André Sardet, músico: “Basta viver para compor”

Vem a Macau celebrar os 25 anos de carreira num concerto, agendado para amanhã, que é também comemorativo do 10 de Junho. Natural de Coimbra, André Sardet conseguiu firmar-se como um dos nomes mais conhecidos da música portuguesa, com temas que permanecem no imaginário de muitos. Está de regresso aos discos com “Ponto de Partida”, um álbum com a capacidade de olhar em frente

 

É um dos grandes nomes do programa oficial do 10 de Junho. Que expectativas coloca no concerto de amanhã?

Sinto-me feliz porque é a primeira vez que canto em Macau, embora esta ideia tenha sido discutida ao longo dos anos, mas por um ou outro motivo nunca se concretizou. Desta vez, a convite do embaixador Alexandre Leitão, as coisas acabaram por se organizar, com a coincidência interessante das comemorações do 10 de Junho e de acontecer no ano em que comemoro 25 anos de carreira. O que vou levar a Macau é um pouco mais do que um simples concerto, mas sim uma grande parte da minha vida e algo que me deixa muito feliz. Embora nunca tenha estado em Macau, tenho familiares próximos que viveram lá muitos anos e tenho um universo imaginário em torno de Macau. A minha tia paterna, por exemplo, casou em Macau e eles traziam-me uns brinquedos incríveis de lá. Tenho esse mistério, de como será Macau e o que vou conhecer e encontrar.

Começou a sua carreira nos anos 90, contando com muitos êxitos que ainda passam nas rádios portuguesas. Que balanço faz?

É positivo, valeu a pena. Se assim não fosse provavelmente não tinha chegado aqui. Nem todos os anos ou momentos foram tão felizes como gostaria, porque toda a gente que tem uma carreira quer ter sucesso e reconhecimento, e infelizmente durante alguns anos isso não aconteceu, mas a certa altura houve uma grande viragem na minha carreira e tenho tido muito boas experiências. Tenho sentido o carinho do público desde o momento em que as coisas aconteceram.

O que levou a que essa viragem tenha acontecido?

Aconteceu quando uma série de músicas que tinha, e em relação às quais eu achei que não tinha sido feita justiça, por não terem sido reconhecidas, foram gravadas num álbum ao vivo em Coimbra, no Teatro Académico Gil Vicente, e depois teve oito platinas, o que faz deste álbum o mais galardoado dos últimos 17 anos. Foi um álbum que ficou na história, pois fez com que músicas como “Foi Feitiço” ou “Quando eu te falei em amor” tenham passado muito na rádio. “Foi Feitiço” foi a música mais tocada na década de 2000 nas rádios portuguesas, de entre músicas portuguesas e estrangeiras, o que é um feito que só descobri há pouco tempo. Mas eu não quero viver só do passado e este álbum dos 25 anos é exactamente um olhar para a frente. Quero que novas músicas cheguem a um novo público e às pessoas que já me acompanham há algum tempo.

Daí o nome do novo álbum, “Ponto de Partida”? É uma nova fase da sua carreira?

No fundo é dizer que é uma prova de vitalidade criativa. Tinha duas opções: ou gravava um “Best Off” olhando para trás ou olhava para a frente. Encontrei um equilíbrio que foi regravar três músicas, mas olhar para a frente, e dizer que estou aqui para continuar.

Neste álbum o André trabalhou com músicos portugueses da nova geração, como é o caso da Carolina Deslandes, mas também com músicos da chamada ‘velha guarda’, como Jorge Palma. É um olhar sobre as duas perspectivas da música portuguesa?

Quando se comemoram 25 anos de carreira obviamente que pensamos nas pessoas que nos influenciaram e que foram referências para nós, e pensamos também nas novas gerações que tenham talento. Fui buscar uma pessoa que homenageei no primeiro álbum, o Jorge Palma, para cantar “O Azul do Céu”, gravada também no meu primeiro álbum, e se calhar não o fiz antes por timidez ou porque achava que ele não ia aceitar, mas o que é facto é que ele aceitou à primeira. Foi muito agradável cantar com ele. Passou há dias uma reportagem na televisão sobre esse momento e aquilo que ele diz sobre mim é algo que me deixa muito feliz. A Carolina Deslandes é das pessoas da nova geração com mais talento. Além de cantar muitíssimo bem é uma cantora de canções que eu respeito e admiro. Mas fui também buscar uma cantora emergente, a Bianca Barros, com quem gravei um tema.

O single de lançamento do álbum, “Pudesse eu Mudar”.

Sim. Quando olho para a Bianca lembro-me como foi começar. Achei que tinha de convidar alguém com talento, mas que não foi ainda suficientemente reconhecido, mas penso que ficará certamente na música portuguesa.

Como foi esse seu início? Sendo de Coimbra, afastado da capital, onde as coisas acontecem, foi mais difícil?

Foi um desafio muito grande e é algo que me faz ter muito trabalho e estar constantemente na estrada. Muitas vezes penso nisso, como seria a minha carreira se estivesse longe de Coimbra, em Lisboa. Não consigo chegar a nenhuma conclusão, porque se calhar não estou tão presente em algumas situações, mas a verdade é que, ao mesmo tempo, guardo alguma distância e tem vantagens. É uma cidade fácil de percorrer, onde tenho os meus filhos, se calhar Coimbra é o meu ponto de equilíbrio. Não ganho umas coisas, mas ganho outras.

Esteve alguns anos sem editar, lançando em 2008 “Um Mundo de Cartão”, mais virado para o universo infantil? Porquê este interregno e esta mudança?

Esse álbum saiu dois anos depois daquele álbum que teve oito platinas, não foi um interregno muito grande. “Um Mundo de Cartão” representa uma fase da paternidade, muito importante da minha vida. Sem pensar que poderia dar um álbum comecei a compor algumas músicas em casa para brincar com a minha filha e onde entravam personagens inventadas. A verdade é que isso resultou num conjunto de canções que achei que fazia sentido partilhar com o público porque sou um bocadinho autobiográfico a compor, nem sempre, e não escrever sobre uma das fases mais bonitas da minha vida era estranho.

Voltando ao início da carreira, quando percebeu que a música era mesmo o seu caminho?

Foi quando comecei a compor. Aí senti que não era só cantar, mas sim uma forma de comunicar, de chegar às pessoas, de as tocar, e isso teve uma importância maior. Decidi aí que ia meter o pé no acelerador.

Como olha hoje para a música portuguesa? Tem novas sonoridades, considera que é mais ouvida pelo público português?

Vejo com grande interesse e felicidade. Acho que há uma nova geração de músicos, e como em tudo na vida, nem tudo eu acho bom. Mas isso acontece em todas as gerações de músicos, pintores ou arquitectos. Noto que há muita gente com muito talento, que leva isto a sério e que trabalha muito. Estão a fazer subir a qualidade da música e dos espectáculos. O que é facto é que nós antes da pandemia tínhamos uma quota de música portuguesa [para passar nas rádios] de 25 por cento, e hoje é de 30 por cento. Felizmente, hoje em dia, cada vez temos mais concertos e cada vez estão mais cheios.

Já disse que na hora de compor é muito autobiográfico. Quais são as suas influências?

Posso ser influenciado por uma história que me contam, por exemplo. Muitas vezes as histórias dão músicas sem que as pessoas saibam disso. São coisas que me inquietam, frases, filmes, ideias de livros que me ficam na cabeça. No fundo, costumo dizer que os músicos têm a capacidade de descodificar, em música, os sentimentos que toda a gente sente. Costumo dizer que basta viver para compor.

15 Jun 2023

Francisco José Viegas, editor do romance “O Jogo das Escondidas”, de Fernando Sobral: “Chegar a Macau é como ver um filme”

Pouco tempo antes de falecer, vítima de doença prolongada, Fernando Sobral, cronista e autor, organizou todos os fascículos da história publicada no HM, que deram origem ao romance “O Jogo das Escondidas”. O livro foi lançado esta terça-feira na Feira do Livro de Lisboa, num evento que recordou o autor de tantas outras obras que traçam o exotismo de Macau. Conversámos com Francisco José Viegas, editor da obra lançada pela Quetzal

 

Fernando Sobral faleceu antes do lançamento deste livro. Como foi transformar todos os fascículos publicados no jornal num romance coeso?

Foi muito simples. A Cristina [esposa de Fernando Sobral] entregou-nos o original preparado pelo próprio Fernando. O que publicámos foi a última revisão feita por ele. Para nós foi um trabalho emotivo, porque sabíamos que ele tinha feito a preparação mesmo no final [da sua vida] e que era o último texto que tinha deixado. A edição dos outros livros do Fernando, publicados ainda em vida do autor, foi também um processo muito simples, como é o caso do “L. Ville” e “Ela Cantava Fados” [editados pela Quetzal]. Ele entregava sempre as coisas muito estruturadas e havia sempre pouco a fazer além do que ele já deixava feito. Esse era muito o estilo do Fernando. Lembro-me quando trabalhávamos em jornais e revistas, e eu trabalhei com ele em televisão, e aí o ritmo era um bocadinho alucinante. Se às dez da manhã tínhamos de ter algo pronto, às 9h50 o Fernando tinha tudo pronto. Era super profissional.

“O Jogo das Escondidas” é mais uma história sobre Macau antigo, sobre a fantasia que o território acarreta em si e que segue um pouco a linha das obras anteriores do mesmo autor.

Segue o padrão daquilo que o Fernando encontrou em Macau. Lembro-me da primeira vez que fui a Macau imaginei um filme. Não sei que filme era, mas era sem dúvida o cenário para um filme. O Fernando fez mais, não só fez o filme na cabeça dele, com todos aqueles personagens, como fez um retrato de época. Ele sabia quando tinha sido a época de ouro de Macau. Mas há aqui um pormenor especial, que é o facto de ele ter escolhido Macau. Na nossa literatura ultramarina, Macau tem muito pouca presença, há poucos autores macaenses, e o Fernando escolheu o território como cenário como tema da sua obra. Macau foi uma descoberta pessoal e isso teve um impacto brutal na maneira como ele passou a ver o mundo e a ver-se a si próprio. Isso foi decisivo. Estes livros podem não dar a ideia de que ele está muito investido neles, mas para quem o conhecia, sabe que ele investia muito [nas obras que escrevia].

Esta história passa-se nos anos 20, o período posterior à implementação da República, tanto em Portugal como na China. O livro arranca ainda com a questão histórica da possível venda de Macau…

Curiosamente não é um tema muito abordado, mas isso foi falado e conversado, e até Eça de Queirós tinha defendido a venda das então colónias. Mas tem muito a ver com a indiferença portuguesa em relação a Macau, uma certa apatia. A Quetzal vai publicar agora o livro do Conde Arnoso, “Jornadas pelo Mundo”, que é sobre a viagem que ele faz de Lisboa a Pequim, integrado na comitiva da embaixada de Tomás Rosa, que assina, em Pequim, o tratado que reconhece a ocupação portuguesa de Macau [Tratado de Amizade e Comércio entre Portugal e a China, assinado em 1887]. O Conde Arnoso, um diplomata, mas, sobretudo, um homem de poder, olha para Macau e percebe que está ali um dos últimos lugares portugueses. É engraçado ver que, muitos anos depois, o Fernando [Sobral], sem ter lido a obra do Conde Arnoso, acaba por descobrir também esse lado. Um dia disse-lhe algo, que tem a ver com a minha peregrinação por Macau: “Parece que estás, num domingo à tarde, na Taipa velha”, a passear nas ruas, a ver os velhos a jogar. Acho que o Fernando, se ele permanecesse no seu lugar, que era vivo, de certeza que iria escrever mais livros sobre Macau.

Com “O Jogo das Escondidas”, qual a percepção que o leitor pode ter de Macau?

Os cenários, o aroma, o modo de vida dos perdidos. Os perdidos são aqueles que iam para Macau, e ainda hoje vão, e que ficam lá para sempre, mas que estão perdidos. A diferença é que não fumam ópio e não frequentam as casas de meninas como as da altura, mas Macau é, de facto, um lugar de perdição, com os velhos que vão ficar ali, como testemunhas do tempo. O Fernando tinha uma leitura de Macau que não era apenas romanesca. Eu tentei escrever sobre Macau…

E vai sair esse livro?

Vai. A primeira vez que tentei escrever sobre Macau acabei por escrever sobre Pequim, “A Luz do Pequim” [lançado em 2019]. Mas eu tenho uma visão actual [sobre o território], e o Fernando tinha uma visão mais completa, porque leu bastante sobre a história e economia do território e sabia situar Macau no contexto da Ásia e da China, e isso foi muito importante, dando-lhe um valor acrescentado. Lemos o livro e parece que estamos a folhear páginas de história. Isso é muito importante para o leitor que sabe muito pouco de Macau e que nem sabe o que são as Portas do Cerco ou quem era o Ferreira do Amaral.

Este livro tem também um lado peculiar por ser o resultado da publicação de uma história em fascículos, nos jornais, algo comum na literatura e imprensa em finais do século XIX, inícios do século XX.

Publiquei dois romances em folhetim. O facto de o Fernando ter optado por esse modelo é muito significativo, porque é uma espécie de lado artesanal do romance. É o romance por entregas, como se chamava, e isso fez do livro um artefacto muito interessante.

Na feitura de um romance em fascículos, o processo de escrita é diferente?

É muito mais “à Fernando”, que tem um prazo. Ele trabalhava mediante prazos. O romance com um deadline é nitidamente uma ideia “Fernando Sobral”, faz parte da sua natureza. O facto de ter de cumprir prazos permitia estruturar não o pensamento, mas a história, desenhá-la. Isso tem muitas vantagens.

No seu caso também sentiu esse lado bom do deadline?

Senti isso como algo bom. Tinha de entregar os fascículos até quarta-feira à tarde, mas não era só isso, mas sim a ideia de que um capítulo tinha de suceder a outro capítulo. Não podíamos estar com brincadeiras, fazer 40 páginas. Há uma geometria, é um romance artesanal, e isso é muito comovente. É uma coisa que já não se faz.

Sobretudo numa altura em que o digital está tão presente na literatura, com os áudiolivros ou leituras no Kindle.

Este livro não poderia ser escrito pelo Chat GPT, porque tem uma intervenção muito pessoal, os personagens fazem coisas muito inesperadas, dizem coisas inesperadas. Tem, sobretudo, uma coisa que é fundamental num romance, que são os passados inesperados. Isso foi algo que o Fernando aprendeu na sua vida por causa das suas origens, no centro operário do Barreiro, o não nascer num meio elitista, intelectual. Isso fê-lo ter de lutar pelas coisas que lhe interessavam, as coisas que são.

Quando poderá sair o seu livro sobre Macau? Está no bom caminho, não se vai desviar outra vez?

Não, porque já tenho quase marcada a viagem a Macau para o terminar. Onde é o crime, onde aparece uma parte do corpo, que é no café Caravela.

É, portanto, um policial. Mas o café Caravela já fechou.

O crime foi cometido antes disso (risos). Não sabia que tinha fechado, mas outro dia pus-me a pensar nisso, olhando para o argumento, pensando se não teria fechado com a pandemia. Mas aquele restaurante, do português, em Hac-Sá [O Fernando], está aberto?

Esse sim. Mas quando for a Macau, por onde vai andar para concluir a sua história?

Sempre no centro de Macau. O Hotel Lisboa e a Taipa velha. São os cenários que mais me inspiram. Chegar a Macau é sempre ver um filme. Não me fascina muito a Macau nova, o Cotai, os casinos. Fascina-me a Macau dos anos 50, 60. Até Zhuhai me fascina (risos). Um dia fui lá só para ir a uma livraria.

1 Jun 2023

Inteligência artificial será tecnologia omnipresente dentro de dez anos, diz cientista

O cientista português Tiago Ramalho, antigo engenheiro na Google DeepMind Technologies, disse numa entrevista à Lusa que “daqui a dez anos” a população mundial já não vai “imaginar o que é a vida sem inteligência artificial”.

O diretor executivo e co-fundador da Recursive, uma startup com sede no Japão, acredita que, como “o campo está a mover-se tão rapidamente”, dentro de cinco anos, a inteligência artificial estará “incluída na maioria dos produtos e serviços”.

Dentro de uma década, a inteligência artificial tornar-se-á “uma tecnologia ubíqua”, disse Ramalho, a começar pelo processamento de linguagem natural, incluindo o ChatGPT e outros modelos capazes de gerar textos complexos.

O português defendeu que, nos últimos dois anos, a tecnologia chegou a um ponto em que “até funciona bastante bem” e a evolução tornou-se “um problema de engenharia”.

Ou seja, explicou Ramalho, o desafio será como aumentar o número e qualidade das bases de dados, reduzir os custos para obter uma resposta e adaptar os modelos “se calhar até para os telemóveis”.

De acordo com um estudo publicado em março por investigadores da Microsoft, a popularização da inteligência artificial vai afetar profissões sobretudo nas áreas de telemarketing, contabilidade, tradução, ensino e programação.

“Quando há uma transição tecnológica, há sempre pessoas que vão ficar prejudicadas e outras que vão beneficiar”, admitiu Tiago Ramalho, que acredita que “o resultado final tende sempre a ser positivo”.

Alguns cientistas acreditam que uma inteligência artificial com consciência poderá ser outro perigo. Um deles, o engenheiro da Google Blake Lemoine, disse em junho de 2022 que o modelo linguístico LaMDA da gigante tecnológica estava “vivo”.

A Google rejeitou as alegações de Lemoine e também Tiago Ramalho acredita que o LaMDA está simplesmente a “responder seguindo o contexto que está a receber” e a “fazer um bocadinho de encenação”.

“Se lhe perguntarmos ‘estás a sofrer fechado neste quadro de dados’, irá responder como numa história do Isaac Asimov (1920-1992)”, disse o português, referindo-se ao escritor de ficção científica.

“Ainda falta muito tempo” até à criação de uma inteligência artificial com “um diálogo interno, com preferências e valores e que não dependem das interações com seres humanos”, defendeu Ramalho.

O cientista considera que “o mais realista é os humanos co-evoluírem com a tecnologia”, construindo uma sociedade com os benefícios de “uma simbiose entre agentes inteligentes de silicone” e humanos.

Ramalho dá como exemplo a tecnologia AlphaFold, da Google DeepMind, que “permite perceber a estrutura de uma proteína baseada no código genético”. “Isso é um problema que um humano simplesmente não consegue resolver”, sublinhou.

A Recursive, atualmente com cerca de 40 trabalhadores, está também a usar inteligência artificial para ajudar as empresas japonesas a criarem modelos de negócios sustentáveis, explicou o português.

A startup está, por exemplo, a otimizar as entregas ao domicílio de um grupo e a prever as necessidades de irrigação das florestas comerciais geridas na Indonésia pelo conglomerado nipónico Sumitomo.

“Nós tentamos sempre encontrar essa sinergia entre o que é bom para o ambiente e também bom para a empresa, porque às vezes é difícil vender a ideia de sustentabilidade”, explicou Ramalho.

29 Mai 2023

Giada Messetti, jornalista e sinóloga italiana: “O Ocidente conhece muito pouco a China”

Acaba de ser editado em português o livro “Entender a China – Porque é tão importante compreender o dragão do século XXI”, da jornalista e sinóloga Giada Messetti. Na obra apontam-se as principais noções sobre o gigante asiático, nomeadamente a importância fundamental do Confucionismo para a compreensão da sociedade, o simbolismo dos pauzinhos ou o significado da expressão “perder a face”. Giada, que estudou mandarim e viveu no país a trabalhar como correspondente da imprensa italiana e intérprete de empresários italianos, diz que muitas das relações bilaterais falham pelo desconhecimento que existe sobre o país

 

Este livro funciona como um guia para compreender a China clássica e contemporânea de uma forma simples, mas sem ser simplista. Como explica que, ao fim de tantos anos, haja ainda tanto desconhecimento em relação ao país da parte do Ocidente?

A China apresenta-se ao Ocidente com uma grande complexidade, e o Ocidente tende a simplificar demasiado a leitura sobre o país através das suas próprias categorias culturais. Para o Ocidente, que tem sempre uma tendência para se colocar no centro do mundo, é sempre difícil ouvir o outro, sobretudo quando este outro é tão diferente, como é o caso da China. É necessário grande esforço para conhecer e ouvir o outro, mas, atenção: tal não significa concordar com o outro. Muitas vezes não queremos fazer esse esforço.

Um dos temas principais do livro é a importância do Confucionismo no funcionamento da sociedade e da política. Acredita que os actores políticos e empresariais do Ocidente, bem como as instituições, esquecem esta questão quando tentam estabelecer relações com o país?

Sim, sem dúvida, e não esquecem apenas o Confucionismo. Muitas vezes relacionam-se com a China esquecendo por completo que a China tem uma sociedade e um sistema de valores que são diferentes dos nossos. E este é um grande erro, pois não permite um diálogo efectivo e, acima de tudo, não permite que o Ocidente tenha uma boa estratégia de relacionamento com a China. Em décadas recentes aconteceu muitas vezes que as previsões sobre a China simplesmente não eram verdadeiras. E porquê? Porque o “factor China” não foi tido em conta e as pessoas tomaram como garantido que a China se comportava como o Ocidente. Em meses recentes, vimos esta atitude em relação à guerra na Ucrânia: o Ocidente quer que a China decida de que lado se quer posicionar (comportamento ocidental), mas a China nunca vai fazer isso (comportamento chinês).

Descreve, no livro, a presença do Confucionismo ao longo de várias fases da história da China, incluindo na era de Xi Jinping, relacionando-se com a ideia de “Sonho Chinês” e a ligação com o marxismo. Quais são os sinais mais evidentes desta questão nas suas políticas?

A existência de um sistema de cima para baixo, hierarquia, colectivismo e a capacidade do Partido Comunista Chinês de mobilizar as pessoas. No Ocidente, o contexto subordina-se ao indivíduo, e na China é o indivíduo que se subordina ao contexto e cada pessoa sabe que faz parte de um mecanismo muito maior do que ele, em que cada papel não visa travar esse mecanismo.

Escreve que “a maioria da população chinesa é prática quando tem de lidar com o poder”. Olhando para a sociedade de hoje, acredita que as pessoas estão satisfeitas com o Governo face à melhoria da qualidade de vida?

Acredito que, até muito recentemente, as pessoas estavam satisfeitas com o esforço do Governo em melhorar a qualidade de vida e alterar o estatuto da nação no mundo, mas penso que a situação está a mudar. Internamente a China está a enfrentar um período muito complexo, com uma crise de imobiliário, um abrandamento da economia, o desemprego jovem e o envelhecimento populacional. A confiança dos cidadãos no partido parece ser menos forte do que costumava ser, e não é coincidência que o Partido Comunista Chinês procure agora um novo pacto com os cidadãos.

No livro é ainda feita uma referência à existência de uma certa apatia entre os jovens, que não querem ter filhos e temem pelo futuro. Tal constitui um verdadeiro desafio para o Governo?

Sim, de facto os jovens constituem um dos verdadeiros desafios para o Governo. Eles costumavam ter uma boa vida, que estava sempre a melhorar. Mas agora licenciam-se no ensino superior e não conseguem encontrar um trabalho. Slogans como “estabilidade” e “ordem”, que funcionaram com os seus pais e avós, não os convence, porque, ao contrário dos seus pais e avós, sempre viveram numa China estável e ordeira.

Qual é, para si, a “ideia errada” mais comum que os países ocidentais têm sobre a China e as autoridades chinesas?

Pensar que a China é como a Coreia do Norte, mas com uma economia funcional.

A China é a segunda maior economia do mundo apesar de enfrentar desafios internos, na maioria económicos. Como vê o futuro do país?

Não gosto de fazer previsões, mas penso que a China terá um futuro complicado. Tem de reconstruir uma relação de confiança entre o Governo e os cidadãos, que arrefeceu durante a política de zero casos covid, e tem de fazer reformas estruturais a fim de renovar o modelo económico.

O Ocidente necessita de parar de ver a China como uma ameaça? Qual o melhor caminho que isso seja uma realidade?

Compreender que, mais cedo ou mais tarde, a China estará certa de uma coisa: entrámos numa nova fase histórica em que o mundo é multipolar e o Ocidente já não necessita de ser o centro. Pensar que a China é uma ameaça é algo emocional, e o Ocidente precisa de começar a pensar de forma racional. Necessita de conhecer a China porque o país conhece o Ocidente, mas o Ocidente conhece muito pouco a China. O mais importante é manterem um diálogo entre as duas partes, sempre. Se continuarmos a simplificar e a dividir o mundo em bons e maus, penso que teremos um mau futuro à nossa frente.

Manual de compreensão

“Entender a China” dá ao leitor pistas muito concretas sobre o funcionamento do país nas suas mais diversas valências, nomeadamente a sociedade, cultura, política ou economia, explicando-nos porque é que os chineses, por exemplo, gostam de levar os pássaros a passear à rua em gaiolas ou porque usam determinadas expressões, como o cumprimento “já comeste?”. Nas páginas desta obra editada em Fevereiro pela Editorial Presença, em Portugal, consegue-se compreender melhor a forma como os chineses fazem negócios e se relacionam, desmistificando-se, assim, ideias erradas ou noções pré-concebidas.

