Nuno Fontarra, arquitecto responsável pelo projecto da nova Biblioteca Central: “Será um disseminador físico de cultura”

O arquitecto português, do atelier holandês Mecanoo, é o responsável principal pelo projecto da Biblioteca Central, no edifício do antigo Hotel Estoril. Nuno Fontarra fala de um espaço que será multifacetado, com uma função social e de ligação à praça do Tap Siac. Grande parte do edifício será demolido, colocando-se a possibilidade de pavimentar a avenida de Sidónio Pais

 

Ficou surpreendido por vencer este concurso?

Não. Fizemos o projecto de concepção de design em Agosto do ano passado e sempre tivemos boas relações com o Governo de Macau. Eles aceitaram bastante bem o projecto e sabem que uma das nossas mais valias são as bibliotecas, temos várias construídas em todo o mundo. A única coisa que nos surpreendeu é que a concorrência era bastante alta, havia dois escritórios Pritzker, um suíço e um irlandês. Consideramos que fizemos um bom projecto por isso não nos surpreende.

Quando olharam pela primeira vez para o edifício do antigo Hotel Estoril, pensaram de imediato que seria um desafio para o vosso atelier?

Quando nos chegou o pedido do Governo para fazer o edifício, só tínhamos uma fotografia frontal do edifício. Não o tinha visto pessoalmente. Parecia muito interessante trabalhar com ele.

Do ponto de vista histórico também?

Sim, e o edifício tinha um carácter interessante. Mas quando vimos em detalhe percebemos que era completamente impossível [mantê-lo], porque os pés direitos são muito baixos, a estrutura não está em condições. O alçado fica para que a memória do edifício se mantenha, e o grande mural. Decidimos que estaria melhor lá dentro do que no alçado exterior. Lá dentro tem mais condições para se manter mais tempo, para que não se deteriore tão depressa. E também pode ser interessante no átrio, que vai ser bastante alto. Será sempre visível do exterior.

Desde o início deitar fora o mural não era uma opção.

Nunca foi uma hipótese. Podia mudar, mas o mural tinha de ser mantido. A segunda hipótese era ficar no alçado do edifício, mas assim que se demolir o edifício por detrás será quase impossível manter o alçado porque não tem muita qualidade. Como é de betão achamos melhor refazer o alçado com um material parecido, modernizando-o.

Grande parte do edifício será, portanto, demolido.

Exacto. Essa foi uma das decisões que se tomou logo no início. Por exemplo, a parte detrás do edifício é completamente irrecuperável, está num nível que não é compatível com uma biblioteca. Os pés direitos não têm mais do que 2,7 metros, é quase habitação.

A presidente do Instituto Cultural disse que o vosso edifício irá “ultrapassar a imaginação do público em relação às bibliotecas tradicionais”. De que forma é que pretendem marcar a diferença em relação ao conceito de biblioteca como o conhecemos?

Trabalhamos com bibliotecas há cerca de dez anos. Um dos projectos mais famosos é em Delft, onde está o nosso escritório, que é uma biblioteca da universidade. É bastante diferente de uma biblioteca pública. Depois fizemos a biblioteca de Birmingham que está numa condição parecida com esta, numa praça principal. [Tínhamos a ideia de] bibliotecas muito silenciosas, um local que não é dinâmico e que só oferece livros. A ideia é que esta biblioteca se integre com a vida da praça o mais possível e que não tenha apenas livros, mas onde se possa ver um filme ou ir a uma conferência. Se decidir só tomar um café, será um bom café. Chamamos de “live Internet”, em que a pessoa vai ver uma coisa, mas tem outras expostas. E será sobretudo um disseminador físico de cultura. As bibliotecas, sobretudo nos países nórdicos [da Europa] servem também o público.

Macau é um território na Ásia, mas com a presença da cultura portuguesa. Pretendem trazer essa modernidade da Europa, uma nova visão da arquitectura?

Não é tanto a arquitectura que impacta. O que vai impactar é a função da biblioteca. Isso passa-se não apenas nos países nórdicos, mas no Japão, por exemplo. As bibliotecas mudaram um bocado. Quando há problemas sociais, de isolamento, as bibliotecas passaram a ter um comportamento social pró-activo. Havia o bibliotecário atrás da sua secretária, só. Aqui a biblioteca em Delft, devido aos seus funcionários, foi considerada a melhor do mundo durante vários anos. Porque são funcionários muito diversificados, pessoas que vieram da rádio, da televisão. É um grupo muito dinâmico, com muitos voluntários. Esse é um comportamento social e a arquitectura apenas ajuda a fazer isso. A equipa tem de ser treinada e já percebi, pelas pessoas com quem tenho falado para este projecto, que são pessoas jovens e dinâmicas. Se lhe dermos a arquitectura certa podem tirar partido disso.

A praça do Tap Siac, com a calçada portuguesa, também vos inspirou?

Sim. Uma das coisas que nos interessava é que o edifício conferisse coerência a toda a praça, algo que o edifício do Hotel Estoril já fazia. Não queríamos mudar muito isso. Um dos problemas que temos neste momento, e que é difícil de resolver, é que há uma rua que passa entre a biblioteca e a praça [avenida Sidónio Pais] que corta um pouco essa possibilidade de relação com a praça. Seria melhor que se pavimentasse toda a rua, algo que talvez se possa propor nos próximos estudos que vamos fazer.

Além do mural, o vosso projecto também tem outros elementos históricos, como um mosaico.

E com o desenvolvimento do projecto ainda poderemos preservar mais. Queremos que haja um diálogo entre um edifício antigo e moderno. Tem de se contar uma história também, e quantos mais bocadinhos da memória do Hotel Estoril conseguirmos recuperar, melhor.

Este projecto esteve envolvido em várias polémicas, incluindo a retirada de um convite a Siza Vieira, ou as críticas face à pouca participação de arquitectos locais. Quer comentar?

Ainda falta discutir esses detalhes com o Governo, mas a nossa equipa terá arquitectos locais. Trabalhamos sempre com locais fora da Holanda, precisamos do know-how do arquitecto local. Falta também discutir a equipa de engenharia. Está totalmente assegurada a participação dos locais. Alguns arquitectos já têm uma certa idade e não estavam interessados em trabalhar connosco, já estão cansados de fazer este tipo de trabalho. Temos contactos com gente mais jovem.

Falamos do arquitecto Carlos Marreiros, por exemplo, que viu o seu projecto ser anulado pelo Governo?

Não. Temos contacto com ele, mas o arquitecto não está na equipa. Os detalhes da equipa ainda estão sob avaliação do Governo de Macau, mas [a participação de Carlos Marreiros] está fora de hipótese. Só temos contacto a nível pessoal.

O orçamento é de 500 milhões de patacas. Espera que possa ser mantido?

Sim, apesar de nos ter surpreendido o custo da construção em Macau. São valores mais altos do que na Holanda. Estamos a fazer a biblioteca de Nova Iorque e os valores são quase comparáveis, e é talvez o sítio do mundo onde é mais caro construir. Não entendemos bem porque é que isto acontece em Macau. Estamos habituados a trabalhar na China onde os custos de construção não são tão altos. Temos projectos em Shenzhen e os custos não são tão disparatados.

10 Mar 2021

Christiana Ieong, dirigente do Zonta Clube de Macau: “Aborto é questão social que precisa ser discutida” 

Por ocasião do Dia Internacional da Mulher, que hoje se celebra, a presidente da assembleia-geral do Zonta Clube de Macau diz que gostaria de ver mais mulheres na política, mas que cabe ao Governo liderar esse processo. Christiana Ieong defende a despenalização do aborto para assegurar o acesso das mulheres aos cuidados de saúde e o seu poder de decisão. Sobre a violência doméstica, a responsável alerta para a baixa taxa de condenações

 

Como está a correr a SMART Nursery desde a abertura? Com a pandemia, que estratégias foram implementadas em termos de gestão?

Estamos muito gratos por este projecto porque podemos fazer algo de forma directa para as mulheres e crianças. Temos muita sorte e sobretudo no que diz respeito às crianças, cada vez que falamos com os pais vemos que todos estão agradecidos pelo trabalho que fazemos. Em termos das operações, depois do lançamento em Setembro de 2019, mas não muito depois, fomos atingidos pela pandemia. Este foi o maior desafio mas não apenas para nós. E gerimo-lo bem. Estivemos fechados durante quatro meses e nesse período aproveitei para pensar na gestão da creche. Com esta nova equipa avançamos muito em pouco tempo e esse foi o lado bom da pandemia. Tornámo-nos uma das mais populares creches em Macau, por isso estamos no caminho certo. Compreendemos o que faltava ao mercado e criamos um produto novo, focado nas famílias mais jovens, por isso não estamos a competir com as creches tradicionais, que funcionam há mais de 30 anos e que fazem um excelente trabalho. Incorporamos novos elementos educativos, damos liberdade e um programa estruturados. As crianças podem brincar, criamos um ambiente que estimula a exploração.

O Dia Internacional da Mulher celebra-se hoje. Vê algumas mudanças na sociedade de Macau ao nível da igualdade e no acesso das mulheres a cargos de topo, nomeadamente na política?

O Chefe do Executivo expressou as suas preocupações sobre a igualdade de género e acredito que vai fazer alguma coisa em relação a isso. Acredito nas suas palavras porque ele é um homem de honra, e o que ele diz e o que vê ele faz, e faz da forma correcta. Reconhece o problema. Mas a questão é que quando nos referimos à igualdade e ao empoderamento das mulheres, olhamos para os centros de poder e quem está lá? Na Assembleia Legislativa há poucas mulheres e até temos uma a menos [Melinda Chan, que não foi reeleita nas últimas eleições], e nunca concordei com isso. Mesmo os deputados nomeados são quase todos homens. No Conselho Executivo também não há muitas mulheres. Se o Chefe do Executivo abordou esta questão acredito que vai fazer alguma coisa. E mesmo nas eleições por sufrágio directo nunca vimos muitas mulheres a participar, e também por sufrágio indirecto.

Porquê esta pouca participação na política?

O Governo tem de estar na liderança em relação a este assunto, porque não é algo que aconteça já amanhã. Isto exige muita determinação, então se o Chefe do Executivo fez menção a este assunto é porque vai fazer algo. Ele é muito competente e tem uma forma de o fazer [promover a igualdade de género]. Veremos o que acontece nas próximas eleições. Mas as mulheres também precisam de se mostrar mais.

O facto de poucas mulheres participarem nestas áreas é também um problema social.

Sim. Precisamos de nos mostrar e aproveitar as oportunidades quando elas aparecem, sair da nossa zona de conforto.

A pandemia afectou o papel da mulher na sociedade, a nível laboral e também familiar? Os problemas que já existiam tornaram-se mais evidentes?

A gestão da pandemia tem corrido bem em Macau comparando com outros territórios. Mas o efeito secundário é sobretudo emocional, porque muitas crianças ficaram fechadas em casa sem escola e isso atingiu mais as mulheres, porque têm ocupado o papel central no cuidado dos filhos e da família, sobretudo as mães que trabalham. A lei laboral não nos ajuda muito porque torna a nossa vida difícil. É complicado contratar empregadas domésticas, e isso revela que quando estavam a legislar não houve muitas opiniões de mulheres, dadas as desvantagens que a lei tem para o nosso lado. O Governo tem de pensar em ter mais mulheres no hemiciclo para nos representar. É uma lei difícil e que não é prática. Como vou contratar alguém de fora, em regime interno, um completo estranho, através de uma entrevista online? No caso de uma ausência prolongada da empregada temos de contratar uma substituta, e isso causa muita pressão às mulheres, afectando o desenvolvimento da sua carreira.

As mulheres migrantes estão numa situação mais frágil em relação à protecção dos seus direitos, em comparação com as mulheres locais?

Os seus problemas são muito diferentes dos vividos pelas mulheres locais ou expatriadas. Em termos económicos falamos de níveis sociais diferentes. Não posso falar muito sobre esse assunto porque não se pode generalizar.

Se o Governo melhorasse os salários destas trabalhadoras, estas poderiam estar num nível sócio-económico diferente.

Penso que isso já foi feito, com o aumento do salário mínimo. É algo que está em progresso, está a melhorar.

Que comentário faz ao trabalho da Comissão para os Assuntos das Mulheres e Crianças?

Penso que fizeram um bom trabalho no geral, porque construíram o enquadramento para a garantia dos direitos das mulheres e crianças. Mas dentro da comissão há dois grupos pequenos, um para os direitos das mulheres e outro para os direitos das crianças, e são liderados por homens. Falamos da necessidade de dar mais oportunidades às mulheres, mas isso não acontece dentro desta comissão.

Sobre a lei da violência doméstica. O Governo deveria avançar para uma revisão?

A taxa de acusações ou de condenações continua a ser muito baixa. É preciso uma maior consciência. A minha preocupação reside na forma como a lei é implementada. É preciso sensibilidade para com as vítimas que têm de viver com este trauma. Será que as autoridades têm experiência suficiente, e formação, para tratar devidamente destes casos?

É necessária uma nova mentalidade em relação à violência doméstica?

Sim, e também para reportar estes casos as vítimas têm de confiar nas autoridades. Se não houver consequências para os que cometem o crime, porque é que as vítimas vão denunciar os casos? É necessária essa confiança. Há também a preocupação do aumento dos casos com o prolongamento da pandemia. Haverá um maior stress financeiro devido aos casos de desemprego e conflitos familiares pelo facto de as pessoas estarem em casa.

Há muitas associações tradicionais em Macau que têm uma visão mais tradicional do papel da mulher. É preciso mudar isso, uma vez que essa visão acaba por influenciar as novas gerações?

Sim, sem dúvida. Em tudo. Há uma forma de mudar para melhor e para o amanhã. Quem achar que é perfeito tem um problema. Temos de nos juntar para mudar a sociedade. As associações como a Associação Geral das Mulheres ou a União das Associações de Moradores têm feito coisas boas por Macau há várias décadas. Deve ser feito um reconhecimento ao seu trabalho. Mas há novas questões sociais de diferentes segmentos da sociedade e o Zonta Clube de Macau está aqui para fazer o seu trabalho também. Há coisas que não podemos fazer sozinhos e temos de fazer esse trabalho em conjunto.

Há novos assuntos relacionados com as mulheres que precisam de ser abordados? A despenalização do aborto, por exemplo?

Não sou anti-aborto ou pró-aborto. Mas olho para isso como uma questão social que precisa de ser discutida e com a qual temos de lidar. Todas as mulheres deveriam ter acesso a cuidados médicos em todas as alturas. E as mulheres têm o direito de decidir o que fazer com os seus corpos. Isto é básico. Então apostemos na legalização.

8 Mar 2021

Kishore Mahbubani diz que Joe Biden está “de mãos atadas” devido à crescente hostilidade de Washington face à China

A crescente hostilidade da classe política norte-americana face à China vai “atar as mãos” do Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, na relação com Pequim, previu à Lusa um proeminente diplomata e autor de Singapura.

“Acho que é bastante claro que Joe Biden vai ter uma tarefa sinuosa”, afirmou Kishore Mahbubani, autor do livro “A China Já Ganhou?”. “Há um consenso anti-China muito forte em Washington”, apontou. “Os republicanos vão destruí-lo caso ele seja brando com a China (…), mas, por outro lado, penso que ele vai ter uma química muito boa com [o Presidente chinês], Xi Jinping”, acrescentou.

Investigador do Instituto de Pesquisa sobre a Ásia, na Universidade Nacional de Singapura, Mahbubani foi durante mais de 30 anos diplomata, tendo assumido a presidência do Conselho de Segurança das Nações Unidas entre 2001 e 2002. O autor considerou que a política de confrontação adoptada pelo anterior governo norte-americano de Donald Trump não conseguiu conter a ascensão do país asiático.

“O resultado, após quatro anos, é uma China mais forte e uma América mais fraca”, resumiu.
E, embora tenha parado com ataques retóricos e anúncios quase diários de novas sanções contra a China, a administração de Joe Biden ainda não anulou nenhuma das medidas do executivo anterior.

“Graves erros”

Mahbubani advertiu, porém, que os EUA estão a cometer “graves erros estratégicos” e a “subestimar” a China, ao avaliar o país de uma “perspetiva ideológica”. “Isto não é uma disputa entre uma democracia dinâmica nos Estados Unidos e um sistema comunista rígido na China”, apontou. “Na verdade, os EUA tornaram-se uma plutocracia e a China uma meritocracia.”

O autor lembrou que o Partido Comunista Chinês “recruta para os seus quadros as melhores mentes da China”, enquanto as doações privadas desvirtuaram o sistema político norte-americano, ao constituírem um “suborno legalizado”, que impede a execução de reformas e retira influência ao voto popular.

Mahbubani notou que o Ocidente – em particular, os Estados Unidos – tem vindo a cometer “erros estratégicos” que permitiram a ascensão da China. “A guerra no Iraque foi um presente geopolítico para a China: durante a década que a China mais cresceu, os EUA estiveram atolados a travar uma guerra completamente desnecessária.” “O mundo está a tornar-se multicivilizacional, onde a civilização ocidental não tem mais o monopólio, seja em termos de inteligência, conhecimento ou superioridade moral”, descreveu. “É um mundo muito, muito diferente”.

A adaptação do Ocidente

O Ocidente vai ter de adaptar-se a um mundo onde não é mais a força dominante, defendeu Kishore Mabubani, observando que os últimos 200 anos foram uma “aberração” histórica. “O Ocidente tem que parar de ser arrogante e começar a ouvir também.”

“O Ocidente há muito tempo habitou-se a que o resto do mundo se adapte à sua visão, sem ter que esforçar-se por se adaptar a outros contextos”, acrescentou. Mahbubani argumentou que a ascensão de países como a China e a Índia significam que Estados Unidos e Europa não são mais a força dominante na política mundial, e que devem agora aprender a compartilhar, ou até mesmo abandonar, a sua posição hegemónica.

“Até 1820, as duas maiores economias do mundo eram a China e a Índia”, observou. “O facto mais importante é que os últimos 200 anos de dominação ocidental constituem uma aberração histórica”.

“No século XIX, a Europa dominou o mundo, no século XX, os EUA dominaram o mundo. Muitos nos Estados Unidos e na Europa presumem que este é o estado natural das coisas e desejam que o seu domínio se prolongue no século XXI”, disse.

“No entanto, todas as aberrações têm um fim natural”, acrescentou, vincando que “a ascensão da Ásia é natural e teria que acontecer algum dia”. Em paridade de poder de compra, a China é já a maior economia do mundo, seguida pelos Estados Unidos. Japão e Índia ocupam o terceiro e o quarto lugar, respetivamente.

Mahbubani notou que o Ocidente – em particular, os Estados Unidos – tem vindo a cometer “erros estratégicos”, incluindo “guerras desnecessárias” no Médio Oriente. A crise financeira de 2008, causada por hipotecas de alto risco do mercado imobiliário, constituiu outra falha de governação.

Desde então, enquanto as economias desenvolvidas estagnaram, a China construiu a maior rede ferroviária de alta velocidade do mundo, mais de oitenta aeroportos ou dezenas de cidades de raiz, alargando a classe média chinesa em centenas de milhões de pessoas.

A pandemia de covid-19, que causou quase 1,5 milhão de mortos nos Estados Unidos e Europa, em contraste com o leste da Ásia, onde a maioria dos países conseguiu suprimir a doença nos primeiros meses, constitui outro exemplo de um Ocidente em declínio, apontou.

Os países ocidentais devem preparar assim as próximas gerações para diferentes escolas de filosofia e aprofundar os seus conhecimentos sobre a História e valores da Ásia, onde vivem hoje cerca de dois terços da população mundial.

“Devemos aprender a entender como pessoas de outras civilizações sentem, agem e pensam”, afirmou. “Os chineses entendem os sistemas e a forma de pensar ocidentais, mas o Ocidente desconhece a cultura, História e processos de pensamento chineses”, descreveu.

7 Mar 2021

Novo Reitor da Universidade Cidade de Macau: “O nosso objectivo é servir os estudantes de Macau”

Desde o início do mês aos comandos da instituição, Jun Liu pretende fazer crescer o número de alunos além dos actuais 6 mil, nos próximos anos, e o caminho passa pela aposta na Grande Baía, vista como uma grande oportunidade. O novo reitor promete também reforçar a aposta no português

 

 

Assumiu a posição no início deste mês, após quase 30 anos nos Estados Unidos. Como se está a adaptar?

Cheguei a Macau há menos de duas semanas e estou a instalar-me. Já tinha estado por cá muitas vezes no passado, por isso não é um lugar estranho. Estou a sentir-me bastante bem.

Que motivos o levaram a aceitar o convite da universidade e vir para Macau?

Sinto que é um momento entusiasmante para regressar à China com o projecto da Grande Baía. Escolhi regressar por Macau porque é um local muito característico, não é igual ao Interior e não é Hong Kong, é Macau. É um misto único das culturas portuguesa e chinesa, cantonense entre outras.

Mas não veio para uma posição qualquer…

É uma posição muito apelativa, porque me permite liderar uma universidade que tem por bases as Letras e as Humanidades. Na minha perspectiva é a altura perfeita para a posição perfeita. Vou poder usar o que aprendi e vivi e, num contexto mais amplo, contribuir para Macau, a Grande Baía e a China.

Quais vão ser as prioridades da Universidade Cidade de Macau para os próximos anos?

As áreas que vão ser mais desenvolvidas são as Humanidades e as Ciências Sociais, apoiadas pela vertente tecnológica, porque são as fundações desta universidade, ao contrário do que acontece com outras instituições. Por exemplo, a Universidade de Macau é mais abrangente, a Universidade de Ciência e Tecnologia é mais focada as Ciências e Medicina. A Universidade Cidade de Macau tem raízes nas Humanidades, Ciências Sociais e na comunicação intercultural, como com Portugal, os países de língua portuguesa, ou com os Estados Unidos, Austrália, Reino Unido e até a América do Sul, como é o caso do Brasil. Queremos aproveitar estas bases para desenvolver novas disciplinas e formar os quadros necessários para Macau e o mercado para os próximos 5 a 10 anos.

Que posições são essas?

Acreditamos que as profissões do futuro, dos próximos 10 anos, ainda não foram criadas. Por isso, precisamos de analisar bem o que vai ser necessário e começar a estudar antes do tempo, para que daqui a 5 a 10 anos, os alunos formados na Universidade Cidade de Macau tenham sempre muitas ofertas de trabalho e sejam procurados pelo mercado.

Falou das ligações com os países de língua portuguesa. A instituição oferece cursos nessa área. O futuro passa por uma expansão?

O multiculturalismo é um valor essencial para desenvolver os novos cursos, por isso esperamos aproveitar as vantagens culturais de Macau e trabalhar com os países de língua portuguesa. Neste momento, temos um instituto de investigação para os países de língua portuguesa. E queremos não só consolidar esse instituto mas colaborar com os próprios países, não só a nível da investigação, mas também em termos das oportunidades de mercado para os quadros formados.

Quer isso dizer que vai haver um reforço na aposta destes cursos?

O caminho passa não só consolidar, mas reforçar a aposta na língua portuguesa, aproveitando as vantagens da cultura de Macau. Vamos também estudar muito bem as possibilidades desta vantagem. Os nossos cursos não se limitam a estudar a língua, são compreensivos, multidisciplinares, e é isso que vai ser uma vantagem para nós. Também nesse sentido, sinto que uma das coisas que quero fazer é visitar Portugal e os países de língua portuguesa.

Qual é o impacto da covid-19 nas finanças da universidade?

Somos uma universidade sustentável. Sabemos que temos de diversificar as fontes das nossas receitas, o que queremos fazer com o aumento das parcerias a nível empresarial e esperamos continuar a contar com o apoio do subsídio do Governo. Não encaro as finanças como uma preocupação, porque se a qualidade do ensino estiver presente a universidade vai sempre atrair alunos e isso garante que não há essas preocupações. Por isso, o nosso caminho passa por expandir e fazer crescer o número de estudantes. Temos 6 mil estudantes e esperamos expandir para 8 mil ou 10 mil.

E o crescimento dos alunos vai ser feito com alunos do Interior e do estrangeiro?

O nosso objectivo principal é servir os estudantes de Macau, que têm várias escolhas no território. Mas, Macau tem uma limitação relacionada com a dimensão da população, por isso a nossa segunda prioridade vai ser o Interior. E não ficamos por aqui, gostávamos de aumentar também o número de alunos fora da China.

O que é preciso para atrair mais alunos internacionais?

A única forma de atrai-los é, de forma gradual, melhorar os nosso cursos que são leccionados em inglês, porque de outra forma é demasiado difícil para os alunos internacionais aprenderem. Tenho um percurso como líder no sector da educação na língua inglesa e por isso quero desenvolver um ambiente onde todos os alunos vão ter oportunidades para melhorar, falar e compreender o inglês como língua global.

Nesse esforço vai também haver maior aposta na qualidade do ensino e investigação?

Precisamos de aumentar o número de investigadores e criar novos cursos. Vamos pensar em outras formas de tornar a universidade mais atractiva, como bolsas de estudo e investigação, criação de melhores condições para que os professores consigam apoios e possam contratar alunos como assistentes, que é uma forma de aprendizagem pela experiência. Todas estas formas diferentes vão fazer da instituição mais atraente para os estudantes.

Tem como objectivo aumentar o número de estudantes dos países de língua portuguesa?

Sim, queremos atrair mais estudantes internacionais. Mas, para tornar a universidade verdadeiramente internacional temos de nos focar na língua. Estamos abertos a receber estudantes de todo o mundo, e particularmente de Portugal e da Europa. Neste momento temos estudantes de África.

Como pensa fazer o número de alunos crescer e quantos pretendem de fora de Macau e do Interior?

O nosso objectivo prioritário é servir os estudantes de Macau, que têm várias escolhas. Uma delas é a universidade pública, a Universidade de Macau, que tem uma certa percentagem de alunos de Macau. Mas Macau tem uma limitação no número de população, por isso vamos olhar para o Interior, como segunda prioridade. Mas além dos estudantes de Macau e do Interior, quero uma maior representatividade de regiões e continentes.

Quando os alunos escolhem as universidades a que se querem candidatar é inegável que os rankings mundiais têm sempre uma influência no processo. Há o objectivo de dar maior destaque à Universidade Cidade de Macau?

Concordo que os rankings influenciam o número de candidaturas às universidades. E tendo trabalhado mais de 20 anos nos Estados Unidos, em diferentes institutos de investigação, tenho consciência da importância dos rankings. As escolas da Liga Ivy estão sempre entre os cinco ou dez primeiros lugares dos rankings mundiais, na China destacam-se a Universidade de Tsinghua e a Universidade de Pequim, mesmo na Grande Baía a Universidade de Hong Kong é uma referência. Considero que os rankings são importantes, mas não é o único aspecto que vamos considerar.

Isso que dizer…

Pode olhar-se para os critérios dos rankings, que até variam de ranking para ranking, e trabalhar-se especificamente para satisfazer os critérios e ir subindo na classificação. Só que essa estratégia ignora outras vertentes da educação que são muito importante. Os lugares no ranking têm de ser o resultado do esforço na melhoria do ensino e da investigação.

É formado nas Ciências Sociais, por isso, pergunto-lhe como encara a liberdade académica?

É um assunto muito importante e queremos encorajar as pessoas a fazerem-se ouvir. Vamos ter discussões abertas sobre os assuntos controversos e vamos respeitar as pessoas e ouvir as ideias com que podem contribuir para a sociedade. Mas, como uma universidade vamos guiar os académicos em certos assuntos para terem discussões mais eficazes, vamos orientar as nossas discussões para a resolução de problemas.

O patriotismo é um valor chave da Cidade Universidade de Macau?

