Paulo Duarte, académico: “Soft power chinês foi bastante afectado”

O professor da Universidade Lusófona e da Universidade do Minho Paulo Duarte defende que o “soft power chinês” está “bastante afectado” por causa da pandemia e da questão da Ucrânia. O académico defende ainda que China e EUA podem estabelecer uma parceria que contribua para solucionar o conflito israelo-palestiniano

 

Abordou recentemente, numa conferência em Lisboa, o tema “Soft Power com características chinesas – Ponto de situação”. E em que ponto está?

Está bastante afectado por causa da pandemia e, sobretudo, do alinhamento ambíguo da China relativamente à guerra na Ucrânia. No caso português, manifesta-se pela perda da “lua de mel” que se vivia entre Portugal e a China. Não se tem verificado essa aquisição massiva de serviços ou de activos estratégicos [portugueses]. Por outro lado, também tem a ver com a própria situação interna na China, que atravessa dificuldades.

Recentemente decorreu o fórum sobre a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”, que celebra dez anos de existência. Como olha hoje para esta política?

Há dez anos o período era outro. A China tenderá a concentrar-se no “pequeno, mas bonito”. Muitos desses projectos deverão ir por água abaixo e ficar estagnados. No caso português, ficámos muito condicionados pela forma como a União Europeia (UE) olha para a China. Foi uma desilusão, para a UE e EUA, o facto de a China não ter condenado a agressão russa à Ucrânia. Isso obrigou-nos a repensar a nossa relação com o país. Mantemos bons contactos e ligações com a China, mas para todos os efeitos o fim desse período de “lua de mel” pode ditar que sejamos apenas bons amigos e não tanto namorados como antigamente.

A questão em torno da rede 5G e a sua condenação por parte de alguns Estados-membros da UE também influenciou este cenário?

[Portugal], ao ser dos últimos a tomar uma posição na UE face à rede 5G, estava a medir os prós e os contras, acabando por tomar essa decisão sem querer hostilizar a China. Sempre fomos um estudo de caso dadas as boas relações que sempre tivemos no contexto da UE. Fomos condicionados a ter de escolher entre a China e o alinhamento com os EUA. Mas o soft power chinês foi-se, de facto, muito abaixo, porque a China, que defende uma posição de ganhos mútuos e de uma comunidade com objectivos comuns, nunca se poderia pôr do lado do agressor, ou, pelo menos, teria de ter condenado uma invasão, e não o fez. Portanto, isso pesou em relação a nós, que temos compromissos a honrar com a UE e a NATO.

Se o soft power da China está enfraquecido, que alternativas poderão ser criadas por Xi Jinping?

A iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” prometeu mais do que fez. Temos o caso de Itália, que simplesmente quis sair. [A iniciativa] criou uma série de artérias logísticas, mas para muitos países isso deveria ter facilitado, acima de tudo, a exportação de produtos chineses. A China compra praticamente petróleo e gás, mas não compra [produtos] a muitos outros países. Este é o problema. “Uma Faixa, Uma Rota” foi, sobretudo, uma narrativa que serviu para escoar produtos chineses, mas estes países [receptores] estão descontentes. Hoje os bancos chineses já não estão tão propensos a financiar [projectos] como antes, portanto a concentração [do investimento] é hoje mais pequena, mas mais estratégica. Xi Jinping não vai condenar “Uma Faixa, Uma Rota”. Pelo contrário, vai sempre exaltar o que de bom foi feito. Mas, ao mesmo tempo, estamos a assistir, indirectamente, a uma demarcação da iniciativa, [com o surgimento] da Iniciativa de Desenvolvimento Global e a viragem para os BRICS. A China percebeu que tem de criar outras narrativas porque “Uma Faixa, Uma Rota” não foi assim tão bem-sucedida. O país pode considerar, mas os países não a vêem como bem-sucedida. Há dez anos, a China precisava expandir a sua produção, mas hoje a situação não é bem essa e faz sentido haver uma actualização dos projectos. É preciso reinventar a narrativa para que a China consiga “escoar” melhor o seu soft power.

Estamos com outra guerra, desta vez no Médio Oriente. A China já disse que a acção de Israel ultrapassa o domínio da auto-defesa. Como analisa a posição chinesa no contexto do conflito israelo-palestiniano?

