Comecei desde muito cedo a tocar na Orquestra de Macau, sou violinista. Posso dizer-lhe que, ao nível da formação, a maioria dos professores são de Hong Kong ou de Guangzhou, que todas as semanas se deslocam a Macau para treinar os nossos jovens. Macau é muito conhecida como a cidade do jogo, mas é também um espaço cultural. Consegue-se sentir o património que existe em Macau, graças, em parte, à anterior administração portuguesa, e temos de agradecer pela manutenção desta cultura portuguesa e de toda uma cultura ocidental misturada com a oriental. Macau é especial por isso mesmo. Penso que temos de promover esta cultura e saber desenvolvê-la. No caso da música clássica, começámos a ter uma orquestra em 1983, ainda durante o Governo da administração portuguesa, e aí organizámos também uma série de competições para os mais jovens. O Festival Internacional de Música de Macau também começou a ser organizado há várias décadas, bem como o Festival de Artes de Macau. Hoje, Macau tem mais iniciativas deste género e isso é bom para enriquecer a nossa cultura, sobretudo a música clássica que se faz no território.

Além do espectáculo de domingo, o que está na agenda da Orquestra da Juventude de Macau para este ano?

Posso dizer-lhe que vamos participar na edição deste ano do Festival de Música de Mafra “Filipe de Sousa”, agendado para Julho. Irei visitar Mafra e todos os locais onde iremos actuar, ter reuniões e organizar-me com a produção. Não será a primeira vez que estamos, como grupo, em Portugal, mas penso que para a maioria dos jovens músicos será a primeira vez. A nossa orquestra já actuou duas vezes em Portugal, a primeira vez foi em 2010.

Entende que o Governo de Macau deve dar mais apoios para a formação na área da música clássica?

Penso sempre que o Governo deveria dar mais apoio aos estudos de música clássica. Para isso não basta gastar dinheiro na organização de festivais, é preciso um maior foco na educação musical. Temos também de ensinar a população a apreciar música clássica, a ouvi-la e a consumi-la, para que possam conhecer o que ouvem e ir aos concertos. Macau é um território pequeno com cerca de 600 mil habitantes, e tem muito dinheiro por causa do jogo. Temos de usar esse dinheiro para construir uma cultura de Macau, onde se inclui a música clássica. Devemos criar uma cidade que mostra a sua cultura, e por isso encorajo sempre o Governo a dar apoio à formação musical. Não apenas para as orquestras profissionais, mas para as orquestras juvenis e associações de música.

Macau carece ainda de cursos superiores na área da música, tendo apenas o Conservatório. Essa é também uma lacuna?

Está certa. Existem várias universidades em Macau, mas há, de facto, falta de oferta formativa na área da música. O Conservatório não oferece essa formação a nível superior. Neste momento, os alunos que queiram estudar música de forma profissional têm de sair de Macau e ir para a Europa, Estados Unidos da América, Hong Kong ou até mesmo a China. Mas, por outro lado, a população de Macau é muito pequena e manter um Conservatório com outro tipo de oferta formativa iria custar muito dinheiro. Penso que o melhor que se pode fazer é o Governo apoiar financeiramente estes excelentes alunos para que sejam aceites em cursos fora de Macau.

As jovens estrelas que vão subir ao palco do Centro Cultural de Macau

Organizado pela Associação Orquestra Sinfónica Jovem de Macau, o espectáculo de domingo começa às 19h45 e tem como lema “Progressing Towards the Future” [Progredindo em Direcção ao Futuro]. O espectáculo será dirigido pelo maestro italiano Lorenzo Antonio Iosco, que também é clarinetista e tem trabalhado com a Orquestra Filarmónica de Hong Kong. Antes de se mudar para a Ásia, em 2015, estudou clarinete no Conservatório Luigi Cherubini, em Florença, e tocou em Espanha e Londres.

No que diz respeito aos jovens músicos de Macau que sobem ao palco no domingo, destaque para Zita Ho Nok Chon, nascida no território em 2009, e membro da Orquestra desde 2021. A jovem frequenta a Escola Secundária Pui Ching, estuda violino e já participou em diversos concursos com distinção. Tem tocado na Orquestra como primeira e segunda violinista.

Na harpa destaca-se Eugenia Wong Hei U, nascida em 2011 e estudante do Colégio Anglicano de Macau. Começou a tocar este instrumento com apenas quatro anos, começando a sua formação na Escola de Música do Conservatório, que lhe valeu o seu primeiro prémio quando tinha apenas cinco anos. Actualmente, tem aulas com Ann Huang, harpista principal da Sinfonietta de Hong Kong.

Ao HM Eugenia Wong Hei U confessou que se sente muito satisfeita pela oportunidade proporcionada pelo concerto no CCM. “Tem sido uma honra muito grande fazer parte desta orquestra, onde conheci muitos parceiros talentosos e ganho um grande conhecimento musical.”

Outro nome de Macau na jovem orquestra é Brian Mui On Ian, violinista, que também frequenta a Escola Secundária Pui Ching. Além do violino, começou a estudar piano em 2018. O jovem foi um dos solistas da edição do ano passado do concerto promovido pela Orquestra Sinfónica Jovem de Macau, o “23rd Macau Music New Generation Musicians Concert 2024”, onde tocou a composição “Bruch Double Concerto in E Minor”.

28 Fev 2025

Cristina Ferreira, jurista e docente da Universidade de Macau: “O FATF estava no lugar e momento certos”

Cristina Ferreira, especialista em Direito Internacional, investigou o estatuto jurídico do “Grupo de Acção Financeira Internacional”, que combate a lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo. No livro “The Legal Status of the Financial Action Task Force in the International Legal System”, a jurista discorre sobre o estatuto jurídico indefinido do organismo que obteve grande poder a nível mundial

 

Quais as principais razões para a criação do Financial Action Task Force (FATF)?

O FATF surge no âmbito do G7, em Julho de 1989, em grande parte por iniciativa dos Estados Unidos da América (EUA), para dar resposta ao crime de branqueamento de capitais com origem no tráfico de drogas e à Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas de 1988. Tratava-se de um grupo informal que visava a cooperação e troca de experiências na parte policial, a elaboração de directrizes comuns e a coordenação de medidas preventivas, especialmente no âmbito financeiro e cooperação internacional. Foram elaboradas 40 “Recomendações Internacionais Contra o Branqueamento de Capitais”. Hoje o FATF tem 40 membros, 38 jurisdições, a Comissão Europeia e o Conselho de Cooperação do Golfo. O último membro, a Indonésia, entrou em 2023. Estes membros representam países industrializados, grandes praças financeiras e economias emergentes.

Como avalia, ao longo dos anos, o desempenho do FATF?

Teve um papel importantíssimo de liderança após o 11 de Setembro de 2001. De repente, o combate ao financiamento ao terrorismo (FT) tornou-se uma obrigação internacional e prioridade na agenda de todos os países. No plano internacional, os Estados foram instados a fazer parte da Convenção Internacional para Supressão do Financiamento ao Terrorismo, bem como de acordos e acções regionais ou internacionais de combate ao terrorismo e ao seu financiamento. A nível interno, os países foram instados a criminalizar o FT, a adoptar medidas de congelamento de bens, medidas de prevenção e detecção do FT nas entidades financeiras, como bancos e seguradoras, e não-financeiras, como casinos, agências imobiliárias ou lojas de penhores. Adoptar novos instrumentos internacionais que harmonizam ou uniformizam as práticas dos diversos Estados, e chegar a acordo sobre o seu conteúdo, pode levar anos. Mas o FATF estava no lugar e momento certos. Dada a sua natureza informal e flexibilidade para ajustar o seu mandato em função das ameaças que pudessem existir no sistema financeiro e do seu ‘know-how’ técnico, o FATF incorporou no seu mandato o combate ao FT e produziu recomendações, numa altura em que este assunto era novo para a maioria das jurisdições. O FATF agiu com rapidez, de forma útil e eficiente para a comunidade internacional. Tinha peritos experientes na área financeira e capacidade para ajudar na aplicação [das recomendações] e supervisionar a sua execução. O mesmo sucedeu em 2009, a seguir à crise financeira de 2008 e ao pedido do G20 para reforçar medidas destinadas à transparência e de combate à corrupção. Portanto, tem sido um caminho positivo.

Defende que ocorreu no FATF uma “metamorfose institucional” neste organismo. Como?

O FATF foi criado como um grupo informal, de índole técnica e temporário, renovável a cada oito anos, mas ao longo de 30 anos tornou-se numa organização cada vez mais complexa, governando hoje 206 jurisdições. A extensão do mandato implicou igualmente a evolução dos seus poderes e responsabilidades, e hoje o FATF é mundialmente reconhecido como a autoridade internacional sobre esta matéria. É dotado de um poder público de governação mundial cujo reconhecimento está traduzido em diversas Resoluções do Conselho de Segurança da ONU.

O estudo vem clarificar o estatuto legal da FATF. Que estatuto é este e qual a conexão com outras entidades também ligadas ao combate ao FT e lavagem de dinheiro?

O FATF é a autoridade mundial responsável por fixar padrões, normas e políticas internacionais sobre estas matérias e não há uma duplicação de funções com outras organizações e entidades internacionais, incluindo Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e a União Europeia. Este estudo defende que a evolução gradual do mandato, da estrutura institucional e do ‘modus operandi’ do FATF no plano internacional alterou o seu ‘modus constituendi’. Ou seja, uma organização pode evoluir para uma organização internacional de pleno direito, independentemente da intenção inicial dos membros e de não ter sido criada por um tratado.

Como explica que, até à data, falte clarificação do estatuto legal da FATF?

Acho que nunca houve um verdadeiro interesse em analisar a fundo esta questão. Este tema foi abordado entre 2016 e 2018, durante as presidências Espanhola e Argentina do FATF, mas ficou a “marinar”, com o argumento de que haveria vantagem em manter uma entidade flexível para mais facilmente poder responder a desafios e riscos emergentes contra a segurança, transparência e integridade do sistema financeiro internacional. Mas o facto é que o FATF passou a deter e a exercer um enorme poder, pois avalia e identifica as jurisdições não cumpridoras, nomeando-as em listas (‘blacklisting’). Pode ainda instar a aplicação de medidas a membros e não membros, um poder detido por pouquíssimas organizações internacionais.

Até que ponto as suas recomendações têm impacto e são postas em prática?

As recomendações do FATF têm impacto porque os países são regularmente avaliados quanto à sua aplicação, chamada de “Technical Compliance”, e eficácia da sua aplicação prática, com a designação de “Immediate Outcomes”. Essa avaliação é feita segundo critérios rigorosos, sendo dada uma classificação. Se o resultado for deficiente, a jurisdição tem de assumir um compromisso político de alto nível de resolução dessas deficiências, passando a fazer parte da ‘Lista Cinzenta’, sujeita a um plano de acção e a um prazo [de cumprimento]. Na ausência do compromisso político ou na falta de progresso suficiente na execução do plano, a jurisdição pode ser nomeada para a ‘Lista Negra’, e o FATF pode apelar a todas as jurisdições da rede do FATF para que aconselhem as suas instituições financeiras a reforçarem as medidas de diligência relativamente aos riscos associados a tal jurisdição. É isso que está a acontecer com o Myanmar desde Outubro 2022. Se a jurisdição apresenta graves deficiências ou não cumpre com o plano de acção ou não é membro de um grupo regional, pode ser nomeado para a ‘Lista Negra’. Neste caso, o FATF pode apelar que se apliquem as medidas da ‘Recomendação 19’, que vão desde o reforço da diligência e comunicação sistemática das transacções e operações que envolvam a jurisdição até à limitação ou proibição de transacções financeiras com a jurisdição.

Há alguns exemplos concretos?

Isso acontece com o Irão e Coreia do Norte há duas décadas. A reputação internacional [desta medida para um país] é real, tem um custo político e económico. Um estudo do Fundo Monetário Internacional (FMI) de 2021 revela que os efeitos negativos estimados em 7,6 por cento do Produto Interno Bruto nos fluxos de capitais e uma redução significativa do investimento directo estrangeiro nas jurisdições que constam da ‘Lista Cinzenta’, podendo até ter consequências nas condições de empréstimos do FMI.

Levanta, no livro, a questão da importância do FATF no panorama institucional global. Que importância é essa?

O FATF serve de modelo institucional, operacional e de regime para outros organismos internacionais. Este estudo desenvolve um modelo teórico que pode ser utilizado em qualquer organização que actue na cena internacional, reúna os mesmos elementos objectivos e cujo estatuto jurídico seja pouco claro. No fundo, o FATF é um caso prático. O Direito internacional não é estático e tem de se analisar a realidade e ajustar os modelos, devendo estes reflectir a realidade objectiva da ordem jurídica internacional.

A China e Hong Kong são membros do FATF. Qual é a relação da RAEM e das políticas locais de combate ao FT e lavagem de dinheiro com esta entidade?

A RAEM é membro de um dos grupos regionais do FATF – o Grupo Ásia-PacÍfico para o Combate ao Branqueamento de Capitais (APG), e obedece às recomendações e mecanismos de supervisão do FATF, exercidas pelo APG. Macau tem tido um bom desempenho, cumprindo, obviamente, as suas recomendações. Isso aconteceu, por exemplo, com a adopção do Regime de execução de congelamento de bens e a lei do Controlo do transporte transfronteiriço de numerário e de instrumentos negociáveis ao portador. Aliás, a RAEM foi a primeira jurisdição do mundo a obter a melhor nota de cumprimento técnico em relação às 40 Recomendações do FATF quando foi avaliada em 2017.

Quais os principais desafios que o FATF enfrenta actualmente no combate a este tipo de crimes?

O uso de novas tecnologias, da moeda virtual e o acesso limitado aos serviços financeiros formais que conduzem ao uso de canais não regulamentados, aumentando os riscos de branqueamento de capitais e de FT. No livro falo ainda do fosso económico e de capacidade de resposta ou acção entre as jurisdições-membros do FATF em relação às jurisdições-membro dos grupos regionais. Muitas delas são economias frágeis ou de baixo rendimento, pelo que não surpreende que apresentem mais deficiências ou dificuldades em cumprir com os padrões internacionais FATF. No APG, a título de exemplo, o Afeganistão, Bangladesh, Camboja, Laos, Myanmar, Nepal, Timor-Leste e Tuvalu constam na lista do Banco Mundial de 2023 dos Países Menos Desenvolvidos, o que dificulta a aplicação uniforme e global das normas e políticas do FATF. Além disso, as normas, políticas, procedimentos de avaliação e recomendações ou planos de acção do FATF são pouco flexíveis ou ajustáveis à realidade local e aos condicionalismos internos e regionais das jurisdições não membro do FATF. Deveria ainda ser assegurada uma participação mais equitativa ou representação dessas jurisdições no processo final de tomada de decisões do FATF, a fim de aumentar a sua legitimidade e transparência.

27 Fev 2025

Entrevista | Shan Hai Jing, um museu e o apetite dos antigos

Uma entrevista com a dupla de autores da próxima publicação em língua inglesa Shan Hai Jing Code 《上古文明密码》, que o Hoje Macau já apresentou, mas que agora se transforma em museu. Michael Du & Julie Oyang, a dupla de autores está actualmente a organizar uma corrida textual sem fôlego através da peça mais importante da literatura chinesa e do tesouro mais pesado da cultura chinesa e… mais além. Julie Oyang é uma crítica de arte e cultura baseada na Europa, comentadora da cultura chinesa e filósofa visual. É professora convidada na Universidade de São José em Macau, China. Michael Du é um conhecedor da cultura antiga chinesa canadiana, detentor da maior coleção da civilização Hongshan do mundo. É o fundador da Haikou KiWen International Art & Culture Co. Ltd. (海口啓運國際文化藝術品有限公司) e Kiwen International Cultural Exchange (Yantai) Co.Ltd (国际文化交流(烟台)有限公司). Ambos os autores estão intimamente envolvidos na operação do Museu de Arte da China para Civilizações Pré-dinásticas (华夏上古文明艺术馆), que abrirá em breve em Yantai, China.

P: Na parte I da entrevista, falámos sobre o significado histórico do antigo manuscrito chinês Shan Hai Jing 《山海经》, também conhecido como o Livro das Montanhas e dos Mares, especialmente a sua universalidade. O que é que se segue?

Michael: Falámos sobre como um estudo mais aprofundado do Shan Hai Jing pode ajudar-nos a compreender a origem das primeiras civilizações humanas na Terra. Mas nós somos fazedores. Não nos ficamos pelas páginas escritas: queremos assegurar que o Shan Hai Jing é relevante e vivo e torná-lo parte da cultura actual. Com este objectivo, fundei uma nova empresa. A Kiwen International Cultural Exchange (Yantai) Co.Ltd (启运国际文化交流(烟台)有限公司) foi criada depois da Haikou KiWen International Art & Culture Co. Ltd. (海口啓運國際文化藝術品有限公司) é o local onde a investigação global terá lugar e o intercâmbio global de conhecimentos será incentivado e estimulado sob a forma de delegações internacionais e visitantes de alto nível. Sabemos tão pouco sobre os antigos, há tantas perguntas a fazer…

Julie: De facto, há tanto para fazer. Há tanto que podemos fazer. Em colaboração com o governo chinês, estamos ambos envolvidos na operação do Museu de Arte da China para as Civilizações Pré-dinásticas (华夏上古文明艺术馆), onde Michael faz a curadoria da sua própria coleção de artefactos, bem como de colecções privadas de renome de todo o mundo, incluindo todas as civilizações pré-dinásticas, como Hongshan, Liangzhu, Shanxingdui, Hongshuihe, Shijiahe, etc. Estes objectos de arte nunca foram expostos e nunca foram explicados pelos historiadores tradicionais. Compreendemos que é extremamente importante para nós proporcionar aos coleccionadores privados um local onde possam mostrar a sua viagem dedicada à procura de respostas a questões sobre a humanidade. Neste sentido, o Museu de Arte da China para as Civilizações Pré-Dinásticas (华夏上古文明艺术馆), que deverá abrir em Yantai em abril, é uma visão única e brilhante. Até temos a arquitetura para corresponder a esta visão. O nosso objectivo é educar o público global em geral, bem como estabelecer uma ligação com o público jovem de uma forma divertida e com elevados padrões de qualidade.

Para além da exposição, que mais vão fazer para tornar os misteriosos antigos “vivos e activos” para o público global?

Julie: Neste momento, o Michael e eu estamos a planear uma exposição paralela e um workshop em colaboração com o chef artista francês Gil Gonzalez-Foerster (nome chinês: 晓松). De certa forma, o museu em Yantai é uma cápsula do tempo onde está guardada uma memória antiga e desvanecida. E a cozinha de Gil lida com a memória, desta vez partindo destas civilizações pré-dinásticas, partindo de Shan Hai Jing. Sendo o guardião imaginativo da memória, o clássico chinês contém a memória mais antiga da China, ou mesmo do mundo. Shan Hai Jing regista memórias antigas sob a forma de meditações sobre mitologia e os factos mais interessantes sobre a flora e a fauna conhecidas pelo seu poder mágico e força poderosa que vivem de um extremo ao outro da Terra. Esta parece ser a reputação deste texto antigo e inesgotável. Mas Shan Hai Jing é também um extraordinário livro de receitas!

Mas porquê comida?

Michael: Tu és o que comes. A comida é uma parte essencial da vida humana quotidiana que nos pode dizer mais sobre o passado. Quando um prato deixa de ser recordado, parte de nós deixa de existir. A comida é talvez a memória mais íntima e sensual. Talvez esta seja uma das razões pelas quais Shan Hai Jing foi escrito: recordar através da comida? A nossa exposição com curadoria tornar-se-á mais completa, mais 3D, mais realista, explorando o paladar dos antigos!

Julie: Shan Hai Jing documenta experiências gastronómicas diversas, misturando história natural e conhecimentos alimentares. O seu enfoque humanista torna o Shan Hai Jing único no seu género. A palavra shi (食), “comer”, aparece mais de 160 vezes no livro, dos antigos. Há, no entanto, muitos casos sobre comida exótica que curam condições médicas bastante familiares aos homens modernos, mas Shan Hai Jing também oferece cura para condições como arrogância, confusão/falta de sabedoria, afastar perigos físicos. Esta é uma filosofia culinária única! A comida envolve a mente, não apenas o paladar. Para provocar o intelecto. Esta ideia profunda ainda está profundamente enraizada na comida chinesa moderna. Através da nossa exposição, compreendemos também porque é que Confúcio ensinou aos seus discípulos que a comida é uma dádiva virtuosa e porque é que os grandes poetas eruditos chineses eram famosos apreciadores de comida.

Actualmente, não sabemos quem foi o autor do misterioso clássico chinês cuja imaginação ultrapassa As Mil e Uma Noites…

Michael: Os antigos eram “homens de apetite”. O apetite pode explicar as paisagens históricas e económicas da humanidade com mais clareza do que o jargão académico.

Por falar em economia, como é gerida a economia do museu?

Michael: O museu é um organismo educativo. É também um negócio. Concentramo-nos em cinco volumes de negócios. A investigação envolve sobretudo a cooperação com várias instituições e programas de formação na China. Organizamos cursos, eventos e publicações. Esta parte irá gerar 7,6 milhões de RMB/ano. A venda de bilhetes irá gerar 7,2 milhões de RMB/ano. A certificação de autenticidade irá gerar 3,5 milhões de RMB/ano. Também iremos formar agentes de leilões de arte e antiguidades, cujo programa irá gerar 4,9 milhões de RMB/ano. Na primavera e no outono, realizar-se-á um leilão em grande escala, com uma estimativa conservadora de 50 milhões de RMB de volume de negócios por leilão. Este montante não inclui as receitas provenientes da comissão de 15% dos vendedores e compradores. Além disso, realizar-se-ão anualmente mais quatro jogos de leilões temáticos, com uma estimativa conservadora de 5 milhões de RMB de volume de negócios e 6 milhões de RMB de comissão por leilão.

24 Fev 2025

António Queirós, filósofo e académico: “A Ocidente há uma grande ignorância” sobre a China

Doutorado em Filosofia da Ciências, Ambiental e Éticas Ambientais, António Queirós, ligado à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, lamenta que o Ocidente continue a encarar a China de forma errada, sobretudo em questões ambientais. O HM conversou com António Queirós antes da palestra sobre o assunto que deu ontem no Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa

 

Irá falar do tema “A Crise ambiental e o projecto de Eco-civilização da China”. Que projecto é este?

Este é o grande projecto da China para a Nova Era. Trata-se de um conceito que começou a ser elaborado a partir de 2013. Essa ideia começou a ser concretizada com distintos projectos. Desde o regime da “nova democracia”, que resultou da resistência chinesa à ocupação do Japão e o confronto geopolítico dos países do Eixo das diferentes democracias. Isto dá-se quando é proclamada a República Popular da China, como a proclamação da “nova democracia” e surge a tomada de consciência da crise ambiental à escala mundial por parte da China, com o regime a evoluir para o chamado “socialismo ecológico” a partir de 2003. Foi preciso o país experimentar um modelo de industrialização comum às primeiras experiências de socialismo, e sobretudo os países capitalistas. A tese fundamental da China é que todos os regimes podem colaborar na construção de uma nova civilização, mas isso implica profundas reformas democráticas que estão consignadas nas propostas de civilização global, da garantia de paz segundo o princípio da indivisibilidade da segurança. Mas gostaria de apontar o momento em que a Organização das Nações Unidas (ONU), representando todo o mundo, tomou consciência da existência de uma crise ambiental, a partir da Conferência de Estocolmo, que se realizou em 1972. Na China esse processo de consciencialização da parte dos órgãos do Estado socialista, dos cidadãos e partidos, começou em 2003. É estranho que questões como esta nunca sejam debatidas a Ocidente. O confronto ideológico que vem da Guerra Fria não cessou com os Acordos de Helsínquia, e, portanto, há temas que são desconhecidos a Ocidente por causa dessa tradição nefasta da Guerra Fria, que se prolongou, e porque os órgãos de comunicação social não têm abertura para discutir e apresentar as propostas que a China faz.

A China marca presença e é um actor importante em reuniões mundiais sobre ambiente e clima. Porque entende que não há discussão a Ocidente sobre o conceito de Eco-civilização?

Não se discute porque a Ocidente há uma grande ignorância sobre a China e a realidade do país. A única vantagem que tenho sobre a maior parte das pessoas que escrevem e falam sobre a China é que a minha relação com o país tem mais de 50 anos. Sei como a China era apresentada ao Ocidente há 50 anos. Vivíamos [em Portugal], um regime fascista onde a informação chegava às pessoas com muita dificuldade. Assisti ao longo destes anos a todo o tipo de visões sobre a China que careciam de informação concreta, até porque o país, até à Reforma e Abertura, era uma sociedade também fechada. Mas essa falta de informação era geral no Ocidente. Também tive visões que não eram a realidade e comecei a questionar-me se a experiência histórica da China é única, sem paralelo na história da sociedade, de democracia e socialismo, pelas suas características históricas, a hermenêutica, no sentido de método, a análise de conceitos e pontos de partida, que predomina a Ocidente, não serve. Mas vamos então à questão concreta, que é as responsabilidades que a China tem em matéria ambiental.

Que, concretamente, são…

Uma coisa é a contribuição que dão a China, Índia e outros países para o aquecimento global, porque são populações que representam a maior parte da humanidade. Existem tecnologias que são, elas próprias, poluidoras. Mas se olharmos para este ângulo acabamos por falsificar a realidade, porque os gases com efeitos de estufa que existem na atmosfera existem há 150 anos, pelo menos, devido à industrialização europeia e americana. Em termos de responsabilidade histórica, os EUA são os grandes responsáveis [pelo aquecimento global], e cito dados oficiais da União Europeia, por exemplo. Falo de toneladas de dióxido de carbono e gases com efeito de estufa emitidos para a atmosfera em todos esses anos.

Porque se industrializaram muito mais cedo do que a China.

Sim, e apresentaram uma indústria sem esse tipo de preocupações ambientais. Portanto, esconde-se essa realidade, que os gases com efeito de estufa começaram a poluir desde há 150 anos e que não é apenas os contributos de hoje [que são os grandes causadores do aquecimento global].

Acha, portanto, errada a ideia de que a China é o principal país poluidor.