Giada Messetti fala com conhecimento de causa, porque não só estudou mandarim durante vários anos na China, sendo sinóloga, como foi percepcionando alguns comportamentos de empresários no tempo em que foi tradutora e intérprete de homens de negócios italianos.

Nascida em Udine, Itália, Giada começou a viver em Pequim em 2005, onde foi correspondente dos principais jornais italianos, como é o caso do Diario, Corriere della Sera e La Repubblica. Desde o seu regresso a Itália, em 2011, Giada tem sido uma das principais comentadoras do país sobre a China, marcando presença em diversos programas de rádio e televisão. É autora do programa #CartaBianca, transmitido pela Rai3, a emissora pública italiana, e curadora de um segmento de notícias na Rai Radio1.

17 Mai 2023

Mahathir Bin Mohamad, antigo primeiro-ministro da Malásia: “Os ocidentais descartaram os seus valores”

Enquanto as tensões entre a China e os EUA fervilham por causa da ilha de Taiwan e da crise na Ucrânia, o Sudeste Asiático mantém uma diplomacia proactiva. Mahathir bin Mohamad, antigo primeiro-ministro da Malásia, expressa as as suas opiniões sobre as relações entre a China e os EUA e ao impacto global da crise na Ucrânia. Mahathir ocupou um lugar muito especial na história da Malásia e foi um estadista influente no Sudeste Asiático

 

Qual é a sua perspectiva para as relações entre a China e os EUA nos próximos 10 anos? Haverá um conflito entre os dois países, especialmente sobre a questão de Taiwan?

Acho que os EUA gostam de provocar. Por exemplo, a visita do Presidente do Congresso a Taiwan é uma provocação. Antes disso, a relação entre a China continental e Taiwan era bastante calma. Existiam relações, não havia confrontos. Mas quando a presidente da Câmara dos Representantes dos EUA visitou Taiwan, a China continental respondeu mostrando que é contra a visita e insistiu que Taiwan faz parte da China. Desde então, há tensão por causa da visita. E quando há tensão, há preparação para a guerra. A China vai reforçar a sua capacidade militar. Taiwan também está a fazer o mesmo, mas Taiwan tem de comprar as armas à América. Isso significa que a América beneficia com o aumento das tensões. Sem tensões, os Estados Unidos não vendem armas a Taiwan. Por isso, espero que os americanos e os chineses compreendam que os confrontos e as ameaças de guerra não beneficiam nem a China nem os Estados Unidos. Devemos aprender a viver juntos porque o mundo está a ficar mais pequeno. Somos todos vizinhos uns dos outros. Se houver tensões, gastaremos o nosso tempo não a enriquecer e a desenvolver os nossos países, mas sim a gastar dinheiro em confrontos e na preparação para a guerra, o que não vai ajudar ninguém. Os países da ASEAN querem ser amigos de todos os países. Temos relações comerciais com a China. A China é o nosso maior parceiro comercial. Mas também temos grandes trocas comerciais com os EUA. Por isso, se houver paz, todos os países irão prosperar.

Acha que a China e os EUA são capazes de gerir as suas diferenças ideológicas?

É difícil, porque as ideologias são diferentes. Mas como a Malásia, por exemplo, queremos ser amigos de todas as nações do mundo, independentemente da ideologia. Não nos interessa se são socialistas, comunistas ou capitalistas, mas queremos negociar com eles. Isso é assunto interno deles. Não exportem a vossa ideologia e então haverá paz. Portanto, se os EUA não tentarem promover a democracia noutros países, o mundo estará em paz. Mas a ideia de que toda a gente quer ganhar apoio para a sua ideologia é uma ideia errada. As pessoas devem poder ter a sua própria forma de governo.

Os ministros da ASEAN estão a discutir a redução da dependência do dólar americano. Qual é a sua opinião sobre o processo de desdolarização em curso em várias partes do mundo?

Há muito tempo sugeri que uma moeda de troca fosse utilizada apenas para o comércio na região da ASEAN, bem como nos países do Nordeste Asiático. Isto é, o Japão, a Coreia do Sul e a China. Se utilizarmos a nossa própria moeda, é óbvio que não utilizaremos a moeda americana. Se não utilizarmos a moeda americana, não há procura de moeda americana. Isso significa que a moeda americana será desvalorizada. Os EUA beneficiam do facto de terem a moeda americana como moeda de troca. Por isso, quando sugerimos a sua substituição por uma moeda comercial da Ásia Oriental, os EUA não ficam satisfeitos e fazem campanha contra. Actualmente, muitos países estão a rejeitar a utilização da moeda americana no comércio. A Rússia, por exemplo, insiste em que o comércio deve ser efectuado em rublos, a moeda russa. E muitos outros países sentem que precisam de comprar moeda americana. E quando se compra a moeda americana, a moeda americana adquire um valor elevado. Por isso, se puderem utilizar a sua própria moeda ou outra, gostariam de o fazer. O sentimento do mundo actual está a mudar. Ao invés de aceitarem o Acordo de Bretton Woods, que diz que o comércio deve ser efectuado na moeda americana, muitos países querem agora utilizar outras moedas. A minha sugestão de que deveríamos ter uma moeda para o comércio na Ásia Oriental é agora algo que é aceitável para muitos países. Quando isso acontece, é possível avaliar as exportações em relação às importações. Se as importações forem maiores do que as exportações, só o país paga. Caso contrário, não paga. De certa forma, é um tipo de comércio melhor, em que não se trocam mercadorias, mas sim o valor das mercadorias com que se negoceia. Por exemplo, se a Malásia vender mais à China, no ano seguinte a China terá de aumentar as suas exportações para a Malásia para equilibrar a balança comercial. Caso contrário, a China terá de pagar à Malásia a diferença entre as exportações da Malásia. A diferença será numa moeda de troca especial.

Como é que avalia as implicações da guerra da Ucrânia na ordem global?

Sou contra a guerra. A guerra não resolve nada. Muitas pessoas serão mortas, muitos danos serão causados. No final, terão de encontrar uma solução. É preferível que falem uns com os outros, discutam, negociem, arbitrem ou recorram a um tribunal para resolver o seu problema. Penso que não há necessidade de os europeus se dividirem entre Leste e Oeste, porque estão sempre a confrontar-se, sempre a pensar em guerra uns contra os outros. Resolverão os problemas através da força militar, o que não é uma boa ideia, porque já travaram guerras antes. E mesmo que ganhem, continuam a perder muito. Por isso, a guerra não resolve os problemas. Na Europa, a Ucrânia esteve em tempos no bloco russo, mas a Rússia decidiu libertar a Ucrânia. Penso que a Europa deveria sentir-se muito feliz com isso, mas eles queriam que a Ucrânia fosse contra a Rússia para aderir à NATO. E quando isso acontece, a Rússia sente-se ameaçada. O convite à Ucrânia para aderir à NATO é uma provocação. De facto, se a Ucrânia não aderir à NATO, penso que a Rússia se sentirá menos ameaçada e não haverá confrontos. Mas assim que o processo for iniciado, a Rússia tomará medidas preventivas. Agora, há uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia, mas as nações da NATO não estão envolvidas, porque a Ucrânia não é membro da NATO, por isso não têm de lutar com a Ucrânia. Mas a Ucrânia tem de lutar contra a Rússia, o que lhe está a causar muitas perdas. A China assumiu um novo papel que é invulgar, porque a China tornou-se agora um pacificador. A China está a tentar resolver os problemas entre a Ucrânia e a Rússia, instando-os a fazer a paz e a resolver os seus problemas. Este é um bom papel para a China. A China já foi muito bem sucedida como pacificadora. Por exemplo, o confronto entre o Irão e a Arábia Saudita dura há mais de 40 anos. Mas depois da intervenção da China, deixou de haver confrontos entre a Arábia Saudita e o Irão. Trata-se, portanto, de um grande êxito para a China. E a China deve continuar. Assim, a China será reconhecida como um país que quer ver a paz no mundo e promover o comércio e a prosperidade conjunta. Os EUA e a NATO não querem que a China desempenhe este papel, mas o facto é que a guerra não vai resolver o seu problema. Eles podem continuar a lutar e a matar. E talvez a Ucrânia seja totalmente destruída. E, no entanto, não há vitória nem para a Rússia nem para a Ucrânia. Haverá sempre confrontos entre eles.

Qual é a probabilidade de a guerra evoluir para uma guerra mundial?

Nós já fomos afectados. O resto do mundo é afectado. O custo de vida aumentou. O fornecimento de cereais, por exemplo, que vem da Ucrânia, é agora difícil de obter. Portanto, isto afecta todas as outras nações do mundo. Os EUA vão tentar que outros países se juntem à acção contra a Rússia, e a Rússia também terá de encontrar países amigos que a apoiem. Haverá um confronto entre o bloco oriental e o bloco ocidental. E isto vai escalar e tornar-se numa guerra mundial.

Qual é a diferença entre os valores asiáticos e os “valores universais” apregoados pelo Ocidente?

Vemos diferenças entre os valores asiáticos e os valores ocidentais. Por exemplo, actualmente, os ocidentais são muito liberais e já abandonaram muitos dos seus valores morais. O casamento já não é respeitado. Até as famílias são objecto de interpretações diferentes. Tudo gira em torno da liberdade. Muitos dos valores do Ocidente mudaram. Mas na Ásia, continuamos a abraçar os nossos próprios valores. Continuamos a pensar que os valores morais são muito importantes. Continuamos a respeitar as instituições do casamento e da família. A China, por exemplo, continua a ser guiada por pessoas como Confúcio. Mantemos os nossos próprios valores. Os ocidentais descartaram os seus valores. Para além disso, politicamente, o Ocidente quer que mudemos e nos tornemos uma democracia, que derrubemos o governo, que criemos novos regimes, e fazem-no de uma forma muito perturbadora.

in Global Times

8 Mai 2023

Vasco Wellenkamp, director da Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo: “Sinto-me completamente realizado”

Sobe hoje ao palco do Centro Cultural de Macau o espectáculo “Na Substância do Tempo”, da Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo. Eis o mote para uma conversa com o seu director e fundador, Vasco Wellenkamp, um dos mais importantes coreógrafos portugueses da actualidade, que fala sobre a sua carreira e o lugar que a coreografia tem hoje na sua vida, mais ligada ao experimentalismo

 

Foto: D.R.

Que expectativas tem quanto à apresentação deste espectáculo em Macau?

Há uns anos apresentámos o espectáculo “Amaramália” que teve muito sucesso em Macau e daí resultou o convite mais tarde, quando começou a pandemia. Por questões profissionais e devido a alguns problemas complicados que tivemos na companhia vamos fazer este ano uma outra apresentação com uma boa coreógrafa, Margarida Belo Costa [e não com o projecto feito em parceria com Miguel Ramalho]. Abrimos com um programa dela [Em Redor da Suspensão], seguindo-se um dueto meu [Outono para Graça] e “Requiem”, a peça fulcral da obra, por ser uma homenagem à Sophia. Esta é, aliás, uma versão de uma obra que fiz há uns anos e que percorreu a Europa, com muito sucesso. Ficámos todos muito orgulhosos. Devo dizer que fomos muito bem recebidos, da primeira vez, em Macau. Os chineses estão muito habituados à estética europeia [da dança]. Têm visto muita dança europeia e não tenho nenhuma dúvida de que estamos completamente enquadrados. Essa é a impressão que eu tenho do público, mas o público é sempre uma incógnita, porque é sempre muito vago, não sabemos muito bem que público vamos ter. Mas estou convencido de que vai ser um espectáculo bem recebido.

Qual a ideia por detrás de “Na Substância do Tempo”?

Esta é uma expressão de um poema de Sophia de Mello Breyner. Mantivemos esse título em homenagem a uma das maiores poetisas portuguesas de todos os tempos. Direi que o “Requiem” foi uma obra muito dançada na Europa, uma primeira versão, e foi feita há muito tempo, nos anos 90. Mas tem sofrido muitas alterações devido a várias questões. E eu sou um coreógrafo que não me importo nada de fazer novas versões, porque tudo depende dos bailarinos que temos. As características dos bailarinos contam muito. Esta obra já foi feita muitas vezes, mas, na verdade, é uma obra nova que teve um sucesso enorme. Estamos numa fase em que trabalhamos com um grupo de bailarinos absolutamente maravilhosos e acho que uma das coisas belas na Companhia é termos gente muito jovem e bonita. São bailarinos formados em escolas portuguesas e esse é outro orgulho que temos de ter.

A Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo surgiu em 1997. Que balanço faz do trabalho desenvolvido até aqui?

A Companhia fez um percurso absolutamente excepcional e isso deve-se ao seu profissionalismo e à exigência dos bailarinos, que estão ali a dançar cada vez melhor e sempre à procura de melhorar as suas condições estéticas, físicas, de linguagem. Introduzimos, nesta Companhia, a técnica de Martha Graham [com quem Vasco estudou em Nova Iorque], que é muito particular, com os seus códigos, e não era isso que queria fazer na minha carreira, nunca o fiz. Procurei sempre fazer a minha própria linguagem, descobri-la. E descobri. Mas a técnica que usamos na Companhia tem evoluído consoante a evolução da dança no mundo, nem fazia sentido ser de outra maneira. Trabalhamos sempre de forma evolutiva. O que é realmente importante é saber tirar partido dos meus bailarinos e fazer com que eles fiquem bem, apareçam bem em público e estejam no máximo das suas competências. Quando temos uma Companhia clássica ou neoclássica, os bailarinos são escolhidos a dedo para serem todos iguais, onde o sentido colectivo é muito importante. A dança contemporânea é feita por individualidades. Cada bailarino que chega tem de se habituar a trabalhar com o conjunto, pois usamos o mesmo estilo e técnica, mas não posso pedir aos bailarinos que sintam as coisas de maneira igual. Eles sentem à sua maneira, cada um é diferente. Isso é uma riqueza enorme. Além disso, numa obra, a música e a dança têm uma grande irmandade. A música não tem um sentido, um significado.

Mas tem um propósito.

Claro. É o de tocar as pessoas. Mas a música, ainda assim, diz-nos a todos qualquer coisa que não se pode pôr em palavras. A história da música é muito mais longa do que a história da dança, que tem cerca de 200 anos. A história da música é milenar. Dançamos no silêncio e há coreógrafos que já o fizeram. É interessante, mas não é a minha onda.

Já teve obras que correram menos bem?

Tenho muito pudor em falar do meu trabalho. Mas nunca fiz uma obra que tenha sido um desastre. Sempre tive o cuidado de apresentar bons bailarinos, para que não se ponham em causa as suas interpretações. Isso permite-me logo uma obra com um grande grau estético e de profissionalismo. Sou muito exigente com os meus bailarinos, mas mais comigo próprio. Mas tive obras de que não gostei, que não estavam no plano que eu queria, que não estavam ao nível deste programa [Na Substância do Tempo] ou do “Amaramália”. Cada vez que surge uma oportunidade de mudar um trabalho do qual não gosto tanto, vingo-me e mudo, seja à primeira, segunda ou terceira vez. Um dos projectos que não precisava de mudar era o “Amaramália”, e mudei-o muitas vezes. Mas deixe-me dizer-lhe que o trabalho que temos feito não é só meu, diz respeito a todos os bailarinos que dançaram comigo. Assim tem sido a nossa vida.

Fala sempre dos bailarinos com quem trabalha e do seu trabalho com uma perspectiva colectiva. Grande parte do seu sucesso nasce desta ligação.

Pode ter a certeza disso. Dá-me uma alegria enorme. Passo a vida no estúdio a discursar sobre aquilo que eu quero que eles sintam, que pratiquem do ponto de vista de uma relação entre eles. Quando estão em cena são uma unidade, influenciam-se entre si, têm de ter um espírito colectivo no sentido espiritual. Há qualquer coisa de importante na forma como eles se manifestam nos seus trabalhos e é isso que mais me apaixona. Quando vejo os bailarinos que tenho fico apaixonado.

Começou a estudar bailado no período do Estado Novo, nos anos 60. Sendo homem, como foi escolher a dança, vista à época como uma coisa de mulheres?

Foi uma grande aventura. Fui para a dança porque namorava uma jovem, aos 18 anos, que fazia ballet. Ia ver as aulas dela e a professora convidou-me a dançar com eles. Primeiro disse que não, mas quando via aquelas coisas ficava… nunca tinha visto nada daquilo. Ela viu que eu tinha todas as condições para dizer que sim. Mas eu tinha um dilema: “Gosto, mas será que gosto mesmo?”. Naquela altura já trabalhava, comecei muito cedo, aos 13 anos, tive de ajudar os meus pais que não tinham meios para sustentar três filhos. Nunca tinha visto dança, mas já tinha uma relação com as artes. Fui sempre bom aluno nas disciplinas ligadas à criatividade. Sempre quis ser artista de cinema e de teatro, mas isto [a dança] surgiu na minha vida como um sonho, que realizei por uma circunstância única da vida, e com esse convite que foi a coisa mais importante que tive. Primeiro fiz uns trabalhos, para aprender, e depois comecei a experimentar. A professora foi para uma Companhia, os Bailados Verde Gaio, havia falta de rapazes e chamou-me. Mas depois pensei: “E agora, como é que eu conto aos meus pais? O que é que o meu pai vai pensar de mim?”. Sobre os homens bailarinos havia uma espécie de espada em cima da cabeça, essa atitude. Disse primeiro à minha mãe, que reagiu pessimamente.

Pior do que o seu pai?

Muito pior. Disse-me: “Vai falar com o teu pai, que não quero ouvir mais falar sobre isso”. Ela queria que eu fosse bancário, mas era a última coisa que eu queria. O meu pai perguntou-me se era isso que eu queria fazer, e para ser o melhor de todos. Foi francamente maravilhoso. Depois fui à tropa, fui para Angola e quando voltei para Portugal regressei aos Verde Gaio, onde trabalhei loucamente para recuperar tudo o que eu tinha perdido. Na tropa não parei, fui fazendo uns exercícios de dança. Consegui manter-me em forma em termos de flexibilidade. Depois fui para o Ballet Gulbenkian, a origem daquilo que foi importante na dança em Portugal. Os Bailados Verde Gaio era algo muito amador. Depois ganhei uma bolsa e fui para a América [Nova Iorque] estudar dança contemporânea, onde estive três anos. Vim para o Conservatório [em Portugal] dar essa disciplina. Depois, em 1997, criei a Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo [com a bailarina Graça Barroso]. Mas devo dizer-lhe que não somos apoiados pela DGArtes [plataforma pública de concessão de subsídios às artes em Portugal]. Isso é algo inexplicável. Fazemos serviço público puro.

Que papel tem hoje a coreografia na sua vida? Ainda é o mesmo que era no início da carreira?

Não é o mesmo. Sinto que consegui construir [coisas] por mim próprio e manter a mesma linguagem. Posso fazer coisas novas, mas não deixo de ser eu. É sempre algo que tem a ver com aquilo que eu sou. Ninguém consegue fugir aquilo que é, se não é forçado. Não há que forçar nada. Quando vou para o estúdio deixo que as coisas aconteçam por si. Antes ia com toda a matéria na cabeça, mas agora já não consigo fazer isso. Vou para o estúdio, fico em frente dos bailarinos e começo a fazer material, a experimentar coisas que estejam de acordo com o espírito que quero para aquela obra. Sinto-me infeliz, nem é por mim, pois já não há nada que me toque. Estou-me nas tintas para a crítica, para o que dizem ou não. A minha Companhia é invejada e todos acham que somos um pouco antigos. E eu pergunto-me: “Se assim fosse, tínhamos o sucesso que temos?”. Mas fico infeliz porque depois vejo os meus bailarinos a ganhar 400 euros, que só estão comigo porque querem muito e gostam muito de dançar.

Ainda pretende desenvolver novos projectos?

Neste momento estou numa fase em que não me sinto ainda acabado. Mas já me sinto completamente realizado na vida. A minha carreira foi tão longa que não me deixava mágoa parar nesta altura. Parar é sempre uma coisa difícil nas profissões, mas não me importava de parar. Mas ainda penso nos meus bailarinos. A Companhia está bem dirigida pela Cláudia Sampaio, mas o que conta é continuar a trabalhar com eles. É alimentar artisticamente os bailarinos, que gostam e precisam disso.

5 Mai 2023

Diogo Cardoso, autor de “Os efeitos da covid-19 na transformação da Health Silk Road”: “Covid zero teve custos muitos elevados”

Acaba de ser lançado, com a chancela da editora brasileira “Novas Edições Académicas”, o livro “Os efeitos da covid-19 na transformação da Health Silk Road”, resultado da tese de mestrado do doutorando Diogo Cardoso, do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa. O trabalho conclui que a China teve melhores resultados na chamada diplomacia da máscara do que na da vacina, além de que o país é ainda “incipiente” na liderança mundial na área da saúde

 

Uma das conclusões do seu estudo é que a chamada “diplomacia da máscara” teve bons resultados no país, mas a “diplomacia da vacina” não tanto. Em que sentido?

Dividi a pandemia em quatro fases. Numa primeira fase, no início da pandemia, alguns países mobilizaram ajuda, com o envio de máscaras e materiais médicos para ajudar a China quando ainda se pensava que a covid seria um problema interno do país. A segunda fase foi marcada pela diplomacia da máscara e, depois, a terceira fase com a diplomacia da vacina. A quarta fase, que desenvolvo menos no livro, é a do pós-covid, com a política de covid zero e a guerra na Ucrânia. A diplomacia da máscara foi um conceito para descrever a ajuda que a China prestou a todo o mundo, e surge pela escassez que existia de materiais médicos e ventiladores, que, em grande parte, eram produzidos no país. Esta diplomacia da máscara acabou por ser mais desenvolvida do ponto de vista bilateral com os países.

Ao invés de multilateral.

Para compreendermos a questão da diplomacia da máscara é necessário ir além das duas posições antagónicas em que, por um lado, temos algumas pessoas que falaram em propaganda da parte da China e, por outro, pessoas mais cépticas que falavam em oportunismo por parte do país. A diplomacia da máscara deve ser vista, a meu ver, como uma adaptação das práticas diplomáticas contemporâneas que, em conjunto com a pandemia, deram à China uma oportunidade para o país provar as suas capacidades de mobilização e cooperação internacional. Permitiu também provar a flexibilidade da Rota da Seda da Saúde. Deve-se reconhecer, neste período, todas as conquistas conseguidas pela China no que diz respeito à rápida activação de todos os actores envolvidos [no processo de ajuda durante a pandemia].

Como é que se passou depois para a diplomacia da vacina?

Posteriormente, quando já não havia escassez de materiais, dá-se a transição de necessidades para a tal diplomacia da vacina, com a produção e entrega de vacinas como um bem de saúde pública. Este é um campo onde a China tem vindo a dar cartas de forma positiva, com apoios e desenvolvimento de campanhas internacionais em vários países. Segundo alguns dados públicos, até Março de 2021 a China produziu 170 milhões de doses e em Junho desse ano havia fornecido mais de 350 milhões de doses a mais de 80 nações e exportando para 40 países. Apesar da falta de alguns dados públicos, as vacinas chinesas ofereciam diversas vantagens para os países em desenvolvimento, com fornecimentos da Sinovac e Sinopharm prontamente disponíveis, numa altura em que as alternativas ocidentais eram escassas. Falamos de uma altura em que os EUA saem temporariamente da Organização Mundial de Saúde (OMS), em que os líderes pedem vacinas como bens públicos globais, mas, de forma egoísta, compraram mais vacinas do que necessitavam, dando origem a um vazio que a China consegue preencher. Nesta fase, houve uma grande fragmentação nas respostas na diplomacia global da saúde, como, por exemplo, os mecanismos de saúde da União Europeia (UE) ou a venda prioritária da venda de doses da Pfizer e Moderna. Com a chegada da variante Ómicron percebe-se que, no caso das vacinas chinesas, a imunidade passa para valores demasiado baixos, o que faz com que alguns países que tinham adquirido vacinas chinesas passem a fazer o reforço com uma vacina ocidental.

Na diplomacia da vacina questionou-se, da parte de alguns países ocidentais, a eficácia das vacinas chinesas, mas a UE acabou por aprovar o licenciamento da Sinovac. Os laboratórios chineses vão, um dia, liderar mais neste campo?