Os EUA queriam que a China condenasse a postura do Hamas. Ao contrário da UE e dos EUA, a China não reconhece o Hamas como uma organização terrorista, mas o país tem de facto procurado que haja ali, a nível diplomático, a busca por uma solução para ambos os lados, algo que com o Hamas não se verifica. O Hamas luta pela auto-determinação e resistência do povo palestiniano e nem sequer admite a solução dos dois Estados [Israel e Palestina]. A China teve uma posição muito interessante, mérito seu, mas [também] muito por causa dos erros estratégicos dos EUA, que acreditam que vão levar a democracia ao Médio Oriente. Não foi assim que funcionou com o Iraque, por exemplo. Os sauditas e os iranianos aproveitaram-se do apoio [chinês], pois independentemente de ser a China a ajudar, tinha de vir [algum país] para ajudar a acabar com anos de guerras e problemas. A China foi esse parceiro, poderia ter sido outro, mas aproveitou-se desse espaço deixado pelos EUA, que ligam muito às questões dos direitos e das democracias, mas depois têm dois pesos e duas medidas na questão de Israel e da Palestina. A China fez então esse trabalho de casa muito interessante que é um êxito na diplomacia, digamos assim, juntar sauditas e iranianos. [A China] poderia ter também um empenho interessante na Palestina, porque já se viu que a ONU é um órgão ineficaz e obsoleto. Só estamos a assistir a uma diplomacia dos EUA na região feita à última da hora, a tentar convencer os países a ser recuperados. E a China também poderia estar aqui juntamente com os EUA, a usar da sua influência no Irão e na Arábia Saudita para um bem comum, independentemente das rivalidades que tem com os EUA, para trazerem paz para a região.

Como dois países com enormes tensões entre si se podem unir na questão do Médio Oriente?

Olhamos para Netanyahu, cuja credibilidade baixou muito. Ainda assim, formou-se um Governo de unidade nacional. Era isso que deveria fazer sentido com a China e os EUA, uma espécie de frente com um interesse comum, de convergência neste momento, em que há palestinianos a morrer a toda a hora e em que a comunidade internacional está meramente focada nos israelitas que estão sequestrados [pelo Hamas]. Os palestinianos não têm, sequer, direito a água, tendo de sair das suas casas onde vivem há anos. Israel também tem de ser condenado pela desproporção com que está a tratar a situação.

O Médio Oriente é, desde há muito uma zona de conflito, onde a questão do petróleo assume uma grande importância. Os EUA e China têm interesse nesta matéria, mas não só.

A China está a usufruir de petróleo mais barato do que [o petróleo] da Rússia. Mas se os preços do petróleo sobem, sobe tudo o resto. Já tivemos uma crise de cereais e de alimentação [com o conflito na Ucrânia], a economia desacelerou devido à covid-19, e agora tudo isto tem consequências negativas, directa ou indirectamente, nos EUA, China e resto do mundo. A crise na Ucrânia não acabou, simplesmente está fora do foco dos media. A Ucrânia, uma crise no Médio Oriente, mais a questão de Taiwan e da Coreia do Norte, podem ter impacto com o aumento dos preços do petróleo, o que seria gravíssimo quando as pessoas já se deparam com a subida das taxas de juros e a inflação, podendo ocorrer uma subida do custo de vida.

O ataque do Hamas pode originar um conflito mais global, tendo em conta que decorre, como disse, a guerra na Ucrânia?

O Hamas sempre esteve presente, mas nunca teve esta intensidade. Foi uma falha semelhante à dos EUA no 11 de Setembro. Israel conheceu o seu próprio 11 de Setembro, e estamos neste momento na fase de averiguações internas para se perceber o que é que falhou, porque Israel pareceu não estar minimamente preparado [para responder aos ataques do Hamas]. Há lições a tirar e nada será como dantes, até para os próprios serviços secretos israelitas. Duvido que Israel [consiga acabar] o Hamas. Acabará com uma grande parte da sua força militar, mas não acaba com os líderes que vivem no estrangeiro. O Hamas é um polvo, que pode ser enfraquecido militarmente, mas não nos podemos esquecer de que o Irão continua a apoiar o Hamas. É uma utopia pensar que se vai acabar com o Hamas. Percebo os receios de Israel de garantir que a população não vai ser atacada, mas é utópico pensar-se que se irá acabar com a violência, pois esta dura desde os anos 40, quando o Estado de Israel foi criado.

Lembrou há pouco que a postura de Israel também tem de ser condenada.

Não tem razão de ser um Estado com outra religião estar a colonizar um espaço que não é o seu [colonatos judeus em território palestiniano]. Agora não se vai colocar Israel noutra parte do mundo, tem de se manter e sobreviver, que conta com parceiros fundamentais, como os EUA e o Reino Unido. Temos agora a UE, que diz uma coisa na figura da presidente da Comissão Europeia [Ursula Von der Leyen], mais radical na postura face a Israel, e outra mais comedida, de Joseph Borrell [Alto representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança da UE], que diz que Israel não pode ser desproporcional, cometendo outra atrocidade.

Soft power no ISCTE

A conferência “O soft power de características chinesas – Um ponto de situação”, protagonizada por Paulo Duarte, aconteceu no passado dia 18 de Outubro no Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), em Lisboa, no âmbito do ciclo de palestras “Encontros de Estudos sobre a China”, promovido pelo ISCTE. A sessão foi moderada por Jorge Tavares da Silva, professor auxiliar da Universidade da Beira Interior, na Covilhã.

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