Em termos actuais a China e Índia podem ser os mais poluidores. Mas não o são em termos “per capita” nem historicamente. O que tem de verdade [no discurso a Ocidente], é que eles contribuem actualmente [para o aquecimento global]. Mas depois temos de ver as tendências para onde vamos caminhar. Mas se aprofundarmos este tema chegamos a conclusões ainda menos favoráveis às políticas ocidentais. A história ambiental da China pode resumir-se a quatro períodos. O primeiro período é nos anos da Reforma e Abertura, a partir de 1978, e o quarto período é quando a China lança os projectos piloto de civilização ecológica. O processo é global. Ainda em relação às responsabilidades da China, na primeira fase o Ocidente e o Oriente industrializados transportaram para a China as indústrias mais poluentes, porque o apelo da China era industrializar-se e criar mais emprego. A resolução da ONU que acrescenta um artigo além dos 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, reconhece finalmente como direito inalienável do ser humano a um ambiente saudável. Essa declaração que está, a Ocidente, completamente truncada, reduzida a coisa nenhuma, tem um preâmbulo com 30 artigos em que a questão ambiental não é colocada. Como essa declaração já não se coaduna com a realidade política e social actual, tem vindo a ser escamoteada, mutilada e reduzida às liberdades formais. Ignorada também pelo conjunto de cidadãos que também não conhecem bem a sua origem. A China é co-fundadora da Declaração Universal dos Direitos do Homem, facto que também é escamoteado. Mas queria falar também da maior falácia da política ambiental do Ocidente.

Que é?

A ideia de que, a partir de agora, se vai proteger a natureza. Então o que se faz àquilo que foi destruído? Sobretudo nos países em desenvolvimento, porque foi para lá que enviámos esses resíduos das indústrias poluidoras e explorámos todos os recursos. Ninguém queria saber disso, e o que fez a China? Assumiu a liderança do processo e através da sua diplomacia de “agir sem agir”, o caminho de Tao, sem violentar a natureza, respeitando as leis e a dignidade das coisas, fazendo aprovar o Acordo de Kunming-Montreal [sobre biodiversidade]. Temos então um compromisso que, provavelmente, os EUA vão deitar para o caixote do lixo, para recuperar os biótipos que estão destruídos, porque grande parte do mundo está em crise ambiental e até aqui assobiava-se para o lado. A China tem uma visão gradualista, no sentido de que os factores de risco na crise ambiental tendem a diminuir com o esforço da China, tanto a nível nacional como internacional. Mas a questão mais notável na ideia da construção de um Estado com consciência ecológica no país foi o facto de, por iniciativa do Presidente Xi Jinping, tenham sido incluídos princípios da filosofia ambiental nos estatutos do Partido Comunista Chinês, facto inédito em outro partido comunista e até alguns ecologistas.

Reformulação global

Segundo o estudo “Ecological Civilization in the People’s Republic of China: Values, Action, and Future Needs”, de Arthur Hanson, publicado em 2019 pelo Asian Developmento Bank, o conceito de Civilização Ecológica “está a ser utilizado pela República Popular da China (RPC) para fornecer um quadro conceptual coerente para os ajustamentos ao desenvolvimento que responde aos desafios do século XXI.

Difere do desenvolvimento sustentável na ênfase colocada nos factores políticos e culturais, bem como na definição de novas relações entre as pessoas e a natureza que permitam viver bem e dentro dos limites eco-ambientais do planeta Terra”.

Além de reduzir a poluição e promover a economia circular, por exemplo, consideram-se ainda “domínios das finanças, do Direito, do reforço institucional e da inovação tecnológica”, tendo já sido definidas algumas ideias em Planos Quinquenais aprovados por Pequim, destacando-se ” necessidades a médio prazo, especialmente até 2035, quando se espera que a Civilização Ecológica, na sua forma básica, esteja totalmente implementada para a modernização da RPC”.

21 Fev 2025

Mark O’Neil lança obra biográfica sobre Liang Sicheng e contributo para a arquitectura chinesa

Mark O’Neill, jornalista e autor a residir em Hong Kong, publicou uma biografia de Liang Sicheng, responsável por documentar a arquitectura chinesa antiga, e que durante a Revolução Cultural foi alvo de perseguição política. O livro escrito pelo autor de origem inglesa, lançado pela editora Joint, intitula-se “Liang Sicheng: Guardião da História Arquitetónica da China”

 

Quando teve contacto com a figura de Liang Sicheng?

Quando vivi em Pequim interessei-me pela parte antiga da cidade, pois era como nenhuma outra no mundo. Liang Sicheng disse o seguinte sobre esta parte antiga de Pequim: “O traçado geral mostra o sistema tradicional das cidades históricas da China, sendo resultado da geografia, condições políticas e económicas das dinastias Yuan, Ming e Qing. Exprime também uma gestão artística que conduziu a um elevado nível de sucesso. Serviu bem a era feudal e serve também muito bem a vida na nova era. Pode ser a capital da nova era. Isto não impede de forma alguma um bom desenvolvimento. Toda esta criatividade ao longo de muito tempo deixa-nos orgulhosos”. Na década de 1950, Liang e um colaborador elaboraram uma proposta de 25.000 caracteres para a construção de um novo centro administrativo na parte ocidental da cidade, para albergar todos os ministérios e edifícios oficiais e deixar a cidade antiga como estava. Mas o novo Governo rejeitou esta proposta e demoliu a maior parte da cidade antiga. Construiu a sua nova capital no centro da cidade antiga. Isso partiu o coração de Liang e da sua esposa Lin Huiyin. Em Pequim, conheci a segunda esposa de Liang, Lin Zhu. Ela explicou-me todos estes acontecimentos dramáticos. Foi um estímulo para escrever o livro. Tanto ela como a sua filha, Liang Zaibing, escreveram excelentes livros que descrevem tudo isto. Foram um material de investigação fundamental para o livro.

O que considera mais fascinante na carreira de Liang Sicheng?

Admiro muito os valores estéticos de Liang e o seu trabalho meticuloso na documentação dos edifícios antigos da China, 2.738 no total. Em 1944, no meio dos piores horrores da guerra do Japão contra a China, que matou muitos dos seus amigos e familiares, escreveu uma carta ao representante militar dos Estados Unidos da América em Chongqing. Fez uma lista de locais históricos em Nara, Quioto e Osaka, e propôs que fossem poupados à destruição pelos bombardeiros americanos. Que generosidade e sentido de humanidade extraordinários. Em 2009, Nara ergueu uma estátua em sua honra. Viveu durante a guerra anti-japonesa e as terríveis campanhas do início do período comunista. Mas manteve o seu sentido de missão: preservar os tesouros da arquitectura chinesa e formar uma nova geração de arquitectos e a Universidade de Tsinghua.

Quais as principais correntes arquitectónicas, ou edifícios específicos, que Liang ajudou a preservar ou a chamar a atenção?

Ele e a sua mulher [Lin Huiyin] documentaram 2.738 edifícios antigos, com medições preciosas, em chinês e inglês, e chamaram a atenção nacional e internacional para eles. Sem isso, muitos poderiam ter sido destruídos ou deixados cair no processo de degradação. Definiu as caraterísticas da arquitectura tradicional chinesa e descreveu os arquitectos e artesãos que a construíram.

Pode dizer-se que, enquanto intelectual, Liang Sicheng sofreu perseguições durante a Revolução Cultural. Em termos concretos, como foi esse período para Liang?

No capítulo 10, descrevemos a Revolução Cultural como o calvário de Liang, tal como o foi para milhares de intelectuais e funcionários do partido [Partido Comunista Chinês]. Liang viveu e trabalhou no campus da Universidade de Tsinghua. O Governo entregou o controlo do campus a guardas vermelhos frívolos. Liang era um alvo óbvio para eles porque tinha estudado nos Estados Unidos, falava inglês e tinha muitos amigos estrangeiros. A perseguição que sofreu foi tão severa que acabou por o levar à morte. Em 1966, a sua saúde já era frágil; tinha 65 anos. Foi obrigado a escrever “auto-confissões” e a assistir a sessões de crítica em massa. Os guardas vermelhos saquearam o seu apartamento. Mas ele não cometeu nenhum crime, era simplesmente um arquitecto e professor. As críticas eram absurdas.

Após os anos do regime de Mao, duas das suas obras foram publicadas. O que nos dizem sobre a arquitectura do país?

Após a morte de Mao e o fim da Revolução Cultural, foi reabilitado e as suas obras foram publicadas em chinês e inglês. O seu maior legado é a explicação da história da arquitectura chinesa, a análise dos edifícios antigos e das técnicas utilizadas para os construir. Um dos mais famosos é o templo budista Fo Guang Si, situado nas montanhas Wutai, em Shanxi. Liang Sicheng chamou a atenção do mundo chinês e estrangeiro para este legado.

Liang Sicheng foi um dos poucos arquitectos da época com formação estrangeira. Quais foram as principais influências reveladas nos principais projectos arquitectónicos da época?

Liang e a sua mulher, bem como um pequeno número de colegas chineses formados no estrangeiro, trouxeram de volta à China a arquitectura moderna. Ensinou-a na Universidade do Nordeste, em Shenyang, de 1928 a 1931, e na Universidade de Tsinghua, de 1945 até à sua morte, sendo que, durante a Revolução Cultural, estas aulas tornaram-se impossíveis. Este é outro legado importante – as centenas de arquitectos que formou e os livros didácticos que escreveu para eles. Na memória global da arquitectura chinesa antiga, o seu trabalho foi fundamental. Lançou os alicerces para a mesma. Desde então, muitos seguiram o seu exemplo na investigação, tanto chineses como estrangeiros.

Liang Sicheng, uma “vida extraordinária” devota à arquitectura

Segundo uma nota oficial sobre a obra, divulgada pela editora Joint Publishing, Liang Sicheng teve “uma vida extraordinária”. Filho de Liang Qi-chao, um dos intelectuais mais famosos da China, Liang Sicheng cresceu no Japão. Educado na Universidade da Pensilvânia, Liang também estudou em Harvard e foi muito influenciado pelos arquitectos e pela arquitectura americana.

Um dos poucos chineses do seu tempo com conhecimento profundo sobre arquitectura moderna, Liang Sicheng regressou à China em 1928 e passou mais de 12 anos a investigar a arquitectura da China antiga, continuando o seu trabalho mesmo durante os anos da Segunda Guerra Mundial, quando a China foi parcialmente ocupada pelos japoneses.

Publicou as suas descobertas em jornais chineses e ingleses, revelando ao mundo, pela primeira vez, a história, os conhecimentos e a beleza da arquitectura chinesa. Após a Segunda Guerra Mundial, leccionou na Universidade de Yale e foi o representante da China na concepção da nova sede da Organização das Nações Unidas (ONU) em Nova Iorque.

A vida pós-1949

Depois de 1949, permaneceu em Pequim como chefe do departamento de arquitectura da Universidade de Tsinghua. Projectou os principais edifícios do novo regime comunista, mas não conseguiu persuadir o Presidente Mao Zedong a preservar a antiga cidade de Pequim. Na década de 50, e nos anos da Revolução Cultural, foi severamente criticado.

Em Janeiro de 1972 acabou por falecer na capital chinesa. Com o fim da Revolução Cultural, a sua figura e reputação foram reabilitados e a as suas foram publicadas a título póstumo. Em 1984, a sua “História Pictórica da Arquitectura Chinesa” foi publicada em inglês por Wilma Fairbank, amiga do arquitecto e da sua esposa, e casada com o o sinólogo John Fairbank.

20 Fev 2025

Ricardo Clara Couto, autor do documentário sobre Francisco de Pina | O peso da culpa que persiste

“Francisco de Pina – O português que escreveu o futuro do Vietname” conta a história do padre jesuíta, nascido na Guarda em 1586, que fez a romanização do alfabeto vietnamita. O documentário, da autoria de Ricardo Clara Couto foi financiado pela RTP2 e exibido no Centro Científico e Cultural de Macau

Como se deparou com esta personagem da história portuguesa no Oriente?

O meu irmão, que se chama Filipe Pires, viajou pelo Vietname durante algum tempo e quando chegou da viagem disse-me que tinha de conhecer a história incrível do jesuíta Francisco de Pina que tinha feito a romanização do alfabeto vietnamita, proporcionando liberdade e independência culturais tremendas. Fiquei um pouco céptico no início, pois achei estranho ninguém conhecer isto em Portugal, mas comecei a minha pesquisa sobre o tema e descobri um estudo universitário de uma professora franco-vietnamita que dá aulas na Madeira. Confirmei então que a ideia que o meu irmão tinha trazido do Vietname estava correcta. A partir daí, tentei descobrir a origem deste padre, o trabalho que tinha efectuado, e perceber porque havia tão pouco conhecimento sobre Francisco de Pina em Portugal.

Além de ter sido missionário jesuíta, pode destacar alguns pontos biográficos que ajudem a compreender o seu legado?

No documentário não tive o tempo para conseguir fazer uma abordagem biográfica mais exaustiva. Foquei-me meramente na parte em que ele chega ao Vietname. Falamos de um homem com uma cultura incrível e com uma vontade de aculturar e ser aculturado. Um homem que era músico e foi mais fácil, com isso, aprender o vietnamita, que é uma linguagem de seis tons. No fundo, apesar de ser um padre jesuíta, tinha como primeiro desígnio a cultura e não tanto a religião. Isso, para mim, é um motivo de enorme admiração. Para ele o objectivo essencial da evangelização era secundário, porque, para ele, se não conseguíssemos compreender a cultura do Vietname, não conseguiríamos ensinar o povo vietnamita. Era mais importante aprofundar a cultura e a língua locais, fazendo-se entender para poder, a partir daí, explorar a parte mais religiosa. Foi também um homem que teve muita dificuldade quando chegou ao Vietname.

Porquê?

Houve algumas guerras internas perante alguns senhores locais das regiões que não concordavam com a missão dos padres. Isso não está explorado no documentário, mas de facto Francisco de Pina chegou a fazer algumas diligências [para a missão jesuíta], pois os padres não eram totalmente aceites em todo o lugar. Acabou por se refugiar num bairro japonês e, a partir daí, construiu a sua base.

Francisco de Pina, à semelhança do que acontecia com muitos jesuítas na época, fez formação em Macau, no Colégio de S. Paulo. De que forma foi influenciado por esse período passado no território?

Não há muita informação sobre esse tempo. Sabe-se que se formou, de facto, nesse colégio, tal como acontecia com muitos padres jesuítas na época, mas depois foi para o Japão. Só depois vai para o Vietname. Até aí, não houve nada de grande relevo na vida de Francisco de Pina, que seguiu o caminho normal. O Japão já estava a expulsar os padres jesuítas e é nesse contexto que vai para o Vietname. A única coisa de maior relevo desse período é que os 14 navios que saíram de Portugal para chegar a Macau nesse ano restaram apenas três, e o navio onde ia Francisco de Pina foi um dos que sobreviveu à tempestade.

Considera que o seu grande legado terá sido a romanização do vietnamita? Quais os grandes contributos deste processo em termos linguísticos?

É um contributo gigante. Se pensarmos que até na romanização da língua, o Vietname estava muito dependente do alfabeto chinês, e não conseguia ter independência cultural, linguística e económica também. Depois da romanização do alfabeto foi possível ao Vietname crescer nesses domínios e ter a sua própria identidade. O país cresceu imenso até aos dias de hoje, pois sem a escrita uma língua passa apenas para as novas gerações de boca em boca, e o legado de Francisco de Pina também se mantém até hoje. O povo vietnamita é muito agradecido a isto, e a prova é que há dois anos uma delegação da Fundação Vietnammese Language Foundation veio a Portugal e ofereceu um monumento à Câmara Municipal da Guarda (ver caixa) em homenagem a Francisco de Pina. Porém, fiquei surpreendido pelo facto de os vietnamitas, e falamos de académicos catedráticos, conhecerem bem a história, a figura de Francisco de Pina, existindo no país várias referências. Mas em Portugal é uma figura pouco conhecida.

Como explica isso?

Penso que isso terá a ver com a necessidade que Portugal tem de fazer a sua catarse sobre esse período da história. Portugal foi um país completamente diferente de África para o Oriente, e completamente diferente de África para as Américas. Mas, no entanto, existe este peso da culpa. Portugal não consegue falar sobre esse período do tempo, apesar de ter uma história riquíssima entre África e o Oriente, mas essa época não é muito abordada porque o país ainda não assumiu o que aconteceu e, por isso, não pode falar desse período. Por isso, ainda tanta coisa da riquíssima história de Portugal é desconhecida pelos portugueses.

Como foi o processo de pesquisa para o documentário?

Rapidamente cheguei ao estudo da professora Minh Ha Nguyen Lo Cicero, da Universidade da Madeira, e com ela fomos às raízes da língua vietnamita. Quando a descobri foi incrível, porque ela faz parte do triângulo de romanização do alfabeto vietnamita, por ser franco-vietnamita. Até há pouco tempo, a versão oficial que existia era de que Alexandre de Rhodes, jesuíta francês, tinha romanizado o alfabeto, registando-o depois no Vaticano e dizendo que era um trabalho em homenagem ao seu mestre, Francisco de Pina. Porém, o nome de Francisco de Pina desapareceu. Passamos, a partir daqui, à narrativa oficial francesa, nacionalista, de que a romanização do alfabeto tinha sido feita por franceses pelo facto de o Vietname ter sido uma colónia francesa. Depois cheguei também ao professor António Morgado. Os restantes contactos foram feitos no Vietname, de linguistas, professores universitários e especialistas no idioma, sobretudo na escrita, que depois integraram o documentário.

Como descreveria o Vietname da época de Francisco de Pina?

Era muito fragmentado. Eles têm uma cultura muito própria que existia através de uma escrita com hieróglifos chineses, mas lida em vietnamita, o que levava a que apenas 1 a 3 por cento da população soubesse ler e escrever. Com a romanização essa percentagem aumentou exponencialmente, e com isso a cultura desenvolveu-se junto das populações, uniu-as mais em torno de uma escrita comum. Penso que isso tornou o Vietname mais moderno e preparado para se integrar no resto do mundo ao ter uma língua mais acessível.

Sente que vai ajudar a desvendar esta parte da história de Portugal, bem como a história da própria missão jesuíta?

Espero que sim. Portugal parece que tem um certo medo e pudor em falar desta época, e a prova disso é que este povo vietnamita veio à Guarda oferecer um monumento e praticamente não saíram notícias sobre o assunto. Além disso, os representantes da delegação do Vietname ficaram um pouco admirados por não serem recebidos a nível oficial, à excepção do presidente da Câmara Municipal da Guarda. Eu, que fui convidado por eles a estar presente, senti um bocado vergonha alheia, pelo facto de o Vietname ter vindo a Portugal oferecer um monumento e isso ser encarado como um evento secundário, que não é. Seria importante dar a conhecer este padre e este feito ao país e ao mundo, até porque Portugal e o Vietname têm uma história cultural muito próxima e rica, tal como com o Japão e a China. Mas esta é uma vertente pouco conhecida do povo português e [este documentário] pode ser uma boa oportunidade para o país fazer a sua catarse.

Escultura de artista vietnamita lembra Francisco de Pina na Guarda

Em Novembro de 2023, a Fundação da Língua Vietnamita ofereceu à cidade da Guarda a escultura “Nova Estela”, do artista vietnamita Nguyen Huy Anh. A obra pode ser vista no jardim da Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço. Segundo uma notícia da agência Ecclesia, o evento decorreu no âmbito das celebrações do 824.º aniversário da atribuição de foral pelo Rei D. Sancho I à cidade. “Trata-se de uma homenagem, a título póstumo, ao padre Francisco de Pina, um sacerdote jesuíta nascido na Guarda, em 1586, cujo percurso religioso passou por uma missão no Vietname, onde viveu nove anos de intensa actividade missionária, de linguística e de interculturalidade”, referiu a Diocese da Guarda, em comunicado.

Segundo a mesma nota, o missionário Francisco de Pina foi o responsável pela introdução do alfabeto latino e sinais diacríticos na transcrição dos sons e dos tons da língua vietnamita, que utilizava, na escrita, caracteres chineses.

O padre embarcou há mais de 400 anos na Nau de Nossa Senhora do Vencimento do Monte do Carmo, tendo completado a formação no Colégio de São Paulo em Macau e recebido a ordenação sacerdotal em Malaca. Foi depois chamado para a recém-criada Missão dos Jesuítas da Cochinchina, zona que corresponde à parte central do Vietname actual. “Nunca mais veio à cidade onde nascera e regressou agora num barco esculpido em bronze por artistas vietnamitas trazido por mar do longínquo Vietname. A partir de agora, o Padre Francisco de Pina ficará na memória histórica da Guarda e dos seus habitantes, materializado neste barco que o trouxe de regresso à sua cidade, deixando lá bem longe o nome da Guarda, escrito também ele em letras de bronze”, concluiu a Diocese.

5 Fev 2025

Francisco Leandro, autor e professor na Universidade de Macau: “Apoio do país reforça o papel de plataforma de Macau”

Entrevista de Gang Wen ao jornal China Daily

Francisco Leandro, professor associado da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Macau, afirma que o apoio da nação permitiu à RAEM servir de centro de comércio, investimento e interações culturais entre a China e as comunidades de língua portuguesa.

 

 

Como vê o desenvolvimento de Macau desde o seu regresso à Pátria? Entre as realizações da cidade, quais as que mais o impressionaram? E quanto ao seu sector, houve algum progresso importante nos últimos 25 anos?

O 25.º aniversário do regresso de Macau à Pátria e da criação da Região Administrativa Especial de Macau constitui um marco significativo na história da região, reflectindo um processo diplomático bem sucedido e demonstrando a sua atual estabilidade política e económica. Actualmente, a RAE de Macau goza de estabilidade política e está profundamente integrada nos planos de desenvolvimento nacionais. A governação da cidade ao abrigo do princípio “um país, dois sistemas” permitiu-lhe manter um elevado grau de autonomia, ao mesmo tempo que se alinhava com as políticas nacionais. Esta integração facilitou o crescimento económico de Macau, tornando-o uma parte vital da estratégia económica mais ampla do país.

A estratégia de desenvolvimento socioeconómico de Macau está consagrada na política “um centro, uma plataforma, uma base”. Este quadro tem por objetivo posicionar a RAEM como um centro mundial de turismo e lazer, reforçando a sua atração como destino turístico global. Além disso, a RAEM funciona como uma plataforma de cooperação económica e comercial entre a China e os países de língua portuguesa, promovendo o comércio internacional e o intercâmbio cultural. A RAE de Macau está também a tornar-se uma base de intercâmbio e cooperação cultural, promovendo interações culturais e a conservação do património. Esta abordagem multifacetada apoia a integração de Macau nos planos de desenvolvimento nacionais e reforça a sua presença global. A posição única da RAEM como ponte entre a China, em particular a Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau, e os países de língua portuguesa sublinha a sua importância estratégica.

O conceito de “uma plataforma, três centros” realça o papel de Macau na promoção do intercâmbio económico e cultural. Esta plataforma permitiu à cidade servir de plataforma para o comércio, o investimento e as interações culturais, reforçando os laços entre a China e o mundo lusófono.

O desenvolvimento de Macau como um centro de turismo e lazer, juntamente com a promoção de quatro indústrias principais – convenções e exposições, indústrias culturais e criativas, medicina tradicional chinesa e serviços financeiros modernos – diversificou a sua economia. Estas iniciativas não só impulsionaram a actividade económica, como também reforçaram a atração global de Macau como destino turístico.

O governo central adoptou uma série de políticas para Macau. Existe alguma medida específica que tenha beneficiado o seu sector? Como?

O Interior da China e o Acordo de Parceria Económica Reforçada (CEPA) de Macau desempenham um papel crucial na Grande Baía e na promoção dos laços com os países de língua portuguesa. Ao promover a cooperação comercial e económica, o CEPA reforça a posição da RAEM como ponte entre a China e os países lusófonos. Este acordo facilita o acesso ao mercado, o investimento e o intercâmbio cultural, promovendo Macau como um centro de negócios internacional. Além disso, o CEPA apoia a integração de Macau na Área da Grande Baía, contribuindo para o desenvolvimento regional e a diversificação económica. Este papel estratégico sublinha a importância de Macau nas iniciativas económicas e diplomáticas mais amplas do país.

A promoção do ensino superior na RAE de Macau desempenhou igualmente um papel crucial no seu desenvolvimento. Ao investir na educação e na investigação, Macau contribuiu para os objectivos de desenvolvimento nacional e posicionou-se como um centro de excelência académica. Esta aposta na educação permitiu criar uma mão de obra qualificada, essencial para sustentar o crescimento económico e a inovação. A Universidade de Macau é altamente considerada nos rankings académicos globais. Foi classificada em 180º lugar no World University Rankings 2025 pela Times Higher Education, e em 245º lugar no QS World University Rankings 2025. Para além disso, a Universidade de Macau está classificada em 262º lugar nas Melhores Universidades Globais pelo US News & World Report. Estas classificações reflectem o compromisso da universidade com a excelência no ensino e na investigação, particularmente em áreas como a inteligência artificial, a engenharia e as ciências sociais. A forte colaboração internacional e a investigação inovadora da universidade contribuem significativamente para a sua estimada posição global.

Este ano assinala-se o terceiro aniversário da criação da Zona de Cooperação Aprofundada Guangdong-Macau em Hengqin. Na sua opinião, como é que Macau deve continuar a tirar partido das vantagens da zona para se desenvolver a si próprio e ao sector da educação?

A Zona de Cooperação de Hengqin é um dos principais objectivos dos esforços de modernização de Macau. Esta zona tem sido fundamental para impulsionar a inovação e a diversificação económica, proporcionando um espaço para novas indústrias e promovendo uma integração mais estreita com o continente. A zona exemplifica o empenhamento de Macau na modernização e o seu papel estratégico no desenvolvimento regional.

Macau é uma mistura única das culturas chinesa e portuguesa. Na sua opinião, como é que esta fusão pode ajudar a nação a reforçar a comunicação com a comunidade internacional e a contar as boas histórias da China?

Macau é uma mistura fascinante de culturas, onde o Oriente se encontra com o Ocidente de uma forma única e harmoniosa. A sua paisagem linguística é um testemunho da sua herança multicultural. O chinês é a língua oficial e a língua portuguesa pode ser utilizada para fins oficiais, reflectindo os laços históricos de Macau com Portugal e as suas raízes chinesas. O inglês é também amplamente falado, especialmente nos negócios e no turismo, o que faz de Macau uma sociedade verdadeiramente multilingue.