Sim, o patriotismo e a lealdade à comunidade local. O patriotismo faz parte da natureza das pessoas e acredito que é um valor essencial.

 

Chan Meng Kam? “Fazemos uma equipa muito boa”

A Universidade Cidade de Macau tem como presidente o empresário e político Chan Meng Kam, e Jun Liu admite que esta foi umas das razões que o levaram a aceitar o cargo de reitor na instituição.

“Chan Meng Kam foi uma das razões que fizeram com que aceitasse esta posição. Sinto que ele tem uma grande paixão pelo sector da educação”, começou por explicar Liu. “Ele é um empresário e não finge que sabe muito sobre educação. Foi uma pessoa muito honesta e directa, disse-me que apesar de não perceber muito sobre o sector da educação, que é uma área pela qual tem uma grande paixão. Gostei muito desta honestidade”, revelou. “Senti que apesar da juventude dele não ter sido muito ligada ao ensino, ele tem como objectivo fazer com que as próximas gerações possam beneficiar do ensino. É algo nobre”, acrescentou.

Para que o convite de regressar dos Estados Unidos e liderar a Cidade Universidade de Macau fosse aceite, Jun Liu garantiu igualmente apoio do influente empresário, que no passado fez parte do Conselho do Executivo escolhido por Chui Sai On e é o responsável pela eleição de dois dos deputados do hemiciclo.

“Ele mostrou que me apoia muito para que eu possa tomar certas decisões. Esse apoio é fundamental. Por isso, acho que esta parceria se traduz numa situação com ganhos mútuos”, sustentou. “Tenho um grande respeito por ele e sei que ele conhece Macau muito bem e é muito respeitado e ouvido. É um aspecto importante e considero que fazemos uma equipa muito boa”, sublinhou.

 

Perfil

Cargos anteriores

Stony Brook University
Vice-Presidente e Vice-director para os Assuntos Globais;
Reitor dos Cursos Internacionais e Serviços;
Director-Fundador do Centro da China;

Georgia State University
Vice-director para Iniciativas Internacionais;
Director do Instituto Confúcio

University of Arizona
Vice-Presidente;
Chefe do Departamento de Inglês

Doutoramento
Educação em Línguas Estrangeiras e Secundárias na Ohio State University

(Fonte: Cidade Universidade de Macau)

5 Mar 2021

João Caetano, músico e fundador da Macau Records: “Macau é um hub de arte e cultura bastante bom”

Depois de lançar “Rythm of Fado”, em 2018, João Caetano, músico português residente em Londres, apostou na produção do primeiro trabalho discográfico de Maria Monte que marca o lançamento da Macau Records. A nova editora pretende ajudar músicos locais a ter uma carreira lá fora. Com raízes profundas em Macau, onde nasceu e cresceu, o músico fala da sua paixão pela cultura portuguesa e pela conexão entre o Fado e outros estilos musicais, algo que estará presente no seu próximo disco

 

Acabou de produzir o primeiro disco de Maria Monte, onde trabalhou com músicos de jazz conceituados.

Isto veio coincidir com o lançamento da editora Macau Records. Para já o foco é a editora, que tem o objectivo de trabalhar a carreira e as produções de artistas independentes que não tenham muita facilidade em manobrar… o mundo da música está tão diferente que é difícil para a maior parte dos músicos entender um bocado o que fazer face às plataformas digitais. São muitas e, no fundo, a ideia por detrás da Macau Records é focar a sua carreira e tentar desenvolvê-la focando-a na Ásia. A curto prazo o objectivo será exponenciar o alcance da música do EP da Maria Monte. Queremos criar esta ponte entre grandes músicos internacionais e artistas que tenham raízes e tradições portuguesas e também com Macau, que são as pessoas com quem eu tenho uma maior ligação neste momento.

Num mercado como o de Macau, que é pequeno, os desafios de começar com uma editora deste género devem ser muitos.

A grande questão que rodeia a indústria da música é onde focar a atenção dos artistas. O que devem fazer, onde e no que trabalhar. Hoje em dia um artista não é só um músico, tem de comunicar e tem de ter uma grande exposição nas redes sociais, e entender as plataformas digitais. Esse é o desafio. Estudámos as notas musicais mas não estudamos a forma como a música está a passar para um universo muito mais dinâmico.

Que comentário faz aos projectos musicais que têm surgido em Macau?

Há, obviamente, o circuito de Macau, que é uma cidade muito pequena. O meu objectivo para o desenvolvimento da música e produção é conseguir fazer esta ponte entre os talentos internacionais e o território de Macau. Quero trazer não só o nome de Macau para fora, daí o nome “Macau Records”, mas também trazer artistas de todo o mundo. Sei que há festivais em Macau que são muito importantes para as várias culturas que aí existem, e é importante não nos esquecermos desta parte. É importante que estes eventos não se percam, como o Festival da Lusofonia, ou o Fringe. Macau é um hub de arte e cultura bastante bom. A dificuldade é como se cultiva o talento em Macau para conseguir ser comunicado fora e fazer essa ponte para que haja projectos de música e arte em conjunto. Há muitos eventos em Macau de altíssima qualidade, mas como se exporta o talento de Macau?

Haverá projectos amadores, mas acredita que os artistas de Macau têm a qualidade e capacidade para transpor fronteiras?

Acredito que sim. Conheço músicos italianos em Macau e que se fossem mostrados e ouvidos cá fora e trabalhados no mercado internacional tenho a certeza de que seriam bem recebidos. Qual a grande mensagem que se pode dar a um artista hoje em dia? Perceber qual o nosso factor diferenciador do resto do mundo. E é aí que a Macau Records vai ser muito importante, no desenvolvimento do factor-x dos músicos e trabalhá-lo.

Depois do lançamento do EP da Maria Monte, já têm mais artistas em carteira?

Sim. Neste momento estamos em conversações com vários artistas que estão agora a lançar trabalhos, mas não posso avançar nomes. Há muito trabalho, e muito interessante, que está a ser falado. Acho que a Macau Records vai trazer novos nomes para o mercado da Ásia e internacional.

Como é deixar a faceta de músico para editar outros músicos?

O EP da Maria Monte, que despoletou o meu trabalho como produtor, foi feito à distância. O facto de perceber que é possível trabalhar em estúdios a partir de qualquer parte do mundo, e fazer este trabalho com pessoas com as quais nos identificamos, fez-me pensar que é possível ser uma ponte virtual independentemente do local onde os músicos se encontram. A minha faceta como produtor já existe há muitos anos porque sempre produzi as minhas coisas. Fui sempre muito acarinhado e motivado por grandes nomes da música em Portugal, como o Jorge Fernando, o Paulo Abreu de Lima, a Ana Moura. Este trabalho da Maria Monte vem com esse peso em cima dos ombros, da responsabilidade de criar uma voz que ainda não era conhecida. O meu papel como produtor esteve sempre mano a mano com o meu papel como músico. Quando toco e faço música estou sempre a pensar no produto final e na forma como é comunicado. A editora [Macau Records] foi perceber que não é preciso estar presente fisicamente nos sítios [para produzir música].

No fundo, a pandemia acabou por alterar a sua forma de olhar para o processo criativo da música.

Há menos limites. A pandemia forçou-nos a pensar na utilização das ferramentas que existem de uma forma mais profunda, porque as plataformas digitais sempre existiram. A maior parte dos músicos que conheço olha para estas plataformas de uma forma muito mais dinâmica.

O seu último álbum, “Rythm Fado”, foi lançado em 2018. Tem sido bem aceite pelo público?

O feedback tem sido muito positivo e estou a preparar o meu segundo álbum. Infelizmente o Paulo Abreu de Lima faleceu, ele era o escritor com quem trabalhava, mas vou continuar a usar os poemas do Paulo. O trabalho dele vai sempre estar presente na minha música. Esta minha exploração do ritmo do Fado, do ritmo português, e de poder pintar com ritmo a tradição do Fado… uma coisa que tem sido absolutamente importante para mim é a forma como fadistas e produtores em Portugal, as pessoas na música, têm comentado o meu trabalho e é isso que me dá força para continuar.

Este segundo álbum também pretende dar uma nova roupagem ao Fado ou às sonoridades mais tradicionais da música portuguesa?

Sim. O meu grande foco é este, é como pintar o Fado ritmicamente, misturando o jazz. O jazz, no fundo, é isto, é como eu olho para uma situação musical que está à minha frente e como vou abordá-la à minha maneira. Quanto mais competente for o músico mais profundo é o jazz. Esse é o meu grande objectivo no meu trabalho a solo. Sou uma pessoa com várias facetas, sou músico, produtor, sou comunicador. Gosto de viajar e tenho uma paixão imensa por tocar ao vivo, e no fundo é muito importante para mim poder sempre regressar às raízes. E regressar às raízes é Macau, por isso é que a editora se chama Macau Records. É um pêndulo que está sempre ali. Agora quero focar-me mais no álbum da Maria Monte, porque para já é importante fazer o pontapé de saída da Macau Records.

Porque é que as sonoridades tradicionais o preenchem mais?

A minha grande paixão pela cultura portuguesa vem não só da música que os meus pais ouviam mas também porque desde muito novo fiz parte do grupo de danças e cantares de Macau. A minha exploração da música folclórica e portuguesa veio sempre aliada à música que se ouve na rádio e os grandes lançamentos. Por isso é que gosto de integrar os elementos das minhas raízes culturais, enquanto pessoa, com a música que toda a gente ouve, a world music, o jazz, a pop. A minha paixão vem disso, de tentar unir estes dois lados.

O facto de ter crescido em Macau mudou-o e definiu-o como músico?

A grande influência para eu poder pensar internacionalmente na música vem do lado da minha mãe. Ela produziu e realizou imensos concertos em Macau para a TDM e tive sempre muito contacto com vários músicos do jazz e da música portuguesa. Creio que essa conexão que tinha fez com que eu não tivesse receio de sair de Macau e poder explorar o caminho cá fora. Não há apoio suficiente ainda em Macau para pessoas fazerem aquilo que eu fiz. Se o seio familiar não for muito forte não há canais suficientes de apoio para podermos perceber qual o espaço a dar para ter uma carreira de músico a nível mundial, e é aí que entra a Macau Records. Temos o know-how, os contactos, como fazer, as plataformas. É a diferença entre ser um músico local e um músico internacional. Era isso que faltava em Macau.

A pandemia fomentou a sua criatividade, ou aconteceu o oposto?

O álbum da Maria Monte foi uma experiência muito boa e positiva, porque fizemos um trabalho com músicos de todo o mundo. O importante é não perdermos a nossa chama e acreditarmos no nosso trabalho. Depois as plataformas aparecem. Tenho criado e focado em coisas que eram banais, como beber café e tomar banho de manhã. Essa beleza foi ampliada e isso ajuda à criatividade, à composição. Temos de acreditar que vamos voltar aos palcos e às viagens.

Pretende voltar a Macau em breve para um concerto?

Voltar a Macau está sempre nos planos, infelizmente este ano não consegui. Mas tenho a certeza de que quando os governos tiverem um plano mais esclarecedor em relação ao que fazer, tudo vai acontecer.

2 Mar 2021

Joshua Eisenman, analista: EUA sem estratégia para África além da rivalidade com a China

Entrevista de João Pimenta, da agência Lusa

 

O analista político Joshua Eisenman considera que a nova administração dos Estados Unidos vai continuar a secundarizar África na política externa norte-americana e a reduzir o continente a uma componente da crescente rivalidade com a China.

“Não existe uma política para África bem elaborada e independente, mas antes uma abordagem que é uma extensão da nossa política para a China”, disse o professor associado na Faculdade de Assuntos Globais Keough, na Universidade de Notre Dame, situada no estado norte-americano de Indiana. Em entrevista à agência Lusa, Eisenman previu que África vai continuar a ser “secundária” na diplomacia norte-americana, e isto numa altura em que a política externa não é uma prioridade para Washington.

“Neste período incrivelmente difícil em que estamos a lidar com [a pandemia do novo] coronavírus, interferências nas nossas eleições, a grande campanha de desinformação de Donald Trump e uma China cada vez mais agressiva, existirá alguma vontade de priorizar África na política externa dos EUA”, questiona.

Já a China põe “muito ênfase” na relação política com o continente africano, lembra Eisenman. Há mais de duas décadas que o ministro dos Negócios Estrangeiros chinês começa sempre o ano com uma viagem ao continente africano. Os líderes chineses recebem também regularmente os homólogos africanos em Pequim. “Quando foi a última vez que os EUA enviaram funcionários de alto nível a África por dois anos consecutivos, quanto mais durante 20 anos”, aponta Joshua Eisenman.

O analista acrescenta que Pequim prioriza a “construção de relacionamentos”. “A prioridade é construir relacionamentos que possam ser usados para servir os interesses do Partido [Comunista Chinês]. A China está a construir um reservatório de simpatia em África”, diz.

O crescente desequilíbrio na balança comercial entre o país asiático e o continente africano poderá gerar, no entanto, desafios políticos para Pequim.

A China é, desde 2009, o maior parceiro comercial de África, mas vários países africanos registam um crescente défice com o país asiático, que tende a acentuar-se, à medida que este procura novos fornecedores de petróleo ou minérios. Em 2008, a China importava quase um terço do petróleo de três países africanos – Angola, República do Congo e Sudão. Mas o interesse pelos fornecedores africanos tem caído. Só em Angola, as importações chinesas caíram 18% ao longo da última década.

Nos últimos anos, a China transferiu grande parte das suas compras de crude para a Arábia Saudita. As importações chinesas de petróleo bruto daquele país aumentaram quase 47%, em 2019, face ao ano anterior. O projecto de infra-estruturas internacional “uma faixa, uma rota”, lançado em 2013 pela China, permitiu também construir novos gasodutos e oleodutos para o Turquemenistão, Rússia e outros países geograficamente próximos da China.

“Pequim precisa ter muito cuidado: se continuar a registar défices comerciais com os países africanos, isso vai acabar por gerar problemas políticos”, considera Joshua Eisenman. “Se és um cidadão comum em Angola, podes ver que os teus mercados estão cheios de produtos e comerciantes chineses”, diz. “É algo muito tangível para as populações locais”.

O comércio entre China e África cresceu 2,2%, em 2019, para 208,7 mil milhões de dólares, segundo dados oficiais da Administração Geral de Alfândegas da China. As importações da China de África caíram 3,8%, para 95,5 mil milhões de dólares, enquanto as exportações aumentaram 7,9%, para 113,2 mil milhões de dólares.

8 Fev 2021

Zerbo Freire, poeta cabo-verdiano: “Cheguei a Macau com uma caderneta de poesias em crioulo”

“Visão, Direcção, Acção” é o primeiro livro do poeta cabo-verdiano Zerbo Freire. Nascido em Lém Cachorro, o autor veio para Macau estudar língua e cultura chinesas com uma bolsa de estudos e fez intercâmbio em Pequim. Depois de vir para Macau, Zerbo Freire passou dos receios que tinha em se expor para ver as coisas sob outro ângulo. A obra é uma publicação da cod e será apresentada por Carlos Morais José na segunda-feira pelas 18h30, na Fundação Rui Cunha

 

Como é que o Centro de Protecção Social de Lém Cachorro influenciou o teu desenvolvimento?

Para falar a verdade foi o momento mais crucial e importante até agora, até chegar aqui. Entrei nesse centro com seis anos, por causa de muitos problemas familiares socio-económicos. É uma casa a que devo muito respeito. De uma certa forma é um centro que contribuiu para o meu desenvolvimento não só pessoal, mas para dentro de mim, é uma coisa mesmo psicológica. Foi lá que comecei a tirar as mágoas, medos, choros. Vim de um bairro problemático, com muitos problemas sociais, e isso de uma certa forma acaba por influenciar a sua vivência, as suas coisas, a sua forma de pensar e estar também. Foi lá que comecei a aprender as coisas, que entrei na escola. Tive sempre aquele acompanhamento, iam ver como estavam as notas. De certa forma foi a casa que contribuiu para eu estar aqui hoje. Saí de lá com 18 anos. E quando saí de lá vim para Macau. É por isso que digo que é uma casa que esteve comigo até hoje.

Chegaste a frequentar o curso de Economia e Ciências Empresariais mas tiveste de o deixar por razões financeiras. Na altura como ficaram os teus planos académicos?

É uma coisa que nos deixa um bocadinho por baixo. Eu já tinha planos de fazer o curso de Economia, porque sempre foi um sonho. Quando se vê que não se pode fazer porque não se tem certas condições financeiras isso acaba por abalar. A única forma de superar isso foi vir para Macau. Vir para Macau foi uma forma de esquecer esse fracasso. Não foi só um fracasso da minha parte mas também foi um fracasso no sentido em que as coisas foram superiores a mim. Não podia fazer mais nada a não ser aceitar e caminhar, fazer as coisas.

Foi de certa forma um fracasso da sociedade… ficaste zangado? Como encaraste a situação?

Um bocadinho. Quando vi que as condições não estavam a dar certo para fazer o curso, a única solução foi deixar o curso e procurar outra coisa para fazer. Tentei procurar trabalho mas não dava para suportar os custos, não era só pagar a escola. Não dava para fazer tudo. A solução era procurar uma bolsa fora, então foi aí que encontrei Macau.

Já te tinha ocorrido vir para Macau antes?

Em relação a Macau, China, nada. Falando a verdade nunca tive ideia de fazer o curso fora, sempre tive uma visão de que se quero ajudar o meu país então tenho de estudar lá, senão há um contraste. Sempre tive a visão de estar lá dentro.

Vieste para estudar língua e cultura chinesa. O que te atraiu mais nessa área?

Foram a língua e a cultura em si. Antes de chegar cá, quando faltavam dois meses para vir, já tinha encontrado a bolsa e comecei a estudar um pouco a língua, ter noção das coisas que ia encontrar, as coisas básicas, aprender um bocadinho de caracteres. Então a partir daí comecei a ter noção do que iria encontrar aqui. Quando cheguei, é claro, [houve] aquele choque, mesmo linguístico. Muitas pessoas falam do choque cultural, mas falo muitas vezes de choque linguístico porque estudar a língua chinesa foi deixar uma parte que sempre sonhei de lado, esquecer mesmo e focar na língua chinesa. Passando anos começou a fazer parte de mim e agora não quero deixar. Às vezes falo sobre a contradição, que mudança. O sonho do cara era ser economista, e agora só quer saber da língua chinesa.

Escreves poemas em chinês. Sentes alguma barreira quando te tentas expressar dessa forma?

Quando escrevi o meu primeiro poema em chinês estava em Pequim. Como as coisas em Pequim são a um ritmo mais elevado, as coisas são mais sérias, num modo mais crítico de falar. Foi lá que comecei a ter mais tempo. As coisas entram, entram, e sente-se uma necessidade de as tirar para fora também. Já gosto de poesia, porque não escrever também poesia em chinês? Claro, não foi fácil escrever a minha primeira poesia em chinês, tenho um programa que se chama pleco no meu celular, e tem algumas ideias na minha cabeça mas são em pinyi, não sei escrever o caractere. Então tinha o celular ao lado, um papel, sentava-me fora da residência e escrevia assim. O caractere que não sabia via no pleco, a gramática que não sabia tinha de ir ver ao livro. Depois complementava. Durava quase uma semana para terminar uma poesia.

Os poemas deste livro foram escritos ao longo de quanto tempo?

Comecei a escrever quando comecei a fazer música, porque também sou rapper. Comecei a fazer música com rimas de poesia, e [decidi] que não ia escrever texto mas poesia. Até é mais sensível. Quando está ‘rappando’ está rimando, tem uma base que é poética. Não é um texto, é uma poesia, é mais completo. Foi assim que comecei a tirar as coisas, com a minha língua de origem, o crioulo. Cheguei a Macau com uma caderneta de poesias toda em crioulo. Quando cheguei ao segundo ano comecei a ter essa ideia de organizar as coisas e fazer um livro. Comecei a tirar tempo para fazer a tradução para português e depois comecei a enviar para o pessoal com mais experiência nessa área aqui, para começar a dar opiniões e dicas. Havia algumas dicas que não me agradaram, mandava a poesia e vinha igual de novo. Não sei se estou a perder o meu tempo, porque não mudava nada. Mandei para outras pessoas até encontrar o Carlos.

É fácil tomar a decisão de tornar público algo que também é tão pessoal?

Claro que não. Eu sempre tive a ideia de que a minha escrita era para mim e ninguém tinha o direito de saber o que estava a escrever. Inicialmente era essa ideia que tinha. Até nas minhas músicas, tenho cerca de 10 faixas de rap mas pouca gente sabe. Aquela gente que sabe é a minha família e amigos mais próximos. Muitas vezes as coisas que escrevo são pessoais, são os meus medos, minhas frustrações, o momento que estou mais sozinho. Quando falo assim de escrita englobo sempre o que está dentro, então quando tiro para fora tinha medo de me estar a expor. É aqui que chega Macau. Quando cheguei a Macau passei a ver as coisas num ângulo diferente, é uma coisa mais diversificada. Porque quando se chega aqui e vê que não é um cara sozinho, que tem muita gente com muitas formas de pensar e que só está a contribuir para isso, é aí que quer se expor, mostrar as ideias e o que sente. Fiquei a perceber que somos feitos de sentimentos, se escrevo sentimentos quero que o pessoal o sinta. Comecei a ter essa coragem.

No poema “partida” falas de abraçar um mundo novo. Em que aspectos sentes que te aculturaste?

No momento em que comecei a tirar as primeiras palavras em chinês, as primeiras frases. A pessoa sai no fim de semana, é a rotina de estudante, quer curtir, e acaba por encontrar outro tipo de pessoas. Há pessoas que falam português, outras inglês, cantonês ou mandarim. Eu sou um cara bem envergonhado, então inicialmente não fui eu. Depois de duas cervejinhas é que começava a chegar junto do pessoal para falar. Então passava todos os meses a estudar, saía para beber e começavam a sair pequenas frases, pequenas conversações. Foi aí que comecei a sentir que não estou sozinho aqui e a coisa estava a começar a entrar. É como comer uma comida pela primeira vez, acha uma coisa horrível, mas quando se come regularmente começa a apreciar as coisas. Não fiquei admirando as coisas, comecei a apreciar, a senti-las.

No livro falas de como o “poder económico é a nossa dívida”. É uma mensagem sobre Cabo Verde, ou mais geral?

É uma mensagem mais geral mesmo, esse poema é uma dedicatória ao continente africano, é uma poesia que fiz especialmente para lá. É uma poesia inspirada no Joseph Ki-Zerbo, que foi um activista burkino e um historiador africano. Através de um livro dele que li, “Para quando África?”, tirei de lá essa inspiração e depois escrevi. Isso que falo de “tornámo-nos soldados mercenários”, tem algumas coisas lá que descrevem a nossa situação hoje. Então essa poesia é uma visão geral do continente, inspirada em Joseph Ki-Zerbo.

E o que achas da forma como está agora o continente?

As coisas continuam a mudar de uma forma lenta, mas continuam a mudar, mas de uma forma lenta. Como Joseph Ki-Zerbo falou, para quando? E quando se coloca essa questão vê-se que esse quando está ainda distante. É por causa da nossa lentidão. Estamos a reclamar de muitas coisas e andando lento.

Vires para fora pode ajudar a que o processo seja mais rápido? O que podes dar de volta?

A única coisa que posso dar de volta é esse conhecimento que a cada dia estou a ter na área de língua e cultura chinesa. É uma cultura e uma língua dotada não só de conhecimento cientifico, mas de conhecimentos do povo. São provérbios, a gente podia reeducar as pessoas através dessas coisas. Pelo menos, o plano que sempre tenho é abrir um instituto no meu bairro onde vou pelo menos começar a levantar crianças com cinco ou seis anos, em idade em que estão com força de aprender. Agora não é tempo de se manobrar com pessoas já com 16 ou 17 anos que já estão crescidas. Se se vê que a sociedade está muito rígida, tem de se puxar, uma coisa tem de ser familiar. Então cresce na família e depois tentar fugir para a sociedade. Tem de aprender isso socialmente. É um dos meus planos, abrir essa coisa para pelo menos levantar no bairro.

Quem admiras mais no ramo da poesia?

Eu nunca peguei num livro de poesia em português para ler assim. É uma coisa bem esquisita para quem escreve poesia em português. Eu comecei a sentir a poesia quando comecei a ler os clássicos chineses. Pode perguntar como é que eu já tinha escrito poesia há três ou quatro anos, é uma coisa meio esquisita mas foi aí que senti, não vou negar. Porque comecei a levar a poesia mais a sério. É uma poesia não muito simples, muito interpretativa, histórica. Às vezes faço pesquisas e análise histórica e linguística da poesia clássica chinesa e foi lá que deu essa vontade. Isso também contribuiu de uma certa forma. Porque quando voltei de Pequim já estava decidido que queria procurar algo e lançar o meu livro, dar o meu primeiro passo.

Falas na poesia como alavanca para a consciencialização. Para que temas queres que os teus leitores despertem?

Começo a pensar na consciência lá do meu bairro. Quando falo em consciência falo em algo social. Quero que o pessoal desperte a percepção das coisas, que elas têm um processo. É por isso que falei em “visão, direcção, acção”. Vem das palavras que o meu pai sempre fala, da luta para a conquista. É isso que quero, que o pessoal tenha essa consciência da luta, o lutar para conseguir algo. O pessoal do meu bairro pensou que é a esperar que as coisas vêm, e é isso que tento despertar. Não só do meu bairro mas para todos os que vão ler a poesia. Eu estive nessa posição em que se sente fracasso, é por isso que falo na luta para a conquista. Aquele momento de visão em que só se quer lidar e controlar os medos e traumas que aconteceram há muito tempo, que se carregam, mas tentam-se controlar e equilibrar. Depois, quando tenta equilibrar, encontra o silêncio para decidir. Porque você só decide quando consegue ver as coisas como elas são. Foi isso que eu fiz. Tentei procurar, acalmar a minha dor, fazer as coisas e tentar manipular a frustração. Você tem de manipular a frustração, controlá-la. Deixar sair a frustação que você quer. Essa é uma frustração que eu já manipulei, é boa. Quando a frustração é manipulada torna-se sensível. Então foi isso que fiz e tentei decidir as coisas. Como eu falo, em busca do sol de horizonte.

5 Fev 2021

Paulo Canelas de Castro, académico, sobre Acordo UE-China: “Há compromissos de abertura de muitos sectores chineses”

Portugal assume a presidência do Conselho Europeu até 30 de Junho e tem na agenda uma grave crise pandémica para resolver. Pelo meio, o Acordo China-UE terá ainda de passar pelo crivo do Parlamento Europeu. Para Paulo Canelas de Castro, académico da Universidade de Macau e titular de Cátedra Jean Monnet – Direito da União Europeia no Contexto Global, este Acordo “tem, agora, um significado político” e permitiu importantes concessões à União Europeia

 

Arrancou a presidência portuguesa na UE numa altura de pandemia. Quais os principais desafios para Portugal neste momento?

Naturalmente o contexto dramático da pandemia covid-19 tem um impacto muito marcante no conteúdo desta agenda. Pretende-se garantir a resiliência da Europa e promover a recuperação da UE no seu conjunto. Entende-se que para tanto é preciso proceder a uma transição climática e a profunda transformação digital. Olhando depois às dramáticas consequências sociais da pandemia, quer-se desenvolver o chamado pilar europeu dos Direitos sociais existentes na UE. Por fim, numa linha de auto-identificação e acção que ganhou visibilidade e vigor com a adopção do Tratado de Lisboa, erige-se como terceira prioridade do semestre reforçar a autonomia da Europa no contexto mundial. Há prioridades que assentam em cinco eixos principais, e um deles passa por, além de [garantir] a resiliência da Europa se associa à sua recuperação da crise, atribuir prioridade à execução do Green Deal europeu como chave para uma recuperação económica que se pretende sustentável, a fim de caminhar para a descarbonização da sua economia já no ano 2050. Pretende-se também reforçar o modelo social europeu, por forma a transmitir confiança aos cidadãos para que eles próprios concorram na superação da crise económica e social e participem na transição climática e digital.

