Fernando Martins, historiador e autor: “Macau e Índia eram indefensáveis”

O novo livro do historiador Fernando Martins, “Pedro Theotónio Pereira – O Outro Delfim de Salazar”, revela um almoço entre o diplomata Pedro Theotónio Pereira e o secretário de Estado adjunto dos EUA a propósito da guerra civil chinesa. O encontro aconteceu a pedido de Salazar, devido às crescentes preocupações sobre o impacto que o conflito teria na soberania portuguesa em Macau

 

[dropcap]P[/dropcap]edro Theotónio Pereira foi embaixador nos EUA durante o Governo de Salazar e nesse período deparou-se com a questão da guerra civil chinesa. Quais eram as principais preocupações de Salazar relativamente ao conflito?

Caso se registasse uma vitória dos comunistas, como aliás veio a suceder, temia-se que o novo Governo [chinês] não respeitasse a soberania portuguesa em Macau e também poderia não respeitar a soberania britânica em Hong Kong. Aquilo que falo no livro é uma conversa do embaixador Pedro Theotónio Pereira com o secretário de Estado adjunto norte-americano Walton Butterworth, que tratava das questões do Extremo Oriente. Essa é uma conversa informal e eles encontram-se a pedido de Salazar. Nem sequer foi o ministro dos Negócios Estrangeiros a pedir. Salazar queria um esclarecimento de viva voz, sem a mediação dos media, sobre a atitude dos EUA em relação à guerra civil que estava a correr muito mal para o lado dos nacionalistas, que tinham o apoio dos EUA. Salazar queria saber como os norte-americanos estavam a avaliar essa situação.

O livro fala de uma “iniciativa diplomática singular” de Pedro Theotónio Pereira. Refere-se a este encontro informal?

Sim, por duas razões. É uma questão tratada entre o Presidente do Conselho [Salazar] e o embaixador de Portugal em Washington. É singular pela sua informalidade e gravidade, pois há ali uma grande preocupação de Salazar e das autoridades portuguesas sobre o que poderia acontecer a Macau. Macau já tinha estado no fio da navalha na II Guerra Mundial, com a guerra às portas do território e o receio de que os japoneses pudessem violar a neutralidade portuguesa, e eventualmente também os chineses, embora isso fosse pouco provável. Essa questão voltava-se a colocar e havia receio e também surpresa quando as autoridades portuguesas perceberam que, apesar da ajuda dos EUA, os comunistas iam ganhar a guerra civil. Isso teria implicações para o destino de Macau.

De certa forma este encontro serviu de aviso a Hong Kong ou às autoridades britânicas? Houve algum elo de ligação?

Havia alguns contactos. Não conheço esse lado da diplomacia portuguesa, de, através de contactos mantidos com a Grã-Bretanha, saber exactamente como as autoridades britânicas iriam reagir caso houvesse uma violação da soberania britânica em Hong Kong, como poderia haver em Macau. Mas o que se percebe é que do lado português houve um desconforto pelo facto de não haver disponibilidade das autoridades britânicas, quer na Europa ou em Hong Kong, para cooperar com Portugal e preparar um plano de acção no caso da vitória comunista na guerra civil, e no caso de essa vitória poder pôr em xeque as duas soberanias.

Não havia qualquer preparação para um eventual ataque.

Os britânicos tinham meios na região, em Hong Kong e no extremo oriente, muito mais que Portugal. Tinham mais meios militares e recursos político-diplomáticos. Obviamente que estavam mais preparados perante uma ofensiva e jogar a cartada americana para ajudar a defender o território, caso os comunistas chineses tentassem ocupar. São duas potências com características completamente diferentes, e quando o relacionamento com Portugal não servia os interesses britânicos, o país pura e simplesmente ignorava as preocupações ou propostas de Portugal.

Para preservar a soberania de Macau, Portugal chega a enviar, em Maio de 1949, tropas para o território. Mas o Governador à época, o comandante Albano de Oliveira, disse que Macau era “indefensável”. Era indiferente enviar novas tropas ou não.

Sim. Aliás, é um bocado aquilo que mais tarde acontece na Índia. Tanto Macau como a Índia eram indefensáveis do ponto de vista militar, porque estavam em causa potências com recursos significativos e desproporcionais quando comparados com os portugueses. São enviados cerca de três mil homens para enfrentar com êxito uma ofensiva militar chinesa para afirmação da soberania [portuguesa] e manutenção da ordem política interna. [Foram enviados] também para dar um sinal de que há o interesse em preservar a soberania, mas é um acto que não é apenas simbólico. Mas não faria a diferença caso os chineses quisessem atacar e anexar o território.

Diz que a manutenção da soberania portuguesa em Macau foi mais um desejo de Pequim até 1968, ano em que Salazar cai da cadeira. A China não tinha o mínimo interesse em invadir Macau, porquê?

O que parece evidente é que, para as autoridades chinesas, interessava manter, através de Hong Kong e de Macau, portas e vias de comunicação com o exterior, com o mundo capitalista. A soberania portuguesa em Macau é preservada porque é o desejo da China e porque serve os interesses do novo regime chinês. Eventualmente, que o preço a pagar por essa anexação unilateral, mesmo no contexto de luta do nacionalismo chinês contra o colonialismo português, poderia até legitimar a acção da China, mas mesmo nesse contexto, as autoridades chinesas preferiram manter o status quo. Mesmo depois do 25 de Abril [de 1974], as autoridades portuguesas tentam passar para as mãos chinesas o território macaense, e a resposta chinesa foi negativa.

Pedro Theotónio Pereira tinha uma visão mais aberta do império colonial português que Salazar?

Ele, ao contrário de Salazar, esteve em alguns territórios coloniais portugueses. Quando saiu da embaixada em Washington, visitou Angola, e como ministro da Presidência visitou vários territórios, mas a visita mais importante que faz é ao Estado português da Índia. Ele conhecia muito bem a realidade internacional, quando o país tentava preservar o Império. Desse ponto de vista, tinha um conhecimento mais prático e próximo da questão colonial que Salazar. Dizer que ele tinha uma visão diferente, é possível que sim, mas não há nada que diga isso. Nada diz que quisesse iniciar um processo de transferência de poder das autoridades portuguesas para elites nacionais dessas colónias. No caso da Índia, tudo indica que a ocupação militar do Estado português por tropas indianas foi algo que terá afectado Pedro Theotónio Pereira, pois tinha lá estado dois anos antes. Terá sido uma experiência traumática.

Como é que o Governo de Salazar encarava Macau?

Franco Nogueira [diplomata] chegou a pensar em utilizar Macau e as boas relações com a China para fazer uma aproximação ao país, e para Portugal melhorar a sua posição estratégica face à Índia por causa do confronto no Estado português da Índia, ou para melhorar mais tarde a sua posição nas lutas pela autodeterminação e independência das colónias em África. Essa aproximação formal nunca foi feita, mas havia contactos informais. Sempre houve, foram muito importantes. Macau tinha valor estratégico e histórico, era o testemunho da presença centenária de Portugal no Oriente e das boas relações que Portugal tinha mantido com a China.

Portugal e a China não tinham, à época, relações diplomáticas. Qual era a posição de Pedro Theotónio Pereira em relação a esse assunto?

Cito no livro uma carta que enviou a Salazar, pois quando está em Londres recebe de um diplomata chinês um cartão muito cordial, que parece ser uma abertura para contactos, ainda que a nível informal, entre embaixadores. Pedro Theotónio Pereira fica um bocado embaraçado, sem saber o que fazer, e remete a Salazar, ficando à espera de resposta. Seguindo a documentação não se conhece que Salazar tenha dado continuidade a esse contacto do diplomata chinês. Também não se percebe a sua natureza, se é cortesia ou se pretendia mais qualquer coisa. Nem tanto Salazar, mas havia muitas personalidades do regime que eram cépticas a uma abertura de Portugal à República Popular da China, pelo que vai ser preciso esperar pelo 25 de Abril de 1974, e não é uma coisa imediata. Que havia contactos informais, sempre houve, mas não passavam por Theotónio Pereira. Seriam mais locais, na China e em Macau.

Pedro Theotónio Pereira chegou a ser administrador do Banco Nacional Ultramarino (BNU), numa altura em que o banco sofria uma reestruturação.

Ele esteve pouco tempo no BNU, mas isso teve alguma importância porque ajudou a preparar a reestruturação do banco no contexto já do pós-Guerra. Parecia evidente que o banco queria centrar a sua actividade no Ultramar e na sua relação com a metrópole. Ele tenta intermediar a venda de alguns activos que o banco tinha no Brasil e que tinham deixado de ser estratégicos. Mas não se pode dizer que seja algo decisivo. Ele vai para o BNU por duas razões: é uma nomeação política, ele era um homem do regime, e tinha experiência pelo facto de ter sido um alto quadro da companhia de seguros Fidelidade. Mas não é um dos momentos mais importantes da sua carreira.

Pedro Theotónio Pereira era falado como o substituto de Salazar. Como seria o diplomata na qualidade de Presidente do Conselho?

É muito difícil responder a isso. Ele estava incapacitado quando Salazar foi substituído. Era um homem com origens sociais, uma formação académica e relevância política, além de uma realidade política nacional e internacional, completamente diferentes em relação a Salazar. Mas mesmo com essa experiência internacional, não sei se iria ter uma atitude muito diferente. Não podemos resumir a política portuguesa a partir da década de 60 à questão da guerra colonial, pois havia aspectos importantes ligados ao desenvolvimento económico e social. Mais do que compará-lo com Salazar, talvez possamos compará-lo com Marcelo Caetano. Parece-me que Theotónio Pereira era, do ponto de vista político, um indivíduo tão ou mais bem preparado do que Marcelo Caetano, porque tinha essa experiência na política interna desde a década de 30, mas também a experiência internacional que Marcelo Caetano tinha menos.

25 Nov 2020

Cheong Kin I, encenadora de “The Dress Looks Nice on You”: “Quero descobrir o mundo da esquizofrenia”

“The Dress Looks Nice on You” [em cantonês, Hoi Vong Seng] é a nova peça de teatro encenada por Cheong Kin I. Escrito pelo dramaturgo taiwanês Chen Hung-Yang, este espectáculo inspira-se na experiência pessoal da encenadora de Macau, que lidou com o vício do jogo do pai, além de abordar o tema da esquizofrenia. Depois de uma leitura pública do argumento em Outubro, a estreia oficial em Macau acontece em Junho do próximo ano, no teatro do edifício do Antigo Tribunal. Entre os dias 19 e 22 de Novembro “The Dress Looks Nice On You” dá um salto a Taiwan

 

[dropcap]F[/dropcap]oi difícil voltar a abordar questões familiares neste novo projecto teatral? Porque decidiu enveredar novamente por este tema?

A família é algo que teve muito peso durante o meu processo de crescimento e amadurecimento. Esta é a segunda peça onde falo da família, depois de “Rua de Macau – Sabores”. Toda a minha inspiração vem do meu pai, porque ele sempre teve e continua a ter impacto na minha vida. Com a família tornamo-nos naquilo que somos enquanto seres humanos. Em “Rua de Macau – Sabores”, conto a história de como o meu pai lutou toda a vida para sobreviver em Macau depois da sua vinda clandestina do Continente. “The Dress Looks Nice on You” parte da minha própria experiência, mas também tem a ver com o meu pai e de como a sua dependência do jogo me perturbou imenso, e ao mesmo tempo contribuiu para me formar como pessoa. Tinha medo que viessem cobradores de dívidas à nossa casa. Isso nunca aconteceu, mas muitas vezes não sabia exactamente quais os barulhos verdadeiros ou aqueles que partiam da minha imaginação. É justamente isso que quero abordar na minha nova peça. Primeiro vem a parte da audição, depois a parte visual. Quero descobrir com os meus espectadores o mundo da esquizofrenia.

De que forma é que vai abordar este assunto?

Nesta peça falamos da esquizofrenia, no sentido em que parece que o passado já passou. Mas não, volta e voltará sempre, sobretudo as coisas infelizes da vida. A minha ambição é discutir mais profundamente este tema, e também a essência do teatro. Numa peça, ou numa qualquer criação artística, estamos a criar mais sofrimento ou a ajudar as vítimas a libertarem-se de tudo isso, quando abordamos estas questões ou falamos destas pessoas? Para mim não é difícil abordar uma questão de família, mas sim criar uma história e transformar a minha própria experiência numa criação artística.

Porquê o nome “The Dress Looks Nice on You”? O vestido tem aqui algum simbolismo especial?

Isso refere-se ao conto “O tio Novelo em Connecticut” [Uncle Wiggily in Connecticut] do escritor americano Jerome David Salinger. Neste conto, a Eloise, uma das personagens, chorou porque lhe foi dito que em Nova Iorque ninguém veste o tipo de vestido que a Eloise comprou. A Eloise pensa que era uma boa rapariga, por simplesmente ter chorado por causa disso. Gosto muito desta passagem. Para mim o vestido está muito relacionado com a diferença de géneros, e também com o processo de transformar um vestido em algo feminino. Sempre associei isso com a socialização no geral. A Eloise encarna uma das personagens da peça, que fica socializada. Mas aqui uso a palavra socialização com a máxima educação. Posso mesmo dizer que esta personagem, na minha peça, é violada socialmente, no sentido em que, enquanto seres humanos, temos sempre de nos adaptar para sermos aquilo que a sociedade quer ou necessita. Não temos escolha na sociedade a não ser que respeitemos as suas regras. Construímos aqui um mundo de ouvido das vítimas de esquizofrenia, pois a alucinação auditiva é um ponto principal da peça.

Quais as suas expectativas em relação à apresentação deste projecto em Taiwan?

Para tentar reconstruir um mundo imaginativo da esquizofrenia o argumento tem 60 fragmentos. Isso não é muito comum em Macau. Por isso, os espectadores de Macau terão de ver toda a peça para conseguir compreendê-la e digeri-la, incluindo as suas personagens.

Há diferenças entre o público de Macau e de Taiwan?

Os espectadores de Macau estão mais habituados a ver algo linear. Mas aqui não estou interessada em criar um ponto culminante para nenhuma história, pois estou a criar uma banalidade da vida que, afinal, nem é algo tão banal. É como, por exemplo, a fantasia sobre o amor, o absurdo da vida, o sofrimento da sobrevivência. Tomo os fragmentos da vida para construir e representar os diversos estados de uma vida banal que todos nós vivemos. Em contrapartida, o público de Taiwan está mais habituado a esta espécie de argumentos. É um público que gosta de reflectir, adivinhar e mastigar o que vê. Isso tem a ver com a educação na ilha, que incentiva e proporciona um pensamento independente.


Porquê a estreia em Macau só no próximo ano?

Por causa da pandemia. Segundo as medidas do Governo, teríamos de reduzir para metade os lugares dos espectadores e depois de dois anos de preparação seria muito frustrante ver um teatro inteiro meio vazio. Se apresentássemos a peça mais vezes iríamos perder dinheiro, para que o público não pagasse mais pelos bilhetes. No período da pandemia fazer teatro tem sido muito difícil e, ainda por cima, as boas peças têm menos visibilidade.

Teme algumas repercussões negativas pelo facto de apresentar peças de teatro em Taiwan, tendo em conta a questão política?

Macau não é o continente chinês e o continente chinês não é Macau. Ainda não temos problemas por cá. Além disso, o que faço não tem que ver com política, por isso nem poderia ser alvo de uma repercussão negativa. Em 2018, quando encenei “A Reunificação das Duas Coreias”, que não tinha a ver com política mas abordava o amor, convidei intencionalmente actrizes e actores de Macau e Taiwan. Os falantes das duas línguas, cantonense e mandarim, sem aprender os idiomas, não se compreendem. Mas isso não tinha que ver com a política. Foi uma maneira para reinventar, de forma criativa, a impossibilidade de comunicação entre os amantes. Macau não é um lugar onde a sensibilidade política tenha destaque, como é o caso de Hong Kong. Além disso, Taiwan é um território muito aberto e abraça todo o tipo de opiniões. Não temos nenhuma pressão política.

15 Nov 2020

Joaquim Ramos de Carvalho: “IPM está sintonizado com o Governo”

Criado em Dezembro, o novo Centro Internacional Português de Formação do Instituto Politécnico de Macau visa dar respostas a todas as perguntas sobre o projecto da Grande Baía. Mas, acima de tudo, pretende ser um local de formação e conhecimento destinado não só a estudantes, mas a profissionais com ligação à China e a Macau, em áreas que vão além da tradução. Joaquim Ramos de Carvalho promete anunciar novidades já em Janeiro

 

[dropcap]F[/dropcap]oi vice-reitor da Universidade de Coimbra (UC) até 2019. O que o levou a abraçar agora este desafio no IPM?

Primeiro, porque a oportunidade ocorreu. Enquanto vice-reitor da UC, tive muitos contactos com o IPM, era o nosso parceiro preferencial em Macau, porque tinha muita actividade na área da língua portuguesa. Já conhecia o IPM e, depois de acabar o meu mandato, em 2019, o IPM fez-me o desafio. Este era um desafio muito aliciante, sobretudo porque também tinha a ver com uma área em que me tinha empenhado bastante: as relações entre a China e os países de língua portuguesa. É uma excelente oportunidade e estou muito contente que se tenha concretizado.

O Centro é muito recente, foi criado em Dezembro. Quais os seus objectivos principais, para já?

A missão que me foi definida foi diversificar aquilo que tem sido a oferta actual do IPM em relação à língua portuguesa e no contexto da relação entre a China e os países de língua portuguesa. O Centro Pedagógico e Científico da Língua Portuguesa do IPM tem feito um excelente trabalho, tem se focado, com muito sucesso, na formação de professores de língua portuguesa. Mas a percepção que temos é que há mais solicitações variadas de oportunidades de formação, e também mais específicas, que não sejam apenas centradas na língua.

Como assim?

São formações que passam por um conhecimento maior, em matéria académica, das oportunidades que existem de ambos os lados para cooperação futura, ou para uma articulação de projectos que envolvam a China e os países de língua portuguesa e em que haja um plano académico. Penso que o IPM está muito bem colocado para isso e eu tenho alguma experiência nessa área. O âmbito vai além da interpretação e tradução e terá essa ambição de diversificar a oferta e corresponder ao interesse crescente que existe de ambas as partes de conhecimento e motivo de estabelecimento de ligações.

Essa formação específica pode, portanto, chegar também a outro tipo de profissionais, além de professores?

Vou dar-lhe o exemplo da Grande Baía. Neste momento, há muita necessidade de informação nas universidades e nos institutos politécnicos dos países de língua portuguesa sobre as oportunidades e áreas de foco. O IPM tem capacidade para criar pequenas formações e cursos, ou conferências on-line, que permitam transmitir o que representa e significa o projecto e qual o papel de Macau na Grande Baía, ou qual o papel que se espera da China e dos países de língua portuguesa. Por outro lado, há muita actividade crescente com as visitas de Estado, com os acordos académicos. São dois planos, em que há desenvolvimento contínuo das relações económicas e comerciais entre a China e os países de língua portuguesa. Noutro nível, há cada vez mais acordos de cooperação, declarações políticas de vontade de cooperar, e no meio é preciso fazer surgir projectos, pôr as pessoas em contacto e, para isso, é preciso fazer circular informação.

O Centro irá, portanto, agilizar todos esses acordos e cooperações, não só no projecto da Grande Baía, mas também na iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”.

Penso que em relação à iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” as pessoas já têm uma ideia [do que se trata], pois é um processo que está em curso há mais tempo. Mas em relação à iniciativa da Grande Baía há muita necessidade de informação. Não me cabe a mim, ou ao IPM, dizer que se vai fazer isto ou aquilo, mas sim criar condições e fazer as pontes necessárias para que isso ocorra.

Em termos concretos, o que está a ser feito para esse fim?

Devemos utilizar algumas das redes que já existem, tal como as redes académicas no contexto do ensino superior dos países de língua portuguesa. Esse é um canal que devemos explorar. Espero que, em breve, estejamos em condições de anunciar iniciativas relevantes nesta área. Depois, no contexto actual, as formações e oportunidades online são muito importantes e é inevitável que o façamos. Espero poder iniciar uma série de conferências online, pequenas palestras que vão focar-se nas oportunidades de cooperação académica. No fundo, [o Centro] vai revisitar os acordos que já foram feitos, as declarações de prioridades, e fazer revisão sucessiva, em várias conferências, daquilo que são as oportunidades bilaterais entre a China e os países de língua portuguesa e do que se poderá fazer em conjunto a nível multilateral.

O Centro vai, portanto, tentar desbloquear essa informação sobre o projecto da Grande Baía.

Nos últimos anos lidei com muita gente que estava atenta aos desenvolvimentos da China. Se perguntar quem sabe o que é “Uma Faixa, Uma Rota”, a possibilidade de as pessoas saberem é elevada, mas com o projecto da Grande Baía isso não acontece. Estas coisas demoram tempo e é preciso criar canais de divulgação. Quando falo em falta de informação refiro-me à informação que ainda não chegou às pessoas que potencialmente têm interesse [na Grande Baía], mas que não têm conhecimento específico da forma como esta região vai ter um papel importante nesse quadro geral e no futuro.

Qual é o público alvo do Centro?

Estudantes da China que estudaram língua portuguesa e que agora precisam de se focar em áreas específicas, além da tradução e interpretação. Esse é um público alvo que existe em grande quantidade na China. Mas também começa a existir em Portugal um número crescente de pessoas que seguiram formações dedicadas às relações com a China, com uma componente maior ou menor de língua chinesa, e que passam pelas relações internacionais ou pela economia.
Temos ainda outro público alvo, muito importante, que são as pessoas que, nas instituições académicas, têm a responsabilidade de dinamizar oportunidades de cooperação com impacto no desenvolvimento profissional dos estudantes e também na capacidade das instituições de trazerem valor acrescentado à sociedade. Nas universidades há cada vez mais serviços especializados e cada vez mais internacionalizados. Aí há muita necessidade de informação sobre aquilo que se passa nesta região do globo. Por aqui vai passar muito do desenvolvimento económico de ponta, e também tecnológico. No caso de Macau, vai também existir um desenvolvimento na área do lazer. Outro público alvo são os profissionais que já estão a trabalhar e que podem ter interesse em determinadas formações.

Quando começam as primeiras acções do Centro?

Em Janeiro. Acabei de chegar e preciso de um bocado de tempo de adaptação. A eficácia daquilo que posso fazer está muito ligada à compreensão do próprio contexto institucional, mas penso que em Janeiro poderemos anunciar as primeiras conferências e iniciativas. Penso que serão anunciadas ainda antes do fim do ano.

Quais os desafios com que já se deparou e que podem influenciar o trabalho do Centro?

É preciso ver o meu contexto. Venho de Coimbra, que não tem o contexto de centralidade clássica das grandes capitais. Venho de um contexto em que se explora um tipo de centralidade diferente, que é a capacidade de juntar aquilo que de outra forma não se juntaria. Coimbra é uma cidade de 120 mil habitantes, mas onde se juntam estudantes de 100 países num espaço muito pequeno. De um certo critério de centralidade e relevância, que é a dimensão, número de ligações, é substituído de uma forma específica pela capacidade de ter diversidade muita grande de, num espaço muito pequeno, multiplicar encontros. A minha esperança é que Macau possa reproduzir um bocado esse tipo de lógica. Aliás, até a um nível muito superior, porque o faz há muito mais tempo e com diversidade muito maior, num espaço mais pequeno. O grande potencial é a capacidade de juntar aquilo que, de outra forma, não se juntaria.

Em termos de infra-estruturas existe capacidade do IPM, ou estas formação podem vir a decorrer em outros locais?

Nesta fase, fazemos uma grande aposta no online. Vejo que o IPM teve de fazer uma enorme transformação na sua capacidade de fazer formação online. Também já pude constatar que é uma instituição extremamente eficaz e bem organizada, se bem que numa dimensão mais pequena daquilo que eu estava habituado. Não tenho receio e sei que aquilo que o IPM está muito sintonizado com as prioridades do Governo e com as prioridades gerais do Governo Central. Isso assegura uma sustentabilidade deste projecto que, apesar desta fase menos boa que estamos a passar, não me coloca grandes preocupações.

O Centro planeia trabalhar com outras universidades ou instituições locais ligadas ao ensino do português? Há a ideia de criar sinergias?

Penso que sim. Também existe o IPOR [Instituto Português do Oriente]. Em matéria de divulgação e promoção do português na China e no Oriente no geral todas as entidades envolvidas não são demais. No curto espaço de tempo em que aqui estive, vi que há de facto muita colaboração, com o IPOR nomeadamente. Sei também que há uma grande articulação entre as pessoas dedicadas a esta área nas várias instituições. Todos são poucos para o trabalho que se faz e todos, no fundo, são muito próximos.

Quanto tempo vai ser este seu mandato?