Vale a pena realçar que a diplomacia da vacina diz mais respeito à ajuda humanitária, em que a vacina é vista como um bem de saúde pública global. Além disso, a China já está envolvida nas questões da saúde global desde os anos 60 quando o país começou a enviar equipas médicas para África, o que, na altura, foi uma prática inovadora para fomentar a cooperação Sul-Sul, e em 1963 foi enviada a primeira equipa para a Argélia. A abordagem chinesa à cooperação mundial na área da saúde tem vindo a evoluir no sentido positivo. O envolvimento da China na diplomacia da vacina não é algo novo, mas com a pandemia foi reavivado. A menor eficácia das vacinas chinesas em relação às novas variantes da covid foi o factor que desencadeou estes desenvolvimentos na diplomacia da vacina chinesa, que surgem no período covid, e que fizeram com que a China, em parte, tenha perdido algum do espaço ganho neste período. O país tem uma grande parte dos ingredientes químicos e naturais necessários para as vacinas e cada vez mais investe em investigação. Não será de todo impossível que, com o passar dos anos, e com a China a demonstrar maior credibilidade neste campo, com mais tecnologias e equipamentos, que a UE não aprove novos medicamentos ou vacinas chinesas. As questões de saúde devem ser concertadas a nível mundial. Os resultados serão melhores se partilhados. O caminho, nas questões de saúde, é mesmo a globalização.

O livro aponta que o papel da China na chamada “governança global da saúde” é ainda “incipiente”. O que pode ser feito para o país reforçar a sua influência nesta área?

A retirada dos EUA da OMS e o facto de se ter isolado, em parte, para tratar internamente da pandemia, sem concertar uma resposta global, deu à China espaço para mostrar as suas capacidades e liderar, em parte, a luta contra a pandemia. O programa “Healthy China 2030” é muito abrangente, define metas de desenvolvimento para o sistema de saúde interno do país e é aqui que está a grande chave. Há notícias que referem o facto de o país já investir mais em investigação do que os EUA, e é aqui que percebemos que a China está a investir fortemente nas questões da saúde e na construção de um “agenda-setting” da saúde internacional. O país investe na ideia de que não basta apenas aplicar as melhores práticas, mas é necessário também ter um papel activo na definição dos padrões internacionais. O investimento na investigação e capacitação do sistema de saúde interno, bem como o papel que tem tido na definição dos padrões globais de saúde, podem preparar melhor a China para adquirir uma posição mais activa nesta área. Por outro lado, está a investir na dinamização da medicina tradicional chinesa que, em parte, pode alavancar uma diferenciação em algumas práticas médicas que outros países não têm.

Outra das conclusões é que a pandemia permitiu à China mostrar uma posição de liderança numa primeira fase, mas depois revelou algumas fragilidades internas do país.

Olhamos para a China e temos de perceber que em Portugal somos dez milhões, mas na China são 1.4 biliões de pessoas. Há uma escala populacional completamente diferente. Existiu, de facto, uma posição inicial de liderança, porque a maior parte dos materiais médicos era produzida no país. Muito rapidamente a China desenvolveu os trâmites de ajuda e os mecanismos de logística. Com os confinamentos, a covid estava controlada e a China mostrou ao mundo que era capaz de construir grandes hospitais em tempo recorde. Com a covid zero, [a situação] foi certamente muito complicada para a população chinesa, inclusivamente a de Macau. Teve custos económicos, políticos e sociais muito elevados. A economia chinesa pagou fortemente por isso. Fazendo uma ligação com as vacinas, falamos de uma enorme produção de doses tendo em conta a população chinesa. A capacidade de produção é grande, mas não infinita, e houve escolhas que tiveram de ser feitas.

Diz que a Rota da Seda da saúde ganhou uma maior institucionalização nos últimos anos, com a criação de fóruns com diversos países, e estando mais global, com presença em novos mercados. É uma política que vai ter maior desenvolvimento?

A iniciativa “uma faixa, uma rota” foi apresentada em 2013, e a Rota da Seda da Saúde foi-o em 2016 no Uzbequistão. Esta, antes da pandemia, já apresentava um bom nível de desenvolvimento, em grande parte devido às décadas de experiência da China no combate às doenças infecciosas e na posição que tinha no fornecimento de ajuda a países em desenvolvimento. A Rota da Seda pretende institucionalizar estes mecanismos não como uma alternativa à OMS, mas sim como um complemento. Com a pandemia, este mecanismo acaba por ganhar um novo ímpeto, e com a criação de alguns fóruns multilaterais com outros países a China pôde desenvolver ainda mais esta iniciativa diplomática. Acredito que, no futuro, estas bases lançadas desde 2016 possam alavancar ainda mais a Rota da Seda da Saúde com mais participantes, iniciativas e desenvolvimentos favoráveis a todo o mundo.

Defende que deve ser dada maior importância à governança global da saúde com uma maior cooperação com a OMS e ONU, mas, ao mesmo tempo, a China deve desenvolver o seu sistema de saúde interno. A OMS e ONU estão dispostas a esta colaboração?

Deve haver, de facto, uma maior concertação entre os actores envolvidos para eventuais respostas a emergências globais. Neste campo a China fez um óptimo trabalho e demonstrou, à partida, que queria que a Rota da Seda da Saúde estivesse ligada a todos os outros mecanismos existentes, como a OMS e a Agenda de Desenvolvimento Sustentável da ONU de 2030. Isso mostra que a China pretende continuar a integrar a ordem internacional liberal, onde participa activamente, e a Rota da Seda da Saúde começa a afirmar-se como uma iniciativa “win-win” [ganhos para as duas partes] que permite à China alcançar um lugar mais preponderante a nível mundial na área da saúde e a todos os outros Estados o desenvolvimento dos sistemas de saúde e práticas médicas. Parece-me que há vontade das instituições internacionais em cooperar com a China.

27 Abr 2023

Turismo | Helena de Senna Fernandes aponta ao regresso dos mercados internacionais

A directora da Direcção dos Serviços de Turismo considera que a exposição “Sentir Macau”, que desde sábado pode ser vista no Terreiro do Paço, em Lisboa, é uma tentativa de regresso aos mercados internacionais. Em entrevista à Lusa, Helena de Senna Fernandes defende que Lisboa é o ponto de partida para a tentativa de captar mais turistas internacionais

 

Foto de Gonçalo Lobo Pinheiro

Desde o final da última semana que uma equipa da Direcção dos Serviços de Turismo (DST) e representantes das seis operadoras de jogo estão em Portugal para promover aquilo que de melhor Macau tem para oferecer no sector turístico.

Em entrevista à Lusa, a partir de Lisboa, a directora dos Serviços de Turismo de Macau afirmou que as acções de promoção em Lisboa assinalam a tentativa de regresso do território aos mercados internacionais, um objetivo estratégico do Governo. Helena de Senna Fernandes admitiu que a pandemia da covid-19 alterou o modelo de gestão do território, que se fechou ao exterior e há agora “um caminho a recuperar” na promoção exterior.

“Em termos de mercados internacionais, vamos retomar o nosso trabalho, ficamos realmente fechados para o mercado internacional durante algum tempo e tivemos que parar porque foi um passo para proteger para a população” devido à pandemia.

Macau seguiu as indicações de Pequim e adoptou uma política de tolerância zero contra a covid-19, fazendo com que o território apenas pudesse receber turistas da China. “Temos que recomeçar o que não foi feito em três anos”, disse. Mas “o passo para a frente não vai ser completamente fácil” porque há muita concorrência turística, reconheceu Senna Fernandes.

Antes da pandemia, o peso do mercado internacional valia entre 9 a 10 por cento do turismo em Macau, um cenário que mudou drasticamente, reconheceu, admitindo que hoje “são muitos poucos os estrangeiros” no território. “Em Março, foram só 2.000 pessoas internacionais a entrar por dia”, explicou a directora, considerando que esta preocupação com os turistas estrangeiros é transversal a todo o governo.

Exemplo disso são algumas das medidas dos novos contratos de concessão de jogo para as operadoras dos casinos, que passaram a estar obrigadas a investir nos mercados e na promoção internacional, criando novos produtos e novos canais de captação de turistas. “Daqui para a frente julgo que vocês vão ver muito mais trabalho junto dos mercados internacionais, o turismo internacional é diferente do turismo interno, com um consumo mais diversificado”, afirmou.

Lisboa global

A acção de promoção de Macau em Lisboa aproveita a presença em Portugal do Chefe do Executivo, Ho Iat Seng, para tentar “ter mais atenção” da opinião pública portuguesa. “Estamos aproveitar a visita do Chefe do Executivo para também ter um foco maior em Macau”. Por outro lado, “todo mundo parece que hoje em dia vem para Portugal” e uma acção em Lisboa é uma “promoção para o mundo”.

Além disso, a Praça do Comércio é “um espaço multicultural” com milhares de estrangeiros e os stands de Macau e o ‘videomapping’ no Terreiro do Paço terão um “impacto muito grande junto de vários mercados”, além do português, considerou Helena de Senna Fernandes.

“Não vamos ter de Portugal grandes números de visitantes, mas Portugal é importante para já, para trabalhar na Europa e, por outro lado, eu acho que Portugal também é uma porta para os mercados de língua portuguesa”, procurando promover Macau como “centro de mundial de turismo e lazer”.

O facto de Macau ser património mundial ou a classificação do território como “cidade criativa de gastronomia da UNESCO” são elementos que acabam por atrair novos mercados também na região. “Estamos a ver muitos turistas já asiáticos a querer também provar a comida única de Macau”, explicou, acrescentando que o território tem novos espaços de concertos, parques aquáticos e mais locais para eventos.

Durante a pandemia, a maior parte dos escritórios turísticos de Macau fechou, mas Senna Fernandes admitiu que o cenário mudou. “Neste momento estamos a equacionar para cada mercado o que fazer. O mundo mudou muito, se calhar não é tão importante uma presença [mas sim] trabalhar directamente com o consumidor”, usando as novas tecnologias.

Preservação estratégica

A responsável considerou ainda que os governos central e regional têm feito por preservar “a singularidade” do local, herança mista de influências chinesas e portuguesas. “É isto que nos distingue e não podemos perder”, afirmou, admitindo que o carácter único de Macau é aquilo que o distingue do resto da China. E explicou: Pequim deu três objectivos estratégicos a Macau, a aposta no turismo, a ligação do território à lusofonia, mas também transformar a Região Administrativa Especial numa “base de intercâmbio cultural”.

“[É] importante aproveitar os nossos laços portugueses, mas também os nossos laços chineses” e “aproveitar desta boa relação entre as duas culturas” elementos que ajudem a “utilizar Macau como um ponto de encontro” cultural.
Apesar do fecho das fronteiras, motivado pela pandemia da covid-19 e o aumento dos turistas chineses, continuam a existir projectos de preservação da herança histórica do território, desde o dialecto local (‘patuá’) à cozinha macaense, mas também há novos “espaços turísticos de inspiração portuguesa” a abrir.

“Há muitos chineses que têm muito interesse em Macau porque Macau tem esta mistura de Portugal e China”, explicou. Exemplo disso são os sucessos dos pontos de venda de pastéis de nata, comida portuguesa ou macaense, salientou a directora do turismo.

Hoje o território vive um equilíbrio, com uma “grande influência em termos de cultura chinesa em Macau”, mas também continua “a ter muita afinidade com as raízes portugueses e macaenses”. Admitindo que a presença chinesa no território é “muito grande e intensa”, Senna Fernandes considerou que o futuro de Macau passa por “preservar a sua identidade” na China global, algo que “é promovido pelo governo central”.

A responsável frisou ainda, na mesma entrevista, que o território tem de se preparar para uma nova geração de turistas chineses que procura uma oferta ligada a experiências, redes sociais e eventos. “Neste momento temos dois grupos, os que chegam em grupo de excursão, e aqueles que vêm individualmente, os ‘independent visitors’”, afirmou. A maior parte dos que chegam em excursões tem mais de 55 anos e os que viajam de modo individual têm menos de 35 anos.

Este grupo mais novo “gosta muito de ir para além dos casinos e, se calhar, nem visita os casinos ou vai apenas por curiosidade”, preferindo aproveitar Macau como um espaço turístico mais completo. “Há muitas lojas pequenas que, porque têm presença nas redes sociais, têm muita gente que vai lá”, exemplificou.

18 Abr 2023

Clara Brito, designer e conselheira da “Design Trust”: “Há um lado fútil e insustentável na moda”

Conselheira da Design Trust há um ano, em representação de Macau, Clara Brito tem vindo a trabalhar em vários projectos e defende que há cada vez uma maior vontade de colaboração e união no contexto da Grande Baía. A sua marca de moda, Lines Lab, está sob um “período de reflexão”, com a designer a assumir que há um lado deste universo do qual nunca gostou, pelo facto de a moda ser das indústrias mais poluentes do mundo

 

Tornou-se uma das conselheiras da Design Trust em Janeiro do ano passado. Desde então, que projectos tem desenvolvido?

A minha contribuição com a Design Trust faz com que faça parte do comité de conselheiros que selecciona e avalia os projectos que se candidatam [a financiamento]. Eu, fazendo parte desse grupo, não posso pedir financiamento para projectos meus. Este convite surgiu um bocadinho da relação profissional e pessoal de longa data na Design Trust, pelos prémios que a Lines Lab ganhou em Hong Kong, por exemplo. Macau fica, assim, representado neste comité por mim. Os projectos que têm aparecido na Design Trust são então avaliados consoante os temas de maior relevo, como o enfoque que se dá à protecção, pesquisa e mapeamento da cultura visual da zona da Grande Baía, na tentativa de aproximar e integrar todas estas cidades. Temos o exemplo da relação do museu M+ [Museu da Cultura Visual de Hong Kong] com esse trabalho, pois existe uma relação muito próxima entre a Design Trust e as pessoas que lideram e fazem a curadoria do museu. Há temáticas que são idênticas. Foi feito, por exemplo, o mapeamento de todos os néons que existem em Hong Kong, entre outros projectos. Terminámos o momento desafiante da pandemia, em que estivemos todos sem poder circular nestas cidades que, ainda por cima, se estão a querer integrar. Aconteceu recentemente a gala da Design Trust e estive em Shenzhen na Bienal de Arquitectura e Urbanismo. É curioso ver como estas cidades vivem no pós-pandemia, e a energia positiva que emana do reencontro das pessoas.

A partir de agora há, então, um novo rumo nas áreas do design, artes e moda no contexto da Grande Baía?

Penso que sim, tal como em todas as áreas. Dá para perceber que as cidades desta zona estão a ficar cada vez mais próximas. Essa proximidade percebe-se nas telecomunicações, por exemplo. Há uma relação maior ao nível do design, com uma ligação mais próxima com o M+ e a Design Society. As pessoas querem de facto fazer um maior cruzamento entre fronteiras e começam a perceber o potencial desta zona geográfica. Macau é um sítio muito particular, mas que tem as suas vantagens por possuir uma dimensão menor em relação à China continental. Geograficamente estamos a uma curta distância de cidades que têm milhões de habitantes e com vontade de terem marcas próprias e produtos mais bem desenhados. Já não se olha apenas para a China como a fábrica do mundo, também se quer desenhar produtos no país e não ir só buscar esse design lá fora. Vê-se também uma outra coisa nos projectos que passam pelas minhas mãos e por este comité de avaliação [da Design Trust], que é o gosto e recolha do que é um património muito característico da China. Essa é uma linguagem única, e se as cidades perdem essa essência tornam-se iguais às outras e não se distinguem. Essa tónica da concertação e do mapeamento de uma entidade ou património cultural, de certas indústrias [existe]. Este é um tema que me é muito sensível, pois sempre fui muito próxima dos materiais e deste lado mais tradicional. Gosto de aproveitar este saber e dar-lhe uma visão contemporânea. Neste momento estou a desenvolver um projecto que passa muito por isso, o “Tomorrow’s Heritage”, muito ligado às indústrias tradicionais.

Como vê a evolução do design e da moda em Macau nestes últimos anos? Há capacidade competitiva no contexto da Grande Baía?

Vejo uma evolução muito grande nas áreas do design e da moda desde que cheguei a Macau, há 19 anos. Tem sido um crescimento gradual. Macau só pode ter uma posição pela questão diferenciadora. Não pode ser por uma questão de escala, pois desse ponto de vista não podemos competir. A Grande Baía quer todos os elementos integrados, por isso todos têm de estar representados, mas importa ver qual a especificidade de cada território que vai estar representado neste contexto. Por isso há que criar uma estratégia sobre aquilo que nos torna diferenciadores face a Shenzhen ou Zhuhai. Acredito que sim [que há capacidade competitiva de Macau]. A grande vantagem é termos ali ao lado um mercado que tem outra dimensão em termos do número de pessoas que, na maior parte dos casos, vêm consumir a Macau. Quando comecei a vender para cidades como Shenzhen e Zhuhai, sentia que os meus produtos eram caros para esses mercados. Neste momento observa-se que o custo de vida em Zhuhai está a aproximar-se muito do de Macau. Acredito que, com a questão de as pessoas terem de parar, o mercado online teve certamente um boom e, na China, está agora bastante desenvolvido. O formato papel parece que desapareceu.

Como avalia o interesse dos jovens pelo mercado da moda?

Nota-se uma diferença considerável. Temos o Macau Fashion Festival, a semana da moda organizada pelo Venetian. Começa a haver outro interesse e outros eventos que podem dar mais visibilidade às marcas e empresas. Agora se estas têm estrutura para dar resposta, isso aí já uma outra questão. Nota-se, de facto, um crescimento, até ao nível dos diversos parceiros que se começam a organizar, no sentido de levar marcas a Hong Kong, por exemplo. Esse foi também um trabalho que fizemos com a MunHub. É bom saber que as pessoas saem deste contexto de Macau e que saem para as cidades que estão aqui à volta, com um mercado que pode trazer alguma sustentabilidade.

Relativamente à Lines Lab, como está a marca, que novidades estão a desenvolver?

Estamos num período de reflexão. A empresa ainda existe, não apenas na área da moda, mas também como agência criativa a realizar vários projectos. Estou mais focada, neste momento, em alguns projectos, um deles o “Tomorrow’s Heritage”, que terá mais novidades no final do ano. É curioso porque sempre tive uma relação um pouco adversa com o mundo da moda. Sempre fui muito próxima dele, mas há um lado da moda com o qual nunca me senti muito confortável, o lado fútil e insustentável da moda, porque é a indústria mais poluente a seguir à indústria do petróleo, e isso é grave. É a tendência do “Fast Fashion” quando, na realidade, estamos a comprar lixo. Deveria ter entrado na Faculdade de Arquitectura [da Universidade de Lisboa] para estudar moda e, na verdade, fui estudar design industrial na Faculdade de Belas Artes. Mas depois estudei moda em Milão e fui lá parar na mesma. Mas o ter de fazer duas colecções por ano, lançar tendências só para alimentar o mercado é algo com que não me identifico. E é curioso ver que a rotatividade e o calendário das semanas da moda está a mudar, pois o que acontecia é que o calendário era apresentado seis meses antes e havia empresas que iam para os desfiles ver quais eram as silhuetas e as tendências e rapidamente metiam aquilo no mercado. Se calhar a pandemia mostrou-nos que somos frágeis e que não está tudo assegurado e garantido.

Portanto tão depressa não teremos uma colecção nova da Lines Lab.

Neste momento não estou a planear dessa forma. Talvez possamos ter alguns produtos, não sei bem. Estou nessa descoberta ainda. Os planos para a Lines Lab não estão definidos.

E a MunHub, em que fase está?

Teve de parar um bocadinho devido ao contexto pandémico, pois era mais difícil fazer os designers circular. Mas a ligação com alguns designers mantém-se, mas com eventos mais “low-profile” e vocacionados especificamente para a indústria, na tentativa de criação de oportunidades de negócio directas sem ser virado para o público em geral.

Macau tem uma história com a indústria têxtil. O que herdámos dela? Não temos tradição de alta-costura, por exemplo.

Uma das coisas que não me agradou muito no período em que vivi em Zhuhai, apesar de ter gostado muito de ter lá vivido, é o facto de em Macau sentirmos ainda o peso da história e termos muitos edifícios protegidos pelo património. É cada vez mais difícil encontrar alfaiates e costureiras, daquelas que tinham imenso conhecimento do trabalho manual. Se Macau tivesse umas cinco ou seis boas costureiras e alfaiates, se calhar poderia ter um património muito valioso e não as fábricas, porque, na realidade, Macau não tem escala para ter fábricas e faz todo o sentido que estejam na China. Mas poderíamos ter workshops especializados, coisas de nicho. Era extremamente desafiante produzir em Macau, mesmo para um desfile. Neste momento só trabalho com uma costureira em Macau, que para muitos clientes é muito cara, mas eu sei que entrego o projecto e é feito do princípio ao fim sem grandes desafios. Falamos a mesma língua. Mas ter isso, e equipas formadas, é caro. É um enorme desafio para os designers e é mesmo uma lacuna. Não há novas gerações de costureiras ou alfaiates. As que tinham esse conhecimento foram absorvidas pela indústria dos casinos.

12 Abr 2023

João Miguel Barros, advogado: “O que pode fazer a diferença é nossa a experiência e competência”

Chegou ao território no final dos anos 80 e ainda encontrou o Estatuto Orgânico em vigor. João Miguel Barros diz que a Lei Básica é o “documento estruturante de princípios fundamentais na sociedade”, que define liberdades e direitos e que portugueses e expatriados devem respeitar o sistema vigente. O causídico defende que o português é apenas “tolerado” nos tribunais e que os advogados portugueses “são uma espécie em vias de extinção”

 

Olhando hoje, depois de 30 anos da promulgação da Lei Básica, considera que a miniconstituição respeita os trâmites da Declaração Conjunta e os interesses de Portugal e da China?

É muito importante que exista um documento estruturante de princípios fundamentais na sociedade de Macau e que defina direitos e liberdades dos residentes. A garantia de autonomia do território por 50 anos é outro dos compromissos fundamentais que a Lei Básica assume com relevo para Macau. No contexto político da República Popular da China, provavelmente teria sido difícil ir mais longe do que se foi. Em todo o caso, é importante que se diga uma coisa: a visão de um português é totalmente diferente da visão de um chinês sobre este assunto. Até mesmo na lógica dos “interesses”. Por “interesses” entenda-se a disponibilidade e vontade de intervenção cívica nos assuntos da cidade ou da governação. Há uns anos que cheguei à conclusão que não me cabe ter especial “interesse” neste processo. Macau é chinês. A dinâmica política de Macau evoluiu muito depressa no sentido do primeiro sistema. O discurso de “Um País, Dois Sistemas”, brilhantemente criado por Deng Xiaoping, é agora meramente político e operacional. Não é substancial. O Chefe do Executivo que melhor encarnou esse princípio foi o Dr. Edmundo Ho, por quem tenho admiração. O actual Chefe do Executivo [Ho Iat Seng] teve a má fortuna de começar as suas funções com a pandemia, mas o seu mandato coincide com a fase de uma maior afirmação nacionalista do Presidente Xi Jinping, que tem pautado a sua governação por uma carga ideológica acentuada. Daí que não seja de estranhar que o discurso do actual Chefe seja o discurso típico de um homem do primeiro sistema. A prová-lo está este simples facto: ele não diz que Macau deve ser governado pelas suas gentes, mas que deve ser governado por patriotas. Não tenho nada contra. Mas esta diferença faz toda a diferença. É por isso que eu digo que no meio de tudo isto nós, portugueses, ou seja, nós expatriados, ainda que residentes permanentes, não fazemos parte dos mesmos “interesses”. A nossa participação cívica ou política é irrelevante ou residual. A nossa palavra conta muito pouco ou não conta nada. Se quisermos estar em Macau devemos respeitar as leis e cumprir os princípios vigentes na sociedade. O que pode contribuir e fazer a nossa diferença na sociedade é a experiência e a nossa competência profissional. Só isso.

Entende que a Lei Básica tem contribuído para a manutenção de um sistema social, político e judicial próprios de Macau?

A Lei Básica, atendendo ao contexto a que me referi, é um bom documento de síntese. Ou seja, quando falo no contexto estou a assumir o óbvio: que Macau não está organizado como uma sociedade democrática, onde vigora um claro princípio da separação de poderes. Nem tal seria possível por pertencer à República Popular da China. O problema é o modo como se interpreta, na prática, esse conjunto de direitos fundamentais. Isto é válido para Macau como para as sociedades democráticas: muitas vezes a questão não está nas leis, mas no modo como elas são interpretadas e aplicadas. Mas não posso deixar de reconhecer que em Macau a situação é mais complicada porque os mecanismos de ‘checks and balances’ [monitorizações e equilíbrios] estão mais afunilados, e desde logo por ausência de uma opinião pública mobilizável.

Alguns artigos da Lei Básica foram legislados muito depois da sua implementação, nomeadamente no que diz respeito à Lei Sindical. Esta tem sido uma lacuna das autoridades locais, o atraso em relação a algumas leis?

Macau tem tido um ritmo de desenvolvimento económico muito acelerado com imensas frentes e diversas prioridades. E estando toda a dinâmica política e legislativa centrada no Chefe do Executivo e no Governo, que apesar de tudo é pequeno, é normal que não seja possível fazer tudo ao mesmo tempo. São opções políticas.