E em matéria de política externa? Esta é a primeira presidência desde que o Reino Unido deixou a UE.

A presidência portuguesa quer continuar a assegurar uma Europa aberta ao Mundo, que permaneça comprometida com o Estado de direito internacional e a sua regulação multilateral justa, com programas solidários de desenvolvimento e cooperação, não cedendo às tentações, também geopolíticas, de fechamento e nacionalismos. Para além de se pretender empenhada em revitalizar uma relação transatlântica abalada pela prática da anterior presidência norte-americana, relação estratégica especial que vê como chave da necessária governação global, a presidência portuguesa mostra-se empenhada em traduzir em actos positivos os proclamados acordos de parceria intensa com o Reino Unido. Numa marca de especificidade ou particular sensibilidade própria, a agenda na área da ação externa da UE prevê também atenção especial e actos de promoção ou consolidação de parcerias com África, com a América Latina, e, numa inovadora intensificação de diálogo e cooperação, tanto a nível económico e comercial como político, com a Índia.

A Europa está a enfrentar problemas no fornecimento de vacinas. Isto vai abrir margem para uma maior desunião do projecto europeu?

A UE está de facto a viver uma crise sanitária sem precedentes, que testa o seu funcionamento e eficácia numa área em que não tinha competências próprias, antes estas eram exclusivas dos Estados membros. Nesta crise, avulta de momento o problema da vacinação, que se inscreve no objectivo prioritário da União de dar resiliência à Europa. Em 2020 houve grandes sinais de desunião e de acção unilateral, desprovida de consideração pelos demais Estados Membros. Há alguma dificuldade da parte de algumas instituições da UE para encontrarem o tom certo em acções tantas vezes reactivas a eventos que não previu e para os quais não estava preparada, mesmo ao nível fundamental das competências e dos instrumentos de habilitação próprias.

Pode dar exemplos?

Pense-se na má experiência da obtenção de equipamentos para cuidados intensivos. Acresce que a UE deu também sinais de alguma insensibilidade ou incapacidade de efectiva cooperação com parceiros internacionais, apesar da sua proclamação constante de abertura a soluções e instâncias multilaterais e de cooperação. Gradualmente a UE tem sabido radicar espaços próprios de intervenção, em auxílio ou em complemento das acções dos Estados Membros, e procurando coordená-los no exercício das suas competências próprias na área da saúde publica. Aos poucos, tem-se vindo a construir uma união de saúde europeia.

Em relação ao Acordo de investimentos UE-China, o Parlamento Europeu (PE) já veio lamentar o acordo e as posições assumidas pelo Conselho e a Comissão. Acredita que poderá haver recuos na votação final?

O Acordo, negociado pela Comissão Europeia, tem que ser aprovado tanto por Estados membros como pelas instituições decisórias da UE, sendo que o PE é tradicionalmente mais exigente na defesa dos valores europeus que podem estar em causa ou entrar em colisão com os interesses económicos a que o Acordo primeiro procura responder. O precedente, recente, da aprovação, muito difícil, do Acordo compreensivo de parceria Económica com o Canadá (CETA), justifica algum cuidado e deve levar a Comissão, em especial, a explicitar com cuidado e transparência o conteúdo do Acordo e a sua relevância.

Em traços gerais, considera que este Acordo beneficia de igual forma ambas as partes?

Todos os acordos internacionais devem importar benefícios equilibrados. Nomeadamente, espera-se que, ao celebrá-los, cada parte tenha encontrado satisfação razoável das expectativas ou esperanças que a levaram a envolver-se na negociação internacional do mesmo. Essas esperanças eram bastante diferentes à partida. Não parece descabido dizer que as pretensões mais ambiciosas eram da UE.

Em que sentido?

Há três cuidados que motivavam a UE agir. Um deles é uniformizar o plural regime bilateral de investimentos, constituído por 25 acordos bilaterais entre Estados membros da UE e a China, acordos esses desiguais e por vezes dissonantes com a moderna evolução no sector. [Pretende-se] alcançar o acesso dos investimentos e empresas e serviços europeus ao gigantesco mercado chinês, em especial na área dos serviços, um mercado que é muito fechado, em gritante contraste com a abertura de que as empresas e investidores chineses gozam no mercado interno da UE. A UE quer também alcançar um nível de regulação justo da vida das empresas e investimentos europeus estabelecidos no mercado chinês, ou seja, superar o tradicional tratamento discriminatório dado aos investimentos europeus, num ambiente de regulação claramente favorável às empresas chinesas. Pode-se dizer que a UE alcançou o que por vezes se designa de concessões muito importantes.

Tais como?

Viu serem removidas muitas das restrições jurídicas e outras (por exemplo, transferência forçada de tecnologia) às empresas europeias na China. Há compromissos de abertura de muitos sectores antes constantes das famosas listas negativas chinesas. E assim é em muitos sectores de actividade, com potencial grande significado económico, quer em matéria de produtos, quer em matéria de múltiplos serviços. Há também a garantia da remoção de restrições relativamente às companhias europeias já estabelecidas na China e até a previsão de que poderão acompanhar e participar nos dinâmicos processos de estandardização que a China tem vindo a conhecer. Igualmente muito significativas são as obrigações assumidas pela China num sentido de tratamento e garantia de uma concorrência mais justa entre interesses europeus e chineses. Assim, por exemplo, quanto às empresas controladas pelo Estado chinês, que se promete virem a actuar segundo uma lógica comercial.

Que outros compromissos pode apontar?

Há compromissos de transparência em matéria de subsídios estaduais chineses e no sentido de garantir procedimentos de licenciamento ou regulação mais transparentes e justos. O Acordo também prevê um mecanismo interestadual de resolução de litígios que se crê robusto, e que deve funcionar como garantia da aplicação do regime de acordo com o Direito. Acresce que se prevê um sistema de monitorização e acompanhamento da aplicação do Acordo, que deve também contribuir para ir esclarecendo e aperfeiçoando aspectos porventura menos bem regulados do muito complexo regime definido. Há também quase inesperados compromissos chineses.

Inesperados porquê?

[São compromissos] em matéria de valores ambientais, sociais e de governação. Os objectivos da China eram outros, porventura menos numerosos, mas igualmente significativos dos seus interesses:  conseguir um regime mais uniforme, que facilite, por exemplo, a transferência de pessoal de Estado-membro para Estado-membro; acesso também a alguns sectores económicos ainda restritos.

Como analisa o período em que se avança com este Acordo? Depois de sete anos de negociações, após a vitória de Joe Biden e em plena crise pandémica.

O Acordo tem, agora, um significado político para as duas partes. Para a China coloca-a como um grande actor mundial no domínio das relações económicas e agente também de inovação normativa no sector, sendo que este hoje se apresenta carente de reafirmação e consolidação. A “mensagem” é naturalmente tão mais relevante quanto os EUA na Administração Trump renunciaram a celebrar a Parceria Transpacífico que tinham inicialmente intentado. Para a UE é o culminar de uma negociação morosa e ambiciosa, na linha de desenvolvimento de um Direito Internacional da Economia mais justo, mais forte de critérios jurídicos modernos bem como de mecanismos institucionais de execução na base de um Estado de Direito internacional, e mais integrador de valores que são sinal identitário da UE.

Mas o Acordo não é também uma tomada de posição da UE?

Foi também uma oportunidade para afirmar uma autonomia estratégica da UE, que, nomeadamente, as figuras cimeiras da Alemanha e da França têm vindo a afirmar, sobretudo perante a errática actuação internacional do inquestionável parceiro de sempre, os EUA, ao tempo da Administração Trump. Mas é também um sinal da determinação europeia em buscar, igualmente no quadro internacional, as condições de recuperação e resiliência económico-sociais que a gravíssima crise decorrente da pandemia covid-19 impõem. Investimentos e mercados são também um instrumento necessário da visão prosseguida.

Angela Merkel veio falar da necessidade de preservar “valores fundamentais” no que diz respeito a este Acordo, com ligação ao que se passa em Hong Kong, Xinjiang, Tibete. Acredita num consenso com a China tendo em conta estas críticas?

O Acordo que é, principalmente, sobre investimento, faz uma equilibrada integração de outros valores, no que aliás prossegue e reforça uma prática normativa que a UE havia igualmente instituído noutros instrumentos jurídicos precedentes, como o Acordo (de âmbito mais amplo) com o Canadá e os acordos de investimento com o Vietname e Singapura. Reflecte-se o modelo sócio-político dos Estados membros da UE e a vontade de não permitir ou contribuir para que o progresso económico se faça à custa do ambiente ou da humanidade e relações sociais justas. Mas esta é também uma razão por que este Acordo se destaca no plano internacional: justamente porque é celebrado com um grande Estado e actor global cimeiro que é a China, com um sistema político, social e económico tão diferente. O Acordo tem a importância fundamental de envolver um compromisso explícito da China com um sistema jurídico-internacional mais moderno e mais justo.

Este acordo peca por tardio?

Alguns comentadores criticam o Acordo por o entenderem prematuro, nomeadamente do ponto de vista da articulação de interesses profundos entre os dois parceiros ocidentais dos dois lados do Atlântico, a UE e os EUA, ou da garantia suficiente dos tais valores europeus.

O facto de ter demorado sete anos a negociar também demonstra que não foi um processo fácil.

Foi um exercício negocial gigantesco. A determinada altura, apesar de existir o compromisso para ele ser fechado no ano de 2020, chegou-se a temer que tal não acontecesse, nomeadamente por interferir na agenda das relações China-EUA.

E ainda não está fechado.

Permanece aberto relativamente aquilo a que tenho chamado os ‘restos’ da negociação, para o fecho da qual, contudo, e isso é sinal de seriedade, se previu um prazo de dois anos. Assim acontece com a questão dos standards substanciais precisos de protecção dos investimentos e com a instituição de um mecanismo de resolução de litígios entre investidores e Estado de acolhimento. A UE deseja que este mecanismo a instituir seja diverso do sistema hoje prevalente, de arbitragem internacional ‘ad hoc’, radicada no Centro Internacional de Resolução de Litígios em matéria de Investimentos.

4 Fev 2021

Dmitri Félix do Nascimento, académico: “A pauta econômica será central nas relações entre China e EUA”

Com lançamento marcado para o próximo dia 16, o livro “Love and Trade War – China and US in Historical Context”, da autoria do brasileiro Dmitri Félix do Nascimento e Edmund Li Sheng, da Universidade de Macau, traça um retrato histórico das relações comerciais entre a China e os EUA nas últimas décadas e antevê o futuro com Joe Biden na Casa Branca, depois de uma guerra comercial sem precedentes na era Trump

 

Este livro apresenta uma perspectiva histórica sobre a guerra comercial. Até que ponto é diferente, tanto ao nível da história americana quanto global?

Os EUA tendem a entrar em conflito comercial quando se vêem perdendo mercados ou com competidores que avançam em níveis tecnológicos. Na década de 80, tanto Japão e Alemanha Ocidental se apresentavam como competidores nos mercados internacionais, nível tecnológico avançado em diversos setores, como automobilístico, eletroeletrônicos, automação e máquinas, entre  outros. Os EUA se utilizaram de instrumentos tanto domésticos quanto nas instituições internacionais, como forma de assegurar sua hegemonia. Este modus operandi americano encontrou no GATT/Organização Mundial do Comércio (OMC) um espaço que legitimava suas ações. Porém foi perdendo poder gradativamente, seja pela ascensão da economia chinesa, pela articulação dos países emergentes ou mesmo pela União Europeia (UE). Trump e seus assessores, com uma retórica anti-China fabricada durante anos, encontraram a oportunidade de colocar o empresariado e a opinião pública americana contra a China. Por isto se utilizou da lei de tarifas Smoot-Hawley da década de 30 para encontrar uma base jurídica apoiada pelo Congresso. O que pretendemos colocar em nosso trabalho é que, mesmo com esse histórico, existem especificidades desta disputa contra a China. Os motivos econômicos, ideológicos e geopolíticos na guerra comercial passam a entrar num ritmo de disputa diferenciado com outras disputas no passado.

As posições políticas de Trump, e a sua visão do mundo e do comércio global, mudaram de forma profunda o conflito com a China, ou a China também foi responsável por essa mudança?

Desde o início da campanha eleitoral e após sua vitória em 2016, o lema ‘American First’, para Trump, sua equipe econômica e diplomática, seria a linha política a ser seguida. Quem não obedeceu este comando teve que sair do Governo. Setores do partido Republicano, de tendências econômicas mais liberais, foram deixados para trás. A mistura de populismo de direita, nacionalismo e racista, se caracterizam como a base política de Trump. Seja na classe trabalhadora industrial com níveis de educação e empregos mais precarizados, seja na América rural, ou no pequeno e médio empresariado que perdem cada vez mais espaço. Por um lado, domesticamente Trump se aproveitou da alta desigualdade da sociedade americana, culpando ao mesmo tempo a China e seus produtos pela perda de empregos dos americanos. Trump acredita que os EUA perderam espaço no comércio global e isso justifica as ações protecionistas. Para ele e sua equipe, os tratados de livre comércio prejudicam a economia americana. A exemplo do Trans Pacific Partner (TPP) do qual enterrou as negociações; do NAFTA, que forçou a mudança nos termos dos acordos com Canadá e México; com a OMC, retirando os EUA do Órgão de Solução de Controvérsias. A guerra comercial com a China foi mais agressiva pelo fato de que Trump colocava a culpa nos governos anteriores democratas por terem aberto demais a economia e por não terem protegido a indústria americana, assim como culpava o empresariado americano, que transferiu as fábricas e investimentos para a China.

Edmund Li Sheng

Essa ideia acabou por gerar muitos apoios.

Isso encontrou apoio na ‘América profunda’. Em 2018, o déficit comercial dos EUA com a China foi de quase 419 bilhões de dólares americanos. O objetivo de Trump e de sua política comercial era diminuir este déficit forçando a China a comprar mais produtos americanos. Encontrar um inimigo para justificar suas próprias ações fizeram Trump ser o que é. Os investimentos diretos estrangeiros dos EUA para a China apresentam diferentes dados. O grupo americano The Rhodium Group estima que os EUA realizaram Investimentos Diretos Estrangeiros (IDE) entre 1990-2015 de quase 228 biliões de dólares americanos. Enquanto a China investiu nos EUA 63.8 biliões de dólares americanos no mesmo período. Trump também alegava que a China subsidiava seus produtores, fazendo com que a concorrência fosse injusta para os americanos. Assim como denunciava o papel do Estado e do Partido Comunista Chinês na economia. Ou seja, os EUA se apoiam na pauta protecionista para se vitimizarem.

O livro aborda também os temas da globalização e da re-industrialização. Qual o impacto na guerra comercial?

O setor financeiro em todo mundo se tornou hegemônico. Nos países desenvolvidos, como os EUA e a UE, os bancos e os fundos de investimentos são quem concentra grande parte da riqueza. Houve mudanças profundas que migraram os investimentos do setor produtivo, indústria e agricultura, para o setor financeiro nos países desenvolvidos. A crise de 2008 foi um exemplo de como este setor desestrutura economias, Estados e empregos por todo o mundo. A China seguiu seu próprio caminho fazendo investimentos massivos no setor produtivo, com o objetivo de aumentar a oferta de emprego e integrar as cadeias produtivas mundiais, sem esquecer o ampliar a inovação tecnológica, ao mesmo tempo que não seguiu as receitas neoliberais do consenso de Washington. O pano de fundo da guerra comercial tem muito a ver com o papel da indústria na globalização. Trump quis restaurar o passado americano de hegemonia industrial, porém com o nível de internacionalização que vivenciamos, dificilmente a indústria americana será como antes.

O livro procura dar respostas ao facto de Trump ter iniciado uma guerra comercial com a China, um importante parceiro económico e país em termos diplomáticos.

Para Trump havia um desequilíbrio e déficit na balança comercial entre os EUA-China que deveria ser refeito. A lógica do livre mercado deixa de funcionar quando os EUA começam a perder competitividade. Dessa forma se justificava ações tarifárias de produtos chineses, forçando a China a comprar mais produtos americanos. Na primeira fase do acordo os EUA impunham a obrigação da China em comprar mais de 200 bilhões de dólares americanos em produtos americanos de variados setores. Caso Trump respeitasse as instituições internacionais como a OMC, ele entraria com processos contra a China, algo que os EUA já fazem. Mas Trump queria agilidade no processo, então uma disputa bilateral iria trazer mais ganhos imediatos sem intermediação de outros atores. Acusações contra a China se estendem em justificativas como competição injusta das empresas americanas na China, intervenção do estado chinês na economia, transferência tecnológica forçada, e quebra da propriedade intelectual.

Falam de uma “Doutrina Trump”. O partido Republicano poderá segui-la?

Há uma diversidade de grupos conservadores, extrema direita, supremacistas brancos que encontraram na figura de Trump uma síntese. Ao declarar ao mundo que o ‘America First’ não seria apenas uma retórica, a política doméstica e externa de Trump se confundem num tipo de nacionalismo populista mais primitivo. A sinofobia não é algo novo na sociedade americana, mas foi alimentada com a retórica agressiva de Trump após a eclosão da pandemia. Na realidade Trump força os setores mais conservadores do Partido Republicano a segui-lo, assim como seus apoiadores o fazem. As fraturas no partido Republicano não serão resolvidas até os dirigentes decidirem o que fazer com Trump, pois sua força é dirigida para influenciar a opinião pública (onde está perdendo cada vez mais espaço), e os diversos pequenos grupos extremistas. Ao sair do poder estes serão os tentáculos de Trump, juntamente com sua fábrica de notícias falsas.

Com Joe Biden na Casa Branca, a guerra comercial poderá chegar a um fim ou ter, pelo menos, uma direcção diferente?

Dependerá muito de algumas variáveis, não apenas econômicas. O apoio americano para Taiwan no Mar do Sul da China continuará, pois o apoio financeiro e militar à ilha se reforçou no Governo Obama. Com Biden há dúvidas sobre como se avaliará a primeira fase dos acordos assinados, assim como as sanções sobre as empresas de tecnologia da China, do sistema 5G da Huawei, e produtos da Tencent. Isso ainda está em aberto. Achamos que os EUA vão retornar para as mesas de negociações na Organização Mundial de Saúde. Já na ONU, a indicação de Biden será de uma representante anti-China, e provavelmente no Departamento de Estado também. Há uma grande preocupação pela parte chinesa que as ações anti-China se tornem um consenso entre democratas e republicanos, isso daria espaço a ações estratégicas de pequeno, médio e longo prazo contra o país.

Concluem também que surgiram novos conflitos com a guerra comercial.

A guerra comercial causou um desgaste nas relações entre os países e nos investimentos em ambas as partes. A diplomacia americana tentou a todo custo uma aliança anti-China com Japão, Austrália, Índia e Coreia do Sul. Assim como pressionou todos os países a não aderirem o sistema 5G e as empresas de tecnologia chinesas. Os EUA entraram numa crise sem precedentes pela falta de empenho no combate a Covid-19. Ao contrário da China, que conseguiu de forma eficaz controlar a epidemia com um confinamento rigoroso, manter a produção e exportação de produtos de proteção individual, e ainda produzir a própria vacina. Creio que a pauta econômica será central para o retorno das relações entre os países, porém os ‘falcões’ de Washington não deixarão a China em paz, e farão o possível para conter a influência da China no Mar do Sul e nos países que integram a Rota da Seda.

Apresentam a ideia da construção de um sistema G2, com a China e os EUA. Qual seria o impacto a nível mundial?

Trazemos a preocupação de uma nova guerra fria, com um estudo da própria ONU colocando as preocupações de diplomatas sobre essa dualidade, remetendo aos tempos em que os blocos políticos e ideológicos eram bem definidos na tomada de decisões. Uma preocupação que o Presidente Xi Jinping também expressou em sua fala recentemente em Davos. A UE tentou manter uma certa autonomia em relação a este conflito. Após o Brexit, a UE viu parte de seus interesses minados pela dupla Trump-Boris Johnson. Lembremos que Trump tratava a UE como uma ‘China menor’. Mesmo assim, alguns países membros já vêm tomando decisões de não implementar o sistema 5G da China, algo que gera insatisfações da diplomacia chinesa. Já que o comércio exterior entre China e UE gira em torno de mais de 560 bilhões de euros. Com Biden existe uma possibilidade do retorno dos acordos de livre comércio TPP/TIPP, para conter a expansão da economia chinesa.

Qual o impacto da pandemia nas relações comerciais, sobretudo se a guerra comercial continuar?

Os efeitos da pandemia já são sentidos: o aumento do desemprego, diminuição do consumo das famílias e falência de empresas são a realidade na maioria dos países. A China, ao colocar a saúde de sua população como prioridade, voltou a produzir antes de outros países. Não que não tenha havido demissões e quebra de empresas, mas as medidas do apoio do Governo chegaram às pessoas e pequenos e médios negócios, e seguraram a renda dos trabalhadores. Mesmo com a vacinação na China e nos EUA, o sistema de saúde pública da China apresenta condições de ser mais amplo e rápido na imunização. O comércio exterior irá diminuir entre os países. Talvez um novo acordo seja o mais realista nestas atuais condições.

3 Fev 2021

Zhang Ming, embaixador chinês em Bruxelas: “Portugal tem vindo a demonstrar um grande respeito pela China”

Numa entrevista a órgãos de comunicação social portugueses em Bruxelas, Zhang Ming, chefe da missão da China para a União Europeia, falou da Presidência portuguesa na UE e disse esperar “um empurrão” para o acordo de investimento que deverá estar finalizado ainda este ano. Zhang Ming destacou também a boa relação da China com Portugal

 

A China espera um “empurrão” de presidência portuguesa da União Europeia (UE) para acelerar o processo de ratificação do acordo de investimento entre Pequim e Bruxelas, considerando que irá permitir também mais investimento chinês em Portugal. “Esperamos que Portugal, enquanto assume a presidência rotativa da UE, possa dar um ‘empurrão’ ao processo e, idealmente, esperamos que na primeira metade deste ano possamos assinar estes documentos” preliminares, disse o embaixador Zhang Ming, chefe da missão da China para a UE, em entrevista à agência Lusa e outros meios de comunicação social portugueses em Bruxelas.

Questionado na ocasião sobre o acordo de princípio sobre investimentos alcançado entre Bruxelas e Pequim no final do ano passado, que tem ainda de ser ratificado, o responsável notou que, “depois da assinatura, os documentos serão submetidos aos parlamentos de ambos os blocos para ratificação”. “Num cenário ideal, o acordo estará formalmente finalizado no final deste ano ou início do próximo e aí entrará em vigor”, estimou Zhang Ming.

O representante do bloco chinês para o espaço comunitário precisa que, de momento, os dois lados estão a “tratar do escrutínio legal e da tradução”. “Não está em causa recomeçar as negociações, apenas estamos a tratar e finalizar os detalhes”, adiantou.

Frisando que “a China e Portugal são parceiros bons e próximos”, Zhang Ming disse que, “Portugal, enquanto Estado-membro, vai de certeza beneficiar com este acordo”. “O acordo vai facilitar o acesso de investidores chineses e europeus a estes mercados”, pelo que “haverá mais investimento europeu na China e também mais investimento chinês na UE, incluindo em Portugal”, conclui o responsável.

Uma relação “exemplar”

Zhang Ming elogiou ainda a relação entre a China e Portugal, falando numa ligação “exemplar” e feita de “respeito mútuo”. “Penso que podemos considerar a relação de Portugal e China como exemplar e penso que o segredo é o respeito mútuo”, afirmou. O responsável insistiu que “Portugal tem vindo a demonstrar um grande respeito pela China e a China ainda mais respeito por Portugal”. “Nunca interviemos nos assuntos internos um do outro, o que é importante, e espero que continuemos a promover a nossa cooperação em prol do interesse dos dois países e dos seus cidadãos”, vinca Zhang Ming.

Notando que “Portugal não foi dos primeiros países a estabelecer ligações diplomáticas com a China [e que] talvez tenha sido até dos últimos”, o embaixador observa que, “desde o final dos anos 1970, aquando do estabelecimento dessas ligações, a relação bilateral entre os dois países tem vindo a desenvolver-se de forma suave, rápida e amigável”. “Agora podemos ver uma cooperação bastante próxima entre os dois países”, frisou.

Questionado sobre os constantes avisos da Comissão Europeia e do Parlamento Europeu para os Estados-membros porem fim a programas de autorização de residência ou de nacionalidade perante investimento, como é o caso dos ‘vistos gold’, Zhang Ming escusou-se a comentar, dizendo que esta é “uma matéria interna da UE”. Ainda assim, vincou: “Há alguns investidores de países terceiros a tentar obter autorizações ou autorizações ou vistos de residência [nalguns países da UE] através do investimento e isto não é algo incentivado pelo governo chinês”.

Em outubro passado, o Parlamento Europeu defendeu que os países da UE devem “acabar imediatamente” com os programas de vistos ‘gold’ que dão residência ou cidadania a investidores estrangeiros, criticando que esta é uma “entrada rápida para criminosos”. Depois de severos avisos do executivo comunitários, os eurodeputados tomaram nessa altura posição para exigir o fim dos designados programas de passaportes dourados, existentes em 19 Estados-membros, vincando que “a cidadania da UE não pode ser comercializada como uma mercadoria”, assinala a instituição em comunicado de imprensa.

China-EUA-UE: Cooperação contra o unilateralismo

Zhang Ming espera uma relação de “cooperação” e não de “confronto” com os Estados Unidos, e apela a que a UE prossiga o caminho para a “autonomia estratégica”. “A China felicita Joe Biden pela sua posse. Esperamos trabalhar em conjunto com a administração americana num espírito que não seja de conflito nem de confronto, mas de respeito mútuo e de cooperação mutuamente benéfica. Que nos foquemos na cooperação em vez do confronto, em gerir as diferenças entre os dois lados e trazer de volta a relação China-EUA a um nível saudável e estável”, referiu. Frisando que, numa altura em que o mundo enfrenta “desafios severos”, o regresso dos EUA ao Acordo de Paris e à Organização Mundial do Comércio (OMC) são “boas notícias”, o embaixador chinês reproduz as palavras do Presidente da China, Xi Jinping, emDavos: “um mundo dividido não pode ajudar a Humanidade a enfrentar desafios”. “O confronto irá levar a Humanidade para um beco sem saída. E, de qualquer forma, é suposto a comunidade internacional trabalhar de maneira junta, solidária, e cooperar estreitamente para um futuro partilhado”, aponta.

Algumas “dificuldades”

Zhang Ming refere assim que, nos últimos anos, tanto a relação entre os EUA e a China como a relação entre os EUA e a UE “passaram por dificuldades”, e frisa as semelhanças entre a situação chinesa e europeia. “Tanto a China como a UE são vítimas do unilateralismo e do protecionismo e acreditamos ambos no multilateralismo e na abertura do sistema internacional de comércio. (…) Somos ambos poderes para a paz internacional”, destaca.

O embaixador sublinha assim que, enquanto “parceiros estratégicos abrangentes”, a relação entre a UE e a China “resistiu ao teste das mudanças, dos desafios do tempo e da situação internacional”, e refere que tem o seu “próprio valor independente”.

“Pessoalmente, tenho total confiança no futuro do desenvolvimento das relações entre a UE e a China. (…) Espero que a UE mantenha o espírito [da autonomia estratégica] e a desenvolva, e que guie a sua relação externa com membros diversos da comunidade internacional, incluindo a China e incluindo os Estados Unidos, para o bem da estabilidade e do progresso do mundo.”