O sistema jurídico da RAEM é outro domínio em que esta mistura cultural é evidente. Baseado no sistema de direito civil português, foi adaptado ao contexto local no âmbito do princípio “um país, dois sistemas”. Este sistema jurídico duplo permite uma mistura única de tradições jurídicas chinesas e ocidentais, assegurando que o ambiente jurídico de Macau é familiar aos seus residentes e acessível às empresas internacionais.

A abordagem de Macau à resolução extrajudicial de conflitos comerciais realça ainda mais a sua política multicultural. A cidade oferece vários serviços de arbitragem e mediação que servem tanto as partes locais como as internacionais, promovendo a resolução eficiente e amigável de litígios. A política de cidade aberta e a atitude multicultural de Macau são a chave do seu sucesso como centro global. A cidade acolhe pessoas de todo o mundo, promovendo uma comunidade diversificada e inclusiva. Esta abertura reflecte-se nos seus festivais, na sua gastronomia e na sua vida quotidiana, onde diferentes culturas coexistem e se enriquecem mutuamente. Essencialmente, a mistura de línguas, sistemas jurídicos e atitudes multiculturais de Macau torna-a um lugar único e dinâmico, que estabelece pontes entre culturas e promove ligações globais.

Que realizações gostaria de ver concretizadas por Macau nos próximos 25 anos?

Em resumo, o futuro de Macau é brilhante, com uma maior integração com a China continental, o seu papel central no comércio internacional, um crescimento económico diversificado e uma forte presença global. Estes elementos assegurarão o êxito e o desenvolvimento contínuos de Macau na cena mundial. O 25.º aniversário do regresso de Macau à pátria celebra não só uma conquista diplomática bem sucedida, mas também as contribuições contínuas da região para o desenvolvimento nacional e mundial. As iniciativas estratégicas de Macau e a sua integração nos planos nacionais sublinham a sua importância como região dinâmica e virada para o futuro.

16 Dez 2024

António Antunes, cartoonista: “Às vezes considero-me um artista”

Chama-se António Antunes, mas assina os seus cartoons simplesmente como António. Há 50 anos que caracteriza a actualidade com recurso ao desenho e humor, grande parte deles no Expresso. Em entrevista, o cartoonista, que desenhou os tempos do pós-25 de Abril, lamenta que hoje os jovens cartoonistas não tenham tantas oportunidades de singrar na carreira

Já vai longa esta sua aventura de 50 anos dedicados ao cartoon. Alguma vez pensou que ia fazer isto durante tantos anos?

Não. As coisas foram acontecendo, e o resultado é este. Nem sequer havia perspectivas para haver um plano. Portugal não tem sido um país que favoreça muito este tipo de actividades.

Fez formação na Escola António Arroio ainda durante o período do Estado Novo. Como era aprender artes numa altura em que o país [Portugal] era tão cinzento, com limites à criatividade?

Aprendíamos sobretudo técnicas, de trabalho ou de composição. Agora a criatividade é outra coisa. Não só ela estava muito limitada, mas também não é algo que se venda. Não há cursos para fazer artistas, há cursos que nos dão noções sobre composição ou técnicas de pintura, ou cores. Mas só isso não chega. Depois é preciso que haja qualquer coisa além daquilo que é académico. Nas artes há sempre qualquer coisa que escapa mesmo que se aprenda tudo. A criatividade é uma coisa estranha, porque não há uma regra.

O António considera-se um artista?

(Hesita) Às vezes considero.

Já teve muitos cartoons polémicos, nomeadamente do Papa João Paulo II com o preservativo no nariz. Quais foram os cartoons que o obrigaram a fazer maior jogo de cintura ou a lidar com mais pressões?

Se calhar é uma felicidade minha, mas os meus problemas nunca são a priori, mas sim à posteriori. Até agora não tenho sido muito limitado naquilo que posso fazer no jornal [Expresso]. Agora, quando as coisas saem, às vezes têm consequências. Em Portugal foi a questão do preservativo no Papa, internacionalmente foram outras coisas. Esse cartoon continua a mexer.

Como foi lidar com toda essa polémica?

Esse cartoon [do Papa João Paulo II] foi polémico porque quiseram que assim fosse. Aquilo saiu muito bem e não gerou nenhuma algazarra. Depois houve um movimento conservador no seio da Igreja que quis fazer daquilo uma polémica, três semanas começaram a empolar aquilo, a fazer um abaixo-assinado. O homem que liderava as forças católicas disse esperar um milhão de assinaturas, mas, felizmente, conseguiu apenas 29 mil, e a diferença fez com que a montanha nem um rato parisse. Chegou a ser discutido na Assembleia [da República]. É uma polémica um bocado pífia, mais ainda, 30 anos depois, quando a própria Igreja está a mudar o seu ponto de vista sobre essa matéria, nomeadamente com este Papa [Francisco], felizmente. Perante o que me levou a fazer esse cartoon, voltava a fazê-lo. As declarações do Papa na altura foram públicas, não foram sequer ocultas, dentro de muros, e falou para todo o mundo, portanto, também para mim. Senti-me lesado, que aquilo não fazia sentido nenhum. Acho que a atitude do Papa, naquele momento, foi criminosa, no pico da Sida e, em África. Foi de uma insensibilidade e insensatez enormes.

O cartoon é uma arma de arremesso, uma forma de expressão?

Arma de arremesso é uma expressão dura de mais, mas o cartoon é, de facto, a forma de eu me expressar. Há colegas meus que fazem artigos, mas eu faço desenhos.

Que outros cartoons destaca, por aquilo que lhe trouxeram?

O primeiro que me sensibilizou foi aquele que me fez ganhar o maior Salão do mundo de cartoon na altura [Grande Prémio do XX Salon International de Cartoon, Montreal, 1983], a partir deste cantinho que é Portugal. Um Salão que tinha mais de mil participantes, e ter ganho foi muito bom. Fiquei mais seguro, confiante, porque a partir daí podiam continuar a fazer-se coisas. Esse primeiro cartoon também deu polémica, o “Gueto de Varsóvia em Shatila”, em que utilizo a fotografia conhecida do gueto, de um miúdo judeu de mãos levantadas, acossado por soldados nazis, e no cartoon o miúdo é palestiniano e os soldados israelitas. [A polémica deu-se] com todas as vozes dos judeus, que são peritos nisso, a fazer muito barulho, com um certo tom de vitimização, mesmo que sejam eles a atacar. Um director do Salão disse que tentou alterar a votação, tal é o peso do lobby judaico, mas não conseguiu.

Esse cartoon poderia ser hoje desenhado novamente.

Já o publiquei novamente. Infelizmente não está desactualizado.

Mas sente que muito do que desenhou, sobre a actualidade, se repete, num sinal de que a História é cíclica?

Há uma resistência à mudança. Um dos méritos do cartoonista é ser capaz de ver antes do tempo, ou em cima do tempo, se quiser. Tenho a invasão da Crimeia feita em 2014, e assumo aquela visão. Foi em cima, e outros fizeram mais tarde. Há outros exemplos.

Começa a fazer cartoon a seguir ao 25 de Abril de 1974, ali um pouco no rescaldo da Revolução. Sente que, de certa maneira, inaugurou a disciplina do cartoon político em Portugal?

Talvez. Mas não sou muito claro em relação a isso, porque antes de mim houve um grande desenhador, o João Abel Manta, um gráfico fantástico, que tinha uma diferença enorme em relação a nós, pois éramos miúdos e ele já tinha uma cultura que lhe permitia isso. Mas há um lado menos bom, pois ele fazia propaganda política. Era um homem do Partido Comunista Português (PCP), e fez essa propaganda até onde a Revolução o permitiu. Depois quando as coisas se estabilizaram, ele saiu e foi fazer outras coisas. Isso não lhe retira a qualidade, mas não é a minha noção de cartoon. Respondo aos vários estímulos dos acontecimentos de outra forma. O cartoon permite-me expressar as opiniões, mas ser capaz de o fazer em diferentes sentidos da vida, perspectivas, sem estar prisioneiro, como ele ficou prisioneiro do PCP, foi uma coisa que me ajudou muito.

Alguma vez sentiu alguma pressão da parte dos jornais onde colaborou?

(Hesita). Algumas coisas, mas não são importantes. Uma coisa que consegui, sem grande esforço, foi fazer com que as pessoas pensassem que eu tenho um mau feitio danado, e que era melhor não se meterem comigo. Isso ajudou, porque pensavam duas vezes antes de falar comigo. Uma vez no Expresso, um tipo do desporto encomendou-me uma capa, e começou a dar dicas de como eu devia fazer o desenho. Até que lhe perguntei se alguma vez eu lhe tinha dito como escrever uma notícia. Isso deve-lhe ter ficado na memória muitos anos, e deve ter repercutido essa conversa noutras pessoas. Não frequentava o Expresso, sempre estive no meu canto e não me desgastava com o dia-a-dia, com amizades e inimizades.

Costuma desenhar aqui, no atelier?

Aqui. Mas isso [a imagem de mau feitio] de facto ajudou-me. E há também a história de eu ter outra profissão. Costumo dizer que tive mesmo duas profissões, pois era cartoonista e designer gráfico, e aí tinha clientes meus que também o eram do Expresso, nomeadamente A Tabaqueira. Era amigo do director comercial, um tipo comodista, que me metia a negociar contratos com o jornal em nome de A Tabaqueira. Portanto, eu transmitia uma imagem efectiva de poder que, na verdade, não tinha. Se juntar um tipo que tem mau feitio a um tipo que, aparentemente, tem poder, é uma chatice (risos).

Quando lhe pergunto sobre as pressões, penso no período logo a seguir ao 25 de Abril, anos de 1974-1975, em que tudo era politizado. Aí eram maiores?

Consegui lidar com isso. Nesse período do PREC (Processo Revolucionário em Curso) tinha mesmo um cartoon sobre o PREC que durou dois anos. Foi uma espécie de fuga para a frente. Havia uma grande confusão, e, acho eu, isso interessava ao meu jornal [Expresso], embora isso nunca tenha sido dito. Dava uma ideia de frescura do jornal em relação a um período complexo, mas nunca me disseram isso. Tenho a ideia dessa utilidade do cartoon, era a forma de consolidar a independência do jornal em relação aos acontecimentos, mesmo quando às vezes não havia essa independência.

Estamos hoje numa era do politicamente correcto, em que tudo parece ofender?

Não sinto, porque não quero sentir. Cheguei a uma fase da minha vida em que se não me quiserem aturar, não aturem. É fácil. Tudo o que foi uma luta para impor um nome e um ponto de vista, uma carreira, já foi feito. Pode ser melhorado e consolidado, mas se não for, não é. Se me tornar muito inconveniente para o jornal onde trabalho, e quero acreditar que isso não acontece…

Mas em termos gerais, às notícias, comentários nas redes sociais, sente que há o politicamente correcto?

Claro que há. A minha situação é de excepção. Os mais novos, no mundo do cartoon, não têm oportunidades nenhumas. Têm menos do que quando comecei. Por vários acasos da vida tenho uma posição que se solidificou, mas isso não é exemplificativo do que se passa ao redor. Os novos cartoonistas estão cheios de problemas, não há espaço para eles, não há meios de pagamento. São empurrados para sair dos jornais, e não para entrar.

O cartoon não tem lugar nas redes sociais?

(Hesita) Pode aparecer, mas não me parece… diz-se que o jornalismo está a morrer e nós, cartoonistas, vamos primeiro. Acho que essa é a tendência. O jornalismo tem vindo a perder poder face às redes sociais, com a opinião anónima, que não se pode escrutinar, é muito mau e medíocre. E isso vai crescer.

E a Inteligência Artificial (IA)? Pode substituir o cartoonista.

Essa nem falo porque não conheço os limites, mas intuo que devem ser terríveis. Pode de facto substituir o cartoonista, mas aí subverte-se a criatividade.

Há alguma figura pública que goste particularmente de retratar em cartoon?

Outro dia disse que, em relação ao Trump, tinha dois sentimentos antagónicos: como cidadão, acho o homem detestável; mas como cartoonista é a minha matéria prima. O Putin também é bom. Todos os homens com muitas narrativas e muito poder são susceptíveis de dar boas coisas do ponto de vista da análise de um cartoonista. São políticos com um discurso muito claro sobre o que pretendem e o que querem, e isso pode ser bom para o cartoon.

Como se sente por ir a Macau novamente?

A exposição [no Clube Militar] vai ser diferente das outras, com 160 trabalhos. Ainda é muita coisa. É uma viagem por estes anos, pela política portuguesa e internacional também. Estou cheio de curiosidade, promover a mostra, ver o que me perguntam, mas isso faz parte do jogo.

A imprensa de Macau não tem uma grande presença do cartoon, à excepção do Rodrigo [Rodrigo de Matos].

Conheço-o, dou-me bem com ele. Mas devo dizer que o fenómeno é parecido com Portugal. O que é que temos aqui? Eu, no Expresso; a Cristina Sampaio no Público; o André Carrilho saiu do Diário de Notícias; o António Maia no Correio da Manhã e pouco mais. Essa é uma tendência geral. Às vezes, e acho que isso aconteceu comigo, há momentos em que um cartoonista pode representar uma mais valia para o jornal, mas são apenas alguns momentos em que isso pode acontecer. No meu período mais complicado no Expresso, no final da década de 70, um jornal de referência que, à época, estava num país em convulsão, com alguma “irresponsabilidade” pude ir à frente, e tenho a percepção que ajudei o jornal a desembaraçar-se dessas limitações. Mas tal acontece em períodos muito específicos. Nessa fase [do pós-25 de Abril], cheguei a fazer desenhos à noite que, de dia, estavam já desactualizados.

Tem mesmo mau feitio ou é só para disfarçar?

Sou tímido, mas ando a tratar-me. (risos) Nunca foi algo que me tivesse bloqueado, falo bem em público. Sou um tipo que não gosto de correr riscos estúpidos. Estou neste prédio há vários anos e conheço apenas a porteira porque tem de ser, e não quero ter o risco de ter uma pessoa antipática a quem dei confiança. Faço isso com a maior naturalidade.

Exposição no Clube Militar

Depois da palestra na Fundação Rui Cunha, esta quarta-feira, António estará hoje na Universidade de São José a falar com alunos no workshop “Desenho Cartoon: Criação de Ideias”. Segue-se esta sexta-feira a inauguração da exposição no Clube Militar, que ficará patente até 2 de Janeiro.

12 Dez 2024

Ben Lee, analista de jogo, sobre as novas concessões: “Precisamos de algo grandioso”

O analista de jogo e consultor Ben Lee acredita que é preciso fazer muito mais para diversificar a economia de Macau para lá do jogo, sobretudo tendo em conta o tipo de eventos organizados ao abrigo das novas concessões. O analista acha que Macau poderia olhar para dois resorts no Vietname como exemplos a seguir para atrair turistas internacionais

 

Que balanço faz dos dois anos de novas concessões de jogo?

Ainda há muito trabalho a fazer. Pelo que pudemos ver até agora, as concessionárias concentraram-se em projectos mais ligeiros, como galerias de arte locais, eventos culturais, a realização de concertos e pequenas reabilitações de bairros culturais. Os grandes projectos, como o parque de diversões de alta tecnologia, o Conservatório ou novos hotéis ainda não foram vistos. Uma vez que já passaram dois dos dez anos [de concessão], e tendo em conta que a construção de alguns destes projectos deverá demorar vários anos, parece que será necessário adiá-los. As receitas do segmento não-jogo, em percentagem de receita bruta obtida pelas concessionárias, parecem ser superiores às de 2019, mas diminuíram nos últimos dois anos. É possível que voltem nos próximos dois anos a situar-se entre os 10,5 e 11 por cento verificados em 2019.

Recentemente, Ho Iat Seng agradeceu às concessionárias o cumprimento dos contratos e a colaboração no desenvolvimento do segmento não-jogo, reiterando que conseguiram obter alguns lucros durante a pandemia. Acha que foi justo nas suas palavras?

Os casinos estão a fazer esforços para desenvolver o segmento não-jogo, mas, mais uma vez, a maior parte desses esforços estão focados em eventos mais ligeiros, de menor nível. Não vemos grandes ideias como a esfera de investimentos de 2,3 mil milhões de dólares que vemos em Las Vegas, por exemplo. Se tal acontecesse, iria enquadrar-se facilmente nos compromissos de 15 mil milhões de dólares prometidos pelas concessionárias [aquando da assinatura dos novos contratos]. Poderíamos falar também da ideia de fazer uma competição de Fórmula 1 na rua, como se viu em Singapura e recentemente também em Las Vegas.

Como analisa a recuperação das operadoras em termos de receitas do jogo nos últimos meses?

A recuperação do jogo em Macau tem sido extremamente boa, prevendo-se que o sector recupere para cerca de 78 ou 79 por cento dos níveis registados em 2019.

A Sociedade de Jogos de Macau (SJM), por exemplo, foi uma das operadoras de jogo com maiores dificuldades em termos de cash flow durante a pandemia. Considera que a sua recuperação, em comparação com os outros cinco, foi positiva?

A SJM teve dificuldades no início, mas parece estar, finalmente, a fazer alguns progressos. Mas ainda terão alguns desafios para reposicionar o seu “hardware” [instalações e demais empreendimentos] no futuro.

O que podemos esperar do novo Governo de Sam Hou Fai para a área do jogo?

O Chefe do Executivo eleito parece estar a tentar garantir que as operadoras honrem os seus compromissos. Os seus dois mandatos irão, provavelmente, cobrir os próximos oito anos das novas concessões. Penso que, em última análise, tudo se vai resumir a saber se ele consegue motivar os vários aparelhos governamentais a executar a sua visão e missão.

No âmbito dos novos contratos, como vê a evolução global do sector do jogo?

Em 2019, a percentagem das receitas do segmento não-jogo em comparação com as receitas do jogo atingiu 10,5 por cento. Essa percentagem subiu para 22 por cento durante a covid-19, e desde então tem caído gradualmente para 13,5 por cento, segundo dados do terceiro trimestre deste ano. Essa percentagem vai continuar a diminuir à medida que as receitas de jogo continuarem a crescer. Nos últimos tempos, temos visto os residentes de Macau e Hong Kong a dirigirem-se para o norte [China] para pouparem dinheiro. A questão que se coloca é porque é que os habitantes do continente iriam descer e fazer o inverso? A solução, tal como prevista pelas autoridades, é que Macau precisa de diversificar o mercado [de turistas e jogadores] que vem do continente. Isso faz todo o sentido em termos de lógica, mas a realidade é que os nossos esforços parecem estar a regredir. Os visitantes provenientes de fora da grande China representavam 7,8 por cento do total de visitantes de Macau, mas diminuíram para 6,5 por cento até final de Setembro deste ano. Isto remete para os eventos de cariz ligeiro que têm sido organizados que, de longe e em grande parte, são realmente orientados para os chineses que, afinal, constituem a maior parte da nossa fonte de receitas.

Como se pode dar a volta a esse panorama?

Voltando ao início, penso que precisamos realmente de algo grande, icónico, semelhante à esfera que se vê em Las Vegas ou até mesmo algo parecido com o projecto da “Ponte Dourada” em Da Nang, digna de aparecer no Instagram, ou a “Ponte do Beijo”, em Phu Quoc, ambos no Vietname. O facto de estes projectos terem sido construídos por um grupo local ligado ao sector hoteleiro, sem qualquer ligação aos lucros provenientes do jogo, demonstra criatividade e perspectiva de longo prazo em termos de planeamento.

Luta de classes

Ben Lee alertar para o perigo de mercado de massas “fugir” de Macau

A conversa com Ben Lee surge no contexto de uma palestra que protagonizou, recentemente, sobre os dois anos das novas concessões de jogo. Promovida pela Câmara de Comércio França-Macau, a sessão teve como nome “Macau New Gaming Landscape: Two years into concessions, what now?”, tendo o analista e sócio-gerente da IGamiX Management & Consulting defendido, segundo o portal Asian Gaming Brief (AGBrief), que o jogo VIP não terminou por completo, estando assim a ser alvo de uma nova classificação.

Segundo o AGBrief, citando palavras de Ben Lee, “o jogo de massas incorporou o mesmo escalão [de jogadores] que foi tão abertamente criticado pelo Governo”, mas que as operadoras “estão a mudar o seu foco para o acomodar”.

O analista realçou o “recente foco na transformação de quartos de hotel mais antigos e pequenos em opções de luxo, com todas as operadoras a compreender a necessidade de obter qualidade em vez de quantidade”.

Porém, defendeu que “o foco no segmento de luxo continua a criar um impasse”, pois “há muito que Macau se concentra em aumentar o número de visitantes para poder aumentar as receitas”, mas o modelo de negócio “vai contra a necessidade de aumentar as despesas por pessoa”.

Ben Lee alertou também para o facto de muitos turistas poderem, de facto, começar a optar por outros destinos com preços mais em conta. O analista defendeu que os jogadores de massas “não podem ser ignorados”, pois continuam a ser “o principal motor” do sector. “Os preços exorbitantes dos quartos de hotel podem constituir uma ‘barragem’ para o aumento de visitantes”, pois, conforme sugeriu, “os apostadores podem ir para outros locais de férias, como a Tailândia, se o preço não for bom”. Este país asiático “está a crescer e espera-se que ultrapasse Singapura em termos de receitas brutas”, numa altura em que os tailandeses trabalham na nova legislação sobre o jogo.

“Esperam aprovar a sua lei do jogo em Maio do próximo ano. Partindo do princípio que isso acontece, há três a cinco anos para construir um resort integrado ou empreendimento. Poderão estar a funcionar consideravelmente antes da abertura do Japão”, indicou Ben Lee.

Ainda em relação ao mercado de jogo na Ásia, o analista destacou que os apostadores asiáticos irão concentrar-se nos futuros mercados de jogo da Tailândia e Japão “enquanto aproveitam as actuais ofertas em Macau, Singapura e Filipinas”, escreveu o AGBrief.

3 Dez 2024

Miguel Gomes, realizador: “O cinema não é um tribunal”

Molly e Edward têm casamento marcado, mas na hora de ir buscar a noiva ao comboio, Edward decide fugir, iniciando a “Grand Tour” pela Ásia. A película é um dos filmes de Miguel Gomes exibido no Festival de Cinema entre a China e os Países de Língua Portuguesa, que está a decorrer até 13 de Dezembro, dia em que é exibido “Grand Tour”

 

É um dos realizadores em foco neste festival de cinema que decorre em Macau. Como se sente pela oportunidade de mostrar o seu mais recente filme, “Grand Tour”, nesta região?

Poder mostrar o filme em qualquer sítio do mundo é sempre um objectivo para alguém que quer fazer filmes, pois estes só existem a partir do momento em que são vistos. O filme tem uma relação com a Ásia e a China. Foi comprado para Hong Kong, e não sei se será exibido comercialmente no território e quais são os planos dos distribuidores. Independentemente deste festival em Macau, o filme terá visibilidade nessa parte da China.

O filme é uma homenagem ao cinema antigo, pelo menos foi assim que o encarei.

Não. Acho que o cinema não precisa de ser homenageado, pelo facto de a história do cinema ser um património que homenageamos vendo-a. É muito importante que essa memória continue a fazer parte das nossas vidas e que os filmes possam ser exibidos. Em Lisboa temos a sorte de ter uma cinemateca muito competente e forte e que cumpre essa missão. O cinema de hoje está vivo, apesar de não ter um papel social tão forte como teve no século XX, e acho que não precisa de homenagens. O “Grand Tour” é um filme de hoje, mas digamos que tem a memória de outros filmes que foram feitos. Não pretendo homenagear o cinema, mas sim explorar o potencial que ele tem, fazendo duas coisas muito diferentes.

Quais são?

Uma delas terá a ver, de facto, com a história do cinema e do seu património histórico, que ligo ao trabalho em estúdio. Isso é uma coisa que o cinema fez muito, inventar mundos que não são o nosso mundo real. Por outro lado, quis captar a realidade, pois o cinema também tem esse potencial de colocar a câmara à frente de pessoas, filmar acontecimentos, lugares e poder registar isso.

Quando me refiro a essa homenagem ao cinema antigo refiro-me à presença de uma certa maneira de filmar que já esteve em voga. Queria misturar elementos cinematográficos antigos e contemporâneos?

Queria trabalhar com a Ásia fabricada, que nunca existiu, que o cinema criou.

Com a visão ocidental da Ásia.

A visão que os americanos e europeus criaram. Grande parte do cinema americano foi inventado por europeus, gente como [Josef von] Sternberg, que saiu da Alemanha e terá sido o expoente máximo de um autor de cinema que trabalhou com uma imagem da Ásia romantizada.

E filmou em Macau, inclusivamente. [O filme “Macao”, de 1952]

Exacto. Queria trabalhar com esse imaginário, tentando criar um diálogo em que pudéssemos sair para fora do estúdio e estar numa Ásia que correspondesse a um tempo colonial em muitos daqueles países, mas que depois, noutros momentos, pudéssemos estar num tempo presente. Esse tempo seria o futuro das personagens, já num outro tempo histórico pós-colonial.

“Grand Tour” era o nome dado ao percurso que então muitos ocidentais faziam para descobrir uma certa Ásia. Para fazer o filme presumo que tenha sido necessária alguma pesquisa histórica. Como foi esse processo?

Não lhe chamaria uma pesquisa muito profunda, porque não era esse o objectivo. [O “Grand Tour”] não é um filme de cariz sociológico, é uma fantasia de cinema. Está mais desse lado do que do lado sociopolítico, digamos assim. O ponto de partida foram duas páginas de um livro de viagens [o conto ‘Mabel’, de W. Somerset Maugham], que nos deram esse itinerário. A situação descrita [no conto] corresponde àquilo que vemos no filme, com um casal de noivos, com ele a viver na Birmânia e ela a regressar de Londres. Ele entra em pânico e foge no dia em que é suposto ir buscá-la ao cais de Rangum. O casal faz então esse itinerário, sendo que no livro ela consegue apanhar o noivo e casam-se, mas no filme é diferente.

Presumo que seja difícil comparar filmes. Mas entende que o “Grand Tour” marca uma viragem na sua carreira relativamente a produções anteriores?