O meu contrato é de dois anos. Acima de tudo, a minha missão prevista para o centro passa pela demonstração do empenho que o IPM tem colocado em ser um agente eficaz nesta ligação entre a China e países de língua portuguesa do ponto de vista académico. Era a experiência que tinha antes e que agora deste lado vejo de maneira mais clara. Esta fase corresponde a um aumento da capacidade do IPM de responder às necessidades e consolidar o que já foi feito com bastante sucesso na área da língua.

11 Nov 2020

Justin Cheong, activista: “Trump é o regresso da barbárie”

Residente de Macau e com passaporte português, Justin Cheong vive em Oakland, na Califórnia, onde lidera uma ONG que luta pela defesa dos direitos dos imigrantes sem cidadania americana. O activista acredita que a derrota de Donald Trump nas eleições só foi possível graças às acções de rua realizadas nos últimos anos contra o racismo e em prol dos direitos das minorias. A eleição de Joe Biden representa “uma vitória do movimento dos direitos civis”, assegura

 

[dropcap]J[/dropcap]oe Biden foi eleito o 46º Presidente dos EUA. Em termos gerais, que impacto social e económico acha que vai ter no país?

Estas eleições presidenciais representam a vitória do movimento dos direitos civis e da luta pelos direitos dos imigrantes, que tem vindo a perder contra Donald Trump e o seu movimento racista. O resultado da eleição leva a uma reflexão do desenvolvimento histórico na luta pela igualdade social. Não é exagerado dizer que se não tivessem ocorridos demonstrações em massa e mobilizações nas ruas nos últimos anos, e particularmente este ano, a derrota de Donald Trump não teria sido viável. A mudança mais significativa e o impacto desta eleição é a lição que o movimento social de massas trouxe à causa pela igualdade. Esta acção pode fazer história e determinar a direcção do país. No que diz respeito à BAMN [Coalition to Defend Affirmative Action, Integration and Immigrant Rights and Fight for Equality by Any Means Necessary] vamos continuar a providenciar liderança para que as acções do movimento continuem a ser encorajadas e para que vençam. A liderança do nosso movimento é um factor determinante para sabermos se os EUA irão enfrentar uma mudança dramática para o melhor ou para o pior. O movimento dos direitos civis e dos imigrantes deve continuar a lutar de forma independente em relação aos partidos políticos para atingir os seus objectivos.

Teme uma espécie de guerra civil entre republicanos e democratas, com mais violência nas ruas?

O conflito social entre o movimento da defesa dos direitos civis e dos imigrantes, por um lado, e o movimento racista de Donald Trump, por outro, não vai terminar e vai continuar a aumentar enquanto existir desigualdade social. Vai continuar enquanto os imigrantes continuarem presos em campos de concentração, as minorias raciais continuarem a ser assassinadas por uma polícia racista e o Governo priorizar os lucros ao invés das vidas, ao reabrir a economia no meio da pandemia da covid-19. A BAMN acredita que a única forma de pôr término à violência incitada pelo movimento racista de Donald Trump é continuar a afirmar a sua autoridade e manter o poder de mobilizar as ruas, ganhando uma verdadeira igualdade de direitos para os imigrantes e terminar com o racismo. A derrota eleitoral de Donald Trump é apenas o início do despertar do movimento pela igualdade social. A BAMN reconhece a importância da independência do movimento, tanto do ponto de vista do partido democrata como do partido republicano, para ganhar os direitos reais dos oprimidos. A desumanização e o tratamento de segunda classe para os imigrantes devem terminar ou, de outra forma, não haverá paz.

Que tipo de mudanças espera de Joe Biden no que diz respeito às políticas de imigração?

Nos últimos anos, tornámos claro que queremos o direito a ter cidadania plena para todos os imigrantes, com ou sem papéis. Temos mobilizado massas com acções directas para travar as deportações de imigrantes por parte da Immigration Customs and Enforcement (ICE). Fizemos uma mobilização nacional para exigir a prisão dos polícias racistas que assassinaram pessoas negras ou latinas. Mobilizámos e fomos a tribunal para travar a reabertura de escolas e prevenir os contágios de covid-19 nas nossas cidades. Estas são as exigências do nosso movimento e queremos que Joe Biden e o partido Democrata as conheçam.

Espera uma relação mais harmoniosa entre os EUA e a China, em oposição ao proteccionismo de Trump?

É claro que tanto o partido Democrata como o Republicano concordam que os EUA devem impor uma série de políticas externas para manter a hegemonia do país. Os dois partidos partilham este objectivo, apesar de terem métodos diferentes. No entanto, do ponto de vista da BAMN, a nossa preocupação é diferente porque pretendemos criar um movimento internacional. Acreditamos que as pessoas oprimidas na China e no resto do mundo têm o interesse comum de lutar contra a desigualdade e isso vai unir-nos no mais básico. A competição pelo mercado mundial entre a China e os EUA tem sido, de facto, a grande causa para conflitos sociais e políticos. Estes conflitos têm afastado pessoas das suas casas, tornando-as refugiadas, pois são apanhadas no fogo cruzado da competição entre os EUA e a China. A BAMN coloca-se ao lado dos oprimidos e luta pelos seus interesses. Damos as boas-vindas a quem venha para os EUA na qualidade de refugiados. Lutamos ao seu lado para a partilha dos nossos interesses em prol da defesa dos direitos humanos e de um tratamento igualitário com respeito e dignidade.

Além das políticas de imigração, que análise faz à Administração Trump?

Donald Trump não tem quaisquer interesses a não ser os dele próprio. A sua Administração, na história americana, representou um dos lados mais racistas e retrógrados da sociedade americana. Donald Trump é um ideólogo e demagogo para a América branca, rica e privilegiada. Esta visão é antiga, ultrapassada e morta. A tentativa de trazer isto de volta é um retrocesso no desenvolvimento humano e o regresso da barbárie. É a antítese da civilização e da ciência.

Quatro anos depois, os EUA são um país mais racista?

É algo que está mais polarizado. O movimento de defesa dos direitos civis e dos imigrantes nunca foi tão forte como agora. Está mais sofisticado, e mais maduro. Olhando para os últimos 10 a 15 anos, as lições que aprendemos colocaram-nos na posição histórica de vencer direitos verdadeiramente iguais. Ainda temos um longo caminho a percorrer para atingir os nossos objectivos, mas estamos mais determinados agora que sabemos o que conquistámos. No que diz respeito aos racistas, o seu medo de igualdade social e da perda de privilégios vai continuar a crescer. O seu medo do nosso poder é real. Os opressores vão tentar manter a sua posição até ao último minuto e até não poderem mais.

Espera uma nova estratégia de Joe Biden em relação à situação política de Hong Kong?

Esta questão é complicada. Há muito mais em comum entre as pessoas oprimidas dos EUA, de Hong Kong ou da China. Muito do que tem acontecido em Hong Kong tem levado a divisões. Há um sentimento anti-China, e é também cultivado um sentimento anti-Ocidente. Mas há apenas uma coisa importante, que é a igualdade, os direitos de cidadãos viverem sem opressão ou exploração. Partilhamos esta luta com as pessoas oprimidas de Hong Kong e da China. Estes direitos nunca poderão ser obtidos se as pessoas oprimidas de todo o mundo falharem na quebra destas tácticas de dividir para reinar ou divisões nacionalistas. Joe Biden não pode resolver este problema com Hong Kong. Joe Biden e o partido Democrata estão mais preocupados com aquilo que Hong Kong pode fazer tendo em conta os interesses da economia americana e os círculos de poder.

Com um novo Presidente, planeia alterar a estratégia na luta pela defesa dos imigrantes?

Durante a Administração Trump, a BAMN continuou a lutar pelo meu caso e pelos casos de outros imigrantes. Mobilizámo-nos para travar os ataques e as deportações da ICE nos tribunais, nas ruas e nos aeroportos. Muitas pessoas perderam a esperança quando Trump foi eleito. Mas muitas mais pessoas escolheram lutar. E por termos lutado, vencemos. Eu ganhei o meu caso e agora o movimento ganhou ao colocar o Trump fora.

O Justin estava em litígio para obter Green Card. O processo está, então, concluído?

Sim, estou a planear candidatar-me à cidadania dentro de dois anos. Em Junho do ano passado, fui a tribunal e recebi o Green Card. Pensando nisso, quando fui colocado num centro de detenção para imigrantes, em Junho de 2016, Trump estava em campanha eleitoral. Saí do centro em Janeiro de 2017, quando Trump tomou posse.

10 Nov 2020

Acordo entre CEE e Macau foi “peça fundamental” para a transição, diz Vítor Martins

Ex-secretário de Estado dos Assuntos Europeus do Governo de Cavaco Silva, ex-primeiro-ministro português, recorda à Lusa que o primeiro acordo entre a CEE e Macau foi uma “peça fundamental para a entrega do território à China e de todo o processo de transição que veio a fazer-se”

 

[dropcap]D[/dropcap]epois de ter assumido a presidência da UE em 1992, 2000 e 2007, Portugal fá-lo, a partir de 1 de janeiro de 2021, pela quarta vez, a primeira desde que o Tratado de Lisboa foi assinado. Em entrevista à agência Lusa, Vítor Martins, ex-secretário de Estado dos Assuntos Europeus do Governo de Cavaco Silva, ex-primeiro-ministro português, recorda à Lusa que o primeiro acordo entre a CEE e Macau foi uma “peça fundamental para a entrega do território à China e de todo o processo de transição que veio a fazer-se”.

A primeira presidência portuguesa da ainda Comunidade Económica Europeia (CEE), em 1982, foi “um teste à maturidade” do país, seis anos depois da adesão de Portugal, assinalou o responsável.

“A presidência portuguesa do primeiro semestre de 1992 foi assumida um pouco como uma espécie de teste à maturidade da nossa adesão e à nossa capacidade dos nos afirmarmos como membro de corpo inteiro do projeto de construção europeia”, recorda o na altura secretário de Estado dos Assuntos Europeus, do XII Governo Constitucional, o terceiro liderado por Cavaco Silva.

No âmbito de uma série de entrevistas com os principais responsáveis pela coordenação das presidências portuguesas de 1992, 2000 e 2007, Vítor Martins reconhece que a primeira “teve um significado especial”, tendo resultado de uma preparação prévia de “anos”, porque “não existe uma segunda oportunidade para dar uma boa primeira impressão”.

Com apenas 12 Estados-membros na altura, “a possibilidade de concertação era muito mais fácil” do que actualmente, concede o ex-governante, que foi depois consultor para assuntos europeus de Cavaco Silva na Presidência da República, admitindo que foi “talvez um pouco mais fácil dar uma marca da presidência” portuguesa em 1992.

O “espírito de família” ajudava. “Sentíamos isso, que havia ali uma vontade de convergência entre todos, não sei se hoje será assim”, duvida. Além disso, “a Comissão Europeia interagia de uma forma muito direta e pragmática com os Estados-membros e as presidências”, acrescenta.

Houve uma “articulação intensíssima” com a Comissão Europeia. “Hoje admito que também haja, com certeza, essa concertação, mas é já objeto de um ruído de fundo político e institucional que pode limitar um bocadinho essa boa concertação”, distingue.

Recordando que, em 1986, quando Portugal entrou para a CEE, vivia-se um tempo de “aceleração da integração europeia”, o que exigiu uma adaptação rápida para “acompanhar o ritmo”, Vítor Martins assinalou que “a rotação das presidências pelos Estados-membros era total” e “todas as áreas do Conselho eram assumidas pela presidência em exercício na altura”.

Sendo certo que 1992 teve como pano de fundo um “contexto de conflitualidade” na ex-Jugoslávia, tal “não impactou negativamente” a presidência portuguesa, porque esse era também o tempo do pós-queda do Muro de Berlim e da unificação da Alemanha, que “significava, em certa medida, uma vitória do próprio projeto europeu”, realça Vítor Martins.

O conflito nos Balcãs foi acompanhado directamente pela área de cooperação política do Ministério dos Negócios Estrangeiros, nomeadamente pelo recentemente falecido embaixador José Cutileiro, que “teve um papel fundamental”, sublinha o ex-secretário de Estado.

Ou seja, o conflito “esteve presente”, mas “não foi dominante, nem constrangedor ou perturbador da dinâmica da presidência”, atesta.

A presidência de 1992 “foi preparadíssima, planeadíssima e, naturalmente, teve que se integrar naquilo que era a agenda das questões europeias”, frisa Vítor Martins.

Recorda, desde logo, a assinatura do Tratado de Maastricht, que acabou por acontecer em fevereiro de 1992, na cidade com o mesmo nome, em homenagem ao trabalho anterior da presidência holandesa. Porém, “muitos técnicos e diplomatas portugueses” intervieram na sua redação final durante o mês de janeiro, lembra.

Os “avanços decisivos do mercado interno” nesse semestre são também de assinalar, tal como a criação, em junho, do fundo de coesão, que “ainda hoje vigora e é extremamente importante”, adita.

No domínio das relações externas, “Portugal entendeu que devia usar o tempo da presidência para aproximar a Europa de alguns espaços” que lhe eram próximos, com os quais tem “afinidades e proximidades”.

3 Nov 2020

Cátia Miriam Costa, professora universitária: “A China pode negociar com Biden”

Com as presidenciais norte-americanas à porta, qual o posicionamento da China perante a vitória de Joe Biden ou Donald Trump? Cátia Miriam Costa, docente do ISCTE, acredita que ambos “têm prós e contras” e que a derrota de Trump poderá significar o fim do isolacionismo de Washington. Em relação a Hong Kong, a académica entende que Joe Biden pode tentar negociar

 

[dropcap]A[/dropcap] vitória de Joe Biden pode significar a recuperação daquilo que Trump destruiu? Se Trump ganhar a guerra comercial pode agravar-se? Que previsões faz?

Se o Trump ganhar não vamos ter mudanças nenhumas, o que vai acontecer é o reforço da sua posição. Por outro lado, se Trump não ganhar, a política externa americana irá mudar, irá ser menos isolacionista, porque o isolacionismo está a ter um peso muito grande para os EUA, que não lhe é favorável como superpotência. Mas isso também quer dizer que os EUA vão ter de reinvestir na política externa. O que o país, e um potencial governo democrata, poderá tentar fazer é investir novamente no multilateralismo, que retira os EUA [o lugar de] superpotência. Os EUA não querem aqui ter uma perda de protagonismo. Contudo, não me parece que a guerra comercial ou tecnológica com a China seja evitável neste momento, porque a guerra comercial deriva da guerra tecnológica. O que poderá acontecer, é que haja uma moderação discursiva acentuada, que não haja aquele discurso que Trump faz contra a China. Os EUA percebem que estão a perder terreno na guerra tecnológica com a China, portanto, vão ter de continuar a pressionar os estados aliados a não alinharem no 5G com a China. Desse ponto de vista, não prevejo grande mudança. No fundo, e naquilo que mais interessa à China, não prevejo uma grande mudança. O estado de competição entre os dois países vai-se acentuar-se e vão continuar a lutar na guerra tecnológica, mas também no comércio tecnológico.

Perante a vitória de Joe Biden, a China terá de mudar a estratégia na relação com os EUA?

Provavelmente, porque os EUA vão-se reposicionar e a sua presença no Pacífico, que é uma zona de interesse para a China, vai incrementar. Relativamente à Ásia Central não me parece que tal vá acontecer, a não ser que os EUA percebam que a ameaça é tão grande, sobretudo devido ao projecto da Nova Rota da Seda. O abandono da Ásia Central e mesmo da Europa do extremo leste dá-se durante o período da governação democrata, quando Hillary Clinton é vice-presidente. Portanto, não é um fenómeno de Trump. O que acontece é que Trump, ao virar-se para dentro, ao abandonar o multilateralismo, acabou por se concentrar tanto na política interna que desguarneceu um pouco estas frentes. Portanto, é expectável um reforço da presença norte-americana no contexto de competição pelos países do sudeste asiático e do Pacífico. Mas isso levará a um grande investimento dos EUA na política externa, o que quer dizer que a China terá os sinais para poder agir. É provável que tenha de repensar, de se reposicionar e, sobretudo, que tente amenizar, porque não me parece que a China esteja minimamente interessada em ter um conflito, e em termos militares o país não pretende mesmo isso. Se o 5G for completamente eliminado dos aliados europeus ou do espectro de influência da NATO, a China terá de voltar para outros territórios que estão fora [desse âmbito], como África, por exemplo. Não são mercados menos interessantes, mas cortam à China algum acesso a mercados tecnologicamente mais avançados. A tentativa de Biden será criar um bloco que não será anti-China mas que tente travar o avanço da China. É um bloco que não provoque militarmente a China, mas que impeça a China de se desenvolver e se tornar hegemónica numa área fundamental. Se pensarmos na indústria 5.0, que depende da rede 5G, a China tornar-se-ia numa potência mundial sem armas. É isso que os EUA vão tentar evitar a todo o custo, mesmo com Biden.

Qual o candidato norte-americano que a China quer que ganhe?

É difícil dizer. Para a China, têm os dois prós e contras. Biden é alguém com quem a China pode negociar. Mas acho que as relações dos EUA com a China nunca dependeram muito da questão ideológica nem partidária. Tivemos o presidente Nixon e Jimmy Carter a protagonizar a aproximação à China e percebemos que há um interesse de política externa americana. O que a China não vai conseguir é que os EUA desistam de afrontá-la e de a impedir de avançar na conquista de novos mercados tecnológicos. Porque, ao fazerem-no, teriam de partilhar a liderança mundial daqui a uma década. Mas nunca houve pudor em negociar com a China noutros âmbitos, nem quando a China era marcadamente mais ideológica do que é agora. Aqui é mesmo uma questão de realpolitik, de posicionamento nacional e internacional.

Falou do multilateralismo e ele é cada vez mais visível. Temos a Rússia que é também um importante actor na diplomacia mundial. Os resultados das eleições podem mudar este multilateralismo?

Ele vai tomar outro rumo de certeza. Diz-se que a China assina acordos multilaterais, mas depois age de maneira a tentar proteger o seu mercado, nomeadamente quando se fala da Organização Mundial do Comércio. Provavelmente, vai-se tentar pressionar a China para caminhar mais para aquilo que são os preceitos ocidentais relativamente a essas organizações. Mas há uma parte do mundo que não é tradicionalmente ocidental, que tem um papel cada vez mais determinante na ordem internacional, com a Índia e a Rússia, que não pode ser deixada de fora do tabuleiro. Com um isolacionismo da Rússia e o empurrar da China, o que acontece? Ambos os países vão tentar complementar-se e descentralizar a ordem internacional arranjando um nicho para o seu alinhamento. É um tabuleiro que não está estabilizado, e penso que quem ganha sempre é a China, porque é o país que melhor se adapta.

Nos debates que opuseram Trump e Biden a China foi um assunto pouco abordado, ao contrário da covid-19.

As questões internacionais são muito pouco debatidas nas presidenciais norte-americanas. A covid-19 ganhou tal força que algumas questões, extremamente importantes, desapareceram, e a China quase se evaporou. Mas isto não é atípico, porque a generalidade dos eleitores dos EUA não tem apelo nenhum à política externa, à excepção de uma elite. A NATO foi uma questão que Trump tanto abordou, e isso desapareceu dos debates. Uma das coisas que Biden terá de fazer, caso queira realmente sair desta política de isolacionismo, é voltar a investir nas relações transatlânticas. Sem esse eixo, e apesar de o dinamismo estar todo no Pacífico, os países que podem conter a China, neste momento, tem de ser o Ocidente, apesar de ter aliados como o Japão e índia, mas não há uma aliança mobilizadora.

Até que ponto estas eleições podem mudar o posicionamento americano relativamente ao que se está a passar em Hong Kong? Têm havido ataques ferozes da parte de Trump, podemos ver uma mudança de atitude com Joe Biden?

Talvez. Hong Kong é um caso sensível porque há muitos interesses americanos no território. Tudo o que vier de prejuízo em termos económicos e financeiros vai contar nessa relação. Se Joe Biden ganhar pode haver uma aproximação mais negocial com a China, uma tentativa de reverter algumas coisas. Mas o caso de Hong Kong é extremamente complexo em termos de política interna chinesa porque é um grande desafio, uma vez que foi o primeiro dos territórios especiais a voltar à China. Há a previsão de recuperar Taiwan em 2050 e o facto de as coisas correrem mal em Hong Kong é um grande contratempo para a China e também para Macau, que acaba por sofrer as consequências.

Em que sentido?

Macau sofre as consequências de coisas que não têm a ver com a sua história nem com a sua estrutura. Percebemos que os dois lados em confronto tentaram exportar a situação para Macau. Macau está no discurso das partes em conflito, e quando se veem manifestações do movimento pró-democracia que fala do silêncio de Macau, eles querem envolver o território na contenda. Depois temos o Governo de Macau a pensar “ok, tenho aqui estes grupos de pessoas que se podem manifestar”. Esse risco existe. Mas em Hong Kong há pressões internacionais, mas há também questões do foro nacional que têm a ver com a forma como os chineses estão a resolver os seus problemas domésticos e como se estão a posicionar. Biden pode fazer uma aproximação mais suave no sentido de proteger os interesses norte-americanos. Toda aquela conversa do Reino Unido, que dava as boas-vindas aos que quisessem sair de Hong Kong, não passa disso mesmo, porque temos de nos lembrar que o Reino Unido nem deu passaporte aos residentes de Hong Kong como Portugal fez [aquando da transição]. Na prática [essa conversa] tem pouco impacto na sociedade de Hong Kong, e os movimentos também se vão moldando e percebendo com os apoios que contam. Se Biden ganhar não vai haver confrontação no sentido de impor sanções. Até porque todas as sanções que os EUA impõem, os EUA também perdem e a China sabe disso.

22 Out 2020

Governo da Guiné-Bissau suspende adopções internacionais para combater tráfico de crianças

[dropcap]O[/dropcap] Governo da Guiné-Bissau decidiu suspender todos os processos de adopção internacional no país para evitar o tráfico de crianças e o negócio das casas de acolhimento, anunciou a ministra da Mulher, Conceição Évora.

Em entrevista à Lusa, a ministra explicou que a suspensão dos processos foi decidida “porque tem havido sistematicamente adopções que não estão a seguir as normas estabelecidas”.

“Nós sabemos que o Governo da Guiné-Bissau não tem uma casa de acolhimento de Estado, existem casas de acolhimento que recebem essas crianças órfãs e tem havido essas adopções de forma ilegal e que às vezes conduzem ao tráfico de seres humanos, neste caso de crianças”, explicou Conceição Évora.

O Conselho de Ministros da Guiné-Bissau analisou na semana passada uma proposta de decreto-lei relativa às adoções internacionais, que decidiu trabalhar ainda mais, e mandatou os ministérios da Mulher, Justiça e Interior a suspender todos os actos administrativos relativos à adopção internacional de crianças e jovens.

“O que tem acontecido é que a adopção está a ser feita de forma ilegal e às vezes não há cadastro de todo o processo. Estamos a perder guineenses, o Estado não sabe quem é essa pessoa que adoptou, não conhece, e a partir do momento que a criança passa no aeroporto perde-se o rastro da criança e isso não pode acontecer”, afirmou a ministra da Mulher.

Para Conceição Évora, o Estado deve saber quem são as pessoas que adoptam as crianças e os jovens e para que “fins são levadas”.

“Hoje o mundo está confrontado com o tráfico de crianças, as crianças são exploradas, sexualmente, abusadas. É por causa disso que estamos a ter uma mão mais controladora sobre a adopção internacional”, salientou.

Questionado sobre se a proposta de decreto-lei vai produzir muitas alterações à lei agora em vigor, a ministra disse que a lei não difere muito.

“A aplicabilidade da lei é que queremos controlar, porque as pessoas não estão a respeitar as normas. Há casais que estão a seguir os trâmites normais para a regularização dessa adopção, mas a maior parte dos casos que acontece neste momento não segue esses trâmites normais por isso é que queremos suspender para poder obrigar ao cumprimento escrupuloso da lei da adopção no país”, disse.

A ministra disse também ter tido informações de pessoas que levam crianças que nem sequer foram registadas pelos pais biológicos.

Outras das razões pelas quais o Governo decidiu suspender as adopções internacionais estão relacionados com o facto de o processo se estar a tornar num negócio. “Em certas casas certas pessoas fazem isso e isso é tráfico”, disse.

20 Out 2020

Henrique Senna Fernandes, escritor, no dia em que comemora os seus 80 anos: “Vale sempre a pena sonhar”

Em todas as entrevistas, muito fica por escrever. Por exemplo, as pausas, as inflexões, os olhares que se trocam entre entrevistador e entrevistado. Nesta fica muito mais. Fica, sobretudo, a incapacidade de traduzir fielmente o amor pela vida que a presença de Henrique de Senna Fernandes invoca. E a certeza de que a vida, mesmo aos 80 anos, continua a ser atrozmente… curta.