A Lei Básica determina a igualdade entre residentes, mas temos hoje uma interpretação à letra desse termo, afastando-se os não-residentes de muitas políticas do Governo, apesar de constituírem uma grande parte da população. É uma lacuna da miniconstituição ou de quem a interpreta, contribuindo para desigualdades sociais?

Macau não é propriamente um bom exemplo em termos de igualitarismo social. Provavelmente o maior problema é a consciência da escassez da terra e o conservadorismo orçamental que impede que muitos não-residentes possam aspirar a ter outro estatuto, o que equivaleria a terem outros direitos e uma outra vinculação para o futuro. Vivemos numa sociedade muito liberal em termos económicos, no sentido de exploração económica da mão-de-obra exterior (não-residente), mas muito conservadora, no sentido de protecção dos residentes de Macau.

A Lei Básica determina que o português é língua oficial e pode ser utilizado na justiça. Como comenta a evolução do uso do idioma nos tribunais, nos últimos anos?

O português é apenas uma língua tolerada e utilizada em sentido único nos tribunais. E a situação tem vindo a piorar com o passar dos anos. Só não é uma língua em vias de extinção, em especial na primeira instância, porque há advogados portugueses que escrevem e falam em português. Mas de volta são sempre respondidos em chinês. Dá-se até a situação incompreensível de os juízes, que para serem juízes têm de saber falar português, se dirigirem em chinês aos advogados portugueses quando não há outros interlocutores de língua chinesa na sala de audiência. Já aconteceu comigo. O que eu sinto é que os juízes, de um modo geral, não respeitam o português com o argumento de que o chinês também é língua oficial.

Como olha para a evolução do Direito de Macau e da própria comunidade de advogados portugueses?

O Direito é um organismo vivo e precisa de se ajustar à evolução da sociedade. É normal que assim seja. Macau tem vindo a sofrer grandes transformações que precisam de ajustamentos legislativos e normativos. É importante que a matriz portuguesa se mantenha no sistema jurídico pela riqueza da sua doutrina e jurisprudência e pelo legado que os juristas e professores das universidades portuguesas deixaram no ensino do Direito em Macau. Mas é fundamental que esse sistema seja assimilado e transformado no sistema jurídico da RAEM, sem complexos. Ao fim destes anos todos penso que foi isso que aconteceu ao Direito de Macau, e a prova é que nos tribunais superiores continua-se a citar jurisprudência portuguesa. Quanto aos advogados portugueses: nós somos uma espécie em via de extinção. Os mais velhos, como eu, estão na idade da reforma. Os mais novos farão parcerias com advogados chineses e das duas uma: ou aprendem chinês fluente e continuam, ou passam para um lugar secundário. Ou, então, assumem um outro papel: são advogados encartados, mas na prática, funcionam como intermediários de negócios.

A Lei Básica sofreu algumas alterações, nomeadamente nos anexos, aquando da revisão das leis eleitorais para a Assembleia Legislativa e Chefe do Executivo. Entende que a miniconstituição deverá manter-se sem mais mudanças até 2049?

Não lhe sei responder. Por princípio as leis estruturantes não devem andar a sofrer alterações.

30 Mar 2023

Catarina Nunes de Almeida, autora de “Pars Orientalis”: “Em qualquer ponto há um Oriente e Ocidente”

“Pars Orientalis – Estudos sobre escrita e viagens”, editado pela Documenta, é o novo livro da académica Catarina Nunes Almeida, que explora as representações do Oriente na literatura portuguesa contemporânea do período pós-colonial. Em exemplos tão díspares como o romance “As Naus”, de António Lobo Antunes ou livros de reportagem de Alexandra Lucas Coelho, como “Caderno Afegão”, a autora encontrou diversas versões e noções do Oriente

 

 

Coordena, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, o grupo de investigação “ORION – Orientalismo Português” e ensina, entre outras, a disciplina “Narrativas de Viagem”. Foi aí que nasceu este livro?

O livro nasceu de facto do “ORION”, onde desenvolvo o meu projecto de investigação individual sobre a viagem ao Oriente na literatura portuguesa contemporânea.

Que textos e que Oriente encontramos neste livro?

Há que distinguir a tematização do Oriente, a sua representação em diferentes géneros. Na verdade, essa representação está presente em obras de poesia, ficção, narrativas de viagem. O que trabalho aí são, essencialmente, autores que representam espaços da Ásia, mas muitas das vezes a Ásia vem designada como o Oriente. No caso do Lobo Antunes falamos de um romance [As Naus], mas temos os casos de Mário Cláudio e Gonçalo M. Tavares, com “Uma Viagem à Índia”. Há vários autores que têm trabalhado a partir desta viagem simbólica dos portugueses às suas origens marítimas, dessa Epopeia que está sempre presente ou, como diz o Eduardo Lourenço, esse “complexo de Epopeia” que acabamos por ter sempre connosco. Depois temos autores que fogem um pouco do tema da identidade e da memória cultural portuguesa, e que têm empreendido viagens a espaços da Ásia que são narrativas de viagens em que o que conta é a dimensão estrangeira da Ásia, não tem propriamente a ver com a procura ou a pesquisa identitária das raízes portuguesas, mas com viagens a países estrangeiros, e é aí que entram narrativas de viagem como da Alexandra Lucas Coelho.

Com o livro “Oriente Próximo”…

Sim, mas também com “Caderno Afegão” ou o mais recente, “Líbano, Labirinto”, livros que surgem no contexto da sua profissão de jornalista.

Nesses casos, não há propriamente a busca do imaginário oriental.

Não há. Temos também o caso do José Luís Peixoto com o livro “Dentro do Segredo”, que escreveu depois de uma viagem à Coreia do Norte ou em “O Caminho Imperfeito”, livro sobre a Tailândia. Ele busca o outro pelo outro, pela sua dimensão desconhecida. Muitas vezes não é isso que encontramos nos poetas, principalmente quando empreendem viagens a Macau, a Goa, que são espaços que acabam por ser ainda entendidos como “casa”, têm ainda uma dimensão doméstica para os portugueses. Vão ali encontrar as referências arquitectónicas, materiais dessa presença portuguesa. Resolvi ir buscar textos de autores contemporâneos, publicados a partir de meados da década de 80 [do século XX], no período pós-colonial. Em relação aos poetas, nota-se ainda, em algumas obras, nomeadamente “Navegações”, de Sophia de Mello Breyner Andresen, ou nas obras do António Manuel Couto Viana, que viajar para o Oriente…aliás, eles viajam mais para o Oriente do que para a Ásia. Logo aí temos uma diferença.

Em que sentido? No livro refere que a ideia de Oriente não se resume apenas à Ásia. Há uma ideia de Oriente muito vasta.

Exacto. Acaba por se ter uma dimensão plasmada no espaço e no tempo, uma viagem que é, obviamente, inspirada por representações literárias, em que o Oriente é o espaço das “Mil e uma Noites”, o espaço bíblico, e depois, por outro lado, um espaço muito diversificado geograficamente, porque tanto podemos considerar países que pertencem a África, por exemplo, podem ser inseridos no nosso conceito de Oriente. Edward Said já falava disto muito antes de mim.

Falamos da Tunísia…

Sim, o próprio Egipto, Marrocos, ou a Andaluzia, que durante muito tempo foi assumido como um Oriente ibérico. Há muitos espaços que entendemos como o “Oriente” que não são a Ásia. Muitos autores, principalmente os poetas, porque têm esse lado mais onírico à flor da pele, acabam por viajar mais para o Oriente do que propriamente para a Ásia, embora tenhamos também casos como Manuel Afonso Costa, que têm uma vivência mais próxima, ou até José Alberto Oliveira. No Manuel Afonso Costa, a China não é apenas aquela China colonial portuguesa que seria Macau, ele interage com a literatura chinesa. Ele é também tradutor.

Relativamente à China e a Macau, que autores trouxe para este livro?

No segundo estudo de caso que apresento, em que falo de paisagens fluviais chinesas na poesia portuguesa contemporânea, aí, obviamente, é Macau a paisagem fluvial, a do Rio das Pérolas, que é mais visitada, e aí entram todos os autores que já mencionei, como a Sophia de Mello Breyner Andresen, o próprio Eugénio de Andrade com “Pequeno Caderno do Oriente”, Manuel Afonso Costa e José Alberto Oliveira. Entra, inclusivamente, Duarte Drumond Braga com o livro “Salitre”.

“Pars Orientalis”. Como surgiu o nome?

“Pars Orientalis” significa “partes do Oriente” em latim. Na introdução do livro falo sobre a evolução do conceito de Oriente. Na verdade começou com os gregos, mas, no período do império romano, dá-se a primeira separação administrativa dos dois blocos, a parte do Ocidente e do Oriente. Quis aproveitar essa primeira divisão administrativa, que nos colocou para sempre na cabeça que o mundo está dividido nestas duas partes. Mas, no fundo, em qualquer ponto em que nos encontremos há sempre um Oriente e um Ocidente, depende do ponto de referência.

Este livro vem colmatar uma lacuna relativamente à representação do Oriente na ficção contemporânea?

Penso que já não existe tanto essa lacuna. Cada vez mais, muito graças a colegas que colaboram comigo aqui no Centro de Estudos Comparatistas, mas também em outras instituições, já é dada uma atenção particular às representações da Ásia na literatura. Nunca teria em mãos um projecto se ele não fosse, de alguma forma, original e contribuísse para trazer alguma coisa nova. Mas há cada vez mais essa preocupação em desvendar o Orientalismo literário português que é tão interessante. E aqui não precisamos de pensar exclusivamente na literatura, ou em livro. Penso mais na própria música, quando temos libretos de ópera. Temos imensos exemplos de Orientalismo na música ocidental, o caso do próprio Puccini, Verdi. Na cultura portuguesa há um campo muito vasto que não foi explorada a perspectiva da representação orientalista como é entendida por [Edward] Said.

O livro tem um capítulo dedicado a peregrinações e viagens de circum-navegação. Há então referências ao período dos Descobrimentos, das viagens dos jesuítas?

Sim, sobretudo aos modos como os autores portugueses representam os temas de modo ficcional, ou não. No fundo, é aí que entra o António Lobo Antunes, Augusto Abeleira, Almeida Faria. É ver como eles, séculos depois, dialogam com as fontes históricas e reinventam esses documentos. É próprio também da poética em que se inserem, o pós-modernismo. Ainda estamos nessa era. Existe a preocupação de revisitar fontes textuais e dar-lhes um novo sentido, reinterpretar a história e dizê-la de novo ficcionalmente.

Isso alimenta também o imaginário que o leitor já terá, criando novos Orientes?

Claro. Por exemplo, acho bastante proveitoso o trabalho de Mário Cláudio, até porque ele tem formação como bibliotecário, o que lhe permite dominar arquivos. Em “Peregrinação de Barnabé das Índias”, temos uma nova versão do manuscrito que subjaz aquele romance, que é o relato de Álvaro Velho sobre a viagem de Vasco da Gama à Índia. Ele reinventa, na perspectiva de uma personagem inventada, o Barnabé das Índias, esses acontecimentos. Olha a História com olhos um pouco contaminados pelo futuro. É por isso que há ironia, humor, de que estão carregadas “As Naus”, de Lobo Antunes. Temos caricaturas. Tudo isso são elementos da poética pós-moderna e é comum, não apenas em Portugal, às várias literaturas intervirem na sua própria história, questionando-a e apresentando novas versões.

Sobre a Coreia do Norte, um país tão fechado ao mundo, temos mais representações além do livro de José Luís Peixoto?

Não. Essa é a única referência, que eu saiba, e é também a única a nível ocidental. O próprio autor explica que quando fez a viagem teve de assinar um documento em como não iria escrever nada sobre ela nem publicar outros registos. Depois teve de trabalhar com um advogado para reverter essa declaração. Mas são poucos os relatos que existem a nível ocidental. É um país extremamente fechado e difícil de representar, sem cair em clichés. Mesmo quem lá está tem dificuldade em não cair nos estereótipos, porque já há uma imagem muito marcada [do país].

Os autores que abordam o Japão foram buscar referências a Venceslau de Morais, por exemplo?

Não. Aí são casos em que esses países valem pela sua dimensão estrangeira. No caso do Japão, os autores deixam-se ficar “Lost in Translation” [Perdidos na Tradução]. É essa a sensação que impera pelo que lemos dos relatos. Eles dão-se conta dos limites da linguagem, que não chega para descrever o Japão. Comparei três relatos diferentes, sendo que o primeiro deles é pouco conhecido, de João Benard da Costa, quando escreveu crónicas num jornal sobre a viagem que fez ao Japão. Tive de adquirir esse livro, editado em 2001, num alfarrabista por já não estar à venda. Estudo também o caso de “O Livro Usado (numa viagem ao Japão)”, de Jacinto Lucas Pires, publicado também em 2001. É uma narrativa um pouco diferente, um pouco mais impessoal. O narrador é um sujeito que permanece muito solitário, é um espectador, não interage muito com as pessoas ou com o espaço. O último caso foi uma feliz surpresa. Tenho esse livro e tive sorte, porque a tiragem foi de 25 exemplares. É um livro do poeta Luís Quintais, a que se propôs escrever o relato da viagem que fez ao Japão e depois publicou-o numa editora mais marginal. É um texto lacónico, escrito essencialmente em fragmentos.

29 Mar 2023

Célia Reis, historiadora: “Havia uma divisão muito forte”

“A Política Religiosa entre Lisboa e Macau: A presença de Jesuítas e Irmãs da Caridade nas décadas de 1860-70” é o nome da mais recente investigação que a historiadora Célia Reis apresentou no Centro Científico e Cultural de Macau. A académica fala de um período em que as autoridades procuraram melhorar a educação dos macaenses, inclusivamente com a abertura de uma escola feminina. No entanto, a presença dos grupos religiosos gerou tensões políticas

 

Este projecto de investigação foi feito de forma independente. Como surgiu a ideia de estudar a presença de Jesuítas e Irmãs da Caridade em Macau neste período?

Este é, de facto, um projecto independente, pois continuo a fazer investigações sobre Macau [após a conclusão do doutoramento]. Este tema já me tinha surgido há algum tempo, tendo em conta os problemas que ocorreram em Macau com a presença dos religiosos.

Entre 1860 e 1870, como era a política religiosa entre a Metrópole e Macau?

Muito interessante. Primeiro, em Macau, estávamos perante uma preocupação, que é muito visível, de desenvolver o estudo e a instrução dos macaenses perante escolas que não existiam. É neste contexto que vão surgir as ordens religiosas, primeiro os jesuítas no Colégio de São Paulo, no seminário, e depois as Irmãs da Caridade, de São Paulo de Chartres, que vão também abrir um colégio feminino a pedido de figuras locais. Em Portugal aconteceu um processo semelhante quando as ordens religiosas começam a regressar após a ordem de expulsão com o decreto de 1834. É também pela via da instrução que elas vão chegando, e isso também se verificou em Macau, primeiro com os jesuítas no seminário e depois com estas irmãs para o Colégio da Imaculada Conceição. Sobre estas irmãs, entram em Macau a pedido de determinadas figuras da comunidade macaense. Isto num período em que saem de Portugal depois de estarem envolvidas numa intensíssima polémica com as irmãs de São Vicente, também irmãs da caridade, mas de uma outra congregação. Isso vai gerar um diferendo entre a imprensa local e nacional e também entre as autoridades locais e nacionais.

Em que consistiu esse diferendo?

Relativamente à imprensa encontramos jornais como “A Revolução de Setembro” [diário publicado em Portugal à época] que contesta fortemente esta presença [das irmãs da caridade], mas que o faz muito ligado às questões partidárias do próprio país, sobretudo contra a acção do ministro Mendes Leal. Quanto a este ministro, encontramos coisas interessantes. Ele tinha sido um dos mais fervorosos lutadores contra as irmãs de caridade em Portugal. O Governador Coelho do Amaral [José Rodrigues Coelho do Amaral] disse-lhe que iam abrir em Macau o colégio a pedido de pessoas locais, e o que o ministro Mendes Leal faz é, sobretudo, pedir informações. O Governador diz que não há problemas nenhuns com as irmãs, que são absolutamente necessárias, e o ministro acaba por aceder e permitir que elas continuem em Macau a desempenhar funções na instrução. Portanto, temos aqui uma polémica nacional, com os locais a defender a imprensa e as autoridades a defenderem as irmãs da caridade. Com os jesuítas foi um projecto um pouco diferente.

Em que sentido?

Os jesuítas começam a chegar ao seminário, mas não causam propriamente grandes problemas. Há uma espécie de continuidade da sua presença e, sobretudo pelas polémicas que se vão criar em torno de um jornal local, o “Ta-Ssi-Yang-Kuo”, e um outro que se publicava em Hong Kong, chamado o “Echo do Povo”. Vão ser polémicas religiosas muitíssimo mais latas sobre questões mais conservadoras que levam o outro jornal local a opor-se a políticas mais conservadoras e, no meio delas, aos jesuítas. Um outro jornal que vem a seguir, o “Independente”, que penso vir muito na linha do “Ta-Ssi-Yang-Kuo”, também acrescenta oposição a estas figuras religiosas. Parece-me que existia nitidamente uma divisão muito forte entre a maioria dos portugueses que não estavam em Macau, contra os portugueses de Macau, os macaenses. Na maior parte dos casos, algumas figuras fugiam a esta divisão, mas parece-me que a polémica toda está relacionada também com esta clivagem social. No entanto, há ainda coisas que têm de ser complementadas com outros estudos sobre a sociedade local. Mas, claramente, havia uma divisão muito forte.

Falamos de um período em que a educação dos macaenses era um problema a resolver. A Igreja teve, portanto, um papel importante.

Exactamente. O seminário era um dos principais elementos de instrução, mas estava decaído, não servia essa necessidade de educação dos jovens locais. Estes tinham de recorrer a professores privados ou sair de Macau para estudar. É nesse contexto que várias personalidades vão criar a escola macaense, aberta em 1862. Os próprios contestatários locais dizem que o Governo português [em Lisboa] se sentiu, finalmente, preocupado com o que deveria ser feito para os jovens macaenses, e vai reabrir o seminário. Isso num tempo em que o seminário tinha duas funções extremamente importantes: por um lado, a formação, pois funcionava verdadeiramente como um liceu para os rapazes de Macau, e depois a formação de sacerdotes que eram muito necessários para resolver os problemas do Padroado e pela necessidade de poder missionar. Durante vários anos temos estas duas instituições para rapazes, mas nenhuma instituição para raparigas, daí que o Colégio da Imaculada Conceição tenha sido pensado para as meninas. Este esteve ligado a personalidades como Bernardino de Senna Fernandes e a um senhor macaense de Xangai que deu também um grande donativo para o colégio, sendo um dos subscritores. Durante vários anos, o colégio funciona como um estabelecimento por subscrição dos beneméritos de Macau.

Bernardino de Senna Fernandes foi, aliás, uma figura importante na Administração local.

Sim. Foi muito importante e uma figura muito destacada em toda estas questões sociais e políticas locais, e ainda económicas, nomeadamente sobre o comércio dos cules, do jogo e das finanças. Sobre a política externa, como o comércio dos cules, [existem estudos], mas sobre estas questões de política interna e de sociedade com os portugueses em Macau há partes ainda por estudar. Daí que tenha ficado interessada em fazer esta investigação.

Depois de 1870, como ficam estes diferendos entre grupos religiosos?

A minha questão tinha a ver com o período em que os jesuítas e as irmãs de caridade vieram para Macau, tendo chegado, precisamente, no início da década. Os jesuítas saíram no início da década de 70. Depois de várias confusões com o clero local, eles têm de sair de Macau quando se dá uma reorganização do seminário pois, neste processo, determina-se que os professores e o reitor têm de ser portugueses. Como vários deles eram estrangeiros, saíram, e um ou dois que eram portugueses saíram também por solidariedade. As irmãs de caridade mantiveram-se, mas muito contestadas. É interessante, pois verificaram-se alguns problemas políticos com elas, mas, entretanto, deixou de se ter tanta noção da sua posição. Na década de 70 [do século XIX] elas têm o seu colégio, mas depois surge outro, o Colégio de Santa Rosa de Lima. As irmãs da caridade deixam de ter a mesma importância e força, e só saíram do território no início da década de 90, mas aí já não se falava delas com a mesma firmeza. Daí a decisão de estudar esse período. Quando o Colégio de Santa Rosa de Lima foi criado, a comissão que estava ligada à organização do Colégio da Imaculada Conceição ainda tentou que os dois estabelecimentos ficassem ligados entre si a cargo das mesmas irmãs de caridade, mas não foi o que aconteceu.

27 Mar 2023

Ivo Carneiro de Sousa, historiador: “Esta Grande Baía não existia sem Macau”

Para quem pensa que a Grande Baía é um conceito político novo, desengane-se. O historiador Ivo Carneiro de Sousa, académico da Universidade Politécnica de Macau, explica que a noção de Grande Baía de Cantão, enquanto zona de intenso comércio, já existia em 1701. Macau tinha um papel fundamental de intermediação, arbitragem e serviços, incluindo tradução e interpretação nos negócios

 

Esta semana deu uma conferência intitulada “Macau e a formação histórica da área da Grande Baía: 1700-1842”. Este não é, afinal um conceito novo.

A Grande Baía de Cantão existe, pelo menos, desde 1701, quando aparece, pela primeira vez, num dicionário de geografia universal de Charles Maty, um grande geógrafo e cartógrafo que se viu obrigado a fugir de França e a refugiar-se em Amesterdão. Ele descreve, em termos de geografia comercial, toda a parte marítima entre Macau e Cantão, chamando-lhe a Grande Baía de Cantão. A obra publicada em Amesterdão foi um marco da invenção da geografia comercial. A partir de 1713, começamos a encontrar mapas franceses, ingleses, espanhóis e italianos, que mostram uma espécie de golfo entre Macau e Cantão, que se chamava a Grande Baía. A partir de 1930 começou-se a designar todo o comércio que se fazia nessa região de Cantão, com a intermediação de Macau, por sistema de Cantão. Em 1841 surge o último mapa que fala da Grande Baía de Cantão.

Como funcionava, então, esta Grande Baía?

Era uma economia-mundo. Consistia numa parte do mundo suficientemente organizada em termos económicos e com intérpretes e uma posição dominante na economia mundial. Tal devia-se à relação especial entre o mercado de Cantão e as formas de intermediação com que Macau permitia o acesso internacional a esse mercado.

Qual foi o papel de Macau neste sistema?

Macau teve, ao longo do século XVIII, e até meados do século XIX, um sistema complexo e especializado de inteligência comercial. Todas as embarcações internacionais que, entre Setembro e Janeiro, pediam a Cantão para fazer comércio, e chegavam a ser 80 embarcações por ano, tinham de passar por Macau, solicitar uma chapa de autorização, contratar um piloto e fazer um contrato com uma companhia de compradores. Essas companhias asseguravam todo o abastecimento do barco durante o período de comércio em Cantão, do ponto de vista técnico, por exemplo. Macau assegurava também a classificação comercial dos produtos que entravam e saíam de Cantão. Eram categorizadas, por exemplo, as sedas, os chás, dava-lhes um peso internacional e preço. Encontramos peles de lontra, por exemplo, ou prata de Manila, que se descarrega e pesa na totalidade em Macau. Encontramos até coisas estranhas, como aves que vêm de Papua Nova Guiné. Só havia duas grandes balanças oficiais para pesar os produtos, uma no Leal Senado, a partir do século XVII, e da Santa Casa da Misericórdia. Os barcos internacionais tinham aí de pesar os produtos e receber uma legalização, bem como uma etiqueta comercial. Em Macau também se calculava o preço.

Havia então um sistema profissional de categorização e classificação das matérias-primas.

Sim. Como o mercado de Cantão exigia reservas para o ano seguinte, tal gerou uma série de conflitos comerciais sazonais, que não eram resolvidos em Cantão, mas em Macau. Fazia-se as tentativas de arbitragem comercial e chegava-se a julgar e decidir esses casos. Em 1796, o Governador Vasco Luís Carneiro de Sousa e Faro fez um levantamento da população que arrola 962 estrangeiros, holandeses, suecos, austríacos, italianos… Os estrangeiros só podiam comercializar em Cantão de Setembro a Janeiro, e no resto do ano viviam em Macau, onde tinham casas, armazéns. Em alguns casos, traziam as famílias. Macau tinha, pelo menos, um mercado de cinco mil pessoas para apoiar estes estrangeiros. Para a economia de Macau era fundamental e para a economia global era decisivo. Macau fornecia a estas companhias soluções para conflitos entre si. Assim, no século XVIII, tínhamos algo chamado de Grande Baía onde havia um processo de inteligência comercial e em que Macau era fundamental em termos de intermediação jurídica e de arbitragem, fornecendo ainda a comunicação linguística para todo o processo.

Já nessa altura havia tradutores e intérpretes.