Acho que não. É um filme pessoal, como todos aqueles que tive oportunidade de fazer. É pessoal no sentido em que não me foram impostas limitações ou qualquer caderno de encargos do produtor. Pude fazer exactamente o que queria. Vejo elementos comuns deste filme a outros que fiz. Acho que se insere numa continuidade do meu trabalho. Houve depois a questão da recepção do filme e do facto de ele ter ganho um prémio em Cannes [o de Melhor Realizador], o que obviamente me ajuda a continuar a trabalhar e ter uma receptividade mais favorável neste momento.

É um grande reconhecimento.

Antes de fazer este filme estava a tentar fazer outro no Brasil, uma adaptação do livro de Euclides da Cunha, “Os Sertões”, e é um projecto complicado, que envolve uma grande logística de produção. No período em que estava a tentar fazer o filme foi difícil [continuar] por várias razões, e uma delas chama-se Jair Bolsonaro [ex-Presidente do país]. Hoje estamos a retomar esse processo, de voltar ao filme. Houve uma altura de desânimo, em que pensei que tinha mesmo de abdicar do projecto, e hoje o processo de refinanciamento do filme está a avançar muito mais rapidamente. As perspectivas são mais animadoras.

Sente que o prémio ganho em Cannes é também do cinema português?

Espero que sim. Da minha parte, não tenho dúvidas de que aquilo que faço devo-o ao esforço de outros realizadores que filmaram antes de mim, e alguns deles continuam a fazê-lo. Eles tiveram de se confrontar com as características do nosso mercado e sociedade, conseguiram filmar num país onde não há indústria porque não há mercado para isso. Tiveram de lutar muito para poder filmar e fazer os filmes que fizeram. Reconheço uma experiência de identidade nesses filmes, revejo-me nisso, apesar dos filmes serem todos muito diferentes. Há, de facto, essa identidade na história do cinema português, talvez a partir dos anos 60, com o Cinema Novo, com produtores e realizadores que lutaram muito para poderem filmar. Fizeram filmes que, para mim, são muito importantes. Hoje em dia, com o sistema criado com a luta deles, é mais fácil para mim e para os meus colegas do que terá sido nos anos 60 e 70.

As condições políticas também eram outras, com menos investimento.

As condições políticas foram mudando ao longo do tempo, mas a vida deles também não foi fácil a seguir ao 25 de Abril de 1974. A forma como o cinema português se conseguiu impor e ganhar espaço para que existisse foi sendo travada em tempos históricos e interlocutores diferentes. E foi difícil.

Voltemos ao “Grand Tour”. Disse numa entrevista que a rodagem do filme foi “surrealista”. Que momentos que destaca dessa fase?

Quando disse isso referia-me a um momento específico da rodagem, na China, que foi muito surrealista. Esta ocorreu a milhares de quilómetros, estava em Lisboa porque não conseguia entrar no país por causa da covid-19. Depois de dois anos de espera para poder filmar, decidi que a única forma de fazer o filme seria ter uma equipa chinesa e eu estar em Lisboa e fazer a rodagem à distância. Estava num Airbnb no Areeiro, rodeado de monitores e a discutir aquilo que se deveria filmar com a equipa chinesa. Aí foi tudo muito surrealista, sim.

Alguma vez teve medo de não conseguir captar a essência do lugar, da cultura asiática, tendo em conta todas essas condicionantes?

Achava que a coisa não ia funcionar. Desconfio muito da técnica, sou bastante analógico, e achava que não ia funcionar. Para resultar tinha de ter a imagem em directo, dar um “acção” e um “corta” em tempo real, que pudesse ter a imagem geral, o que estava à volta no lugar além da imagem da câmara. Precisava de ter um sistema de comunicação que funcionasse com o director de fotografia e o responsável de câmara para lhe poder dar indicações na altura em que estávamos a filmar. Isso tudo foi possível, e fiquei espantado com isso. Por outro lado, a ideia de captar a essência do lugar, ou uma coisa mais profunda da cultura de um destes países, neste caso na China, parece-me um fardo demasiado pesado. Não era essa a minha intenção no filme, porque é algo impossível. Acredito que um filme é sempre o resultado de uma negociação entre alguém que olha e aquilo que existe para ser olhado. Há um lado subjectivo. Aquilo que nos interessa, que nos apela, que dialoga connosco e nos suscita o desejo de filmar pode existir na China, no Vietname, em África ou aqui na esplanada do café onde estamos. Parti para a Ásia como parti para a zona de Arganil para fazer um filme anterior, “Aquele Querido Mês de Agosto”.

Numa aldeia.

Sim, uma zona rural de Portugal, e não sei se olhava de maneira diferente numa situação ou outra. Há sempre qualquer coisa que acho bonito ou que me toca de maneiras diferentes. O que se passa em “Grand Tour” é uma série de desencontros, o do casal, mas parece-me que há também um desencontro entre aquelas personagens europeias na relação com o território. Parece que estão sempre desconectados do espaço onde habitam. Vivem um bocado numa bolha.

Mas o colonialismo também foi um pouco isso.

Sim. Concordo, acho que há pessoas que podem ver isso no filme, essa dissociação entre aquilo que as personagens estão a viver e aquilo que se passa em redor delas. Muitas vezes optámos por não traduzir o que se passava à frente deles para que o espectador ocidental possa estar tão intrigado e perdido como as próprias personagens. Também acho que, hoje em dia, há uma ideia, da qual discordo totalmente, que o cinema existe para corrigir a história e as injustiças todas do mundo. É também tarefa demasiado pesada para o cinema. Parece-me profundamente desajustado, porque o cinema não é um tribunal para julgar nem um espaço para punir espectadores e personagens, é outra coisa. Os filmes não têm de ser denúncias, prisioneiros de uma expectativa. Tentei fazer um filme onde a questão colonial pudesse ser tratada, mas sem ter de punir nem os espectadores, nem as personagens.

Qual era a sua relação com a Ásia ou a sua ideia de Orientalismo?

Quis trabalhar a ideia de que houve uma Ásia inventada e fabricada pelo olhar europeu, e tinha consciência que isso existiu e que tinha de trabalhar com isso no filme. O mundo da ficção, por outro lado, tem como uma das vertentes essa ideia de exotismo, independentemente da questão sociológica, de ter havido um olhar ocidental sobre o Oriente, quase como uma visão superficial desse mundo. Mas a ficção trabalha com estereótipos, e isso não é mau. É o cimento para depois fazer qualquer coisa com esses estereótipos.

Miguel Gomes na Cinemateca

Depois da primeira exibição ontem de “Aquele Querido Mês de Agosto”, a Cinemateca Paixão será o local para ver os filmes de Miguel Gomes seleccionados para a edição deste ano do Festival de Cinema entre a China e os Países de Língua Portuguesa. No próximo dia 8 é vez de “As Mil e Uma Noites – Volume 1, O Inquieto”, de 2015; seguindo-se “As Mil e Uma Noites – Volume 2: O Desolado” na terça-feira dia 10. Segue-se depois, na quarta-feira, 11 de Dezembro, o episódio da saga, com o nome ” As Mil e Uma Noites – Volume 3: O Encantado”. “Grand Tour” tem uma única exibição na sexta-feira, 13 de Dezembro.

29 Nov 2024

Vera Paz e Ricardo Moura, directores “D’As Entranhas”, sobre “Home Sweet Home”: “Mais ácido que doce”

A peça “Home Sweet Home”, uma produção da companhia d’As Entranhas, é apresentada hoje e sábado no Centro Cultural de Macau. Em entrevista ao HM, os directores artísticos Vera Paz e Ricardo Moura falam de um projecto sobre a mulher, a solidão, o espaço interior de cada um e os confrontos emocionais com que nos deparamos

 

Como surge o projecto “Home Sweet Home”, que tem uma grande ligação à literatura portuguesa, com textos de Adília Lopes, Maria do Rosário Pedreira ou Dulce Maria Cardoso?

Vera Paz (VP): Este espectáculo surgiu na pandemia, era para ter sido feito antes, a ideia surgiu quando estávamos todos confinados. Por várias razões o “Home Sweet Home” não foi executado na altura. É sobre uma mulher confinada em casa, que é uma casa prisão, um espaço íntimo e privado. Há uma transmutação desse universo [literário]. A escolha da Adília [Lopes] partiu sempre da obra dela, e depois temos a Dulce Maria Cardoso, que escreve sobre o lugar da mulher, com sentimentos e perdas, que é o que me interessa. [A peça] fecha um de três solos, que começa com o espectáculo “Medeia” [apresentado em 2020], depois “A Boda” [apresentado em 2021] e agora temos, em “Home Sweet Home” a completa solidão. A dramaturgia foi feita cozinhando os textos com estas obras, sendo uma ficção biográfica do meu universo como mulher e uma reconstrução das memórias da mulher na peça.

Ricardo Moura (RM): No meu caso fui confrontado com o texto quase no final. No processo de construção do texto, nas últimas semanas, temos transformado algumas coisas e feito algumas mudanças. Adorei o texto e gosto do universo das mulheres. É sempre um desafio tentar entrar na vossa cabeça e pensar como se podem fazer as coisas. Idealizei logo uma série de imagens que, na minha cabeça, faziam sentido.

VP: A mulher de “Home Sweet Home” é uma construção de várias. Mas mais do que uma peça sobre mulheres e o universo feminino, é uma peça sobre a configuração humana, o tempo, o que fica, o que vai e o que perdemos.

RM: Esta é uma mulher que está fechada numa casa, mas essa casa somos nós. É sobre o processo de mergulharmos em nós e perceber que, muitas vezes, o que acontece é que estamos fechados em nós próprios. Ainda é mais interessante porque desde 2020 temos vivido a solidão das pessoas, que tentam fugir para a frente, com recurso às redes sociais, do “wannabe”. Aqui, nesta peça, é o inverso, o tentar mergulhar na densidade de uma mulher e perceber como está fechada. Não queremos contar nenhuma história nem deixar uma mensagem, mas simplesmente contar um pedaço daquela pessoa. Esta peça é escrita por mulheres e feita por uma mulher, mas eu vejo esta questão de forma transversal, com homens e mulheres, pobres e ricos que passam por estas “prisões”. Às tantas, somos nós a nossa própria prisão.

Home sweet home antonio mil-homens

VP: Nunca sabemos o que se passa no espaço íntimo de uma casa, mas no caso deste espectáculo é um espaço-prisão, do qual ela nunca consegue sair.

RM: Mas o não sair dali não é uma coisa física. Não consegue sair das suas memórias, coisas, daquilo que gostaria de ter sido e feito, mas que não aconteceu.

Tendo em conta o adiamento da apresentação de “Home Sweet Home” ao público, como foi a evolução do projecto?

VP: Na pandemia tínhamos bastantes restrições, não conseguia ter os actores ou os encenadores em Macau. Mas o distanciamento [temporal] foi bom, porque na altura estávamos muito em cima do que estava a acontecer, e assim conseguimos ter uma certa respiração. O texto foi alterado, transmutado e foi sendo acrescentado, porque tinha uma certa dinâmica que agora já não fazia tanto sentido. Às tantas, a voz desta mulher é a mistura das vozes das mulheres [dos textos de Adília Lopes, Dulce Maria Cardoso e Maria do Rosário Pedreira], mas não se trata de um texto clássico com princípio, meio e fim. Não se percebe o que é da Adília Lopes ou da Maria do Rosário Pedreira, por exemplo.

RM: Nos ensaios, no dia-a-dia, vamos alterando coisas. É o nosso processo de construção. Nós, na nossa companhia, temos uma linha de espectáculo que queremos desenvolver, e que se baseia na ideia de que antes de começar já começou, e quando termina é como se continuasse. Poderíamos continuar numa espécie de espiral.

“d’As Entranhas” é a única companhia a fazer teatro de matriz portuguesa em Macau. Quais têm sido os maiores desafios?

VP: É difícil. Somos a única companhia, ou associação, que, em Macau, faz teatro em português. Não traduzimos as peças porque o espectáculo não é só o texto, mas também a música. Há uma parte plástica muito marcada, é uma obra viva que é muito visual. O facto de assumidamente não traduzirmos as peças faz com que às vezes não seja [fácil]. A comunidade portuguesa em Macau é cada vez mais pequena, mas queremos continuar e vou continuar a insistir. Para este espectáculo integrámos dois actores da companhia em Portugal. Não é fácil a distância, e as pessoas têm as suas vidas. O Ricardo desenvolve projectos pontuais em Portugal, e tentamos manter um intercâmbio. Em 2018 fizemos uma parceria, mas com a pandemia ficámos num hiato imenso. Para o ano iremos continuar com dois projectos, com actores de Macau e de Portugal, e queremos manter este fio condutor.

RM: Os nossos espectáculos vivem muito de um lado mais plástico, com imagens e emoções e daquilo que os actores provocam em nós. Se não existisse texto também seria possível fazer o espectáculo. Às vezes, as pessoas têm medo de arriscar e vir ao espectáculo por causa da barreira linguística. Nos anos em que não pude vir a Macau mantivemos a parceria e desenvolvi uma coisa que nos interessa, que é a junção de culturas. Os projectos que a Vera pensa desenvolver no futuro próximo giram muito em torno disso, em juntar actores de cá e lá. Agrada-me perceber como, face a um tema que queremos tratar, as várias culturas se juntam. Gostaria de trabalhar por Macau num futuro próximo. O próximo espectáculo vai ter bastantes pessoas.

Home sweet home

Como vai ser, em termos concretos?

VP: Programei, para o próximo ano, um dueto com dois actores de Portugal e um colectivo, e vai ser uma espécie de baile.

Como tem sido a ligação “d’As Entranhas” com os restantes grupos de teatro em Macau, de matriz chinesa?

VP: Não tenho forma de chegar aos grupos de teatro chineses. É difícil a barreira e estão fechados nas suas próprias coutadas. Não há associações profissionais, é tudo amador, não existe uma continuidade. Há cada vez mais grupos de teatro com experiência, mas não existem companhias profissionais em Macau. Temos a Comuna de Pedra, a única, creio, que se dedica inteiramente a projectos culturais. Depois temos o Conservatório, existem iniciativas, mas não há uma profissionalização do sector.

Este espectáculo terá algumas limitações em termos de idade. Alguma vez sentiram alguma pressão do Governo em relação aos conteúdos das peças que apresentam?

VP: Este ano, pela primeira vez, a Comissão de Classificação de Espectáculos [do Instituto Cultural] pediu-nos o texto e classificou a imagem do espectáculo, que está aconselhado a maiores de 18 anos e interdito a menores de 13. Mas isso tem mais a ver com a linguagem do que com a imagem. Não sinto pressão. O que sinto é que existe um maior cuidado da parte de quem financia para perceber o que de facto vai financiar.

Porquê o nome “Home Sweet Home”?

VP: Não é um lar nada agradável. O nome original do espectáculo era “Estar em Casa”, com referência à obra de Adília Lopes. Depois adaptei, mas na verdade é mais “Home Bitter Home”, mais ácido que doce. É um nome enganador, mas não tem de ser tudo explicativo e taxativo para as pessoas. Pensei na ideia de que, quando estamos sozinhos, só nós é que sabemos, e o nome remete para isso. Tem várias leituras, e nunca gostamos de dar uma só leitura, para permitir que as pessoas criem as suas próprias histórias.

RM: Para mim, o título surge como a ideia de “meu querido espaço”, o meu querido eu. O processo de isolamento das pessoas pode não ser mau e, às vezes, podemos perceber que temos uma fase boa em que somos nós próprios.

28 Nov 2024

António Branco, investigador da área da inteligência artificial: “Macau pode liderar”

Docente da Universidade de Lisboa, e cientista da área da inteligência artificial e processamento de linguagem natural, António Branco está em Macau para o 9º Encontro de Pontos de Rede de Ensino de Português como Língua Estrangeira na Ásia. O académico considera que Macau pode liderar no desenvolvimento de ferramentas de inteligência artificial

 

Quais os riscos e oportunidades do uso da Inteligência Artificial (IA) generativa no ensino de línguas?

É sobejamente conhecido que as novas tecnologias trazem benefícios que anteriores tecnologias não conseguiam assegurar, mas sabe-se também que a introdução de novas tecnologias tem o potencial de aprofundar a desigualdade entre os seus utilizadores se tal efeito não for mitigado com contramedidas. A tecnologia da IA, e em concreto na sua aplicação ao ensino da língua, não é excepção. Tem o potencial de fazer avançar mais rápida e eficazmente a aprendizagem da língua, mas estudos recentes vêm mostrar que pode também levar os alunos a uma desvantagem, que é o facto de não conseguirem ultrapassar essas suas desvantagens se não existir a devida mediação pedagógica na exploração destas tecnologias.

Desta forma, que medidas devem as escolas adoptar para melhor se adaptarem a este salto evolutivo?

Guardadas as devidas distâncias, ainda assim pode ajudar a analogia com o que aconteceu há cerca de duas décadas atrás, com o advento das novas tecnologias digitais e da internet. Nessa altura, e desde então, uma medida das mais importantes tem sido dar formação aos professores para que melhor possam tirar partido da tecnologia. Com o recente advento da IA, um novo impulso de formação dos professores é imperativo.

Além do trabalho como investigador, é também director-geral da PORTULAN CLARIN. De que se trata concretamente?

É uma Infraestrutura de Investigação para a Ciência e Tecnologia da Linguagem e pertence ao Roteiro Nacional de Infraestruturas de Investigação de Relevância Estratégica, sendo o nó nacional [em Portugal] da infra-estrutura internacional CLARIN ERIC. A sua missão é apoiar investigadores e inovadores, mas também professores e estudantes da língua cujas actividades dependem de resultados da Ciência e Tecnologia da Linguagem através da distribuição de recursos científicos, do fornecimento de apoio tecnológico, da prestação de consultoria e da disseminação científica. Os serviços de processamento da língua, por exemplo o conjugador ou os analisadores sintáticos, são disponibilizados gratuitamente e podem ser facilmente experimentados online na bancada da infraestrutura. Assim, fazem parte do portfólio de novos instrumentos de apoio ao ensino e aprendizagem da língua.

Está em Macau para participar num colóquio focado no ensino de português como língua estrangeira. Poderia o território tornar-se numa zona experimental para o desenvolvimento deste tipo de plataformas digitais?
Macau beneficia do efeito combinado da sua herança histórica que lhe confere a vantagem de ser um território que promove o multilinguismo, bem como da sua integração na área da Grande Baía, que o coloca no epicentro da inovação tecnológica. Mais do que uma zona experimental, Macau poderá liderar o desenvolvimento e a exploração da nova tecnologia de IA, e em muito particular a sua aplicação à tecnologia e processamento da linguagem natural.

Acredita que livros e manuais escolares como hoje os conhecemos poderão desaparecer e dar lugar a e-books e conteúdos feitos por IA? Ou haverá espaço para complementaridade?

O passado recente, de exposição a novas tecnologias disruptivas, ensina-nos que devemos ser prudentes a vaticinar a extinção de anteriores formas e práticas sociais e culturais. Por exemplo, o livro em papel foi declarado em extinção acelerada, mas afinal continua connosco com grande vitalidade, em complementaridade com outros tipos de suporte e canais de disseminação. Estou inclinado a pensar que o mesmo se vá passar relativamente aos benefícios da aplicação da IA no ensino. Acima de tudo, o que precisamos urgentemente neste momento é de desenvolver novas formas de mediação pedagógica que ajudem os alunos a tirar o melhor partido possível deste benefício. A IA, por si própria, tal como um navegador da web, não é uma ferramenta pedagógica, também em si mesmo uma chatbot não é um instrumento pedagógico, mas nas mãos e com a orientação dos professores pode certamente transformar-se num dos mais importantes meios de aprendizagem da língua.

Há possibilidade de uma maior conexão dos modelos “Albertina” e “Gervásio” de linguagem IA generativa, sistema por si coordenado em Portugal, com as instituições de Macau e o seu sistema de ensino?

A possibilidade de os modelos de linguagem de IA generativa desenvolvidos pelo nosso grupo de investigação, o “Albertina” e o “Gervásio”, poderem reflectir a realidade linguística e cultural de Macau encontra-se a ser trabalhada. Com o apoio de instituições de Macau, assim como do IILP – Instituto Internacional da Língua Portuguesa, há um corpus de texto de Macau que está a ser recolhido. Esse é um primeiro passo para se poder afinar os modelos. Muito gostaria que este encontro desta semana em Macau sobre o ensino da língua portuguesa na Ásia, possibilitasse encontrar mais parceiros para passos seguintes.

Os modelos “Albertina” e “Gervásio”

Se falarmos do desenvolvimento da IA em Portugal, o nome de António Branco surge nas últimas tendências e projectos. No caso da IA generativa, o cientista é coordenador dos modelos “Albertina” e “Gervásio” que integram o ecossistema dos grandes modelos de linguagem IA generativa. No caso dos modelos “Albertina”, que são codificadores de linguagem, foi acrescentado o modelo “Albertina 1.5B”; enquanto que aos modelos “Gervásio”, descodificadores de linguagem, foi acrescentado o modelo 7B.

Segundo o website da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, António Branco considera que este ecossistema de modelos de linguagem IA generativa “é crucial para a tecnologia da língua portuguesa e esta expansão representa um passo da maior importância na preparação da língua portuguesa para a era da IA”. O cientista acrescentou ainda que “estas classes de modelos estão na base de toda a gama de aplicações de IA generativa, incluindo as mais mediáticas, como os chatbots ou os tradutores automáticos, e sendo maiores, estes novos modelos têm melhor desempenho”.

Ainda segundo o mesmo portal, este ecossistema “é líder mundial em termos de grandes modelos de linguagem desenvolvidos especificamente para a língua portuguesa que são totalmente abertos e documentados”, sendo que o primeiro modelo Albertina foi disponibilizado em Maio do ano passado. Este foi “um marco histórico na preparação tecnológica da língua portuguesa para a era digital, ao ser o primeiro grande modelo de linguagem aberto desenvolvido especificamente para o português, para ambas as variantes”.

António Branco irá falar hoje, a partir das 10h, de todo este universo na sessão inaugural do 9º Encontro, promovido pelo Instituto Português do Oriente (IPOR), e que decorre até amanhã no Auditório Dr. Stanley Ho do Consulado-geral de Portugal em Macau e Hong Kong. O investigador irá partilhar o auditório com João Laurentino Neves, ex-director do IPOR e actual director-executivo do Instituto Internacional da Língua Portuguesa, que irá discorrer sobre “Tecnologias da língua e língua de tecnologias – O IILP na era dos conteúdos e dos dados”.

22 Nov 2024

Maria José de Freitas, arquitecta: “A nova identidade de Macau é um processo”

A arquitecta Maria José de Freitas é uma das convidadas do Fórum do Património Cultural da Zona da Grande Baía, que tem hoje início. Amanhã irá falar sobre o “património partilhado da Grande Baía”, que ao longo dos séculos recebeu muitas influências culturais. A arquitecta elogia a acção dialogante do Governo da RAEM e diz que a identidade de Macau está sempre em construção

 

O que se entende por património partilhado da Grande Baía?

O património partilhado é um grupo científico que existe no ICOMOS [International Council of Monuments and Sites] e que tem a ver com o património que, à época da sua construção, foi partilhado por diversas culturas. No caso de Macau, temos os portugueses que trouxeram na sua bagagem cultural gente de outros continentes, Tailândia, Japão e Índia, e que tinham um vocabulário arquitectónico e urbanístico que foi transmitido para o património edificado que hoje temos. Tudo isso continuou depois no período da Administração portuguesa. Podemos dizer que essa herança continua hoje quando são convidados arquitectos e urbanistas estrangeiros a fazer intervenções em Macau. Nesse aspecto, o território sempre teve um papel e ligação com um âmbito bastante vasto.

Temos ainda Hong Kong, que surge na altura dos grandes impérios [meados do século XIX], e que bebeu da influência cultural dos ingleses. Foi algo que se transmitiu numa arquitectura vitoriana também replicada em Macau e em toda a Ásia nessa altura.

E na China?

Em Cantão surgiu uma arquitectura neoclássica ocidental praticada por orientais, e que depois foi vivida por uma comunidade multicultural na sua génese. É uma arquitectura que, ao longo da sua existência, tem continuado a ser visitada e manteve uma narrativa que engloba a miscigenação cultural. É nesse sentido que falamos do património partilhado, sem que haja uma diferenciação de épocas. É assim que esse património é usufruído, dessa partilha, e é aí que entram os valores que levaram à classificação pela UNESCO do Centro Histórico de Macau. É importante frisar que algumas cidades mais recentes do Delta do Rio das Pérolas, como Zhuhai ou Shenzhen, também têm influências internacionais. As sociedades que pertencem à Grande Baía têm influências vincadas dessa multiculturalidade.

Que exemplos pode apontar?

Temos as Kaiping Towers [torres de vigia fortificadas, com vários andares, construídas em aldeias], que foram desenhadas por emigrantes por questões de defesa. Nas cidades, também mais recentes, de Zhongshan e Foshan, há uma influência ao nível urbanístico. Esta multiculturalidade, que é vivida e que é evidente, deve ser estudada e partilhada em termos de conhecimento e actuações. Existem pressões, até do ponto de vista das alterações climáticas e subida do nível da água do rio. Além dos sucessivos aterros construídos, que têm estrangulado as margens do rio, trazendo alguma poluição atmosférica. Todos esses factores afectam o património existente nas cidades portuárias e piscatórias, pelo que há situações comuns e que devem ser tratadas com uma visão regional e internacional. Há cidades portuárias em todo o mundo que sofrem estas vicissitudes e que tem centros históricos.

Como pode ser feita essa conexão?

Podem-se fazer estudos com resultados mais efectivos. Macau pode desempenhar um papel bastante dialogante dado o seu contexto histórico. Prova disso é fazermos este colóquio. O papel de plataforma de Macau sempre aconteceu desde o início da existência do território, porque sempre houve uma ponte entre a China e o mundo em redor. A China potencia Macau como locutor privilegiado com os países de língua portuguesa. O papel que Macau venha a desempenhar nas cidades da Grande Baía prende-se com esta ligação e abertura que o território sempre teve para acolher outras ideias e culturas.

A actual direcção do Instituto Cultural está alinhada com essa visão mais global em relação ao património?

Penso que sim, pela realização destas reuniões internacionais que me parecem bastante oportunas. Também pelo facto de a presidente [Delang Leong] ter ido a Portugal contactar universidades e com a Direcção-geral do Património, o que dá abertura e entrosamento entre o que está a ser feito em Macau e o conhecimento que se procura lá fora, e este é o caminho certo. Estou curiosa em relação ao contexto desta conferência internacional, para perceber o que os colegas de outras cidades vão dizer e o que têm para partilhar. Macau está a seguir o caminho de abertura, que é visível, e também com outras empresas, no que diz respeito à responsabilidade social corporativa, em que também está a ser feito um caminho faseado. Há novas áreas de conhecimento, culturais e de estudo. Não se pode fazer tudo a um tempo só e o IC está a fazer esse caminho.