Índia | O poder emergente

Zhang Ming referiu que Pequim “respeita plenamente” o desenvolvimento de relações entre a UE e a Índia e que “fica contente” por ver “progressos” nas relações internacionais. “A União Europeia é um poder importante na comunidade internacional e respeitamos plenamente a sua política externa. Também ficamos contentes de ver mais progresso e desenvolvimentos nas relações da UE e de outros membros da comunidade internacional, incluindo na relação UE-Índia”, sublinhou. O embaixador da China reagiu assim à prioridade identificada pela presidência portuguesa do Conselho da UE de diversificar as relações com os parceiros do Indo-Pacífico, nomeadamente com a Índia, através da organização, a 8 de Maio no Porto, de uma cimeira informal que irá juntar os líderes dos 27 ao Presidente indiano, Narendra Modi. Zhang Ming qualificou a Índia de “poder emergente” e salientou que Pequim também dá “grande importância” à “relação bilateral Índia-China”. “É por isso que advocamos por uma comunidade de futuro partilhado. Todas as pessoas, todos os países, partilham o futuro do mundo”, concluiu.

5G | Tendências “erradas”

Zhang Ming falou ainda da questão da Huawei e dos seus equipamentos 5G, que foi acusada, durante a administração Trump, de espionagem através da instalação de ‘back doors’ [portas traseiras de acesso] nos seus dispositivos, tendo a Comissão Europeia, face às acusações americanas, criado medidas para reforçar a cibersegurança no desenvolvimento das redes 5G, rejeitando sempre estar a fazê-lo contra qualquer fabricante ou país.

O embaixador chinês nota “duas tendências erradas” na questão da rede 5G, sendo a primeira a “destruição intencional de regras” por parte de “certos países”, que qualificam as empresas de “fornecedores de alto risco” em termos de segurança, sem “apresentarem qualquer prova concreta”. A segunda é “ignorar as leis que regem as operações de mercado e desenvolvimentos tecnológicos”, sublinhando que “qualquer ataque politicamente motivado para distorcer as cadeias de valor das redes 5G” é prejudicial para os “fornecedores, operadores e consumidores”.

Frisando assim que a questão do 5G não se prende com a “ascensão e os interesses de um dado país”, mas antes com a “ordem e o princípio dos mercados”, Zhang Ming pede que a UE “oiça atentivamente as vozes dos académicos e dos círculos empresários” – citando um estudo da universidade de Oxford que refere que a Huawei criou 16,4 mil milhões de euros na Europa e 224,300 empregos –, que “respeite as leis do mercado e trate com justiça outros países do mundo”.

1 Fev 2021

Rui Araújo, ex-PM de Timor, defende que país deveria ter comprado vacinas contra a covid-19

Entrevista de António Sampaio, da agência Lusa

 

O antigo primeiro-ministro timorense Rui Araújo defendeu que Timor-Leste devia ter optado por comprar as vacinas da covid-19 sem esperar por apoio internacional, para estar já a vacinar a população. Uma opção que devia ter sido contemplada no orçamento para este ano e que permitiria ao país atingir mais rapidamente a imunidade de grupo e, assim, regressar à normalidade e implementar as demais políticas de retoma e recuperação económica, considerou, em entrevista à Lusa.

O também médico disse que o desenho do Orçamento Geral do Estado (OGE) para este ano devia ter previsto a opção de Timor-Leste começar a vacinar já. “O Orçamento foi aprovado numa fase em que a ciência e a tecnologia e o mundo estava já mais confortável com uma vacina. Timor-Leste podia dar um salto qualitativo em ter acesso a essas vacinas imediatamente em janeiro e vacinar logo as pessoas e isso facilitaria muito a nossa recuperação económica”, afirmou.

“Temos dinheiro para isso, podemos negociar com os fornecedores. Do ponto de vista financeiro, não é um grande obstáculo. Devíamos ter tentado aproveitar essa janela de oportunidade”, sublinhou o antigo ministro da Saúde.

Essa opção, considerou, permitia ao país criar condições para um mais rápido retorno à normalidade, a reabertura das fronteiras, mudanças em restrições e, assim, proporcionar avenidas para a tão necessária recuperação económica. Como exemplo, referiu o caso de Israel, que em três semanas já vacinou quase metade da população. “Assim, vamos ter que esperar até junho ou julho. Podíamos ser mais pró-activos”, frisou.

Em vez de ir ao mercado comprar directamente as vacinas, as autoridades timorenses preferiram subscrever o recurso ao fundo Covax, de apoio à vacinação em países mais pobres, iniciativa que vive com grandes carências de financiamento e atrasos na distribuição.

Para Araújo, “é preciso continuar a conter a pandemia dentro das quarentenas, mas também reforçar a capacidade do SNS para poder responder aos problemas da covid e a outros”. “Vacinar é importante. Vacinar até atingir essa imunidade. Assim talvez só consigamos atingir essa imunidade num ano. E sem isso será muito difícil fazer o resto”, afirmou.

Mesmo neste modelo de obtenção das vacinas, no caso timorense será a AstraZeneca (com problemas de fornecimento a alguns países), Rui Araújo defendeu que o Ministério da Saúde tem a capacidade mínima para a vacinação, mas que é preciso “unir esforços” e combater, também aqui, a partidarização dos serviços públicos.

“Sucessos” no combate à covid-19

Apesar dos constrangimentos que o país viveu, instabilidade política, chumbo do Orçamento Geral do Estado (OGE) de 2020 e os efeitos da pandemia em si, Rui Araújo considerou que em “jeito de balanço geral” o Estado timorense “teve sucessos” na forma como tem estado a enfrentar a pandemia da covid-19.

“De uma maneira geral, do ponto de vista de saúde política, Timor-Leste foi um sucesso na resposta às ameaças da pandemia da covid-19 ao país”, afirmou Araújo, antigo ministro da Saúde que também integrou o Centro Integrado de Gestão de Crise criado pelo Governo para responder inicialmente à pandemia.

“O maior sucesso foi ter-se conseguido que não houvesse transmissão na comunidade. Também graças aos primeiros passos tomados nos primeiros meses, nos primeiros estados de emergência em que realmente se tomaram medidas drásticas para poder controlar”, frisou.

Já do ponto de vista da recuperação económica, o antigo primeiro-ministro disse que “se podia fazer muito melhor”, aproveitando especialmente que os casos detectados serem todos importados. “A componente da atividade social e económica devia ser melhor dinamizada no país, mas infelizmente isso não aconteceu. Com sucessivos estados de emergência dificultou um pouco isso”, explicou.

“Do ponto de vista jurídico há essa justificação que sem a declaração do estado de emergência não se pode obrigar as pessoas a ir para quarentena e isolamento. Não sendo jurista penso que se poderia ver formas alternativas de se ver isto”, disse.

Igualmente por cumprir tem ficado o objetivo do Governo de permitir o reforço do sistema nacional de saúde, uma das justificações dos sucessivos estados de emergência. “Eu acho que não se conseguiu os objectivos traçados há um ano. Continua a ver-se uma grande lacuna e deficiência no SNS para poder responder a possíveis aumentos de casos do país, e para responder a situações normais”, disse.

Problema, notou, agravado pela imposição de restrições nas fronteiras com o ‘stock’ de medicamentos e bens consumíveis nos hospitais, centros e clínicas do país “a cair bastante”.

Uma vez que a última vez que entrou carga pela fronteira terrestre foi há mais de um mês, em 23 de dezembro, Rui Araújo diz que isso “está a afetar bastante a capacidade do sistema”, não apenas do público, mas também do privado, “que tem dificuldade em poder providenciar serviços mínimos”.

Administração “partidarizada”

Rui Araújo considerou, na mesma entrevista, que a administração pública timorense está partidarizada, afectada pela descontinuidade no processo de governação, e sofre de paralisia burocrática com medo dos órgãos fiscalizadores.

Uma situação agravada pela dispendiosa ‘subsidiodependência’ do funcionalismo público, pela falta de mérito no recrutamento e, no atual quadro político de um Governo multipartidário, por alguma ‘balcanização’ dos Ministérios, disse, em entrevista à Lusa. “Há sempre uma incapacidade da administração pública de poder implementar as boas políticas definidas pelo Governo, não apenas por falta de mérito técnico profissional, mas por afinidades políticas”, explicou Rui Araújo.

O também antigo ministro da Saúde apontou o “grave problema” da “partidarização dos cargos de direcção e chefia e até certo ponto dos funcionários públicos”.

Um problema antigo, mas que se tem vindo a consolidar, com ministros a nomearem “pessoas para cargos de direção e chefia tendo como critério principal se é da mesma cor do partido ou não, independentemente do mérito técnico e profissional que têm”.

Mesmo nos processos de recrutamento alegadamente feitos por mérito, Araújo considerou que “na prática há impressão geral de que as coisas são abençoadas do ponto de vista político”. “Há processos de recrutamento que aparentemente seguem tramites legais, mas depois há muita coisa por trás nos bastidores que resulta na colocação de pessoas sem mérito técnico e profissional nas funções que vão exercer”, disse.

Cenários em que há alegados “boicotes” entre diretores gerais que são de cores políticas diferentes do ministro, ou de ministros que tentam fazer “um ‘bypass’” a esses diretores de outros partidos para que outros façam o trabalho.

“Claro que isto é muito difícil de gerir. E até certo ponto no Ministério da Saúde se nota essa complicação da partidarização da administração pública que tem vindo a acontecer há muito tempo”, sustentou, referindo ainda a tendência para fazer “tabula rasa” aquando da troca de Governos, não permitindo continuidade na implementação da ação governativa.

Para Rui Araújo, esta situação cria uma “grande dor de cabeça” a todos e “só se resolve com vontade política nacional, de todos os partidos, reconhecerem que este é um problema” que afeta todos e o país.

“Têm que reconhecer que isto é um problema, independentemente de qual partido venha a vencer as eleições seguintes. Se esse problema não for resolvido coletivamente no âmbito de um consenso nacional”, sustentou.

“Todos os partidos políticos têm que respeitar a administração publica, para ser isenta da interferência político-partidária e poder ter a capacidade de implementar as políticas definidas pelos partidos políticos no Governo”, sublinhou.

Excessivo uso de subsídios

Outro aspeto a corrigir, reconheceu, é a excessiva utilização de subsídios, ‘per diems’ [montante diário] e outras medidas que criam um quase canal paralelo ao dos salários dos funcionários, um sorvedouro de dinheiros públicos que inflacciona o custo de todas as medidas.

“Não é sustentável. O país vai abaixo com tudo isto. Isto é que está a contribuir significativamente para delapidar o Fundo Petrolífero. Gasta-se 1.8 mil milhões [de dólares], mas depois vê-se que fatias significativas dessas despesas são extraviadas para esse tipo de gastos”, disse. “Há uns anos falava-se de cortar despesas supérfluas e ver eficiência das despesas, mas as coisas não melhoraram nos últimos três anos”, frisou.

Para o antigo responsável este é um problema “com implicações profundas na sustentabilidade da existência de Timor-Leste como pais soberano”. “Isto é sério”, reiterou.

O medo de órgãos fiscalizadores como a Câmara de Contas (CC) e a Comissão Anti-corrupção (CAC) e das suas interpretações das leis tem criado outro problema, com responsáveis políticos e da administração, paralisados com medo de assinar documentos.

“Há uma espécie de paralisia burocrática, por causa deste medo, particularmente porque a CC e CAC vêm a público com relatórios e as pessoas ficam com medo. E dizem: ‘eu não quero assinar’. E isso é paralisante para tudo”, referiu.

“Não há entendimento uniforme e objetivo na interpretação das leis, particularmente no que diz respeito à execução das despesas públicas. Nem sempre o que os órgãos e as instituições de fiscalização, entendem as dificuldades do ponto de vista operacional, quando se está do outro lado a tentar implementar as políticas no grande esforço de concretizar a prestação de serviços públicos a população”, sublinhou.

Como exemplo, citou o recurso extraordinário a ajustes diretos que “são quase considerados como violação das regras de aprovisionamento no país”, ainda que previstos na lei, com os fiscalizadores a verem-no como “uma forma de má gestão e de querer ultrapassar os mecanismos administrativos para benefício próprio”.

“Pode haver casos desses, mas não acontece sempre. O facto de os órgãos de fiscalização chegarem a essa conclusão paralisa as pessoas que ficam com medo de tomar decisões e assinar documentos”, disse.

Há falta de coesão

Rui Araújo considerou ainda existirem “sinais de falta de coesão no Governo”, formado pelo próprio partido, a Frente Revolucionária do Timor-Leste Independente (Fretilin), pelo Partido Libertação Popular (PLP) e pelo Kmanek Haburas Unidade Nacional Timor Oan (KHUNTO).

“Uma ‘balcanização’ dos Ministérios. Na prestação dos cuidados há problemas. Nos Ministérios onde existem tutelares da pasta do mesmo partido as coisas são mais fáceis. Mas também se nota o problema de ministros e vice-ministros que são do mesmo partido e não têm o mesmo peso político e as coisas também não funcionam como se quer”, adiantou.

“A falta de coesão é menor em Ministérios onde o ministro e o vice são de partidos diferentes. Há disputa e abre margem de oportunidade para o pessoal da administração pública fazer também os seus jogos políticos”, frisou.

Neste cenário, considerou, é importante haver “comunicação intensiva” entre os membros do Governo e que o primeiro-ministro tenha “mais intensidade na gestão da relação entre Ministérios”. “Porque é complicado ter vários partidos com diferentes interesses não só partidários, mas pessoais. É preciso gerir isso bem”, afirmou.

Disponível para liderar Fretilin

Rui Araújo disse que está disponível para se candidatar à liderança da Fretilin, maior partido do país, quando o processo de eleições internas ocorrer. “Estou a pensar nisso, com outros camaradas. É um movimento. Estamos a trabalhar”, disse em declarações à Lusa, explicando que apesar de estar actualmente afastado de cargos políticos continua “activo na política”.

“Temos eleições para a liderança do partido pela frente. Dependente das decisões do Comité Central e da vontade dos militantes”, frisou.

A possível candidatura de Rui Araújo – que foi primeiro-ministro no VI Governo e ocupou ainda a pasta de ministro da Saúde – ao cargo de secretário-geral da Frente Revolucionária do Timor-Leste Independente (Fretilin) tem vindo a ser alvo de debates políticos em Timor-Leste há um longo período.

Vários nomes têm sido associados a esta eventual candidatura num processo eleitoral com data ainda por marcar, que a concretizar-se seria a mais recente tentativa de desafio à liderança do atual secretário-geral, Mari Alkatiri.

Até ao momento, porém, esses diálogos têm sido relativamente circunscritos com poucas declarações públicas sobre o assunto e sem que tenha havido uma declaração de candidatura.

Rui Araújo considera que há actualmente apoio no partido para a mudança de líder e que há condições para que esse processo ocorra. “Sim. As pessoas pensam que é tempo de haver alternativas e tempo de apresentar projetos de melhor sustentabilidade para o país. Creio que dentro do partido há condições para se fazer isso”, considerou. “Mas depende dos mecanismos eleitorais do partido”, disse.

Questionado sobre que Fretilin gostaria de liderar, Araújo disse que o partido é “uma frente ampla que “acomoda todas as tendências ideológicas e políticas no país”. A Fretilin, disse, “já provou ser um partido que consegue unir as pessoas, que consegue estar à testa da luta em momentos muito difíceis do país, e deve ser essa Fretilin a continuar a projetar e exercer esse papel no futuro”.

Rui Araújo, que diz estar a fazer hoje mais trabalho técnico apesar de continuar “ativo na política”, escusa-se a avaliar a atual liderança, considerando que essas avaliações são subjectivas e que respeita o princípio de que “a maioria prevalece”.

“Penso que a actual liderança do partido tomou decisões em momentos concretos da conjuntura política. São responsáveis pelo que fizeram. Quem sou eu para julgar se foi bom ou não”, disse.

Como também prefere “deixar para que a história julgue” o impacto que as decisões tomadas nos últimos anos pelo Presidente da República, Francisco Guterres Lú-Olo – que continua a ser presidente da Fretilin – possam ter tido no partido.

“Prejudicar não. Mas projectou uma imagem, uma certa perceção na sociedade timorense, sobre alguma parcialidade, mas isso, como disse, são percepções das pessoas e a história dirá”, afirmou.

Há, no entanto, uma questão em que diverge da decisão da liderança do partido, a de viabilizar desde meados do ano passado o VIII Governo, que formalmente nasceu em 2018 assente numa coligação pré-eleitoral onde estava o Congresso Nacional da Reconstrução Timorense (CNRT), de Xanana Gusmão, que posteriormente saiu do executivo.

“Sempre defendi que a forma mais adequada para a Fretilin participar era formar um Nono Governo, liderado ou facilitado pela Fretilin. O entendimento seria diferente”, disse, admitindo que isso foi parte do que o levou a não aceitar um convite para integrar este executivo.

“Não só isso, mas penso que não há condições políticas para trabalhar a sério em áreas muito técnicas como a saúde, porque há muita balcanização e politização. É melhor deixar para outros e eu dar a minha contribuição em termos técnicos”, frisou.

Agora, disse, caberá aos eleitores em 2023, data prevista para as próximas legislativas, avaliar a atuação de todas as forças políticas. “O resultado vai refletir a forma como o eleitorado penaliza ou aplica sanções políticas às pessoas que exerceram o poder nestes últimos anos”, disse. “E não foram, infelizmente, bons anos para Timor. Há esperança de que a situação melhore”, considerou.

27 Jan 2021

Nancy Io, cineasta: “Macau é o local ideal para exibir cinema independente”

A curta-metragem “Projecto Miúdos”, de 2016, foi a estreia de Nancy Io no mundo do cinema de Macau. Licenciada em Taiwan, a também professora decidiu regressar aos bancos da universidade para aprender mais sobre pós-produção, estando neste momento a trabalhar num filme que se passa em Macau nos anos 90. Nancy Io assume que construir uma verdadeira indústria do cinema no território é preciso exibir mais cinema independente e apostar na formação

 

Antes de “Projecto Miúdos”, foi para Taiwan estudar cinema. Porquê Taiwan?

O “Projecto Miúdos” teve uma boa reacção em Macau e, por sorte, também foi exibido duas vezes em Taiwan. Nesse período conheci muitos produtores e pude sentir a sua paixão pelo cinema. Um amigo meu também tinha feito uma pós-graduação em Taiwan e havia lá vários locais de exibição de filmes com temas novos que eram raros em outros sítios. Havia também um festival de cinema. Fui para Taiwan porque queria estudar a origem, o desenvolvimento e as características dos filmes chineses, por serem parte importante da cultura chinesa. Também quis perceber o desenvolvimento do cinema em diferentes países. A diferença nos modos de vida tem impacto nas características dos filmes. Agora estou a produzir um filme em parceria com um professor da universidade.

De que projecto se trata?

Estou a frequentar uma pós-graduação em cinema na Universidade Nacional de Artes de Taiwan, onde quero desenvolver mais o meu conhecimento sobre empresas do ramo da pós-produção. Estou na fase de preparação para um filme novo cujo conteúdo é sobre os anos 90 em Macau. É uma história de suspense e de amor, mas é também o trabalho final da minha pós-graduação de quatro anos.

Porquê apostar tanto no conhecimento sobre a pós-produção?

Para mim é uma parte muito importante de cada filme, tem de ter um estilo certo e tem uma enorme influência. Nem todos conseguem tratar bem a cor, o som, a edição de um filme, e só o nosso coração sabe o que é o mais correcto. Por isso tenho de ser prudente na escolha da empresa de pós-produção.

De que forma é que “Projecto Miúdos” mudou a sua carreira?

O filme fez parte de um projecto da Direcção dos Serviços de Educação e Juventude, sobre o consumo de leite nas escolas. As escolas distribuem inquéritos aos pais para estes escolherem se os seus filhos bebem ou não leite. O nosso filme era muito parecido com esse projecto, focado no facto de serem escolhas dos pais em vez das crianças. Achamos que o leite é um alimento nutritivo, mas será que as crianças gostam? Por isso pusemos o nome “Projecto Miúdos”. Sou professora num jardim de infância e vejo que há alguns problemas no sistema educativo em Macau.

Tais como?

Os pais querem que os filhos aprendam coisas novas, as escolas querem que as crianças participem em espectáculos para desenvolverem talentos. Quando produzi o filme quis apresentar a pressão que é colocada pelos directores das escolas aos professores, que depois pressionam as crianças. No fim, as crianças são vítimas.

Como concilia a sua profissão de docente com a carreira no cinema?

Mesmo sendo professora, fiz a mim própria a promessa de fazer um novo filme por ano. Sou professora de artes, o que está muito relacionado com aquilo que eu mais gosto no cinema, que são os arranjos, a concretização de um mundo fictício para o telespectador. É o poder combinar a luz, a fotografia, os efeitos especiais, o criar todo um estilo visual num filme. Neste momento o mercado cinematográfico atravessa uma fase próspera e temos muitos filmes com a mesma qualidade e efeitos usados nos filmes feitos na China. Por isso quis estudar diferentes linguagens do cinema.

Trabalhou no projecto do filme “Fig”. Como surgiu esta oportunidade?

O “Fig” é uma obra de Vincent Chui Wan Shun, que foi meu professor quando estava no segundo ano da universidade. Quando acabei o curso ele propôs-me trabalhar na realização do filme e também na direcção de arte. Fiquei surpreendida mas, como gostava do filme, concordei em trabalhar no projecto. O meu professor queria juntar jovens que se interessavam por um período mais antigo do cinema de Hong Kong para se fazer filmes independentes e foi criado o grupo Ying e Chi, e vários jovens que fizeram parte deste grupo tornaram-se realizadores em Hong Kong. O Vincent organiza um festival de cinema independente por ano, procura filmes de todo o mundo para que os mais jovens possam ter esse contacto.

Também tem essa vontade de contribuir para o cinema local que não apenas através dos seus filmes?

Gostava de levar mais curtas-metragens de Macau para serem exibidas em Taiwan, para que o público de Taiwan possa conhecer melhor o que se faz em Macau e para que haja uma comunicação. Também quero atrair mais estudantes para esta área. Espero que Macau possa ter a sua própria indústria cinematográfica no futuro, e que eu possa contribuir para isso.

Mas Macau já tem um sector do cinema com algum desenvolvimento?

Há dez anos começaram a ser umas longas metragens, mas a reacção não foi muito boa, e também não havia formação em cinema. Havia apenas cursos na área do jornalismo e da comunicação e ao nível da produção de curtas-metragens. Não temos uma verdadeira indústria, pois mesmo com conhecimentos não temos muitas oportunidades nem espaço para desenvolvimento. Pelo contrário, a indústria do cinema em Hong Kong está muito mais desenvolvida. Macau está apenas numa fase inicial e é por isso que a educação é essencial.

Alguns filmes de Macau têm tido presença lá fora, por exemplo.

Sim. Temos um festival de cinema com a presença de vários países e o filme de Tracy Choi, “Sisterhood”, venceu a primeira edição do Festival Internacional de Cinema de Macau. Recentemente o filme “Crash”, de Hong Heng Fai, entrou para a lista de candidatos ao prémio de melhor curta-metragem dos Prémios Cavalo de Ouro do Festival de Cinema de Taipé. Alguns realizadores de Macau também participaram em festivais em Berlim, Índia e Taiwan, o que significa que o cinema em Macau já teve o seu início.

Como explica que só agora a indústria do cinema esteja a dar os primeiros passos?

Em Macau pensa-se que trabalhos como as artes, o cinema ou as indústrias culturais e criativas no geral não dão o mesmo nível de rendimento, por isso é mais difícil formar uma atmosfera artística no território. Se os jovens puderem ver filmes diferentes podem entender outro tipo de questões sociais, bem como o significado de fazer um filme independente. Mas não é fácil afastarmo-nos da cultura cinematográfica dominante.

E os cinemas de Macau, estão prontos para o cinema independente?

Há várias salas de cinema, mas não há muitas que queiram projectar cinema independente. Gostava de ver algumas salas a exibir mais filmes de Macau e não apenas o cinema comercial que tem como intuito ganhar dinheiro. Quem estuda cinema sabe que uma oferta baseada no cinema comercial não chega para desenvolver um sector. Num território pequeno é preciso equilibrar as coisas. Para desenvolvermos o cinema é preciso ensinar cinema. É mais fácil o público compreender o cinema comercial, porque tem celebridades e temas populares, enquanto que o cinema independente tem baixo custo e os filmes são mais experimentais. Mas os cinemas não devem ter em conta apenas os elementos comerciais de um filme. Há também realizadores que só querem fazer dinheiro, outros que assumem esta profissão por vaidade. Mas Macau é um local apropriado para a exibição de cinema independente devido aos casinos, porque muitos jovens acham que os casinos dão oportunidade de salários mais altos e pensam que a educação não é importante e só querem começar a trabalhar o mais cedo possível.

26 Jan 2021

Rui Mota, treinador de futebol na China: “Consegui mais do que aquilo em que acreditava”

Natural de Guimarães, Rui Mota chegou à China em 2016 para treinar um clube da terceira divisão, o Sichuan Longfor, e desde então que o seu percurso profissional tem sido ascendente no mundo do futebol. No início deste mês, Rui Mota assinou por mais dois anos com a federação chinesa e garante que o objectivo é levar a selecção ao campeonato asiático e do mundo

 

Acabou de renovar contrato com a federação chinesa de futebol por mais dois anos. Como foi chegar até aqui?

Estou no futebol há cerca de 15 anos, e em Portugal fiz um percurso interessante, em que época a época ia dando passos em frente. Até que em 2016 surgiu a oportunidade de poder ingressar num projecto ligado a um clube na China, na altura na terceira divisão. Vim sozinho, era o único português e estrangeiro no clube. Entreguei-me de corpo e alma porque estou muito focado na minha carreira, venho de baixo para chegar ao topo e quero chegar ainda mais longe, e só assim é que pode ser feito.

Como é o futebol na terceira divisão face aos outros escalões? Há ainda uma grande diferença em relação à qualidade de jogo e na própria formação de jogadores?

Na China há uma realidade diferente da nossa. Os clubes vão fechando e vão abrindo, há clubes muito recentes. Em 2016 o clube onde estava só tinha um ano de existência. Eles queriam tentar chegar à segunda liga, era um projecto para três anos, e a minha contratação foi mesmo nesse sentido, para tentar modernizar. Aqueles meses iniciais correram bastante bem, tanto que a divulgação na China, nos media e nas redes sociais, foi forte, houve um grande impacto. Desse trabalho surgiu-me, passados oito meses, na parte final da época, a possibilidade de fazer uma experiência na selecção de sub-19 da China. Na altura ia participar no campeonato asiático no Bahrein e foi uma decisão que tomei, correndo o risco de sair do clube e ir à selecção tentar a minha sorte. Se corresse bem seria um passo enorme. Estamos a falar de uma selecção com toda a magnitude que isso representa e teria também a possibilidade de participar numa prova internacional, com selecções, algo que nunca me tinha passado pela cabeça. A verdade é que o seleccionador, agradado com o meu trabalho, me convidou para integrar a equipa técnica dele. O seleccionador era chinês, um grande nome no futebol aqui no país, e fui o braço direito dele no campeonato asiático no Bahrein. Esse foi também o momento em que a selecção A estava com resultados menos bons e o seleccionador fez uma mudança. Nessa altura estávamos no Dubai e surgiu a possibilidade do meu seleccionador poder avançar para a selecção A. Mas depois foi contratado um estrangeiro e mantivemo-nos no campeonato asiático.

Quando terminou essa experiência no Bahrein, o que aconteceu?