As companhias tinham vários intérpretes. Mas a partir de 1762, quando a companhia inglesa domina já o comércio em Cantão, Macau começa a fornecer intérpretes trilingues. A documentação mostra que a dimensão deste serviço de tradução e interpretação é enorme e inclui o serviço doméstico, com pessoas que falam as três línguas, para irem comprar produtos ou ir buscar água, por exemplo. A maior parte desses nomes eram macaenses e chineses de Cantão. Havia pessoas muito jovens a fazer esse trabalho, com 13 ou 15 anos, os chamados “boys”, que acompanhavam o serviço de estrangeiros e de empresas estrangeiras. Era um serviço muito importante, legal e escrito. O serviço era de tradução e interpretação na escrita e na oralidade. Até à ocupação inglesa de Hong Kong, em 1841, há dezenas de pessoas em Macau. De tal forma que quando os ingleses ganham a primeira Guerra do Ópio e assinam o Tratado de Nanquim, em 1842, e obrigam a China a abrir mais portos ao comércio internacional, estas pessoas de Macau começam a ser colocados em Hong Kong e Xangai, nesses portos de comércio internacional, sendo um corpo técnico fundamental.

Que impacto teve tudo isto na sociedade local?

Macau conseguiu, no século XVIII e primeiras décadas do século XIX, produzir uma sociabilidade cosmopolita que permite que estas gentes, de diferentes geografias europeias. A 4 de Julho de 1776 dá-se a independência dos EUA e em Novembro já tínhamos barcos em Macau, de companhias privadas de Boston, por exemplo. Os barcos americanos tornam-se os segundos mais importantes a seguir aos ingleses. Macau criou então essa sociabilidade absolutamente extraordinária. A companhia inglesa, com casas e armazéns na fachada da Baía da Praia Grande, fez as primeiras competições de bilhar, trazendo o snooker inglês para Macau e as regatas. Faziam corridas de cavalos entre o que é hoje a Rua do Campo e as Portas do Cerco. Os chineses detestam, chegam a colocar cordas à noite, para os cavalos caírem. Traziam cantores, organizavam-se saraus.

A sociedade de Macau atravessou um período de modernização.

De globalização. Esta Grande Baía não existia sem Macau e sem Cantão, existindo porque havia, de facto, esta comunicação. O meu argumento é um pouco este: quando se fala agora no projecto da Grande Baía, falamos de algo que tem um demorado fundamento histórico. Isto funcionou durante mais de um século e funcionou bem. Tinha estruturas e instituições especializadas que permitiam este funcionamento, o que é diferente de outros temas que têm circulado em Macau.

Como assim?

O projecto “Uma Faixa, Uma Rota”, que mobiliza a ideia da Rota da Seda, mas este conceito só é criado por um alemão no final do século XIX. O que existia até então eram várias rotas de ligação comercial. Não havia uma rota da seda nesse sentido linear. Antes do projecto “Uma Faixa, Uma Rota” falava-se no Grande Delta, na ligação das grandes regiões, fundamentalmente três províncias chinesas. Isso desapareceu. Estas coisas vão desaparecendo porque não têm raízes históricas. Mas o projecto da Grande Baía tem, de facto, raízes históricas profundas, onde Macau teve um papel fundamental. Se me pergunta se se pode actualizar isto, eu penso que sim.

De que forma?

Esta dimensão de arbitragem jurídica poderia actualizar-se, nomeadamente com alguns países de língua portuguesa, até porque grande parte das normas do Direito comercial, de engenharia ou de arquitectura, em Macau, têm ainda essa raiz portuguesa. Uma parte significativa da população, sobretudo jovens, fala inglês, pelo que reforçar a formação em português permitia recuperar este mercado. Se juntarmos a isto as possibilidades de alargar o cosmopolitismo de Macau, ligando ao jogo as indústrias das convenções e dos espectáculos, poderíamos actualizar um fundo histórico que funcionou e que atraiu o comércio global.

Mas hoje temos o Fórum Macau, mais cursos de tradução. Esse sistema continua a não ser suficiente?

O Fórum Macau está a fazer 20 anos e poderia ser uma instituição em que se poderia concretizar este tipo de actualização. O que retiramos dos textos, dos mapas, dos documentos históricos é que Macau tinha funções especializadas na economia mundial, não era um localismo, um bairrismo e apenas uma posição no Delta, no sul da China.

Qual o momento histórico principal em que Macau começa a perder essa posição?

A ocupação inglesa de Hong Kong e a vitória na primeira Guerra do Ópio, até 1859 trouxe impactos positivos a Macau, pois cria-se um movimento comercial entre Hong Kong e Macau muito grande. O número de embarcações aumenta e dá-se uma transacção de serviços muito favorável a Macau. O território começa a negociar mão-de-obra especializada, algumas dessas pessoas transferem-se para Hong Kong e entregam constantemente remessas de dinheiro para as famílias que estão em Macau. Em termos financeiros e comerciais, de 1859 até 1860 Macau beneficia. A partir daí, quase todas as companhias e consulados estrangeiros começam a sair de Macau para Xangai, dando-se uma menor viragem para Hong Kong. Em Xangai os estrangeiros começam a ter concessões. Em Macau passam a haver menos empresas e os antigos compradores desaparecem para as novas cidades comerciais chinesas. A abertura do Canal de Suez, em 1856, torna mais difícil a posição de Macau. Passam a ser poupados cinco mil quilómetros. A maior parte das embarcações vem até Saigão e Hong Kong, são grandes embarcações a vapor que trazem soldados, correio, mercadorias e também os primeiros turistas. Macau não é destino dessas grandes embarcações. A partir de 1870 os grandes comerciantes macaenses que restam acabam todos por falir. Temos o exemplo de Lourenço Marques, o dono da Casa Garden, que é obrigado a vender a casa por estar completamente falido. Aparecem então as primeiras indústrias têxteis. Essa burguesia comercial ligada à geografia comercial da Grande Baía não resiste a toda esta dinâmica.

Pequim veio reavivar este lado histórico, transformando-o num projecto político?

Quando vamos a apresentações oficiais deste projecto da Grande Baía, os responsáveis que o fazem têm muito pouco conhecimento do lado histórico. Uma vez perguntei a um responsável para me dar um exemplo de Grande Baía. Ele falou-me da Baía de S. Francisco, nos EUA. O desafio da economia chinesa é passar de uma economia que, durante 30 anos, cresceu a produzir manufacturas primárias baratas e passar para as tecnologias e serviços financeiros. Isso não é fácil de fazer. A ideia é que esta região se possa tornar num lugar de alta tecnologia e serviços e é aí que o Governo Central está a insistir. Pequim não fala da ligação aos países de língua portuguesa do ponto de vista comercial, mas sim na criação de uma plataforma de serviços para essas relações económicas. Macau tem, assim, de fornecer serviços, mas actualmente fornece muito pouco.

23 Mar 2023

Rosa Coutinho Cabral, cineasta: “Prémios dão um novo alento”

Filmado em Macau em 2018, “Pe San Ié”, longa-metragem documental sobre a vida de Camilo Pessanha, recebeu, em Fevereiro, quatro distinções no festival New York Movie Awards. Mas a realizadora Rosa Coutinho Cabral não tem parado. Depois do lançamento no ano passado de “A Casa da Rosa”, está na forja um projecto de filme e peça de teatro sobre Natália Correia, que poderá ser apresentada em Macau

 

A longa-metragem documental de 2018 “Pe San Ié” continua a ganhar prémios. Como encara esta longevidade da obra?

Fico muitíssimo satisfeita, sobretudo porque foi um trabalho que eu gostei muito de fazer na companhia do Carlos Morais José e apoio da produtora Inner Harbour. Contou ainda com a colaboração de muitas pessoas, tal como Susana Gomes e Pedro Cardeira na fotografia e José Carlos Pontes na música. Estes quatro prémios [Melhor Longa-metragem Documental, prémio Prata para Melhor Música Original, Melhor Edição e Melhor Cinematografia] dão um novo alento ao filme. No fundo, um filme vive do seu reconhecimento e da sua projecção, e se não for visto é, de alguma maneira, um arquivo morto. O facto de estar a ser desarquivado, digamos assim, e procurado [é bom], porque são muitos destes festivais que nos procuram, convidando-nos a enviar o filme para concurso. Não há dinheiro envolvido, mas estes prémios trazem o reconhecimento. Saber que fizemos um objecto artístico e cultural com interesse que vai além do momento em que a produção termina, o facto de continuar a ser solicitado depois destes anos traz uma revitalização muito grande. Dá uma grande importância ao tema, passado em Macau, algo que também está muito presente no imaginário das pessoas, bem como a figura de Camilo Pessanha.

Passaram alguns anos desde que fez o filme. Como olha hoje para o projecto?

Tive a oportunidade de rever o filme muito recentemente. É muito raro ver filmes meus já terminados e, muitas vezes, nem os vejo quando passam nos festivais. No entanto, vi-o num outro dia e considero que continua muito actual no propósito que tinha. Não mudaria nada. Acho que a escolha do Carlos Morais José para personagem aglutinadora faz com que o documentário seja ficcional, um misto de detective com Pessanha, da nossa própria condição de português no Oriente, é muito importante. Isso faz com que o filme ganhe um trajecto temporal entre aquilo a que se refere, que é o tempo de Pessanha, e o tempo que vivemos hoje em dia, que é o tempo em Macau. Esta actualidade que se prende com o tempo anterior está muito bem resolvida no filme e não mudaria nada. Ainda hoje recebi um convite de outro festival [para apresentar o filme a concurso]. Há ainda outro aspecto que queria sublinhar: sempre considerei que isto era um ensaio cinematográfico que colocava o olhar de um morto num sítio vivo. Acho que isto foi conseguido e, passados estes anos, ainda acho que é isso que está no filme: um contrato com a pessoa que morreu e com o seu olhar sobre um espaço que ele escolheu viver e morrer e onde escreveu grande parte da sua obra. Confesso que esta ideia de ter um espaço que vacilava entre o campo, que é o olhar dele, e o contracampo, que é o presente, ainda lá está no filme e fico contente com isso. Ainda consigo achar o que tinha proposto e não fiquei zangada comigo. Quando acabo os filmes fico sempre um pouco zangada, com a sensação que não era aquilo que queria.

Venceu também outros prémios neste festival, nomeadamente com o recente documentário “A Casa da Rosa”. Fale-me desse projecto.

É um projecto sobre a perda, o outro e tem a ver comigo, com aquilo que perdi ao longo da vida, que foi bastante trágico, e que acaba por culminar com a perda de uma casa. Quis filmar todo o processo de saída, de ser obrigada a sair de uma casa que era o meu lugar, um sítio onde tinhas as minhas memórias e onde tinha tudo aquilo de que não me queria afastar, mas que fui obrigada. Na verdade, não tinha dinheiro para pagar a renda e fui despejada. Fiquei um pouco espantada com o facto de o filme ter tido todo este reconhecimento, o que é interessante para um filme muito íntimo, muito sincero, muito honesto sobre o que senti. Foi totalmente feito por mim: gravei, fiz o som, filmei-me continuamente, tive de me encenar a mim, colocar a câmara, criar um espaço. Foi uma espécie de auto-encenação, uma coisa muito intensa e feita sem dinheiro nenhum, com o meu dinheiro e de pessoas amigas. A música foi oferecida pelo José Carlos Pontes. Acho que, cinematograficamente, é um filme de grande honestidade sobre a perda. A minha pergunta é como se filma a perda, o luto, algumas situações muito trágicas. Consegui fazer o filme porque me deixei arrastar pelo meu sentimento e honestidade, de nada esconder. É uma pessoa que se despe e mostra o que é. Não sei se voltarei a fazer isso, mas dessa vez, fi-lo.

Foi uma maneira para lidar com várias situações difíceis, portanto.

Sim, pode-se dizer que sim. Este lado trágico e que culmina com o processo da catarse… possivelmente, sim. Fui muito obsessiva na filmagem, gostei bastante de a fazer, mas usei o método que quase me levou a enlouquecer com essa obsessão. Já estava farta da casa e de filmar. Andava sozinha pela casa e pelo telhado de um edifício de Lisboa sozinha, à noite, porque queria sentir tudo o que tinha a ver com aquela casa. Houve uma altura em que quase raiou a loucura, uma certa desrazão. Mas foi um processo do qual não me arrependo. Ainda bem que o fiz.

Como é ver revelado algo tão pessoal em festivais de cinema?

Não foi difícil. A primeira exibição foi no DocLisboa, foi bem recebido, segundo consta esteve muito perto de receber o prémio [principal], mas houve outro filme de que gostaram mais. As coisas são assim. Depois tive um contacto com uma curadora italiana que quis levar o filme para o festival “8 1/2”, baseado no [Federico] Fellini, e aí o filme começou a circular e recebemos convites para outros festivais. Nunca recebemos dinheiro, o que me teria dado muito jeito (risos). Houve pessoas que acreditaram no filme e ajudaram na montagem.

Está a trabalhar num documentário sobre Natália Correia. Quando termina esse projecto?

Em Setembro. Na próxima semana vou estrear uma peça de teatro, também sobre a Natália Correia, intitulada “Colheres de Prata”, que, se tudo correr bem, poderá ir até Macau.

Porquê Natália Correia?

Por várias razões: eu sou açoriana, ela é açoriana. Viemos para Lisboa praticamente com a mesma idade, não porque quiséssemos vir, mas porque a família veio. Tivemos de sair de uma ilha de que ambas gostávamos bastante para um lugar ainda desconhecido. Natália foi sempre uma mulher do lado da liberdade e da defesa dos direitos humanos. Foi uma anti-fascista. Toda a vida foi dedicada a defender estes propósitos, quer na literatura, quer na política, quer nas campanhas que apoiou, nomeadamente a de Humberto Delgado. Foi uma mulher bastante intransigente e muitos livros dela foram apreendidos pela censura. Sempre defendeu a figura da mulher, sem o feminismo um pouco bacoco da época. Ela fazia, para mim, a defesa de um feminismo mais actualizado e interessante. Ainda hoje concordo com ela. Nunca teve a ideia disparatada de as mulheres terem de substituir os homens ou de homogeneizar formas de poder. Achava que o mundo tinha de ser habitado por homens e mulheres em igualdade de circunstâncias sociais, políticas e económicas e já falava na igualdade de género. Depois do 25 de Abril de 1974, foi uma voz importante e fez um movimento crítico em relação ao seguimento da Revolução. O que também acho interessante. Nunca perdeu as características da sua voz e isso fez dela uma mulher que muita gente quis reduzir a anedota, numa mulher de direita, desbragada. Nunca foi contra as instituições democráticas e as críticas que fez foram proféticas, com coisas que hoje vemos que são verdade. Sou uma pessoa de esquerda e sempre me identifiquei com ela, por ser uma voz discordante numa época em que era difícil sê-lo, pois ser discordante era ser de direita. Mas ela nunca se inibiu, e acho isso notável. Foi ainda uma mulher extraordinária na literatura, e luto, nestes projectos que estou a fazer, contra a redução dela a uma anedota e a uma ideia política que não corresponde à verdade. Foi sempre anti-fascista, antes e depois do 25 de Abril.

14 Mar 2023

Maria do Rosário Pedreira, autora e editora: “Ou escrevia, ou ia ao psiquiatra”

Acaba de ganhar o prémio do festival literário “Correntes D’Escritas” com o novo livro de poesia “O meu corpo humano”, editado no ano passado. Na obra, Maria do Rosário Pedreira faz um exercício de reflexão sobre o mundo, mas também sobre si própria, depois do sofrimento gerado pela pandemia. A autora encara a publicação espaçada de poesia como um momento catártico

 

Regressou agora do festival “Correntes D’Escritas” onde o seu último livro, “O meu corpo humano”, foi premiado. Imagino que a distinção tenha produzido uma óptima sensação.

Claro (risos). Primeiro porque tenho um especial carinho pelo festival, que existe há mais de 20 anos e que não tem ainda nenhum equivalente em Portugal. Foi importantíssimo ganhar este prémio por ser um festival de que gosto especialmente e por ser de um livro que é especialmente duro, que tem a ver…

Consigo, mas não só…

Sim. É talvez o meu primeiro livro que fala do outro quase de uma maneira suplicante, porque, na verdade, fala do corpo no sentido de ser frágil, vulnerável ao tempo, à doença, à idade e ao envelhecimento, e humano no sentido humanista, ou seja, é um corpo que sofre e ao qual é preciso prestar atenção e ter compaixão, é preciso ter empatia pelo corpo do outro. Ainda há dias aconteceu um terrível naufrágio ao largo da costa italiana em que morreram uma data de pessoas, muitos deles crianças. Temos pena nesse dia em que passa a reportagem e depois nunca mais se fala disso. Quis, no fundo, com estes poemas, chamar a atenção para a indiferença perante as grandes questões. Por exemplo, esta história de retirarem palavras como “feio” e “gordo” de livros de um autor clássico juvenil [Roald Dahl] é ridícula ao pé de problemas como tentar resolver a questão da fome ou das migrações que não estão minimamente resolvidos.

Vivemos na era do politicamente correcto que está a deturpar conceitos e ideias com os quais fomos crescendo?

Estão-se a radicalizar questões que, de facto, são muito importantes, como o racismo, a xenofobia. A nossa relação em relação às lésbicas, gays e transsexuais têm de mudar, de facto. Não pode continuar como no tempo dos meus pais, em que era tudo um escândalo e andava tudo escondido. Acho é que são questões que não estão a ser tratadas da maneira certa, porque se confunde muito “língua” e “linguagem”, ou seja, acham que por se dizer “presidenta” já estão a respeitar a mulher que detém o cargo. Não tem a ver com isso. Não estou a ofender uma mulher se a chamar de “presidente”. Muitas vezes torneiam-se as questões sérias com um tratamento que é radical e quezilento e que só vai criar anticorpos. Em relação à retirada de nomes como “feio” e “gordo” há, de facto, coisas menos boas e não devemos poupar os miúdos ao que existe. Não os podemos esconder do mundo real. Estudos demonstram que uma das razões pelas quais o QI está a baixar na Europa desde o ano 2000 é, justamente, pela falta de linguagem, pela falta de capacidade de construir argumentos. Estamos a ver em toda a Europa os partidos de extrema-direita a crescer, porque falam preto no branco. O problema reside em que, se quem ouve, só percebe o básico. O problema da esquerda hoje em dia é, em vez de tentar resolver os grandes problemas dos países, [focar-se noutros]. Temos de ir à base e resolver os problemas maiores.

Publicou livros infantis numa época diferente [colecções “O Clube das Chaves” e “Detective Maravilhas”], quando não havia internet. Já aí tinha a preocupação de transmitir o mundo real?

Sim. Aliás, os textos sobre as colecções que fiz dizem sempre que os livros tentam transmitir valores humanos que estão em declínio e, ao mesmo tempo, transmitir informação que não é dada nas escolas. Isso já era uma preocupação minha, nem era tanto fazer um objecto literário. Queria ganhar leitores e trazer miúdos para a leitura, atraindo-os com temas como as injustiças que se passam no mundo, na escola, as coisas que não sabem como resolver ou o conflito entre gerações. Penso que o máximo problema hoje em dia é, justamente, a dependência juvenil da tecnologia e o afastamento da leitura, porque esta sempre ajudou as pessoas a serem mais empáticas, por haver uma identificação com as personagens. Além disso, a leitura desenvolve capacidades que o audiovisual não desenvolve, como o pensamento crítico ou a imaginação. Esta é uma geração dependente do audiovisual.

Voltando ao seu livro, o júri do “Correntes D’Escritas” destacou “a ousadia como a obra aborda a experiência do corpo humano nas dimensões do desejo, morte, memória e na relação com o outro”. Não é só um livro de poemas sobre si, como mulher, na relação com o seu corpo, é também um exercício de reflexão sobre o mundo onde habita?

Claro. Acho que nos meus livros anteriores era sempre o sofrimento pessoal do sujeito poético que estava à mostra. Eram sempre os poemas do “Eu”. Perdi algumas pessoas na pandemia e o sofrimento alheio passa a ser um pouco o nosso. Já tenho uma vida equilibrada e, se calhar, não precisava de sofrer tanto pelas minhas questões pessoais, mas a verdade é que ficámos com mais tempo para olhar para nós, porque ficámos sozinhos, não podíamos sair nem estar com os outros. Percebemos também que o tempo que estava a passar, para pessoas mais novas, não tem eco no futuro, mas para uma pessoa na minha idade sim. Eu estava, na pandemia, quase com 60 anos, o que significa que os anos que vêm aí são preciosos, e que chatice não podemos vivê-los. Há também uma influência no corpo físico. Olhamos para trás e percebemos o que não podemos voltar a fazer. Já não nos vamos apaixonar como o fizemos em jovens, já não nos podemos voltar a vestir com coisas que, se calhar, gostaríamos. Percebemos que o nosso corpo é vulnerável e não volta a ser o que era. O que acontece a partir de certa idade é um arrependimento pelas coisas que não fizemos. O meu livro reflecte esse olhar para o espelho e a reflexão do que já se fez e não se vai a tempo de fazer e, por outro lado, perceber que com a vida minimamente equilibrada em termos sentimentais, olhamos para os outros e percebemos que estão piores que nós. Nós, com esta vulnerabilidade do tempo, temos a obrigação de fazer alguma coisa, muitas vezes pelos jovens. Na questão dos migrantes, vemos pessoas, que são jovens, mais sujeitas a que o seu corpo sofra. Portanto, este é um livro sobre até que ponto não devemos ser compassivos, empáticos e atentos aos que estão a sofrer.

Arrepende-se de alguma coisa que não tenha feito?

Quando era miúda fiz teatro e sempre pensei que gostava de fazer teatro, mas não é aos 63 anos que me vou pôr a fazer isso. Poderia fazê-lo, mas não seria a mesma coisa. Há pouco tempo, por exemplo, pensei em fazer um herbário, mas com esta idade já não se justifica andar a recolher plantas de ruas e jardins, talvez fosse melhor ter feito isso antes. Há montes de livros que não li que gostava de conseguir ler até morrer e se calhar já não vou conseguir, porque o nosso cérebro já não processa a informação da mesma maneira. Não tenho filhos, mas nunca senti muito o apelo maternal e casei com quarenta e tal anos. Mas escrevo num dos poemas do livro que gostava de ter tido netos.

A relação que tem hoje com o seu corpo é mais tranquila?

Não é nada tranquila! Esse é o problema, porque acho que o envelhecimento físico é uma coisa muito complicada. Oiço mal e lido muito mal com o facto de ir ver uma peça de teatro e não conseguir ouvir tudo. É limitativo, lido mal com isso. Acho que as pessoas têm de gostar de si e não é fácil o facto de um corpo envelhecer. Não tenho uma relação pacífica com isso. Como tenho uma vida muito activa, foi o período da pandemia que me fez parar e se calhar está associado a coisas que não gostei de ver. Não acho que seja pacífica a relação com o meu próprio corpo. Queria gostar mais de mim.

Disse numa entrevista que a poesia já a salvou de momentos de angústia, até de uma depressão? É como uma catarse constante?

Digamos que os meus livros são sempre terapêuticos, e por isso escrevo pouco. Se não publico até é bom sinal, porque não preciso de o fazer.

Não publicava poesia desde 2012, quando editou “Poesia Reunida”.

Sim. A minha poesia escreve-se pouco. Se calhar, se não tivesse sido um momento especialmente mau nesta pandemia, com a perda de pessoas amigas e o envelhecimento, muito provavelmente não teria voltado. Defino sempre um livro de poesia como: ou o escrevia, ou ia ao psiquiatra. Na verdade, prefiro escrever o livro, porque cada poema que sai faz-me sentir bem e o eco no leitor é muito gratificante. Isso acaba por curar, se calhar, o mal que estava antes do livro. É uma terapia.

Já foi ao psiquiatra, ou recorre sempre aos livros?

Já fui ao psiquiatra, sim, mas foi há muitos anos (risos).

É também editora, e no grupo Leya é responsável pela descoberta de novos autores. O que um romance tem de ter para lhe chamar a atenção?

É muito difícil de responder a isso porque nunca é a mesma coisa. É mais uma coisa de sentir do que de descrever. Hoje em dia publica-se toda a espécie de porcaria que existe. Discordo muito disso porque quem tem talento tem, quem não tem deve fazer outra coisa. Devíamos dar um espaço de destaque ao verdadeiro escritor. Quando comecei, com vinte e tal anos, a edição de livros era uma actividade muito menos industrial do que é hoje. Há livros editados que são maus formadores de leitura e levam a que as pessoas pensem que também podem publicar. Temos o mercado pejado de coisas verdadeiramente más. O material que usamos para escrever um livro é aquele que usamos nesta entrevista, para pedir um café ou insultar alguém. Combinar isso [bem, num livro] é cada vez mais raro, e é isso que me faz escolher um livro. Na nova geração, então, é raríssimo.

Recebe muitos livros?

Muitíssimos. É difícil encontrar um bom livro porque a geração educada pelo audiovisual não só escreve pior como escreve como se fosse um guião, em tempo real, no presente do indicativo, sem discrições.