No contexto da parceria com casinos para renovar algumas zonas da cidade há o caso da Rua da Felicidade e do Centro Comunitário Kam Pek. Acredita que o futuro do património não passa pela perda da história e memória colectiva.

Sim, isso está presente nas intervenções do IC, que tem tido essa situação bem presente em todos os diálogos que são feitos. Não penso que isso esteja em causa [uma possível perda da história e memória colectiva sobre os lugares]. Houve a questão do pavimento nas Casas-museu da Taipa, mas na altura não sabia o que estava a acontecer. Vi depois que houve uma intervenção em que foi criada uma faixa com granito que dá para percorrer com maior facilidade. Há que melhorar as situações para que sejam sentidas pela população da forma mais correcta possível. O IC tem de trabalhar em conjunto com as direcções de Serviço do Trânsito, Ambiente, Obras Públicas e com o Instituto para os Assuntos Municipais, porque está em causa a preservação da cidade. Há também a questão de existir um filtro em relação ao número de pessoas que visitam certos locais. Deve ser feita uma contagem do número de pessoas que visitam as Ruínas de São Paulo e aprovar medidas concretas sobre isso. Na Rua da Felicidade, algumas medidas implementadas foram revertidas [o fecho parcial da rua ao trânsito], foram apenas experiências. No princípio não se faz tudo bem ou mal, e vai-se balizando. É importante que, tanto o IC como a população, façam essa avaliação, incluindo os comerciantes que estão nos sítios, e os académicos. Toda esta metodologia pode depois ser partilhada com Hong Kong ou Shenzhen.

Defendeu há pouco a sua tese de doutoramento sobre o património de Macau. Conclui nesse trabalho que o território tem construído a sua identidade própria a nível patrimonial. Como tem sido feito esse caminho, e com que actores?

Concluí que Macau sempre teve em si uma identidade múltipla, com chineses, portugueses, macaenses, japoneses e todos os que aqui aportaram e encontraram a sua casa. Essa identidade múltipla era negociada entre portugueses e chineses, e também macaenses. As outras culturas que cá estavam também eram ouvidas.

De que forma isso se tem manifestado?

Com a protecção do Farol da Guia, por exemplo. São eles que elevam a voz e fazem interrogações. O Governo chinês classificou a culinária macaense e o teatro em patuá, há o conhecimento vasto de uma identidade abrangente, e sempre foi assim. Com a negociação dos novos contratos de jogo, após a transição, surgiram outras empresas de jogo que trouxeram outras culturas, com os americanos e neozelandeses que se interessam pela cultura do sítio. Com as novas licenças de jogo isso vai continuar, e Macau passou a ter um papel mais abrangente em termos de multiculturalidade do que tinha antes. Temos mais situações em confronto, mais manifestações culturais. A nova identidade de Macau é mais um processo do que propriamente uma definição, e está em permanente evolução.

Na tese apresenta algumas medidas para a defesa da herança cultural. Faltam técnicos no IC, arqueólogos, investimento público, para que se preserve mais a partir de novas investigações?

É importante que haja técnicos, e até de outros países. Não me parece importante que estejam sediados em Macau, pois podem trabalhar a partir de qualquer parte do mundo em regime de outsourcing. Importa é que o IC esteja ciente dessa situação e que haja uma abrangência cultural com conhecimentos vários vindos de diversas regiões do mundo. Cabe ao Governo fazer essa coordenação em conjunto com universidades de todo o mundo, porque este é um património também mundial.

No ensino superior local, à excepção talvez da Universidade de São José (USJ), não tem existido muito foco nas áreas da Arqueologia e História.

A Universidade Cidade de Macau e a USJ também promovem alguns encontros no âmbito da arquitectura, urbanismo e História, mas era importante que a própria Universidade de Macau (UM) tivesse mais cursos de doutoramento e pós-graduação relacionados com o património arquitectónico existente. Mas a UM está em expansão e pode abranger novos campos de intervenção, podendo existir mais parcerias com a Universidade de Coimbra, por exemplo.

Já existe um Plano de Salvaguarda do Centro Histórico. Entende que é necessário mais dinamismo por parte do IC, dado o atraso na sua publicação?

Os planos são revistos a cada cinco anos. O Plano demorou a aparecer e há algum desfasamento, pois alguns casos poderiam ter sido evitados se o Plano tivesse sido elaborado por altura da classificação do Centro Histórico, em 2005. Refiro-me à zona do Farol da Guia. Temo, porém, que quando os edifícios que estão a ser construídos na Zona A se perturbe a visualização do farol. Na Igreja da Penha a volumetria dos edifícios em volta veio a ser reduzida, o que mostra que a população está atenta, tal como o IC. Há também o caso de Lai Chi Vun e da preservação dos estaleiros. Elogio a visão do IC que tem dado voz a este incómodo sentido, e que depois vai respondendo de forma assertiva.

Falou da pressão das alterações climáticas. O que deve ser feito para lidar com a subida da água do rio?

Esse problema vem do século XIX, pois vários urbanistas vieram de Portugal para Macau e nunca conseguiram resolver o problema. O leito do rio foi sendo resolvido em virtude da construção dos aterros, e isso tem consequências. Devem ser feitos modelos conceptuais e diques de contenção. Mas esta situação engloba todo o delta, não é uma situação que deva ser pensada apenas em Macau.

Um Fórum, dois dias

O Fórum do Património Cultural da Zona da Grande Baía, organizado pelo Instituto Cultural, decorre hoje e amanhã. O tema principal dos debates será “Integração e partilha do património cultural na Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau”, tentando-se promover, com académicos e técnicos de várias cidades da região, um diálogo sobre o futuro da defesa do património. O evento terá lugar no Centro Cultural de Macau.

31 Out 2024

Rui Marcelo, novo conselheiro das comunidades portuguesas: “Quero ouvir as necessidades de todos”

Rui Marcelo é o homem que sucede a Rita Santos no Conselho das Comunidades Portuguesas depois da eleição em Lisboa, há cerca de duas semanas. O responsável promete ouvir os portugueses e trabalhar de perto com as autoridades locais. O mote da acção como conselheiro mantém-se: “fortalecer a ligação entre as comunidades no estrangeiro e Portugal”

 

Rita Santos deixou subitamente o cargo de conselheira que mantinha há muitos anos. Foi difícil aceitar o desafio de concorrer de forma repentina?

Substituir Rita Santos num cargo de grande responsabilidade, como é o de Presidente do Conselho Regional da Ásia e Oceânia, do Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP), é uma tarefa que exige não apenas dedicação, mas também um profundo compromisso com as comunidades que representamos. No entanto, este tem sido um trabalho conjunto que temos partilhado ao longo dos últimos dois anos e meio, altura em que fui convidado a incorporar um projecto que desse sequência ao excelente trabalho desenvolvido por José Pereira Coutinho, Rita Santos, e pelos meus ex-colegas conselheiros Gilberto Camacho e Armando de Jesus, no CCP nas últimas duas décadas. [Este trabalho] culminou com a minha integração na lista ao sufrágio do CCP do Círculo da China, cujo acto eleitoral decorreu no dia 26 de Novembro de 2023, onde fomos eleitos para um novo mandato de quatro anos. Tive o privilégio de organizar e participar em reuniões do Conselho Regional da Ásia e Oceânia na qualidade de assessor, e de acompanhar Rita Santos, em 2023, numa visita de trabalho a Portugal no âmbito da reunião anual do Conselho Permanente do CCP. Rita Santos manifestou-me, no início deste ano, o desejo de se preparar para concorrer às eleições para a Assembleia Legislativa de Macau, em 2025, um facto que foi também anunciado na altura pelo deputado José Pereira Coutinho. Comunicou-me em Agosto a sua decisão de suspender o mandato de conselheira para prosseguir o seu desígnio.

Que objectivos pretende cumprir na qualidade de conselheiro?

Além do cargo de presidente do Conselho Regional do CCP, fui nomeado para o cargo de Secretário do Conselho Permanente do CCP, que coordena a execução do plano global de acção do Conselho e emite pareceres sobre as políticas relativas às comunidades portuguesas, além de assegurarem a comunicação, enquanto órgão consultivo, com o Governo português para as políticas relativas à emigração e às comunidades portuguesas no estrangeiro. Estas nomeações não são apenas o reconhecimento do trabalho desenvolvido até aqui pelo CCP do Círculo da China, mas também uma grande responsabilidade. O meu objectivo principal será fortalecer os laços entre as comunidades portuguesas nas regiões que representamos, que incluem Macau, Hong Kong, o Interior da China, Timor-Leste, Austrália, Banguecoque, Tóquio, Seul e Singapura, e promover a cultura, a língua e os interesses dos portugueses que nelas residem. Acredito que, juntos, poderemos enfrentar os desafios com que nos iremos deparar e aproveitar as oportunidades para enriquecer a nossa comunidade e potenciar as nossas capacidades.

Que balanço faz da reunião em Lisboa? Que temas relacionados com a diáspora portuguesa foram abordados?

Nesse plenário reuniram-se 76 conselheiros eleitos a 26 de Novembro de 2023 e foram eleitos os representantes dos Conselhos Regionais e das Comissões Temáticas, além de ter sido nomeado o novo presidente do Conselho Permanente do CCP [Flávio Martins]. Foram três dias de trabalho muito intensos, dos quais saíram propostas e iniciativas a serem implementadas nos próximos anos, que culminaram na apresentação do programa de acção para o novo mandato. O Conselho Permanente do Conselho das Comunidades Portuguesas já anunciou, entretanto, o programa de acção global aprovado para o quadriénio 2023-2027 [ver texto secundário].

Acha que o CCP, pela sua importância, deveria merecer maior atenção por parte das autoridades portuguesas?

Como órgão consultivo junto do Estado português, compete-nos interpretar e exprimir, junto das autoridades portuguesas, os legítimos anseios e aspirações das comunidades de portugueses emigrados, para que estas possam corresponder às suas expectativas de uma forma mais eficaz. Os conselheiros, como seus representantes nos respectivos países de acolhimento, têm a responsabilidade de promover o diálogo entre os portugueses e lusodescendentes e as respectivas autoridades e instituições, facilitando uma integração harmoniosa e reconhecendo o valor da sua participação cívica. Considero, assim, que o CCP desempenha um papel fundamental na representação dos cidadãos portugueses no exterior, pelo que é fundamental o apoio das autoridades portuguesas para o fortalecimento da ligação entre as comunidades no estrangeiro e Portugal, promovendo uma maior participação cívica e cultural.

Que problemáticas denota nas comunidades portuguesas na Ásia, ao nível dos serviços consulares e questões culturais, por exemplo, que gostaria de ver resolvidas?

Nas atribuições e competências do Círculo da China e Conselho Regional da Ásia e Oceânia no CCP existem atribuições e competências que são um importante ponto de referência para a elaboração de uma série de questões reivindicativas, compreendendo a importância dos fenómenos avaliativos e evolutivos da integração local nas directivas do Conselho. Estes aspectos são essenciais para a resolução de diversos problemas das regiões que representamos, que envolvem uma extensa comunidade portuguesa, que possui uma importante actividade profissional, empreendedora e cultural. Esta desempenha um papel fundamental no desenvolvimento e na preservação de suas especificidades socioculturais, relativas ao património e simbólicas, devido ao longo processo histórico de presença portuguesa nestas regiões.

Nas minhas novas funções, estou comprometido a ouvir as necessidades e preocupações de todos e a trabalhar de forma cooperante com os membros do Conselho, com os Consulados e Embaixadas das várias regiões, e também com as autoridades locais. Espero que, através deste trabalho, possamos construir um futuro mais próspero e coeso para todas as comunidades Portuguesas que representamos.

Novo Plano de Acção do CCP com foco na cidadania e economia

São muitos os pontos a desenvolver pelo Conselho das Comunidades Portuguesas até 2027 no âmbito da promoção da cultura portuguesa, fomento da participação cívica e melhoramento do funcionamento das representações consulares.

Segundo o LusoJornal, um dos pontos do plano prende-se com a área “da cidadania e participações cívica e política”, pois “uma condição fundamental em qualquer sociedade democrática, respeitadora de princípios defensores do pluralismo, diversidade e igualdade é que os portugueses e lusodescendentes se sintam sujeitos activos nos processos decisórios a todos os níveis”.

Propõe-se, assim, “promover uma política de requalificação dos consulados, assegurando uma prestação de serviços que verdadeiramente funcione e seja um eficaz elo de ligação às comunidades”. São também desejadas mais “medidas que visem aumentar a participação cívica dos cidadãos não residentes em todos os actos eleitorais para os quais forem convocados a exercer esse seu direito”, bem como a “revisão da Lei Eleitoral”. Sugere-se ainda “o aumento de deputados pelos Círculos da Emigração” na Assembleia da República em Portugal.

Outro ponto no Plano de Acção diz respeito ao “ensino do português no estrangeiro, cultura, associativismo e comunicação social”. Desta forma, entende-se que “as políticas desenvolvidas no eixo da Língua e Cultura têm como principal destinatário a juventude lusodescendente”, sendo defendido um reforço “do movimento associativo das Comunidades portuguesas”.

O CCP promete trabalhar para melhorar as transmissões da RTP, a rádio e televisão públicas em Portugal, defendendo que esta “tem que apostar em novas formas de distribuição de conteúdos e de canais”.

Fica a promessa da concretização de acções que assegurem “a gratuitidade do ensino, com a revogação das propinas”, “apoiar a estruturação das escolas portuguesas e do ensino do português no estrangeiro” ou ainda “melhorar e ampliar os apoios ao associativismo”. Pretende-se também “apoiar a comunicação social de raiz portuguesa na diáspora”.

Economia e companhia

Finalmente, no terceiro e último eixo de acção, o foco faz-se nas “questões sociais, económicas e dos fluxos migratórios”. Para o CCP, “direitos e oportunidades são condições fundamentais para se chegar à igualdade de tratamento almejada pelas comunidades”. Assim, são propostas acções como a defesa “de um tratamento mais favorável ao regime do residente não habitual”, “propugnar um programa de atração e apoio aos jovens descendentes de emigrantes” ou ainda “aumentar o intercâmbio com as redes na Diáspora” nas áreas da cultura ou Câmaras de Comércio, sempre “na defesa dos fluxos sociais e económicos”.

Pretende-se também “reformular o programa ‘Regressar'”, destinado a emigrantes que regressem a Portugal, através da criação de “incentivos fiscais mais amplos e outras medidas de apoio”.

Defende-se também “a revogação da Portaria que alterou o direito de assistência à saúde gratuita em Portugal aos que vivem no estrangeiro”, e que veio retirar muitos utentes da base de dados do Serviço Nacional de Saúde.

29 Out 2024

Cláudia Ribeiro, autora: “A Europa parece um museu”

Autora do livro “No Dorso do Dragão”, Cláudia Ribeiro viveu na China nos anos 80, fez investigações independentes no país e algumas traduções de chinês para português. Ao HM, explica que, para perceber a China, é preciso ir além do taoísmo e confucionismo. Cláudia Ribeiro abordou estes temas na última quinta-feira no Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa

 

Como começou o interesse pelos estudos asiáticos, sobretudo pela China?

Começou na mais baixa infância. O fascínio com os caracteres chineses começou quando os vi pela primeira vez nos créditos de um filme de animação japonês, “O pequeno príncipe e o dragão das oito cabeças”, de 1963. Devia ter cerca de seis anos e fiquei colada à cadeira, extasiada, a olhar para os caracteres dos créditos. Pouco tempo depois li “O Loto Azul”, a aventura de Tintim na China e, de novo, fiquei fascinada com os caracteres e com a China e os chineses. Mas, já antes dos caracteres, lembro-me de uma arca chinesa lacada na casa de uma velha senhora. Os objectos criados pelos chineses atraíam-me. E japoneses. Quanto aos Estudos Asiáticos enquanto área de conhecimento, era algo totalmente fora do meu radar na época em que ingressei na faculdade. Essa opção, simplesmente, não existia em Portugal e não existiu durante as duas décadas seguintes. Havia um curso livre de chinês na Faculdade de Letras, leccionado por Alexandre Li Ching. Claro que me inscrevi e com uma alegria louca. Nos anos 1980, era o único local em todo o país onde era possível aprender chinês.

Quais as primeiras dificuldades que sentiu quando chegou à China?

As normais com que nos deparamos quando se vai viver para um país diferente pela primeira vez. Encontrava-me numa universidade e, portanto, tinha colegas ocidentais e japoneses que já lá estavam há mais tempo e que transmitiam informação aos novatos. Depois, foi adquirir novos hábitos, estoicos. O que me custou foi o frio, sou africana.

Foi desafiante o contacto com uma cultura e línguas tão diferentes?

Fui para lá precisamente em busca desse desafio. Queria contactar com aquela língua e aquela cultura diferente. Nasci e cresci nos anos finais da Angola colonial, no Lubango. Quando vim para Portugal, durante o processo de descolonização, tive de me adaptar a um país e a um povo muitíssimo diferentes de Angola e dos brancos nascidos na Angola colonial. Sentia uma falta tremenda de viver com outros povos e culturas. Felizmente, Portugal tem-se vindo a tornar num país multi-étnico e multi-cultural, o que é muito mais interessante.

No Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM) falou sobre a China como a conheceu, nos anos 80. Como era encarado o estrangeiro nessa época?

Estive na China como estudante de chinês interessada em “viver” o país. Era a era de Deng Xiaoping, uma China a dar os primeiros passos para sair de um nível de vida muito humilde e a pressentir já um futuro diferente, pelo qual os chineses, em especial os jovens, ansiavam com impaciência. Era, por isso, uma época de esperança. Havia maior liberdade de expressão e muitas mudanças a terem lugar a nível económico e cultural.

Como se denotava essa liberdade?

Havia uma abertura, cautelosa, a actuações de músicos pop, como os Wham!, e exposições de artistas contemporâneos ocidentais, como Robert Rauschenberg. Foi a década em que floresceu a arte contemporânea chinesa e em que resmas de livros de filósofos, historiadores e escritores ocidentais eram traduzidas, publicadas e lidas com sofreguidão. Era também uma China onde os chineses ainda não podiam viajar livremente. O seu contacto com ocidentais tinha sido muito limitado e a maioria da população olhava-os como se fossem extraterrestres. A curiosidade por eles era desmedida, sobretudo se fossem americanos. Os chineses gostam da riqueza material e julgavam que todos os americanos eram ricos, como tinham visto na série televisiva “Dallas”. Queriam muito saber se tínhamos carro, frigorífico, televisão e quanto tinham custado. O frigorífico era ainda um luxo e o carro particular um bem muitíssimo difícil de adquirir. Os chineses moviam-se a bicicleta e transportes públicos.

Publicou “No Dorso do Dragão” em 2001, que fala dessa experiência. Que diferenças destaca na China entre a data da publicação do livro e o período actual?

Publiquei, entretanto, uma versão revista desse livro em 2023. “No Dorso do Dragão” foi escrito entre 1995 e 1998, e quando o estava a escrever a China já era diferente daquela em que eu tinha vivido. A China é sempre um mesmo-outro, desenvolve-se por camadas e, se raspamos um pouco, afloramos o seu passado. Há muitos aspectos em que permanece idêntica, e muitos outros em que se tornou diferente. É um país que retirou da pobreza 850 milhões de pessoas em quarenta anos, um feito absolutamente extraordinário e que nunca é demais frisar. Mas o germe da China de hoje, desse país vibrante, cheio de vida e de esperança, que caminha confiante rumo ao futuro, já estava presente nos anos oitenta. Nas cidades chinesas, basta sair para a rua e é palpável uma trepidação, um ímpeto avassalador. Por comparação com os chineses, os europeus parecem zombies, gente mole, refastelada, auto-complacente. E a Europa parece um museu que se exibe sem se renovar.

Até que ponto a filosofia, ou correntes como o taoísmo e o confucionismo, podem ajudar a compreender o sujeito chinês e a sua forma de pensar?

Para tentar compreender qualquer povo há que ter em conta os sistemas de crenças mais decisivos, religiosas e filosóficas, assim como outros factores, a geografia, a história política. É possível compreender os europeus sem compreender o cristianismo, o judaísmo e o islamismo? Não. No caso da China, não só o taoísmo e o confucionismo, como ainda o legalismo e a religião popular, que são autóctones; mas também sistemas de crenças estrangeiros, como o budismo, proveniente da Índia, e o marxismo, proveniente da Europa, e depois o maoísmo. Dominar tudo isso é uma tarefa ciclópica. A China é como um dodecaedro infinito de espelhos.

Portugal continua a não ter muitos sinólogos. Como explica essa questão?

Portugal não tem sinólogos. Um sinólogo é alguém capaz de ler e compreender fluentemente o chinês antigo, com um conhecimento muito profundo e alargado acerca da China clássica. Uma estirpe rara que possivelmente está em extinção no Ocidente. Na maioria das universidades adopta-se o termo Estudos Chineses ou Asiáticos, ou ainda da Ásia Oriental. A explicação pode vir da História, pois os sinólogos, como os cientistas ou os filósofos, não brotam da terra como os poetas populares, os pintores naïfs e os cantadores. Formam-se. A aprendizagem deve ser exigente, começar cedo e avançar sem interrupções. Mas Portugal tem sofrido de uma enorme instabilidade institucional e tudo quanto exige tempo e perseverança acaba por soçobrar. Portugal é um país que se tem esvaziado ciclicamente. Esvaziou-se de população com os Descobrimentos, tornando as instituições periclitantes durante um largo período de tempo. Esvaziou-se de população em Alcácer Quibir, esvaziou-se de população com a imigração e a ida para as colónias, esvaziou-se em extensão geográfica e, simbolicamente, com o desmoronar do império. Agora esvazia-se de jovens promissores. Esta ausência parece ter-se tornado endémica.

Mas há um contacto com a China desde há séculos. O que ficou?

Em matéria de obras científicas, o que resultou da era dos Descobrimentos foram uns poucos tratados dispersos e de cariz coleccionista, dependentes da observação: descrição de espécimes, história natural, botânica. Homens como Garcia da Orta, na área da botânica, Duarte Pacheco Pereira, na área da geografia, e D. João de Castro, na área do magnetismo terrestre, são excepções e não deixaram escola, embora tivessem deixado obra. Mas quem os leria? Só os estrangeiros e o punhado de portugueses que sabia ler. Certo é que o desamor pelos livros está profundamente arreigado nos portugueses. A ausência de livros nas casas dos nobres portugueses sempre chocou os forasteiros. Instalou-se uma desconfiança em relação ao saber teórico quando há problemas imediatos a ser resolvidos, por exemplo, de subsistência económica, como se fosse possível resolvê-los sem teoria. Há uma valorização da aplicação e das actividades práticas. Ora, a sinologia não se pode desenvolver sem um profundo amor pelos livros, desde logo porque os chineses são um povo da escrita e, portanto, da leitura e dos livros.

Isto reflecte-se no que sucede aos estudantes portugueses que se deslocam ao estrangeiro munidos de bolsas para assimilarem o conhecimento que lá fora se faz, coisa que se pratica desde a Idade Média.

Em que sentido?

Os estudantes acabam por ficar lá devido às condições de vida e de trabalho superiores ou, por mais brilhantes que sejam, não correspondem às expectativas quando regressam ao país. E isso porque não encontram estruturas de apoio nem uma sociedade capaz de apreciar aquilo que estudaram. Já os estrangeirados do séc. XIX se debatiam com este problema, com a impossibilidade de aumentar e difundir o conhecimento numa sociedade atavicamente inculta e pouco receptiva ao saber.

Também passou por isso quando voltou a Portugal?

Sim. Nos anos 1980 as pessoas tomavam a minha decisão de estudar chinês e de ir para a China como uma esquisitice incompreensível. E, quando regressei, no início dos anos 1990, deparei-me, é claro, com o mesmo deserto de que partira. Até prosseguir o estudo da língua chinesa era difícil. Só havia aulas de níveis inferiores ao meu. A curiosidade das pessoas pela China era igual a zero. Perguntavam-me “Então, gostaste, não foi?” e tratavam era de falar da vida delas. Quanto aos Estudos Chineses, a questão do estado larvar em que se encontram em Portugal tem muito a ver com tudo isto. Além disso, estiveram subjugados pelo peso do estudo dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa que é limitado a uma Ásia contemplada através dessa perspectiva.

Há cada vez mais estudos sobre a língua e cultura chinesas em Portugal, mas o que precisa verdadeiramente mudar?

Há que resolver uma série de problemas para que se consigam desenvolver plenamente. O investimento na aprendizagem e na formação tem de aumentar, assim como o acesso a fontes de origem asiática e a colaboração com investigadores asiáticos. Em princípio, seria possível agora construir instituições estáveis, um ensino capaz e maduro. Mas, para tanto, é preciso vontade colectiva e quebrar o círculo vicioso da ignorância para que o povo valorize a cultura.

21 Out 2024

José Drummond, curador de “Aqui e Agora” | Histórias de um “espaço intermédio”

Que arte se faz em Macau 25 anos depois da transição? Que mensagens os artistas passam? A exposição “Aqui e Agora”, patente até 20 de Dezembro em Lisboa na União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa, dá algumas respostas. José Drummond, um dos curadores da mostra, considera que o Governo da RAEM devia mudar o foco das políticas culturais e prestar apoio ao desenvolvimento de galerias de arte

 

Esta exposição celebra o aniversário da RAEM. Quais as grandes mensagens reveladas nesta mostra?

Até à data, que se saiba, é o único evento que fala sobre o 25º aniversário da RAEM em Portugal, o que é estranho, ou não, mas que demonstra o modo como os sucessivos Governos portugueses foram olhando para Macau antes e depois da transferência. “Aqui e Agora” é um título que remete para o estado deste momento, 25 anos depois. Graficamente temos 25 bolas [prateadas, colocadas na imagem oficial da exposição], em que cada uma corresponde a um artista, sendo que há a questão de funcionarem como espelhos.

Porquê estes elementos?

