João Santa-Rita, arquitecto | As cidades invisíveis

João Santa-Rita trouxe ao Albergue SCM a exposição “Desenhar para Revelar”. A mostra, que termina amanhã, tem como epicentro o conflito entre o edificado e espaços vazios em tecidos urbanos imaginados. O arquitecto e antigo colaborador de Manuel Vicente não crê no desaparecimento da arquitectura portuguesa de autor em Macau

 

“Desenhar para Revelar” contém desenhos feitos nos últimos cinco anos. Que mensagens transmitem estes esboços?

A exposição inaugurou primeiro em Lisboa. Não é uma exposição sobre Macau, mas ao mesmo tempo é, no sentido em que não se reporta a nenhuma cidade em particular, mas, ao mesmo tempo, a todas. Por isso mesmo foi concebida para ser itinerante. É uma forma de celebrar o que é a cidade e o que são as suas componentes do espaço público e construído. São desenhos que traduzem esse diálogo do conflito entre o edificado e o não edificado. Macau é, como todas as cidades, um lugar que tem espaços para serem vividos pelas pessoas e outros que estão envolvidos por edifícios. Os desenhos são também sobre o papel que os edifícios desempenham numa cidade, se são de acompanhamento ou se marcam determinados lugares. São desenhos que não são do foro do real. De alguma forma implicam alguma pesquisa.

Mas são imaginados, ficcionais?

Sim, são desenhos ficcionais. A primeira série de desenhos da exposição é quase uma série de reflexão ou elogios sobre a forma como os espaços públicos foram evoluindo na sua forma, desde a Roma antiga até aos nossos dias. É uma sequência de 12 desenhos.

Sobre o Novo Bairro de Macau em Hengqin. Decerto percebeu que a integração regional de Macau está em marcha… são fundamentais estes projectos?

Das quais que mais me surpreenderam em Macau face a 2019 foi aperceber-me da actual envolvente do território. Passou de um conjunto de ilhas despovoadas para uma grande ocupação e desenvolvimento. Macau já não é um território isolado, que apenas tinha uma companheira, Zhuhai, e que hoje tem um desenvolvimento que se propaga além daqueles limites. Percebi que já existe alguma vida, com deslocações, por exemplo. Imagino que isso também possa modificar a própria vida de Macau neste relacionamento.

Em termos de planeamento urbanístico, a época em que fez arquitectura em Macau era uma fase de plena experimentação?

Nessa altura, e reporto-me aos anos 80, Macau vivia muito à conta dos planos que se iam fazendo. Não havia um plano director, e as coisas, no coração da cidade, eram feitas mediante a gestão urbanística corrente, com as regras de construção. Havia os planos, mas iam crescendo por agregação. Sei que o plano director foi uma questão bastante debatida, e foi certamente um grande passo na transformação de Macau. É um plano mais orientador e abrangente do que a fase em que se ia desenvolvendo plano a plano, sem nunca existir uma visão estratégica sobre o território. Planeava-se conforme as necessidades, mas não havia uma ideia conjunta de como o território se iria desenvolver ou relacionar com os territórios envolventes. Se pensarmos na dinâmica que têm estas áreas, em que as coisas se desenvolvem num instante, é fundamental ter essa visão abrangente sobre um território.

Considera que surgiram erros, difíceis de colmatar, saídos desse panorama?

Não lhe sei bem dizer, porque Macau, no período em que lá vivi, a ocupação [dos solos] era muito centrada no que já estava construído, nomeadamente a zona do ZAPE, pois não havia ainda sequer o NAPE. A zona desenvolvida terminava sensivelmente no Hotel Lisboa. Havia umas coisas dispersas na Taipa, umas torres onde habitavam muitos professores, funcionários do Governo e de outras instituições, e pouco mais do que isso. Creio que esse tipo de gestão não terá sido danoso para o território. Já apanhei o final do período em que estavam a ser planeados alguns projectos, mas não a sua implementação. Quando regresso a Macau, quase 20 anos depois, já estava muita coisa transformada, então não tenho a visão do que possa ter corrido melhor ou pior nessa altura.