E na poesia, há maus poemas?

Há péssimos. Mas sempre houve, e ninguém os edita. A diferença entre a poesia e a prosa é que, como a poesia se vende pouco, não há empresas interessadas em fazer os livros às pessoas. A má poesia não se vende, mas a má prosa sim, porque há empresas especializadas em afagar o ego das pessoas que não têm talento, e estas pagam para ter o seu livro publicado. Mas depois o livro nunca aparece em lado nenhum. Isso baralhou o mercado e hoje quando entramos numa livraria não conseguimos distinguir o bom do mau.

14 Mar 2023

Paul French, escritor: “Macau era uma ‘Casablanca da Ásia'”

Assume-se como “um escritor diferente da China”. O fascínio pelo Oriente nasceu da aprendizagem do mandarim. Autor de obras como “Midnight in Peking” ou “City of Devils: The Two Men Ruled the Underworld of Old Shanghai”, bestsellers do New York Times, Paul French estará hoje na Livraria Portuguesa, a partir das 18h30, para falar da sua obra e das “estranhas histórias da velha Macau” que contribuem para que o território mantenha ainda uma aura de mistério

 

Há muito que escreve sobre a China e vai hoje à Livraria Portuguesa falar do seu trabalho. O que podemos esperar desta conversa?

Vou contar algumas histórias sobre Macau e os portugueses em Macau. Quando escrevi o livro sobre os gangsters estrangeiros em Xangai nos anos 30 [City of Devils: The Two Men Ruled the Underworld of Old Shanghai], com histórias reais, eu próprio, mesmo conhecendo muito sobre a história de Xangai, fiquei surpreendido com o facto de haver tantos portugueses envolvidos no mundo do crime da cidade. Geriam clubes nocturnos, investiam dinheiro no jogo. Outra coisa curiosa, é que eles aprenderam técnicas de jogo em Macau, levaram slot-machines para Xangai a partir de Macau. Essa é uma ligação interessante que existe entre Macau e Xangai que não é conhecida. Sempre que falamos de Macau falamos de missionários, diplomatas, mas houve muitas outras pessoas que viajaram para Macau. Era como um lugar de escape para quem tivesse problemas em Portugal, era um sítio onde se falava a mesma língua [português] e em que se podia escapar à polícia.

Como teve o primeiro contacto com estas histórias?

Lendo jornais antigos. Claro que a maior parte destas histórias foram publicadas pelos jornais de Hong Kong ou de Xangai nas edições internacionais. Muitas destas histórias simplesmente caíram no esquecimento. Encontrei uma delas numa edição do South China Morning Post de 1936, que dizia que o Japão ofereceu dinheiro a Lisboa para comprar Macau. Não é uma história muito conhecida, mas é um pouco estranha. O Japão pensou que Lisboa poderia dizer sim [à venda do território]. Nos anos 30 Macau rendia muito dinheiro a Lisboa e Portugal não estava ao mesmo nível do Reino Unido. O Reino Unido jamais venderia Hong Kong. Para o Japão seria uma forma mais fácil de conquistar território na Ásia [caso comprasse Macau].

Há ainda muito a descobrir sobre a história e as pessoas de Macau? Persiste um certo mistério?

Há muitas coisas por descobrir em Macau, é um território com essa reputação. Se olharmos para o caos da China nos anos 20 e 30, e para Hong Kong, pouco policiado pelos britânicos na qualidade de colónia, Macau era um sítio muito fácil nesse sentido, era permitido fazerem-se muitas coisas. Muitos ficavam satisfeitos com isso, os chineses e as pessoas de Hong Kong, por causa dos negócios. Na II Guerra Mundial Macau passa a ser importante por causa da sua neutralidade e torna-se numa espécie de “Casablanca da Ásia” em termos da presença de espiões, por exemplo. Macau era o lugar onde os nazis, os japoneses e os chineses se misturaram durante o conflito. Fiz também muito trabalho sobre os judeus refugiados em Macau. Durante a II Guerra Mundial, Macau era um lugar fascinante e teve um papel muito importante.

Porque ficou tão fascinado por este mundo?

Penso que é fascinante para muitas pessoas, mas no meu caso foi devido à língua chinesa. Estudei chinês no Reino Unido e em Xangai. Comecei a investigar mais sobre a história dos estrangeiros em Xangai, mas também em Macau e Pequim, e claro Hong Kong despertou sempre um interesse em mim por ser uma colónia britânica na Ásia, e também pela transição. Mas as histórias de Macau sempre me apareceram sem eu estar à procura delas. Sempre procurei mais por registos de Hong Kong, e de repente deparei-me com a história de um grupo de portugueses que viveu em Macau nos anos 20 e que tentou começar uma revolução em prol da independência, para criar uma espécie de “República de Macau”, separada de Lisboa. Era uma operação relacionada com acções de chantagem. Chegaram ao Governo e disseram: “Vamos começar uma revolução. Dêem-nos dinheiro”. E até foram bem-sucedidos, puseram notícias nos jornais e tiveram apoio de algumas pessoas. Havia um sentimento de rebelião no ar, sobretudo no seio dos militares e da marinha devido às condições de trabalho e de estadia, por isso surgiu a ideia de independência, mas toda a operação não passou de uma acção de chantagem. Esta história apareceu-me assim, do nada…. Há também a história de um refugiado polaco que tentou nadar até Macau e as autoridades portuguesas tentaram empurrá-lo para o lado da China, enquanto ele lutava por chegar ao território português. Acabou depois por ser enviado para o Brasil.

A história de Macau está cheia destes episódios. É um território que terá sempre esta ideia de ser “fora da lei”?

Está certa. Sempre houve um certo mistério e exotismo. Macau não é como as outras antigas colónias, nomeadamente as britânicas, como Hong Kong ou Singapura, por exemplo. Lisboa não tinha muito interesse em Macau, tal como não tinha com Goa ou Timor. Não fazia uma série de coisas, não enviava muitos soldados. Deixava o território andar ao seu ritmo. Acabei de reeditar o livro sobre os escritos de Harry Harvey [Where Strange Gods Calls, editado nos anos 20], e o estilo com que descreve a Macau da altura é sempre com ligação aos casinos, diferente de tudo o resto, com a presença do catolicismo. Isso aparece também em muitos outros escritores, como Ian Fleming nos livros de James Bond, nos anos 60. Ele descreve Macau quase no mesmo estilo. O que podemos retirar daqui é que Macau era, de facto, um lugar onde podíamos, de certa forma, escapar às autoridades. Havia jogo, prostituição, e Lisboa não estava, de facto, a prestar muita atenção.

Mas a China esteve sempre a prestar atenção e por vezes tirava vantagens disso.

Houve sempre boas relações e Macau manteve-se com administração portuguesa porque havia o interesse no comércio da parte da China. Temos o exemplo do comércio do ópio, no qual Portugal não estava envolvido. Era um negócio essencialmente americano. Todos comercializavam matérias-primas como prata e ouro. Macau era, para muitos, uma base para entrar em Guangdong.

Acaba de lançar três novos livros incluídos na colecção “China Revisited”, que contêm histórias de viajantes comuns que vieram para Macau, Hong Kong e sul da China entre os séculos XIX e XX.

Com a pandemia, e sem poder viajar, passei muito tempo na biblioteca de Londres que tem uma boa colecção dos escritos de antigos viajantes em todo o mundo, incluindo a China, na época vitoriana. Decidi prestar mais atenção a esses escritos, e cerca de 90 por cento são de viagens entre Xangai e Pequim e para a zona mais ocidental da China. Pensei que seria bom fazer algo com isto, sobretudo relacionado com Macau e a zona de Guangdong. Os relatos de missionários são, muitas vezes, aborrecidos, então o meu foco era ir além disso. Tenho o exemplo de Benjamim Harry, um missionário americano que viaja para Hong Kong e que é muito interessante, porque vai a Guangzhou e dá-nos grandes descrições da cidade, que claro que mudou muito, sobretudo nos anos 30. Foi também o primeiro ocidental a visitar e a escrever sobre a ilha de Hainão, que nessa altura era uma zona ligada à agricultura com plantações de cocos. Estava muito longe de ser o “Hawai da China” como hoje é conhecida a região.

O seu trabalho já foi reconhecido pelo jornal New York Times. Alguma vez pensou ter uma carreira internacional?

Penso que sou um escritor da China diferente. A maior parte das pessoas que escrevem sobre a China são académicos ou jornalistas que vivem algum tempo no país e querem contar o que viram com mais detalhe do que aquilo que publicam nos jornais. Eu tento fazer algo diferente. Quero escrever livros que muitas pessoas possam comprar no aeroporto para ler no avião ou na praia quando vão de férias, por exemplo. Têm acesso à história da China, mas também a boas histórias.

Está também a trabalhar num livro sobre Wallis Simpson, a mulher divorciada por quem Eduardo VIII abdicou do trono britânico, nomeadamente sobre o período em que viveu na China, de 1924 a 1925. Fale-nos mais deste projecto.

Claro que não é possível crescer no Reino Unido sem conhecer a história de Wallis Simpson. É uma boa história para mim porque me dá a oportunidade de escrever mais sobre os anos 20 na China e claro que será uma história interessante para as pessoas. Todos conhecem a história da abdicação do trono, ela sempre foi considerada a mulher mais detestada de sempre, dependendo da perspectiva. Mas ela é interessante porque há uma série de rumores e notícias falsas sobre o que lhe aconteceu na China. Wallis foi para lá com o marido da altura, um oficial da marinha americana, e passaram por Hong Kong e Xangai. Ele era uma pessoa horrível e batia-lhe. De Xangai ela vai para Pequim onde passa cerca de sete a oito meses num alojamento muito agradável. Depois Wallis Simpson regressa aos EUA, mas nesse ano em que esteve na China aprendeu muito sobre ela própria, percebendo que não tinha de estar casada com aquele homem, a ser agredida, e que podia ser independente e misturar-se com uma certa elite internacional e cosmopolita. Tornou-se então naquela mulher para a qual todos olham quando entram na sala, que se move nos círculos da realeza, e foi aí que Eduardo VIII olhou para ela. Mas o livro vai também contar um pouco sobre a história da China.

3 Mar 2023

António Pedro Costa, autor de “D. Paulo José Tavares – O bispo diplomata”: “Ele foi uma lufada de ar fresco “

D. Paulo José Tavares era bispo em Macau no período do movimento “1,2,3”, em 1966, ficando para a história como a figura que estancou a penetração do maoísmo nas escolas católicas. Lançado a 25 de Janeiro, o livro “D. Paulo José Tavares – O bispo diplomata” conta a história de vida do eclesiástico que saiu de Rabo de Peixe, nos Açores, passou pelo Vaticano e deixou uma marca no Oriente

 

Como começou esta aventura de escrever sobre a vida de D. Paulo José Tavares?

É uma figura muito conhecida aqui em Rabo de Peixe [Açores]. Temos uma estátua, uma escola e uma rua com o nome dele. No entanto, muita gente, sobretudo as actuais gerações, não conhece nada da figura que ele foi no seio da Igreja, apesar de ser uma figura que merece todo o destaque. Percebeu-se, aqui na paróquia, que as pessoas não tinham a verdadeira noção da importância da figura de D. Paulo José Tavares e foi assim que me foi lançado o desafio de escrever este livro. Percebi que não havia muita informação sobre ele e a própria família também não sabia muitas coisas, porque a irmã mais nova, que ainda é viva, era muito pequena [quando ele deixou os Açores]. Não foi uma pesquisa fácil, pois precisava de alguns dados do Vaticano, consegui falar com algumas pessoas que tentaram ajudar-me, mas não foi possível obter informação daí, nem de outros locais.

D. Paulo José Tavares esteve em Macau num período muito particular, nos anos 60, durante o movimento “1,2,3”. Chegou ao território com o objectivo de modernizar o clero local.

Ele tinha vários objectivos [com essa missão] e foi escolhido para ser o bispo de Macau porque era uma figura muito importante em termos de diplomacia. Esteve na Secretaria de Estado do Vaticano, tinha capacidade de lidar com situações complicada e o território estava precisamente a passar por uma situação complicada. Tentou abrir mentalidades e fez com que se implementasse em Macau a equiparação entre o clero chinês com o clero europeu. O clero de Macau era muito conservador e ele teve dificuldades aí. Ele equiparou os vencimentos dos padres locais com o clero europeu e isso proporcionou um salto qualitativo muito grande. Além disso, fez com que as pessoas de Macau vissem nessas atitudes alguém que vinha valorizar a população. Perante a ideia colonial que havia, de que a Europa era detentora de todo o saber, ele abriu-se às questões locais e fez com que houvesse uma proximidade muito forte [com a população]. Ele tinha as portas do gabinete abertas e era um bispo que não estava na sua cadeira pontifícia. Era um bispo que ouvia as pessoas e valorizava os locais. Teve um papel importante na dinamização religiosa da população e promoveu algumas iniciativas inéditas, como foi o caso da celebração dos 50 anos das aparições de Fátima [celebradas em 1967]. Isso fez com que, pela primeira vez, se tenha criado a “Festa do Doente” em Macau, que levou a uma grande mobilização das pessoas.

Foi, portanto, uma figura acarinhada pela comunidade chinesa.

Exacto. Essas atitudes de valorização da comunidade chinesa levaram a uma aproximação e ao estabelecimento de uma relação de confiança. Só assim conseguiu levar os seus objectivos adiante, pois percebeu que tinha de ter a população do seu lado. Mas isso trouxe-lhe muitos dissabores com o clero europeu, que não concordava com a postura de D. Paulo José Tavares. Fez com que a população tenha visto nele um aliado e não uma pessoa que vem de fora e que impõe as suas ideias.

Passando ao período do “1,2,3”. Ele é tido como a figura que impediu o maoísmo de penetrar nas escolas católicas.

Foi um período muito conturbado e ele soube lidar com a situação que era bastante complexa. A elite comercial e política local estava contra ele e os próprios estudantes. Tentaram afastá-lo e ele resistiu. Foi a sua habilidade diplomática que fez com que se contornassem todas essas situações. Chegaram a pintar o paço episcopal com letras vermelhas contra a religião e ele resistiu estoicamente a tudo isso, fazendo com que, nas escolas católicas, não se ensinasse o maoísmo. Temos de ser justos: ele foi a única personalidade do território com capacidade para estancar esse movimento, graças à sua capacidade diplomática. Se ele não tivesse tido o papel que teve na abertura das escolas, na melhoria do ensino e das estruturas, certamente que no “1,2,3” não haveria capacidade de estancar o movimento. O seu percurso é que lhe deu autoridade para lutar contra esta situação.

Como eram as escolas católicas na altura e o ensino religioso? Havia muita coisa a melhorar?

Macau tinha uma situação idêntica a Portugal, com um regime [político] muito fechado e conservador. Ele introduziu o inglês, chinês e português nas celebrações litúrgicas e isso trouxe uma grande abertura. Foi uma lufada de ar fresco. Via-se, nas festas que aconteciam nas escolas, a adesão das pessoas. Teve a capacidade de ir introduzindo [mudanças] e provocou uma abertura a uma prática colonial e conservadora da religião e do ensino.

Qual o aspecto do legado de D. Paulo José Tavares que lhe parece mais importante?

Ele passou por Macau e deixou um legado, que foi a emancipação das pessoas que viviam no território, indo contra as ideias coloniais. Atribuiu um papel aos locais e deu o mote que os locais tinham de ser valorizados, teve uma visão de futuro e marcou a vida da população. Muitos chineses eram católicos e isso foi importante para a própria emancipação do território.

No processo de pesquisa para este livro teve acesso à tese de doutoramento em Direito Canónico de D. Paulo José Tavares, a qual entregou ao académico Moisés da Silva Fernandes, que está a ultimar uma obra sobre ele.

Foi por acaso que a família obteve a tese. Muita da documentação que existia desapareceu e uma sobrinha de D. Paulo José Tavares tinha a tese em casa e jornais antigos de Macau que serviam para embrulhar cálices e outras peças. Foi um achado muito interessante, pois pude analisar esses pedaços de jornais e descobrir mais sobre o pensamento dele e a riqueza suas das obras. Queria ter tido acesso às cartas apostólicas que emitiu, mas acredito que este livro vai espoletar outras investigações. Tenho a convicção de que a partir daqui a figura de D. Paulo José Tavares vai passar a ser melhor conhecida.

Como olha para a presença do catolicismo em Macau ao longo destes anos, tendo em conta as especificidades políticas do território?

A Igreja sempre teve um papel determinante em Macau e acho que foi importante para modelar a sociedade. O cristianismo, com os seus valores, é uma mais-valia para o território. Mesmo sem ter relações diplomáticas com Portugal, a China olhava para Macau como um ponto de equilíbrio e uma ponte entre as duas nações. O humanismo do cristianismo foi, de facto, uma luz que surgiu e continuou em Macau depois de D. Paulo a modelar ao pensamento e cultura do território.

22 Fev 2023

Brasil vai implementar vários projetos de cooperação em Timor-Leste, diz embaixador

Entrevista por António Sampaio, da agência Lusa

 

O Governo brasileiro vai implementar este ano e em 2024 vários projetos de cooperação com Timor-Leste, nas áreas de educação, formação profissional e agroecologia, assinalando um renovar das iniciativas no país, disse o embaixador brasileiro em Díli.

Maurício Medeiros de Assis disse em entrevista à Lusa que os projetos incluem apoios adicionais a iniciativas já levadas a cabo no país, como o centro de formação de Becora, e novas iniciativas nas áreas de cooperativas e de formação em língua portuguesa de quadros da função pública. “São cinco projetos que estão no pipeline e que serão aprovados ainda este ano, podendo começar a ser implementados ainda este ano. Alguns arrancam ainda este ano, outros arrancam em 2024”, afirmou.

Maurício Medeiros de Assis disse que a eleição do Presidente, Lula da Silva, “mudou da água para o vinho o empenho na cooperação com Timor-Leste”, o que se evidencia com o envio este mês de uma missão para avaliar projetos a implementar este ano e em 2024.

“O Presidente, Lula, é um apaixonado pela cooperação sul-sul e ele não esconde isso. Faz parte das metas do seu Governo resgatar a presença do Brasil no resto do mundo principalmente nesse filão da cooperação sul-sul, que nada mais é que a cooperação entre países em desenvolvimento, sem fins lucrativo, geoestratégicos, genuína, desprovida de interesses que normalmente caracterizam a cooperação norte-sul”, afirmou.

“Apesar de não termos muito recursos, a cooperação brasileira no terceiro Governo Lula certamente voltará a Timor-Leste. Essa é a sinalização que o Presidente tem dado nos seus discursos, o da posse, e o discurso do meu novo ministro que vai priorizar, resgatar a cooperação sul-sul”, considerou.

Um dos maiores projetos levados a cabo em Timor-Leste tem a ver com o apoio à criação do que é hoje conhecido como Centro Nacional de Formação Profissional de Becora, em Díli, projeto que é “carinhosamente” conhecido como o SENAI de Becora, por causa da assistência dada por essa agência brasileira.

“Foi um projeto emblemático em Timor-Leste, que durou cerca de 14 anos, e que queremos resgatar”, explicou o diplomata.

O Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) é atualmente o maior complexo de educação profissional da América Latina e um dos 5 maiores do mundo, tornando-se referência no apoio à tecnologia e inovação em empresas industriais de todos os portes e segmentos.

Em parceria com a Agência Brasileira de Cooperação (ABC), o SENAI implementou nove Centros de Formação Profissional em Angola, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Guatemala, Jamaica, Peru, Timor-Leste e Paraguai.

Uma missão da ABC esteve recentemente em Timor-Leste para avaliar o projeto do centro de Becora e funcionários da Organização das Cooperativas Brasileiras e da CRESOL, uma das maiores cooperativas de crédito, analisaram um outro projeto com a Secretaria de Estado das Cooperativas.

“O Brasil também aprendeu sobre o cooperativismo com a cooperação internacional, com padres alemães a trazerem o conceito que deu resultados muito positivos nos últimos 20 anos. O cooperativismo, especialmente o cooperativismo de crédito, disparou. Hoje é tão grande que é regulamentado pelo Banco Central do Brasil, é um verdadeiro banco”, afirmou.

“Tem um efeito multiplicador que se torna essencial para o agronegócio. São experiências positivas que pretendemos passar a Timor-Leste com este projeto”, afirmou.

A visita recente da missão de avaliação brasileira surge depois de uma visita no ano passado de outra delegação da ABC, que analisou três outros projetos.

Tratam-se, explicou, da “criação de um mestrado em Educação na Universidade Nacional Timor Lorosa’e (UNTL), que deve ser assinado proximamente”, um projeto de agroecologia e um projeto, com a Comissão de Função Pública e com o Instituto Nacional de Administração Pública (INAP) “para a formação continuada de língua portuguesa para funcionários públicos”.

Estes novos projetos somam-se a outras iniciativas ainda em curso, como a cooperação na área militar, com dois oficiais, um do exército e outro da marinha, que são atualmente assessores do ministro da Defesa, “e que colaboram por exemplo na preparação da lei da programação militar”. Há ainda outro oficial envolvido na instrução da polícia militar das F-FDTL.

Continua ainda em curso o projeto de apoio à Defensoria Pública timorense, que está “na sua oitava etapa e completou já 12 anos de formação de defensores públicos e fortalecimento institucional da DP” de Timor-Leste, “criada à imagem da DP brasileira”.

Na área da língua, e nos primeiros anos, ainda antes da restauração da independência, o Brasil apoiou igualmente um grande projeto na área de formação, o Alfabetização Solidária, um outro relacionado com a formação de professores, o Pro-Formação, com a vinda de professores brasileiros e um terceiro, o Programa de Qualificação de Professores de Língua Portuguesa (PQPLP).

Sim às convergências

O Brasil quer encontrar convergências e sinergias com Portugal para projetos de apoio à promoção da língua portuguesa em Timor-Leste, complementando esforços e maximizando os recursos disponíveis, disse ainda o embaixador brasileiro em Díli. “O Brasil não quer criar uma competição com os projetos portugueses de formação nessa área, queremos complementar esforços. Que venham professores portugueses, brasileiros, cabo verdianos”.

Entre as iniciativas onde essa colaboração com Portugal seria positiva, o diploma destacou uma proposta do Ministério da Educação relativamente à criação de uma Escola Superior de Educação, uma “escola de raiz, que envolveria professores do Brasil para formar alunos ao nível de graduação, que serão futuros professores”.

“Atualmente temos muita formação continuada, dada a professores que já estão em funções. Este projeto é novo. Já tivemos uma reunião com o ministro da Educação e a minha sugestão foi que o projeto fosse aberto aos demais países da CPLP. Já falei sobre isso com a embaixadora portuguesa”, disse.

“É um projeto embrionário. Será submetido ao Brasil para análise e envolveria recrutar professores nas universidades publicas e nos institutos públicos para que venham para Timor-Leste para esse projeto”, explicou.

Medeiros de Assis disse ter já falado também com a embaixadora portuguesa em Díli, Manuela Bairos, sobre o principal projeto da cooperação portuguesa na área da língua, as escolas CAFE.

“Tenho interesse em conhecer o projeto, pensar em convergências, evitar que essa cooperação que pretendemos estabelecer como Timor-Leste seja carimbada como cooperação brasileira. Não interessa dizer que este é um projeto de língua portuguesa do Brasil, é um projeto de apoio à língua portuguesa par trazer a língua portuguesa para a comunidade timorense”, disse.

“Não vejo Portugal a resistir a esse tipo de iniciativa conjunta, mesmo porque ajudaria a aliviar as despesas de Portugal e maximizaria recursos”, considerou.

O diplomata explicou que há uma questão geracional que pode condicionar o uso e promoção do português em Timor-Leste, com a geração dos fundadores do país a verem a língua portuguesa “como um facto consumado”, algo que não ocorre com alguns dos mais jovens.

“Estamos a falar da próxima década ser crucial. É preciso ter em consideração que o envelhecimento da população acarreta necessariamente a perda da memória do sacrifício que foi a luta pela independência”, notou.

“O português está associado diretamente com a afirmação da identidade timorense e quem tem isso na cabeça, presente, é a geração que lutou pela independência. Percebe a língua portuguesa como elemento diferenciador. Um jovem de 18 anos já não tem essa perceção. Daqui a 10 ou 15 anos a importância da LP será diluída”, se nada mudar, disse.

Na administração pública, por exemplo, nota que muitos funcionários intermédios continuam sem conseguir usar a língua portuguesa, apesar dos avanços conseguidos nos últimos 20 anos.

“Não vejo que nas instituições os funcionários intermédios tenham essa capacidade. Qual é a razão de ser? Talvez a falta de formação, de incentivos para as formações. Encontro diretores-gerais que não falam português, talvez porque não houve incentivo para promoção”, afirmou.