Remetem, no fundo, para a própria vivência em Macau, pois as pessoas, da comunidade chinesa e portuguesa, acabam sempre por viver num espaço intermédio. Nesse espaço as comunidades, apesar de relativamente separadas uma da outra, as coisas continuam a acontecer e a influência mútua de ambas as comunidades é muito intensa. A exposição, e os trabalhos que seleccionámos, falam um pouco sobre esse espaço híbrido que Macau é muito naturalmente, seja em termos arquitectónicos, com os monumentos, começando logo pelas Ruínas de São Paulo, que é um ícone da presença portuguesa, mas que continua a ser o ponto máximo do turismo da RAEM. Estes trabalhos que mostramos aqui falam, portanto, sobre identidade, esse potencial encontro entre duas culturas que, não diria opostas, acabam por se completar em Macau e têm uma presença muito particular, contribuindo em termos artísticos. Acho completamente notório que os artistas de Macau são completamente diferentes dos de Hong Kong, Taiwan ou Interior da China, exactamente pela existência dessas duas culturas e reflectirem sobre esse espaço onde vivem.

Fale-me um pouco dos artistas escolhidos para esta mostra.

Trata-se de 25 artistas que nunca expuseram em Portugal com a AFA – Art for All, que não é a primeira vez que expõe em Lisboa. Metade destes artistas pertencem à chamada nova geração, e, numa boa descrição do que é Macau, temos artistas chineses, que já nasceram no território, mas depois temos referências muito interessantes de artistas de Macau que deixaram o território para viver noutros lugares, como é o caso do Season Lao, que vive há muito tempo no Japão, ou o caso contrário, da MJ Lee, sul-coreana que passou por Macau e acabou por se tornar numa artista de Macau. Também o caso do Felix Vong, que tendo nascido em Portugal decidiu vir viver para cá estudar na ESBAL [Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa], depois de viver em Macau. Temos também o Rui Rasquinho, que é português, mas que vive em Macau há muitos anos, e Alexandre Marreiros que é macaense. Esta é a realidade de Macau, a variedade, um lugar de permanência e impermanência também.

Porquê tão poucos nomes portugueses, por exemplo?

São os artistas com obras mais recentes. No caso de Alexandre Marreiros foi uma referência quase imediata, no caso do Rui [Rasquinho] também, que tem estado bastante activo com várias exposições em Macau.

Como descreve o “Aqui e Agora” da área cultural, em Macau?

No fundo queremos perceber o que mudou ou não, e será que mudaram assim tantas coisas, e acentuar esse marco temporal, a ideia de que “25 anos depois é isto”. A cultura em Macau mudou superficialmente, com mais casinos ou coisas que os casinos estão a fazer, porque ao nível simbólico a cultura de Macau permanece muito própria. Continuamos a ter os temas essenciais da cultura de Macau, como a identidade, a construção, o passado, o futuro, as questões urbanas, e essas questões já existiam há 25 anos, apesar da cidade estar fisicamente diferente. É isso que vemos também nestes trabalhos. Mas sinto que os trabalhos destes artistas são obviamente diferentes dos trabalhos de pessoas da minha geração, dos anos 90.

Hoje há mais formação superior, também. Isso influenciou a nova geração na forma de fazer arte?

As opções continuam a ser mais ou menos as mesmas para estudar, como Paris, Portugal, Taiwan, Cantão ou Pequim. Mas a maior parte destes artistas fizeram formação em Pequim ou Taiwan. As coisas acabaram por ser relativamente mais fáceis do que poderiam ser há 25 anos, no sentido de potenciar estes talentos e poderem ambicionar estudar. Há 25 anos talvez a sociedade de Macau não estivesse tão preparada para aceitar que um filho quisesse estudar artes como hoje. Claro que isso também é fruto de uma série de associações que foram criadas nos últimos 25 anos, não foi apenas a AFA, e que acabaram por dinamizar a cultura e as artes plásticas dentro do território. Havendo mais estruturas, também mais jovens querem seguir esse caminho, e nesse sentido Macau está diferente. Não sei se o papel do Governo não será também importante aqui.

Em que sentido?

Há 25 anos o Governo operava de outra forma. No período da administração portuguesa, o Museu de Arte de Macau apareceu no último ano da administração [1999], pelo que não é apenas uma coisa da sociedade e das associações, até porque estas são largamente apoiadas por entidades governamentais.

Em 25 anos não surgiram mais mecenas nas artes, por exemplo, um verdadeiro sector cultural com um importante movimento de compradores?

O Governo tem tentado. Não sou completamente crítico nesse sentido, mas penso que é um erro pensar que as artes são uma indústria cultural, porque não podem ser. O que se faz a seguir, com os livros ou as t-shirts, isso é que são produtos. O objecto artístico em si não, a sua tendência natural é serem objectos únicos. Penso que é esse entendimento que falta ao Governo, perceber que a arte não pode ser tratada como um sector como é a área do design, por exemplo. Mas há meios que são criados em Macau que, em Portugal, os artistas adorariam ter, nomeadamente ao nível dos apoios. Apesar de ter havido mais interesse por parte das operadoras de jogo, como a MGM que faz exposições, e que apresentou obras de Joana Vasconcelos, continua a faltar entre aquilo que é promovido nos casinos e pelo Governo, um modelo económico que possa apoiar galerias comerciais. Aí sim poderíamos falar de uma indústria.

Que são muito importantes para mostrar os trabalhos artísticos.

A arte, em qualquer lado do mundo, vive dessa confluência de energias na qual as galerias comerciais são absolutamente necessárias porque são elas que irão dar independência ao artista, no sentido que ele não precisa de ter outro trabalho para viver ou comprar materiais. As galerias comerciais tornam mais fácil a existência de um artista que não está dependente dos subsídios, passando a depender do contrato com a galeria e as suas vendas. Aqui é que o Governo deveria realizar um estudo de viabilidade de apoios a galerias comerciais, que não são, forçosamente, indústrias culturais.

Qual a obra mais marcante desta nova geração que o público poderá ver?

Podemos falar do trabalho de Kay Zhang, que no fundo fala sobre as mulheres dos pescadores de Macau, que, quando os barcos desapareciam, guardavam os restos dos barcos. É um trabalho com uma grande carga emocional, muito directa sobre uma profissão que praticamente desapareceu em Macau. Podemos também falar do trabalho do Felix Vong, contrário ao da Kay, com mensagens mais directas, mas que falam essencialmente da solidão, de um certo voyeurismo, o querer fazer parte de qualquer coisa, continuando solitário, mas estando atento aos barulhos dos vizinhos, por exemplo. Temos o trabalho do Rui Rasquinho, muito abstracto, mas com uma clara inspiração na pintura tradicional chinesa. Passamos depois para o trabalho do Season Lao, que vive no Japão. Se no Rui Rasquinho há uma energia de Macau, num traço mais nervoso, no Season, que também tem a ver com a pintura tradicional chinesa, ele apresenta fotografias imprimidas por si que cola sobre papel de parede. É um processo mais trabalhoso que exige uma calma maior do que os livros do Rui, sendo que partem também de uma certa inspiração da pintura tradicional chinesa, com as montanhas e a paisagem.

No mesmo espaço apresenta-se ainda outra exposição, “Ensemble”, da qual também fez a curadoria. De que se trata?

É uma mostra que já esteve patente em Paris e Roma. Foi uma questão de oportunidade de mostrar a exposição em Lisboa, apresentando-se três artistas que, em teoria e visualmente, poderão não ter nada a ver uns com os outros. Daí nasceu a ideia de “Ensemble”, em que cada instrumento tem um som diferente, mas que juntos criam uma composição musical. A ideia da exposição passa por aí também, pois temos, por exemplo, os trabalhos do Eric Fok, com grande detalhe, extremamente figurativos, com uma alusão à memória, carregados de humor também.

Mais de duas décadas de arte

“Aqui e Agora” é uma exposição colectiva com artistas contemporâneos de Macau co-organizada pela Art for All Society (AFA) e com a curadoria de José Drummond e James Chu. O foco acabou por recair nos artistas da nova geração, que estudaram fora, que regressaram ou que partiram, com destaque para dois nomes portugueses. É o caso de Catherine Cheong, Rui Rasquinho e Alexandre Marreiros, e outros mais jovens, como Angel Chan, Chiang Wai Lan, Felix Vong, Ieon Man Hin, Karen Yun, Kuok Hou Tang, Kun Wan Tou, Lai Sut Weng, Lei Chek On, Lei Hio Lam, Kit Lei, Leon Chi-Mou, Leong Chon, Leong Fei In, Leong Man Teng, MJ Lee, Season Lao, Sisi Wong, Wong Hio-Chit, Xixia Wu, Yao Mou In e Kay Zhang. Na exposição “Ensemble”, que pode ser vista também na UCCLA, contam-se trabalhos de James Chu, Eric Fok e Kit Lee.

24 Set 2024

Duarte Drumond Braga, co-coordenador do projecto “PortAsia” | Uma porta para as letras

Lançado na quinta-feira, o livro “Literatura e Vida Intelectual em Língua Portuguesa na Ásia e no Índico” é um catálogo bibliográfico, editado pelo Centro Científico e Cultural de Macau em parceria com a Universidade de Macau, que vai além da ideia “nacionalista” dos escritos em português produzidos entre Goa, Macau e Moçambique. O académico Duarte Drumond Braga revela ao HM detalhes sobre o projecto “PortAsia”

 

Com o projecto “PortAsia”, de onde nasceu o livro “Literatura e Vida Intelectual em Língua Portuguesa na Ásia e no Índico”, são propostas ideias em torno de uma nova escrita asiática em língua portuguesa e de uma nova forma de literatura. Pretendem criar novos rumos nesta área?

O “PortAsia” começou em 2021, sendo coordenado por mim e por Marta Pacheco Pinto, ambos ligados ao Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. É um projecto exploratório financiado pela Fundação para as Ciências e Tecnologia e este livro é o resultado principal deste projecto, bem como um website. No que diz respeito à literatura em língua portuguesa, percebemos que sobre Portugal, Brasil e África já existem imensos estudos, ao contrário das escritas e literaturas da Ásia, que estão ainda pouco estudadas, nomeadamente Goa, Macau e Timor. Preferimos falar em escritas do que em literaturas, porque há muitos textos e obras manuscritas que não são propriamente literatura como romances, poesia ou contos. Não entrámos no mundo dos jornais, e analisámos apenas cinco bibliotecas. Destaco que incluímos também o Arquivo Histórico de Macau, o Arquivo Histórico de Moçambique, o que constitui uma novidade.

Porquê?

Trazemos Moçambique para este estudo, daí falarmos no Índico. África Oriental tem ligações com Goa, com todo o mundo índico, e pareceu-nos que Moçambique poderia constar nesta obra. Falamos [com este livro] de um catálogo, uma obra bastante árida, não é algo para ler, é uma obra de consulta. Temos aqui um conceito de literatura mais aberto, e por isso chamamos a este livro “Literatura e Vida Intelectual”, pois incluímos produção cultural em língua portuguesa na Ásia.

Falamos em estudos religiosos, crónicas, escritos etnográficos.

Sim.

São escritos que nascem, sobretudo, das rotas comerciais que existiam à época.

Sim. Estes escritos centram-se sobretudo entre os séculos XIX e XX, de 1820 a 1955, quando foi a Conferência de Bandung. Há uma série de publicações que surgem a partir de 1820, e até a própria imprensa se desenvolve. Por isso escolhemos esse período temporal. Tentámos incluir coisas que não sejam muito coloniais, por assim dizer. A ideia de escrita asiática tem a ver também com a escrita por asiáticos, não é apenas por representantes coloniais. Embora no caso de Macau isso seja bastante complexo.

Escolheram sobretudo autores portugueses, da então metrópole.

Sim, porque foi mesmo impossível não os escolher. No caso de Goa foi mais fácil, pois temos uma comunidade intelectual etnicamente indiana forte, e em Macau não temos praticamente uma comunidade chinesa a publicar em português. Nunca tivemos.

E o que se publicou da comunidade macaense é muito pouco.

Sim, sendo que muitas vezes é difícil distinguir, ou mesmo impossível. E falo dos jornais em que se assinava com pseudónimos, por exemplo, é difícil distinguir quem é e não é macaense.

É referido no livro que a Conferência de Bandung lançou a Ásia “como um sujeito de pleno direito”. Discute-se a descolonização, emergiram novos escritos e figuras?

A questão é que não há propriamente uma questão comum para Macau, Goa e Timor relativamente ao fim do império colonial na Ásia. Temos 1975, uma data que claramente não servem, porque é mais para as antigas colónias portuguesas em África, e depois na Ásia temos 1961 para Goa, Damão e Diu, 1974-1975 para Timor e depois 20 de Dezembro de 1999 para Macau. E assumo aqui que há uma história colonial em Macau. Muitos autores afirmam que Macau nunca foi uma colónia, mas tenho muitas dúvidas sobre isso.

Pelo menos até 1972 [data da retirada de Macau da lista dos territórios colonizados na ONU] foi.

Pois. Ou até mesmo até 1974. Há um período colonial da história de Macau, mas o que me parece é que há muitas pessoas que falam com a negociação com a comunidade chinesa para justificar que Macau não fosse uma colónia, mas negociações com as comunidades locais há em todo o lado, até em Angola. Parece-me um argumento fraco, mas que salta à vista em muitos textos sobre o assunto.

Estamos então perante um catálogo com referências bibliográficas para apoiar investigadores e académicos.

É também um teste, porque, para já, são apenas cinco bibliotecas que pesquisámos. As bibliotecas em Lisboa talvez nem sejam as mais significativas em termos do número de obras [com referências asiáticas], teríamos de ter ido para a Biblioteca Nacional, que não consta aqui. Trata-se de um projecto de pequeno porte e é uma espécie de ensaio para ver se esta ideia funciona. É um projecto que pode continuar, se existir financiamento.

Que autores constam neste catálogo com referências a Macau?

Fizemos uma separação por locais de publicação, pois entendemos que era significativo. Em relação aos livros publicados em Macau, importa perceber quais são os livros que estão em determinadas bibliotecas e porquê, e quais são. É uma investigação que ainda se pode fazer. Temos, por exemplo, o Joaquim Bastos, que é um macaense interessante do século XIX; há o padre Manuel Teixeira, um autor português metropolitano, mas entendemos que deveria constar nesta lista; temos o Jack Braga. Há muitos macaenses nesta selecção e que acabam por suprir essa falta, porque, de certa forma, os macaenses são aqueles que melhor correspondem à comunidade dos chamados “naturais”, isto é, da comunidade macaense a escrever em português. Não há um grande avanço em relação a Macau, mas esse avanço dá-se no conjunto, criando-se uma visão ampla. Mas há muitas obras sobre Macau que nunca foram trabalhadas. A surpresa existe, precisamente, na comparação com Goa e Timor e com Moçambique, com referência ao Índico.

Muitos destes textos foram transferidos para outros locais ao longo dos anos. Temos o exemplo de uma obra de 1912 de L. O. Shirley que foi publicada em Macau, mas que acabou por ir parar ao Arquivo Histórico de Moçambique.

É algo importante e uma investigação que pode ser feita a partir deste livro. Quem levou as obras para os locais de destino, e porque foram publicadas em determinados sítios. Há esta migração de intelectuais dentro do império que importa ainda estudar. O livro chama a atenção para isso e constitui um instrumento para futuras investigações.

A vossa equipa tratou também três espólios, além das obras dispersas em arquivos e bibliotecas, de personalidades como Moniz Barreto, Sebastião Rodolfo Dalgado e do padre António da Silva Rêgo. Porquê inclui-los?

Analisámos estas bibliotecas sem saber que existiam estes espólios. Percebemos que havia bibliotecas dentro das bibliotecas, por exemplo na Academia das Ciências foi a professora Marta Pinto que trabalhou a biblioteca, já identificada, de Pedro Dalgado, um importante intelectual goês. Entendemos que deveria ser tratada à parte por constituir uma doação e um legado do próprio Dalgado que nunca foi integrado na restante biblioteca. É um legado muito interessante porque ele era linguista, estudioso do sânscrito, estudava os crioulos de base portuguesa da Ásia e deixou uma biblioteca muito actualizada na altura em que foi doada, no início do século XX. Isto vai contra aquela ideia que aparece em muitos lados que os estudos orientais e orientalistas em Portugal sempre foram fracos, insipientes. Se fosse feita mais investigação não se diria tanto isso. Não quero parecer arrogante, mas é algo que tenho de dizer. Descobrimos vários exemplos de que isso não é tanto assim.

Assumem também que este livro contradiz a “ideia nacionalista da língua”. Em que sentido?

Essa é a parte mais complexa do livro, pois a área das literaturas em língua portuguesa está muito ligada ao modelo “Nação”, de uma literatura nacional. Só havia literatura portuguesa, brasileira e ultramarina, era assim que se chamava a tudo o resto. Quando as literaturas africanas aparecem a partir da independência [das antigas colónias], continuam a estar ligadas ao modelo nacional. O modelo de literatura nacional, que vem desde o Romantismo, a Filologia, a ideia de que há um génio pátrio que depois se manifesta na história e literatura, como manifestações de uma espécie de génio nacional. Na Ásia não se pode colocar dessa forma. Macau e Goa são regiões que sempre foram de outros países, o modelo nacional aí não cai bem. Os estudos portugueses, focados nas literaturas de língua portuguesa, não sabem lidar com as literaturas não nacionais.

Nesta lista surgem, por exemplo, obras em inglês e até outras línguas.

No caso do Jack Braga [macaense], escrevia muitas obras em inglês. Porque só se podem incluir os escritos dele em português? A cegueira linguística não favorece um projecto como este. Textos em outras línguas também têm de ser incluídos.

Andreia Sofia Silva

Pernas para andar

O “PortAsia – Asian Writing in Portuguese: Mapping Literary and Intelectual Archives in Lisbon and Macau (1820-1955)” tem o objectivo de “criar um arquivo dentro dos arquivos”, por se tratarem de “livros e documentos que são marcadamente marginais, quer no contexto dos arquivos portugueses, quer no da Ásia, quer ainda no do império português”. Assim, a ideia é criar um catálogo, apoiado por um website, que possa servir “como importante ferramenta de trabalho bem como bibliografia fundamental dessa produção, permitindo a análise comparada”. Este catálogo e website irão constituir “uma recolha coerente de referências, congregando a localização material de espólios de modo a permitir o estudo em conjunto destes materiais dispersos”, descreve-se no portal da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. O livro “Literatura e Vida Intelectual em Língua Portuguesa na Ásia e no Índico”, talvez o primeiro passo deste projecto com grande amplitude, foi lançado na quinta-feira no Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa.

15 Set 2024

José Ferreira Pinto, académico: “Vivemos um período de transição”

O professor da Universidade Cidade de Macau, José Ferreira Pinto, lançou este ano o livro “From Efficiency to Well-being”, um guia prático de gestão com base em cinco critérios: classificação, organização, limpeza, padronização e sustentação. O académico considera fundamental a elaboração de um estudo aprofundado sobre as PME locais

 

Porque decidiu editar este livro e quando será o lançamento oficial?

Este livro tem por objectivo apoiar os gestores de equipas e criar um local de trabalho que reflecte as relações humanas em harmonia com as necessidades do trabalho a desenvolver. O livro aparece na transição da minha carreira para a vida académica e como forma de contribuir para os profissionais de hotelaria em Macau. O lançamento oficial será feito até ao final deste ano. Ainda estou a decidir onde e quando será o lançamento. Estou a procurar apoio local e internacional para as despesas que já tive na criação da primeira edição de autor. O livro será apresentado na Conferência Mundial de Bem-Estar da OCDE que se realiza em Roma durante os dias 4 e 6 Novembro deste ano. Procuro agora apoio para esta conferência.

Quais as grandes regras para uma maior eficiência das empresas, sobretudo as operadoras de jogo e resorts?

A coexistência de diferentes modelos de negócios parece-me ser o maior desafio interno. Outro advém da pressão que existe nos resultados financeiros trimestrais das empresas que são cotadas na bolsa no actual contexto social, político e económico. Há depois a complexidade acrescida da dimensão das operadoras e o que elas representam para a sociedade local ao empregar dezenas de milhares de funcionários. A zona do Cotai Strip tem evoluído à medida que os terrenos das concessões são ocupados com novos empreendimentos, crescendo no que diz respeito à variedade da oferta turística e oportunidades para os empregados. A zona do Cotai Strip passou por diversas fases.

Quais?

Uma de iniciação, em que o Venetian desempenhou um papel muito importante na atracção dos turistas pela novidade na oferta turística e dimensão dos edifícios, espaços e operações em geral. A segunda, de consolidação, em que as operadoras abrandaram o ritmo de abertura de novas propriedades e consolidaram essa oferta, agora mais focada no desenvolvimento da estrutura existente do que criar novas instalações. A terceira fase, em transição no momento, é o foco na sustentabilidade por iniciativa própria das concessionárias e também em conjunto com a direcção das entidades reguladoras. O Cotai tem vindo, neste contexto, a trabalhar nas várias dimensões de sustentabilidade, o que significa, de entre muitas coisas, desenvolver os 17 objectivos do milénio promulgados pela ONU.

Como se verifica, na prática, este lado de sustentabilidade do Cotai?

Criando-se espaço para a atracção dos turistas e também pelo facto de o Cotai continuar a ser uma zona atractiva para os trabalhadores pelas condições que oferecem aos empregados. No que diz respeito à eficiência, esta é gerida pelos princípios da criação de mais e melhor interacção entre as pessoas, e também entre elas e o local de trabalho.

Foi director de recursos humanos numa operadora de jogo a partir de 2011, onde implantou o modelo Kaizen. Em que consiste e quais os impactos na empresa?

A filosofia Kaizen define um conjunto de princípios que visam a melhoria do espaço de trabalho e o respeito pelos trabalhadores. Na sua essência, é apresentada como uma “melhoria contínua”, constituindo um universo de práticas focadas na evolução e melhoria incremental dos processos, produtos e serviços de uma organização que estão centradas na humanização do espaço de trabalho. Ela envolve o incentivo, material e imaterial, de todos os elementos da empresa e abrange duas ideias fundamentais, “de cima para baixo e de baixo para cima”, nas direcções e orientações gerais de suporte e incentivo e dos empregados que estão a interagir com os clientes da organização para os gestores. A percepção dos gestores é combinada com a perspectiva dos empregados, algo muito importante. O foco do modelo Kaizen é minimizar gastos desnecessários, mantendo-se satisfeitos o cliente e o empregado da organização. Na empresa onde trabalhei a influência foi de tal maneira importante que ainda consta dos relatórios financeiros da entidade.

Pode dar exemplos do que foi feito?

Posso referir, por exemplo, o envolvimento de quase todos os departamentos da empresa em evoluções de 8 a 12 semanas no desenho de protótipos, na apresentação de soluções alternativas e na exploração da ideia de “criatividade acima do uso de capital”. O esforço colectivo foi amplificado pelo facto de a empresa ter apostado na formação interna de “formadores Kaizen” em vez de se basear apenas na utilização de serviços de consultoria. Isso foi, sem dúvida, inovador em termos de hospitalidade, ainda para mais porque aconteceu há uma década atrás quando ainda não se falava tanto do modelo Kaizen. Tudo se deveu a circunstâncias que criaram sinergia e objectivos comuns de desenvolvimento. Houve chefias com imensa experiência em hotelaria e gestão dos recursos humanos a nível internacional, e, ainda, uma vontade de explorar e inovar processos de trabalho quase considerados sagrados na indústria hoteleira. Essa foi talvez a fase mais importante e interessante da minha carreira na indústria.

Que desafios ao nível da eficiência enfrentam os resorts integrados de Macau?

Há vários desafios de natureza interna que não são específicos do Cotai, mas a mais importante advém da dimensão das empresas e do número de pessoas que empregam. Quando uma equipa ou organização atinge um alto nível de eficiência, ela pode deparar-se com uma série de desafios e limitações significativas. A resistência à mudança e o pensamento de grupo podem impedir a inovação e a adaptação, enquanto o risco de burnout e a pressão constante para manter o desempenho podem afectar negativamente o bem-estar dos funcionários. O foco excessivo em métricas e eficiência pode levar à perda de flexibilidade e à negligência de aspectos importantes como a criatividade e a inovação. Além disso, a organização pode enfrentar retornos diminutos dos esforços de melhoria, dificuldades em manter o momento e limitações tecnológicas que impedem avanços adicionais. Equilibrar a busca pela eficiência com a necessidade de adaptabilidade, inovação e bem-estar dos funcionários torna-se, portanto, um desafio crítico para equipas e organizações que atingiram altos níveis de eficiência. O livro fala exactamente deste equilíbrio.

Pode exemplificar?

Tenho um capítulo em que apresento a “Well-being Canvas”, em que faço um exercício pessoal de reflexão e pode ser usado por uma pequena equipa também. A ideia é procurar na própria pessoa aquilo que contextualmente significa a noção de bem-estar. O modelo Canvas tem uma base teórica, mas as questões são práticas e enriquecedoras do diálogo que podemos estabelecer connosco de forma individual, e sobre o que é para cada um de nós a ideia de bem-estar. Acredito que a resposta está no exercício constante de reflexão individual e repetido, pois este conceito muda com o tempo e o contexto onde nos inserimos.

A pandemia trouxe desafios a este nível de eficiência das empresas locais, sobretudo em matéria de recursos humanos? Como?

As minhas funções terminaram no final de 2020 e os resorts implementaram várias medidas tendo em vista a solvabilidade dos negócios. O que posso adiantar é que os recursos humanos tiveram uma importância fulcral na minimização dos distúrbios ao normal funcionamento das operações, além de se ter tentado antecipar algumas das consequências operacionais das orientações fornecidas pelas autoridades com especial relevo em tentar assegurar empregos. Foram tempos de muita mudança e incerteza, disrupção e adversidade. Acho que ainda estamos todos a aprender sobre a extensão das consequências desse tempo.

No que diz respeito às Pequenas e Médias Empresas (PME) de Macau as técnicas e modelos de eficiência tem de ser diferentes, por se tratarem de diferentes modelos de negócio?

Certamente. A dimensão do negócio é um factor determinante, pois o número de pessoas é consideravelmente menor, mas os recursos em geral são escassos. Toda a gente está assoberbada de trabalho, mas há um contacto mais directo com a necessidade constante de melhorar, embora não haja muito tempo para pensar e discutir. As PME implementam por necessidade essas melhorias e encaram a inovação como uma parte integrante da necessidade de sobreviver como negócio, sempre num contexto de competitividade.