[dropcap]8[/dropcap]0 anos. Como se sente?
Sinto-me bem e sinto-me feliz, porque tenho amigos e parece-me que as pessoas têm um carinho especial por mim. Chegar aos 80 anos, afinal, é viver alguma coisa.

Muitas memórias?…
Quando penso no passado… nasci em 1923, no ano em que começou a construção do porto de Macau, o chamado Porto Exterior… havia nessa altura tantas esperanças no porto como as que há hoje em relação à ponte. Esse foi um sonho que se esfumou e ainda bem porque queriam dar cabo da Praia Grande.
Passados quatro anos fizeram aqui uma feira comercial, na zona onde hoje está o D. Bosco. Havia um lago, com barcos e… muitos namoros. Eu ainda era um miúdo, lembro-me que me encantava ganhar uns gatinhos de vidro.

Macau parece ser uma terra que, ciclicamente, tem grandes esperanças. A sua experiência diz-lhe que vale a pena sonhar?
Vale sempre a pena sonhar apesar das desilusões enormes que sofremos. Nós somos uma comunidade resistente, adaptamo-nos bem às circunstâncias…

Lembro-me que em 1999, foi algo pessimista, mas depois…
Foi uma crise terrível. A China era uma incógnita, por isso existiam grandes inquietações em toda a gente. Muitos foram-se embora, tal era o medo ou desejo de segurança. Antes da transição, quando vim de uma conferência da Lusofonia no estrangeiro, em Setembro, é que tive a noção mais perfeita de que o nosso mundo ia desaparecer, que ia ser um corte. Era uma coisa muito dolorosa, ser estrangeiro na sua terra. Quando nos encontrávamos na rua, as pessoas olhavam para mim e perguntavam “Fica?”. “Fico”, respondia eu. Havia necessidade de companhia naquele sofrimento, de partilha. Nessa correu em Macau que eu tinha partido. Uma prima afastada minha disse-me quando me viu na rua “Voltou?”, “Voltei.”, “Ai qui medo, julgava que o primo ia-se embora e nos deixava sós”. Vimos partir muita gente.
Eu não podia abandonar Macau.

Porquê? Gosta muito desta terra?
Gosto muito. Estou habituado a esta vida e mais que isso. Sem me querer armar em herói, se partisse sentia que traía esta terra. Não estou a censurar ninguém, mas foi isso que senti: que traía a minha terra, que traía amigos que não podiam sair. Pior: traía os meus antepassados todos, os ossos que estão em São Miguel. Nunca quis que fossem trasladados, porque eles só conheceram esta terra.

Não se arrependeu de ter ficado?
Por amor de Deus, nunca! Estou habituado a altos e baixos. Agora Macau está muito bem. A nossa comunidade é considerada e temos recebidos muitas manifestações dessa consideração, quer pela nossa comunidade quer pelo mundo português. Esta foi a vitória da RAEM sobre mim. Respeitaram os meus direitos, respeitaram todas as minhas opções, entre elas a nacionalidade, ninguém me impôs nada e sou cidadão de Macau, isso é que é importante. Temos os mesmos direitos que os chineses, excepto em termos de exercer o poder. Aí teríamos de rejeitar uma nacionalidade para aceitar outra. Mas pude exercer a minha profissão, pude escrever, pude encontrar os amigos e isto (olha à volta da sala do Clube Militar onde nos encontramos), este ambiente. A resposta da RAEM convenceu-me.

Sentiu-se sempre respeitado?
Sempre!

O senhor também já conhecia muitas das pessoas que hoje ocupam altos cargos na RAEM?
Alguns sim, outros não. Ganhei a minha vida como advogado, mas nunca tive a clientela dos grandes. Não ganhei um real dos grandes. Os meus colegas tiveram mais sorte, tinham mais saber que eu…

Quer dizer que sempre lidou com outras classes sociais?
A minha clientela sempre foram pessoas de classe média ou baixa.

Isso ajudou-o na sua escrita?
Ajudou muito. Repare que as minhas heroínas são todas pobres. A minha vida… vou contar uma coisa um pouco aborrecida. Há muitos anos, quando ainda era muito novo, rejeitei uma moça por ela ser pobre, não ter muitos estudos, justamente por ela ser de uma outra condição…

…“A Trança Feiticeira” será o seu exorcismo dessa situação?
“A Trança Feiticeira” e outros escritos… ela mais tarde, muito mais tarde, ela deu-me uma grande bofetada. Encontrou-se comigo e mostrou-me que estava bem. Aproximou-se de mim e disse-me “vou comprar um livro teu”. Sabia francês, inglês; essa mulher que desprezei, surgia-me agora toda considerada e é ela que me dirige a palavra, com toda a subtileza e ternura, mostrando-se ainda muito simpática. Ela tinha tido uma grande paixão por mim e eu fui, simplesmente, um bandido.

Não acha que nós em Macau somos muitas vezes bandidos… sem culpa?
Explique-me melhor o que quer dizer com isso, com essa dos bandidos sem culpa…

É também devido à pequenez do meio em que vivemos, que não temos coragem para assumir determinadas atitudes mais nobres…
Essa é uma grande verdade. Por isso é bom ter 80 anos, não ter de disfarçar, não ter de dar satisfações a ninguém. Não tive a minha vida fácil…

Isso ficou-se a dever ao que foi acontecendo ao longo da história?
Sim. Valeu a minha tenacidade de querer vencer sempre.

Deixe-me falar do seu personagem Francisco Frontaria. Não o terá escrito como exemplo de um macaense que pode cair muito baixo mas depois acaba por voltar ao de cima, ajudado pelo elemento feminino?
É isso. Não gostei nada do filme “Amor e Dedinhos do Pé” exactamente porque a minha ideia foi a de uma redenção. Alguém que cai e se redime através de uma mulher que o próprio insultara. Isto é um bocado autobiográfico daquilo que fiz.

As suas heroínas são mulheres abnegadas?
Mulheres abnegadas mas com personalidade.

Voltando ao filme…
O Joaquim de Almeida não era o actor para aquele personagem. Ele é um bom actor, mas muito duro, não podia ser o Francisco Frontaria que era um personagem muito mais suave, mais borga, não tão distante. No meu livro há a redenção, no filme não há, ele continua o mesmo patife, só lhe dá três dias e depois vai-se embora. Com o dinheiro dela. Tudo muito forçado.

Esse tipo de mulher que descreve nos livros… é essa a sua ideia de mulher macaense? Como descreveria a mulher macaense?
A mulher macaense tem os seus defeitos… e muitos, mas, tal como a chinesa, pode ser a melhor mulher do mundo. Lembro-me da minha mãe, uma das senhoras mais bonitas de Macau, quando perdemos tudo acompanhou sempre o meu pai, em todos os seus transes, em toda a sua vida. A mulher macaense quando gosta… adapta-se facilmente, faz um homem feliz. Apesar de ser diferente nalgumas coisas, por causa da educação, é muito semelhante à mulher chinesa. Está-se bem!

Existe uma sensualidade própria da macaense?
É muito difícil explicar as nuances que só no momento uma pessoa compreende. Pode ser a melhor mulher, mas também a pior mulher, se não gosta do homem com quem está.

Num dos seus contos no livro “Nam Van”, passado com uma mulher num comboio na linha de Cascais, sente-se alguma decepção com a mulher ocidental. Tratou-se de um episódio ou de algo mais profundo?
De um episódio. Aquela rapariga era muito bonita. Foi uma desilusão enorme quando me pediu cem escudos. Naquela altura as mulheres eram muito recatadas, foi um choque para mim. Hoje é tudo muito diferente. No meu tempo viviam num ambiente muito fechado, muito católico, a Igreja tinha uma força muito grande. Os padres dominavam. Entre a Quaresma e a Páscoa não podia haver bailes, as raparigas vestiam de roxo. Lembro-me de uma muito atraente, vestida de roxo, com os cabelos acobreados.

Não era preciso exagerar tanto: a mulher deve ser alegre, decente, boa conversadora e boa companheira. Mas agora parece que até existe a moda das mulheres dizerem palavrões. Disso não gosto. Algum recato também tem um certo encanto.

No mesmo livro também descreve a Rua da Felicidade, nomeadamente através do personagem Maurício. Quer-me falar disso?
O Maurício é uma pessoa que não vou dizer quem é. Foi ele quem me apresentou a Rua da Felicidade. Na altura eu era um rapaz novo e pobretanas. Ao passar na rua viam-se as meninas. Mas havia uma diferença entre o rés-do-chão e o primeiro andar. Em cima ficavam as cantadeiras, as pei-pa-chais, em baixo ficavam as prostitutas, sentadas na porta a partir do fim da tarde, muito pintadas. Todas as ruas daquele bairro eram assim. A Rua do Gamboa, a Rua do Bocage, os hotéis, uma grande área. Quem descia a Almeida Ribeiro, à esquerda era para a elite, onde estavam as caras; do outro lado, na Rua das Estalagens e Rua Nova do Comércio, onde ainda hoje existe uma zona de prostituição, ficavam as mais baratas. Mas tudo era muito diferente do que se passa hoje.

Nos seus livros retrata a sociedade de Macau até aos anos sessenta. Porquê?
Os anos 30 e 40 é a minha época favorita porque era o apogeu de Macau, das famílias macaenses. Muitas delas, muito importantes, desapareceram. Foi a guerra que deu cabo de tudo, apesar de nos anos 50 se ter vivido bem. Havia festas, recebia-se bem. Em 1966, com o 1,2,3, a emigração enorme, uma grande sangria. Já tinha começado antes. No final dos anos 50, Hong Kong abriu as suas portas a Macau, para depois as fechar. Nessa altura mais de 600 rapazes e raparigas saíram de Macau. Foi muita gente para uma comunidade pequena como a nossa. A maior parte nunca voltou. Foram para outros sítios: para o Brasil, para a Austrália, para os Estados Unidos.

Neste momento o que faz continuar a escrever?
A necessidade de escrever e de lembrar certas situações de Macau que se desconhecem.

O seu novo livro passa-se em que época?
Nos anos 60, na transição do Macau antigo para o Macau da STDM. Hoje já é outro Macau.

O Macau da RAEM?
Este é mais difícil de descrever. A RAEM é muito nova, ainda não conseguimos ver as consequências, a mentalidade desta juventude.

O que diria a um escritor de Macau que esteja a começar?
Que não esquecesse o passado, mas que enfrentasse os factos presentes. Macau está a mudar muito. Não sabemos o que vai ser. O meu Macau está cada vez mais distante. Que mentalidade será esta que está para vir? Não sei, não faço ideia. Um escritor hoje deve agarrar isso, compreender. Eu já não posso fazer isso, já não sei falar do que se passa hoje. Não vejo o que se passa à noite, não frequento lugares nocturnos. Tem de se falar das novas relações que se estabelecem, entre chineses de cá e de lá, etc., etc.. Eu já não tenho tempo para isso. Esta época ultrapassou-me. Eu admito isso. Já não posso ter aquela visão…

E o que diria à comunidade macaense, à sua comunidade?
Quanto ao futuro estou um pouco apreensivo. A Escola Portuguesa tem de existir. Se nos quisermos salvar, tem de existir, tal como o D. José da Costa Nunes. Fui professor durante trinta anos, sei que a escola tem muita influência sobre a mentalidade de uma pessoa. Conheci irmãos chineses que frequentavam escolas diferentes, uns a portuguesa, outros a chinesa. As mentalidades divergiam. A escola é importante para marcar uma identidade própria e o macaense até hoje é muito cioso da sua identidade.

Então acha que não se pode deixar morrer a Escola Portuguesa?
Não pode morrer! Se a deixarem morrer são todos traidores! A existência da ideia do mundo português é muito importante em Macau. A própria China… é engraçado: os chineses daqui rejeitaram o português, mas Pequim exige o contrário. Isso é um perigo para os chineses locais, porque os do Norte sabem falar português. E falam bem! Quem é que vai dominar as duas línguas oficiais? É fácil de perceber. Quem é que vai mandar? Os chineses de Macau têm de esquecer essas questões do colonialismo.

Mas houve ou não aqui um colonialismo feroz?
Não houve nem podia haver. Se houve foi para os macaenses: nos anos 30, não podíamos passar de primeiro oficial, não podíamos chegar a lugares de chefia, não podíamos ir para o exército nem para a marinha. Os chineses não se ralavam. Os portugueses fizeram muitas asneiras. Alguns chineses que mais tarde aqui formaram uma elite, de boas famílias, aprenderam português. Mas não houve visão: o governo não os aproveitou. Eles diziam: qual é o incentivo, não confiam em nós.

Acha que o chinês de Macau é diferente do chinês da China?
Muito diferente. E mesmo do de Hong Kong, não há confusão, estes têm a mania que têm o mundo na mão e que são mais civilizados. Falam de Macau com um certo desdém que não se justifica. No fundo também é inveja porque não têm o património histórico, nem humano, que nós temos. O chinês de Macau é mais lento, é o ambiente português, latino, que o influenciou. Uma vez disse que era o mais latino da China. Não falam a língua portuguesa mas habituaram-se ao ritmo de Macau.

Hoje até existe talvez uma maior identidade. Dantes diziam apenas que eram chineses, mas hoje já referem que são de Macau.

Aos 80 anos, o que lhe deu mais alegrias?
Cometi muitos erros, mas atribuo-os à minha generosidade, que as pessoas confundiam com fraqueza e abusavam. Diminuíram-me e fui traído pelos amigos. Como foi possível que alguns amigos, a quem dei tanta alma e coração, me tenham traído? Fizessem coisas absolutamente ignóbeis. Deixemos isso.

O que me deu mais alegrias é ainda ter amigos, de toda a parte receber abraços. Não é consideração oficial mas espontânea. Nos últimos anos, recebi muitas demonstrações de amizade. Depois há a minha família, fui sempre o homem mais influente, estando presente em todas as crises.

Os meus alunos também me enchem de enlevo. É muito consolador, lembrarem-se das minhas lições e agradecerem-me ter-lhes aberto os olhos para muita coisa. É um privilégio.

Gostaria de remediar alguns erros do passado. Mas, ao fim e ao cabo, valeu a pena viver.

11 Out 2020

Billy Chan, presidente da ANIMA: “Ter patrocínios vai ser cada vez mais difícil”

Com a saída de Albano Martins da presidência da ANIMA, Billy Chan, engenheiro civil, assume agora as rédeas da associação de defesa dos direitos dos animais. Até ao final do ano a ANIMA precisa de 1.5 milhões de patacas para se manter à tona, mas Billy Chan mantém um discurso optimista em relação à obtenção de apoios. O novo presidente da ANIMA quer promover a cooperação com outras associações para que juntos possam dialogar melhor com o Governo

 

[dropcap]C[/dropcap]omo nasceu a sua paixão pelos animais?

Há cerca de 12 ou 13 anos recebi um e-mail a pedir ajuda por causa de um cão que não conseguia andar. Senti uma mudança porque nunca tinha recebido nada do género, nem por parte de amigos. Fiquei curioso e liguei a um amigo que é fisioterapeuta, e naquela altura fomos a casa da pessoa que me pediu ajuda e descobrimos que tinha entre 10 a 20 cães em casa. Estava tudo uma confusão e os animais estavam muito magros. Nessa noite fizemos um tratamento ao animal. Repetimos o tratamento durante cinco noites e o dono depois disse-nos que o cão já conseguia andar. Senti-me muito bem com isso. Aí percebi que há pessoas que amam mesmo os seus animais. Comecei a trabalhar com estas pessoas e a ajudá-los, e eram pessoas que faziam parte da direcção da ANIMA. Foi a partir daí que decidi começar a ajudá-los e a trabalhar com eles. Descobri que é uma coisa com muito significado e agora tenho a oportunidade de liderar estes assuntos. A ANIMA não foi uma coisa que apareceu de repente.

Mas porque decidiu ter funções de gestão na associação e não ter uma posição apenas como voluntário?

Na altura, quando me convidaram, precisavam de ter mais opiniões por parte da sociedade. A ANIMA costumava ser uma associação com muitos estrangeiros, expatriados e portugueses, mas não havia muitos chineses, particularmente locais, e queriam que nós fizéssemos esse trabalho de chegar mais à sociedade. Agora temos mais pessoas a participar. Também temos mais ligações a outros grupos da sociedade. Pelo menos mais locais percebem o que é a ANIMA. Mas as minhas primeiras impressões foram essas, queríamos que a associação fosse mais local.

Esse objectivo já foi atingido?

O nosso trabalho é muito conhecido, mas a colaboração que temos com outras associações de defesa dos animais não funciona muito bem. Ainda estamos a trabalhar de forma individual. Não digo que isso seja bom ou mau, mas se queremos ser uma das mais importantes associações de Macau devemos cooperar com as restantes.

Mas há associações que são pró-Governo ou que têm uma posição diferente em relação à protecção dos direitos dos animais.

Estamos todos a trabalhar na protecção dos direitos dos animais, mas a forma como abordamos os problemas é diferente. Por exemplo, nós nunca colocamos os animais em jaulas, mas há associações, devido à falta de recursos, que adoptam outros métodos. Todas as associações estão a colocar todos os seus esforços em prol da defesa dos direitos dos animais, mas quando levamos a cabo uma campanha ou quando discutimos com o Governo algum assunto, estas acções não são suficientemente fortes. Se tivéssemos uma espécie de aliança com outras associações teríamos uma posição mais forte para falar com o Governo.

Com o fecho do Canídromo a ANIMA assumiu um papel de destaque. Considera que está mais preparada para discutir com o Governo face a outras associações?

Refere-se a privilégios?

Não, refiro-me ao facto de o Governo poder ouvir melhor a ANIMA em relação a outras associações devido ao trabalho já realizado.

Se olharmos do ponto de vista do apoio financeiro essa interpretação é correcta. As outras associações não recebem apoio financeiro do Governo. Mas em termos de políticas e discussão de leis, não vejo que a ANIMA seja tratada de forma diferente.

A Fundação Macau alterou os critérios de concessão de subsídios. Até que ponto isso pode afectar a ANIMA?

Temos vindo a ser patrocinados pela Fundação Macau nos últimos anos. Têm apoiado muito as nossas acções e acho que compreendem a nossa situação. Acredito que quando nos aproximarmos do fim do ano as respostas vão aparecer. Mantenho-me optimista em relação ao apoio do Governo.

A ANIMA está sempre a lutar pelo financiamento. Como está a situação financeira neste momento?

Albano Martins é o nosso presidente honorário e continua a dar-nos apoio em muitas áreas. Neste momento ele está mais focado nos patrocínios. Nos últimos meses temos reunido com representantes de casinos e estamos a ver como podemos obter patrocínios. Temos visitado também muitas pessoas. Mas falando do financiamento para este ano, recebemos o dinheiro da Fundação Macau e alguns patrocínios individuais, mas continua a não ser suficiente. Ainda faltam três meses para o final do ano e estamos a confirmar os donativos junto de algumas pessoas que nos prometeram apoio. Albano Martins acredita que conseguimos sobreviver, mas, de novo, ter patrocínios no futuro vai tornar-se cada vez mais difícil. Por isso temos de nos preparar.

Como?

A primeira forma é obtermos mais patrocínios, mas isso nem sempre é sinónimo de dinheiro. Pode também ser ajuda de pequenas entidades. Vamos tentar obter patrocínios de residentes e temos de arranjar uma forma de reduzir as despesas. Neste momento temos colegas a tempo inteiro e em part-time, gastamos dinheiro em vacinas e outro tipo de tratamentos. Também ajudamos outras pessoas que cuidam de animais. Mas estamos mais focados nas grandes tarefas da ANIMA.

Mas voltando ao financiamento, a pandemia dificultou as coisas, porque os casinos também atravessam um mau período.

Na primeira metade do ano normalmente obtemos o dinheiro da Fundação Macau e conseguimos sobreviver com ele. Mas na segunda metade do ano dependemos mais dos recursos dos casinos, e até agora os casinos ainda têm de confirmar quanto é que nos podem dar. Mas vamos acompanhar essa questão.

Quanto dinheiro necessitam até Dezembro?

Cerca de 1.5 milhões de patacas. A Fundação Macau já nos apoiou este ano. Procuramos ter a ajuda dos casinos e chegar a mais pessoas que nos possam ajudar. É importante que as pessoas saibam a situação em que estamos.

Se não obtiverem o dinheiro, quais são as alternativas?

Sem dinheiro não conseguimos fazer nada. Como alimentamos os animais, e fazemos outras coisas? Podemos sempre tentar chegar às pessoas para que nos emprestem dinheiro, ou junto dos bancos, mas não é uma solução definitiva.

Em relação à concessão definitiva do terreno onde estão situados, em Coloane, acredita numa resolução em breve?

Existe a questão dos esgotos que têm de estar ligados ao edifício da ANIMA. Temos um projecto para resolver esse problema, e por isso é que o assunto da concessão ainda não está concluído. Espero que esse trabalho fique feito este ano, mas ainda não sabemos se o Governo não vai alterar a sua posição. Só depois de concluído o projecto dos esgotos é que falaremos com o Governo para termos a concessão definitiva do terreno.

Como presidente qual é a sua estratégia principal para os próximos anos?

Não vão haver grandes mudanças. Vamos continuar a trabalhar como temos feito e penso que até agora conseguimos mostrar que a ANIMA faz um bom trabalho. No entanto, também precisamos de resolver algumas coisas. Uma delas é algo urgente, porque temos 800 animais nas nossas instalações. Estamos a 200 por cento da nossa capacidade (risos). Temos um grande número de animais e há coisas que não conseguimos fazer tão bem, como acções educativas ou discutir com o Executivo questões relacionadas com a lei de protecção dos animais. Quero reduzir o número de animais que temos nas nossas instalações. Não falo em abatê-los, mas podemos ter mais adopções ou dá-los temporariamente a famílias de acolhimento. Dessa forma poderíamos libertar parte das nossas instalações e ter menos despesas. As acções de educação são muito importantes e também queremos passar mais tempo nas escolas a falar com os alunos. Também queremos tornar a ANIMA mais local e ser mais cooperante com outras associações. Mas voltando ao financiamento, não nos devemos focar nas grandes entidades ou indivíduos.

Steve Wynn, por exemplo, é um dos parceiros da ANIMA, Edmund Ho, ex-Chefe do Executivo também. A ANIMA pretende manter esses nomes, mas trabalhar mais com associações locais? 

Sim. Essas duas personalidades têm-nos apoiado muito no passado. Albano Martins mantém contacto com Steve Wynn sobre aquilo que se passa na ANIMA, o que está a mudar, mas também sobre o financiamento no futuro. Também mantemos contacto com Edmund Ho para o informar sobre o que se passa e também pedimos ajuda de várias formas. Essa ajuda faz as coisas funcionarem, mas temos de ter uma boa relação com diferentes entidades e temos de continuar a manter esta postura.

A ANIMA tem como objectivo o fim das corridas de cavalos. Que acções estão a ser planeadas?

Actualmente temos três grandes preocupações: a campanha para o fim das corridas de galgos em Portugal, o fim das corridas de cavalos e o encerramento do Matadouro. Ainda não lançámos nenhuma campanha sobre estes dois assuntos, estamos a fazer um levantamento da situação. Penso que neste momento não posso falar muito sobre isso porque estamos apenas no começo, mas esperamos avançar com algo em breve.

Em relação à lei de protecção dos animais, quais os problemas que se mantém e que deveriam ser resolvidos?

Antes da lei ser implementada a ANIMA sempre deu sugestões e apoiou esta lei. Mas quando o diploma foi implementado os comentários da ANIMA não foram tidos em conta e actualmente dizemos ao Governo que a lei não é suficiente. Tem muitas questões que não são práticas e faltam muitos detalhes. Por exemplo, temos poucos casos de abusos de animais, e a lei até determina pena de prisão para quem pratica esses actos. Mas como é que podemos acusá-las. Há também problemas com as lojas de animais, pois a lei não é clara. Como é que as lojas põem os animais em jaulas? Quem é que pode comprar um cão? Se comprar um cão e abandoná-lo, amanhã posso comprar outro sem problema. A lei funciona mais do ponto de vista da sociedade e menos do ponto de vista do bem-estar animal.

Como assim?

Se eu abandonar um animal na rua, estou a cometer uma ilegalidade, mas se o deixar no Instituto para os Assuntos Municipais já não. Temos de olhar para os animais e a sua relação com as pessoas. No futuro teremos a oportunidade de falar com o Governo sobre isto, mas se nos juntarmos a outras associações será melhor.

Acredita numa boa relação com o Governo de Ho Iat Seng?

Não sei dizer (risos). Neste momento estamos a trazer mais pessoas para a direcção, personalidades ou pessoas com posições de liderança na sociedade. Queremos pluralidade e assim teremos uma melhor ligação com o Governo. Temos de rever a lista dos membros da direcção. Até agora a nossa lista é muito boa comparando com outras associações, mas de tempos a tempos temos de fazer uma actualização.