“Não tenho conhecimento de que os sucessivos governos tenham investidos nisso. Tem a sua explicação também, a falta de recursos, de gente capaz no domínio da língua. Essa falta de domínio leva a uma dependência de consultores estrangeiros, às vezes apenas para a redação das próprias leis. O horizonte de 20 anos é muito curto, mas se essas pessoas não passam, vai-se perdendo”, considerou.

Maurício Medeiros de Assis disse que, apesar de reconhecer os desafios com que as autoridades timorenses se deparam no que toca à promoção da língua, e de sublinhar os progressos conseguidos, é essencial ter, em todas as iniciativas, “um maior engajamento do lado timorense”.

“O Governo tem que tomar uma decisão se realmente quer a língua portuguesa como realmente oficial, presente em todas as instituições públicas, na rede de ensino. São decisões políticas”, disse.

“Com a entrada de Timor-Leste na ASEAN, haverá forças centrífugas em relação à língua portuguesa. O inglês é língua de trabalho da ASEAN, com centenas de reuniões por ano em todas as áreas possíveis. Os futuros recrutamentos da Função Pública, certamente exigirão fluência em inglês, ainda que não substitua o português”, alertou.

O diploma deu como exemplo a comunicação do Governo com o público onde o português “é utilizado como bengala para a construção do tétum, que absorve da língua portuguesa o vocabulário de que não dispõe, científico, jurídico, e outro que é importado”.

Muitas vezes, porém, a comunicação acaba por ser feita em tétum e inglês, eventualmente devido a alguns projetos terem a colaboração de outros países, das Nações Unidas ou da União Europeia, “que querem a presença do tétum com inglês”.

“Duvido que um projeto da ONU na África francófona apareça em inglês. Diplomaticamente digo que não se trata de imposição, mas de um convencimento, de questionar porque não usar também o português para que os jovens possam fazer a correlação entre as duas línguas, tétum e português. Isso ajuda a reforçar”, disse.

“Entendo todos os constrangimentos financeiros, de se tratar de projetos de outros países. Entendo a Austrália preparar um cartaz de um evento ou uma brochura em tétum e inglês. Mas no caso da ONU e da UE, não vejo tanta razão de ser. Como política de incentivo as duas lingas oficiais porque não fazer nas duas línguas oficiais?”, questionou.

21 Fev 2023

Dora Nunes Gago, autora de “Palavras Nómadas”: Macau, “palco de constantes surpresas”

O novo livro de Dora Nunes Gago foi lançado em Portugal no festival Correntes D’Escritas. A ex-docente da Universidade de Macau assume querer dedicar-se cada vez mais à escrita, agora que atenuou um pouco o investimento na carreira académica. “Palavras Nómadas” resulta do somatório de crónicas sobre lugares que visitou, incluindo Macau

 

Porquê “Palavras Nómadas”? O título reflecte as palavras espalhadas por todos os sítios por onde passou?

Ainda estive indecisa e inclinada para um outro título, que era “Mundos Adentro”. A ideia era transmitir o que fui conhecendo e aprendendo ao longo das minhas vivências no estrangeiro e das viagens feitas por vários continentes. Paralelamente, também há a presença de muitos escritores que me vão acompanhando nas viagens e na vida. Talvez por isso, depois, acabei por preferir o título “Palavras Nómadas”, por ser simultaneamente mais poético e sintético. Sim, podemos dizer que contém as palavras espalhadas e espelhadas nos lugares por onde passei e aquelas que foram nascendo em mim, ao longo do tempo.

Como foi o processo de seleção de crónicas? Que mensagens quis passar ao leitor?

Os primeiros textos foram escritos pouco depois de chegar a Macau, em 2012, um pouco paralelamente ao livro “Floriram por engano as rosas bravas” [lançado no ano passado]. Estava novamente a viver uma experiência de emigração, embora muito diferente da anterior. Talvez por isso, senti vontade de escrever sobre coisas vividas no Uruguai, para relembrar outras situações e obstáculos ultrapassados. Fui fazendo alguns rascunhos, sem ter bem ideia do formato final que teriam. Foi apenas durante este último ano em Portugal, de licença, que lhes dei o formato definitivo, escrevi a maioria das crónicas e organizei-as. Queria que fossem 50, pois fiz 50 anos, e que percorressem as minhas vivências e travessias por múltiplos espaços pela vida. Aliás, o último texto talvez seja também esclarecedor. Quanto à mensagem que quero transmitir, creio que caberá ao leitor encontrá-la. Pode dar azo a várias mensagens e interpretações. O que quis, essencialmente, foi partilhar momentos, aprendizagens, a alegria e o interesse que sinto em descobrir novas realidades e universos diferentes.

Neste livro descrevem-se vários sentimentos sobre vários lugares. Qual é, para si, a crónica mais significativa?

Na verdade, não consigo eleger uma. Elas são variadas, há algumas mais divertidas, como é o caso de “O marido imaginário” ou “Pouca sorte com cabeleireiros”, mas outras mais sérias, embora em quase todas haja um bocadinho de humor, que considero um tempero essencial na vida. Todas foram baseadas em acontecimentos reais.

Ensinou português em vários lugares, nomeadamente na América do Sul e Macau. Como foi a experiência de ser docente em diferentes locais do mundo?

No Uruguai ensinei literatura portuguesa na Universidade da República Oriental e num centro de formação de professores. Foi uma experiência extraordinária. Nessa altura, tinha 29 anos, tinha acabado o mestrado, muitos dos alunos eram mais velhos que eu. Aprendi imenso com eles, eram muito cultos, alguns já tinham tirado outras licenciaturas. Lembro-me de lermos alguns cantos de “Os Lusíadas” e alguns citarem de cor partes da “Eneida”, de Virgílio, onde surgiam semelhanças. As discussões enveredavam sempre por novos caminhos e mais profundos do que aquilo que eu esperava. Era verdadeiramente aliciante. Em Macau, os desafios foram diferentes, muito exigentes. Dei aulas na licenciatura, no mestrado e doutoramentos, orientei muitas teses. Encontrei, claro, também alunos muito bons e interessados, outros menos, como sempre acontece. Se em Montevidéu havia a familiaridade do mundo ocidental, em Macau sempre me atraiu a diferença e o desafio que é estabelecer pontes entre culturas tão diferentes. Aliás, essa é a parte que mais encanta na divulgação do português no estrangeiro, sentir que em lugares distantes e universos culturais diferentes há interesse pela nossa língua e cultura e alimentar essa pequena chama. Acho que ensinar deve ser isso, tentar atear a chama do interesse, da curiosidade, pois sem ela ninguém aprende.

As crónicas ajudam a arrumar interiormente memórias de viagens e o seu significado?

Sim, sem dúvida, as crónicas ajudam a arrumar as memórias das viagens e das vivências que fui tendo. São uma forma de compreender o mundo e a vida. Aliás, a última tem como título “um nó para atar a vida”. No fundo, também é isso, a linha com que se cose a manta de retalhos que é a vida.

Nas crónicas sobre Macau descobrimos a novidade, o sentido de descoberta de um lugar?

Esses textos foram a minha forma de ir desvendando e conhecendo aquele universo tão particular. Macau é um lugar único no mundo, não há nada de equivalente. Trata-se de um palco de constantes surpresas. Muitas vezes, há uma grande discrepância entre a casca da aparência e o caroço da essência. Macau, como refere a pintora e escritora Fernanda Dias, é um “mapa esquivo”. A realidade é muito fluída, tudo muda constantemente, há fortes contrastes, paradoxos. A escrita pode ser o modo de tentar encontrar um sentido, de criar um espaço que possa ser habitado.

Qual o significado de lançar esta obra no festival? É uma forma de assumir-se cada vez mais como escritora?

Foi uma oportunidade maravilhosa. A escrita foi algo que sacrifiquei durante muito tempo em detrimento do trabalho, da carreira académica. Mas, de repente, senti uma necessidade visceral de escrever. Ao mesmo tempo, outras coisas perderam a importância que tinham anteriormente. Escrevo desde sempre, comecei a publicar livros em 1997, há 26 anos. Este é o décimo primeiro, sem contar com a participação em obras colectivas, mas ainda tenho um certo pudor e cuidado no uso da palavra “escritora”.

Esta obra faz referência a vários autores, portugueses e estrangeiros. São referências ao acaso ou são autores fundamentais para si na hora de escrever, de quem retirou referências?

De entre os escritores citados, há realmente as duas situações. Há alguns que surgem ocasionalmente, e outros, a maioria talvez, são referências importantes, alguns trabalhados no contexto académico. O facto de ter um doutoramento em literatura comparada cimentou também o meu interesse por autores de outros países. Contudo, no contexto da literatura portuguesa, posso destacar, por exemplo, quatro autores que menciono. Miguel Torga, sobre o qual trabalhei na tese de doutoramento; José Rodrigues Miguéis, sobre o qual escrevi artigos e que li desde a adolescência; Maria Ondina Braga e Lídia Jorge. Estas duas últimas autoras, sobre as quais também trabalhei, abriram “clareiras” dentro de mim, a partir de duas dimensões: o olhar perante Macau e as outras culturas, no caso da Maria Ondina, e um reequacionar, um olhar mais profundo e analítico das minhas raízes, no caso de Lídia Jorge. Acredito que ninguém escreve sem ser antes um grande leitor, há sempre uma herança que integramos, assimilamos e transformamos depois.

21 Fev 2023

Maria Celeste Hagatong, presidente da Fundação Jorge Álvares: “Tenho obrigação de defender a diáspora macaense”

Nunca viveu em Macau, mas está emocionalmente ligada a uma terra que é sua. Presidente da Fundação Jorge Álvares desde Abril do ano passado, acumula o cargo com o da presidência do Banco de Fomento e tantas outras actividades de divulgação da cultura e comunidade macaense. Maria Celeste Hagatong diz que a Fundação está financeiramente estável, orgulhando-se da inauguração da nova biblioteca do CCCM

 

É presidente da Fundação desde Abril do ano passado. Que balanço faz deste período?

O senhor general [Garcia Leandro] já tinha o seu plano preparado e uma série de iniciativas em curso. Era já da nossa responsabilidade a aprovação do orçamento e do plano de actividades, mas grande parte dos compromissos já estavam assumidos. Neste primeiro ano o nosso grande objectivo foi fazer o que estava previsto e penso que não nos saímos mal em termos financeiros, ficámos abaixo do orçamento na parte operacional e global. Uma das coisas que estava prevista e que me deu muito prazer concluir foi a transferência da biblioteca [do Centro Científico e Cultural de Macau] (CCCM) que estava há 20 anos em instalações provisórias.

E era paga uma renda, o que financeiramente não compensava.

Não fazia sentido nenhum. É uma coisa importantíssima para quem está na área dos estudos sobre o Oriente e há documentos com histórias muitos interessantes sobre a vida de Macau e a sua história. Era algo que eu, como descendente de macaenses, gostava de ver preservado. Não houve, portanto, derrapagem orçamental. Temos um grande cuidado de que essas coisas fiquem bem feitas. Gosto de ver as coisas a acontecer e a serem concluídas dentro dos prazos e orçamentos, estou muito focada nisso. Um dos grandes objectivos da Fundação é, precisamente, apoiar o CCCM não só em obras deste género, mas em diversas iniciativas. Já temos um projecto previsto para este ano e outro para o próximo, mas não posso avançar já mais detalhes.

O papel e actuação do CCCM estão subvalorizados?

Por razões orçamentais que compreendemos, mas que são necessárias de ultrapassar, o CCCM precisa de ter um orçamento mais virado para a investigação e desenvolvimento de actividades. Isso é indispensável. Gostava muito que o Centro tivesse mais visibilidade além da comunidade científica, para o público em geral. Há muita gente interessada nos assuntos da Ásia e de Macau com curiosidade em saber mais sobre os seus antepassados, por exemplo. Aliás, da nossa ligação com a Casa de Macau e Fundação Casa de Macau (FCM), uma das coisas que gostávamos imenso era de convidar mais pessoas a darem os seus testemunhos, deixarem as fotografias e espólios para que sejam depositados no CCCM. Acho que há muito património cá [em Portugal] que podia estar ali.

Quais são os seus planos para a Fundação além do que já estava traçado?

Temos projectos que são feitos de ano para ano e que correm muito bem. Também não temos assim tanto dinheiro. Apenas recebemos uma dotação inicial e acabou. Entretanto, passámos por não sei quantas crises financeiras, é bom saber que vivemos apenas dos rendimentos do nosso património financeiro. Não temos dotações permanentes. A única doação que recebemos foi do maestro Filipe de Souza que tem uma propriedade em Alcainça, mas que não nos rende nada, e um dos projectos é encontrar uma solução que não seja um peso e para que esta moradia possa também ser uma imagem da Fundação.

Mas a Fundação, financeiramente, está estável.

Sim, no sentido em que só tem os seus fundos aplicados e só recebe dinheiro daí. Como calcula, com a volatilidade dos mercados financeiros é difícil garantir rendimentos para suportar uma Fundação. Por um lado, tivemos uma altura com taxas de juro baixas e depois apanhamos a crise do Lehman Brothers, da Troika e agora uma guerra. Mas temos feito o melhor que podemos com bastante razoabilidade. Portanto, a música é uma das áreas que nos interesse bastante. Temos essa ligação ao Centro e organizamos o festival anual e internacional de música e instrumentos musicais chineses, algo que chama a Portugal muitas pessoas e estudiosos ligados aos instrumentos musicais orientais. Na edição deste ano vamos esperar ter algo sobre o jazz em Xangai. O festival decorre habitualmente entre Lisboa e Mafra. Este ano tivemos e teremos até final de Março a exposição dos instrumentos musicais em Mafra que já teve mais de 20 mil visitantes. Temos algumas actividades culturais no campo da edição de livros, e temos uma parceria com duas autoras, Isabel Alçada e Ana Maria Magalhães. Já lançamos dois livros e este ano queremos lançar mais uma obra [destinada a um público infantil]. Mas o que vamos fazer na Fundação é continuar a actividade que temos vindo a desenvolver nas áreas que estão solidificadas.

Mas há alguma área da Fundação na qual gostaria de ver mais inovação?

Fizemos uma coisa que foi inovadora, a meu ver, que foi a assinatura do protocolo com a Casa de Macau e a FCM. Isso foi da minha iniciativa.

Essas entidades não estavam já ligadas entre si?

Não. Quem tem o património da Casa de Macau é a FCM, que também recebeu uma dotação inicial para suportar as despesas. Mas entre estas entidades e a nossa Fundação não havia nenhuma ligação, apesar de eu ser sócia da Casa de Macau e de o meu pai ter sido um dos fundadores. Sou curadora da FCM também. Agora queremos, com este protocolo, trabalhar em conjunto temas que sejam importantes para Macau e para os macaenses, e seguir as actividades de ambos.

Descende de uma importante e histórica família macaense. Como é hoje a sua relação com Macau?

Nunca vivi em Macau. Mas fui criada na casa de um macaense que é uma coisa fortíssima. Sempre vivi em Lisboa, o meu avô era oriental e a minha avó ocidental. Somos descendentes de três ou quatro famílias de Macau, os Oliveiras, do tempo das guerras Miguelistas. Depois há uma ligação com as famílias Almeida e Azedo. A minha avó era ocidental, com olhos azuis, e o meu avô nasceu em Macau, tendo sido educado em escolas portuguesas. Fez depois toda a sua carreira no Banco Nacional Ultramarino, alguém muito ligado ao meio económico e financeiro.

Vem daí a sua ligação à área da economia e da banca.

Fui presidente da COSEC, e uma tia disse-me: “Olhe, está como o seu avô, que criou os seguros em Macau”. Não fazia a mínima ideia. Mas a parte financeira está nos meus genes. Sempre adorei esta área e não há nenhum Hagatong que seja mau a matemática. A minha ligação a Macau vem do facto de ter sido educada em Portugal em casa de um macaense amigo de muitos macaenses.

É importante para si manter este vínculo emocional?

Tenho obrigação de defender a diáspora macaense e tenho pena que não se assuma mais, porque há muita gente como eu que mantém algumas memórias sobre Macau e isso não se pode perder.

Uma das grandes questões da diáspora macaense é, precisamente, como atrair jovens para desenvolver actividades. Como é que isso deve ser feito?

Sempre foi um problema. Temos de apanhar os jovens, mas também as pessoas que já estão na sua vida activa, e penso que há muitos “faltosos” que temos de conquistar, os que passaram ou não, por Macau. No meu caso, a vivência de Macau faz-se apenas pelas férias, mas eram umas férias fantásticas.

É actualmente presidente do Banco de Fomento. Como olha hoje para o desenvolvimento económico de Macau?

Acredito numa recuperação rapidíssima. Tomáramos nós [Portugal]. Basta ter à volta de 70 milhões de habitantes [Grande Baía] para ser mais fácil recuperar a economia, ainda para mais com uma actividade económica mais interessante e moderna.

Portugal tem sabido aproveitar esta relação privilegiada que tem com a China via Macau?

Há dois níveis de relação: a bilateral, Portugal-China, que tem corrido muito bem, mesmo apesar da pandemia. Os dois países têm uma relação muito forte que decorre do nosso passado. O maior investidor do PSI20 é a China e não há mal nenhum. Numa altura de maiores dificuldades quem nos deu maior apoio foi a China.

O investimento tem sido alvo de críticas. Não se justificam?

Não. Lançamos propostas no mercado e se mais ninguém vem… quem apresenta o preço maior [fica]. O que podemos fazer? Na altura, a Alemanha, que estaria interessada na EDP, apresentou um preço abaixo. O que podemos fazer? É o mercado a funcionar.

15 Fev 2023

Ivo Carneiro de Sousa, historiador: “Macau é um sítio privilegiado”

Acaba de ser editado “Memórias, Viagens e Viajantes Franceses por Macau – 1609-1900”, quatro volumes que reúnem mais de 200 textos de homens que navegaram de França até ao Oriente e que colocaram Macau no mapa. O autor Ivo Carneiro de Sousa, historiador e académico da Universidade Politécnica de Macau, analisou textos históricos que traçam um retrato da sociedade local dos séculos XVIII e XIX

 

Como surge este projecto?

Comecei em 2011 quando acabei o livro “A Outra Metade do Sangue”, que é sobre orfandade e escravatura feminina em Macau. Nessa altura, documentei que as embarcações francesas que vinham de Cantão no século XVIII, sazonalmente, carregavam escravos em Macau e depois, a partir de 1721, começam a transportar cules para as ilhas Maurícias. A partir daí interessei-me pela presença francesa em Macau.

A primeira embarcação de cules que saiu de Macau foi, precisamente, comandada por franceses.

Os franceses dominam 40 por cento do tráfico de cules até à sua extinção. Nessa altura [2011], escrevi um pequeno artigo sobre um escravo das Maurícias preso em França e que se apresenta como sendo de Macau. É enviado para a Bastilha, mas acaba por conseguir sair. Aí comecei a trabalhar as relações entre a França e Macau e a tentar recuperar todos os textos que descreviam Macau ou que tinham memórias sobre o território. Fiz o mesmo em relação aos viajantes espanhóis que passaram por Macau. Acabei esse trabalho, editando 78 textos de espanhóis.

Quando sai esse livro sobre as memórias de espanhóis?

Ainda este ano. Não publico a totalidade dos textos, apenas as memórias do primeiro feitor da Real Companhia das Filipinas em Macau. Este deixou 20 volumes escritos e fez vários mapas. Em 2024 publicarei o conjunto das memórias dos viajantes norte-americanos. Preciso ainda de trabalhar alguns textos que estão nos EUA, muitos em diários.

Em relação aos franceses, o que representa este trabalho?

Elogio a obra da Cecília Jorge e Rogério Beltrão Coelho porque a sua “Viagem por Macau” é um trabalho inédito [sobre os 100 viajantes estrangeiros que passaram por Macau], mas não é propriamente um trabalho de historiador. Em Macau, os historiadores contam-se pelos dedos das mãos e aqueles que publicam investigação científica são muitos poucos. O que encontramos é a repetição dos mesmos mitos, histórias e incidentes.

Também em língua chinesa?

Há dois problemas. Temos a herança da historiografia portuguesa, marcada por um nacionalismo analfabeto, muito ligada ao Salazarismo e à ideia do país que descobriu tudo. Essa ideologia selecciona e manipula a informação do passado, sendo geralmente muito ignorante em termos de capacidade de investigação documental. Depois temos a historiografia em língua chinesa que é muito factual e antiquada. O trabalho que fiz sobre os viajantes estrangeiros não é amador. Primeiro reconstruo, em termos de história global, as relações entre a França e Macau no domínio religioso, militar, económico e cultural. Só depois começo a recuperar obras, e temos algumas importantes para desconstruir mitos importantes de Macau.

Como por exemplo?

São os franceses que trabalham primeiro o mito da Gruta de Camões, muito antes de isso aparecer em 1824 nos textos de portugueses. Portanto, em tudo isto há um trabalho de historiador que foi feito com uma bolsa do Instituto Cultural (IC) de 200 mil patacas, mas que foi muito curta. Estou a promover ainda uma edição em francês destes quatro volumes. Estes quatro volumes permitem perceber, desde logo, que Macau só se pode investigar segundo uma perspectiva de história global. Macau era o verdadeiro “fim do mundo”, pois todas as rotas comerciais do século XVIII acabavam aqui. Muitos materiais e produtos eram aqui descarregados. Coisas raras, penas de aves, coisas vindas da Califórnia, do Canadá. Aqui, no século XVIII e XIX, havia um dos grandes comércios de animais raros. Temos a rota da prata da América do Sul que desaguava em Manila e entrava na economia chinesa através de Macau. No século XIX, por exemplo, bebia-se mais vinho de Bordéus do que qualquer vinho português. Daí eu dizer que é preciso ter esta perspectiva global e não chega trabalhar a documentação oficial portuguesa e a pouca documentação chinesa que existe. Era necessário ter programas mais sérios [de ensino e investigação em História], mas é difícil. Tenho procurado incentivar alunos a fazerem mais investigação histórica.

Reuniu mais de 200 memórias. Quem eram estes viajantes franceses? Missionários, escritores, comerciantes?

Os missionários escreviam pouco sobre Macau. Dos 90 a 140 missionários que passaram por Macau, alguns iam para a China e outros para o Vietname, apenas 27 escreveram sobre o território. Eram muito hostis ao Episcopado de Macau, ao bispo, sacerdotes e missionários portugueses. Eram contra o Direito do padroado. Nos textos denota-se essa hostilidade. Procura-se silenciar os problemas do clero e dos missionários portugueses. Temos muitos textos dos grandes navegadores que fazem no século XVIII concorrência aos britânicos pela exploração do Pacífico. Todos passaram por Macau e fazem textos extraordinários. Há muito pessoal da marinha, vários médicos navais que fazem descrições sobre o território. O livro explica que, entre 1857 e 1862, houve um hospital militar francês em Macau, parte do material desse hospital estará na origem da formação do São Januário [hoje Centro Hospitalar Conde de São Januário]. As relações entre Macau e França tornam-se muito importantes, oficiais e estratégicas a partir de 1844, quando se assina o primeiro tratado de amizade e comércio entre a França e a China. Temos textos que chegam a transcrever conversas em patuá. Nessa altura, a França decide estrategicamente que os embaixadores plenipotenciários para a China ficam instalados em Macau ou em Hong Kong e isso dura até 1859 quando os franceses obtêm a concessão em Xangai. Quando discuti com o IC a publicação disse que este livro é muito importante, pelo facto de Macau ser, provavelmente, a única cidade europeia na China e, ao mesmo tempo, uma cidade chinesa muito antiga. É um sítio privilegiado do mundo e que se vende não apenas com casinos, mas também pelo seu património. Macau é a única cidade deste tipo que não tem um centro ou instituto de estudos de literatura de viagens. Isso existe em todas as cidades.

Deveria ser o IC a criá-lo?

Não, as universidades. Vamos a Bordéus e temos uma entidade desta natureza, em Paris temos três ou quatro. Em portos pequenos como o da Bretanha também temos, em Cádis, Valência. Isso tem muita importância mesmo para a atracção do “turista de património” que quer aprender mais sobre o local que visita, que paga mais caro por isso. Publicar estas memórias é, por isso, importante. Mas voltando ao livro, digo, no quarto volume, que estes textos franceses relocalizam Macau, transformando o território numa coisa que chamam o “lugar do Extremo Oriente”, como o Mónaco do Extremo Oriente. Há textos divertidos, com descrições sobre as mulheres, as macaenses, textos satíricos sobre os macaístas. Alguns textos são capazes de fazer estatísticas da população e comerciais muito importantes. Descreve-se o peso do jogo, dos cules e do ópio na economia, sobretudo do século XIX. Alguns usam documentação que hoje não se conhece, como cópias dos censos militares à população que se perderam.

Pode avançar algumas conclusões relativamente ao seu trabalho com os textos dos navegadores espanhóis e norte-americanos?