Há um debate em torno da necessidade de bem-estar no trabalho junto de alguns grupos de trabalhadores, nomeadamente croupiers. Macau está ainda aquém das melhores práticas internacionais?

Os desafios dos croupiers são bastante mais complexos e envolvem o contexto social, familiar e também o local de trabalho onde passam um terço do seu dia. Há cumprimento cabal dos requisitos da lei de Macau e uma preocupação constante com este grupo de trabalhadores, até porque por eles passa a maior fonte de receita das operadoras. Há questões relacionadas com a rotatividade de funções, tempos de descanso, equipamento de suporte à função que são acautelados pelos gestores de operações nos casinos. Há uma constante aprendizagem interna entre departamentos na partilha dos problemas e na procura colectiva de soluções.

Trabalhou na Direcção dos Serviços de Turismo na área do licenciamento de negócios. É uma área que necessita de mais flexibilidade para que as PME se possam desenvolver?

Estive nesse cargo até meados de 2011. Entretanto o Governo tem desenvolvido vários esforços para ir ao encontro dessas necessidades da população, em especial no domínio digital. As PME de Macau são maioritariamente organizações de estrutura de micro-empresa com características familiares. Apesar dos esforços das associações locais, há pouca informação sobre as PME em Macau.

Como colmatar essa situação?

Seria importante inovar para se ter um estudo alargado sobre as PME, com estatísticas periódicas, uma vez que elas são o motor da economia e factor determinante na diversificação regional no âmbito da política económica “1+4”. Os programas de apoios para as PME adoptados durante a pandemia desempenharam um papel fundamental, daí ser necessário avaliar o seu impacto efectivo nestas empresas e de que forma podem responder a novos contextos de incerteza [económica], disrupção e adversidade.

Macau precisa de flexibilizar as políticas de recursos humanos?

O momento que vivemos é de transição. Haverá sempre espaço para a adaptação, e acho que com a facilidade de circulação na Grande Baía, essa flexibilização regional será inevitável. Aliás, há exemplos de outros países que estão a apostar nessa flexibilização e que agora procuram captar profissionais que durante anos trabalharam em Macau. Contudo, vejo esforços para manter essa experiência valiosa nesta região tendo em conta que outros países como a Tailândia e o Japão estão a apostar forte no desenvolvimento dos conceitos de resort integrado, tão desenvolvido nas últimas duas décadas em Macau.

19 Ago 2024

Eduardo Loureiro, advogado, sobre sector da aviação civil: “No início, o monopólio fez sentido”

O advogado Eduardo Loureiro foi o orador numa palestra sobre aviação civil de Macau, promovida esta semana pela Câmara de Comércio França-Macau. Em entrevista ao HM, defende que as licenças, no processo de liberalização do mercado, poderão ser de 10 anos e que a aprovação da lei não deve ser demorada sob pena de ficar desactualizada

 

A proposta de lei sobre a aviação civil está em análise na especialidade na Assembleia Legislativa. Há muito que o Governo pretende liberalizar o mercado. A demora deste processo tem prejudicado o mercado?

Não. Todas as liberalizações que aconteceram em vários países demoraram até mais tempo. É preciso ver que Macau é um mercado muito pequeno, tem uma situação delicada pois tem um aeroporto em competição com, pelo menos, cinco na vizinhança, e todos eles internacionais. No Japão, nos anos 50, houve um processo de liberalização que demorou algum tempo, e foram apenas permitidas três empresas. Houve o cuidado de estabelecer rotas e tarifas. O mercado de Macau não está a ser afectado [por esta espera] porque várias empresas vêm para o território. A proposta de lei tem de passar ainda pela fase da especialidade e aí pode haver muitas mudanças. Deram mais três anos de concessão à Air Macau e, pelo que li, nas notícias penso que se quis ver qual era o prazo para as futuras licenças. Actualmente é de 25 anos, e não sei se se pretende criar um prazo que seja parecido com o sector do jogo, que na nova versão legislativa é de 10 anos. Foram apenas três anos [de extensão da concessão à Air Macau], o que dá tempo para uma adaptação para que novas empresas se possam preparar caso queiram vir para Macau. Depois haverá a distribuição das licenças por concurso, embora também esteja prevista a figura do ajuste directo, mas penso que será aberto concurso. Terá então de ser analisado quantas licenças comporta o mercado.

E quantas pode comportar? Tendo em conta que o sector do jogo tem seis licenças, o mercado de aviação suporta mais ou menos?

Depende das rotas que essas empresas vão comprar, digamos assim. Pode-se dizer que o mercado está saturado porque as pessoas podem apanhar um avião através de Hong Kong. Mas há aeroportos que servem cidades de nível 1, em termos populacionais. Todas as que estão logo abaixo, de nível 2, não estão servidas directamente por um aeroporto. Muitas vezes esse mercado pode ser lucrativo para várias empresas, que em vez de concorrerem numa rota de Hong Kong para Londres, por exemplo, vão de Hong Kong para Manchester. Servem cidades que surgem logo a seguir em termos de fluxo de passageiros e de carga. É difícil dizer quantas empresas vão entrar no mercado. Algumas simplesmente vão aparecer porque outras decidiram entrar.

Há essa influência.

Sim, muitas empresas funcionam assim. Apostam num mercado depois de terem conhecimento que empresas concorrentes vão entrar. Não sabem o que é o mercado nem o que vai existir nele, mas olham para a empresa concorrente e pensam que deve haver alguma coisa de atractivo para ela fazer essa aposta, e tomam essa decisão. Fazem-se estudos de mercado sobre a população que existe perto de determinado aeroporto, analisa-se as principais actividades económicas e o fluxo de pessoas por aeroporto, e aí analisa-se a possibilidade de atrair uma parte desse fluxo. Tudo isto está ligado ao número de licenças a atribuir. O Governo [de Macau] pode fazer uma auscultação para tentar perceber quantas empresas estariam realmente interessadas e depois então determinar um número de licenças que dê para comportar. Ou então, pura e simplesmente, decide atribuir três ou seis, ou até cinco mais discricionariamente. Pode ser usado qualquer método.

Falando do período de atribuição das licenças. É melhor ser de 10 anos, ou de 25 anos?

Pode ser de 10 anos porque normalmente as previsões das empresas são feitas a cada cinco anos. Isso corresponde a dois períodos, uma década. As empresas querem sempre saber se querem utilizar um aeroporto como destino de passageiros ou onde possam recolhê-los e viajar para outros lados. Não vejo qualquer problema que se atribuam licenças de 10 anos porque nesta área há um grande desenvolvimento tecnológico e pode mesmo ser necessário reduzir os prazos das licenças. Está a decorrer uma grande transformação em todo o sector do transporte aéreo internacional e há novos tipos de equipamento aéreo mais rápido, mais ecológico e que permitem ligar cidades ou pontos mais pequenos. O tráfego, em vez de se fazer por terra, faz-se por ar. Isso vai acontecer, porque as pessoas saem dos carros e passam a deslocar-se no ar.

Há o potencial de Macau vir a ter o transporte por helicóptero mais desenvolvido, à semelhança do que acontece em São Paulo, por exemplo, nas deslocações para territórios vizinhos?

Sim. Aí a própria noção de aeroporto também se modifica, porque um aeroporto tem pistas de aterragem, e com as novas tecnologias que estão a ser desenvolvidas, com os chamados aparelhos de descolagem vertical, deixa-se de ser necessário construir aeroportos ou equipamentos tão grandes. Neste momento, há um número reduzido de pessoas que viaja de helicóptero, e até carga, mas no futuro pode haver mudanças. Com uma descolagem vertical não é necessário ter uma pista de aterragem. Esse é o resultado da ligação da tecnologia ligada ao espaço e ao ar. Os aviões, para terem mais velocidade, vão subir mais alto do que sobem agora, e falamos de velocidades vertiginosas, maiores do que aquelas que existem agora. O normal actualmente é de cerca de 900 quilómetros por hora, e pode ultrapassar três a cinco vezes mais essa velocidade, e essa tecnologia já existe. Mas não existem ainda os acordos necessários para isto se efectivar e ser aceite.

Tantos anos de monopólio da Air Macau tiveram impacto negativo no mercado local?

Não, porque este monopólio coincidiu com a entrada em funcionamento do aeroporto. Para se criar uma indústria é necessário haver um certo nível de protecção, porque o mercado de Macau é mais pequeno e está em competição com outros, e essa foi a solução de momento. É claro que agora já se pode avançar para um outro nível. Mas, no início, o monopólio fez sentido. Caso contrário era quase impossível existir uma companhia de bandeira de Macau, pois imediatamente teria o mercado tomado por outras empresas de fora ou uma extensão de outra empresa com base nos aeroportos que estão à volta. O monopólio foi a solução encontrada para criar rotas e trazer passageiros. Corria-se o risco de o aeroporto não ter, sequer, movimento.

Foi preciso criar mercado.

Sim. Neste caso pretendia-se trazer um novo tipo de actividade económica para Macau e nem todos os territórios deste tipo têm isso. Há territórios demasiado pequenos para terem aeroporto, como é o caso do Mónaco, que recorre ao aeroporto de Nice. Gibraltar tem um aeroporto que está no meio de uma estrada, que funciona como estrada e pista de aterragem.

Neste processo de liberalização haverá maior interesse de empresas chinesas ou do sudeste asiático?

As empresas chinesas têm já muitas ligações com Macau, mas poderá haver uma ou outra que tenha interesse em estabelecer-se no território, por incentivos fiscais ou através da criação de outras rotas. A novidade vai ser empresas que venham de mais longe, talvez do Médio Oriente, que podem fazer voos entre o Ocidente e o Extremo Oriente, aterrando em cidades que ainda não estão servidas de rotas directas. Esta será a primeira internacionalização que prevejo. Depois poderá haver ligações directas para a América do Norte e depois para a América do Sul, em que não há nenhuma ligação. Tendo em conta os fluxos de comércio que já existem, faz sentido existirem essas conexões.

Do que conhecemos da proposta de lei que está na Assembleia Legislativa, considera que tem um conteúdo inovador e equilibrado?

É bastante extensa, inovadora onde pode ser. A aviação civil é uma área em que a inovação é muito rápida e em termos legislativos não se consegue estar completamente ao mesmo nível. Na área dos drones, por exemplo, há um desenvolvimento muito maior do que a possibilidade de se legislar sobre o assunto. É uma proposta de lei que abrange mais áreas, que estabelece alguns princípios a fim de evitar conflitos de interesses entre a Administração, que faz a supervisão, e possíveis empresas que estejam em contacto com a realidade da aviação. A proposta de lei cobre uma série de áreas e está bem integrada com os tratados e acordos multilaterais que estão em vigor. É bastante mais extensa e melhor do que a anterior. Se demorarem muito tempo na análise na especialidade a proposta de lei entra rapidamente em desactualização, porque é assim nesta área. Não se pode demorar muito tempo, se não há o risco de ficar desactualizada antes de ser publicada. Mas tenho a dizer que há um aumento previsto do mercado de aviação, tendo em conta alguns estudos que vi da Airbus e Boeing, e outras, são todos coincidentes a concluir o aumento do tráfego aéreo, há essa expectativa. Sei que é mais de 10 por cento por ano, e isso sustenta a liberalização do mercado, só esse factor. Mas a própria liberalização traz um aumento de mercado, porque as pessoas quando têm mais possibilidades vão experimentar. Há necessidades de transporte de pessoas e de carga que neste momento demoram mais tempo porque têm de usar outros pontos. Se houver uma concentração em Macau, isso pode ser concorrencial. Macau pode ser mesmo concorrencial se utilizar mecanismos, e estão previstos alguns, de incentivos fiscais, custos mais baixos e um bom sistema de escoamento de carga e pessoas. Em Macau aplicam-se todos os tratados internacionais à excepção de um, e em Hong Kong a mesma coisa. Trata-se de um acordo que só se aplica no Interior da China, que é a Convenção da Cidade do Cabo, sobre o que se pode fazer em caso de insolvência das empresas de aviação para poder recuperar os aviões que ficam parados. Portanto, em matéria de tratados internacionais não existe qualquer problema, nem no facto de a legislação ter demorado cerca de 20 anos a ser revista. Houve países em que se demorou mais tempo.

2 Ago 2024

Violência doméstica | Associação organiza workshops com sobreviventes

Cecília Ho, académica e conselheira da Associação de Apoio Mútuo às Vítimas de Violência Doméstica de Macau, relata ao HM o mais recente projecto da entidade: ensinar sobreviventes de violência doméstica a relatar histórias de vida e traumas vividos. Já foram realizados dois workshops

Qual a importância deste projecto em Macau? Parece ser algo inovador.

Em Macau, a ideia de envolver os utentes na prática e educação em torno do trabalho social é algo pouco popular. A maioria dos utentes são encarados como “beneficiários de serviços”, enquanto as vítimas de violência doméstica são tidas como “frágeis” e “vulneráveis”. Estas vítimas podem mais facilmente ser afectadas pela exposição das suas experiências publicamente. Assim, envolver os sobreviventes de violência doméstica na educação do público e dos profissionais envolvidos no combate e prevenção deste tipo de crime é uma abordagem inovadora e progressista. O lema da nossa associação é “Nada sobre nós, sem nós”, e, assim, o conceito de envolvimento dos utentes pode relacionar-se com as ideias de democracia, capacidade e desenvolvimento de serviços. Na Associação de Apoio Mútuo às Vítimas de Violência Doméstica de Macau (MDVVMS, na sigla inglesa) temos conseguido envolver diferentes voluntários e mentores de diferentes origens. Somos todos iguais e respeitamo-nos mutuamente no intuito de ouvir as vozes dos sobreviventes de violência doméstica que nos relatam as histórias pelas quais passaram. Mas também reconhecemos o conhecimento e sabedoria destes utentes durante o período de sobrevivência em contexto de relações abusivas. As suas experiências e conhecimentos são preciosos e podem constituir um grande contributo para que a nossa sociedade compreenda o problema social, com raízes profundas, que é a violência doméstica, e que ainda é um tema estigmatizado. Daí termos criado a série de workshops “Formação em Biblioteca Humana”, destinada a sobreviventes de violência doméstica.

Na prática como funcionam estes workshops?

Recorrendo a diferentes meios artísticos, como o desenho de auto-retratos, a dramatização interactiva com outras pessoas, a escrita de uma linha cronológica da história de vida e o diálogo conversacional, o nosso workshop visa, em primeiro lugar, permitir que as mulheres sobreviventes cuidem de si. Em segundo lugar, pretende-se que se curem do trauma, ouvindo a sua voz interior, para que possam exprimir emoções profundas como a raiva, tristeza ou tranquilidade. Depois, queremos que as vítimas explorem a sua força interior com o apoio dos nossos mentores e apoiantes. Finalmente, iremos oferecer alguns workshops públicos de formação contra a violência doméstica para que sobreviventes de violência doméstica partilhem as suas histórias, utilizando o formato de biblioteca humana.

Concretamente, como pode este formato ser aplicado em Macau, tendo em conta as características da sociedade?

O conceito de “Biblioteca Humana” cria um espaço seguro para o diálogo, em que diversos temas são discutidos abertamente entre os nossos “livros humanos” e os “leitores”. As sobreviventes de violência doméstica são um grupo frequentemente sujeito a preconceitos, estigmatização ou discriminação, especialmente as esposas recém-migradas da China continental para Macau. Não é fácil implementar este modelo, mas eu, como educadora de trabalho social, tenho vindo a implementar este modelo há mais de 17 anos, pelo que já faz parte da minha abordagem de ensino, especialmente no meu curso de “Trabalho social e diversidade” e “Estudos de género”. Tenho já uma rede, ou “colecções de livros humanos” relacionados com diferentes temas sensíveis e com pessoas alvo de estigma, como as minorias sexuais, toxicodependentes, trabalhadores domésticos estrangeiros e sobreviventes de violência doméstica.

Essa rede participou neste projecto?

Convidei-os a assistir à minha aula para partilharem a sua experiência e dialogarem cara a cara com os alunos de serviço social. Falaram brevemente sobre as regras de leitura dos “livros humanos”, como garantir o respeito, privacidade e o não julgamento, mediante a ideia de que não se deve “julgar o livro pela capa”. Assim, precisamos de mergulhar para compreender as histórias de vida. Combinando o conceito de “Biblioteca Humana” com a comunidade chinesa local, treinamos as nossas sobreviventes e deixamo-las sentir-se seguras e confortáveis para partilhar. Damos-lhes todo o apoio e respeitamos o nível de revelação e participação. As suas histórias devem ser complicadas e precisam de ser organizadas com alguns incidentes significativos, por isso, aprendemos com algumas experiências no estrangeiro, nomeadamente o Centro Nacional de Recursos sobre a Violência Doméstica, nos Estados Unidos da América, que concebeu um guia para ajudar os sobreviventes a explorar a jornada de partilha da sua história com o público. Em suma, a nossa associação tem explorado oportunidades para que sobreviventes partilhem as suas histórias, como realizar discursos para membros do Governo, dar entrevistas aos meios de comunicação, de forma anónima, ou simplesmente dar encorajamento a vítimas durante uma sessão de grupo. Também prestamos formação a assistentes sociais, e no ano passado, por exemplo, demos formação a cerca de 50 conselheiros escolares da Caritas. A resposta foi muito encorajadora e positiva, os participantes sentiram-se muito tocados e compreensivos em relação aos livros dos sobreviventes de violência doméstica, que também se sentiram fortalecidos após o diálogo presencial.

A associação está também a promover um debate público com consultores jurídicos sobre violência doméstica que decorre este domingo. Quais são os principais objectivos deste evento?

Queremos fazer com que o público oiça as vozes dos sobreviventes de violência doméstica, especialmente os seus pontos de vista e a sua experiência no encontro de muitos obstáculos no processo judicial, tais como a inexistência de aconselhamento jurídico adaptado para as vítimas de violência doméstica. A maioria dos casos foram arquivados, por serem tratados como ofensas à integridade física, que um crime semi-público que depende de queixa da vítima, em vez de violência doméstica. Hoje realizamos um primeiro workshop sobre a questão legislativa, e ouvimos também as opiniões dos sobreviventes.

Continua a ser complexo um processo judicial para uma vítima?

As vítimas de violência doméstica enfrentam muitas questões jurídicas relacionadas com divórcio, direitos parentais, pensão de alimentos. Por exemplo, os ex-maridos não pagam a pensão de alimentos regularmente, como podem as mulheres ir a tribunal? Mas os profissionais, nomeadamente os assistentes sociais, têm de ter consciência de que têm a atitude de culpabilizar as vítimas, o que os impede de mostrar empatia e compreensão para com os sobreviventes. Isso cria desconfiança entre profissionais e vítimas, o que não ajuda no processo de intervenção e cura. Esperamos, em última análise, apoiar as mulheres que são vítimas ou sobreviventes a lutarem pelos seus direitos e a ajudarem-se mutuamente, especialmente se viveram experiências de violência doméstica semelhantes. Os nossos workshops têm como missão transformar as experiências abusivas e traumáticas das vítimas em força, conhecimento, sabedoria e paixão pela área dos direitos humanos. A partilha pode, sem dúvida, ser útil para motivar mais pessoas com experiências semelhantes a ganharem coragem para acabar com o ciclo de violência. Também nos preocupamos muito em acabar com a transmissão intergeracional da violência, ou seja, cenários de exposição à violência familiar nas crianças. Para isso, colaborámos com uma organização não governamental e recrutámos adolescentes como voluntários para cuidarem e organizarem actividades para os filhos de sobreviventes de violência doméstica. Podemos testemunhar o impacto negativo sobre as crianças que testemunham a violência parental no grupo de crianças paralelo ao nosso grupo de mulheres.

23 Jul 2024

Augusto Nogueira, presidente da ARTM: “Esperamos que a lei da droga seja revista”

Depois de assinalar o Dia Mundial Contra a Droga e Tráfico Ilícito, a Associação de Reabilitação dos Toxicodependentes de Macau organiza hoje e amanhã na Universidade de Macau um painel de conferências intitulado “Tratamento de perturbações relacionadas com o consumo de substâncias”. Augusto Nogueira, presidente da associação, faz uma antevisão do evento e apresenta algumas sugestões

 

Quais os principais objectivos desta conferência na Universidade de Macau?

Queremos promover o tratamento em contexto de comunidade terapêutica como a opção de maior sucesso em termos de recuperação em detrimento de medidas mais punitivas. Também queremos mostrar os bons serviços que a ARTM tem prestado em termos de tratamento e modernização terapêutica graças ao apoio do Instituto de Acção Social e ao elevado conhecimento dos nossos colaboradores. Tal vai servir para um desenvolvimento das acções de intercâmbio e evidência dos sucessos de outras comunidades terapêuticas.

Um dos pontos deste painel de conferências passa pela entrega de um certificado por parte da ATCA [Australian Therapeutic Community Association] à ARTM. De que se trata e quais os principais benefícios para o vosso trabalho em Macau?

Fomos alvos de uma revisão por parte da ATCA durante uma semana em termos de todos os serviços que providenciamos ao nível da comunidade terapêutica, tratamento, regras e normas adoptadas, sem esquecer as formas de comunicação. Cumprimos com os requisitos e padrões da ATCA e demonstrámos um compromisso ao nível da qualidade e segurança. Este certificado irá fazer com que estejamos mediante revisão e análise constantes dos nossos serviços, o que vai exigir mais de nós para que mais pessoas possam recuperar dos seus problemas. Além disso, o certificado que nos foi atribuído vai constituir uma prova de qualidade e de credibilidade dos nossos serviços terapêuticos.

Irão participar no painel de conferências representantes de países da Ásia, incluindo a China, cujas realidades de tráfico e consumo são diferentes. A ideia é reunir consenso e aprendizagens?

Pretendemos partilhar aprendizagens, métodos e observar o que os outros fazem. Por exemplo, o representante da Vila Maraine, em Itália, vai explicar a cooperação que tem com o poder judicial, em que pessoas com problemas de toxicodependência e de tráfico em pequenas quantidades, ou seja, para sustentar o consumo, tem a possibilidade de poderem ser encaminhados para uma comunidade terapêutica após a condenação a prisão efectiva. Algumas pessoas com pulseira electrónica e outros não necessitam de o fazer, o que acho interessante.

A SARDA [The Society for the Aid and Rehabilitation of Drug Abusers] é uma associação com a qual a ARTM tem laços de amizade e de apoio há muitos anos. É uma associação que também segue os princípios de comunidade terapêutica, mas com outras vertentes, como serviços de metadona. A SARDA tem uma grande dimensão em Hong Kong. Teremos ainda uma mesa redonda sobre a prevenção, algo que na Europa caiu em desuso com consequências negativas bem visíveis, como podemos observar em Portugal. O maior consenso que poderá sair desta conferência é que a prevenção, tratamento e redução de danos têm de estar de mãos dadas. Nunca devemos esquecer que o grande objectivo é a recuperação da pessoa e não a continuidade na dependência.

De Portugal chega a representação de “Ares do Pinhal”, uma comunidade terapêutica. Quais as grandes diferenças e semelhanças com a ARTM em termos de métodos?

As duas instituições têm abordagens bastante semelhantes, embora a “Ares do Pinhal” esteja a desenvolver um trabalho de excelência e de uma maior dimensão a nível de redução de danos, bem como a prestação de apoio a pessoas em situação de sem abrigo. Trata-se de realidades diferentes em comparação com Macau e tenho a certeza que vamos todos aprender muito com eles. Muitas vezes as aprendizagens acontecem, mas as circunstâncias reais não permitem a sua aplicação. No entanto, nós, ARTM, estaremos preparados caso a situação mude com o aumento exponencial do consumo, ou o regresso ao consumo de heroína. Tanto a ARTM como a “Ares do Pinhal” têm um modelo holístico e isso é de valorizar, pois não há muitas instituições a trabalhar desta forma, em que se trabalha o problema da dependência como um todo. Juntam-se os cenários de prevenção, tratamento, reinserção e redução de danos.

Nesta conferência vai ser apresentado o projecto de integração social “Hold On To Hope”. Que balanço faz do trabalho feito até aqui?

Tem sido um balanço bastante positivo, pois já passaram pelo projecto 36 pessoas, sendo que 26 estão reinseridas com sucesso. O projecto “H2H” não visa apenas recolocar as pessoas no mercado de trabalho, mas sobretudo ensinar-lhes valores como a comunicação, pontualidade, responsabilidade e disciplina. Já fizemos quase 30 exposições, cerca de uma por mês. Estamos muito contentes com o projecto que tem sido alvo de grandes elogios a nível mundial na nossa área de trabalho. É pena o facto de continuarmos a ter dificuldades com a falta de estacionamento em Ka-Hó. Seria bom que o Governo resolvesse este problema para o desenvolvimento do projecto e da própria vila.

Que respostas novas para a RAEM podem sair desta conferência?

A resposta nova que pode sair deste evento é o começo de um maior encaminhamento de pessoas com problemas de adição para a ARTM e outras entidades equivalentes. Esperamos também que a lei da droga seja revista para exigir mais provas de tráfico, para que [as autoridades] não partam do pressuposto de que determinada quantidade de droga é para tráfico. Isso iria evitar que muitas pessoas fossem presas, podendo, em alternativa, obter um tratamento adequado.

A tendência mundial é de discriminalização do consumo de droga, mas em Macau a tendência parece ser oposta, e recentemente até uma técnica da Polícia Judiciária (PJ) defendeu, num estudo académico, a possibilidade de pena de morte. Qual o seu comentário sobre este panorama no território?

Não sei se a tendência mundial é mesmo essa, pois nos muitos países que antes tinham essa convicção estão neste momento a ponderar a situação de outra forma, muito devido ao consumo de Fentanyl, onde a redução de danos está a falhar redondamente. Além disso, existem muitos grupos de activistas consumidores que fazem uma comunicação muito agressiva, o que tem irritado alguns países. Estes grupos não pedem apenas descriminalização, mas sim a legalização de todas as drogas. Muita coisa está a mudar e muitas pessoas estão a morrer todos os dias. Muitos dos países estão de acordo com a necessidade de haver serviços de redução de danos com qualidade e o objectivo de incentivar essas pessoas a procurar ajuda, mas a descriminalizar como um direito é algo que está a perder força. Para se dar prioridade ao tratamento não é necessário mudar a lei na sua totalidade, mas fazer apenas alguns ajustes. Quanto ao comentário da técnica da PJ, não tem fundamento nenhum e nem merecer ser comentado.