No final desse campeonato o meu trabalho foi bastante falado na China. Quando cheguei ao país tinha um objectivo, a possibilidade de tentar ficar no país durante quatro anos, em que tentaria chegar à super liga chinesa. Não fui jogador a nível profissional e é um trabalho que tem sido desenvolvido a pulso. Quando terminou o campeonato asiático pensei que tinha de tentar entrar na segunda liga no ano seguinte, e felizmente isso aconteceu.

Foi para que clube?

Na altura fui trabalhar com uma antiga glória do futebol, o holandês Jo Bonfrere, que tinha sido seleccionador da Nigéria durante muitos anos. Consegui ter essa aprendizagem, concluímos essa época na segunda liga, e depois felizmente fui surpreendido com o convite do Beijing Guoan, que é uma espécie de Real Madrid aqui na China, um clube com mais antiguidade, com muitos adeptos.

Onde esteve até 2018.

Sim. A estrutura técnica era alemã, liderada pelo alemão Roger Schmitz. Mas trabalhar na China é por vezes desgastante, porque estamos em constantes viagens. Quando temos deslocações, que são de duas em duas semanas, temos de fazer milhares de quilómetros e eu na altura estava desgastado com todas essas viagens e solicitações. Decidi que teria de dar um novo passo na minha carreira e foi aí que passe a integrar os quadros da federação. Assinei contrato no início de 2019. Uma colaboração muito abrangente e permanente até ao ano passado. Depois tive de estar em Portugal até Agosto, mas já regressei à China. Neste momento, renovei contrato e aqui estou.

Qual é agora o caminho? Escreveu nas redes sociais que o principal objectivo é a qualificação da selecção chinesa para o campeonato asiático e do mundo. 

Estamos a viver momentos de muita incerteza, mas existe agora este projecto e a minha participação com a selecção é abrangente. Integro e sou seleccionado para projectos, e o que está em causa é tentarmos a qualificação para o campeonato asiático e depois possivelmente para o campeonato do mundo. A FIFA tem adiado algumas informações e decisões que tinha de tomar devido à pandemia, e estamos a fazer os nossos estágios e preparações, mas correndo o risco de tudo poder ser suspenso ou adiado. Seja como for, estamos preparados para competir quando for necessário.

A selecção chinesa tem capacidade para competir e ter um bom desempenho num campeonato do mundo?

A China tem um projecto até 2050, em que pretende participar no campeonato do mundo e até ser campeã em 2050. A ideia será, não só comigo, mas com todos os estrangeiros que vêm para a China, para os clubes, tentarmos desenvolver o futebol chinês e os seus jogadores no plano individual e colectivo. Esse é um trabalho que demora a ser feito, e comparando com o que vi quando cheguei e com o que vejo agora, parece-me que tem havido uma evolução. É isso que pretendemos. Têm sido feitas algumas naturalizações na selecção, o que de certa forma me poderá ajudar. O nosso pensamento neste momento é tentarmos ser cada vez mais competitivos e dentro da Ásia chegar a um patamar semelhante ao do Japão, Coreia do Sul ou Irão, que são as selecções mais desenvolvidas neste continente. Essa aproximação está a ser feita, mas de uma forma morosa, mas poderemos ter capacidade de ingressar no campeonato do mundo em breve.

A percepção da sociedade chinesa em relação ao futebol também tem vindo a mudar.

Isso aconteceu com a criação de muitas academias em todo o país. Alguns clubes de renome vieram para o país implementar os seus projectos e esse é o caminho que melhores frutos poderá dar no futuro. Tentarmos treinar e desenvolver os jovens jogadores neste momento, crianças dos seis aos dez anos, que serão a futura geração. Esses jogadores poderão estar mais desenvolvidos no plano teórico e poderão elevar o patamar para voos mais altos.

Sobre o plano do Governo chinês para o futebol. Sente pressão no seu trabalho para ser mais competitivo e responder a esse desígnio político?

A pressão no futebol acompanha-nos sempre, seja onde for. É claro que, não só na China mas em todo o lado, quando se fazem investimentos esperam-se retornos, e a China não será excepção. Acima de tudo, a federação e o Governo têm consciência de que é um projecto que precisa de tempo. Que começou em 2012 e vai até 2050. Ficamos logo com a ideia que são precisos resultados, mas é preciso fazer muito trabalho de base para que possamos chegar a um trabalho de detalhe. Neste momento, é importante incutir a paixão pelo futebol e que se criem mais academias e infra-estruturas. A China, desde 2018, 2019, consegue em várias cidades do país apresentar centros de treino com muita qualidade. O facto de terem vindo alguns jogadores estrangeiros de renome também é importante para os jovens. O futebol tornou-se disciplina obrigatória nas escolas e a ideia é que as crianças se possam sentir seduzidas ao ver jogadores com qualidade e com nome.

O futebol existe na China também fora dos grandes centros urbanos.

Sim. A China está a fazer novas construções, não só ao nível dos centros de treino, mas dos próprios estádios. Estão a ser criadas novas academias e clubes, e o projecto [político] inclui uma série de regras e leis que tenta melhorar toda a estrutura. É muito frequente ver também clubes de futebol em cidades mais pequenas. Quando cheguei à China, em 2016, vim para Chengdu, que tem 14 milhões de pessoas e só havia dois clubes de futebol.

Como é que a pandemia tem afectado o seu trabalho?

O trabalho da selecção foi suspenso. E quando fiquei em Portugal, em final de 2019, quando fui de férias, não pude regressar. A China está a encarar esta pandemia como todos os países deveriam encarar, como uma guerra, porque é disso que se trata. As indicações que tive foi para ficar em Portugal e aguardar novos desenvolvimentos. A China joga pelo seguro e pela prevenção máxima, e a nível de selecção os trabalhos foram cancelados, incluindo as idas ao estrangeiro. O campeonato de clubes também foi sendo adiado. Foi feito um campeonato com as mesmas jornadas, mas de forma mais curta e foram escolhidas algumas cidades para tal.

Projectos para o futuro?

A minha mentalidade e personalidade tem sempre a ver com novos objectivos e desafios. Consegui ganhar uma taça da China ao serviço do Beijing Guoan, consegui um apuramento para a Liga dos Campeões Asiática, a participação no campeonato asiático e trabalhar na selecção. Consegui mais do que aquilo em que acreditava. Pretendia, passados esses quatro anos voltar a Portugal, mas como estamos a trabalhar para estas duas grandes competições, e apesar de todas as incertezas, neste momento estou aqui. Mas pretendo voltar a Portugal e chegar a um patamar elevado.

19 Jan 2021

Anabela Santiago, doutoranda da Universidade de Aveiro: “Relação da China com OMS não sairá abalada”

Esta quinta-feira uma equipa de peritos da Organização Mundial de Saúde (OMS) chega à China para investigar a origem do novo coronavírus. Para Anabela Santiago, doutoranda da Universidade de Aveiro na área das políticas de saúde pública da China, a relação do país com a OMS não sairá afectada e pode até ajudar a pôr um ponto final a muitas teorias da conspiração sobre a covid-19

 

O que poderemos esperar da visita da OMS à China? O resultado desta investigação poderá alterar a relação da China com a OMS, ou a própria credibilidade da China face às políticas na área da saúde?

A visita de um grupo da OMS inclui peritos de várias áreas que podem ajudar, de facto, a elucidar um pouco qual foi a origem deste novo coronavírus, independentemente de ter sido na China ou não. A relação da China com a OMS, e com outras instituições das quais o país faz parte, não sairá abalada por esta visita. Apesar de ouvirmos diariamente nas notícias que a China colocou entraves a esta visita a verdade é que isto não é inédito, e no que toca à China há sempre entraves burocráticos por algum motivo. Esta missão já estava prevista há algum tempo e o atraso deve-se a burocracia com os vistos. Pelo que tenho vindo a estudar, a visita prende-se essencialmente com um espírito de cooperação da comunidade científica, ou seja, [os peritos] não vão lá “pôr a mão na massa”, porque os cientistas chineses têm vindo a fazer isso. O que a OMS vai tentar ver é o que tem sido feito pela comunidade científica chinesa e tentar transmitir isso ao mundo. Vão tentar dar uma certa transparência daquilo que está a ser feito no terreno pelos cientistas chineses e que agora vão ter a colaboração de outros parceiros, sempre numa lógica de cooperação. A OMS vai fazer uma espécie de auditoria, mas isso não quer dizer que estes cientistas descubram tudo no espaço de poucas semanas.

A visita visa também acabar com a especulação que se tem gerado em torno da origem do vírus, com muitas teorias da conspiração associadas à Administração Trump.

Sim, penso que será mais nessa perspectiva, de acabar com certos preconceitos, até porque já vários elementos da OMS e da própria equipa que vai estar no local vieram dizer que esta não é uma busca pelo responsável do vírus, porque isso pouco importa nesta fase. Independentemente do resultado que se venha a obter, é importante trazer algumas lições em termos de saúde pública e daquilo que os diversos governos, dos vários países, podem fazer para que isto não volte a acontecer.

À China também interessa esta transparência para manter o seu soft power e as suas políticas de ajuda na área da saúde?

Sim. A China, como sabemos, tem um sistema político muito fechado em si próprio e não vamos agora tecer juízos de valor. Tem havido muitas vozes que se erguem contra a censura, a tentativa de abafar determinados assuntos, mas isso sempre aconteceu independentemente deste contexto de pandemia. Mas penso que interessa à China trazer evidências científicas para limpar alguma imagem menos boa que possa ter passado para o mundo ocidental e desmistificar tudo isto. Trazer à luz evidências de que o vírus não foi criado em laboratório, por exemplo, e outros aspectos que têm vindo a público. A China depressa conseguiu dar a volta e tirar partido do facto de ter sido o primeiro país onde foram detectados os casos para logo de seguida tomar medidas e até ajudar outros países. Fazer da assistência humanitária uma bandeira.

Recentemente o Conselho de Estado chinês divulgou mais um Livro Branco sobre a cooperação internacional onde a área da saúde surge em grande destaque. Acredita que no contexto da política “Uma Faixa, Uma Rota” a saúde será a área dominante nas relações da China com outros países, nos próximos anos? A pandemia da covid-19 veio também dar mais destaque a esta área?

O conceito de “Uma Faixa, Uma Rota” é muito abrangente e é um projecto que inicialmente não tinha tanto foco na saúde. Tinha por base a criação de infra-estruturas. O que aconteceu é que a pandemia veio dar um grande destaque à área da saúde, daí que a saúde não teria tido tanta preponderância neste projecto como está a ter, é um facto. Todo o programa de “Uma Faixa, Uma Rota” está a ser alvo de reestruturação e não sei se a saúde terá o papel predominante, mas terá sem dúvida um papel importante. Esse programa já não está a ser re-orientado para infra-estruturas físicas, porque muitos dos contratos estão a ser revistos e cancelados, e a China está a tentar re-orientar esta faceta para um desenvolvimento mais digital. A iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” não está posta em causa, mas vai ter de se adaptar às novas circunstâncias. E a Rota da Seda da Saúde vai ter um papel muito importante, até porque falamos também do sector agro-alimentar, à segurança alimentar e de produção de medicamentos.

A China sempre foi encarada como sendo um país com pouca credibilidade nessa área. De certa forma, o país cada vez mais se afasta dessa imagem.

Sim, sem dúvida. Podemos fazer a comparação com o surgimento do vírus SARS-Cov-1, em 2003, e vemos uma China muito mais preparada para lidar com crises de saúde pública. Portanto, isso é inegável e a China sempre se pautou por querer passar de um país onde não havia grande investigação científica e onde a formação dos quadros técnicos não era muito avançada, para um país onde o desenvolvimento se baseia na economia e na investigação. O sector da saúde é um grande exemplo disso. Em 2013, quando se criou a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”, foi uma maneira de dar corpo ao que o Presidente chamou de “sonho chinês”. A China tem todo o potencial para, do ponto de vista internacional, ser vista como uma potência que ainda não atingiu certos patamares de excelência, mas que caminha a passos largos nesse sentido. Esta iniciativa que eles têm de receber equipas estrangeiras e de enviarem pessoal das suas universidades para o exterior é um sinal de abertura do país.

De certa maneira, olhando para a UE, a China ganhou terreno na resposta à pandemia?

É evidente que não podemos comparar os números chineses com os europeus porque a população é maior. Do ponto de vista da resposta que é dada, sim. É um assunto um pouco polémico, mas muitos media referem que a medicina tradicional chinesa (MTC) também tem ajudado no combate à covid-19, coisa que não acontece na Europa. Não há evidências científicas nesse sentido, se será a melhor via para o tratamento da doença, se é apenas um cuidado adicional. Mas a China também refere que conseguiu uma resposta eficaz à covid-19 pela via da MTC. A população chinesa também acata melhor regras e o uso de máscara é mais habitual.

A MTC tem estado muito presente no discurso político das autoridades chinesas. Mas, ao mesmo tempo, parece que a medicina ocidental está a prevalecer. Até que ponto é que a MTC vai manter o mesmo peso a nível da diplomacia chinesa?

Vai haver uma co-existência da MTC com a medicina ocidental, porque a China, apesar de se mostrar cada vez mais aberta a novos conhecimentos com o ocidente, e apesar de haver esta troca de conhecimentos a nível global, o país, por uma questão de herança cultural, não vai querer abandonar, de todo, a MTC. A MTC nunca vai desaparecer completamente e servirá talvez como um complemento à medicina ocidental. Os chineses encaram isso como uma coisa boa, tanto que a MTC nunca deixou de aparecer nos discursos oficiais. A China tem tentado, nas duas últimas décadas, atingir determinados objectivos de desenvolvimento sustentável segundo a agenda da ONU para 2030, e esse também é um sinal de que se pode contar com o país para assumir uma posição na arena global na área da saúde. Queria também frisar o plano que a China tem a nível interno, o Healthy China 2030, que é um programa do Governo chinês traçado antes da pandemia no sentido de implementar reformas no sector da saúde ao nível interno. Claro que não há nenhuma nação que pretenda ser um player importante na arena global sem ter primeiro os seus problemas internos resolvidos. O facto de implementarem esse plano, que visa que todos os chineses tenham acesso a cuidados de saúde primários, uma rede eficiente, e que todos tenham acesso a um seguro de saúde, é muito importante. Isso mostra que já havia uma preocupação com o sector da saúde e este plano também marca uma posição. Independentemente da pandemia, a China já queria ser um país com algum destaque na área da saúde.

Especialista diz para não se esperar uma conclusão da visita à China 

Dale Fisher, presidente da Global Outbreak Alert & Response Network, ligada à OMS, disse esta segunda-feira, na conferência Reuters Next, que não se deve esperar uma conclusão concreta da visita da OMS à China, a propósito da investigação da origem do novo coronavírus. “Estou mais inclinado para que as expectativas face a uma conclusão sejam muito baixas para esta visita. Penso que é uma visita importante mas não se deve exagerar relativamente ao surgimento de um resultado desta vez”, disse, citado pela Reuters. Esta quinta-feira uma equipa de peritos da OMS irá voar para Wuhan a partir de Singapura, confirmou ontem Zhao Lijian, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da China. No entanto, ainda não está confirmado se a equipa da OMS terá de fazer quarentena à chegada ao país, não tendo sido também adiantados detalhes da visita.

13 Jan 2021

Cecília Jorge, jornalista: “Conhecer a identidade é uma forma de sobreviver”

Cecília Jorge apresenta na próxima segunda-feira, na Fundação Rui Cunha, o livro “Poemas para Macau”. Ao HM, a autora revela que a obra intimista apenas viu a luz do dia porque revela, através de si, “um pouco da identidade macaense”. Sobre a comunidade, lembra que há várias tonalidades com pontos comuns que é preciso ligar e que a língua portuguesa não é fundamental para definir os macaenses

 

Porque decidiu editar “Poemas para Macau” nesta altura?

Isto é uma obra que não era para ser. Vou explicar melhor. Eu não sou poetisa, muito pelo contrário, sou gente da prosa e jornalista, ou seja, factual e realista, mas de vez em quando, acho que nos dá a todos para a poesia, sobretudo na adolescência. Os poemas seleccionados resultam de um conjunto que foi sendo feito ao longo de 30 anos. Não estão cá todos, mas estão cá aqueles que nós conseguimos recuperar e que considerámos passíveis de publicar. É um livro muito intimista, mas decidi publicá-lo por uma razão simples: porque revela um pouco da identidade macaense. Eu sou profundamente macaense, a minha família está cá, tanto quanto eu sei, há quase 400 anos. O meu pai nasceu cá, bem como o meu avô, a família Jorge é muito antiga. Analisando esta obra como jornalista, considero ser uma ferramenta para entender a identidade macaense, que eu tenho estado toda a minha vida a tentar provar que existe. Hoje em dia não há grande dúvida de que existe uma comunidade que se destaca da lusófona e que, embora esteja muito próxima, não está integrada na comunidade chinesa. Portanto é uma comunidade autónoma culturalmente e isso era importante provar.

Quando concluiu que queria embarcar nessa tarefa?

Fui para Portugal aos 16 anos e voltei com 29. Passei a maior parte do tempo em Portugal, onde, depois de estudar, fui jornalista. Lembro-me que uma das discussões que tínhamos na redacção [da ANOP, antiga agência LUSA] entre amigos e camaradas que prezo muito, era quando discutíamos sobe macaenses e eles me chamavam “chinesinha”, mas com carinho. Sempre fui descriminada pela positiva. Quando dizia que era macaense, um deles convenceu-me que estava na hora de voltar para Macau depois de ter estado 14 anos fora e de ter a minha vida feita em Portugal. Ele dizia-me assim: “Cecília, o macaense não existe, vocês são ficção. Se vocês estão na China são chineses e Portugal não vos conhece”. Ele dizia isso convicto e tinha razão, porque naquela altura pouca gente se dava conta que existia uma comunidade com identidade própria em Macau e que estava muito ligada a Portugal culturalmente.

Foi isso que a fez voltar para Macau?

Voltei porque nessa altura era jornalista e enfiei na cabeça que tinha de registar a memória de Macau e dar a conhecer Macau. Decidi passar a escrever peças e artigos sobre Macau, dar a conhecer isto, as tradições chinesas e a realidade macaense. A outra razão foram os meus três filhos que são macaenses mas nasceram em Portugal. Olha-se para eles e têm traços miscigenados, vê-se tal como eu, a “chinesinha”, que não são de lá, embora tenham lá nascido. Eu quis trazê-los para conhecerem a terra dos avós e as raízes, porque julgo que é muito importante nós sabermos de onde vimos para nos sentirmos confortáveis com a nossa pele e com a nossa identidade, seja qual for.  No caso macaense isso é muito forte porque a miscigenação e a multiculturalidade é muito vasta e muito intensa. Isso define o macaense. O facto de ser multicultural e miscigenado. Não digo mestiço, porque são vários sangues que se misturam. Como é isso que define um macaense é isso a safa dele. Conhecer a identidade é uma forma de sobreviver.

Porque é que a obra constitui uma oferta para Macau?

A escolha do título é precisamente para assinalar que são poemas para Macau. Isso também explica a razão de o livro ser apenas disponibilizado no dia do lançamento na Fundação Rui Cunha e de não entrar no circuito comercial. É uma edição muito limitada, nós temos que pôr à venda porque somos editores, mas o preço é quase simbólico porque acho que o livro deve ser comprado pelas pessoas que o querem ler.

No prefácio da obra, Vera Borges fala num “pranto de amor e morte” oferecido a Macau. Qual a razão por trás desta dicotomia e como podemos ver isso na sua poesia?

Embora tenham sido escritos em anos diferentes, quando lidos em conjunto, traçam um percurso que foi o meu, mas que, provavelmente, terá sido o de muitos dos meus conterrâneos. Daí o “pranto de amor e morte” e, embora eu não esteja num desespero grande, até porque já tenho idade para não desesperar e a vida já encaixou em mim, permitindo-me olhar para isto tudo filosoficamente, a verdade é que nós perdemos o chão. Com a mudança de paradigma [transição de soberania], nós perdemos o chão. A comunidade macaense sempre viveu cá quando tinha emprego, mas nunca houve muitas oportunidades porque a terra é muito pequena. Por isso, as pessoas estão sempre a partir, em revoadas. Houve uma altura em que chamei a Macau “terra de tufão”. Somos uma comunidade em terra de tufão. Não assentamos arraiais, embora tenhamos raízes fundas. Mas essas raízes plantadas em Macau, mesmo sem falar da questão da soberania, sofreram as consequências da própria terra que mudou. O património desapareceu e as referências estão a ir-se embora. A própria configuração física e geográfica de Macau alterou-se. Temos uma coisa de pouco mais de 20 quilómetros quadrados que já tem 30 e tal. A configuração da montanha, dos cursos de água, da baía, tal como a natureza traçou, isso tudo foi alterado e até temos aterros. Lembro-me ainda de ver passar golfinhos nas águas onde agora está a estrada do istmo. A própria configuração da terra desapareceu, portanto é natural que os próprios macaenses sintam, já não digo a nostalgia, mas a diferença.

Nesse sentido, a indústria do jogo é para sim um choque?

A mim choca-me muito. Não há poesia suficiente para dizer que sou 100 por cento contra os casinos, porque se formos a ver, a nossa única fonte de rendimento é o jogo. Faz-me impressão pensar o que, no meio disto tudo, sobra para os residentes de Macau, quando, por exemplo, não podem ir à rua por causa da poluição. Eu cheguei a passear na Praia Grande para curtir a brisa do mar. Os Verões eram quentes, mas havia frescura, uma brisa marinha que entrava pela cidade, pois os prédios não eram altos. Não posso parar o tempo, mas se tivermos cabeça para orientar bem as coisas a evolução não terá custos tão fortes. O poema do “pranto de amor e morte” vem disso tudo. Há uma mistura entre a percepção de nos terem tirado o chão e a necessidade de sobreviver. Acredito que me vou embora quando Deus quiser, não sou imortal, mas podíamos não sofrer tanto. Consigo tirar alegrias e conforto de quase nada e isso tem muito a ver também, o amor propriamente dito, com o companheiro e parceiro de vida que encontrei, o meu marido, que não é de cá. Juntos começamos a aventura louca de criar uma editora que já publicou mais de 150 títulos nos últimos 30 e tal anos.

Que poemas da obra destacaria para definir o macaense?

Logo o primeiro, “Macaense”. Esse poema, que foi escrito em 1989 é o retrato e a conclusão, depois de muito pensar, sobre o que é que nós somos. Aí está o meu retrato sobre o macaense que, por acaso, é dos poucos que apareceram publicados por académicos. O outro é o “Lilau”, que foi a casa onde o meu pai e eu nascemos, construída pelo meu avô e que estava agarrada à montanha. Vi a casa a ser demolida mas, quando vim, cheguei a tempo de mostrar aos meus filhos esse edifício e eles ainda viveram lá.

Como vê as novas gerações de macaenses a encarar estas questões de identidade e pertença? É muito diferente da sua geração?

É muito diferente e tendem, no futuro, a ser ainda mais. A própria comunidade mudou muito porque a miscigenação que se fez nos primeiros tempos e a miscigenação que se foi fazendo ao longo dos séculos foi-se alterando consoante as circunstâncias históricas. No entanto, acho que a mesma dúvida que me levou a regressar é a deles. Só nos apercebemos da nossa identidade quando estamos fora da nossa zona de conforto. Eu tenho esta teoria, não sei se é assim ou não, mas a maior parte dos macaenses que saíram e foram estudar para Portugal, aperceberam-se que somos diferentes. Mas então, o que é que nós somos? De onde vimos? Quais as nossas raízes? Essas dúvidas que eu estou convencida ainda existirem nos novos macaenses surge geralmente entre os 18 e os 21 anos e mais cedo se forem para fora. No entanto, a questão colocava-se mais na minha geração. No tempo em que fomos para Portugal e outras paragens e, embora não fossemos todos mal tratados, o simples facto de sermos diferentes e estrangeiros que falavam português era agressivo. Cheguei a Portugal e, apesar de falar português, os costumes não eram os mesmos, há uma diferença. Essa diferença era o facto de ser macaense, é a cultura.

Vinte e um anos depois como se sentem os macaenses em relação ao impacto da transição e ao que virá depois de 2049?

Francamente, sobre a época depois de 2049 nunca pensei muito, porque já não estarei viva nessa altura. Em relação à transição houve dificuldades. Aliás, da comunidade macaense, quem escolheu ficar em Macau depois da transferência de soberania, é porque queria mesmo e sentiu-se suficientemente seguro. No início havia medo, porque a comunidade que passou a revolução cultural em Macau, apanhou um susto nessa altura. Depois houve gente que se foi embora e voltou. A verdade também é que muitos foram para Portugal e não voltaram. Os macaenses têm uma valência muito boa que é saberem viver na comunidade chinesa e não é por ser a nossa terra, mas é porque conseguimos falar com eles. No entanto, a maior parte dos macaenses fala cantonês, mas não mandarim e quem quer emprego em Macau, sobretudo na função pública tem de dominar o chinês escrito. Ou seja, os macaenses que queiram ficar em Macau, colocam os filhos a estudar mandarim e preparam-nos para ficar cá e quem não está preparado para ficar cá, por enquanto, sobrevive. Não há dúvidas que este Governo apoia a comunidade local, mas eles não nos podem amparar toda a vida. Ou nos armamos para sobreviver ou não temos lugar cá. A questão é se nós temos lugar em mais algum lado.

A continuidade da comunidade pode estar em causa?

Há grandes bolsas de macaenses no estrangeiro. Há uma grande comunidade nos EUA que é anglófona, mas lusófonos há poucos. Uma das questões que se põe é se a língua portuguesa seria fundamental para definir o macaense. Eu sou muito contestada, mas digo que não. Era óptimo que fosse. Será muito importante que se mantenha, mas a cultura portuguesa é um traço importante, a língua já não é. Podemos ser macaenses ligados a Portugal falando muito mal português. É de se tirar o chapéu a língua ter sobrevivido durante tantos anos e ainda se falar. Apenas foi possível pelo esforço e persistência dos macaenses e o amor à língua e à pátria, digamos.

Em que língua é que um macaense pensa primeiro, quando está sozinho, por exemplo?

Depende do macaense. Estou convencida que não há um macaense, mas sim várias tonalidades macaenses. Há dois pólos, é como um leque com dois braços, que representam o Oriente e o Ocidente. O macaense está no meio e, ou está mais próximo do Ocidente ou do Oriente, e não digo só português ou chinês. Ele está entre estes dois pólos e aproxima-se mais de um pólo ou do outro, consoante os laços familiares e o ambiente em que é criado. Portanto, a língua em que ele pensa é a língua materna e é por isso que eu digo que não é fundamental que esta seja a língua portuguesa. Rezo a todos os santos para que a língua portuguesa se mantenha e que haja um esforço para que o macaense continue a ter hipóteses de aprender a língua portuguesa, mas isso cabe a Portugal e à maneira como Portugal decidir tratar as comunidades que estão cá fora. Que lhes dê armas para continuarem a ter a ligação à lusofonia, à cultura e à língua portuguesa, pois é parte intrínseca do núcleo duro do macaense, digamos. A minha mãe é minhota e o meu pai é macaense, a sua família esteve séculos em Macau. Eu estou entre os dois mundos. Tanto aprendi a dançar o Chula do Minho e gosto de migas do Alentejo como da gastronomia de Macau. Aprendi a cozinhar e cozinho das duas maneiras.

Qual a importância do patuá e da gastronomia macaense, neste contexto?