São textos escritos em castelhano e não são todos escritos por espanhóis, porque existem alguns autores que já são hispano-americanos, nascidos no Perú ou México, por exemplo. Fazem comércio com Macau e deixam os seus textos impressos ou manuscritos, as suas impressões sobre a cidade e a sociedade. No caso dos textos de norte-americanos, entre 1756 e 1810, alguns são de pessoas oriundas de Irlanda, Escócia e Inglaterra para os EUA, e que estão ainda a transformar-se em cidadãos norte-americanos. Digo isto porque as nossas concepções de identidade e de nacionalidade não são as mesmas que eram nessa altura. No século XVIII chegam missionários do que é hoje a Bélgica com passaporte francês, e são tratados como franceses. Mas há também memórias dos que queriam visitar Macau e não conseguiram porque o barco naufragou em Hong Kong. [Mas sobre estes quatro volumes das memórias francesas, concluímos que] Macau era um lugar muito importante para a França e um espaço cultural fundamental para aceder ao conhecimento da China. Houve bibliotecas que se formaram no século XIX a partir de Macau. Macau tinha ainda o papel de informar a Corte imperial chinesa da revolução científica europeia, e muitos missionários e comerciantes franceses chegam à China e são aceites na Corte porque são bons astrólogos, matemáticos, fazem cristais e telescópios, por exemplo. Macau tinha também o reverso, que era informar a cultura europeia sobre a China.

15 Fev 2023

Paulo Duarte, académico: “China molda a economia mundial”

Paulo Duarte co-edita o mais recente livro sobre a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” com a chancela da Palgrave, intitulado “The Palgrave Handbook of Globalization with Chinese Characteristics – The Case of Belt and Road Initiative”. Em entrevista, o académico defende que a China já deveria ter estatuto de economia de mercado e que o país vive com a Rússia uma relação puramente estratégica com foco na questão de Taiwan

 

A iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” foi apresentada por Pequim em 2013. Como olha para a sua evolução até aqui?

É preciso reconhecer que a economia, sobretudo a chinesa, já não cresce como crescia. Passamos por uma situação menos positiva, não apenas devido à covid-19, mas também devido à guerra [na Ucrânia]. No caso da China, que é a fábrica do mundo, gerou-se muita ambição quando, na prática, a pandemia veio arrefecer esses investimentos e muitos deles ficaram parados. Outros estão em progresso. O que me fascina como investigador é ver como todos estes projectos à escala regional, nacional e transcontinental vão moldando a economia do mundo. Este livro ajudou-me a aprender mais sobre a capacidade de a China incorporar, no seu projecto terrestre e marítimo, a Rota da Seda digital. A China percebeu que não é só o mar que é importante para o comércio, mas as redes digitais também são uma fonte extraordinária de ganhos, tendo lançado, assim, a terceira componente da iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”, em 2015. O livro procura uma visão do todo que é essa interdependência entre terra, mar e digital. Focamo-nos se os projectos vão ou não demorar, mas tudo feito e planeado a longo prazo já mudou a fisionomia do mundo e das redes de comunicação, e vai continuar a fazê-lo.

De que forma concreta “Uma Faixa, Uma Rota” tem mudado a economia mundial?

A China esteve muito tempo fechada ao mundo. Foi Deng Xiaoping, justamente com a ideia de “Um País, Dois Sistemas” que a abriu ao mundo. Curiosamente, introduziu o capitalismo dentro do comunismo, de maneiras que temos hoje uma China voraz, não só em termos de recursos energéticos, mas de aquisição de grandes activos em grandes empresas. Esse é o comportamento tradicional do país, que raramente cria algo do zero e que prefere investir em empresas já existentes onde procura comprar grandes activos, como a EDP em Portugal. A empresa foi considerada um activo estratégico e só assim é que não passou para as mãos de chineses, mas não foi isso que aconteceu com o Porto de Pireu, na Grécia. Vejamos também o caso do porto de Hamburgo, na Alemanha. A China consegue, através do uso dual, fazer descargas e cargas em portos e, ao mesmo tempo, levar a cargo actividades de “intelligence” ao longo dos portos onde vai atracando. Falo de aquisição massiva de infra-estruturas, de recursos energéticos, consenso de Pequim, com a ajuda ao desenvolvimento dos países desprovida de condicionalidades, ao contrário do que é o modelo ocidental, em que primeiro se requerem reformas democráticas e depois ajuda-se ao desenvolvimento. Mas a China já está a aprender com situações que correram mal.

Tais como?

A queda de Khadafi, na Líbia, como por exemplo. O país vai-se distanciando do princípio da não interferência. O que vamos ver no mundo é uma China que compra muito, vende massivamente. Falávamos da globalização, e a China beneficiou bastante com o facto de ter aderido à Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2001. Por esta altura, já deveria ter o estatuto de economia de mercado, mas ainda não tem. Mas isso não impede o país de continuar a ser a fábrica do mundo. Portanto, a China beneficiou da globalização, investe massivamente um pouco por todo o mundo e vai construindo, em paralelo, uma rede portuária para apoiar a sua marinha mercante e servir de abastecimento à sua marinha de guerra. A par desta globalização com características chinesas é possível que vejamos a geoestratégia a acompanhar a geopolítica. A China está a fazer o que os EUA fizeram há muitas décadas, que é construir as bases, com calma, no mundo. A China percebeu que o mar é fundamental numa estratégia de globalização e de protecção das rotas marítimas.

Porque é que o país não tem ainda o estatuto de economia de mercado?

Para todos os efeitos, estamos a assistir a uma guerra comercial. Os produtos de qualidade média e alta têm dificuldade em competir com os produtos chineses, e a guerra tem essa razão de ser. É um conflito entre os EUA e a China que nos envolve a todos directamente. Se por esta altura a OMC desse o estatuto de economia de mercado à China, seria mais fácil ao país do que já é competir livremente com produtos dos EUA e de outras partes do mundo, nomeadamente da União Europeia, onde os produtos têm uma boa qualidade. Isso é uma espécie de travão que serve para mitigar esses efeitos colaterais do dumping, da competição muitas vezes desleal, as falhas em muitos produtos. A meu ver, é uma forma de proteger os produtos ocidentais. É isso que impede a China de ter neste momento uma economia de mercado enquanto o país não fizer as reformas que o Ocidente espera que faça, nomeadamente ao nível da protecção dos direitos de autor. A China tem vindo a implementar reformas aos poucos, mas acha-se que ainda não é suficiente.

De que forma o conflito na Ucrânia alterou a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”?

Qualquer conflito, na Ucrânia ou Síria, é importante. A Ucrânia por ter sido o celeiro da União Soviética e a Síria por questões energéticas. A questão alimentar preocupa a China, que não vai ao estrangeiro apenas à procura de recursos energéticos, mas também à procura de alimentos. Os chineses destruíram de forma massiva, ao longo das últimas décadas, o meio ambiente, e hoje temos 28 mil rios que desapareceram e o ar ainda muito poluído, embora a China esteja a adoptar práticas mais amigas do ambiente. Só sete por cento das terras na China são aráveis. A Ucrânia desempenha aqui essa função, como o Brasil e outros países, de grandes produtores alimentares, mas até vou mais longe. A Ucrânia é importante, neste caso pela negativa, pela desproporção das cadeias de abastecimento entre o Oriente e o Ocidente. A China, sendo parceiro da Ucrânia, não tem interesse nenhum nesta guerra que acaba por tocar na economia, mas é uma guerra, acima de tudo, geopolítica. A China precisa de um aliado na construção do mundo que passe por uma alternativa ao mundo ocidental. Esse aliado, para o bem e para o mal, é Putin. Seria um dos poucos que viria ao auxílio da China caso houvesse um confronto em Taiwan. Talvez também o Irão ou a Coreia do Norte. Além de comprarem petróleo mais barato à Rússia, os chineses sabem que, do ponto de vista geopolítico, precisam de aliados. Não é benéfico para ninguém que a guerra se arraste demasiado, inclusivamente para a própria Rússia. Também a China não é alheia a esta perturbação das cadeias de abastecimento.

A China está, portanto, a tentar equilibrar vários factores relativos ao conflito ucraniano, mantendo uma posição estratégica com a Rússia, com o foco em Taiwan.

Sim, sem dúvida, esse é o principal factor. A Rússia e a China desconfiam um do outro. Os multimilionários e turistas russos não vão propriamente para a China, vão para o Ocidente. É um casamento de conveniência. Que outra saída teria a Rússia se não fossem os chineses a subsidiar esta guerra, uma vez que os europeus fizeram cortes? Se não fosse a grande China a comprar, o que poderia fazer Putin, que está praticamente isolado em todo o mundo? Pouco. Mas essa desconfiança existe e encontra nesta crise uma oportunidade. Sabemos que esta ligação entre a Rússia e a China é meramente conjuntural porque, terminando esta guerra, e ninguém sabe quando vai acontecer, não temo dizer que Putin vai querer retomar os mercados ocidentais. A China, aqui, é meramente circunstancial.

É co-autor de um artigo, neste livro, sobre a presença do Atlântico-sul na política de globalização da China, onde se inclui Portugal. No contexto de “Uma Faixa, Uma Rota”, como descreve as relações entre os dois países? Há espaço para inovação?

Nesta relação, a questão de Macau é importante e temos também a CPLP. O único senão é o facto de Portugal pertencer ao Ocidente, à NATO, à União Europeia (UE) e com laços transatlânticos com os EUA. Tivemos uma espécie de lua-de-mel da China com Portugal a partir de 2012, na altura da troika, em que a China não tinha propriamente interesse num mercado como o nosso, mas foi investindo ao ponto de tornar Portugal num estudo de caso na UE pela grande receptividade que estávamos a mostrar face à China. Depois da visita a Portugal de Xi Jinping, cerca de 18 acordos foram assinados, fazendo de Portugal uma excepção. Desde emitir dívida pública portuguesa em moeda chinesa, a criar um laboratório com vista à produção de micro-satélites, à própria política dos vistos gold. Houve depois uma pressão intensa dos EUA e a pandemia, bem como a questão da guerra, que fez com que Portugal tenha voltado à sua política externa dita “convencional”, de apoio aos EUA. Todos esses factores levaram ao fim da lua-de-mel que parecia promissora.

O conceito de “Globalização com características chinesas” poderá ter influências nos próximos tempos, com o conflito na Ucrânia, por exemplo?

Se olharmos para a China como aquele actor que planeia a longo prazo, vão surgir sempre guerras e conflitos, ou crises, mas esse projecto de “Uma Faixa, Uma Rota” continuará no espaço e no tempo. É muito difícil parar a China, sendo que hoje em dia as famílias podem ter até três filhos. Isto não é uma brincadeira. Se o planeta já era escasso em recursos, veremos agora uma deslocalização da China para a zona do Atlântico-Sul, para aqueles países mais distantes, à procura de alimentos e energia. Não é por acaso que se houve falar do interesse da China numa base naval na Argentina ou na Guiné-Equatorial. A China vai negociar com esses estados para ter capacidade de introduzir a sua diáspora. Se há coisa que o país aprendeu é que não pode ter base apenas na China, mas sim em todo o mundo. A China tem de ter bases navais mais perto dos locais de risco.

 

Olhar global

“The Palgrave Handbook of Globalization with Chinese Characteristics – The Case of the Belt and Road Initiative” [Manual Palgrave da Globalização com Características Chinesas – O caso da Iniciativa Uma Faixa, Uma Rota” é uma edição conjunta de Paulo Duarte, académico da Universidade Lusófona do Porto, Francisco José Leandro, da Universidade de Macau, e Enrique Gálan, do Asian Development Bank. Com a participação de dezenas de autores de várias nacionalidades, o livro faz o retrato global da iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” nas vertentes diplomática, económica e política e dos vários polos de investimento que se foram formando desde 2013 graças à aposta chinesa em vários países. Destaque para a participação de vários académicos portugueses, como é o caso de Carmen Amado Mendes, Cátia Miriam Costa, Luís Tomé, Jorge Tavares da Silva, entre outros.

3 Fev 2023

Xanana Gusmão “triste e desiludido” com PM e acção do actual Governo timorense

Entrevista de António Sampaio, da agência Lusa

O líder da oposição em Timor-Leste mostrou-se hoje “triste e desiludido” com a acção do Governo e do primeiro-ministro, afirmando que se vencer nas próximas legislativas está empenhado em corrigir “vários erros”, dando prioridade à economia.

“Estou muito desiludido pelas violações à Constituição, por o próprio parlamento ter feito aquele assalto ao poder, por o Governo ter feito uma mudança brutal nos sistemas existentes, no sistema financeiro que está horrível, e pela própria justiça que não funciona”, disse Xanana Gusmão, em entrevista à Lusa. “Tudo isto fez recuar o país, no contexto da fragilidade”, disse.

Líder do Congresso Nacional da Reconstrução Timorense (CNRT), segundo maior partido no parlamento, Xanana Gusmão ambiciona chegar à maioria absoluta e recordou alguns dos momentos políticos do passado recente, incluindo a saída do seu partido do atual Governo, que acabou por ser viabilizado pela Frente Revolucionária do Timor-Leste Independente (Fretilin).

“A nossa saída do Governo ocorreu porque o primeiro-ministro não queria ouvir-nos. Dizíamos que algumas das coisas violavam as leis. Mas ele dizia: isto é do outro Governo, agora sou eu que governo”, disse.

Xanana Gusmão refere-se ao actual chefe do Governo, Taur Matan Ruak, líder do Partido Libertação Popular (PLP), que tem apenas oito assentos no parlamento, mas a favor de quem o líder do CNRT abdicou do cargo de primeiro-ministro.

O actual Governo saiu das eleições antecipadas de 2018 nas quais CNRT, PLP e o Kmanek Haburas Unidade Nacional Timor Oan (KHUNTO) concorreram com uma coligação pré-eleitoral, que obteve a maioria absoluta.

Várias questões, incluindo a decisão do anterior Presidente, Francisco Guterres Lú-Olo (da Fretilin), não dar posse à maioria dos membros do Governo do CNRT, e desavenças entre Taur Matan Ruak e Xanana Gusmão levaram à saída do CNRT do Governo, em 2020.

A Fretilin acabou por entrar no executivo tendo participado, em maio desse ano, numa polémica votação no plenário do parlamento que demitiu o presidente do parlamento, então do CNRT, e elegeu o actual, da Fretilin.

Questionado sobre como olha hoje para a acção de Taur Matan Ruak no Governo, Xanana Gusmão mostra-se bastante critico, mas faz algum ‘mea culpa’.

“Estou muito desiludido, mas em certo sentido compreendo. Não tem nada na cabeça. A minha desilusão seria muito maior se ele tivesse algum conhecimento sobre finanças, sobre administração. Mas conheço-o desde pequeno então fico desiludido comigo mesmo por lhe ter confiado isto”, afirmou.

Mostra-se igualmente crítico da atual liderança na gestão do importante sector do petróleo e gás, especialmente no quadro do processo de negociação sobre o projecto do Greater Sunrise.

“Neste capítulo, agradeço muito à covid-19. Porque atrasou as coisas. […] Tem sido horrível, mas teria sido pior e para corrigir teria sido muito difícil. Mas já está quase, vamos lá ver”, afirmou.

Xanana Gusmão disse que o seu partido deu apoio à eleição do atual chefe de Estado, José Ramos-Horta, exatamente para começar a corrigir “alguns erros” do passado recente.

“O meu partido deu apoio concreto e real ao doutor Ramos-Horta para ser Presidente, para facilitar que esta instituição superior do Estado comece também a rever os erros e falhanços cometidos e fazer a reaproximação ao povo”, explicou.

“Mas o Presidente não pode fazer isso sozinho, por isso estamos a preparar-nos para num futuro próximo podermos governar. Acreditamos que o povo esteja já com olhos abertos, para fazer a devida mudança, a correção, com o parlamento e com o Governo”, acrescentou.

Ex-Presidente e ex-primeiro-ministro, Xanana Gusmão disse que Timor-Leste continua a ser um país frágil, argumentando que essa condição se agravou nos últimos anos, e que há que assumir esse compromisso de fazer correções. Incluindo no sector da justiça, em que considerou ter havido perseguições políticas a ex-responsáveis sem que se persiga, com igual afinco, outras decisões de governantes.

Sobre a ambição de chegar aos 33 assentos que garantem a maioria absoluta – actualmente controla 22 – Xanana Gusmão admitiu que “é complicado”, mas que “nada é impossível”, explicando que tem vindo a dialogar com a população sobre exatamente qual é o papel dos partidos.

“Se um partido político apresenta uma visão, um princípio, significa que quando vai ao poder é para cumprir isso, não é para meter este ou aquele num cargo ou outro. Vai para trabalhar. Se um não serve, mete-se outro”, disse. E garantiu que o CNRT não voltará a escolher uma pessoa de fora do partido para primeiro-ministro.

“Está totalmente fora de hipótese ser outro PM que não do CNRT. Percorri o território e percebi que em 2017 perdemos por falhas do partido, que estava demasiado confiante, mas talvez 50% da causa da derrota foi ter entregado o cargo de primeiro-ministro a Rui Araújo da Fretilin em 2015”, disse.

“Não perceberam isso e o partido não explicou bem. Mas ainda acho que foi a melhor solução para [fechar a negociação das fronteiras marítimas com a Austrália) e de termos capacidade de unir as forças vivas da sociedade aqui, os maiores partidos, impedindo que a Austrália nos dividisse”, afirmou.

A aproximação hoje entre CNRT e a Fretilin “é difícil”, explicando que não perdoa àquele partido ter votado contra o acordo de fronteiras, e considerou que “o maior erro” foi ter avançado em 2018 com uma coligação pré-eleitoral que o “amarrou” a outras forças políticas.

“O maior erro que cometemos e nunca mais vamos cometer foi a coligação pré-eleitoral. Depois de ganharmos, estávamos atados. Até na distribuição de lugares. Doeu-me mais a cabeça ali do que noutros tempos mais difíceis do país. Pediam isto e pediam aquilo. Aprendemos essa lição”, afirmou.

31 Jan 2023

Joaquim Ng Pereira, académico e divulgador da cultura macaense: “Comunidade não se vai afastar de Macau”

Declama patuá e dá aulas no dialecto no Centro Científico e Cultural de Macau, mas Joaquim Ng Pereira é, acima de tudo, um divulgador da sua cultura. Na próxima quarta-feira apresenta, na Sociedade de Geografia de Lisboa, o colóquio “Mobilidade em Macau: vertentes do fenómeno migratório”. O académico lamenta que Portugal não preste atenção a Macau e teme a diluição da cultura macaense na chinesa

 

Decidiu organizar um colóquio sobre mobilidade em Macau. A comunidade macaense tem sido, ao longo da história, uma comunidade de emigrantes, com especificidades. Essa tendência migratória irá manter-se?

Antes da chegada do navegador Jorge Álvares à China, Macau praticamente não existia. Era uma zona meio árida que tinha lá alguns pescadores que vinham do Rio das Pérolas. O grande desenvolvimento que se dá em Macau é, precisamente, com a chegada dos portugueses e graças ao comércio que faziam. Os macaenses foram criando uma cultura muito própria, com o patuá e a gastronomia, mas o meu receio é que esta cultura se perca. Enquanto houve a Administração portuguesa, a cultura macaense foi sobrevivendo. Mas existe uma nova ameaça, que daqui a umas décadas a cultura macaense se perca e o desinteresse de Portugal em relação a Macau, que poderia ter feito mais nessa preservação. Macau é uma porta para a China e os portugueses tinham imenso a ganhar com isso.

Mas ainda relativamente à emigração. Macau está numa nova fase devido à pandemia, isso veio alterar a relação da comunidade macaense com o território, a sua própria terra? Os macaenses também podem sair, por exemplo?

Esse é um grande ponto de interrogação. Até agora, os macaenses têm sempre conseguido dar a volta e afirmar-se como macaenses pela sua própria cultura e história. Os portugueses que lá estão também. Os portugueses que gostam de Macau ficaram. Com a pandemia há uma nova ordem social, mas isso quer dizer que temos de nos habituar a viver com isso, com esta doença.

Mas acha que a comunidade macaense se vai afastar de Macau?

Depende. Mas penso que não. Macau sempre teve uma grande ligação ao jogo e na Ásia isso sempre foi muito importante. Macau continua a ser uma porta de entrada para o Oriente e as pessoas sentem-se seguras no território porque existe ali uma parte ocidental no Oriente. Esta conjunção de culturas é o que dá segurança a quem vai para lá. Ganha-se uma ligação afectiva porque existem as raízes ocidentais e orientais.

A China mantém no seu discurso a importância da preservação da cultura macaense. Apesar dos sinais desta presença do macaense na agenda política, sente que não se vai muito além disso?

O grande perigo é o de diluição da cultura macaense na comunidade chinesa. Portugal deveria ter aí um papel mais activo. Temos de respeitar a China, pois tem a soberania sobre Macau e isso estava acordado há muitos anos. Reconheço, como macaense, que as ligações entre Portugal e Macau não podem ser esquecidas e têm de durar, e tenho feito projectos para contribuir para isso.

Em termos concretos, o que as autoridades portuguesas deveriam fazer?

Não podemos contar muito com o apoio financeiro, mas alguma coisa poderá ser feita na divulgação da cultura macaense. Quem se interessa faz actividades e projectos mas não há um apoio do Estado. Muitas vezes nem é preciso muito dinheiro, basta haver mais encontros e maior divulgação. Talvez a China pudesse dar financiamento ou fazer parcerias com Portugal para que mais macaenses pudessem vir a Portugal e vice-versa. Temos, em Macau, eventos como o Festival das Artes ou o Festival da Lusofonia, e o que se conhece cá sobre isso? Muito pouco. Muitas vezes a divulgação não custa muito dinheiro.

É necessária mais ligação entre as associações de matriz macaense, em Macau, com a diáspora, no sentido de fortalecer a rede já existente?

Acho isso importantíssimo. Nós, na Fundação Casa de Macau [Joaquim Ng Pereira faz parte dos órgãos de gestão], atravessamos dificuldades com a crise económica que existe actualmente. Mas, dentro do possível, tentamos criar ligações com a diáspora. São essas ligações, e a rede no seu conjunto, que existe na diáspora, nas associações macaenses, que são fundamentais. Se todas as vozes se juntarem com a diáspora tornamo-nos numa voz activa perante os governos e aí conseguiremos fazer algo para que sejamos ouvidos enquanto macaenses.

Em Macau há falta de uma voz cívica da parte da comunidade macaense?

Fazem falta mais vozes da nova geração, isso é muito importante. O Miguel [Senna Fernandes] tem feito um trabalho espantoso com o patuá, por exemplo. Da minha parte, eu tento preservar as minhas próprias raízes, mas não só, as outras também. Existe uma outra vertente, para mim muito importante, que é a ligação de Portugal com Macau. Tenho estado a fazer, com o Miguel de Senna Fernandes, vários projectos, incluindo um de rádio na Junta de Freguesia de Belém [Lisboa], uma rádio online, para o desenvolvimento, conhecimento e divulgação de Macau. Ainda estou a fazer o genérico. Vai-se chamar “Vós está bom”.

Ensina patuá em Portugal e o dialecto também se ensina em Macau, e há outras formas de divulgação, como o teatro dos “Doci Papiaçam di Macau”. Considera que são necessárias novas fórmulas para que o patuá se mantenha vivo?

Sim. Esta parceria que tenho estado a fazer com o Miguel é muito importante. Estou a pensar fazer alguns videoclipes em que mostro a cidade de Lisboa em patuá. Já temos um vídeo sobre a Torre de Belém, em parceria com a escritora Maria Helena do Carmo e Raúl Gaião. Falamos sobre a Torre de Belém e as partidas para Macau tudo em patuá. Estou a pensar lançar este projecto no segundo semestre deste ano, e será lançado na plataforma YouTube, criando assim uma ponte cultural entre Macau e Lisboa.

Falar de Macau

São muitos os oradores presentes no colóquio promovido pela Comissão Asiática da Sociedade de Geografia de Lisboa, da qual faz parte Joaquim Ng Pereira. “Mobilidade em Macau: vertentes do fenómeno migratório”, agendado para o próximo dia 25 de Janeiro, conta com nomes que habitualmente falam, escrevem ou estudam Macau nas suas várias vertentes, como a escritora Maria Helena do Carmo, o antropólogo Carlos Piteira ou Miguel de Senna Fernandes, presidente da Associação dos Macaenses. Este último irá abordar o tema “Imigração e Cultura – Uma Perspectiva da Comunidade Macaense”. Maria Antónia Espadinha, ex-residente de Macau e ex-directora dos departamentos de português da Universidade de Macau e da Universidade de São José, também irá intervir na discussão com a apresentação do tema “Migração estudantil, outras percepções de quem aprende em outras geografias”. Destaque ainda para a presença do debate em torno do patuá neste colóquio graças à participação de Raul Leal Gaião, investigador, que vai falar da “Formação do crioulo de Macau e mobilidade social”. Álvaro Augusto da Rosa, académico e dirigente associativo a residir em Lisboa, fala do “linguajar do português de Macau”.

19 Jan 2023