7 Out 2020

António Félix Pontes, ex-presidente do Instituto de Formação Financeira: “Fiquei com alguma mágoa”

António Félix Pontes esperava cumprir mais um mandato como presidente do Instituto de Formação Financeira, mas o director da Autoridade Monetária e Cambial de Macau invocou “razões não plausíveis” para a não continuação do economista, que continua agora no sector privado. Félix Pontes teme que o Governo tenha de injectar mais apoios na economia e deita por terra as ideias para a criação de um “sistema financeiro com características próprias”

 

[dropcap]E[/dropcap]stá de saída do Instituto de Formação Financeira (IFF) e da Administração Pública. Porquê agora?

Os dois melhores anos do IFF, em termos de ‘performance’, foram precisamente os do meu último mandato (2018-2019). Por conseguinte, tinha a expectativa de ter mais um mandato, pois, em termos de uma gestão racional dos recursos humanos sem estereótipos, premeia-se quem tem bons resultados. No entanto, não foi essa a opinião do actual presidente da AMCM, invocando razões não plausíveis.

Como assim?

Descortinei que o que ele queria era uma pessoa que não fosse tão independente como eu, pelo que lhe disse que, não havendo comunhão de opiniões, deixaria o IFF aquando da eleição dos novos corpos sociais e que continuaria apenas a prestar assessoria à AMCM até ao termo do meu contrato. Portanto, a minha saída fez-se sem dramas. Fiquei com alguma mágoa, principalmente porque tinha em mente algumas iniciativas relevantes que não pude concretizar [ao nível da formação].

Vivemos tempos de pandemia. Que consequências económicas destaca?

A redução a pique das receitas do jogo vai implicar que o Produto Interno Bruto (PIB) tenha uma queda astronómica. No final do segundo trimestre deste ano a queda no PIB era de 67.8 por cento, valor este que irá depender do número de turistas oriundos da China a partir do mês de Outubro, o que, no entanto, não evitará uma diminuição recorde nesse indicador económico. No que respeita aos turistas, no ano de 2019, registámos quase 25 milhões de Janeiro a Agosto e, no ano corrente, no mesmo período entraram em Macau cerca de 3,6 milhões, ou seja, menos 87 por cento. Como consequência dessa evolução negativa, a taxa de ocupação nos hotéis teve uma redução dramática, tornando a situação no sector hoteleiro de Macau muito grave.

Pelo meio, muitas empresas abriram falência.

Centenas de pequenas e médias empresas (PME) encerraram este ano e a taxa de desemprego em Macau que, antes da pandemia, era na ordem de 1.7 a 1.9 por cento, no final do segundo trimestre de 2020 foi de 2,5 por cento e a tendência de aumento irá manter-se. Como reflexo disto, o montante referente ao subsídio de desemprego, proporcionado pelo Fundo de Segurança Social, triplicou em relação ao ano transacto e não vai ficar por aqui.

Qual o impacto no sector bancário e financeiro?

Haverá uma deterioração no crédito malparado devido ao encerramento já mencionado das PME, ou devido ao facto de estas terem visto as suas receitas sofrerem uma grande redução. Acresce-se a realidade de milhares de indivíduos que estão desempregados ou que passaram a ter muito menos rendimentos. Antes que a bolha de crédito rebente, dever-se-ia equacionar o estabelecimento de moratórias para esses casos.

E no período pós-pandemia, que análise faz?

Creio que será necessário o Governo injectar mais recursos financeiros na economia local. Mas devemos fazer muito mais para reduzir essa dependência [do jogo] e é aqui que entra a proclamada diversificação económica. Desde há várias décadas que é uma das palavras-chave das linhas de acção governativa e, com raras excepções, não são mais do que um ‘copy-paste’ do que é proposto em anos anteriores. Se queremos tornar real a diversificação económica em Macau, tem de se definir a estratégia e os objectivos a prosseguir, bem como o respectivo calendário de execução.

Que tipo de medidas concretas devem ser adoptadas? 

Poder-se-ia proceder ao lançamento em Macau do turismo de saúde de qualidade mundial. Temos tido uma média de mais de 30 milhões de visitantes por ano, a maioria proveniente da China. Sem grande esforço poder-se-ia atrair parte deles para efectuarem exames médicos em Macau (ou em Hengqin), em hospitais que oferecessem um serviço médico de excelência. Dever-se-ia definir uma estratégia e um roteiro, por exemplo, até 2025, para uma iniciativa que incluísse uma visão para a inovação e tecnologia, com a criação (eventualmente em Hengqin) de um parque tecnológico do tipo ‘Cyberport’, de Hong Kong e em que, nesse plano, se contemple a hipótese de, dentro de alguns anos, os casinos estarem a operar em ‘Blockchain’.

Também se fala muito da relação comercial com os países de língua portuguesa para diversificar a economia. Que passos devem ser dados?

Aqui dou especial ênfase aos países africanos de língua portuguesa e a Timor-Leste, pois o comércio entre Macau e esses países é praticamente inexistente. Há um elevado risco de crédito dos restantes países de língua portuguesa e os exportadores locais têm receio legítimo de encetarem qualquer actividade comercial com os países em causa. Desta forma, há que proporcionar garantia para os riscos políticos que advêm desse relacionamento comercial. A forma mais eficaz, como fez a China e Hong Kong, é o seguro de crédito a ser disponibilizado por uma seguradora local de capitais públicos, com a concessão de garantia governamental para esses riscos políticos e até os meramente comerciais. Essa garantia teria de merecer a aprovação da Assembleia Legislativa, o que creio que não seria difícil de obter, atendendo que são muitos os deputados a criticar o valor muito residual que representam as exportações de Macau para os ditos países no total das exportações locais.

Ainda foi a tempo de observar as mudanças no regime offshore, que deixa de vigorar já em Janeiro. É um avanço para o sistema financeiro?

Macau deveria ter um centro offshore com outras bases, e temos condições para isso. Houve uma grande evolução do sistema financeiro, com as novas tecnologias, e a nossa tributação é muito mais baixa do que em Hong Kong e Singapura, que têm centros offshore.

Mesmo que o mundo offshore tenha hoje uma má imagem. 

Há centros de grande envergadura com supervisões mais eficientes, tal como as Bermudas, por exemplo. Mas há centros offshore que deveriam ser banidos quando são usados para actos de corrupção e lavagem de dinheiro. Quando estiveram cá os bancos portugueses, os clientes eram portugueses. Eles punham cá o dinheiro para não terem de pagar tantos impostos em Portugal. Aí havia evasão fiscal, mas não quer dizer que houvesse branqueamento de capitais.

Que análise faz ao caso FinCEN e aos milhões transaccionados a partir do BNU e do Banco da China?

Os bancos em causa participaram, como era o seu dever, a suspeita que determinadas transacções indiciavam ao Gabinete de Informação Financeira, que posteriormente fez o seu tratamento. O controlo interno desses bancos funcionou em pleno. Isto surge como uma arma de arremesso dos americanos, em plena guerra comercial entre os EUA e China. Macau pertence à China e criaram essa suspeita de que, em Macau, havia uma série de situações irregulares que os bancos cometeram. Não, os bancos não cometeram nenhuma irregularidade. Penso que, neste caso, houve alguma conotação política.

Muito se tem falado sobre a verdadeira eficácia do Fórum Macau. O que tem a dizer sobre esta matéria?

A China tem feito um desenvolvimento notável do comércio e investimento com os países de língua portuguesa, com linhas de crédito com Angola, Cabo Verde e Moçambique. As empresas e os produtos chineses são cada vez mais vendidos nos países de língua portuguesa. Em Macau, pelo contrário, nada foi feito. São sempre feitos serviços mínimos, as visitas de delegações e a assinatura de protocolos de cooperação têm poucos resultados. O Fórum, em relação à China, é positivo, mas em relação a Macau é negativo em termos de resultados.

Fala-se muito na criação de um “sistema financeiro de Macau com características próprias”. O que tem a dizer sobre esta matéria? 

Não tenho conhecimento da existência de um plano para o sistema financeiro, e se existe deve estar nos gabinetes. As notas sobre esse sistema financeiro, constantes nas diversas linhas de acção governativa, não constituem qualquer plano director, mas sim conjuntos de ideias avulsas, muitas vezes sem correspondência com a realidade local. A pedido da AMCM até preparei em 2018 um plano director para a formação de talentos para o tal sistema financeiro, o qual não mereceu qualquer ‘feedback’, pelo que o IFF foi lançando uma série de acções de formação. Do que apreendi, esse sistema financeiro teria como pilares os bancos e as seguradoras tradicionais, a locação financeira, os ‘trusts’, a gestão de patrimónios privados por entidades especializadas, uma bolsa de diamantes e ouro, e outra bolsa, esta de valores, bem como a emissão de títulos verdes (‘green bonds’), e a tecnologia FinTech. Ora nada disto contribui para que se diga que o sistema financeiro de Macau tem características próprias, pois tudo isso já existe em qualquer centro financeiro de renome. Além disso, embora se tenha feito uma alteração à legislação sobre a locação financeira, não há condições em Macau para se desenvolver.

Porquê? 

Esse instrumento serve para o financiamento de projectos de grande envergadura e, em Macau, quando estes têm iniciativa governamental são financiados por dinheiros públicos. Quando têm origem no sector privado, com os casinos, há uma nítida preferência por empréstimos bancários sindicados. A narrativa dos países africanos de língua portuguesa e Timor-Leste utilizarem o sistema de locação financeira de Macau para comprarem equipamentos à China não me merece credibilidade, pois, além de outros factores, tal implicaria que as empresas chinesas aceitassem a jurisdição de Macau para dirimir os litígios, o que creio não vá acontecer.

E relativamente aos “trusts” e gestão de patrimónios privados? 

Os ‘trusts’ são de difícil implementação em Macau pois são de base anglo-saxónicas, com a Common Law como sistema jurídico. Será difícil, mesmo que a nível jurídico se opere algum milagre. Quanto à gestão de patrimónios privados, será que se pretende atrair fundos de milionários da China? Se assim for, há que tomar cuidados acrescidos em relação à origem desses fundos, pois o risco de branqueamento de capitais aumentará exponencialmente. Também se questiona a necessidade de existirem ‘entidades especializadas’, pois os bancos e seguradoras do ramo vida autorizadas a operar em Macau já prestam esse serviço com excelente qualidade. Tendo em atenção o rígido controlo das autoridades chinesas em relação às transferências transfronteiriças de fundos por parte dos seus cidadãos, acho que se está a seguir um caminho em que há muita poeira no ar.

Há também a ideia de criar uma bolsa de valores em Macau. 

Coloco muitas dúvidas sobre a sua viabilidade. A maioria das empresas de Macau são PME, grande parte delas nem segue padrões contabilísticos internacionais ou são auditivas. Por isso, não podem ser listadas em nenhuma bolsa de valores que se preze. Por outro lado, os casinos, bancos e seguradoras, já estão listadas nas bolsas de Hong Kong, Xangai e Shenzhen. Será que se pretende uma bolsa da segunda ou terceira divisão para aceitar as empresas que forem rejeitadas, por exemplo, na bolsa de valores de Shenzhen? Se for isso, então é pior, pois iria afectar a imagem de Macau, com o seu grau de risco reputacional, como centro financeiro, a registar uma grande deterioração.

27 Set 2020

Marika Cukrowski, curadora do World Press Photo: “É importante ter uma presença em Macau”

A exposição das fotografias vencedoras do World Press Photo, promovida pela Casa de Portugal de Macau, é hoje inaugurada na Casa Garden, às 18h30, onde pode ser vista até ao dia 18 de Outubro. Ao HM, Marika Cukrowski, curadora de um dos maiores concursos de fotografia do mundo, falou de uma edição cheia de imagens de esperança e força. As manifestações que decorreram em vários lugares do mundo, incluindo Hong Kong, são um tema central

 

[dropcap]U[/dropcap]m jovem toca no peito, à noite, enquanto grita qualquer coisa, que soa como uma mensagem de esperança. A mensagem é poesia recitada no meio de uma manifestação no Sudão, a 19 de Junho de 2019. Enquanto recita poemas, o jovem é iluminado por telemóveis empunhados por outros jovens.

Esta imagem, captada pelo fotógrafo japonês Yasuyoshi Chiba, da agência France-Press, venceu a edição deste ano do World Press Photo e pode ser vista até ao dia 18 de Outubro na Casa Garden, numa iniciativa que conta mais uma vez com o apoio da Casa de Portugal. O regresso da mostra a Macau deixa Marika Cukrowski, uma das curadoras do World Press Photo, muito satisfeita.

“Estamos muito empolgados com o facto de esta exposição acontecer como habitualmente, mesmo com todas as alterações que decorreram este ano. Podemos não estar presentes na inauguração, mas assegurámos a sua continuação. É importante para nós ter esta presença [em Macau] para diversificar ao máximo o concurso e Macau é sempre um lugar interessante para estarmos, por ser um local onde várias culturas existem”, contou ao HM.

Esta é uma edição muito marcada por protestos em vários pontos do mundo, incluindo Hong Kong. São protestos que se calaram subitamente devido à pandemia da covid-19, mas cujas mensagens e ideias continuam a existir.

“Temos várias histórias e imagens simbólicas de manifestações em vários lugares no mundo. Temos a Foto do Ano, tirada no Sudão, temos os protestos de Hong Kong, uma imagem sobre os protestos no Chile. Mesmo a História do Ano é sobre os protestos na Argélia [Kho, the genesis of a revolt, de Romain Laurendeau]. Não se trata apenas de um lugar, mas é uma espécie de onda que chegou em 2019.”
Marika Cukrowski considera que a Foto do Ano é, sem dúvida, uma das imagens mais impressionantes do concurso. “Esta é uma imagem que sobressai em relação às outras, porque não é gráfica e está cheia de esperança. É muito representativa do tema deste ano. Desde 2018 que temos tido essencialmente temas ligados a manifestações e jovens que protestam sem recorrer a qualquer tipo de violência.”

Batalhas de Hong Kong

Os protestos de Hong Kong que decorreram em força no ano passado são um dos temas dominantes da edição deste ano do World Press Photo. Exemplo disso é o trabalho vencedor na categoria storytelling “Interactive of the Year”, intitulado “Battleground PolyU”. Com produção de DJ Clark e China Daily, trata-se de um trabalho digital de storytelling sobre os intensos protestos que decorreram nas instalações do Instituto Politécnico de Hong Kong.

“Foi sem dúvida um grande acontecimento que decorreu durante muito tempo. Há muitas imagens diferentes, tiradas durante um longo período de tempo, e todas elas são muito poderosas e simbólicas”, disse a curadora do concurso.

O trabalho de Nicolas Asfouri, intitulado “Hong Kong Unrest”, nomeado para a categoria “Story of the Year” é outro exemplo da forte presença das manifestações de 2019 no concurso. “Ele cresceu na Dinamarca e viajou para Hong Kong para cobrir os protestos, embora já tivesse feito a cobertura das manifestações durante o movimento dos guarda-chuvas. Disse estar surpreendido por estar tudo muito bem organizado e por haver muitos jovens desta vez”, contou Marika Cukrowski.

Para a responsável, a fotografia mais importante desta série de 10 imagens é o retrato de várias estudantes, com os seus uniformes escolares, de mãos dadas. “Normalmente associamos esta imagem a estudantes a caminharem nos corredores das escolas, mas aqui estão nas ruas, de mãos dadas, com as máscaras colocadas. É uma imagem muito poderosa e representativa das pessoas que se mantiveram de pé, a lutar pela sua liberdade.”

Ambiente e neonazismo

Além dos protestos, as questões ambientais voltam a marcar presença na edição deste ano, não só numa categoria em nome próprio, mas também na categoria de questões contemporâneas. “Temos imagens sobre os fogos na Austrália e também sobre os incêndios na Califórnia, ou sobre lagos que estão a secar em vários pontos do mundo. Este é sem dúvida um tema que está presente em várias categorias e assim vai continuar.”
Marika Cukrowski destaca também o trabalho do fotógrafo Mark Peterson, e que é o retrato de vários membros do grupo neonazi Shield Wall Network a celebrar o aniversário de Adolf Hitler num barco, no estado de Arkansas, EUA. Esta imagem ficou em terceiro lugar na categoria de questões contemporâneas.

“É uma imagem de confronto. Nem sempre é óbvio que os neonazis existem, mas a verdade é que nos EUA estes grupos estão a crescer. Esta foto é importante porque revela isso mesmo, bem como o facto de as pessoas não terem mais receio de pertencer a grupos neonazis. Esta é uma questão contemporânea preocupante. Parece ser uma minoria, mas a verdade é que está a crescer”, frisou.

Em primeiro lugar na categoria de questões contemporâneas, mas com uma única imagem, ficou o trabalho de Nikita Teryoshin, intitulado “Nothing Personal – The Back Office of the War”, tirada em Abu Dhabi por ocasião do International Defence Exhibition and Conference (IDEX).

“Esta imagem documenta o negócio da venda de armas e é algo muito poderoso. Este ano os protestos estão muito presentes no concurso, mas nos últimos anos a guerra foi um tema dominante. Então é interessante perceber de onde vêm estas armas e esse é um assunto que esta imagem explora, há muito dinheiro envolvido. Ele [Nikita Teryoshin] foi lá fotografar as pessoas sem revelar os seus rostos”, concluiu a curadora.

23 Set 2020

Andrew Leung, académico e consultor: “Os EUA sentem que a China está a comer o seu almoço”

Andrew Leung, académico, consultor e cronista de Hong Kong, é um dos oradores numa palestra online, organizada pela Universidade Autónoma de Lisboa, que tem hoje início e onde se vai abordar o crescimento dos países euro-asiáticos, o multilateralismo e o papel que a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” tem nesse contexto. Andrew Leung, diz que o cenário de tensões e de multilateralismo não vai mudar com a eleição de um novo Presidente nos EUA, e defende que será difícil cimentar a liderança chinesa a nível global

 

[dropcap]A[/dropcap] sua palestra aborda o posicionamento da China nos dias de hoje por oposição ao dos EUA. Mas afirma também que vivemos num mundo multilateral.

Temos hoje uma nova ordem mundial dividida por poderes crescentes onde se inclui a China, claro, que é o país que mais compete com os EUA. Mas temos também a Rússia, Índia e outros poderes no Médio Oriente, como o Irão. O mundo está a mudar porque tem sido dominado pelo Ocidente, mas hoje temos o crescimento de poderes continentais mais tradicionais, como os países que referi. Temos então um crescimento da Eurásia e o conflito entre a China e os EUA é apenas uma parte de todo o cenário. Esta mudança de poderes é influenciada por esse conflito, mas não só. Há também outros competidores, sobretudo na Eurásia.

A Europa está a perder peso no palco mundial?

Estamos a assistir ao crescimento da Ásia contra a Europa, que está a tornar-se mais fracturante, particularmente com o Brexit, e também em termos demográficos, pois a população está envelhecida. Mesmo a Europa, como um todo, tem hoje uma economia maior do que a norte-americana, mas não é um país, é um conjunto de nações com muitos interesses. Temos todas estas dinâmicas multilaterais. O mundo era dominado pela hegemonia americana. A China não consegue retirar a liderança aos EUA, não tem capacidade para o fazer e não o quer fazer, pois o país não está interessado em intrometer-se nas questões de outros países. Mas à medida que a China se torna maior e mais influente isso reflecte-se na economia americana. O medo dos EUA é que, com o fortalecimento da China, a influência norte-americana a nível económico ou militar na Ásia-Pacífico seja ameaçada ou sofra mesmo uma erosão. Há vários factores em jogo e a guerra comercial entre a China e os EUA é apenas um deles.

Não enfrentamos uma Guerra Fria, mas é uma guerra com várias frentes. Qual o caminho para a paz global?

Antes da II Guerra Mundial não havia a bomba atómica. Mas hoje os EUA, EUA e Índia são potências nucleares, e também temos a questão dos mísseis, que estão cada vez mais sofisticados. A China está a apostar numa posição simétrica: não tem de ser igual ao seu adversário, mas tem poder. No tempo da Administração Nixon, na Guerra Fria, os EUA tinham como inimigo a URSS. A China era um país extremamente pobre e era considerado pela Administração Nixon como um parceiro para os interesses americanos contra os soviéticos. Foi um período de lua de mel, porque servia a ambos os países.

Mas isso mudou.

Depois surgiu a Organização Mundial do Comércio (OMC), a economia chinesa estava a desenvolver-se, produzia sapatos e t-shirts, o tipo de coisas que já não se produziam nos EUA. Os EUA queriam ajudar a China a entrar para a OMC, porque muitas fábricas americanas poderiam mudar-se para a China e o país poderia também liberalizar-se. Essa era a esperança. Contudo, todos estes anos depois, a China já não está a produzir sapatos e compete com os EUA em campos como a rede 5G, por exemplo. Os EUA sentem que a China está a comer o seu almoço, além de que se assiste a uma mudança de dinâmicas no Mar do Sul da China. A China agora está a aproximar-se ao Ocidente através do projecto “Uma Faixa, Uma Rota”, para que o comércio de gás e combustível possa ser feito por terra através do Médio Oriente para a Europa. Daí o interesse em desenvolver as economias na Eurásia. Já a Rússia quer manter a sua influência e tem interesses comuns com a China.

As presidenciais americanas estão marcadas para Novembro. Poderemos ver alguma mudança neste cenário de multilateralismo com um novo presidente americano?

Não creio. A ordem mundial continua, com o crescimento de países em desenvolvimento e a mudança de poder do Ocidente para o Oriente, e também com o foco na China enquanto potência emergente e a ameaça ao domínio americano. Se olharmos para os democratas, há um consenso de que a China é uma ameaça existencial para os EUA em termos económicos, militares, tecnológicos, de direitos humanos e ideológicos. Um recente inquérito da Pew Research Center revela que cerca de 60 por cento dos americanos têm uma visão negativa da China. Isto porque olham para a mudança que está a acontecer no mundo e, claro, não gostam da política chinesa e da violação dos direitos humanos. Também não gostam do desafio que a ascensão chinesa representa para a influência americana. Muitos não compreendem a China e pensam que o país vai substituir os EUA na liderança mundial, mas a China não é capaz de fazer isso.

Porquê?

Nem todos os países vão aceitar a liderança chinesa. A China está a aumentar a sua influência para defender os seus próprios interesses, e por isso é que a tendência [de um mundo multilateral] se irá manter. Este conflito entre a China e os EUA não é apenas comercial, militar ou ideológico, baseia-se também numa percepção. Porque é que tantos países seguiram, ao longo de todos estes anos, a liderança norte-americana? Por causa dos valores. Não apenas as instituições democráticas, mas a capacidade de o país assumir a liderança mundial.

Os candidatos às presidenciais norte-americanas têm perfis diferentes, e isso pode mudar a relação do país com a China.

Não acredito que muitas pessoas na China se preocupem se Trump ganhar um segundo mandato. Biden é mais equilibrado, mas a percepção de que a China é um desafio não vai mudar.

Na sua palestra aborda também a relação que a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” tem nesta questão do multilateralismo.

Este projecto comporta uma faixa económica entre a China e a Ásia Central, a caminho da Europa, que liga a China ao Ocidente. Há também uma rota marítima que vai até ao Mar Mediterrâneo e Mar Vermelho. A China tem vindo a falar também da Rota da Seda digital que, na verdade, liga todo o mundo. Esse é o plano da China em prol de uma maior globalização e multilateralismo. Mas claro que no final todas as ligações vão dar à China. Segundo um estudo recente da Goldman Sachs, mesmo que a economia chinesa esteja a abrandar, é ainda possível que esta se transforme na maior do mundo em 2032. Mas não é possível o PIB chinês ultrapassar o PIB americano. O PIB não é sinónimo de poder a nível mundial. Temos Macau, com um PIB muito maior do que o de Hong Kong, mas com muito menos poder. O poder de um país depende também da dimensão da sua economia e da sua conectividade. Esse dia vai chegar para a China mas, por outro lado, a trajectória da nação está a tornar-se mais difícil, porque há uma imagem negativa do país. A China tem hoje mais poder e uma maior capacidade para defender os seus interesses, mas isso gerou um maior conflito.

Hong Kong é uma das peças neste conflito entre a China e os EUA.