Estou convencida que não perdemos o patuá propriamente dito porque a maneira de falar dos macaenses, apesar de não ser um dialecto, é um linguajar muito próprio, com frases muito típicas. Quem estiver muito atento ao linguajar, topa diferenças sobretudo de expressões de conteúdo. Posso estar a dizer a mesma frase que um português e o sentido ser diferente. A gastronomia é um repositório de memórias muito importante e tem mais hipóteses de ficar porque é afectivo e está intrinsecamente ligado à maneira de ser da pessoa, faz parte da nossa personalidade. Nunca esquecemos as memórias que adquirimos na infância. Por isso é que é importante passarmos o testemunho daquilo que é culturalmente macaense na gastronomia para que eles pelos sabores continuem ligados á comunidade.

8 Jan 2021

João Ferreira, candidato à Presidência da República portuguesa: “Há campo para aprofundar cooperação com Macau”

Eurodeputado e candidato do Partido Comunista Português às eleições para a Presidência da República em Portugal, João Ferreira afirma que, caso vença o acto eleitoral marcado para o dia 24 de Janeiro, tudo fará para assegurar uma maior proximidade do Estado português à comunidade portuguesa residente em Macau. João Ferreira defende melhores serviços consulares e um maior aproveitamento da relação histórica com o território

 

Que significado tem a sua candidatura no contexto da diáspora portuguesa?

Esta é uma candidatura à Presidência da República que não pode deixar de ter presente na sua intervenção a enorme diáspora espalhada pelo mundo. É importante ter presente o que foram as motivações de muitos desses portugueses que foram procurar em outras paragens pelo mundo aquilo que muitas vezes não encontravam em Portugal. Estamos a falar de pessoas com vidas marcadas muitas vezes pelo desemprego, a falta de perspectivas de realização profissional e pessoal, precariedade. [O Presidente da República] deve ter presente no exercício dos seus poderes estas causas. Tenho contactado com muitos emigrantes de várias partes do mundo e há uma ideia generalizada de voltar ao seu país, mas encontrando aquilo que não encontravam quando saíram.

Mas nem todos os emigrantes pretendem voltar.

Há portugueses que ganharam raízes e aqui o Presidente da República tem alguma responsabilidade, que passa pelas relações do Estado português com outros países onde existam comunidades portuguesas. É importante construir relações a diversos planos, político, económico, social e cultural, que sejam mutuamente vantajosos e que defendam os interesses das comunidades portuguesas. A mensagem que posso dirigir a todos os portugueses na diáspora é que, se tiver a oportunidade de exercer os poderes de Presidente da República, terei presente estas preocupações na minha acção.

O Governo lançou algumas medidas para o regresso de emigrantes e para a atracção de investimento. São suficientes?

Aquilo que foi posto em prática é insuficiente, e a melhor demonstração disso é o facto de terem sido poucos aqueles que regressaram ao abrigo destas medidas. Há que garantir que as condições de emprego com direitos [são asseguradas], sem esquecer que muitos daqueles que hoje procuram na emigração oportunidades de realização profissional são portugueses muito qualificados, que têm um contributo muito importante a dar para o desenvolvimento do nosso país, e que infelizmente foram empurrados lá para fora por falta dessas oportunidades. Aqui as questões dos salários são incontornáveis. A nossa Constituição reconhece essa necessidade de protecção especial dos jovens no acesso ao primeiro emprego mas também garantir uma justa valorização dos salários e oportunidades de emprego. Isto exige uma intervenção do Presidente da República. Infelizmente a intervenção do Presidente da República não tem contribuído para isso. Aliás, muitas vezes tem desajudado.

Em que sentido?

Não me esqueço que o actual Presidente da República e agora candidato [Marcelo Rebelo de Sousa], há um ano estava a dizer que 635 euros era um valor razoável para o salário mínimo nacional. Ora este é um salário que obriga as pessoas a fazerem escolhas sobre as contas que têm para pagar.

Acredita agora numa nova vaga de emigração devido à crise gerada pela covid-19? Houve uma vaga entre 2008 e 2011 com a intervenção da Troika.

Infelizmente temos esse exemplo recente onde voltámos a ter valores de emigração como nunca tínhamos visto em democracia. Creio que uma situação destas não se pode repetir e que cabe ao Presidente da República tudo fazer para fazer com que ela não se repita, e eu tudo faria para a evitar. Agora, a situação não é clara ainda. Se a intervenção do Estado não estiver alinhada nesse sentido então podemos ter uma maior degradação da situação económica e social, que pode ter repercussão no crescimento da emigração. Se olharmos para sectores importantes da actividade económica, como o turismo e a restauração, é com grande preocupação que vemos não serem tomadas medidas que são essenciais.

Falando agora da qualidade dos serviços consulares. Que resposta é que o Estado português deveria fazer para melhorar o seu funcionamento?

A situação ao nível da rede de embaixadas e consulados é bem demonstrativa que os interesses das comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo têm sido descurados. Temos também uma insuficiente valorização do ensino da língua e da cultura portuguesas no estrangeiro, que é um direito que a Constituição consagra. Além de se desinvestir na rede consular tem-se desinvestido das condições de trabalho dos próprios trabalhadores. Nada disso contribui para uma ligação do Estado português às comunidades que se quer mais estreita e regular. Até em situações como as eleições, [há constrangimentos que criam] dificuldades à participação eleitoral dos emigrantes.

Em Macau muitos eleitores têm passaporte português mas não falam a língua, e constituem um eleitorado representativo. Como deve ser feita uma aproximação a estas pessoas?

Isso deve ser salvaguardado através de relações bilaterais entre o Estado português e o Estado chinês que valorizem a existência de uma história e património comuns e o papel da comunidade portuguesa residente em Macau. Tal consegue-se através de um fortalecimento de laços de solidariedade no plano cultural, social. Depois através de uma presença consular e diplomática que deve valorizar todos os aspectos da participação dessa comunidade na vida do país, mesmo que à distância. As visitas de Estado podem ter aqui um papel importante, pelo sinal que dão.

Em Macau sempre houve uma grande abstenção nos actos eleitorais. É sinal de que o Estado está a falhar nesta proximidade com os eleitores?

Creio que sim. Esse crescente afastamento, infelizmente, não é uma realidade apenas em Macau. Tem havido um certo desinvestimento na relação entre o Estado português e as comunidades emigrantes espalhadas pelo mundo e acho que esse desinvestimento desse ser contrariado.

Como?

Devemos iniciar um caminho no sentido inverso, que procure reforçar laços, re-aproximar e com isso também incentivar uma maior participação da comunidade.

A nível empresarial, Macau constitui uma ponte de ligação com a China. Deveria ser uma plataforma com maior visibilidade?

Há campo para aprofundar a cooperação com Macau e com a China em várias áreas. Seria positivo que se pudessem aproveitar esses laços históricos e culturais existentes e que pudesse haver esse reforço da cooperação no plano económico que permitisse também uma afirmação mais ampla dos interesses portugueses nessa região do mundo. Acho que essa proximidade histórica e cultural que temos com Macau é um factor que não deve ser desperdiçado.

São necessários maiores apoios para as empresas que queiram ir para Macau e para a China?

Pode haver essas condições de apoio às empresas e é bom que sejam garantidas no quadro da presença do próprio Estado português. Há que reforçar um enquadramento institucional que pode contribuir para facilitar esse crescimento e actividade.

Como deve ser feito o relacionamento entre Portugal e a China?

Portugal deve tendencialmente ter relações com todos os países e deve orientar essas relações no sentido de cooperação para emancipação e progresso da humanidade. A China é hoje um país de grande importância na comunidade internacional e é uma relação que deve ser aprofundada e reforçada nos seus variados planos. O Presidente da República deve ter um papel na promoção dessa relação e no contributo que pode dar para o aprofundamento de laços. Temos uma comunidade chinesa importante no nosso país, uma comunidade portuguesa importante na China e devemos ter com a China uma relação que se deve basear nos princípios que a Constituição portuguesa aponta.

Fala de…

Falo dos princípios da independência nacional, os direitos humanos, igualdade entre Estados, a resolução pacífica dos conflitos internacionais, o princípio da não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados e da cooperação com todos para o progresso da humanidade. Tanto Portugal como a China podem dar um contributo importante para este progresso e acho que é de toda a utilidade que Portugal reforce os laços com a China.

Há alguns meses o embaixador norte-americano em Lisboa deu uma entrevista ao semanário Expresso onde colocou, de certa forma, Portugal entre a espada e a parede no seu posicionamento diplomático entre a China e os EUA. Com a vitória de Joe Biden, essa questão está ultrapassada?

Foi uma postura inaceitável, violadora do que são os princípios que regem as relações entre os Estados, de princípios que regem o Direito internacional e de um assunto que só a Portugal diz respeito. É uma ingerência condenável e não deixou de ser assinalada pelas autoridades portuguesas, nos termos que eu desejaria que tivessem sido mais vigorosos e veementes.

Refere-se à posição de Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros?

Sim. Mas de qualquer forma foi uma intromissão inaceitável.

Espera um bom resultado em Macau?

Espero que exista a possibilidade na campanha e nas eleições de apresentar e confrontar os vários projectos que se apresentam. O que espero é que os valores e princípios desta candidatura possam ser conhecidos e que, no fim, a comunidade portuguesa residente em Macau faça o seu julgamento sobre aquela pessoa que pode estar em melhores condições para desempenhar o cargo. Espero recolher a adesão e o apoio de muitos portugueses em Macau.

A 20 de Dezembro celebrou-se o aniversário da RAEM. O Estado português tem estado atento à questão da defesa dos direitos, liberdades e garantias da população tendo em conta a Lei Básica?

Desejaria uma maior proximidade do Estado português a essa comunidade. Uma maior atenção à sua realidade, ao seu dia-a-dia, uma valorização dos laços histórico-culturais que nos unem ao território. Caso seja investido das funções de Presidente da República tudo farei para que isso aconteça.

Através de que medidas?

Desde logo pela defesa da reversão de uma certa degradação da presença portuguesa em vários pontos do mundo e também na RAEM. Reverter uma certa degradação da rede consular. É também importante o papel que podem ter as visitas de Estado, para dar sinais de um potencial que existe por concretizar de um pleno aproveitamento e valorização de um passado comum.

5 Jan 2021

João Pedro Góis, autor de “Identidade e Resistência da Língua Portuguesa em Timor-Leste”: “Jovens aprenderam português nas montanhas”

Resultado de uma tese de mestrado defendida na Universidade de São José, “Identidade e Resistência da Língua Portuguesa em Timor-Leste” é o primeiro livro de João Pedro Góis, jurista e ex-residente em Macau, que acaba de ser lançado em Portugal pela Lema D’Origem. Este projecto traça um olhar sobre o uso da língua portuguesa no período de ocupação do país pela Indonésia como uma forma de luta e de resistência

 

Este trabalho começa a partir de uma obra de Luís Cardoso “Crónica de uma Travessia”. Porque é que este livro foi tão marcante?

No meu mestrado quis estudar a questão da língua portuguesa em Timor-Leste, nomeadamente o seu uso durante o período de ocupação da Indonésia, entre 1975 e 1999, sabendo que o português era falado em Timor, embora fosse proibido pelos indonésios. Queria saber como é que a língua tinha sobrevivido. Fui a Timor e aproveitei para fazer alguma investigação de terreno. A minha ideia original era reunir com Xanana Gusmão, que não teve disponibilidade para me receber. Uma professora disse-me que pensava a resistência apenas do ponto de vista bélico, mas que não era apenas uma questão militar. E falou do uso da língua portuguesa quando ela é proibida, como um acto de resistência, nomeadamente o facto de ser usada pelas milícias refugiadas nas montanhas, tal como escrever e publicar em português. Portanto, foi-me sugerido que pegasse num autor timorense que tivesse escrito em português nesse período. Ocorreu-me estudar Luís Cardoso porque é considerado, em termos literários, o primeiro romancista timorense em português e contemporâneo. O seu primeiro livro chama-se “Crónica de uma Travessia”, li-o e achei que tem uma questão curiosa, porque tem um tom autobiográfico mas não é uma autobiografia. Como cruza várias épocas de Timor contemporâneo, durante o período colonial português e de ocupação indonésia, o livro é muito interessante porque é construído a partir do percurso que o seu pai, enfermeiro, que se deslocou por toda a ilha em trabalho com a família. Isso permitiu ao escritor ter um conhecimento da realidade local e conhecer as línguas locais que são ali faladas. O livro funciona como uma linha transversal a toda a minha dissertação. É a partir do livro que abordo as questões da identidade, da resistência, da diáspora, da saudade, da memória.

No período de ocupação indonésia, quem é que falava a língua portuguesa? A população ou uma elite?

Toda a população não. Aliás, o número de falantes de língua portuguesa materna em Timor é muito baixo. Durante o período de ocupação, como o português era proibido e a língua oficial passou a ser o bahasa, os meios de comunicação funcionavam em bahasa e todas as instituições usavam o bahasa, houve toda uma geração de timorenses que se habituaram mais ao uso da língua indonésia. Hoje em dia há talvez mais pessoas a compreender bahasa do que português. Uma pequena elite continuou a comunicar em língua portuguesa durante o período de ocupação indonésia, porque era a língua do poder durante o período colonial português e era, por isso a língua de acesso ao poder e ao sistema. Era uma língua com algum prestígio social e político.

Mas como funcionou com os membros da resistência à ocupação indonésia?

Os que estavam refugiados nas montanhas utilizavam a língua portuguesa como meio de comunicação privilegiado. Por uma questão afectiva, pelo sonho de recuperar uma entidade cultural em que a língua portuguesa tem um papel importante, mas também porque sendo uma língua não falada pelos indonésios permitia comunicar de forma clandestina, secreta. Os membros da resistência estão hoje envolvidos no exercício da governação, e por todos os motivos que disse antes, preferiram manter a língua portuguesa como oficial por ser um idioma de comunicação internacional e uma língua com prestígio. Mas no período da ocupação indonésia, além de comunicarem em português, também tinham muitos jovens que aderiram à resistência e que não falavam português. Os membros da resistência, adultos, tiveram o papel de os ensinar. Muitos dos jovens aprenderam assim a falar português nas montanhas. Isso é interessante e até comovente.

Também há o papel da Igreja Católica na difusão da língua. Teve um papel mais importante do que o próprio Estado português.

Sim, a Igreja Católica teve um papel muito importante. Aliás, a Igreja teve sempre um papel importante na língua portuguesa, desde a chegada dos portugueses no século XVII, nos primeiros tempos de ocupação, em que houve sempre um acompanhamento das missões católicas, que difundiram a fé mas também ensinavam a língua portuguesa. Era o uso associado à estratégia portuguesa de colonizar. O papel da catequização foi muito importante, porque permitiu a difusão da língua. A maior parte dos timorenses são católicos e continuam a ser, porque sendo católicos significa que não são muçulmanos, isso distingue-os da Indonésia.

O livro aborda também a ligação entre o português e o tétum, e lê-se que o tétum foi crioulizado e até sofreu a incorporação de palavras do português. Sim. O tétum é o crioulo mais falado em toda a ilha, mas sendo uma língua de fusão recebeu a incorporação de muitas palavras em português. 

Diz também que a língua portuguesa nunca hostilizou o tétum e até contribuiu para o seu enriquecimento.
Acho que houve sempre algum equilíbrio. A elite [que falava português] também falava tétum. Há mais falantes de tétum do que de língua portuguesa, mas [o tétum] também nunca hostilizou o português. Se calhar o tétum era a língua do povo colonizado e o português a língua do povo dominante. Havia aqui uma questão política e hierárquica que tem algum peso. Mas no período de ocupação pela Indonésia alguns padres chegaram a propor, como estratégia de sobrevivência o ensino de tétum, achando que era mais fácil do que defender o ensino da língua portuguesa. Então os missionários de origem portuguesa também colaboraram para a disseminação do tétum. Não hostilizaram o tétum e até oficialmente houve momentos em que promoveram o ensino nesta língua. E as autoridades portuguesas também nunca o hostilizaram. No período colonial português nunca houve ensino oficial em tétum, houve umas tentativas. De alguma forma, o tétum nunca foi hostilizado pelos portugueses e esteve sempre presente.

De um modo geral o posicionamento do Estado português face à questão da língua foi muito fraco.

Durante o período de ocupação da Indonésia o Estado português não fez nada. Houve algumas intervenções não oficiais, mas as autoridades portuguesas sempre estiveram muito esquecidas da questão de Timor. No final dos anos 90 houve um movimento em que as autoridades públicas estiveram mais atentas, através da Ana Gomes e de outras personalidades. As autoridades religiosas, como o D. Ximenes Belo e outros, continuaram a ter uma atitude diplomática secreta de defesa e protecção dos timorenses que estavam detidos pelos indonésios. Hoje em dia, que Timor é um país soberano e democrático, e é o mais jovem país membro da CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa], debate-se muito com a implementação do português. Acho que Portugal tem tido algum papel nessa promoção, através do Instituto Camões (IC). Embora ache que a questão da língua portuguesa tem mais importância do que aquela que lhe tem sido atribuída pelas autoridades responsáveis. O IC deveria ter um papel mais pró-activo na promoção da língua. Penso que, a nível de Portugal e da CPLP, faz sentido e é urgente haver uma estratégia global e sistemática para a política da língua portuguesa. Não existe, é uma coisa muito disseminada, funciona por capelinhas. Os dois países em que o português é língua oficial e a língua materna de toda a população (Portugal e Brasil) continuam infelizmente a trabalhar de costas voltadas a este respeito.

31 Dez 2020

António Candeias, vice-reitor da Universidade de Évora: Valorizar o património comum

É no laboratório Hércules, na Universidade de Évora, Portugal, que se estuda o património em todas as suas vertentes. António Candeias, vice-reitor da UE, disse ao HM que alguns dos equipamentos que farão parte de um laboratório semelhante na Universidade Cidade de Macau já estão a ser adquiridos e deverão chegar à instituição de ensino no início do próximo ano. Pelo meio, fica a vontade de alargar a rede de parcerias já existente com o Governo, nomeadamente com o Instituto Cultural

 

Foi inaugurado, em Novembro, na Universidade de Soochow, o Laboratório Conjunto China-Portugal das Ciências de Conservação do Património Cultural, uma parceria entre a Universidade de Évora (UE) e a Universidade Cidade de Macau (UCM). Concretamente o que vai ser desenvolvido na UCM, fruto desta parceria?

Em relação à UCM, a parceria que a UE tem é até anterior a este laboratório conjunto que foi agora anunciado. Na realidade encetamos ligações com a UCM há dois anos e meio, após a visita de uma delegação dessa universidade, e após uma ida nossa até Macau. Aí foi possível estabelecer uma série de áreas estratégicas de cooperação, uma delas o património partilhado. Ficou logo delineado que, através das competências do laboratório Hércules, que é único do ponto de vista de instrumentação e competências, seria possível delinear uma parceria com a UCM no sentido de criar, na UCM, um laboratório conjunto. Este teria algumas competências que o Hércules tem, do ponto de vista instrumental e, por outro lado, iria beneficiar dos especialistas. Foi assim estabelecido um acordo entre as duas universidades que prevê três grandes iniciativas.

Como vai funcionar esse laboratório na UCM?

Candidatámo-nos, o ano passado, ao financiamento pelo Fundo para o Desenvolvimento das Ciências e Tecnologia (FDCT), com um valor de quase meio milhão de euros. Neste momento estamos em fase de aquisição dos equipamentos. Se tudo correr bem, serão entregues em Janeiro ou nos primeiros dois meses do ano. Os nossos investigadores irão a Macau para apoiar a montagem dessas metodologias analíticas e para desenvolver os primeiros trabalhos em Macau. O objectivo é reforçar, de forma contínua, esse laboratório, e capacitar docentes e investigadores da UCM para a área do património.

Cria-se, assim, uma rede com a Universidade de Soochow.

Já tínhamos visitado a Universidade de Soochow e percebeu-se que havia a colaboração na área do património, ao nível da conservação e reabilitação. A cidade de Soochow é também património mundial da Humanidade. Mas um dos professores da UCM foi para a Universidade de Soochow e surgiu a possibilidade de avançar para um projecto com uma maior escala, que era candidatar o laboratório conjunto à iniciativa “uma faixa, uma rota”. Trabalhamos com Soochow nesta candidatura, que foi bem sucedida, e que culminou na inauguração do laboratório [em Novembro]. Na realidade este vai ser um laboratório distribuído e o que está previsto, para já, é a criação de projectos de investigação conjuntos. No início do ano vamos identificar projectos conjuntos em Macau e China.

Falamos de projectos ligados a monumentos, por exemplo?

E não só. Quer o laboratório em Macau quer o de Soochow não se focam apenas no património construído, mas também no património móvel, integrado e imaterial. A questão do saber fazer também é algo que nos diz muito. Em termos de iniciativas, vamos desenvolver projectos conjuntos e prevejo que investigadores nossos possam ir, por períodos definidos, para Macau e para Soochow. Seria muito importante que no próximo ano se identificassem possíveis estadias de investigadores em Évora, no laboratório Hércules. Além disso, a presença dos nossos investigadores em Macau e Soochow será também uma oportunidade para dar uma formação específica, com workshops. Isso é apenas para começar, porque o que se pretende a seguir é criar formações conjuntas, que vão desde doutoramentos a mestrados.

Já há um plano para essas formações?

Esse plano vai ter de ser definido. O laboratório foi agora lançado, mas a ideia é podermos definir um conjunto de formações na área do património com estas duas universidades.

Podem ser estudados elementos da cultura macaense, por exemplo?

Espero que sim, e o objectivo é mesmo esse. [O nosso trabalho] não se cinge ao edificado e o que queremos é valorizar o património no seu todo. É uma abordagem muito transversal e chega até ao património arqueológico. Com a UCM foi possível criar uma cátedra em património sustentável aqui na UE.

E como funciona?

Esta cátedra já está no seu segundo ano de actividade é apoiada pela UCM e tem desenvolvido projectos de investigação e valorização do património. Devido à pandemia a interacção com a UCM não tem sido muito grande, mas há trabalhos em curso e que vão ser lançados muito em breve, com algum impacto mediático e social. Pensamos que esta cátedra, associada ao laboratório Hércules, tem um papel muito importante.

Que tipo de projectos estão em curso?

Estamos muito envolvidos no projecto da Vila Romana de Pisões, estamos a desenvolver conteúdos digitais para a visita deste campo arqueológico. Estamos também envolvidos no restauro dos Painéis de São Vicente, pois é através da cátedra que se está a realizar esse trabalho. Vamos estudar no Museu Nacional de Arte Antiga os papéis decorativos chineses do século XVII, que são de facto peças únicas e que são muito importantes, e que vão ser alvo de um estudo. Vamos lançar um passaporte do património da cidade de Évora, muito à semelhança do que já existe em Macau.

Como olha para a preservação do património em Macau, incluindo do ponto de vista arqueológico? É ainda necessário fazer muita coisa?

É sempre preciso fazer muita coisa, nunca temos o trabalho concluído. Mas há um olhar sobre a preservação do património na criação de um discurso. Percebe-se agora que valorizando esse património criam-se noções identitárias dos povos e, no caso de Macau, parece-me que se está no caminho certo. Espero vir a contribuir para a valorização e preservação desse património comum.

Gostavam de trabalhar com o Governo de Macau, nomeadamente com o Instituto Cultural?

Com certeza que sim. Estamos abertos a colaborações. Neste caso deu-se a coincidência da UCM visitar a UE e nós irmos a Macau no âmbito de um fórum universitário, mas estamos muito disponíveis para colaborações. Ganhando escala podemos fazer mais.

A atribuição de um doutoramento honoris causa a Chan Meng Kam, fundador da UCM, também serviu para estreitar estas relações.

Sim, penso que tudo foi uma consequência. Havia estas ligações e uma série de interesses comuns.

30 Dez 2020

RAEM, 21 anos | Jorge Rangel, presidente do Instituto Internacional de Macau: “O maior valor de Macau é o seu legado”

Ex-secretário adjunto de Rocha Vieira, Jorge Rangel assumiu vários dossiers e por pouco um problema de saúde não o afastou do cargo antes da transferência de soberania. 21 anos depois, Jorge Rangel defende um novo modelo de desenvolvimento para o território que não dependa tanto do jogo e acredita que deve existir equilíbrio na implementação da educação patriótica

 

Que análise faz à RAEM 21 anos depois da transição?

Sendo sempre fácil identificar insuficiências e até apontar naturais desvios, creio ser justo reconhecer que, em larga medida, os compromissos assumidos no acordo firmado em 1987, na Declaração Conjunta, foram cumpridos e o território conheceu períodos de crescente prosperidade. Houve, é certo, alguns graves acidentes de percurso.

Tais como?

Falo dos casos de corrupção que ganharam notória repercussão, mas esses percalços foram resolvidos pela via judicial, constituindo um teste à capacidade de resposta do sistema instituído, mesmo sabendo que nem todos terão concordado com a forma como alguns dos problemas criados foram resolvidos. Foram, entretanto, atribuídas à RAEM especiais responsabilidades.

Fala do seu papel de plataforma com a China…

E também da articulação de Macau com a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” e como centro mundial de turismo e lazer. Foram, igualmente, definidos novos percursos com vista à sua progressiva integração na Grande Baía Guangdong – Hong Kong – Macau. Estávamos precisamente nesta fase do desenvolvimento da RAEM, com a ilha vizinha de Hengqin em rápida transformação para servir este propósito, quando a pandemia impôs uma pausa, que pode e deve ser muito bem aproveitada para repensar os objectivos imediatos e as estratégias de médio e longo prazo.

A pandemia obrigou Macau a olhar-se de uma outra forma? Qual o caminho para recuperar de uma crise desta dimensão?

Claro que sim. A receita global, proveniente do jogo, fazia acreditar que o seu desenvolvimento seria linear e sempre continuado, à medida que as autoridades fossem permitindo a entrada de mais e mais visitantes do continente, criando emprego, mas também recorrendo mais e mais a mão-de-obra importada. Cheguei a expressar uma opinião sobre a vulnerabilidade do nosso modelo de desenvolvimento, dependente das receitas dos casinos. Disse que, numa situação de crise, como por exemplo um grave problema de saúde que tornasse imperativo o fecho das fronteiras, o nosso modelo seria, inevitavelmente, posto em causa e iria obrigar a um lúcido redimensionamento e a uma redefinição das prioridades. Há lições penosas que importa extrair e sobre elas, com coragem, repensar metas e ritmos de crescimento. E fazer incidir uma atenção maior na população.

Defende então um maior equilíbrio ao nível do turismo.

Os casinos e o turismo devem existir para servir os interesses da população e nunca o contrário. É imprescindível conseguir um muito maior equilíbrio. É estulto e estúpido o propósito primário de trazer mais e mais visitantes todos os anos. Em tudo há um limite e nós já ultrapassámos o nosso, até porque o nosso espaço é exíguo e a sustentabilidade do território depende mais da qualidade desse turismo do que do número de visitantes. Oxalá a pandemia nos permita repensar e redimensionar o nosso modelo de desenvolvimento, até porque o Chefe do Executivo, atento aos insistentes apelos das autoridades centrais, quer apostar numa maior e bem necessária diversificação.

Mas não haverá limitações a essa diversificação?

Ela é possível, havendo que apostar nas mais-valias do território, que vão da cultura e do património a um turismo de qualidade, muito mais selectivo e benéfico para a economia local. [Há também que apostar] nas indústrias, com as mais avançadas tecnologias e a inteligência artificial, com o suporte das universidades e dos seus centros de estudos e investigação. Temos também a área das finanças, assumindo alguns dos propósitos de maior utilização da moeda chinesa no exterior. E é preciso ter uma noção clara e realista dos nossos limites de espaço e dos nossos condicionalismos geográficos, sociais e políticos, em conjunturas nem sempre favoráveis. Haverá que ter em conta também as vantagens e os óbices que resultam da progressiva e, provavelmente, irreversível integração no projecto da Grande Baía, adoptando uma posição pró-activa mais consistente e consequente.