Trabalhou com Manuel Vicente. Foi uma boa experiência, o que mais aprendeu com ele?

É difícil dizer que não se aprendeu nada com ele. Aprende-se sempre muito. Já tinha uma relação forte com ele, sobretudo porque o meu pai e Manuel Vicente partilharam trabalho durante muitos anos, num atelier conjunto. Não era alguém que me fosse estranho, mas era alguém com quem tinha muita vontade de trabalhar. Foi logo muito surpreendente a escala do que se fazia, que era completamente distinta de Portugal, muito maior. Manipulávamos programas e projectos completamente distintos, edifícios de escritórios, grandes edifícios de habitação. Em Lisboa experimentava trabalhar em projectos de edifícios com quatro ou cinco andares, mas quando cheguei a Macau trabalhámos logo um edifício com 17 andares, o World Trade Center. De alguma forma variava a própria velocidade com que era necessário que as coisas ocorressem em Macau. Em Portugal, os projectos podiam ser feitos no prazo de um ano ou dois, mas em Macau aquilo acontecia em dois ou três meses. Isso obrigava a uma forma de trabalhar e pensar o projecto muito distinta, a definir estratégias particulares para cada um e depois desenvolvê-las, sempre num processo muito participativo. Isso foi o que gostei em Macau e no atelier de Manuel Vicente. O seu imaginário tinha muito a ver com a experiência de vida e vivências no território, e isso era muito gratificante.

Considera que depois da transição as autoridades deram maior atenção à preservação do património do que nos anos 80?

A forte identidade de Macau sempre dependeu muito disso, da preservação de muitos traços do seu passado e da sua ocupação em diversos momentos. Aí reside a diferença, pois não se trata apenas de um território novo, tem um passado. A forma como o património foi protegido e tratado foi fundamental. Eram coisas que no final da minha estadia, quer da parte do Instituto Cultural ou de outras entidades do Governo começavam a ser abordadas, além de todo o trabalho de protecção que tinha sido feito no passado. Começava-se a fazer a ocupação desse património. Quando saí de Macau estavam em curso algumas obras como a biblioteca [no Tap Seac], o Arquivo Histórico, o edifício Ritz no Leal Senado. Aí já se ocupavam edifícios antigos para revitalização e abandonava-se a ideia de construir de novo. O bairro de São Lázaro, onde precisamente está a minha exposição (no Albergue SCM), é uma zona que foi preservada no seu todo, com partes mais ou menos vividas e ocupadas.

A arquitectura de Macau feita por profissionais portugueses tem vindo a desaparecer um pouco. Há o risco de desaparecimento dessa arquitectura de autor em língua portuguesa?

Quando estive em Macau qualquer obra sobressaía, porque o território era muito mais pequeno. Quando saí de Macau estava a começar a construção do edifício de Manuel Vicente junto à praça Lobo D’Ávila. Tinha evidência porque sobressaía na Macau da altura, e havia projectos de colegas que também tinham impacto, e destaco o do Banco Nacional Ultramarino. Sei que há colegas que continuam a actividade, que está mais espalhada e mais escondida, por tudo o que se passa à volta. É uma situação diferente, porque na altura só praticamente quem estava no território é que trabalhava aqui, havia poucos trabalhos que vinham do exterior, e hoje em dia há uma enorme pulverização dos gabinetes que trabalham em Macau. A escala, sobretudo, é outra. Há muitos arquitectos que estão mais ligados às empresas dos casinos, haverá certamente menos gabinetes a trabalhar, mas penso que haverá sempre a possibilidade de trabalho para os arquitectos radicados no território, não só da parte dos que cá estão há mais tempo, mas também da parte de jovens arquitectos. O Metro Ligeiro foi uma oportunidade, por exemplo, para alguns desses gabinetes terem intervenção. O World Trade Center, que foi um edifício marcante em Macau, hoje em dia está completamente diluído, por exemplo. Está escondido. Deixou de ter essa marca.

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