Hong Kong sempre foi uma economia aberta e muito dependente do comércio e sistema financeiro internacionais. Mesmo antes da transferência de soberania, já Hong Kong era um membro independente da OMC. Os EUA não reconhecem hoje esse estatuto autónomo, devido às sanções, mas a OMC não depende da autoridade norte-americana. O estatuto mantém-se, mas há o risco de erosão, e isso é muito perigoso para Hong Kong. O sector financeiro é dominado por muitos bancos americanos que beneficiam da existência de uma bolsa de valores. Mas estes bancos não recorrem apenas a Hong Kong, usando o território como base para fazerem negócios em todo o mundo. Acredito que os bancos americanos estão a ser muito cuidadosos para não saírem muito do barco [neste momento].  Mas não são apenas as tensões em Hong Kong que estão em causa no conflito entre a China e os EUA. Há Taiwan, o Mar do Sul da China, Xinjiang. Hong Kong é uma peça neste tabuleiro de xadrez, e está num fogo cruzado. Mas como disse há uma forte presença americana em Hong Kong e a banca dos EUA está a usar Hong Kong e a existência do princípio “um país, dois sistemas” para fazer negócios com o resto do mundo e também para negociar com o mercado chinês.

A lei da segurança nacional veio alterar um pouco as coisas.

Hong Kong continua a estar bem posicionado porque faz parte da China. Mesmo com a imposição da lei de segurança nacional o território continua a ser muito diferente do que se passa do outro lado da fronteira. A China quer que Hong Kong continue a actuar de forma autónoma, sobretudo para as empresas chinesas que usam o território para aceder a mercados internacionais. Acredito que o acordo de livre comércio RCEP (Regional Comprehensive Economic Partnership) pode entrar em vigor mais cedo ou mais tarde, têm sido feitos progressos. Caso entre em vigor no próximo ano Hong Kong estará muito bem posicionado.

Que análise faz a esse posicionamento no contexto euro-asiático?

Hong Kong, enquanto centro financeiro internacional, tem um papel a desempenhar na iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”, que inclui a zona da Eurásia e também da Ásia-Pacífico. Há muitas oportunidades de investimento para os profissionais de Hong Kong, como os advogados, que alargam o campo de acção na área da arbitragem. Hong Kong pode também ser usado como peça central em termos de implementação da Common Law. Haverá um crescente interesse por parte dos profissionais de Hong Kong e das suas instituições.

Macau é um território bem mais pequeno, mas também tem um papel neste contexto euro-asiático?

Macau pode apostar na área tecnológica, e foi assinado recentemente um acordo com o grupo Alibaba para transformar o território numa cidade inteligente. Isso é encorajado por Pequim, porque nos últimos anos o território tem estado dependente de uma única indústria, o jogo. Agora há uma aposta na diversificação económica e a tecnologia é um exemplo. Mas há uma coisa que Macau tem, ao contrário de Hong Kong, que é o legado português. Com a língua portuguesa há uma aproximação ao Brasil, por exemplo, que é um grande parceiro da China. O Governo de Macau tem vindo a desenvolver uma maior relação com os países de língua portuguesa.

22 Set 2020

Miguel de Senna Fernandes lança livro de crónicas: “O meu pai esteve sempre presente”

Depois de criar, em 2018, o blogue “Crónicas à Sexta”, Miguel de Senna Fernandes passa algumas dessas crónicas para um livro com o mesmo nome. Tratam-se de “estórias e ironias do comum dos dias, de alegrias e avarias, desde Marias a Zacarias”, como o próprio escreveu. O livro, com chancela da Praia Grande Edições, é lançado a 4 de Outubro no festival literário Rota das Letras. O evento deste ano celebra o conto e em especial a obra do escritor macaense Henrique de Senna Fernandes, pai de Miguel

 

[dropcap]C[/dropcap]omo surgiu a oportunidade de publicar o livro “Crónicas à Sexta”?

O festival Rota das Letras quis fazer um tributo à obra do meu pai. Este ano todo o programa está sujeito ao tema ‘Contos’ e acharam que deviam fazer uma nova edição, em chinês e inglês, da obra do meu pai, “Nam Van: Contos de Macau”. Depois, em conversa, propuseram-me publicar os meus contos que estão no meu blogue. É uma boa oportunidade de lançar algo que gosto de fazer.

Tem o blogue desde 2018. Porque sentiu necessidade de partilhar os seus escritos?

Inicialmente, eram apenas crónicas que me vinham à cabeça e fiz o esforço para as publicar todas as sextas-feiras. Daí o título da obra ser “Crónicas à Sexta”. Claro que muitas vezes não é fácil escrever crónicas e muitas vezes não consigo concentrar-me na escrita como gostaria. Houve muitas interrupções, mas quis manter um compromisso para que todos estes contos e crónicas fossem lançadas às sextas-feiras. Coloquei todas as crónicas à disposição da organização do festival e até pedi que fossem eles a escolher os textos.

É importante o festival Rota das Letras celebrar os escritos do seu pai?

Sim. Foi bom manter viva a ideia do tributo à sua obra. Já estava à espera que isso fosse adiado para outra altura, mas a organização decidiu manter a palavra. Louvo o esforço da organização nesta época da pandemia. Naturalmente, aguardo com alguma expectativa a edição do seu livro em chinês e inglês. É uma excelente ideia para que, pelo menos, a obra possa sair fora das fronteiras e entrar no mundo chinês. Isso é fundamental, já que hoje em dia há uma tendência para se valorizar coisas da terra. Junto da comunidade chinesa há uma crescente consciencialização da produção local, e isto é muito bom.

Dia 4 de Outubro marca o décimo aniversário da morte do seu pai. Considera que é importante dar uma nova roupagem à sua escrita?

Não só às obras do meu pai, mas também em relação às obras de outros autores de Macau. É importante renovar o interesse pelas obras já publicadas, quanto mais não seja para incentivar outros escritores. Porque apesar das grandes transformações sociais, Macau continua a ter um manancial de histórias. É um campo fértil para histórias, romances, crónicas e há muito canto por aí que pode inspirar obras. É sempre bom que as organizações locais, sobretudo nesta área literária, se debrucem também sobre a renovação do interesse das obras já feitas. É mentira quando dizem que Macau não tem literatura. Claro que tem, mas se calhar a literatura em português podia chegar a outro tipo de patamar. Talvez não se tenha conseguido porque o universo de leitores não é vasto em Macau, o que se compreende, mas é sempre bom manter as obras vivas. Apesar das dificuldades reais que existem, não se deve abandonar a defesa da literatura aparentemente ténue em Macau.

O seu pai serviu de inspiração para escrever estas crónicas?

Não necessariamente. Não me baseei nada naquilo que escreveu, mas o pai esteve sempre presente. Nunca utilizei fórmulas ou a inspiração com base nas obras dele, e penso que ele até gostaria que eu fizesse as coisas por mim, tal e qual como ele começou. Há sempre aquela mão que me abençoa e tenho o meu pai sempre presente quando escrevo. Mas inspiro-me em outras coisas. O meu pai dizia sempre isto, que em cada canto e em cada esquina de Macau há uma história e ele mostrou isso.

Podemos esperar crónicas de análise à sociedade de Macau, ou são reflexões pessoais?

Não é uma análise, não faço isso. No fundo tento focar-me muito na condição humana. Quando falamos sobre uma obra muitas vezes temos de versar sobre o estado de espírito da personagem, há essa representação da condição humana. Talvez algumas questões existenciais venham à tona, há uma tentativa de explorar, através das personagens, até que ponto e em que termos nós existimos. Não é uma análise à sociedade, embora haja ali caricaturas, histórias com alguma profundidade. Há uma história, de que gosto muito, sobre cartas de amor de crianças. É uma história que brinca muito com a inocência das pessoas, mas fala-se de coisas sérias, que não respeitam idade. Há uma certa ingenuidade ali e é precisamente isso que fascina.

É essa a sua crónica preferida, ou tem outras?

Gosto de todas, no fundo. Quando escrevo, o primeiro leitor sou eu, sou um grande julgador de mim próprio. Escrevo, deixo de lado uns tempos e depois volto a ler para ver se gosto. São crónicas muito diferentes. No fundo é uma experiência e tenho de explorar várias possibilidades diferentes nesta forma de escrita. Não sei como as crónicas vão ser publicadas, mas eu, pelo menos, vejo uma evolução nas várias formas de abordar o conto. Há uma história sobre o natal e gosto muito desta. Foi a primeira história que fiz, em 2015. Gosto muito de um conto sobre o bolero [Chi-ca-pom, o bolero improvável]. Também gosto do conto sobre as cartas de amor. Tenho outros contos em mente e vários projectos que vou tentar concretizar no próximo ano. Tenho várias coisas escritas que estão ainda em esboço e que se podem transformar em algo.

Esses projectos passam pela publicação de um romance?

O meu sonho é publicar um romance. Tenho o plano de um romance feito há muito tempo, mas falta-me alguma perspectiva histórica, relacionada com o tufão de 1874. Falta-me alguma pesquisa que terei de fazer. Penso que seria um romance fantástico. Mas esse período histórico serve apenas como pano de fundo. Espero ter tempo para acabar isso. Comecei a escrevê-lo, mas tive dificuldades em termos de enquadramento histórico e ficou para depois. Vamos ver se o reformulo depois.

Porquê esse período histórico em específico?

O tufão em si é um fenómeno da natureza que naturalmente cria várias possibilidades de narrativa, várias histórias que podem servir como pano de fundo. Não há uma razão em especial, mas apenas um certo fascínio sobre esse fenómeno da natureza. Espero que os leitores apoiem aqueles que escrevem e usam o seu tempo para produzir obras. Sobretudo que apoiem aqueles que se vão estrear. Para que haja uma reacção ao que se cria.

17 Set 2020

Forças de Segurança | Decisão dos tribunais traz esperança a agentes “esquecidos”

António Rodrigues foi uma das principais testemunhas em três processos que resultaram no final das guerras das seitas, altura em que diz ter ficado com “a cabeça a prémio”. Como reconhecimento pelo serviço prestado tem agora de lutar nos tribunais para ver os seus descontos reconhecidos para efeitos de reforma

 

[dropcap]N[/dropcap]o dia 13 de Maio, o Tribunal de Última Instância (TUI) obrigou o Fundo de Pensões (FP) a reconhecer quatro anos de trabalho, e respectivos descontos, de um agente aposentado das forças de segurança. A decisão pode mudar a vida de, pelo menos, mais quatro ex-agentes aposentados que viram o FP ignorar os seus primeiros anos de trabalho nas forças de segurança de Macau.

Os juízes do TUI deram como provado que, apesar de nos primeiros anos em Macau os descontos do agente com nacionalidade portuguesa terem sido feitos para a Caixa Geral de Aposentações (CGA), o polícia nunca teve ligação profissional com a República Portuguesa. Pelo contrário, foi considerado que a contratação foi desde o início para servir Macau e que o FP tem de considerar todo o tempo de trabalho e assumir os respectivos feitos para a CGA. O acórdão fez com que a contabilidade dos anos de serviço para efeitos de reforma aumentasse de 26 anos, 8 meses e 1 dia para 39 anos.

Além disso, a decisão confirmou um entendimento do Tribunal de Segunda Instância (TSI), que em 2010 decidiu que competia ao FP fazer a contabilidade do tempo de trabalho das pessoas, de acordo com o registo de 1995. Segundo o cálculo, o Fundo de Pensões passava a assumir a responsabilidade dos descontos feitos pelos inscritos, mesmo que alguns descontos tivessem sido enviados para a Caixa Geral de Aposentações. A lista de inscritos no Fundo de Pensões de 1995 serviu igualmente de referência para definir os agentes que teriam as reformas pagas por Portugal, através da CGA, e os que ficavam em Macau, onde o Fundo de Pensões assumiu os encargos.

Até à decisão do TUI, o FP recusou assumir os descontos do agente, sustentando que só devia contabilizar o período que passou efectivamente a estar inscrito no FP, ignorado os descontos para a CGA.

Ao HM, o FP diz que após a decisão do TUI definiu uma nova fixação de pensão, que foi publicada no Boletim Oficial. Contudo, o advogado que tem o processo em mãos, Ricardo Carvalho admite ter feito entrar uma nova queixa no tribunal devido ao não cumprimento da sentença.

Apesar do diferendo, o acórdão do TUI não deixou de ser encarado como um sinal de esperança, não só para o agente em causa, mas também para outros aposentados na mesma situação.

Lutas antigas

Um dos ex-agentes do Corpo de Polícia de Segurança Pública (CPSP) que se prepara para recorrer aos tribunais é António Rodrigues, que chegou ao território em 1982, sempre ao serviço da mesma força.

Nascido no Alentejo, António Rodrigues foi recrutado para trabalhar como agente em Macau, onde rapidamente aprendeu o cantonês, língua que ainda hoje domina. Ao mesmo tempo, foi subindo na hierarquia do CPSP e chegou a chefe da Esquadra das Ilhas. Bem-integrado em Macau e com a transferência no horizonte, decidiu ficar além de Dezembro de 1999.

O primeiro sinal de que os cálculos da sua pensão nunca iam ser um procedimento fácil chegou com a tradicional ordem de serviço interna que anualmente actualiza o tempo de serviço dos agentes. Passava pouco tempo da transição, a administração tinha mudado, e António Rodrigues verificou que o período em que tinha descontado para a CGA deixara de ser contabilizado.

“Quando comecei a trabalhar fazia os descontos. Na altura, nem sabia para onde ia o dinheiro. O que eu sabia era que ia continuar em Macau depois da transição, porque fui sempre subindo na carreira até 1989, quando fui promovido a Chefe de Esquadra das Ilhas da Taipa”, contou António Rodrigues, ao HM. “Só depois da transição, passado pouco tempo, é que me apercebi da situação […] Nessa altura, a minha evolução na carreira estava congelada e entrei numa fase de contagem decrescente para me aposentar. A ordem de serviço interna com a contabilidade dos anos para a reforma era sempre muito importante para mim. E tinha as contas bem feitas”, recorda.

No entanto, com base na versão da nova administração, em vez de ter 36 anos de serviço, onde eram contabilizados bónus contratualizados ao nível do tempo de descontos, António Rodrigues “perdeu” nove anos. “Reformei-me com 27 e poucos anos de serviço, quando deviam ter sido contabilizados 36 anos”, vinca.

Com o recurso aos tribunais, e a uma carta enviada em 2005 ao Chefe do Executivo [Edmund Ho] a pedir que uma primeira sentença fosse executada, o ex-chefe de esquadra viu a tutela da Segurança reconhecer-lhe o tempo de trabalho de 36 anos em vez dos 27 anos. Quanto ao pagamento a história foi diferente.

Fale com Portugal…

Se por um lado, a tutela da Segurança reconheceu os 36 anos de trabalho, por outro o Fundo de Pensões, que é tutelado pela secretaria da Administração e Justiça, nunca considerou esse tempo para o valor da pensão.

António Rodrigues lembra que foi logo avisado em 2005: “Depois da decisão dos tribunais e da carta ao Chefe do Executivo, a polícia reconheceu esse tempo [9 anos] de trabalho. Mas também me disseram logo que quando fosse para a reforma só ia ser pago com o que eles consideravam ser a parte do Fundo de Pensões”, afirmou. “Quanto ao resto do dinheiro, disseram-me que tinha de falar com a Caixa Geral de Aposentações em Portugal”, acrescentou.

A vontade do FP em não assumir os custos da sua pensão, e de outros quatro colegas, deve-se aos procedimentos relacionados com a transição, diz António Rodrigues. “Quando se aproximou a altura da transferência, o Fundo de Pensões manda uma ‘bolada’ de dinheiro para a Caixa Geral de Aposentações em Portugal, que era para os descontos dos funcionários que quiseram ir para lá. Só que nunca se pensou nas pessoas que tinham sido contratadas pelo Governo de Macau e que queriam ficar aqui depois da transferência. Nós não somos muitos, mas mandaram o dinheiro todo, sem haver diferenciação”, indica.

Terá sido por este motivo que o Fundo de Pensões mandou António Rodrigues falar com a Caixa Geral de Aposentações em Portugal, o que fez, embora sem sucesso. “A mim mandaram-me ir falar com a CGA em Portugal. Mas o Fundo de Pensões dá apoio às pessoas locais que precisam de resolver questões”, queixa-se o ex-agente.

Ao HM, o Fundo de Pensões confirmou a existência deste tipo de serviço, que defende ser legal ao abrigo do Decreto-Lei n.º 357/93. A mesma resposta indicou também que é “maioritariamente” prestado aos pensionistas que “não dominam a língua portuguesa”.

Contas feitas, António Rodrigues completa uma década de aposentação no próximo mês e diz que já está a perder cerca de 2 milhões de patacas. “Roubaram-me 23 por cento do meu vencimento […] Estamos a falar de direitos adquiridos e para mim isto é um roubo”, atirou.

Com um forte sentimento de injustiça, António Rodrigues acredita que a recente decisão do TUI traz uma nova esperança. “Até que enfim fez-se alguma justiça. Louvo os tribunais por estas decisões, mas não deixo de sentir que é tarde. São dez anos a perder o vencimento”, declarou.

“Dois Estados dentro do Estado”

O processo do agente que viu os tribunais darem-lhe razão em Maio foi conduzido pelo advogado Ricardo Carvalho, que se prepara também para levar o caso de António Rodrigues à justiça.

O causídico está a lidar com três casos dos cinco agentes nesta situação e acredita que vão ser “bem-sucedidos”, porque os clientes não têm quaisquer responsabilidades no envio do dinheiro para Portugal. “O Governo tirou o dinheiro aos empregados. Se não está na caixa do Fundo de Pensões é porque meteram o dinheiro no sítio errado, mas os descontos foram tirados. Os particulares não têm culpa que o dinheiro tenha sido metido no sítio errado”, defende Ricardo Carvalho.

O advogado esclareceu também que quando os agentes foram contratados havia um protocolo que permitia descontar para a CGA, caso regressassem a Portugal. Os que optassem por ficar em Macau seriam inscritos, com os respectivos fundos, no FP. Facto que o jurista entende ilibar os clientes de responsabilidades: “O Fundo de Pensões podia sempre adiantar o dinheiro aos particulares e depois ir pedir esse montante à Caixa Geral de Aposentações em Portugal. Só que não quer”, considerou.

Sobre o caso específico de António Rodrigues, o advogado diz que se vive uma situação incompreensível, porque as decisões dos tribunais são aplicadas na secretaria da Segurança, mas o mesmo não aconteceu na tutela da Administração e Justiça. “Esta situação faz-me confusão. O secretário da Segurança entende que tiraram o dinheiro ao agente e que este sempre trabalhou para Macau. […] O problema do tempo dos descontos foi reconhecido e resolvido”, relatou. “Só que o Fundo de Pensões, que é tutelado por um outro secretário, diz que não recebeu o dinheiro e só paga o que recebeu. Acabamos por ter dois estados dentro do mesmo estado, o que é incompreensível até porque o Chefe do Executivo é comum aos dois secretários”, rematou.

O HM questionou o FP sobre a situação dos agentes em que os descontos para a CGA não são contabilizados e se havia mais casos além dos cinco, mas não recebeu resposta.

Cabeça a prémio

Apesar de ver a luz ao fundo do túnel, António Rodrigues não deixa de lamentar tudo o que tem passado devido à sua pensão, que fez mesmo com que vivesse uma fase mais difícil em 2005, quando passou por Portugal e inclusive atravessou problemas de saúde.

Também por este motivo aponta que todo o episódio mostra desprezo pelo seu serviço, questiona as motivações por trás da recusa em reconhecer o seu tempo e diz-se injustiçado: “Que forças controlam esta justiça oca e caduca do Fundo de Pensões para serem tão injustos comigo?”, pergunta. “Não fui santo, mas quem é nesta terra cheia de vícios? Fui um polícia que sempre combateu o mal e ainda tenho a cabeça a prémio por estes actos de coragem”, desabafou.

António Rodrigues explica que ao longo da vida profissional se pautou por três caminhos. Em primeiro lugar considera que “a coragem não tem preço”, em segundo diz acreditar que “a sabedoria é um dom” e, por último, nunca esquece que “o lobo e o cabrito bebem no mesmo local”. Foi no âmbito destas crenças que testemunhou em três processos ligados a seitas, entre os quais o que levou à condenação de Wan Kuok Koi, numa altura em que o medo reinava em Macau.

“As seitas contra quem fui testemunhar queriam, e ainda querem, a minha cabeça. Mas o que é que me levou a testemunhar? A população de Macau. Eu sabia que era o meu trabalho fazer com que as pessoas pudessem voltar a dormir e que acabassem os homicídios”, sublinha.

É por esta prova de serviço, que António Rodrigues nunca tinha sonhado viver uma situação destas: “Presentearam-me com a recusa em pagar o que resulta de um direito e que mereci pelo tempo que servi Macau. É uma grande injustiça”, conclui.

14 Set 2020

Marisa Gaspar, antropóloga, sobre a continuação da comunidade macaense: “Sou uma optimista permanente” 

O livro “No Tempo do Bambu – Identidade e Ambivalência entre Macaenses”, lançado em 2015, acaba de ganhar uma versão revista e traduzida, editada pela Berghahn Books. Marisa Gaspar, antropóloga, acredita na continuação da comunidade macaense e lamenta que, apesar das inúmeras distinções, continue a existir um fosso entre o Executivo e as associações macaenses

 

[dropcap]D[/dropcap]e onde vem a ambivalência do macaense, tema que aborda neste livro?

Publiquei este livro em 2015 e já sofreu alterações. É o resultado da minha tese de doutoramento em que o trabalho de campo foi feito em Lisboa, com o grupo do Partido dos Comes e Bebes. É um grupo informal de amigos, todos eles ex-colegas de turma do Liceu ou da Escola Comercial de Macau que ao longo dos anos foram vindo para Portugal por diferentes razões. Foi com este grupo que me debrucei mais sobre as questões da definição identitária, relacionadas com a memória e ambivalência. O último capítulo de livro aborda o facto de o macaense pertencer, não pertencendo, a dois mundos e duas culturas. Na verdade, eles tiram das duas e constroem uma cultura que é sua.

Nunca sabem muito bem o que são.

Discordo nesse sentido. Acho que fazem um uso muito prático do facto de se moverem bem nos dois mundos. O macaense tira um partido positivo dessa sua ambivalência e consegue adaptar-se e saber ser o que tem de ser numa determinada situação social. Em termos profissionais essa é também um bocado a história dos macaenses em Macau. Sempre fizeram a ponte entre a comunidade chinesa e a Administração portuguesa.

Isso leva-me à questão da elite macaense e aos cargos que ainda tem em Macau, um ponto também abordado no livro. Era esperada a continuação dessa elite tão activa após a transição?

A elite anterior, que ainda estava no poder no tempo da Administração portuguesa, e que hoje está quase na idade da reforma, está a preparar novas gerações para essas posições e a forma como o fazem é através do associativismo. Foi criada a Associação dos Jovens Macaenses, os descendentes dessa antiga elite ainda activa, mas que em breve deixará de estar, e há uma consciência disso. Essa preocupação de passar o testemunho é permanente. Há também a organização dos Encontros dos Jovens Macaenses que acontecem há três anos. A ideia que eu tenho é que eles [os participantes dos Encontros] conhecem muito pouco do seu património. São estas associações, como os Doci Papiaçam di Macau ou a Confraria de Gastronomia Macaense [que fazem esse trabalho]. Querem que a gastronomia seja reconhecida pela China e mais tarde pela UNESCO como património da humanidade, mas não sei se chegará lá. Mas há essa vontade.

Os jovens macaenses que estão em Macau têm um maior conhecimento da sua cultura, por comparação aos da diáspora?

Os jovens [da diáspora] têm a noção de que há um título atribuído a esse património e acho que é por aí. São jovens muito diferentes dos de Macau. Os jovens macaenses de Macau têm a perfeita noção do seu papel na sociedade, dessa passagem de testemunho para que continuem a lutar pelos seus direitos e por um posicionamento quase único naquela sociedade, onde ainda existe o modelo de “um país, dois sistemas”, com uma cultura e identidade próprias. O Governo de Macau, um pouco por obediência do que a China dita, continua a dar valor à comunidade macaense, muito mais agora do que era dado antes na Administração portuguesa. Pela primeira vez o macaense começou a definir-se em termos mestiços, de mistura, uma coisa que não acontecia antes da transição.

Porque é que acha que se dá mais importância hoje à comunidade? Deve-se à China?

Acho que é mesmo só por isso. De resto, os macaenses queixam-se até de um certo “chega para lá” da parte do Governo local. Mas eventualmente também tem a ver com o Executivo que está no poder na altura. Agora, com este novo Chefe do Executivo as coisas podem mudar. No final do mandato do anterior Chefe do Executivo [Chui Sai On], o património material macaense recebeu alguns títulos, mas as associações esperavam outras regalias, nomeadamente melhores condições. Todas as associações recebem um montante da Fundação Macau, mas como se trata de uma comunidade especial, reconhecida por Macau e pela China, deveriam dar-lhes mais condições para trabalhar. Por exemplo, para o teatro [Doci Papiaçam di Macau] deveria ser dada uma sala para os ensaios, e na gastronomia [Confraria da Gastronomia Macaense] deveria ser dada uma sala própria para confeccionarem os pratos, para que desta forma possam chegar ao público. De outra forma estão sempre um bocado encurralados nessa limitação logística com falta de condições que o Governo não lhes proporciona. Ao mesmo tempo, Macau venceu a candidatura a cidade da gastronomia e uma das principais causas para ter integrado essa rede foi o facto de existir uma culinária única no mundo. Mas depois as comunidades patrimoniais não entram nesse sistema, não participam nesse tipo de iniciativas e é sempre um jogo um bocado estranho.