Que análise faz da governação de Ho Iat Seng?

Este, que é o seu primeiro ano em funções, foi imensamente prejudicado pela pandemia. Por isso não será possível fazer uma apreciação justa da sua governação em relação às linhas de acção que foram aprovadas e não inteiramente realizáveis. Mas podemos avaliar muito positivamente o esforço assumido para conter a pandemia e proteger a população dos seus nefastos efeitos. Houve liderança e sentido de missão. E as suas preocupações, desde o início, com a contenção nos gastos, a utilização correcta dos fundos públicos e contra o “despesismo” são de louvar.

Qual foi, para si, o melhor e o pior momento da transição de Macau?

Tutelei o Gabinete das Cerimónias e fui designado pelo Governador para acompanhar os assuntos da transição, trabalhando com a comissão preparatória e acompanhando o futuro Chefe do Executivo até ele tomar posse. E, no âmbito da Administração Pública, que era uma das áreas da minha responsabilidade, acompanhei de perto os processos de formação e “localização” de quadros, bem como os de integração e de ingresso nos quadros da República Portuguesa. Foram processos de particular complexidade. Também acompanhei os trabalhos do Grupo de Ligação e estive em reuniões da comissão interministerial sobre os assuntos de Macau. Estava em Hong Kong no âmbito de uma intervenção cirúrgica para remoção de um tumor, que me poderia ter impedido de continuar em funções governativas num tempo de grande exigência e intensa participação, quando tudo era urgente. Estava preparado para solicitar a minha dispensa e substituição, receando já não poder corresponder, quando recebi a visita do Governador.

Mas continuou no Executivo.

Na opinião da minha família deveria pedir ao Governador que autorizasse a minha saída, mas ele trazia-me uma pasta cheia de novas responsabilidades que acabei por aceitar, ficando em funções até ao último dia. Foi o fim de um tempo de Portugal e também o fim definitivo do meu exercício de funções públicas.

Mas houve bons momentos.

Foram muitos, e incluem a forma empenhada como o Gabinete das cerimónias funcionou, cumprindo exemplarmente uma missão, em nome de Portugal, e a forma como, indo até onde era possível no pouco tempo que nos restava, a conclusão do processo de “localização” de quadros, viabilizando uma transferência suave da administração.

E os maus momentos?

Se ainda vale a pena falar deles, recordo algumas incompreensões que rodearam o tratamento de vários processos que dependiam das autoridades nacionais e as questões políticas que condicionaram o diálogo, e o andamento célere e correcto de assuntos que requeriam urgência, a qual nem sempre foi correspondida. Mas isso já é passado e deixou de ter interesse para mim.

A transferência da soberania esteve envolvida em algumas polémicas. Acha que está na altura de encerrar definitivamente o passado?

Quem viveu aqueles acontecimentos não os esquecerá jamais. As polémicas a que se refere ganharam dimensão pelas motivações políticas que as estimularam. Sobre elas já muito foi dito, embora algo possa ter ficado por contar, nomeadamente sobre os bastidores e a intriga política que sempre existiu e existirá e que se agrava enormemente nos períodos de mudança histórica. É minha convicção que, com todas as dificuldades e incompreensões que rodearam o processo de transição, se cumpriu da melhor maneira possível a missão que aceitámos e que exigiu de nós tudo quanto lhe pudemos dar. Trabalhei com os seis últimos governadores de Macau. Pude ver, comparar e entender as motivações de cada um, até pela relação de grande proximidade e confiança que pude manter com quase todos. Sei que quiseram fazer o melhor em nome de Portugal. Mas nenhum se livrou de polémicas, que existem sempre no decurso da acção governativa, naturalmente surgidas ou intencionalmente provocadas.

Considera que há hoje uma tentativa de apagar o passado colonial por parte de algumas personalidades de Macau? É necessário reforçar esse aspecto para a manutenção da identidade de Macau?

São ainda vozes pouco generalizadas e que não tiveram grande eco, mas vão surgir, inevitavelmente, mais. Aliás, é bom lembrar que, nos próprios dias 19 e 20 de Dezembro de 1999, já em alguns organismos locais eram defendidas mudanças maiores, além de ali festejarem entusiasticamente (leia-se “patrioticamente”) a mudança.

Porque é que essas ideias não avançaram?

Foi o pragmatismo das autoridades centrais que foi sempre travando alguns ímpetos maiores, como acontecera no período da Revolução Cultural, de muito má memória cá fora e, sobretudo, lá dentro, pela forma como atingiu muitos milhões de pessoas. Convém também lembrar que, mais do que a sociedade civil chinesa tradicional de Macau, foram as autoridades centrais que quiseram que à RAEM fosse cometida a responsabilidade de se assumir como plataforma de cooperação com os países de língua portuguesa e que múltiplas iniciativas tivessem sido realizadas neste domínio. Cabe às instituições de matriz portuguesa e a muitas outras entretanto criadas continuar a defender a singularidade de Macau, porque o seu real valor é caracterizado pela sua diferença, mesmo no contexto da Grande Baía.

O que pensa do projecto actual da Escola Portuguesa de Macau (EPM) e da educação de matriz portuguesa?

Acompanhei de perto o processo de criação da EPM, como membro do Governo responsável pela educação, ainda antes da decisão final tomada pelo Estado Português, que escolheu um modelo diferente daquele que havíamos defendido. Já estávamos a prepará-la e a fazer ensaios e estudos sobre o seu papel e dimensão. Tomada a decisão, embora não tivesse deixado de oferecer as minhas opiniões, que apontavam para um maior envolvimento, desde o início, das instituições de matriz portuguesa e do Governo de Macau, abrindo-se o caminho para a participação da própria RAEM no apoio ao seu funcionamento, apostámos na sua criação segundo o modelo escolhido. Fiquei desligado dela [da EPM] durante muito tempo e voltei a acompanhar mais de perto o seu funcionamento, como membro do Conselho de Curadores da Fundação da EPM. A minha participação será, contudo, transitória.

Mesmo com todas as mudanças que já ocorreram, considera a EPM um projecto importante.

Sempre considerei a EPM a instituição mais relevante para garantir a permanência de portugueses e um bom ensino em língua veicular portuguesa, além de promover a difusão da língua e da cultura, podendo ainda contribuir seguramente para a viabilização do preceito da Lei Básica que atribui à língua portuguesa o estatuto de língua oficial. Espero que, com base na experiência feita, os seus responsáveis, através de um diálogo que se deseja amplo com as entidades financiadoras e todas as outras que têm um papel a desempenhar no seu regular funcionamento e nas experiências pedagógicas ensaiadas, encontrem para ela o melhor modelo de gestão e que os seus planos curriculares sejam consentâneos com a realidade presente, como escola portuguesa no estrangeiro e, simultaneamente, como estabelecimento de ensino particular da RAEM.

Mas, no que diz respeito ao ensino do português, há ainda outras entidades. Qual a estratégia a adoptar para elas?

O Instituto Português do Oriente deve também merecer a continuada atenção das autoridades para que possa cumprir bem a sua relevante missão, em articulação com o Camões – Instituto para a Língua e Cooperação. Quanto ao Jardim de Infância D. José da Costa Nunes e outras escolas e centros de formação onde a língua portuguesa é ensinada, importa, igualmente, assegurar-lhes a colaboração necessária e contribuir para que lhe sejam garantidos os meios adequados ao seu regular funcionamento. Creio que, no âmbito dos Serviços de Educação e Juventude da RAEM, é possível e desejável ir ainda mais longe, mas esta é matéria que já transcende o âmbito da pergunta feita.

Preocupa-o a aposta crescente na educação patriótica?

Macau é uma região chinesa com um estatuto especial transitório. É apenas natural que as autoridades, quer centrais, quer locais, se preocupem com a educação patriótica, mas, exactamente por causa deste estatuto especial que ainda deverá vigorar, oficialmente, por mais quase 30 anos, é bom que haja um sentido de equilíbrio e muita lucidez na forma como essa educação é ministrada. Os programas e textos de apoio não devem, a meu ver, ser simplesmente transpostos duma realidade diferente, mas sim adequadamente adaptados, sob pena de se tornarem ineficazes. O amor à Pátria sempre foi um valor naturalmente assimilado e convictamente assumido. Pode até ser estimulado e cultivado, mas nunca imposto. Quem não perceber isto, não deve estar a perceber nada do que tem a ver com o presente e o futuro da RAEM.

Como perspectiva o futuro da RAEM?

Faltam quase 30 anos [para 2049]. Parece muito tempo, mas, na realidade, nem o é, já que estes vinte, desde a transferência da administração, passaram assaz vertiginosamente. Podemos perspectivar o porvir através dos planos de desenvolvimento aprovados ao longo da última década e meia, primeiro para o Delta do Rio das Pérolas, e, logo a seguir, a sua articulação crescente e interligação regional, para culminar agora no ambicioso projecto da Grande Baía. Esses planos apontam metas para 2022 e para 2035, prazo fixado para a sua conclusão. As coordenadas do desenvolvimento de Macau estão ali claramente delineadas, através do plano sectorial elaborado pelo Governo da RAEM, o qual merece mais ampla difusão, para que todos possam tomar conhecimento do que está verdadeiramente em preparação. Executado o plano da Grande Baía, entrará certamente em vigor um plano que estabelecerá as linhas mestras da integração definitiva.

Mas, no contexto da Grande Baía, Macau deverá ser um território único.

O que devemos desejar é que haja sempre clarividência para se entender que o maior valor de Macau reside no seu legado de séculos. A sua diferença é a marca da sua singularidade e só a manutenção da sua singularidade garantirá a utilidade da sua participação e da sua integração em condições que ainda estão por definir e podem, por isso, depender ainda da nossa legítima intervenção, em nome das associações e outras organizações da sociedade civil a que estamos ligados, como residentes permanentes. Filho da terra, invocarei sempre a legitimidade de participação que essa antiguidade deve facultar. Mas essa legitimidade de participação deve ser assegurada a todos quantos, de qualquer origem, aqui têm a sua casa e aqui decidiram fazer o seu futuro, que é o mesmo que dizer, fazer o futuro de Macau, sua terra, com as suas gentes, que acreditam que sem memória não haverá futuro. Esse futuro, porém, dependerá sempre muito mais da China do que de nós, dos rumos que ela for apontando para o seu desenvolvimento nas próximas décadas e dos sucessos da afirmação da sua influência crescente no mundo.

21 Dez 2020

RAEM, 21 anos | José Pedro Castanheira, jornalista: “Quem fez Macau foram os macaenses” 

Poucos jornalistas portugueses conhecem a Macau do período pré-1999 como José Pedro Castanheira. Repórter de investigação, escreveu vários livros sobre a história do território, sobretudo a partir do motim “1,2,3” e fez a cobertura da cerimónia da transferência de soberania. Ao HM, recorda a rapidez com que os símbolos portugueses foram apagados a seguir ao evento e as tensões entre Jorge Sampaio e Rocha Vieira

 

Como é que Macau surge na sua vida profissional? 

Já tinha ido a Macau várias vezes [antes da cerimónia da transferência de soberania]. Em 1999 fui com bastante mais tempo, estive cerca de quatro meses, para escrever um livro, “Os Últimos Cem Dias do Império”. A primeira vez que fui a Macau foi em representação do Sindicato dos Jornalistas nos anos 80. Estava no semanário O Jornal, que já não existe, e decidi ficar mais uns dias para escrever uma reportagem. A partir daí, passei a ir com alguma regularidade a Macau e sempre em serviço para o jornal. A partir de 1989 passou a ser o Expresso. Até que em 1996 fui para fazer uma reportagem na área em que já me estava a especializar, a área da investigação histórica, a propósito dos 30 anos do 1,2,3, e que depois seria transformada em livro. O 1,2,3 era um episódio completamente desconhecido e sobre o qual havia um silêncio enorme. Falei mesmo de um tabu, era um assunto tabu para as partes chinesa, portuguesa e macaense. Havia um consenso generalizado das três comunidades no sentido de não falar do caso.

Como descreve o clima que se vivia nos anos anteriores à transição? Havia um sentimento de medo?

Preferiria as palavras dúvida e receio. A transferência da Administração era um grande ponto de interrogação, sobretudo porque tinha havido há pouco tempo os acontecimentos de Tiananmen. Tinha havido a Revolução Cultural, que marcou muito as relações entre a China e o Ocidente, e em particular com Macau e Hong Kong. Havia um ambiente de muita dúvida. Claro que a transição de Macau foi decisivamente influenciada pela transição de Hong Kong, onde as coisas não correram muito bem. Mas, no essencial, o modelo foi transposto para Macau. As coisas acabaram por correr muito bem, muito melhor do que se esperaria, e estamos perante um sucesso histórico assinalável.

Houve, no entanto, muitas polémicas associadas à transição. A criação da Fundação Jorge Álvares foi uma delas. 21 anos depois, permanece ainda um mistério ou está tudo esclarecido? 

Acho que as coisas já são conhecidas no essencial. Os principais sujeitos históricos já escreveram as suas memórias, e sei que, neste momento, há outras biografias que estão a ser feitas. Há sempre pequenos pormenores e mistérios e alguns deles ficarão para todo o sempre. Mas devo dizer que a partir da transferência deixei de seguir Macau com a atenção com que anteriormente seguia.

Rocha Vieira foi um bom último Governador?

Foi e não foi… Rocha Vieira foi nomeado para pôr ordem na casa. Os dois anteriores governadores, Pinto Machado e Carlos Melancia, não tinham conseguido gerir o território de uma forma pacífica e politicamente equilibrada, e ainda por cima com casos conhecidos na área da corrupção. Macau estava na ordem do dia pelas piores razões. O Presidente Mário Soares decidiu alterar a sua linha essencial em relação a Macau, que era, contrariando quase toda a tradição histórica, ter à frente do território governadores civis – no sentido de não militares. Rocha Vieira pôs “ordem” na casa, deixou de se falar de Macau na imprensa portuguesa e passou a gerir Macau de uma forma muito própria, centralizada e sem fugas de informação. Incluindo com alguns laivos de autoritarismo, e foi criticado por isso. Depois, havia que negociar com a China, e isso era naturalmente muito difícil. Tinha de ser uma negociação a uma só voz, sem grandes divergências da parte de Portugal, e Rocha Vieira conseguiu gerir internamente o território e externamente na sua relação com a China. Depois, na fase final, quando houve uma mudança na presidência da República, com a eleição de Jorge Sampaio, as coisas mudaram bastante.

Houve algumas desavenças entre Sampaio e Rocha Vieira. 

Jorge Sampaio teve uma forma de abordar a questão de Macau e o relacionamento com o Governador muito diferente de Mário Soares. Isso depois levou a alguma agitação, e isso é conhecido e escrevi longamente sobre isso na biografia de Sampaio. Houve alguns problemas e a Fundação Jorge Álvares foi um deles, mas houve outros problemas relacionados com a transição, em particular a questão da entrada das tropas chinesas em Macau, quando e onde entrariam. Isso provocou grande discussão. Mas isso ficou bem resolvido, e se há assunto do qual a diplomacia portuguesa se pode orgulhar é a forma como Macau passou para a República Popular da China.

Mas escreveu no Expresso que Macau levou Sampaio ao hospital. 

Isso passou-se em 1996, logo após a eleição de Sampaio para a presidência. Uma das primeiras decisões de fundo que ele teve de tomar foi reconduzir, ou não, o Governador de Macau. Havia uma grande pressão no sentido de o substituir, e essa pressão vinha de Macau e também de vários sectores políticos de Portugal, em particular do Partido Socialista que na altura estava no Governo. A primeira decisão de fundo que Sampaio tomou foi essa e manteve Rocha Vieira, mas com uma série de condições. Uma delas era que Rocha Vieira teria de apresentar de uma forma regular contas políticas ao Presidente da República sobre a sua gestão do território. E foi numa importante e tensa reunião em Belém que o Presidente Sampaio teve um problema do foro cardíaco que o obrigou a ser operado mais tarde. Mas isso é revelador da tensão que o caso Macau suscitava na política portuguesa.

O que acha mais fascinante na história de Macau, 21 anos depois?

A importância crucial que teve, durante séculos, uma pequeníssima comunidade que é a macaense. Foi um grupo que se foi criando e na prática eram os intermediários entre portugueses e chineses, que viveram quase sempre de costas viradas uns para os outros. Os portugueses nunca aprenderam chinês e a China vice-versa – só mais tarde é que viria a apostar no português, não por causa de Portugal, mas sim da lusofonia. Essa comunidade foi ganhando a sua importância, mas é evidente que, hoje em dia, tem menos relevo porque os macaenses já não são tão necessários como foram. As especificidades de Macau foram muito importantes em alguns momentos do século XX, em especial no pós II Guerra Mundial e na Guerra Civil chinesa, quando Macau passou a ser uma terra de refugiados.

Acha que a comunidade macaense foi devidamente ouvida neste processo de transição?

Não. Os macaenses nunca foram devidamente valorizados, pelo menos do ponto de vista político. Basta ver o número ridiculamente baixo de macaenses que foram membros dos vários governos de Macau, o número muito baixo de macaenses que foram deputados à Assembleia Legislativa, o número quase nulo de macaenses que foram magistrados. Infelizmente, não lhes foi dado o valor e a representação a que tinham direito. Macau só teria a ganhar se fosse dado mais espaço e valor aos macaenses. É lamentável que assim tenha sido.

Sente que, 21 anos depois, Portugal dá atenção a Macau por causa da relação que tem com a China? Ou já teria caído no esquecimento? 

Acho que Macau caiu completamente no esquecimento.

Mas Portugal ainda tem obrigações em relação a Macau. 

Sim, certamente que tem. Mas Macau é uma região autónoma da China. Macau cresceu e mudou muito, embora eu não tenha conhecimentos e informação suficientes para falar da Macau de hoje. Uma das coisas que mudou foi o interesse da opinião pública e do poder político portugueses. A opinião pública ignora o que acontece em Macau e, no essencial, o poder político também. É pena porque é um território com muita história, mas também com presente e futuro. Há muita coisa que poderia passar por Macau do ponto de vista económico. Macau poderia servir de porta de entrada para a China, e penso que não é. Isso acontece ou por falta de iniciativa empresarial, ou por ausência de motivação e empenho do poder político – ou pelas duas razões conjugadas.

Recorda-se de algum percalço curioso da cerimónia da transição?

Houve dois momentos muito diferentes. Houve a festa portuguesa, um espectáculo tipicamente português, a que assisti com muita emoção. Levei comigo a minha família e o meu filho mais velho até participou nessa festa. Horas depois foi a cerimónia oficial, com todas as características chinesas, e que foi completamente oposta à festa portuguesa. A frieza, a disciplina, o planeamento, a falta de alma… Depois, uma coisa curiosa foi a extrema rapidez com que o novo poder chinês decidiu remover todos os sinais da antiga soberania portuguesa. Bandeiras, emblemas, em poucas horas os símbolos portugueses foram apagados. Mas, felizmente, ficaram alguns monumentos que mostram que Macau não foi só chinesa e foi, sobretudo, uma terra de macaenses. Quem fez Macau foram, sobretudo, os macaenses.

20 Dez 2020

Carson Fong, residente de Macau com 21 anos: “Macau é um bom sítio para se viver”

Carson Fong, estudante do 3º ano da licenciatura de Estudos Portugueses da Universidade de Macau, nasceu no mesmo ano do estabelecimento da RAEM. Apesar de tratar Macau por “tu” e de considerar inegável a evolução desde a transição, aponta que, para os jovens, os tempos são de contenção devido à pandemia e que amar o país é uma matéria que não deve ser forçada

 

A RAEM foi estabelecida em 1999. Como é ter 21 anos?

Nasci em Macau, a 29 de Julho de 1999. Penso que ter 21 anos tem um grande significado, porque já sou adulto e Macau está muito melhor desde o dia da transferência de Portugal para a China, especialmente naquilo que é possível ver, ao nível da vida das pessoas, sinto isso também no meu dia-a-dia. Em termos económicos há uma grande diferença. Após a transferência, começaram a vir cada vez mais turistas a Macau passar férias e, por isso, o Governo foi enriquecendo ao longo dos anos e isso trouxe vantagens para os residentes. Inclusivamente, o Governo atribui anualmente um cheque de 10 mil patacas a todos os residentes, o que, na minha opinião, ajuda muito. Por isso, considero que a evolução é visível. Estamos hoje mais ricos e prósperos.

Tal como um adulto de 21 anos, considera que Macau atingiu também a sua maioridade e segue hoje o seu próprio caminho?

Definitivamente, Macau é um bom sítio para se viver, mas não acho que seja dona do seu destino porque após a transferência passou a responder ao Governo Central. É inevitável considerar que hoje, Macau é melhor em todos os aspectos mas, em termos de opinião e participação pública, e apesar de tudo isso existir e estar assegurado, a intervenção das pessoas é reduzida. Muitas vezes, considero que as pessoas não vocalizam opiniões negativas acerca do Governo e pensam muito antes de falar. Como exemplo disso, podemos olhar para a questão do Metro Ligeiro. Foi um projecto que custou muito dinheiro e com o qual muitas pessoas estão descontentes, mas pura e simplesmente é um assunto sobre o qual não se atrevem a falar ou a mostrar desagrado.

Como era Macau durante a sua infância?

Nasci em Macau, mas, porque os meus pais decidiram ir para o Interior da China por motivos profissionais, a minha infância e os primeiros anos escolares, foram passados em Foshan, em Guangdong. Regressei a Macau com 12 anos e, nesse momento, a minha primeira impressão foi que Macau era uma cidade com uma mistura incrível de culturas, incluindo a portuguesa e a chinesa. Isso fez-me sentir que Macau era o melhor lugar para mim. Desde que voltei, já cá estou há 10 anos e considero Macau a minha casa.

De que forma encara essa mistura de culturas?

É muito fácil encontrar as marcas deixadas pelos portugueses em Macau, por exemplo, ao nível da arquitectura, da gastronomia ou da própria língua que está em todo o lado. Considero que a mistura de culturas que encontramos aqui contribui muito para a minha aprendizagem e para conhecer factos sobre Portugal que desconhecia totalmente, antes de voltar para Macau. Além disso, aprendi que gosto muito da comida portuguesa.

Porque decidiu estudar português?

Quando era criança sempre me interessei em aprender outras línguas, como o inglês. E por isso, estando aqui, com todas as oportunidades inerentes a isso, decidi aprender português. A língua portuguesa é muito importante para Macau. Para além de ser um dos idiomas oficiais, se realmente formos capazes de falar português é possível ter uma carreira atraente a nível financeiro. Podemos ver isso com os tradutores e outras profissões que requerem a utilização do português. Além disso, também me interesso muito pela própria cultura e o português abre-me portas para o “mundo” dos países de língua portuguesa. Gostava muito de fazer uma viagem a todos eles.

De que forma os seus pais descrevem Macau antes de 1999?

Os meus pais contam-me que, antes da transferência, Macau era um território muito pobre, onde havia muito crime, e que o Governo da altura tinha poucos recursos e pouco controlo da situação. Antes da transferência havia muito mais portugueses em Macau, mas, na verdade, havia pouco contacto entre portugueses e chineses devido à barreira linguística. A ligação feita séculos antes entre o Ocidente e o Oriente através dos portugueses é muito importante. Portugal foi o primeiro país ocidental a chegar e a estabelecer contactos com o Oriente e trouxe consigo inúmeras aprendizagens, costumes e artefactos pioneiros na Ásia que, por sua vez, através de Portugal, conseguiu também transportar um pouco de si para o Ocidente.

Considera que em Macau as pessoas têm uma vida fácil?

Acho que sim. Além de ser fácil ter emprego, é possível obter facilmente muito dinheiro e apoios por parte do Governo e, no final, as pessoas acabam por ter dinheiro para fazer aquilo que gostam. Claro que este ano, as coisas mudaram devido à pandemia. Podemos ver que a taxa de desemprego, por exemplo, tem subido ao longo do ano. Muitas pessoas perderam o trabalho e, segundo as notícias, o número de suicídios também aumentou muito, devido aos efeitos colaterais da pandemia. Estamos a viver tempos difíceis. Mas falando também de mim próprio, para as pessoas que não precisam de trabalhar, como um estudante, esse dinheiro que obtemos do Governo contribui também para nos tornarmos mais preguiçosos. Gastamos constantemente dinheiro em coisas caras que não precisamos, eu incluído. Por exemplo, gasto muito dinheiro em refeições. Acho que não é uma boa ideia, porque este ano é um ano muito duro e acho que devo poupar mais dinheiro, até porque a situação da pandemia ainda não está controlada e não sabemos como vai ser em 2021.

Quando terminar os estudos receia ter dificuldades em encontrar trabalho?

Na verdade, os meus pais insistem que eu continue a estudar após concluir a licenciatura e que vá inclusivamente para Portugal prosseguir os meus estudos. Eles não querem que eu comece já a trabalhar. Pessoalmente estou preocupado em aprender a falar bem português.

Sente que a compra de casa é um problema para os jovens de Macau?

Sim, os jovens de Macau estão preocupados com a possibilidade de não conseguirem comprar casa no futuro. Os preços são elevados e a maioria não tem capacidade financeira para suportar essa compra. Por outro lado, é possível participar nos concursos de habitação pública do Governo para comprar uma casa mais barata. No entanto, penso que, mesmo aquelas pessoas que compravam casa para ter retorno com uma venda futura têm, hoje em dia, muito mais dificuldades em adquirir casas.

Como encara a indústria do jogo em Macau? Vê com bons olhos que a cidade seja, muitas vezes, apenas reconhecida por isso?

Acho que tem aspectos bons e maus. Do lado positivo, os casinos oferecem muitas oportunidades de trabalho para os residentes e, atingindo posições mais elevadas ao nível da gestão é possível ganhar muito dinheiro. Do ponto de vista negativo, as actividades relacionadas com o jogo são, muitas vezes fonte de vários crimes, mas também a razão pelas quais muitas pessoas acabam sem dinheiro. Há muitas pessoas que ficam sem nada depois de apostar tudo nos casinos. Por outro lado, lá está, eu mesmo cheguei a ter um trabalho temporário num casino, que me ajudou a ganhar algum dinheiro.

Como será Macau daqui a 21 anos?

Vão existir ainda mais casinos e as pessoas serão ainda mais prósperas. Os turistas continuarão a vir e as ligações culturais vão ser ainda maiores. Acho que vão existir mais oportunidades de negócio e de emprego devido à diversificação dos cargos existentes. Por outro lado, como disse antes, penso que o à vontade para dizer o que se pensa, sobretudo quando se trata de aspectos negativos, não será maior. O Governo oferece tanto dinheiro que as pessoas não se atrevem a dizer nada.

Tem-se assistido nos últimos tempos, ao reforço do ensino patriótico. Na sua opinião como estudante, de que forma os jovens encaram esta questão?

A China tem duas regiões administrativas especiais que são Macau e Hong Kong e, como disse, muitas pessoas aqui não gostam de falar apesar de terem opinião sobre os assuntos. Alguns amigos meus não gostam do Governo, mas não o dizem abertamente, porque Macau é controlado pelo Governo Central e têm medo. Acho que toda a gente tem o direito de falar e dar a sua opinião. Na minha opinião não é necessário que o Governo force os jovens a aprender sobre estes temas, como amar o país. Se amamos o país é porque amamos o país. Porque nos forçam a amá-lo?

