Pedro Steenhagen, académico: “Há interesse em manter a identidade híbrida na RAEM”

Académico na Universidade de Fudan, Pedro Steenhagen analisou em “Convergindo com a Pátria – O papel da identidade nas crescentes interações políticas entre Macau e a China continental” a ideia de maior convergência de Macau em relação aos ideais da China e à vontade da preservação de uma identidade híbrida no território. O trabalho foi apresentado este sábado no Centro Científico e Cultural de Macau no âmbito do ciclo “Conferências da Primavera”

 

Porque decidiu estudar estas questões da identidade nas duas regiões administrativas especiais chinesas?

Ao longo dos meus estudos sobre a China comecei a prestar mais atenção nas questões de Macau e do relacionamento do Brasil com os países de língua portuguesa. Concluí que o Brasil não olhava para Macau, e que havia um “gap” muito grande de conhecimento no Brasil sobre a China em geral e Macau em específico. Isso me instigou a iniciar mais investigações sobre Macau. No âmbito do doutoramento de política internacional que faço na Universidade de Fudan, decidi ver porque é que há tantos atritos entre Hong Kong e a China e não tanto no relacionamento político entre Macau e a China. Um dos factores com que me deparei foi a questão da identidade, o papel e o impacto que tem. Usei dados de inquéritos realizados pela Universidade de Hong Kong (UHK) e um desses dados é, precisamente, o de confiança política e identidade nas duas regiões administrativas especiais. Comecei a escrever este artigo em 2022 e decidi esperar mais um ano por uma actualização de dados devido à covid, para não colocar dados de 2019.

Fala, neste trabalho, de uma “identidade local, flexível e não exclusiva, o que proporciona uma maior continentalização e uma maior estabilidade política” em Macau. Que factores contribuíram para esta identidade? A Administração portuguesa contribuiu para isso, por exemplo, com a sua filosofia política e modos de governar?

Sem dúvida. De maneira consciente ou não, e por conta do processo histórico diferenciado que aconteceu em Macau, não houve uma nova localização de administração política como aconteceu em Hong Kong. Até do ponto de vista linguístico vemos isso, porque o inglês é mais presente do que o português. Claro que em termos de gastronomia e arquitectura Portugal está ainda muito presente [em Macau]. Um ponto fundamental dessa diferença, e que resulta nesta identidade híbrida e flexível, é o facto de, ao longo do processo histórico, não ter havido conflitos directos de grande escala entre Portugal e China. O que aconteceu em Macau foi que, na prática, houve uma governação dupla entre os dois países, nunca houve uma dominância total, da parte de Portugal, em relação a Macau. Mesmo a partir do século XIX, quando Macau se torna oficialmente colónia portuguesa, Portugal sempre manteve boas relações com a China, e os chineses sempre mantiveram uma grande relevância na região. O processo foi diferente em Hong Kong, pois o Reino Unido dominou mais na região e houve atritos [com a China] ao longo do percurso histórico. Isso fez com que a identidade [local] de Hong Kong se tenha tornado mais forte. Essa identidade flexível que se criou em Macau é observada até do ponto de vista do Governo macaense. Há uma busca para que as pessoas de Hong Kong se identifiquem mais com a China, mas não vemos isso em Macau, porque segundo o inquérito da UHK, os dados da identificação como chinês e como local de Macau são muito parecidos, daí essa ideia de identidade híbrida. Vemos essa abertura da parte da China para que as pessoas em Macau possam valorizar essa história colonial. Isso parte tanto da China continental como do próprio Governo macaense, legitimando-se, assim, essa identidade híbrida.

Fala também da existência de crescentes afinidades com a China, e do facto de Macau aceitar mais essa convergência com a política do país. Que exemplos pode dar?

O primeiro em relação à legislação da segurança nacional. Vimos que em Hong Kong isso gerou um grande debate, até do ponto de vista internacional. Isso não aconteceu em Macau. Há também o ponto de vista histórico, porque o povo local é considerado politicamente mais apático e menos participativo. Essas questões com a China continental são menos promovidas e cultivadas no âmbito político. Em Hong Kong, sempre houve um maior incentivo à participação política. Em 1997, a população de Hong Kong, um território já com presença internacional e com uma economia forte, depara-se com uma problematização, porque já se viam como um território com capacidade política, e vê-se aí a possibilidade de perda dessa participação política. Em Macau, viveu-se um momento contrário, pois desenvolve-se mais a partir de 1999, torna-se num hub importante a nível internacional devido aos casinos e vê muitos ganhos com o regresso da administração à China. Não é à toa que surge a ideia, da parte do Governo chinês, da criação do Fórum Macau, pois é uma legitimação como as relações entre Macau e China, com a valorização da história, é válida aos olhos da China. A Lei Básica trouxe direitos fundamentais que antes não estavam tão previstos na legislação local. Macau acabou se tornando num exemplo da política “um país, dois sistemas”, o que é muito importante para a China, promover essa ideia de sucesso.

Há, portanto, uma “incorporação e uma não repressão dos elementos locais e internacionais de identidade”. Isso passa-se também com a comunidade macaense?

Essa incorporação das variadas identidades, locais, regionais e internacionais, é extremamente relevante. A ideia é que Macau continue a valorizar essa diversidade de identidades que possui. Mas isso é também uma ideia política que não é apenas encarada do ponto de vista da identidade. É interessante politicamente, para Macau, que o território se venda como um local onde diferentes culturas se encontram, onde há uma identidade híbrida. Mesmo que parte da identidade portuguesa se perca, não deixamos de falar da importância de Macau na lusofonia. A questão da identidade não tem tanto como controlar porque faz parte do processo histórico, então o que o Governo central tenta fazer é dar abertura para que essas identidades se expressem e que permaneçam ao longo do tempo. O Governo tem interesses económicos e políticos para que se mantenha esta identidade híbrida na RAEM.

Como prevê 2049, nesse contexto de identidade híbrida?

Do ponto de vista de Macau penso que não haverá grandes problemas. Isso foi demonstrado nesse movimento de continentalização em relação à China. Haverá petições ou algumas questões, algo natural desse processo que já é esperado, pois haverá mudanças mais definitivas, mas não vejo problemas graves como aconteceu em Hong Kong. As pessoas em Macau mantiveram a estabilidade, não houve mudanças bruscas ao longo desse período. Estas continuam a identificar-se como chineses ou macaenses e são identidades que continuam a conviver em harmonia. A esperança é que a China continue a promover uma assimilação contínua para que se chegue a 2049 e não haja conflitos tão grandes. [Em relação ao futuro], a região da Grande Baía pode ser um ponto interessante para promover uma maior interacção nas relações entre o Brasil e Portugal com a China, nesse triângulo. Em 2024 celebram-se os 50 anos da relação entre o Brasil e a China e está mais do que na hora de Portugal e o Brasil começarem a falar mais sobre o país, e do Brasil dar mais atenção ao Fórum Macau. Macau passa muito por essa relação e tem um potencial ainda intocado nesse triângulo.

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