Em que sentido?

Os técnicos do turismo fazem as coisas por iniciativa própria, sem grandes colaborações das associações. Agora está a ser feita uma base de dados para o levantamento de todas as receitas. Mas parece que isto é feito sem uma integração entre as partes. Falta uma comunicação entre os técnicos, os académicos e a comunidade que é detentora do património e que pode fornecer mais informações. Este é um projecto meu que está em curso, sobre o turismo gastronómico em Macau. Estive lá há dois anos, entrevistei muitas pessoas e a sensação com que fiquei é que as coisas não fluem. Em Macau há esse problema de comunicação. Eu própria me vi aflita para falar com pessoas que têm esses dossiers em mãos porque tinham receio de falar. Acho que cada vez mais a mão da China se começa a notar em Macau e as pessoas têm medo de falar. Uma coisa é as coisas acontecem no plano simbólico e formal, outra é o que acontece no dia-a-dia. A gastronomia e a o patuá são super importantes, são reconhecidos pelos governos e pela UNESCO, mas na prática as pessoas não sabem o que são. Não se distingue a comida macaense das restantes gastronomias. Os próprios profissionais que trabalham sobre este assunto não sabem e isso é um bocado aflitivo. Tudo funciona de forma simbólica.

Falando das associações dos jovens macaenses. Que desafios antevê na continuação da comunidade? Há que adoptar novas estratégias?

Sou uma optimista permanente em relação aos macaenses, ao contrário do discurso deles, fatalista, de que a comunidade vai acabar. A verdade é que não se vêem muitos jovens nos Encontros. No caso do patuá deixar-se-á de falar uma língua completamente arcaica, porque não é usada na comunicação diária. As pessoas conhecem expressões e é isso que vai ficar. A comunidade tem tudo para continuar a existir. As pessoas que se sentem macaenses vão continuar a dizer que o são, mas a identidade não vai ser igual à dos seus bisavós. Esta comunidade tem de se preparar para esse contexto que é Macau, cada vez mais globalizado, com muitos emigrantes vindos da China. Portanto, é uma comunidade que vai ter de aprender mandarim senão, não sobrevive em Macau. E isso já se nota nos jovens. Vai ser uma comunidade que se vai adaptando e nesse sentido continua a existir.

A comunidade macaense tem também um papel económico nos dias de hoje?

Não ia tão longe quanto ao papel de captação de investimento, por exemplo. O que ainda existe é essa preocupação de colocar à frente [alguns macaenses]. Pelo menos com os dois primeiros Chefes do Executivo, continuaram a ter macaenses à frente de instituições determinantes para Macau. Foi o caso de Rita Santos no Fórum Macau e José Sales Marques no Instituto de Estudos Europeus de Macau. São figuras reconhecidas pela sociedade e também pela elite chinesa. Mas Macau continua a ter uma sociedade de emigrantes que estão lá para ganhar a vida, que não conhecem muito sobre Macau, vivem na sua bolha e depois vão à sua vida. Continuam a existir muitos problemas.

A comunidade macaense poderia ser mais interventiva nesse aspecto?

Sim. Todas as comunidades em Macau deveriam ser mais interventivas. Não nos podemos esquecer que a comunidade macaense tem esta carga simbólica, é muito minoritária. O macaense, mesmo enquanto intermediário cultural, tem consciência de que ainda tem esse papel para desempenhar e que pode ser útil nesse sentido, mas temos de pensar isto muito ao nível de relações diplomáticas. Não se pode pensar que o macaense vai para o terreno reivindicar direitos. O macaense queixa-se muito do facto de, quando se deu transição, ter sido obrigado a optar por uma das duas nacionalidades, chinesa ou portuguesa. E discuto isso no capítulo sobre a ambivalência, porque aqui neste ponto é levada ao expoente máximo. A China, não concordando com a dupla nacionalidade, impôs a escolha aos cidadãos de Macau. Os macaenses tinham esta ambivalência de ser as duas coisas. Foi-lhes dada a possibilidade de escolher e isso foi uma ofensa atroz para eles. Quem não quis abrir mão de ser português não pode exercer determinadas funções. A comunidade tem esse papel [reivindicativo], mas a um nível muito diplomático. Os macaenses também não querem ter muitos problemas, [então pensam que] se calhar é melhor continuar nos bastidores. Todos os anos a comunidade é convidada para encontros [com o Governo] e isso tem de facto mão da China. Quase como se fossem artefactos de museu.

Vão continuar a existir macaenses na Administração ou vão sendo progressivamente afastados?

(Hesita). Temos de perceber se existem macaenses com competência ou vontade para estarem nesses cargos. Não é só o facto de ser macaense que garante um lugar com competência política. Mas se houver, acho bem que continuem a fazer parte, porque o Governo de Macau foi sempre tendo macaenses. Mas não sei quem virá a seguir.

Mas, tal como disse, acredita que a comunidade se vai manter.

Os macaenses vão continuar a existir nem que seja desta forma mais simbólica ou para justificar um discurso político de que Macau é este sítio pacífico de encontro de culturas. O papel de Macau hoje para a China tem vários componentes. Faz a ponte com os países de língua portuguesa onde a China tem interesses comerciais. Não nos podemos esquecer também do projecto “uma faixa, uma rota” e mais uma vez Macau tem um papel para se aproximar de Portugal. Nos 20 anos da transição foram assinados vários acordos. E Macau é também um sítio de referência para a Grande Baía.

9 Set 2020

Mari Alkatiri diz que gasoduto para Timor-Leste tem de ser “viável”

[dropcap]O[/dropcap] líder da Fretilin, maior partido timorense, disse que defende o projecto do gasoduto dos poços de Greater Sunrise para Timor-Leste, se for viável, mas que, em caso contrário, os líderes do país devem ser claros com a sociedade.

“Não estamos a ir contra o gasoduto. Estamos é a garantir ao povo que queremos uma economia sustentável e que o setor petrolífero contribui da melhor forma”, afirmou Mari Alkatiri, secretário-geral da Frente Revolucionária do Timor-Leste Independente (Fretilin), em entrevista à Lusa.

“Não mudámos de linha. Queremos é poder provar que a linha para onde o país estava direcionado é a mais viável e benéfica para o país. Ninguém exclui nenhuma opção. Muito menos a opção de trazer o gasoduto para Timor-Leste, desde que seja viável”, considerou.

Questionado sobre se a posição é ecoada pelos outros dois partidos no Governo – o Partido Libertação Popular (PLP), do primeiro-ministro Taur Matan Ruak, e o Kmanek Haburas Unidade Nacional Timor Oan (KHUNTO) – Alkatiri disse que “a posição da Fretilin é da Fretilin”.

“A posição do Governo está agora a ser assumida, e grandes mudanças estão a ser introduzidas no setor do petróleo”, afirmou, recordando que a nova liderança do setor, no Governo, na petrolífera e no regulador – a Autoridade Nacional de Petróleo e Minerais (ANPM) – está no cargo há pouco mais de dois meses.

“Os outros estiveram 12 anos e não produziram nem um cêntimo cá para dentro. Só despesas”, acusou.

Mari Alkatiri falava à Lusa na sequência de uma troca de críticas entre a atual equipa que lidera o setor petrolífero timorense e Francisco Monteiro, ex-presidente da petrolífera nacional, Timor Gap, exonerado em julho.

“A Fretilin foi a primeira a defender o gasoduto do Greater Sunrise para Timor. Mas a economia tem as suas regras e para começar deve haver estudos de viabilidade. E eu ainda não vi nada, não vi nenhum estudo que me convencesse”, afirmou Mari Alkatiri.

Às críticas do ex-presidente da Petrolífera, Alkatiri recomenda que “não se meta em questões políticas”.

“Devia apresentar argumentos técnicos mais válidos. Não discuto política com um ex-presidente de uma empresa. A verdade é que quando defendi o gasoduto para Timor, Monteiro era um simples assessor do então Presidente Xanana Gusmão. E já na altura era arrogante”, considerou.

Alkatiri defendeu que é essencial ter estudos de viabilidade económica antes de avançar com decisões políticas, porque “se o objetivo é reforço da soberania então a economia só se reforça quando é viável e floresce”, disse.

“O que significa que estudos técnicos têm de ser feitos. E não inventem números, não façam projeções para poder justificar o resultado. Não inventem”, afirmou.

Caso os estudos que o Governo agora quer realizar mostrem que o projeto não é economicamente viável, Alkatiri diz que os líderes políticos “têm que ser claros” para a população timorense.

“Pessoalmente ainda acredito que é possível trazer o gasoduto para cá, mas é preciso também que todo esse esforço seja conjugado com a necessidade de diversificação da economia”, afirmou ainda.

E, caso seja inviável, então os responsáveis pelo investimento feito até aqui “vão responder se a informação que apresentaram foi feita de forma falaciosa” já que “em termos económicos, o país só é sustentável se a economia for sustentável”, considerou.

Alkatiri sustentou que entre a informação que falta está um estudo comparativo entre as várias opções, incluindo a possibilidade de Timor-Leste comprar uma participação no gasoduto para Darwin, no Norte da Austrália.

O líder da Fretilin considerou ainda “gravíssimo” o investimento de 650 milhões de dólares que a Timor Gap fez, em nome de Timor-Leste, para conseguir uma participação maioritária no consórcio do Greater Sunrise.

“Ninguém entra para uma atividade, altamente especializada sem capacidade de responder questões técnicas e investir para ser o primeiro parceiro na ‘joint-venture’. Este investimento foi para comprar o quê? Se calhar até ferro velho abandonado no mar”, afirmou.

Alkatiri considerou várias apresentações públicas feitas pelo ex-Presidente Xanana Gusmão sobre o projeto como “propaganda política”, em que ficou manifestada “muita falta de seriedade”.

E justificou a decisão de, enquanto primeiro-ministro do VII Governo, o executivo ter autorizado Agio Pereira, então ministro de Estado, a assinar o tratado de fronteiras marítimas com a Austrália por questões eleitorais.

“Estávamos às portas de campanha para as eleições e se não tivesse feito isso a grande arma que iriam usar contra a Fretilin seria essa. Mas sabia que havia outro filtro por passar que é o parlamento”, afirmou, recordando que o seu partido votou contra.

Além disso, considerou, o acordo de fronteiras com a Austrália é “completamente leonino” por misturar questões de soberania fronteiriça com um pacote económico e por, na prática, ainda dar à Austrália parte dos recursos que são de Timor-Leste.

“Segundo a fronteira, 100% do Sunrise deveria ser nosso, mas damos 30% a Austrália para trazer o gasoduto para Timor-Leste. E se for para Darwin, onde tínhamos antes 90% [no anterior tratado] agora passamos a ter 80 e damos 20 à Austrália”, considerou.

“Foi pura simplesmente o ego de uma pessoa a querer dizer que delineou a fronteira marítima, mas que não afirma verdadeiramente a nossa soberania porque a Austrália ainda tem algo a dizer sobre exploração do Sunrise”, afirmou.

Insistindo na necessidade de uma auditoria a tudo o que foi gasto nos últimos no desenvolvimento da estratégia fronteiriça, Alkatiri disse que se deve aproveitar a atual situação económica – que adia necessariamente o calendário de desenvolvimento proposto – para concluir os estudos.

“O calendário, com estudos ou sem estudos, não vai ser cumprido. O preço do petróleo e os efeitos da covid-19 e da recessão económica internacional têm esse feito. Portanto o calendário já não ia ser cumprido e Xanana Gusmão sabe disso”, afirmou, referindo-se ao homem que liderou a estratégia para o setor na última década.

4 Set 2020

Ministro do Petróleo diz que política em Timor-leste colocou “a carroça à frente dos bois”

[dropcap]T[/dropcap]imor-Leste meteu “a carroça à frente dos bois” na estratégia para o sector petrolífero, com a política à frente das questões técnicas e de viabilidade económica, algo que tem agora de ser revertido, disse o ministro da tutela.

“Temos primeiro de ouvir dos técnicos, ver o resultado da análise de viabilidade económica. Vamos aguardar por esse parecer. O Estado timorense comprometeu-se com povo com a ideia de que o gasoduto tem de vir para Timor-Leste. Se não for no Tasi Mane [costa sul] pode ser no Tasi Feto [costa norte]”, disse Victor Soares, ministro do Petróleo e Assuntos Minerais em entrevista à Lusa.

“Mas, se não for viável não vamos perder dinheiro. Esse é o princípio do negócio. Isso é que vamos defender. O que ocorreu até aqui, foi colocar a carroça à frente dos bois: os políticos decidiram e os técnicos foram atrás dos políticos. Temos de reverter isso”, afirmou.

No cargo há apenas dois meses e no intuito de imprimir esse novo cunho, Soares já levou a cabo uma ampla reestruturação na liderança das várias instituições que actuam no sector do petróleo, com mudanças no comando da petrolífera, a Timor Gap, da Autoridade Nacional de Petróleo e Minerais (ANPM) e do Instituto de Petróleo e Geologia (IPG).

As equipas cessantes estiveram envolvidas no que foram, até agora, os passos mais amplos dados por Timor-Leste neste sector, incluindo a delimitação das fronteiras permanentes com a Austrália, o projecto de desenvolvimento da costa sul para o setor petrolífero e os poços do Greater Sunrrise, onde a Timor Gap comprou uma participação maioritária por 650 milhões de dólares.

Todos trabalharam de perto com o líder timorense Xanana Gusmão, o principal arquitecto da política para o sector – incluindo o projecto Tasi Mane de desenvolvimento da costa sul e do gasoduto dos poços de Greater Sunrise para Timor-Leste.

“Vi o desenvolvimento deste sector ao longo do tempo e considerei que era essencial fazer mudanças. Temos de fazer mudanças de forma estruturante, para responder às expectativas da população”, afirmou.

“Este sistema foi montado há mais de 10 anos, mas não vejo que as coisas funcionem de acordo com as políticas decididas e sinto que é necessário fazer alterações tendo em vista uma nova estratégia”, afirmou.

Soares é claro sobre o investimento no consórcio do Greater Sunrise: “Penso que foi um grande erro que o Governo fez”, disse.

“Não deveria ter sido feito. Pagou para uma coisa que não é nada. Isso foi um erro. Não foi baseado na análise técnica da empresa ou dos técnicos. Foi uma decisão meramente política. Logo nas primeiras reuniões que tive com direcção da Timor Gap, da ANMP e do IPG, confirmamos que o projecto não foi feito com base num estudo de viabilidade”, explicou.

Victor Soares sublinha a importância do sector petrolífero para o país: “É fundamental e vital para o progresso de desenvolvimento de Timor-Leste”.

Questionado sobre os cenários técnicos e até económicos apresentados por Xanana Gusmão ao longo do tempo, o ministro considera que sempre assentaram “mais em questões políticas que técnicas”, não dando informações certas sobre as análises de viabilidade.

Victor Soares disse ainda que o Governo está a debater solicitar uma auditoria externa a “todo o projecto” para ver o que foi feito, como foi feito, o que está certo ou não.

Victor Soares é um dos elementos no Governo da Frente Revolucionária do Timor-Leste Independente (Fretilin), o maior partido do país, que se juntou ao actual Executivo para o viabilizar no que resta de mandato, que termina a 2023. O partido votou contra o tratado de fronteiras marítimas e o projecto do Greater Sunrise e contestou a compra da participação maioritária pela Timor Gap.

Publicamente, o partido não contesta a decisão de trazer para Timor-Leste um gasoduto do Greater Sunrise – talvez o assunto mais complexo e polémico de todo o projecto, que tem dividido timorenses e australianos e sido contestado pelas petrolíferas internacionais.

Em privado, porém, dirigentes do partido questionam não só a viabilidade do gasoduto, mas até a localização da unidade de gás natural liquefeito a criar, admitindo a sua transferência da costa sul, como prevê o actual projecto, para a costa norte.

Com a questão do gasoduto a ser politicamente colada ao tema da soberania nacional – posição vincada por Xanana Gusmão e defendida na política do actual Governo – o partido admite que apresentar uma versão contrária poderia ter um custo político ou eleitoral.

Questionado pela Lusa sobre o facto de a Fretilin não admitir publicamente as suas reservas sobre o assunto, Victor Soares refere-se à “euforia” da população.

“Esta política tem vindo a ser desenvolvida, e os timorenses ouviram e expressaram que a fronteira marítima devia ser definida e o gasoduto ou oleoduto devia vir para Timor-Leste. Isto foi consumo público e toda a gente está com esta euforia de ter esta soberania e a nossa riqueza, mesmo a qualquer custo”, disse.

“As pessoas mais formadas que conhecem a área e que têm acesso às informações específicas sabem que não é totalmente viável. Mas como a política já foi decidida, temos de ter cuidado com o partido. O nosso eleitorado não são todos políticos, não têm conhecimento de nível alto. Vamos ter esse cuidado”, admitiu.

Independentemente disso, insiste, o importante é que os técnicos da Timor Gap e da ANMP concluam “uma análise de viabilidade económica de todo o projecto”, tendo em conta vários cenários para o preço do crude e os novos “parâmetros” no quadro do impacto da covid-19. “Temos de tomar uma decisão dependendo do estudo de viabilidade económica”, disse.

“Mas estamos a pensar agora fazer um ajustamento, definir uma nova estratégica. Deixemos os técnicos do Timor Gap, os parceiros do consórcio e outras partes envolvidas no projeto, que vejam se é viável ou não, se é lucrativo ou não. E depois disso apoiaremos a escolha”, referiu.

O Governo, explicou, partiu dessa base de que o gasoduto tem que vir para a costa sul do país, porém, sublinha Soares, essa opção terá necessariamente impacto naquela que é uma das principais zonas de agricultura do país, sector de que vive a ampla maioria da população.

Motivo pelo qual, disse, a política tem que também ter em conta um adequado plano territorial que analise as melhores localizações possíveis.

Empresa estatal na calha

O Governo timorense quer criar uma empresa estatal, equivalente à petrolífera Timor Gap, para os minerais, e uma autoridade específica que permita regulamentar adequadamente o sector, adiantou também o ministro da tutela. “Tem de haver uma empresa estatal, como a Timor Gap. Vai haver discussão do código mineiro na especialidade e com certeza vai passar. Mas depois temos que elaborar os regulamentos e estabelecer uma autoridade específica para o sector dos minérios”, referiu.

Actualmente a responsabilidade regulatória recai na Autoridade Nacional de Petróleo e Minerais (ANPM) que, segundo Victor Soares, vai ser dividida em duas, para que a nova entidade “possa fazer regulamento mais específicos para toda as actividades mineiras”.

O governante garante que “várias empresas locais e internacionais expressaram intenção de investir nessa área” e que, para isso, há que terminar toda a regulamentação necessária.

No cargo há apenas dois meses e no intuito de imprimir esse novo cunho, Soares já levou a cabo uma ampla reestruturação na liderança das várias instituições que actuam no sector do petróleo, com mudanças no comando da petrolífera, a Timor Gap, da Autoridade Nacional de Petróleo e Minerais (ANPM) e do Instituto de Petróleo e Geologia (IPG).

Um dos elementos centrais do trabalho no sector é o futuro Código Mineiro, aprovado no final de Julho na generalidade no Parlamento e que vai agora ser analisado na especialidade, eventualmente com o apoio de técnicos especializados.

Em preparação há vários anos, o código suscitou amplas diferenças de opinião entre partidos, interpretações sobre como o sector deve ser gerido, questões sobre licenças ambientais e até sobre a criação ou não de uma empresa pública para o sector.

Uma primeira proposta apresentada ao Parlamento caducou, dado o fim da legislatura – Timor-Leste teve eleições legislativas em 2017 e antecipadas em 2018, tendo a versão aprovada na generalidade sido apresentada em julho de 2019, assinada por deputados do Congresso Nacional da Reconstrução Timorense (CNRT), do Partido Libertação Popular (PLP) e do Kmanek Haburas Unidade Nacional Timor Oan (KHUNTO) – que integravam a anterior coligação do Governo – e ainda do Partido Democrático (PD).

No sector, um dos projectos que se arrasta há vários anos é o da unidade de produção de cimento em Baucau, o TL Cement, onde têm havido avanços e recuos e onde se está prestes a esgotar o prazo da valência de um ‘depósito’ de 50 milhões de dólares, pelo Governo, como parceiro no projecto.

Victor Soares explica que têm havido contactos com a empresa, mas que depois dos fundos já investidos pelo Governo é preciso que a empresa “contribua com o seu capital”.

Igualmente em curso continua o projecto, no sector do petróleo ‘onshore’, da empresa Timor Resources, na zona sul do país. “Estivemos com os representantes timorenses, fizemos uma vídeo-conferência com a CEO [directora executiva] e o diálogo foi muito positivo. Estão interessados em continuar a investir e pediram o apoio político, da ANMP e Timor Gap para que possam continuar”, referiu.

Em termos gerais, Victor Soares sustenta que Timor-Leste está “bem”, com um Governo “em pleno funcionamento e um parlamento com ampla maioria” e que a viabilidade está garantida.

“Os investidores e os nossos parceiros não devem ter anseios e dúvidas e desconfianças porque Timor está bem e vamos trabalhar até ao fim do nosso mandato. Sempre encorajo todos a que devem confiar neste Governo”, disse. “Devem acreditar que Timor está no rumo certo” afirmou.

30 Ago 2020

Jenny Ip, gestora de operações da In Limitada, responsável pela gestão da Cinemateca Paixão

Ao fim de dois meses, a nova gestora da Cinemateca Paixão quebrou o silêncio. Jenny Ip, a gestora de operações da Companhia de Produção de Entretenimento e Cultura In Limitada conta como os principais inimigos da perfeição têm sido o tempo e as comparações com a CUT. Manter a confidencialidade dos clientes é a razão apresentada para que não se saiba mais sobre o passado da empresa

 

[dropcap]C[/dropcap]omo está a ser o processo de reabertura da Cinemateca tendo em conta a continuidade do trabalho que tem vindo a ser feito?

Estaria a mentir se dissesse que não estamos a sentir a pressão do público mas, somos uma equipa nova de jovens que tem, na capacidade de ouvir, a sua maior força. Talvez seja verdade que não temos toda a experiência da equipa responsável pelo que foi construído ou feito aqui, mas somos uma equipa com paixão que quer fazer melhor. Por isso, estamos a fazer todos os possíveis e tudo o que está ao nosso alcance para ouvir o feedback e os conselhos do público, de forma a aplicar mudanças imediatas e promover bons programas nos próximos anos, ao mesmo tempo que asseguramos serviços de qualidade e procuramos corresponder às expectativas do público. Temos enfrentado muitas dificuldades, sobretudo porque somos constantemente comparados com a antiga gestora [CUT]. Pessoalmente, sempre fui fã da Cinemateca Paixão, sempre vim cá ver filmes. Por isso, na verdade, este tipo de pressão funciona como fonte de motivação e isso faz-nos lutar para estar ao nível das expectativas do público. Mas provavelmente o nosso maior desafio tem sido o tempo, porque desde que nos comprometemos com este projecto, não tivemos muito tempo para nos prepararmos, especialmente quando começámos a abordar os distribuidores de filmes.

A nossa programação de Setembro é composta essencialmente por clássicos, honestamente, tem sido difícil encontrar distribuidores disponíveis durante o Verão. Tem sido muito desafiante, mas somos persistentes.


Porquê a decisão de focar a programação de Setembro nos clássicos?

A ideia passa por compreender o impacto que a pandemia teve em cada um de nós e na indústria do cinema, que compete hoje com uma miríade de plataformas online em crescimento. Perante isto perguntámo-nos qual será o futuro do cinema, as alterações que a indústria está a enfrentar e como é que a cultura cinematográfica está a evoluir em termos de visionamento. Por isso, nesta reabertura queremos prestar tributo ao cinema com o programa “Uma carta de amor ao cinema: Produção cinematográfica nos grandes ecrãs”. Nesta programação seleccionámos nove trabalhos de diferentes territórios que estão relacionados com o cinema. Em termos de bilheteira, os números têm sido animadores e considero que tem sido um bom começo. Queremos convidar o público a vir e entrar nas mentes destes realizadores para ver filmes que falam de filmes. Por isso é como se estivéssemos a escrever cartas de amor ao cinema e a partilhar esse amor com o público.