20 Dez 2020

Web Summit | Presidente da Xiaomi afasta acusações de partilha de dados pessoais 

Wang Xiang, presidente da tecnológica Xiaomi, participou em duas sessões na Web Summit, em Lisboa, e voltou a rejeitar as acusações de que a empresa terá recolhido dados pessoais de utilizadores de forma ilegal. O empresário garante que a Xiaomi usa regulamentos muito semelhantes aos que vigoram na Europa na área da protecção de dados

 

[dropcap]F[/dropcap]oi em Abril deste ano que a revista Forbes publicou uma reportagem que demonstrava como a Xiaomi estaria a recolher os dados pessoais dos usuários através dos smartphones da marca sem a sua autorização, levantando uma enorme questão de cibersegurança. Wang Xiang, presidente da Xiaomi foi orador na última edição da Web Summit, em Lisboa, e voltou a rejeitar estas acusações.

“Não providenciamos dados a outras empresas do meu ponto de vista. Executamos regras de protecção de dados pessoais muito restritas e respeitamos regulamentos. Executamos regras na China semelhantes às que existem na Europa, não vendemos dados”, disse o empresário. Numa outra sessão online, moderada pela jornalista Xin Li, do grupo Caixin Media, Wang Xiang voltou a ser confrontado com este assunto.

“Na verdade, somos bastante conservadores na área da protecção de dados pessoais. Passámos muito tempo a estudar as novas regulações que surgiram na Europa e tentámos aplicá-las a 100 por cento. Adiámos o lançamento de muitos produtos para rever vezes sem conta a questão da privacidade de dados.”

O empresário, que entrou para a Xiaomi há apenas cinco anos, assegurou que “os dados de todos os produtos que são fornecidos para a Europa são armazenados fora da China, ficam na Europa”. “Este é um passo muito importante para garantir que tudo é seguro”, frisou.

Para todos os bolsos

Fundada há apenas dez anos, a Xiaomi desde sempre teve o “sonho” de criar tecnologia acessível a todas as bolsas. E um dos primeiros produtos em que apostou foi o purificador de ar, numa altura em que a qualidade do ar era uma enorme questão na China.

“Definimos um mercado para o produto por nós próprios. Há uns anos a China tinha um enorme problema com a poluição do ar, mas um purificador de ar ficava extremamente caro para o consumidor. Custava cerca de 1000 dólares e queríamos resolver esse problema. Fizemos muitos esforços para encontrar os melhores engenheiros nessa área, ao nível dos filtros, por exemplo. Tornámo-nos na marca número um na venda de purificadores de ar na China”, contou o empresário.

Uma das formas que a Xiaomi encontrou para o consumidor pagar muito menos por um produto semelhante à concorrência foi o uso exclusivo de plataformas online no processo de produção. Regular preços exigiu, para a empresa, “um grande esforço e determinação”. “O nosso sonho e modelo de negócio é que todos tenham uma vida melhor através da inovação. Inovámos em muitas áreas, melhorando a eficiência dos nossos canais de distribuição. No início da Xiaomi não vendemos nada através dos canais tradicionais porque iria custar muito dinheiro da fábrica até ao consumidor final, então usámos apenas canais online. Não gastamos nenhum dinheiro no mercado tradicional. Usamos 100 por cento canais online para comunicar as nossas ideias e produtos”, acrescentou.

Actualmente, a Xiaomi possui um modelo de negócio que passa por deter posições minoritárias em startups com as quais podem operar ao nível da concepção e design do produto. “Investimos em mais de 100 empresas e investimos nessas startups, com acções minoritárias, para que façam parte da nossa empresa.

Estas mantêm-se como startups e ficamos responsáveis pelo design do produto. Se os produtos destas empresas preencherem os nossos requisitos, vamos vender a nossa marca. É um modelo muito eficiente, produtivo e único. Alguns produtos são feitos a 100 por cento por nós, mas investimos em start-ups para construir esse sistema de igualdade.”

IA é o futuro

Olhando para o futuro, Wang Xiang não tem dúvidas de que ele passa pelo uso cada vez maior da Inteligência Artificial (IA) nas nossas vidas. “A IA vai ser uma tecnologia muito importante para mudar as vidas das pessoas, para as ajudar, então estamos a investir muito nessa área. Temos milhares de engenheiros na área da IA.”

A pensar nisso, a Xiaomi desenvolveu uma série de produtos que podem ser programados através da voz, sem comandos ou botões. “Podemos falar para esse sistema e monitorar todos os aparelhos na nossa casa.

Por exemplo, é possível ligar e desligar luzes, abrir ou fechar cortinas. Tudo isso pode ser monitorizado através do sistema de voz. Também se pode usar os comandos da televisão para seleccionar filmes ou programas, e não é preciso carregar nos botões, basta usar a voz.”

Um exemplo de um produto inteligente da marca, e que é o mais usado por Wang Xiang, é a panela de cozer arroz. “É um dos meus produtos favoritos, porque podemos comprar o arroz e usar um smartphone para fotografar o código de barras e descobrimos de onde vem o arroz. Temos milhares de receitas com arroz guardadas em nuvem para ajudar o utilizador a cozinhar”, explicou.

Com cerca de dois mil produtos ligados à área do Life and Style, a Xiaomi assume que não tem, para já, planos para entrar no mercado dos carros eléctricos. “Não posso responder se temos planos porque não trabalhamos nessa área agora. Estamos a produzir scooters eléctricas que são das mais populares no mundo. Na Europa já é muito fácil encontrar as nossas scooters, em Roma, Barcelona.”

Um dos desafios que a marca necessita de enfrentar actualmente é a contratação de engenheiros que saibam responder a diversas valências e mercados. “Estamos em vários mercados tecnológicos. Produzimos smartphones, televisões inteligentes e scooters, e todos esses produtos têm tecnologias diferentes. Como podemos encontrar os melhores profissionais para garantir a inovação?”, questionou.

Com uma presença em cerca de 90 mercados, e com um enorme crescimento na Índia, a Xiaomi diz ter uma mente aberta em relação a questões diplomáticas e medidas de proteccionismo económico que têm sido adoptadas. “A Xiaomi é uma empresa muito recente e aberta. Somos diferentes. A empresa foi fundada por um grupo de engenheiros e empreendedores, há dez anos, tal como qualquer start-up na Europa ou no resto do mundo. Estamos a tentar melhorar as vidas das pessoas e a terem acesso a uma melhor tecnologia.

Estamos na bolsa de valores de Hong Kong desde Julho de 2018, somos muito abertos. Temos engenheiros em todo o mundo, na China, Japão, EUA. Temos nove centros de design fora da China. Somos uma empresa global e não me preocupo com essas questões”, rematou.

A Web Summit, considerada a maior feira de tecnologia, startups e empreendedorismo do mundo, decorreu em Lisboa e chegou ao fim na sexta-feira, depois de três dias de uma edição inteiramente online devido à pandemia da covid-19.

7 Dez 2020

Carlos Castanheira, arquitecto e parceiro de Siza Vieira, sobre caso do Hotel Estoril: “Foi extremamente deselegante” 

A dupla de arquitectos Siza Vieira-Castanheira acaba de ver inaugurado na cidade chinesa de Ningbo um novo projecto. Mas Carlos Castanheira não esquece a atitude “extremamente deselegante” do ex-secretário Alexis Tam sobre a retirada do convite para recuperar o antigo Hotel Estoril. Por concretizar, ficou também a exposição sobre o trabalho da dupla, que esteve na Fundação de Serralves, e que não foi incluída no orçamento do Instituto Cultural

 

[dropcap]R[/dropcap]ecentemente foi inaugurado na China o MoAE – Huamao Museum of Art and Education. Como aconteceu este projecto?

Recebemos um convite para fazer cinco vilas. O nosso cliente está a desenvolver uma urbanização junto a um lago que incluía um hotel, um centro de congressos, 25 vilas e um museu. Começamos a trabalhar nas vilas e na terceira visita houve a hipótese de pegarmos no museu. O programa já existia, o senhor já tinha um outro museu no centro da cidade, onde tinha parte da sua colecção. Mas como ele está ligado à educação, pois tem uma série de colégios, queria que através da arte se fizesse educação, e daí o MoAE. Há uma parte do piso inferior que é muito relacionada com as exposições de escolas e depois ao subir vai-se subindo também na qualidade da arte para se perceber como é a evolução do mundo através da arte.

Houve divergências em termos de ideias?

Trabalhamos em conjunto. Neste caso era muito claro que o espaço existente era relativamente pequeno para o programa que o cliente pretendia, daí ser necessário colocá-lo em altura, com alguns pisos. Depois tínhamos a sorte de ter uma colina com muita presença. Esse programa era muito parecido com um outro que o Siza Vieira já tinha feito no Brasil, e foi possível usar algumas dessas experiências neste projecto. Mas este não é o mesmo do Brasil.

O território também não é igual.

Não, o cliente e as suas aspirações não são iguais. Temos de nos empenhar para dar uma resposta especifica aquele cliente, e é por isso que eu penso que este edifício é único. Quase todos os edifícios que fazemos são únicos, mas vemos que há ali semelhanças, porque são coisas feitas pelos mesmos arquitectos. Não podemos esquecermo-nos do nosso passado e fazer coisas completamente novas.

Também já existe uma expectativa em relação à dupla Siza Vieira-Castanheira.

Há uma carga que, de certa maneira, é positiva, mas às vezes não é. É uma carga de que tudo o que se faz tem de ser sempre muito bom.

Há uma certa pressão.

Há uma pressão muito grande que também nos dá alento e responsabilidade de querer fazer bem. Queremos sempre fazer bem, não por termos essa carga. Não digo que há um estilo Siza Vieira-Castanheira. Há uma maneira de fazer, um respeito mútuo muito grande.

É difícil trabalhar com alguém muito mais velho, mas também alguém que foi seu professor?

É um bocado difícil de explicar. Ele tem esta capacidade incrível de se equiparar a nós. E somos nós que mantemos o respeito. Quando trabalho com ele aqui no atelier, muitas vezes tenho colaboradores comigo, e ele sempre com o devido respeito, fala com eles quase de igual para igual. Disse quase.

Há sempre uma diferença.

Exactamente. Ele é o maior brincalhão, conta umas anedotas. Mas tem esta capacidade de saber trabalhar em conjunto. O Siza faz tudo, desenhos à mão, corta maquetes. Obviamente que a idade pesa, conheço-o há 44 anos e claro que ele mudou alguma coisa, mas só fisicamente. Agora temos um projecto novo para a Coreia, ele diz “vamos lá começar isto”. Tem entusiasmo, sempre com vontade de fazer mais e melhor. E há uma coisa em que se calhar sou diferente dos outros, porque quando não gosto digo e temos esse relacionamento muito claro.

Não é submisso.

Não sou um co-autor que diz que tudo está bem. Até porque ele é muito diferente, mas não é Deus. Mesmo que ele não concorde eu digo o que penso e isso cria um relacionamento de muita confiança. Estou extremamente contente com o trabalho que temos feito, porque as pessoas continuam a pedir-nos trabalho, e temos trabalhos novos, apesar da crise.

Para a Ásia?

Sim, para a Ásia também. Vamos focarmo-nos no trabalho da Coreia e do Japão, estamos mesmo a começar.

Neste conjunto de trabalhos que já fizeram na Ásia trabalharam com mercados diferentes. Qual é o mais desafiante?

Desafiante mesmo é trabalhar em Macau. É extremamente difícil. Mas a China é desafiante. O Japão é um mercado muito difícil por questões culturais, eles têm uma maneira muito própria de trabalhar, mas somos bem recebidos. Infelizmente, ao fim destes anos todos, não construímos nada lá, e estamos com expectativas em relação a este novo trabalho. Gostamos muito de trabalhar na Coreia, são muito cumpridores. Em Taiwan também, onde só trabalhamos com um cliente.

Quando fala dos desafios de Macau refere-se ao projecto para o antigo Hotel Estoril que nunca aconteceu?

Também, mas não só. Umas pessoas de Macau desafiaram-me para um projecto e eu fui até lá. Tinham um hotel [Hotel Best Western Sun Sun], que vinha do pai. Começamos a desenvolver esse projecto e foi só problemas, só faltou dizerem que não queriam que trabalhássemos em Macau.

Problemas da parte de quem?

Das Obras Públicas, e por causa do património. Eles [os proprietários] queriam muito, tinham muita influência, mas mesmo assim aquilo foi complicado. E estávamos ainda a trabalhar nesse projecto quando fui chamado para ter uma reunião com Alexis Tam [ex-secretário para os Assuntos Sociais e Cultura] para desenvolver o projecto do Hotel Estoril. Fomos visitar o edifício, tirei desenhos, o Alexis Tam veio ao Porto, disseram-nos que tinham pressa em andar com o projecto. Entretanto saiu a notícia de que o Governo ia convidar o Siza Vieira para fazer aquilo, começou a haver alguma reacção dos arquitectos, e quando voltei a Macau tive uma reunião com Alexis Tam e ele, com um ar tranquilíssimo, disse-me que o projecto já não ia para a frente. Eu fiquei muito surpreendido, foi extremamente deselegante. E logo a seguir vim a saber que iam contratar um arquitecto local e que depois houve um outro concurso e que convidaram outros arquitectos. Fiquei com a ideia que o Álvaro Siza Vieira não era bem visto.

Chegaram a fazer alguns gastos neste projecto?

Ainda não tínhamos nada feito, mas foi por pouco. Tinha a palavra dele [de Alexis Tam]. Na Ásia há muito essa coisa de que, sem um contrato, não se faz nada. Nós, muitas vezes, basta-nos a palavra do cliente para avançar. Já havia discussões se iríamos manter o edifício todo ou parcial, havia um tempo gasto, mas nada que pudéssemos reclamar honorários.

E o que achou Siza Vieira?

Também achou deselegante. Represento-o a ele e a mim próprio. Mas para essas coisas escrevem-se cartas, fazem-se telefonemas. A educação não é cara, mas há males que vêm por bem. Muito sinceramente acho que nunca fomos bem recebidos em Macau e se calhar a culpa é muito dos arquitectos. Há sempre uma inveja.

Na altura o convite foi retirado porque se defendia um concurso público para a participação de arquitectos locais.

O convite a determinadas arquitectos, e não falo de nós, podem ser entendidos como uma majoração da profissão. Não sei como está a situação agora na pandemia, mas tenho tido alguns contactos com pessoas daí e se havia sítio onde não havia trabalho era em Macau. Também há alguns arquitectos que querem fazer tudo e sentiram esse incómodo. Quem não ganhou nada com isso foi o território. E aquela praça continua com aquele objecto, eu não queria aquilo na minha casa. Se tivesse aquilo, com muito dinheiro no banco, e não fosse capaz de resolver… alguma coisa se passaria. E também não há problemas de eleições. Houve uma falta de personalidade, de carácter. Depois fomos convidados para fazer uma exposição, na sequência da mostra que houve aqui [no Porto] em Serralves. Houve contactos com o Instituto Cultural, queriam importar a exposição [para o Museu de Arte de Macau] e fazer um acrescento com os projectos da Ásia. Isso estava praticamente resolvido, já tinham cá vindo escolher os desenhos. Mas chegou a pandemia e foi tudo cancelado. Entretanto chegou um novo Governo, com um novo orçamento, e essa exposição não foi incluída. Ainda não perdi essa esperança, mas não vai ser para já.

Porque acha que há toda essa complicação nas Obras Públicas?

Macau ainda tem algum português, há esta pequena questão miudinha que é ser português, de não pensar em grande. Se Macau tivesse tido melhor arquitectura, que não fosse só ganhar dinheiro, o respeito que teria pelos arquitectos internacionais seria maior. E assim continua a ser uma vila portuguesa pequena na Ásia com um enorme playground. Cria muito dinheiro, postos de trabalho, mas que não é característico. Do ponto de vista de arquitectura, é um fogo de artifício.

Têm a sensação que Macau nunca vos recebe bem?

Arranje-me uma prova em contrário. Nem com a exposição correu bem, mas foi a questão da pandemia. Havia ali uma vontade de Alexis Tam de se redimir, mas ele acabou por não ficar no Governo.

Porque é que a China é tão desafiante?

Desafia-nos a fazer projectos diferentes. Alguns deles têm algum tamanho e só são possíveis de concretizar na China. Os honorários são adequados ao trabalho que desenvolvemos e à qualidade, e pagam. Somos respeitados como arquitectos. Também temos os nossos problemas, de comunicação, culturais, mas há sempre uma relação com os clientes e equipas locais bastante saudável. Temos tido a sorte, e também tem a ver com o nosso passado, de termos sido convidados para fazer projectos interessantes.

Havia na China a ideia de destruir o que é velho para fazer de novo. Isso alterou-se?

Voltamos à questão cultural. Aqui [em Portugal] temos um relacionamento com o património fundamentalista, exagerado. Acho que o bom está no equilíbrio das coisas, e há coisas que têm mesmo de ser destruídas. Na China há outra atitude. Depois constrói-se tão depressa, e isso é talvez a coisa mais criticável na China. Eu nunca me atrasei na China, eles nunca esperaram por mim. E depois constroem muito mal. Por exemplo, na Coreia eles acham que um edifício com 20 anos é velho, e têm uma teoria que se um edifício ao fim de 20 anos não se pagou a si próprio, foi um mau negócio.

É uma visão materialista da arquitectura.

No centro de Seul estão constantemente a deitarem-se coisas abaixo. Há uma energia, uma vitalidade que cá não temos, nem conseguimos. Ainda construímos castelos para os nossos trinetos. Eles querem gozar as coisas, e depois logo se vê. Há uma atitude cultural diferente. Mas nestes 15 anos a China mudou completamente, a nível processual, tudo. Uma coisa que me espanta é que mudou completamente a nível ambiental.

Para melhor?

Para melhor. Têm uma capacidade para dar ordens e escutar. Talvez seja criticável, mas pronto.

Vai estar atento ao projecto para o edifício do antigo Hotel Estoril?

Não. Vi as propostas do concurso internacional. Não vale a pena ter rancor, se o Hotel Estoril fosse o único projecto no mundo, tinha, mas não é. E também não é a primeira vez que nos passam a perna. Apesar de tudo isto, e não sei explicar, mas gosto muito de Macau, acho interessante. Gostava de chegar à praça do Tap Seac e ver um belo edifício, não importa de quem seja o projecto.

1 Dez 2020

Fernando Martins, historiador e autor: “Macau e Índia eram indefensáveis”

O novo livro do historiador Fernando Martins, “Pedro Theotónio Pereira – O Outro Delfim de Salazar”, revela um almoço entre o diplomata Pedro Theotónio Pereira e o secretário de Estado adjunto dos EUA a propósito da guerra civil chinesa. O encontro aconteceu a pedido de Salazar, devido às crescentes preocupações sobre o impacto que o conflito teria na soberania portuguesa em Macau

 

[dropcap]P[/dropcap]edro Theotónio Pereira foi embaixador nos EUA durante o Governo de Salazar e nesse período deparou-se com a questão da guerra civil chinesa. Quais eram as principais preocupações de Salazar relativamente ao conflito?

Caso se registasse uma vitória dos comunistas, como aliás veio a suceder, temia-se que o novo Governo [chinês] não respeitasse a soberania portuguesa em Macau e também poderia não respeitar a soberania britânica em Hong Kong. Aquilo que falo no livro é uma conversa do embaixador Pedro Theotónio Pereira com o secretário de Estado adjunto norte-americano Walton Butterworth, que tratava das questões do Extremo Oriente. Essa é uma conversa informal e eles encontram-se a pedido de Salazar. Nem sequer foi o ministro dos Negócios Estrangeiros a pedir. Salazar queria um esclarecimento de viva voz, sem a mediação dos media, sobre a atitude dos EUA em relação à guerra civil que estava a correr muito mal para o lado dos nacionalistas, que tinham o apoio dos EUA. Salazar queria saber como os norte-americanos estavam a avaliar essa situação.

O livro fala de uma “iniciativa diplomática singular” de Pedro Theotónio Pereira. Refere-se a este encontro informal?

Sim, por duas razões. É uma questão tratada entre o Presidente do Conselho [Salazar] e o embaixador de Portugal em Washington. É singular pela sua informalidade e gravidade, pois há ali uma grande preocupação de Salazar e das autoridades portuguesas sobre o que poderia acontecer a Macau. Macau já tinha estado no fio da navalha na II Guerra Mundial, com a guerra às portas do território e o receio de que os japoneses pudessem violar a neutralidade portuguesa, e eventualmente também os chineses, embora isso fosse pouco provável. Essa questão voltava-se a colocar e havia receio e também surpresa quando as autoridades portuguesas perceberam que, apesar da ajuda dos EUA, os comunistas iam ganhar a guerra civil. Isso teria implicações para o destino de Macau.

De certa forma este encontro serviu de aviso a Hong Kong ou às autoridades britânicas? Houve algum elo de ligação?

Havia alguns contactos. Não conheço esse lado da diplomacia portuguesa, de, através de contactos mantidos com a Grã-Bretanha, saber exactamente como as autoridades britânicas iriam reagir caso houvesse uma violação da soberania britânica em Hong Kong, como poderia haver em Macau. Mas o que se percebe é que do lado português houve um desconforto pelo facto de não haver disponibilidade das autoridades britânicas, quer na Europa ou em Hong Kong, para cooperar com Portugal e preparar um plano de acção no caso da vitória comunista na guerra civil, e no caso de essa vitória poder pôr em xeque as duas soberanias.

Não havia qualquer preparação para um eventual ataque.

Os britânicos tinham meios na região, em Hong Kong e no extremo oriente, muito mais que Portugal. Tinham mais meios militares e recursos político-diplomáticos. Obviamente que estavam mais preparados perante uma ofensiva e jogar a cartada americana para ajudar a defender o território, caso os comunistas chineses tentassem ocupar. São duas potências com características completamente diferentes, e quando o relacionamento com Portugal não servia os interesses britânicos, o país pura e simplesmente ignorava as preocupações ou propostas de Portugal.

Para preservar a soberania de Macau, Portugal chega a enviar, em Maio de 1949, tropas para o território. Mas o Governador à época, o comandante Albano de Oliveira, disse que Macau era “indefensável”. Era indiferente enviar novas tropas ou não.

Sim. Aliás, é um bocado aquilo que mais tarde acontece na Índia. Tanto Macau como a Índia eram indefensáveis do ponto de vista militar, porque estavam em causa potências com recursos significativos e desproporcionais quando comparados com os portugueses. São enviados cerca de três mil homens para enfrentar com êxito uma ofensiva militar chinesa para afirmação da soberania [portuguesa] e manutenção da ordem política interna. [Foram enviados] também para dar um sinal de que há o interesse em preservar a soberania, mas é um acto que não é apenas simbólico. Mas não faria a diferença caso os chineses quisessem atacar e anexar o território.

Diz que a manutenção da soberania portuguesa em Macau foi mais um desejo de Pequim até 1968, ano em que Salazar cai da cadeira. A China não tinha o mínimo interesse em invadir Macau, porquê?

O que parece evidente é que, para as autoridades chinesas, interessava manter, através de Hong Kong e de Macau, portas e vias de comunicação com o exterior, com o mundo capitalista. A soberania portuguesa em Macau é preservada porque é o desejo da China e porque serve os interesses do novo regime chinês. Eventualmente, que o preço a pagar por essa anexação unilateral, mesmo no contexto de luta do nacionalismo chinês contra o colonialismo português, poderia até legitimar a acção da China, mas mesmo nesse contexto, as autoridades chinesas preferiram manter o status quo. Mesmo depois do 25 de Abril [de 1974], as autoridades portuguesas tentam passar para as mãos chinesas o território macaense, e a resposta chinesa foi negativa.

Pedro Theotónio Pereira tinha uma visão mais aberta do império colonial português que Salazar?

Ele, ao contrário de Salazar, esteve em alguns territórios coloniais portugueses. Quando saiu da embaixada em Washington, visitou Angola, e como ministro da Presidência visitou vários territórios, mas a visita mais importante que faz é ao Estado português da Índia. Ele conhecia muito bem a realidade internacional, quando o país tentava preservar o Império. Desse ponto de vista, tinha um conhecimento mais prático e próximo da questão colonial que Salazar. Dizer que ele tinha uma visão diferente, é possível que sim, mas não há nada que diga isso. Nada diz que quisesse iniciar um processo de transferência de poder das autoridades portuguesas para elites nacionais dessas colónias. No caso da Índia, tudo indica que a ocupação militar do Estado português por tropas indianas foi algo que terá afectado Pedro Theotónio Pereira, pois tinha lá estado dois anos antes. Terá sido uma experiência traumática.

Como é que o Governo de Salazar encarava Macau?

Franco Nogueira [diplomata] chegou a pensar em utilizar Macau e as boas relações com a China para fazer uma aproximação ao país, e para Portugal melhorar a sua posição estratégica face à Índia por causa do confronto no Estado português da Índia, ou para melhorar mais tarde a sua posição nas lutas pela autodeterminação e independência das colónias em África. Essa aproximação formal nunca foi feita, mas havia contactos informais. Sempre houve, foram muito importantes. Macau tinha valor estratégico e histórico, era o testemunho da presença centenária de Portugal no Oriente e das boas relações que Portugal tinha mantido com a China.

Portugal e a China não tinham, à época, relações diplomáticas. Qual era a posição de Pedro Theotónio Pereira em relação a esse assunto?

Cito no livro uma carta que enviou a Salazar, pois quando está em Londres recebe de um diplomata chinês um cartão muito cordial, que parece ser uma abertura para contactos, ainda que a nível informal, entre embaixadores. Pedro Theotónio Pereira fica um bocado embaraçado, sem saber o que fazer, e remete a Salazar, ficando à espera de resposta. Seguindo a documentação não se conhece que Salazar tenha dado continuidade a esse contacto do diplomata chinês. Também não se percebe a sua natureza, se é cortesia ou se pretendia mais qualquer coisa. Nem tanto Salazar, mas havia muitas personalidades do regime que eram cépticas a uma abertura de Portugal à República Popular da China, pelo que vai ser preciso esperar pelo 25 de Abril de 1974, e não é uma coisa imediata. Que havia contactos informais, sempre houve, mas não passavam por Theotónio Pereira. Seriam mais locais, na China e em Macau.

Pedro Theotónio Pereira chegou a ser administrador do Banco Nacional Ultramarino (BNU), numa altura em que o banco sofria uma reestruturação.

Ele esteve pouco tempo no BNU, mas isso teve alguma importância porque ajudou a preparar a reestruturação do banco no contexto já do pós-Guerra. Parecia evidente que o banco queria centrar a sua actividade no Ultramar e na sua relação com a metrópole. Ele tenta intermediar a venda de alguns activos que o banco tinha no Brasil e que tinham deixado de ser estratégicos. Mas não se pode dizer que seja algo decisivo. Ele vai para o BNU por duas razões: é uma nomeação política, ele era um homem do regime, e tinha experiência pelo facto de ter sido um alto quadro da companhia de seguros Fidelidade. Mas não é um dos momentos mais importantes da sua carreira.

Pedro Theotónio Pereira era falado como o substituto de Salazar. Como seria o diplomata na qualidade de Presidente do Conselho?

É muito difícil responder a isso. Ele estava incapacitado quando Salazar foi substituído. Era um homem com origens sociais, uma formação académica e relevância política, além de uma realidade política nacional e internacional, completamente diferentes em relação a Salazar. Mas mesmo com essa experiência internacional, não sei se iria ter uma atitude muito diferente. Não podemos resumir a política portuguesa a partir da década de 60 à questão da guerra colonial, pois havia aspectos importantes ligados ao desenvolvimento económico e social. Mais do que compará-lo com Salazar, talvez possamos compará-lo com Marcelo Caetano. Parece-me que Theotónio Pereira era, do ponto de vista político, um indivíduo tão ou mais bem preparado do que Marcelo Caetano, porque tinha essa experiência na política interna desde a década de 30, mas também a experiência internacional que Marcelo Caetano tinha menos.

25 Nov 2020