Após a pandemia, que se reflectiu nas formas de tráfico e consumo, Macau mantém a mesma situação, ou verificaram-se alterações profundas na forma de comprar e consumir?

Julgava-se que iria existir um aumento exponencial após a pandemia, mas o que temos observado é o oposto. Existiu um aumento gradual, mas pouco significativo. Mesmo ao nível do tráfico tem sido pontual, o que pode ser sinal de um bom trabalho da nossa polícia e dos trabalhos de prevenção de diversas instituições, inclusive do nosso projecto “Be Cool”. No entanto, tudo isto pode mudar muito rapidamente e temos de estar atentos. É natural que exista consumo escondido, e será sempre escondido quando o consumo é criminalizado. Devemos estar contentes com a corrente situação e desejar que assim continue.

18 Jul 2024

Luís Bernardino, investigador e docente universitário: “Passagem de Macau para a China foi exemplar”

Luís Bernardino, docente da Universidade Autónoma de Lisboa, faz parte do recém-criado think-tank “Global Strategic Platform”, que irá organizar uma série de eventos centrados na China. O programa está a ser preparado e não deixa Macau de fora. Luís Bernardino fala ainda sobre o sucesso da transição de Macau

 

 

Foi apresentado, há dias, o projecto “China Sessions” no âmbito da “Global Strategic Platform”. Em que consiste esta iniciativa?

A “Global Strategic Platform” é uma plataforma virtual que liga professores que estão nos EUA, Angola e Portugal e que foi criada há cerca de dois anos para organizar eventos que sejam de carácter global nas áreas da geopolítica e geoestratégica, ou mesmo relações internacionais. Nessa altura, criámos as “Africa Sessions” que, de certa forma, nos últimos dois anos, tem feito um caminho no sentido de ter conferências sobre os temas da agenda africana. No ano passado surgiu-nos a ideia de ampliar este projecto, ou seja, criar dois outros pilares. Um deles é o “Transatlantic Sessions”, ou seja, estudar as relações transatlânticas, e começámos a fazer isso, e agora queremos criar uma terceira área de estudos sobre a China, com as “China Sessions”. Este segmento pretende ser um conjunto de eventos que procuramos criar online, embora alguns eventos sejam presenciais, com transmissão para todo o mundo, sobre a problemática da China no mundo. A ver pelo primeiro tema, e a adesão das pessoas, temos um bom acolhimento. Fizemos esta sessão de abertura no Centro Científico e Cultural de Macau e isso foi muito importante porque essa relação tem de estar ligada a Macau.

De que forma?

Macau desempenha um papel muito importante na relação da China com África, e se quisermos ser mais concretos, com os países de língua portuguesa. Isso parece-nos ser também um vector importante de análise. Portanto, queremos trazer essas temáticas para as “China Sessions”, cujo programa de actividades estamos agora a desenvolver.

Será uma espécie de think-tank?

Será um think-tank que pretende abrir a discussão ao mundo global utilizando as ferramentas digitais, congregando pessoas de todos os quadrantes, a nível mundial, num tema que nos parece muito actual por várias ordens de ideias. Desde logo porque a China já é um actor global e as dinâmicas do país têm impacto com todos os outros actores. É importante que este projecto possa realizar essa análise. Vamos ter vários campos. A primeira conferência foi sobre a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”, e vamos já fazer uma segunda sessão em que falaremos sobre os dez anos da mesma iniciativa, mas numa perspectiva mais económica. Depois queremos abrir espaço para falar sobre segurança, cultura, diplomacia. São esses os objectivos que temos. Vamos abrir este projecto a todos, embora tenhamos uma dificuldade acrescida quanto à língua, nomeadamente ao chinês e dos fusos horários. Se estamos a estudar, comentar e a analisar a China, também queremos ser ouvidos na China e que as nossas actividades cheguem ao país e a Macau. Temos algumas ideias nesse sentido e queremos encontrar um equilíbrio entre aquilo que são as necessidades de ajustamento de temas com os tempos e as horas.

Vão ser estabelecidas mais ligações a Macau?

Depende de cada um dos temas e de cada um de nós [participantes nas “China Sessions”]. Conheço relativamente bem Macau, a Fundação Rui Cunha, as universidades, e vamos tentar gerar oportunidades. Estamos disponíveis para nos associarmos na realização de conferências, por exemplo. Queremos aprofundar algumas das nossas experiências que já concretizamos nas “Africa Sessions” para as “China Sessions”. Vamos todos ganhar com isso porque teremos diferentes painéis com especialistas que nos vão mostrar aquilo que, de facto, a China está a fazer no mundo. É importante compreendermos essa dinâmica crescente da China nos vários vectores em que se posiciona, não apenas na “Faixa e Rota”, mas demais áreas conexas.

Que balanço faz dos dez anos da iniciativa lançada por Pequim?

Penso que há ainda muito a descobrir. Em dez anos não dá ainda para ver perfeitamente o alcance daquilo que são as dinâmicas de “Uma Faixa, Uma Rota”. Uma coisa me parece clara é a intenção da China de querer ser uma potência global, mas também penso que não há ainda uma ideia concreta de como isso vai acontecer. Para ser uma potência global tem de ser uma potência económica e militar, e também ao nível diplomático, e esses vectores todos têm de estar congregados numa estratégia nacional que às vezes me parece algo difusa.

Por definir?

Por definir em alguns aspectos. Obviamente que “Uma Faixa, Uma Rota” é um projecto global, de grande alcance, de longo termo, e creio que estes dez anos também serviram para a China aprofundar e desenvolver um pouco da sua estratégia de abordagem global. Terão de ser alinhados outros instrumentos do poder com a parte económica.

Macau tem também um certo posicionamento a cumprir nesta iniciativa. Considera que tem desempenhado o seu papel da melhor forma no âmbito de “Uma Faixa, Uma Rota”?

Penso que sim. Macau desempenha um papel muito importante, não apenas na relação com os países de língua portuguesa, mas também com a geografia global. Macau, obviamente, representa também para a China uma forma diferente de olhar para esta iniciativa. Eventualmente, da parte da CPLP [Comunidades dos Países de Língua Portuguesa] e países lusófonos não há, ainda, um completo entendimento e perspectiva de como isto pode ser benéfico na transacção comercial e na linha do que será a geopolítica do futuro. Portanto, há uma aprendizagem que deve ser feita, e Macau representa uma coisa interessante. Muitas vezes discutimos a questão das independências e a passagem de Macau [no que respeita à administração portuguesa] para a China foi, de facto, exemplar, permitindo criar estruturas, dinâmicas, consensos e projectar o território numa parceria que facilita quem está na China e em Macau. O território é agora uma porta de entrada para os países que querem apostar na China como entidade parceria, e também na construção de uma relação comercial. Esse é um activo estratégico de Macau na geopolítica da relação da China com o mundo. Vamos ver se a China consegue, efectivamente, perceber isso e potenciar esse instrumento de política externa que é e será Macau. De certa forma, o tamanho não conta, neste caso. Macau é um território de tamanho muito reduzido, mas tem uma dimensão geoestratégica muito grande. Essa é condição para que Macau seja vista pela China e pelo mundo como um espaço geoestratégico relevante no contexto global.

Celebra-se este ano o 25º aniversário da transição da administração portuguesa de Macau para a China. O balanço que faz do território é positivo? Macau tem sabido posicionar-se em todos estes contextos?

Sim. Há de facto muitas coisas positivas. Foi bom o facto de haver uma parte cultural, da lusofonia, da língua e cultura portuguesas que se mantém. Estive em Macau e gostei de ver o património, o Clube Militar, e sentimo-nos muito em casa em Macau, com tanta história que ficou num espaço tão longínquo e distinto. Portugal fez uma transição exemplar que é vista como um bom exemplo na transição entre Estados. A minha avaliação é positiva e veremos se temos capacidade de apostar e fortalecer esta relação e perceber que Macau é, de facto, importante nesta nossa ligação com a China e CPLP.

15 Jul 2024

João Graça Gomes, engenheiro e membro do Conselho Mundial de Energia: “Macau podia ser um caso de teste”

João Graça Gomes, engenheiro sénior numa joint-venture ligada à EDP e China Tree Gorges, e membro do Conselho Mundial de Energia, falou na terça-feira, em Lisboa, sobre o panorama do sector da energia na China e no mundo e de como o país irá liderar nesta área. Em entrevista ao HM, o também membro do Conselho da Diáspora Portuguesa avança algumas sugestões que podem tornar Macau um exemplo em matéria de políticas ambientais sustentáveis

 

Como descreve a evolução do sector energético na China nos últimos anos?

A China tem registado um aumento expressivo do consumo energético, o que reflecte o seu rápido crescimento económico. Nos últimos 20 anos, o consumo primário de energia na China cresceu de 11.800 TWh [Terawatt Hours, medida de consumo energético] em 2000 para 47.428 TWh em 2023. Este crescimento foi particularmente acentuado nas regiões costeiras do país. Houve uma redução na dependência do carvão, embora este ainda represente 54 por cento do consumo energético. Em contrapartida, houve um aumento significativo no consumo de gás natural e de fontes renováveis, especialmente energia eólica e solar. A dependência externa da China aumentou de cerca de seis por cento em 2000 para 22 por cento em 2020. Essa tendência é especialmente evidente nas importações de produtos petrolíferos e gás natural. A China importa principalmente petróleo da Rússia, Arábia Saudita e Iraque. Já nas importações de gás natural, destacam-se a Austrália, Países Baixos e Emirados Árabes Unidos como principais fornecedores.

E relativamente às exportações de energia?

A China destaca-se por uma presença robusta na “supply-chain” [cadeia de fornecimento] mundial das energias renováveis. O país é um dos maiores produtores e exportadores de aerogeradores, painéis solares, baterias eléctricas e electrolisadores. A China também se destaca pelas elevadas taxas de extração e processamento de terras raras, cobalto, lítio e outros minerais essenciais para o desenvolvimento e suporte da infra-estrutura eléctrica. O país tem-se consolidado como um líder global no fornecimento de tecnologia que possibilita a transição energética.

O processo de Reforma e Abertura, iniciado por Deng Xiaoping contribuiu para que o sector energético tenha crescido, em termos de segmento de mercado, no país?

Desde esse momento, em 1978, que o país tem experimentado um rápido desenvolvimento socioeconómico, que se traduziu num crescimento médio do PIB [Produto Interno Bruto] de nove por cento ao ano. Entre 1978 e 2023, o consumo energético primário cresceu impressionantes 924 por cento, passando de 4.632 TWh para 47.428 TWh. Várias previsões indicam que essa trajectória de crescimento continuará nas próximas décadas. Para ilustrar a magnitude desse avanço, podemos comparar a realidade chinesa com a portuguesa. Em 1978, o consumo energético per capita em Portugal era de 13.054 kWh, enquanto na China era de apenas 4.850 kWh, menos da metade de Portugal. Em 2023, o consumo per capita na China subiu para 33.267 kWh, superando o consumo per capita português de 25.709 kWh. Em termos de segmentos de mercado, a indústria é preponderante, correspondendo a quase 49 por cento do consumo energético total da China. Este é o sector que mais evoluiu, impulsionado pelas reformas económicas que estimularam a industrialização massiva. O segundo sector com maior crescimento é o dos transportes, que agora representa 15 por cento do consumo energético. O sector residencial representa cerca de 16 por cento do consumo energético e tem-se mantido relativamente estável ao longo do tempo.

De que forma Macau pode contribuir para este desenvolvimento do setor energético na China?

Macau é uma região altamente urbanizada e com uma área bastante reduzida. Essas características limitam a instalação de grandes centrais de electricidade renovável. Mas Macau pode desempenhar um papel crucial no desenvolvimento do sector energético na China de diversas formas, especialmente na investigação e inovação.

De que forma?

Criando-se um laboratório urbano para comunidades sustentáveis, em que Macau poderia servir como um caso de teste para o conceito de comunidade energética sustentável e autónoma. A região poder-se-ia focar no desenvolvimento e criação de tecnologias ligadas a energias renováveis, como painéis solares e sistemas de armazenamento de energia com baterias. Essa abordagem pode transformar Macau num modelo de eficiência energética e autossuficiência. Pode-se também apostar na descarbonização dos transportes, reduzindo as emissões de carbono e aumentar a qualidade do ar. A implementação de veículos eléctricos e a construção de uma infra-estrutura de recarga robusta podem posicionar Macau como líder na mobilidade sustentável. Mas pode também ser feita uma aposta no desenvolvimento de tecnologias de dessalinização.

De que forma poderia ser feito?

Através da instalação de centrais de dessalinização abastecidas por energia renovável, que poderia garantir o abastecimento de água de Macau de forma sustentável, minimizando a dependência de recursos hídricos externos e contribuindo para a segurança hídrica.

A nível académico, o que poderia ser implementado nesta área?

Macau pode utilizar as suas universidades e instituições para estimular estudos avançados em sustentabilidade energética. A colaboração com países de língua portuguesa pode trazer novas perspectivas e tecnologias, fortalecendo a posição de Macau como um “hub” de inovação energética. Macau pode estabelecer parcerias para troca de conhecimentos e tecnologias no sector energético. Isso pode incluir projectos conjuntos de pesquisa, desenvolvimento de novas tecnologias e capacitação de recursos humanos. Usando estes princípios, Macau alcançar a neutralidade carbónica, servindo como exemplo inspirador para outras regiões da China e tornar-se um exemplo global de sustentabilidade urbana e inovação tecnológica.

Como descreve o futuro da China no mercado energético mundial?

O Governo da China anunciou em 2020 uma meta para alcançar a neutralidade carbónica até 2060, algo extremamente ambicioso considerando que o país é actualmente o maior emissor de dióxido de carbono do mundo. Estas emissões devem-se principalmente à elevada dependência do carvão para produção eléctrica. No entanto, se a China continuar no caminho da descarbonização, poderá tornar-se uma superpotência energética. O país já é o maior investidor em tecnologias de energia renovável, e essa tendência deve continuar a crescer. A China tem consistentemente superado as suas metas de integração de energias renováveis, estabelecidas nos planos quinquenais do Governo Central. Nos três últimos planos quinquenais, o país ultrapassou largamente as taxas de crescimento previstas para a capacidade instalada de fontes de energia de baixo carbono, tanto renováveis como nuclear. Se a China continuar neste caminho, não só alcançará os seus próprios objectivos ambientais, mas também definirá o futuro do mercado energético mundial. O seu compromisso com a expansão de energias renováveis e a redução de emissões de carbono poderá influenciar políticas energéticas globais.

A energia é, cada vez mais, um factor fundamental nas relações diplomáticas? A China, neste capítulo, tem-se posicionado da melhor forma?

Sim. Citando Henry Kissinger: “Quem controla a energia pode controlar continentes inteiros”. Neste contexto, a China tem se posicionado de maneira estratégica e eficaz. O país desempenha um papel crucial no futuro do sector energético mundial, evidenciado pelo facto de que, entre os dez maiores produtores de painéis solares, sete são empresas chinesas, e quatro dos dez maiores produtores de aerogeradores também são chineses. No mercado de carros eléctricos, que se correlaciona com a transição energética, a BYD, destaca-se como a maior produtora mundial. Além disso, nos últimos anos, a China tem assegurado a aquisição de minas de metais essenciais em diversos países, necessários para a manufactura de baterias eléctricas, microchips e outros equipamentos vitais para a transição energética. Actualmente, a China produz mais de 80 por cento do total global de metais raros, posicionando-se como líder incontestável no suprimento desses recursos críticos. Esta estratégia tem sido extremamente positiva para a China, demonstrando como o país tem investido em áreas-chave para o futuro do sistema energético mundial.

Têm sido evidentes os acordos e investimentos feitos com outros países nesta área?

A China tem investido além de suas fronteiras para aprender mais e facilitar a cooperação energética. Um exemplo claro é Portugal, onde algumas das maiores investidoras no sector energético são empresas chinesas. A maior accionista da EDP é a China Three Gorges, enquanto a maior accionista da REN é a China State Grid. Contudo, é importante lembrar que não é positivo criar uma dependência excessiva de qualquer país, incluindo a China. Os países devem trabalhar para assegurar a sua independência energética, diversificando as suas fontes de energia e fornecedores. A busca por uma matriz energética diversificada e segura é essencial para evitar vulnerabilidades económicas e políticas. Portanto, embora a China tenha se posicionado de maneira muito eficaz no sector energético global, oferecendo oportunidades de cooperação e desenvolvimento, é fundamental que outros países mantenham uma abordagem equilibrada e estratégica para garantir a sua segurança energética a longo prazo.

Acredita no estreitar de relações com Portugal na área energética?

Vejo de forma bastante positiva o investimento chinês no sector energético português. Tem sido duradouro, estável e permitido a várias empresas um crescimento acentuado. No entanto, nos últimos anos, a tensão geopolítica entre a China e os Estados Unidos tem, infelizmente, colocado algumas dificuldades na relação entre Portugal e a China.

Como vê, então, o futuro?

É difícil prever como evoluirá a relação entre os dois países. Espero que os governantes de ambos os países priorizem o realismo político sobre concepções ideológicas e procurem o melhor para ambos os países. Esse enfoque pode se traduzir numa relação mais estreita, com mais oportunidades de negócios e benefícios mútuos. Portugal deverá continuar a aproveitar o dinamismo e a capacidade de investimento da China no sector energético, enquanto a China poderá beneficiar da experiência e inovação de Portugal em energias renováveis e sustentabilidade.

10 Jul 2024

Manuel Palha e Salvador Seabra, Capitão Fausto: Música, a linguagem universal

Os Capitão Fausto actuam hoje no MGM Cotai Theatre às 20h, partilhando o palco com o músico chinês David Huang. Fica a promessa da partilha de sonoridades diferentes e dos grandes êxitos da banda. Em entrevista ao HM, os Capitão Fausto, pelas vozes de Manuel Palha, guitarrista e teclista, e do baterista Salvador Seabra, falam da sua essência, do início tímido e quase por acaso e da escalada até à construção coesa de um colectivo de músicos e amigos

 

Chegaram a Macau há poucos dias e actuam hoje. É a vossa primeira vez no território. Como está a ser a experiência?

Manuel Palha (MP): Chegámos muito curiosos para ver como é este sítio tão longe de Portugal, mas tão próximo ao mesmo tempo. Estamos a gostar imenso, ainda estamos a achar estranho este mundo diferente, mas de uma forma positiva, de andarmos pela calçada portuguesa, termos a cultura portuguesa e chinesa misturada. É uma experiência bastante fora do comum.

O que poderemos esperar do concerto com David Huang?

MP: Na primeira parte vai ser um concerto normal dos Capitão Fausto. Depois o David Huang a meio do espectáculo junta-se a nós e vai cantar uma música connosco, o “Amor, a nossa vida”, e nós iremos cantar uma música dele. Depois, o David Huang fecha o espectáculo com músicas dele.

Como vai a vossa música enquadrar-se com a de David Huang?

MP: São sonoridades bem distintas, mas, apesar disso, a parte que é divertida é que, apesar de estarmos em sítios completamente diferentes do mundo, com culturas diferentes, temos sons e abordagens diferentes, há muita coisa que nos liga. A música tem um lado universal, e esse é o lado que estamos a celebrar. Temos uma música que não é necessariamente o nosso estilo e tipo de som, mas rapidamente nos inteirámos dela. Ainda não tocámos com David Huang, mas tocamos amanhã [quinta-feira] e aí vamos poder trabalhar a ideia do que é a nossa vinda cá, de um certo intercâmbio e viver uma coisa que não é nossa. Essa é a parte divertida de tudo isto.

Têm um novo álbum, “Subida Infinita”, lançado em Março. O que há de novo neste trabalho?

MP: Sentimos sempre que, nem que seja em termos cronológicos, os nossos discos aparecem sempre em fases diferentes das nossas vidas. Este não foi excepção.

Salvador Seabra (SS): À medida que vamos crescendo inevitavelmente vamos mudando um bocado a maneira de fazermos as coisas, mas ainda bem. Para nós é mais interessante. Apesar de haver coisas que se mantêm de disco para disco, e processos de composição que se vão mantendo, há sempre coisas que mudam.

MP: Mudou muita coisa, apareceram filhos, o Francisco Ferreira saiu da banda. Todas estas coisas culminam neste disco, que acho que é diferente dos outros, de várias formas.

São uma das bandas mais sonantes do actual pop-rock português. Consideram que trouxeram uma nova sonoridade a este género musical que se faz em Portugal?

MP: Sabemos, pelo menos, que fizemos o nosso som. Ainda bem que as pessoas têm vindo a ouvir ao longo do tempo, mas é difícil avaliar o impacto que isso possa ter no panorama nacional. Sabemos que há uma verdade de nós os quatro. Sempre que nos juntamos sabemos que sai qualquer coisa que é nossa. O que é bom e interessante.

SS: Toda a nossa música é também influenciada por outra música portuguesa e outra coisa que já foi feita. Fazemos as coisas à nossa maneira e penso que não nos cabe a nós dizer se influenciámos, ou não [o panorama da música portuguesa].

Que influências são essas?

MP: Quando começámos a tocar havia editoras como a “FlorCaveira” e “Amor Fúria”, e havia bandas do norte de que gostávamos muito. Já tocávamos, mas não fazíamos canções em português e essas bandas até nos serviram de inspiração para fazermos canções em português. Quando começaram a haver bandas como os “2008”, “Peixe-Avião”, e em Lisboa tínhamos os “Diabo na Cruz” e o “B-Fachada”, isso levou-nos a ter vontade de fazer música em português e foi uma onda inspiradora.

Os “Capitão Fausto” têm letras que falam de amores, desamores, muitas vezes com um cunho de ironia. Os temas do dia-a-dia são as vossas grandes influências na hora de escrever?

MP: Sim. O Tomás [Wallenstein] é que escreve as letras, sempre. As letras são praticamente sempre sobre nós e a nossa vida, que é aquilo que conhecemos melhor. Sobre lidar com as coisas que nos acontecem. Mas há uma ideia que transparece bastante ao longo dos nossos discos que é o cantar a tristeza. A felicidade que está por detrás da tristeza, que vem depois, que se entrelaça com ela. As coisas que nos acontecem são fortes, mas há sempre qualquer coisa para cantar e a ideia de um novo dia a seguir. Isso tem estado patente nos últimos trabalhos.

Lançaram o primeiro disco em 2011 [“Gazela”]. O que sentiram quando lançaram esse trabalho?

MP: Foi uma fase diferente, éramos jovens na faculdade. Era muito divertido e gravar um disco era algo novo para nós.

SS: Era tudo novo e entusiasmante. Sempre foi, desde que começámos a tocar no liceu, um sonho lançar um disco. Quando aconteceu foi algo extraordinário.

Actuam em Macau no âmbito das celebrações do 10 de Junho. Sentem a responsabilidade de levar, com a vossa música, a cultura portuguesa?

MP: Independentemente do sítio onde vamos tocar, sentimos sempre alguma responsabilidade de darmos o nosso melhor e fazermos o melhor espectáculo possível. Não costumamos tocar fora de Portugal, é muito raro, e esse concerto é entusiasmante também por esse motivo. Sentimos alguma responsabilidade.

A internacionalização é um objectivo vosso?

SS: De certa forma sentimos que a palavra, o idioma, não deveria ser um entrave, porque a música é forte o suficiente para ultrapassar essa barreira da língua. Pelo menos, nós gostamos de pensar assim. Gostávamos de, eventualmente, quebrar essa barreira, sair de Portugal e tocar mais. Não sabemos se vai ser possível, mas o tempo o dirá.

Sempre houve um debate em Portugal sobre bandas portuguesas que cantam e compõem em inglês. Está nos vossos planos compor em inglês, por exemplo?

MP: Não faz parte dos nossos planos. Em inglês iríamos contra aquilo que pensamos e juntamos ao longo do tempo, de ao dizermos uma coisa ela ser verdadeira. Sabermos exactamente o que se está a dizer, com que nuances e palavras. A nossa língua-mãe é a única que nos permite fazer isso de forma que consideramos honesta. O Tomás [Wallenstein] estudou a vida toda num liceu francês, e por isso, quanto muito, teríamos algumas canções em francês, porque o Tomás teria algo de verdadeiro a dizer com aquelas palavras, mais do que em inglês. [Usar o inglês] só com vista à internacionalização, ou para chegar a mais pessoas, é uma coisa que nunca faremos.

Porquê o nome “Capitão Fausto”?

MP: É apenas um nome. Criámos a banda em 2009.

SS: Éramos miúdos e fizemos a banda para tocar no casamento de um tio do Tomás e tínhamos de arranjar um nome. Não há uma história associada ao nome.

MP: Não há uma mensagem propriamente dita, ela surge depois com os nossos discos.

Tendo em conta que têm alguns anos de carreira, como olham para a evolução da banda, como músicos, tendo em conta que saiu um elemento e atravessaram a pandemia?

SS: Fizemos o primeiro disco em 2011, mas já tínhamos a banda há mais tempo. Na verdade, nunca tivemos muitas mudanças, sempre foi uma coisa de nós os cinco a fazer música da mesma forma. Sempre tivemos os mesmos objectivos, que era fazer música e tocar ao vivo. Tivemos a grande mudança com a saída do Francisco, e quando isso aconteceu foi uma coisa muito forte. Ponderámos se a banda deveria continuar ou não, se fazia sentido continuarmos sem ele. Continuámos e ainda bem. Penso que a mudança não foi tão drástica como pensávamos. Fizemos bem essa mudança, todos a aceitaram bem, temos agora novos músicos connosco a tocar ao vivo e tem sido óptimo. A mudança faz parte e quando as pessoas crescem, às vezes dividem-se.

MP: A nossa história também tem a ver com a ideia de termos começado miúdos, cheios de sangue na guelra, a aprender a tocar juntos. Criámos as nossas primeiras bandas juntos. Fizemos um primeiro disco sem pensar muito bem no que estava a acontecer, houve uma recepção minimamente boa que nos levou a querer continuar. Fizemos o segundo disco, fomos para o terceiro e aí começámos a equacionar viver disto. Estávamos a acabar a faculdade e houve ali um momento em que todos nos atirámos e decidimos fazer isto até ao fim. Agora temos um percurso e o que nos liga é o facto de sermos só nós, e a nossa amizade, e como conseguimos meter o trabalho no meio de tudo isto.

7 Jun 2024