Muitos produtores locais estão desiludidos com a ausência do cinema independente e de produções locais. Que comentário faz?

À parte deste festival com um tema definido, temos também aquilo a que chamamos a “Selecção de Setembro”, onde temos quatro filmes artísticos, que nunca passaram em Macau. Ao nível das produções locais, um dos principais objectivos passa por garantir que são exibidas na Cinemateca, porque em Macau não existem muitos cinemas interessados em passar filmes locais, optando antes por filmes mais comerciais.

Acreditamos que temos um papel importante em assegurar que as produções locais são vistas. Ao longo do ano vamos exibir filmes locais e já iniciámos contactos com alguns realizadores e produtores de Macau.

O que é que a In está a fazer para reconquistar a confiança dos produtores locais?

Em Outubro, haverá outro festival, onde vão ser exibidos filmes de Macau e de territórios vizinhos, como a China, Taiwan e Hong Kong. Vamos continuar a contactar produtores locais, este é um passo muito importante. Claro que não os conhecemos a todos, mas queremos mostrar que estamos aqui para ajudar.

Não queremos excluir ninguém. Queremos ter uma relação próxima porque, pessoalmente, dou muito valor ao trabalho dos produtores de Macau. A sua persistência é inegável quanto a perseguir os seus sonhos e concluir projectos, mesmo com recursos limitados. Achamos também que as oportunidades que existem actualmente para que sejam vistos, não são suficientes e que, apesar de a Cinemateca desempenhar um papel importante, continua a ser um sítio pequeno. Temos de os tornar visíveis nas regiões vizinhas e no resto do mundo. Esta é a visão que queremos alcançar nos próximos três anos, ou seja, explorar o maior número de oportunidades e colaborações com outras regiões. Por exemplo, em Taiwan ou na China há vários cinemas ligados a produções artísticas com os quais já estamos em contacto para trazer alguns filmes independentes e vice-versa. Além disso, vamos promover encontros mensais com produtores das regiões vizinhas para partilhar ideias. Acredito que este tipo de eventos vai contribuir para o desenvolvimento do cinema de Macau e para recuperar a confiança dos produtores locais. Porque se queremos que os produtores locais confiem em nós não basta dizer para o fazerem, é preciso mostrar que os podemos ajudar a explorar mais oportunidades e recursos.

O que tem a dizer ao grupo “Macau Cinematheque Matters” que tem sido bastante crítico quanto à nova gestão?

Claro que compreendemos as preocupações que têm vindo a mostrar porque não têm certezas sobre a nossa experiência. Isto é perfeitamente compreensível e agradecemos todo o feedback que nos possam dar. Claro que não somos perfeitos, somos uma equipa jovem, mas temos vontade de ouvir, ajustar e fazer mudanças. Esperamos que durante estes três anos possamos provar que partilhamos um objectivo comum, que é fazer deste lugar um dos mais importantes de Macau.

Desde que o novo website da Cinemateca foi lançado, surgiram reacções negativas sobre falta de informação, a impossibilidade de comprar bilhetes online e a inexistência de versões em chinês simplificado e português. Porque é que estas funcionalidades não foram implementadas?

O que podemos assegurar é que no dia 1 de Setembro tudo estará a funcionar correctamente, incluindo as versões em chinês simplificado e português e a bilheteira online. Claro que lamentamos qualquer inconveniente causado, mas estamos a trabalhar para que no primeiro dia, quando as portas abrirem ao público, esteja tudo de acordo com o caderno de encargos do concurso público.

Mas o problema foi a falta de tempo?

Sabíamos o que tínhamos de fazer e inicialmente a ideia era apenas deixar tudo pronto no dia 1 de Setembro. Mas também percebemos que o público queria saber mais sobre os filmes e comprar os bilhetes com antecedência e, por isso, preparámos tudo para começar a funcionar uma semana antes. Durante esta semana estamos a testar intensamente o sistema de venda de bilhetes online para garantir que não há erros e que tudo está pronto antes do lançamento. Claro que tenho de admitir que o tempo, desde o momento em que agarramos o projecto até agora, é muito curto tendo em conta o trabalho que há para fazer.

Estavam à espera de receber a advertência escrita por parte do Instituto Cultural (IC)? Como tem sido essa relação?

Na verdade, temos estado em constante conversação com o IC. Temos um grupo de Whatsapp onde comunicamos praticamente todos os dias e reunimos todas as semanas para garantir que estamos a remar para o mesmo lado. Não estávamos à espera da advertência do IC, mas aceitamo-la, porque compreendemos que temos muito espaço para melhorar. Na verdade, até acaba por ser mais um factor de motivação.

Porque é que até hoje a In Limitada não foi capaz de apresentar exemplos da sua experiência na área do cinema?

Acredito que este projecto da Cinemateca Paixão é um dos maiores actualmente em curso na empresa e já lançámos, entretanto, o nosso próprio website onde revelamos algumas das nossas experiências passadas. Compreendemos as preocupações do público mas, na verdade, após comunicarmos internamente, a razão pelo qual não podemos revelar muito prende-se com questões de confidencialidade dos nossos clientes. Até porque temos recebido muita atenção por parte do público. Por isso, o feedback que recebemos dos clientes não tem sido positivo em relação a revelarmos a sua identidade. A forma como estamos a lidar com o assunto passa por tentar manter a confidencialidade dos clientes. Adoraria revelar mais, mas não posso.

Mas assim não parece que estão a esconder alguma coisa?

Sim, nós compreendemos, mas é difícil fazer essa gestão. Por um lado, queremos revelar mais mas, ao mesmo tempo, temos de proteger os clientes, evitando que se transformem em focos de atenção. Por isso, estamos concentrados em dar a conhecer a nossa equipa, porque agora somos nós que estamos ao leme deste projecto, não é a antiga gestora. Queremos muito que as pessoas conheçam a nossa equipa e quem somos, em vez de se focarem naqueles sobre quem não podemos falar.

Mesmo sem revelar clientes, qual a experiência da equipa na área do cinema?

A nossa directora de operações Tung Mei Yi tem experiência na gestão de cinemas em Hong Kong e juntamente com a June Wu, tem ajudado muito a levar o projecto para a frente. Eu e algum do staff recém recrutado, participámos em trabalhos relacionados com o cinema e a produção cinematográfica nos últimos anos. Por isso, apesar poucas pessoas nos conhecerem, temos experiência. Acreditamos que, apesar de as pessoas não estarem muito confiantes que somos capazes de fazer este trabalho, nos próximos meses, com a programação e a estratégia que vamos apresentar, vão ver o esforço que estamos a fazer. Se não estivermos a fazer um bom trabalho, por favor, digam-nos e nós vamos mudar.

Então porquê manter o silêncio ao longo de tanto tempo? Não considera que isso contribuiu para danificar uma relação já de si complicada?

Compreendemos e lamentamos que tenha sido assim. Tínhamos muita coisa na cabeça no início do projecto e não era o momento apropriado para desvendar as nossas ideias porque tínhamos acabado de vencer o concurso público e era necessário construir a equipa. Tudo leva tempo. Compreendemos que as pessoas possam pensar “será que nos estão a esconder alguma coisa?”, mas garanto que não. Apenas estamos a preparar tudo antes de aparecermos com uma postura forte sobre o que queremos fazer e os nossos objectivos.

Pode partilhar mais acerca do proprietário da empresa?

O proprietário é o senhor Leong Chan Weng e foi ele que construiu a equipa quando foi anunciado que a empresa venceu o concurso público. Está à frente da In desde a sua fundação e partilha connosco o objectivo de querer fazer parte da indústria cinematográfica, pela qual tem uma grande paixão. Não sei como descrevê-lo, mas é, simultaneamente, um apaixonado pelo cinema e um homem de negócios que nos uniu nesta missão e que quer muito que o projecto vá para a frente.

Consegue esclarecer a relação que existe entre a In e a Associação de Cultura e Produções de Filmes e Televisão de Macau (MFTP), presidida por Alvin Chau, e que organiza o Festival Internacional de Cinema (IFFAM)?

Tanto quanto sei, não existe qualquer ligação com essa empresa. Mas a nossa equipa já participou nalguns trabalhos do IFFAM e outros festivais. Como equipa, não temos qualquer ligação com a MFTPA.

Sente que existe liberdade na escolha dos conteúdos a exibir?

Sim, sem dúvida. Mas sob a monitorização atenta do IC. A minha única preocupação é que seja bom para o público e que vão ao encontro da expectativas e exigências do IC.

Que comentário tem a fazer sobre o orçamento da In e o apresentado pela CUT, que era mais do dobro?

Acho que a melhor forma de mostrar ao público a nossa qualidade é através da programação porque, por exemplo, a obtenção dos direitos para a exibição dos clássicos em Setembro é bastante rara e não é propriamente barata. Desde o dia em que começámos a preparar a participação no concurso, não sabíamos como é que os outros candidatos iriam calcular os gastos mas, até agora, não estamos em qualquer risco de défice e o orçamento está sob controlo. Não podemos comentar como é que os outros calculam os gastos.

De que forma a Cinemateca Paixão irá participar no Festival Internacional de Cinema?

Até agora ainda não fomos contactados por ninguém em relação ao IFFAM.

28 Ago 2020

Rui Gomes: Excessiva politização em Timor-Leste tem afectado desenvolvimento

[dropcap]O[/dropcap] ex-ministro das Finanças Rui Gomes disse que a excessiva politização em Timor-Leste, a “epidemia incurável” que é a falta de confiança na liderança e relegar capital humano para segundo plano condicionaram o desenvolvimento nacional.

“A politização tem sido uma arma poderosa de descomprimir a determinação e a vontade política do lado de quem detém o poder”, disse Rui Gomes, em entrevista à Lusa.

“As distrações são constantes e a falta de confiança na liderança tornou-se uma epidemia incurável. É essa parte não económica que poderá vir a afetar o desempenho das pessoas e das instituições responsáveis pelas medidas propostas para a recuperação da economia pós-covid-19”, sublinhou.

Rui Gomes liderou nos últimos dois meses uma comissão criada pelo Governo timorense para preparar um Plano de Recuperação Económica (PRE) que ajude a reactivar a economia nacional, com medidas a curto, médio e longo prazo, para estancar a perda de empregos e rendimentos, corrigir a “fraqueza estrutural e a incapacidade do tecido produtivo nacional em gerar empregos produtivos com um nível de produtividade que gere rendimentos satisfatórios”.

Optimismo na retoma

O ex-ministro mostrou-se optimista sobre uma “retoma da economia em U”, depois de anos de crise política e do impacto da pandemia covid-19, mas considera que o principal risco é “a politização do PRE, como tem sido a prática em Timor-Leste”.

“O instrumento é bom, mas as pessoas têm de estar confiantes naquilo que fazem. Por falta de leitura e conhecimento das coisas, as pessoas (principalmente os políticos) tendem sempre a levar pelo lado político das coisas”, referiu.

Apostando num plano “centrado nas pessoas”, Rui Gomes sustentou que até aqui tem-se relegado para segundo plano o capital humano, com políticas viradas para o capital físico.

O nível de formação de capital humano “é muito baixo, em termos absolutos e em relação à maioria dos países vizinhos”, porque “se tem optado por investir significativamente em capital físico”, nomeadamente infra-estruturas.

Prova disso são os sucessivos Orçamentos Gerais do Estado que “ao longo de mais de uma década não estavam virados para as pessoas”, contrário ao discurso político.

Nos nove anos entre 2011 e 2019, os investimentos nos sectores de Saúde, Educação, Agricultura/Irrigação e Turismo, receberam uma verba total do Fundo de Infra-estruturas de cerca de 83 milhões de dólares.

Um “nítido contraste com os 3.066 milhões de dólares afectos ao capital físico, 37 vezes mais que a verba afeta” aos sectores referidos.

“É certo que há a necessidade de colocar uma fatia maior na formação bruta do capital físico; mas o que tem acontecido é que durante a última década esse investimento tem sido mais nas estradas, que não edifícios, cujos custos são demasiado elevados para os cofres do Estado para a sua construção e, eventualmente, manutenção”, afirmou.

“Muitos destes investimentos estão nitidamente sobre-dimensionados, levando a um desperdício significativo de recursos que poderiam ser melhor aplicados noutras atividades do Estado”, sustentou.

Daí que, defendeu, é precisa “uma mudança de direcção” face ao investimento no campo das infra-estruturas”, com queda nas receitas petrolíferas e na “rentabilidade potencial dos projetos previstos” para o Mar de Timor.

“Não quero com isso dizer que os grandes projectos devem ser esquecidos. Mas podemos estar confiantes de que os grandes projectos são de qualidade e produzem efectivamente efeitos positivos na economia e na sociedade timorense – onde 66% da população vive da agricultura de subsistência e a pobreza afeta mais de 40% -, particularmente no que toca à oferta e consumo nacionais e na melhoria do seu capital físico e humano? Qual é o nível de execução dos grandes projectos?”, questionou.

Um PRE “realista”

Neste quadro, Rui Gomes considerou o PRE “realista” e sublinhou a sua “boa receptividade”, notando que o primeiro-ministro, Taur Matan Ruak, deu instruções “para os trabalhos de ajustamentos necessários das medidas propostas face aos programas e atividades desenvolvidas” pelos vários ministérios e agências autónomas, “incluindo a construção de indicadores de monitorização e avaliação da implementação do PRE”.

“A grande maioria das medidas propostas foi devidamente ajustada. Está a decorrer o exercício da orçamentação das medidas propostas para o próximo OGE”, sublinhou.

Ainda assim, e perante potenciais riscos na implementação, que condicionem a eficácia do plano, Rui Gomes defendeu a necessidade de “simplificar os processos e de envolver menos partes a fim de evitar a dispersão de recursos escassos em muitas áreas”.

Indicar um órgão do Estado para desempenhar o papel de coordenador geral, e que siga de perto “quem faz o quê, quando e onde”, definir claramente responsabilidades e expectativas, atribuir-lhes recursos “adequados” e alcançar resultados “concretos e mesuráveis” são outras exigências.

“Aquele que poderia ser o principal constrangimento à implementação, claramente não existe: há claramente vontade política”, disse.

Num país onde, tradicionalmente, se questiona a eficácia da implementação de planos de desenvolvimento, Rui Gomes explicou que depois do planeamento e aprovação política, é precisar concretizar as medidas.

Para isso, e depois da aprovação dos OGE, deve-se “organizar a monitorização, a coordenação e assegurar níveis elevados de execução para que haja um impacto efetivo na criação de emprego, no aumento dos rendimentos, no crescimento económico e, consequentemente, na melhoria das condições de vida dos (…) cidadãos”, disse.

“O grande esforço e que torna de valor e eficaz o que foi feito é o que vem a seguir. Exigirá muito trabalho e muita eficácia. O Governo já tem um instrumento fundamental para a sua atuação até ao fim do seu mandato”, afirmou.

A intervenção na economia

Rui Gomes defendeu ainda que o Governo timorense tem um “horizonte limitado” para actuar e evitar que a economia nacional se “afunde”, implementando eficazmente o plano de recuperação económica que aprovou.

“A perda do Produto Interno Bruto foi grande nestes últimos três anos de inércia e de incertezas políticas e a presença da covid-19, bem como as cheias do mês de março que causaram grandes estragos no património privado servem de razão para agir com mais rapidez e força”, disse.

“Além do horizonte temporal ser mesmo limitado, não se pode deixar que a economia se afunde cada vez mais ao ponto de ser incapaz de auto recuperar”, afirmou.

Rui Gomes liderou nos últimos dois meses uma comissão criada pelo Governo timorense para preparar um Plano de Recuperação Económica que ajude a reactivar a economia nacional, seriamente danificada.

Com um limitado horizonte temporal, até dois anos e meio – o que resta de mandato do atual Governo – as medidas do PRE, explicou Gomes, procuram “atenuar o máximo possível os problemas no curto prazo” e, assim, procurar “estancar o desaparecimento dos postos de trabalho e a perda de rendimentos”.

Assenta ainda em soluções a médio e longo prazo para “tudo aquilo que a ameaça da covid-19 veio expor” na realidade económica e social timorense, “nomeadamente a fraqueza estrutural e a incapacidade do tecido produtivo nacional em gerar empregos produtivos com um nível de produtividade que gere rendimentos satisfatórios”.

“Quero acreditar que a implementação eficaz das medidas propostas resultará num número apreciável de postos de trabalho produtivos e dignos, gerados por investimentos (públicos e privados) que sejam mais mão-de-obra intensivos do que capital-intensivos, sem necessariamente descurar todos os tipos de investimento”, disse.

Mais investimentos na educação, saúde, habitação, protecção social e sectores produtivos – como agricultura e turismo – ajudarão, disse, a criar “novos empregos produtivos com melhores remunerações” e a “alterar a estrutura produtiva e dos factores que concorrem para o crescimento económico”.

Medidas de apoio para 2020

O PRE está dividido em duas partes, com medidas a aplicar ainda este ano, de apoio a empresas, famílias e trabalhadores do setor informal para mitigar os impactos da crise económica causada pela pandemia da covid-19.

Estas quatro medidas, que têm um custo estimado de 113 milhões de dólares incluem uma cesta básica a famílias, um subsídio mensal para empresas, a dispensa do pagamento de contribuições sociais e um apoio a trabalhadores do setor informal.

Inclui ainda 71 medidas a médio e longo prazo – a aplicar entre 2021 e 2023 – e que estão agora a ser introduzidas na proposta do Orçamento Geral do Estado (OGE) para 2021, que o Governo quer aprovar até outubro.

Rui Gomes destaca desse pacote de medidas seis “prioritárias”, incluindo a “estratégia de substituição de importações”, incentivando a produção nacional “de certos produtos, fundamentalmente alimentícios, como o arroz, milho, feijão, soja e água”.

Outras medidas passam por promover o eco-turismo, a construção de “bairros infra-estruturados em algumas cidades para implantação de habitações de renda económica” e programas ativos de emprego, incluindo um programa público de emprego rural, em áreas trabalho-intensivas, como a construção civil (estradas rurais, fontanários, mercados, pequenas obras de recuperação de instalações públicas) ou o turismo.

O ex-ministro destacou ainda parcerias com o setor bancário, para criar melhores condições de financiamento (taxas de juros e períodos de carência) e os bancos a serem eventualmente compensados, através de concessão de benefícios fiscais apropriados.

“Transversal a todas as medidas, e foco daquela que penso ser a melhor estratégia de desenvolvimento para o nosso país, é investir mais, e a longo prazo, nas áreas sociais, incluindo a proteção social, a educação e a saúde”, afirmou.

“Não estamos a falar de implementar medidas assistencialistas, mas sim programas que invistam na autonomia das pessoas e na sua dignidade, e lhes ofereçam condições de maior resiliência em momentos de crise”, disse.

O PRE, explicou Rui Gomes, assenta na “recalibração do investimento público centrado nas pessoas”, procurando garantir o crescimento económico e o desenvolvimento sustentável” do país.

“As pessoas só podem ser a riqueza de uma nação quando tiverem oportunidades de escolha. Sem essas oportunidades de escolha dificilmente as pessoas terão acesso a muitas outras oportunidades”, afirmou.

“Não podemos querer um país verdadeiramente desenvolvido, apenas com o crescimento do PIB e da produção; é fundamental investir nas pessoas. A economia também são as pessoas”, sublinhou.

O estado do sector privado

O ex-ministro das Finanças timorense defendeu que o sector privado em Timor-Leste vive há anos uma situação financeira “preocupante” e está fortemente descapitalizado, sendo essencial melhorar as condições de acesso ao crédito.

Melhorar a capacidade de produção nacional, formalizar o sector informal e diversificar progressivamente a economia são outras acções que ajudariam o país a consolidar o seu desenvolvimento, defendeu.

O ex-governante notou que o país “ainda não tem um ‘salvador’” económico, correndo o risco de “dilapidar o seu único fundo soberano, se continuar a engordar a Administração Pública e o consumo, negligenciando a acumulação do capital humano para o tornar a verdadeira riqueza da nação”.

“Os timorenses têm de voltar a começar a trabalhar, voltar às terras abandonadas e aprender a consumir daquilo que produzem”, sustentou Rui Gomes.

Depois de vários anos de crise económica – devido a tensão política e agora à covid-19 – Rui Gomes notou que a situação do sector privado se agravou consideravelmente e que, por isso, parte do PRE aposta na sua revitalização e na estruturação das condições gerais do país.

Entre outros aspectos, referiu a falta da “prioritária” regulamentação de toda a legislação associada às terras, “um entrave ao investimento produtivo no país por parte do sector privado”, tanto nacional como externo.

É ainda essencial, defendeu, “rever profundamente” o funcionamento do sistema de Justiça, “incluindo o que diz respeito ao enquadramento legal do funcionamento das empresas, nomeadamente “transparência da ação dos serviços públicos, intolerância à corrupção, mecanismos de financiamento através do acesso ao crédito, regime de falências/insolvências e deliberação sobre disputas e arbitragem comercial”.

Um dos possíveis “estimuladores” da ação do setor privado, disse, é uma “estratégia de substituição limitada de importações”, um dos elementos previsto no PRE.

“O setor privado precisa de dotar-se de meios para lançar as suas empresas, nomeadamente dispor de alguma capacidade financeira e de gestão”, enfatizou.

“O Estado deve proporcionar os meios financeiros necessários através de parcerias com os bancos comerciais que dispõem de elevada liquidez, mas cujos recursos não são mobilizados porque os empresários não têm capacidade de apresentar os projetos e as garantias reais devidas”, frisou.

“A maioria das empresas não dispõe de contabilidade organizada e isso também constitui um entrave para o crédito bancário: o apoio nesta área, designadamente através da aprovação de um plano de contas e do apoio à formação, é fundamental”, sublinhou.

Os baixos níveis de rendimento, “em muitos casos pouco acima da simples sobrevivência” e níveis de pobreza ainda elevados, “com significativas desigualdades regionais”, são outros riscos “sérios” à economia nacional.

“Mais do que a pobreza monetária, a natureza da pobreza multidimensional e das capacidades das pessoas para aceder a bens e serviços essenciais também representa um dos principais riscos que a economia timorense enfrenta”, disse.

“Mesmo famílias que vivem acima da linha de pobreza nacional têm, muitas vezes e sobretudo no interior do país, dificuldades no acesso a bens e serviços que lhes permitam satisfazer necessidades básicas, designadamente a nível de educação, saúde, serviços sociais ou mesmo de nutrição de qualidade”, afirmou.

A pandemia da covid-19, que veio mostrar muitas das fraquezas estruturais do país, fez sobressair, considerou, a necessidade do reforço do capital humano e mostrar “quão importante é dispor de serviços públicos de qualidade e abrangentes, em particular do sistema nacional de saúde, do sistema público de educação e do sistema de proteção social”.

Um longo processo

Central a todo o debate económico em Timor-Leste – onde as receitas não-petrolíferas do Estado não cobrem nem um terço das despesas públicas recorrentes – tem estado a questão da diversificação económica.

Rui Gomes defendeu que este processo “que pode demorar duas décadas ou mais”, deve ser acelerado agora, quando o país ainda dispõe de meios financeiros.

O actual “nível de complexidade económica muito baixo (ou capacidade produtiva muito limitada), dificulta a transformação da estrutura produtiva actual” e, por isso, é necessário, primeiro, “acumular capacidades produtivas” para conseguir “elevar a produção ao nível mais complexo, por exemplo, na manufactura ou indústria transformadora mais complexas”.

Devem, nesse sentido, identificar-se alguns produtos já na estrutura produtiva atual – como café ou baunilha –, introduzindo a sua transformação para “acrescentar valor”, depois verificar se estes produtos “concordam com a realidade económica do país” e, finalmente, através do sector privado, “identificar e procurar assegurar os mercados internacionais ou regionais que dão mais-valia a esses produtos”.

“A promoção da produção nacional é um dos focos para a recuperação económica do país”, disse, sublinhando a importância da produção elevada de alimentos a preços acessíveis.

“O primeiro teste à produção nacional será brevemente feito através da implementação da medida da cesta básica, onde 50% dos bens alimentícios que compõe a cesta será oriundo da produção local”, disse.

Reduzir gradualmente a dependência do Fundo Petrolífero, garantindo a sua manutenção a longo prazo, capitalizar na “simpatia” dos países doadores e recorrer a empréstimos e emissão de dívida pública, são estratégias que devem ser adoptadas, disse.

Paralelamente devem explorar-se mais as parcerias público-privadas, emagrecer a máquina do Estado para combater o “despesismo”, criando “um Estado melhor e não um Estado maior” e apoiar a formalização do sector informal, são outras medidas.

 

25 Ago 2020

Spencer Li, coordenador do estudo “Macao Social Survey”: “Macau é ainda uma sociedade conservadora”

Pela primeira vez foi produzido um estudo abrangente sobre o panorama socioeconómico e político do território, da autoria de vários académicos da Universidade de Macau e coordenado pelo sociólogo Spencer Li. A desigualdade social e a falta de transportes públicos são os principais problemas apontados pelos residentes. Spencer Li denota que a sociedade é inclusiva em relação aos trabalhadores estrangeiros, mas consumidores de droga, portadores de HIV ou homossexuais são marginalizados

 

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efere que, com este estudo, os académicos têm maior capacidade para fazer sugestões ao Governo de políticas. De que forma concreta este estudo pode ajudar o Executivo na governação?

O foco mais importante das políticas a implementar deveria ser a resolução dos problemas que identificámos no estudo. O principal problema identificado pelos residentes prende-se com a falta de transportes públicos. Há limitações geográficas, pois Macau é um território muito pequeno, onde circulam muitos veículos. Então o melhor que devemos fazer é apostar nos transportes públicos. O Governo tem agido para reduzir o problema, mas há outros problemas que mencionamos no livro. O segundo mais grave é a desigualdade social, que sempre foi muito elevada. Isso pode levar ao descontentamento popular e conflitos sociais, especialmente entre as gerações mais novas que não veem oportunidades de crescer socialmente em algumas áreas. Outro problema mencionado é o ambiente, além do facto de Macau precisar de um desenvolvimento generalizado na área da educação. Nos últimos 10 anos, o nível de educação aumentou, mas ainda não é suficiente, especialmente se compararmos Macau com outras regiões ou cidades desenvolvidas. Macau é um território desenvolvido e muito rico, mas em termos educacionais ainda não atingimos um determinado nível. Deveríamos prestar atenção a esse aspecto. Mas há ainda outro problema, muito óbvio aliás, que é a dependência de uma única indústria, a do jogo e do turismo. Isso cria problemas para quem procura trabalho em outras áreas, sobretudo os mais jovens. Podem não conseguir trabalhar fora da indústria do jogo, do retalho ou do turismo, sobretudo tendo em conta o facto que o nível de educação é cada vez maior. Os jovens querem trabalhar em áreas nas quais Macau não oferece oportunidades.

Como explica o baixo nível de educação, tendo em conta o desenvolvimento do ensino superior dos últimos anos?

Pela minha experiência como professor vejo, que a maior parte dos alunos são motivados. Muitos dos meus alunos estudam e trabalham ao mesmo tempo e não terminam os estudos pós-graduados ou mesmo as licenciaturas. E porquê? Não veem qualquer objectivo nisso. Têm interesse, mas não veem qualquer utilidade em fazer um mestrado, por exemplo. Como refere o livro, para encorajar mais as pessoas a seguir os estudos superiores é preciso recompensas e oportunidades. Se as pessoas não virem a recompensa, então ficam menos motivadas. Há uma grande desconexão entre o sistema educativo e as oportunidades. Podem estudar no Reino Unido, na Austrália ou na China, mas depois regressam e não conseguem encontrar um trabalho fora da indústria do jogo.

O problema está no mercado de trabalho.
Sim. O mercado laboral é muito limitado e virado para um só segmento. Para termos uma melhor força laboral é preciso melhorar o mercado.

Qual deveria ser o papel do Governo aqui?

Não sou economista. A situação causada pela pandemia do novo coronavírus reduziu as reservas financeiras do Governo, mas essa não é a norma. O Governo ainda tem muito dinheiro e penso que se tem esforçado em investir em novas indústrias. Mas, até agora, não temos visto grandes resultados. O Governo tem de continuar a apostar em novas indústrias para dar oportunidades à força laboral educada.

Sobre a desigualdade social. A pandemia da covid-19 pode aumentar ainda mais o fosso entre ricos e pobres?

Em primeiro lugar, perderam-se muitos empregos e rendimentos. Macau tem muitos empreendedores na área do retalho ou dos restaurantes, que vivem de pequenos negócios. Mas devido à crise, que levou ao fecho de restaurantes e lojas, muitas entraram em falência. Isso pode ser muito difícil. Os ricos continuam a ter muitas opções, pois podem investir noutras áreas, e se em Macau não funciona podem investir na China ou outros países. Na verdade, a crise causada pela pandemia trouxe mais oportunidades a bilionários, que não estão a lutar pela sobrevivência. Pelo contrário os mais pobres estão numa situação muito pior e isso é uma preocupação. Pode, de facto, aumentar a desigualdade entre ricos e pobres.

Outra das conclusões do estudo é que a maior parte dos residentes se sentem próximos da China.

De certa forma, não é uma conclusão surpreendente. No entanto, até agora tínhamos algumas percepções, mas não sabíamos se era verdade ou não. O nosso estudo é o primeiro que verdadeiramente apresenta dados que confirmam isso. Há várias explicações. A primeira é que 95 por cento dos residentes são chineses e descendem de gerações mais antigas que vieram da China. Têm esses laços. A segunda explicação surge pelo facto de estarmos ligados economicamente à China, além de que a maior parte dos turistas vêm da China. Muitas pessoas vivem em Zhuhai e trabalham em Macau. A terceira explicação surge pelo facto de Macau beneficiar de inúmeros acordos com a China, algo que nos beneficia, como os turistas chineses, e a política “um país, dois sistemas”.

Considera Macau uma sociedade inclusiva? Pergunto isto porque há muito a ideia de oposição entre residentes e não-residentes.

De uma forma geral penso que é inclusiva. Temos pessoas de origens diferentes em Macau. Descobrimos com o nosso estudo que a maior parte dos residentes são inclusivos e tolerantes. A maior parte das pessoas que entrevistamos não tem problemas em viver no mesmo território com pessoas que falam outra língua e que vêm de outro sítio. Mas também descobrimos que esse problema não se verifica tanto com determinados grupos étnicos. Há marginalização em relação a problemas sociais ou a estilos de vida diferentes. As pessoas não querem vizinhos consumidores de drogas, cerca de 50 por cento dos inquiridos responderam isso. Também não querem viver com pessoas que têm HIV ou homossexuais. Então não falamos propriamente de um sentimento contra grupos étnicos, mas sim contra estilos de vida não convencionais. Nesse sentido, Macau é ainda uma sociedade conservadora.

Se a sociedade é inclusiva, como explica posições de deputados contra trabalhadores não residentes?

O estudo não abordou esta questão, mas se pergunta a minha opinião digo-lhe que isso se deve a motivos económicos. Macau é tão pequeno que há o receio de que os trabalhos sejam roubados aos residentes pelos trabalhadores que vêm de fora. Os trabalhadores estrangeiros trabalham mais horas e ganham menos. Os residentes podem não estar dispostos a isso e penso que essa atitude se deve à economia. Eu próprio sou um trabalhador estrangeiro, embora seja um trabalhador qualificado. Não falo cantonense, só falo mandarim e inglês, mas sempre fui bem tratado. O que sinto é que a maior parte das pessoas não tem qualquer tipo de problema em lidar com trabalhadores estrangeiros, mas receiam a ameaça económica. É isso que leva à preocupação em relação aos não residentes.

Sobre a participação política da população, o estudo conclui que a maior parte está ligada a associações de cariz político. Existem mesmo participação política ou a motivação prende-se com benefícios ou contrapartidas?

Não acredito que as compensações sejam a principal motivação para a participação nas eleições. Mais de 50 por cento dos residentes inquiridos disseram fazer parte de associações, muitas delas com representantes políticos ou que têm as suas preferências políticas, incentivando o voto. Essa é a força motriz. Claro que esses residentes também têm as suas preferências políticas. Em relação às consultas públicas promovidas pelo Governo, os residentes também participam nesses processos.

Algumas destas associações são muito antigas. Continuam, assim, a ser muito importantes para a população de Macau.

Sim, muito importantes. Essa é uma das características da sociedade de Macau, a ligação das associações à comunidade. As pessoas participam na política porque são membros destas associações.

14 Ago 2020

Maria Helena de Senna Fernandes, directora dos Serviços de Turismo: “Sentimos Portugal como uma família estendida”

O HM falou com a directora dos Serviços de Turismo, antes do anúncio do regresso dos vistos de turismo para entrar em Macau, e a responsável não tem dúvida de que o preço dos testes à covid-19 vai ser determinante para viajar e vê com bons olhos uma eventual retoma do voo directo entre Macau e Portugal. Quanto a nomes de ruas, defende que a maioria é pela coexistência do passado e presente das culturas chinesa e portuguesa

 

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erante tantas incertezas, como é vivido o dia-a-dia dos Serviços de Turismo?

Entrámos agora numa nova etapa, pois não há nada que possamos fazer para alterar a situação gerada pela pandemia. Mas já estamos a ter mais movimento e podemos ir avançando com mais trabalhos. Durante os últimos meses temos vivido tempos de grande incerteza porque, a cada dia, podem surgir situações completamente diferentes do dia anterior e, por isso, é preciso grande flexibilidade e capacidade de planeamento, apesar de muitos projectos acabarem por não se concretizar. Temos de estar física e mentalmente preparados para isso, porque há muitas frustrações, mas temos de ter sempre uma mentalidade muito aberta e capacidade para aceitar diferentes situações em momentos diferentes. Apesar disso, a nossa equipa tem alcançado alguma coisa nos últimos meses. Isto, depois do desafio de ajudar os Serviços de Saúde [SS] e outros departamentos a controlar a situação da pandemia. Ultrapassada esta etapa, o dia-a-dia já é mais suave, porque temos mais experiência, os SS têm mais informação sobre o vírus e a forma como, dentro de Macau, estamos a tentar evitar qualquer contágio também contribuiu para dar mais confiança às pessoas.

O foco da DST passa agora por reanimar a actividade económica?

Ninguém pensou que iríamos passar tantos meses sem turistas ou pessoas a entrar, pois todos os clientes são locais. Por isso, estamos a passar de uma altura em que estávamos dedicados a conter o vírus para outra, em que temos que reabrir a indústria e a actividade económica, algo que tem de ser feito passo a passo. Acho que estamos no bom caminho e, apesar de não termos muitos turistas, passámos de 200 ou 300 visitantes diários para mais de cinco mil. Há mais movimento nas fronteiras e dentro da cidade, mas ainda estamos longe da recuperação económica, porque isso não depende só de nós. Agora já não é a área do turismo a fazer planos sobre quais os mercados com mais potencial. É a área da saúde que diz quais os mercados sobre os quais podemos trabalhar. Daqui para a frente vamos ainda ter grandes desafios, porque o mundo do turismo vai ser completamente diferente.

Muito se tem falado em diversificação económica. Que solicitações recebeu a DST nesse sentido?

A diversificação da economia vai ser um trabalho conjunto e nós fazemos parte disso, assim como o Instituto Cultural [IC] e o Instituto do Desporto [ID] que estão também a fazer muitos planos. Vamos trabalhar também mais estritamente com o Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento [IPIM] na área das convenções e exposições e com a Direcção dos Serviços de Economia [DSE] para desenvolver as lojas com características tradicionais de Macau, porque também podem ser atracções. Também a área da saúde, ao nível do bem-estar como está a acontecer em Hengqin como o projecto NovoTown, pode ser uma maneira de atrair pessoas. Daqui para a frente, além de dizer que Macau é uma cidade com grandes atracções turísticas, também temos de mostrar aos potenciais clientes que temos um bom histórico na contenção da pandemia, de forma a transmitir confiança para as pessoas voltarem a visitar Macau. Este vai ser um ponto muito importante até ao fim do ano e provavelmente em 2021.

Foram anunciados cortes de mais de 30 por cento no orçamento da DST para 2020. Prevê que ainda possam existir mais ajustes?

O nosso orçamento foi cortado, mas isso não quer dizer que o Governo deixou de investir. O Governo está a subsidiar directamente outras indústrias com muitos milhões, mas, na área do turismo, está a apoiar de forma indirecta através da campanha “Vamos! Macau!”, que inclui as excursões locais, e a plataforma de descontos [Macau Ready Go] que lançámos. Isto permite ajudar os que trabalham no turismo e, através do movimento dos residentes locais, ajudar outras áreas a recuperar. Não vai ser uma recuperação completa, porque o total de residentes é ainda muito menor que o número de visitantes que costumamos ter anualmente, mas, pelo menos, há movimento a recomeçar. Utilizamos também estas excursões para descobrir novas atracções de Macau, ou melhor dizendo, atracções que já existiam, mas que nunca foram utilizadas na área do turismo. Acho que as excursões que estão a ter maior adesão podem ser transformadas em produtos comerciais no futuro para os visitantes.

Admite que as excursões locais possam ser prolongadas?

A ideia inicial é que o programa dure até 30 de Setembro. Não estamos a pensar estender porque o objectivo passa pela reabertura do turismo à China. De facto, as excursões locais têm tido uma grande adesão, quase 110 mil pessoas já se inscreveram, mas, mesmo assim, é uma fracção do turismo que normalmente recebemos. Não vamos agora, de um dia para o outro, recomeçar o turismo e fazer com que tudo seja igual ao que era antes da pandemia, porque há muitos factores em jogo e o mercado tem de reabrir passo a passo. A longo prazo temos de reabrir o turismo para ajudar a indústria. As excursões locais estão de facto a ajudar muito, mas não podemos ter toda a gente de Macau, todos os dias, a viajar dentro de Macau. Toda a indústria está à espera da reabertura total do turismo. Neste momento não [ponderamos prolongar], mas é muito difícil dizer com toda certeza. Espero que não haja necessidade de prolongar as excursões locais porque seria mau sinal. Se temos de continuar, quer dizer que não há hipótese de abrir o mercado turístico, não é? Por isso, acho que temos de continuar a trabalhar para a reabertura total do turismo. Para já, o nosso trabalho vai focar-se nas províncias que têm mais facilidade de viajar para Macau, quer por via aérea ou de comboio, ou seja, a província de Fujian e Hunan. Mas também isso só vai ser possível, passo a passo, não vai ser amanhã.

Há residentes estrangeiros que se sentem esquecidos no alargamento de isenções para Guangdong. Esta situação pode ser alterada em breve?

Neste momento, é muito difícil de dizer porque, na China, quando fazem uma isenção [nas fronteiras] não é só para quem vive em Macau, mas para o país inteiro. Vai ser uma consideração bastante complicada, porque não podem apenas dizer: “os estrangeiros que estão em Macau podem viajar para a China, mas os outros estrangeiros não”. Isto seria até uma discriminação de alguns estrangeiros em relação a outros, de regiões diferentes.

Se a pandemia se prolongar por muito mais tempo, a DST planeia investir no turismo internacional mais cedo que o previsto?

Estamos sempre a investir no mercado internacional, mas este ano temos de ser objectivos nos nossos planos. Agendámos reuniões online com representantes dos EUA, Europa, Austrália e outras partes da Ásia. Nessas reuniões, recolhemos informações sobre as novas considerações dos diferentes mercados. Um exemplo muito simples: mesmo abrindo para diferentes mercados, uma grande condicionante vai ser o teste de ácido nucleico. Durante algum tempo, este vai ser, para além do passaporte, uma necessidade para viajar. No entanto, mesmo que em Macau não seja assim tão caro (120 patacas) e na China seja ainda menos (75 renminbis), em diferentes partes do mundo o custo é bastante elevado. Falámos com o nosso representante na Indonésia e na Coreia do Sul e disseram-nos que nestes países o teste custa cerca de 150 dólares americanos. Por isso, o custo dos testes vai influenciar em grande medida a vontade de viajar. Se contabilizarmos 150 dólares americanos por pessoa, uma família de quatro pessoas já vai ter de gastar 600 dólares só para os testes, ainda sem contar com os custos das viagens e alojamento. Não podemos pensar apenas que a pandemia já passou e vai ser tudo igual ao que era. Não vai ser assim, temos de ter todos estes novos factores em consideração e ver quais as regiões com maior potencial, tendo em conta estas condicionantes.

Esses alvos já estão identificados?

É bastante difícil. Mesmo que as pessoas de Hong Kong queiram viajar para Macau agora, eles têm de gastar mais de 1.000 dólares de Hong Kong. Apesar de ser um mercado muito atraente pelo preço da viagem, a partir de agora vão pensar três vezes antes de decidir onde vão viajar, porque os custos não vão ser os mesmos.

Macau esteve perto de abrir as fronteiras com Hong Kong?

Tivemos grandes esperanças no final de Junho que isso pudesse acontecer, até porque Hong Kong não tinha novos casos há muitos dias, mas infelizmente, a situação piorou de repente. Em Macau, ainda bem que temos a possibilidade de abrir as portas ao Interior da China. Hong Kong está a passar por uma fase muito difícil. Fui ver o número de entradas de visitantes em Julho e Macau recebeu 22 mil pessoas. Depois fui ver o número de visitantes para Hong Kong na mesma altura e fiquei chocada, porque tivemos mais pessoas a visitar Macau do que Hong Kong, que apenas recebeu 15 mil. Isto é impensável. Desde que entrei na DST nunca tinha visto esta situação. Se achamos que a situação em Macau é difícil, a situação de Hong Kong é ainda pior em termos de turismo.

A dependência que Macau tem do aeroporto de Hong Kong para aceder a outros mercados ficou à vista devido à pandemia?

Gostava muito que o aeroporto tivesse mais capacidade de receber voos de médio e longo curso, mas isto não depende só da nossa vontade, porque existem considerações comerciais. De facto, Macau tem esta dificuldade porque temos uma população bastante pequena e, para sustentar um voo de longo curso, este não pode depender apenas dos habitantes. No futuro, temos que pensar de que forma podemos trabalhar em conjunto com a Grande Baía para que essas pessoas venham a Macau e utilizem o nosso aeroporto para atrair voos directos de outras partes do Mundo, pois só com a população de Macau é muito difícil.

A hipótese de estabelecer um voo directo para Portugal pode ser equacionada no futuro?

Portugal é um país com o qual partilhamos sempre grandes emoções e, apesar de estar distante, estamos próximos quando falamos do coração. Além disso, temos muitos estudantes lá e muitos portugueses a trabalhar aqui, por isso, sentimos Portugal como se fosse uma família estendida. Em relação ao voo, comercialmente não é fácil, mas se fosse possível era muito bom para Macau.

Preservar o patrimómio cultural de Macau vai continuar a ser uma das prioridades da DST?

Sem dúvida nenhuma. O centro histórico de Macau é património mundial e é preciso protegê-lo. Além disso, porque há sempre aspectos positivos mesmo em contextos difíceis, acho que temos de ter sempre uma mentalidade optimista. Por causa disso, mesmo nas excursões locais, há boas ideias que podem ser aproveitadas. É necessário ter imaginação e abertura, mas o património é, e vai continuar a ser sempre, uma parte muito importante das nossas operações turísticas. Além do património físico, o património intangível também é importante, como o patuá e a ópera chinesa. Daqui falo, não só do património Ocidental, mas também a mistura que se vive dentro de Macau.

Nesse sentido, como classifica as palavras do vogal do Conselho Consultivo do IAM Chan Pou Sam que defendeu recentemente a alteração dos nomes das ruas para apagar os vestígios do passado colonial? Este tipo de pensamento pode ser prejudicial para o turismo?

Os visitantes da China querem vir a Macau porque Macau é diferente das outras províncias do Interior. Esta diferença existe porque temos uma grande tradição e uma longa história de convivência com diferentes culturas. Este é um aspecto que temos de continuar a defender. Em 2020 celebramos os 15 anos da entrada do centro histórico de Macau na lista do Património Mundial e esta possibilidade existe por causa da nossa mistura de culturas. Quando nos candidatámos a “Cidade Criativa de Gastronomia”, também conseguimos convencer a UNESCO que merecíamos ser incluídos na lista, devido ao resultado da convivência entre as diferentes culturas. Temos sempre que defender a coexistência das diferentes culturas. Claro que há quem tenha ideias diferentes, mas acho que a maioria das pessoas de Macau dá muito valor à coexistência das culturas Ocidental e Oriental, sobretudo da cultura chinesa e portuguesa.

Dado o contexto, o podemos esperar da edição deste ano do Festival Internacional de Cinema de Macau?

O festival vai acontecer, mas o grande problema é que as pessoas não podem vir cá. Uma parte será virtual e outra presencial, onde, mesmo assim, teremos de reduzir o número de pessoas na assistência por causa das novas restrições de saúde. O Mike [Goodridge] e a equipa de programação já contactaram responsáveis por vários filmes que queremos exibir e estamos no bom caminho. Infelizmente, ainda não sabemos se vamos ter filmes locais, pois tem sido um ano muito difícil para todas as produções a nível mundial, mas temos esperança que venha a acontecer. Estamos a trabalhar num evento híbrido, em que o público poderá ver uma parte nos cinemas e outra, talvez até de forma mais confortável, em casa. Ainda persistem muitas incertezas, mas confiamos que vamos conseguir fazer um festival, apesar de diferente, com bons filmes e qualidade para mostrar à audiência local.

De que forma o orçamento do IFFAM vai ser afectado este ano?

O orçamento não vai ser igual ao dos anos anteriores, mas ainda não conseguimos dizer porque vamos lançar concursos em breve, tendo em conta diferentes modelos. Estamos a estudar, em termos de online o que é preciso fazer e investir num sistema de Geoblock, ou seja restringir o visionamento dos filmes em algumas partes do mundo. Estamos também a analisar as obras que podem ser exibidas online e por isso essa triagem está a ser feita para decidir quais os filmes que vão ser exibidas em sala e as que vão ser transmitidas online. Mesmo online vai existir uma limitação em termos dos “lugares” que podem ser vendidos.

Que participação a Cinemateca vai ter no festival deste ano?

A utilização da Cinemateca durante o festival já foi aceite pelo IC. Estamos a falar de assistências muito reduzidas porque, infelizmente, dos 70 lugares disponíveis só poderão ser vendidos cerca de 30. Vai ser difícil para quem quer ver os filmes, mas continuamos a achar que a Cinemateca é um bom local. No futuro, estamos a planear uma sala de exibição de filmes dentro do novo museu do Grande Prémio. No entanto, não vai estar pronta este ano.

Como tem sido a relação com a nova gestão da Cinemateca, que tem levantado tanta polémica?

Acredito que não haja grandes dificuldades, mas, até lá, não posso dizer com certeza porque ainda não fizemos qualquer reunião técnica. Para já, as discussões têm sido apenas entre a DST e o IC e ainda não entrámos em pormenores com a companhia que está a gerir o espaço. Acho que isto vai acontecer apenas quando tivermos mais informações sobre os filmes que vamos passar. Até lá, julgo que não deve haver grandes transtornos. Conseguimos sempre arranjar uma solução e penso que desta vez vai acontecer o mesmo.

13 Ago 2020

Turismo | Surto em Hong Kong obriga a viragem para Guangdong, diz Glenn Mccartney

O académico da Universidade de Macau defende que o terceiro surto de covid-19 em Hong Kong vai obrigar as autoridades de Macau a virarem-se para a província de Guangdong. O especialista em turismo acredita que os vistos individuais podem começar a ser emitidos dentro de semanas e defende que a aposta no turismo doméstico não é viável a longo prazo

 

[dropcap]A[/dropcap] terceira vaga de casos de infecção em Hong Kong, que permanece longe de estar controlada, obriga as autoridades de Macau a olharem para a província de Guangdong como a tábua de salvação dos sectores do jogo e do turismo. A ideia é defendida por Glenn Mccartney, professor da Universidade de Macau (UM) e especialista na área do turismo, que fala hoje numa conferência promovida pela Câmara de Comércio Britânica em Macau.

“Claro que se a recuperação de Hong Kong e Macau tivesse ocorrido ao mesmo tempo seria o ideal, mas isso não vai acontecer porque Hong Kong está a enfrentar muitos casos de infecções. Macau olha agora para Guangdong como um corredor de viagens. E penso que tem de ir por aí, porque não pode continuar sempre à espera”, defendeu ao HM.

Gleen Mccartney indica que as autoridades de Guangdong têm vindo a implementar vários códigos de saúde que garantem a segurança de quem viaja, além de que a situação sócio-económica tem voltado ao normal. “Não olho para Hong Kong como parte dessa recuperação, mas olho para esse corredor com Guangdong”, disse.

Nas próximas semanas, o académico acredita que os vistos individuais podem voltar a ser emitidos, apenas para a província de Guangdong. “Um dos cenários possíveis será o levantamento da atribuição dos vistos individuais nas próximas semanas. Este é um primeiro passo e depois de Guangdong podemos olhar para outras províncias e cidades da China, mas vamos aprendendo à medida que as semanas vão avançando”, explicou.

Programa insuficiente

O académico da UM adiantou ainda que o programa “Vamos! Macau!”, que visa levar os residentes a conhecer o território através de percursos turísticos subsidiados, não tem viabilidade económica a longo prazo.

“Macau não tem o mesmo tamanho de um país e não pode basear-se por muito mais tempo no turismo doméstico. A economia interna não aguenta como a de um país que tem turismo de massas a nível interno. Macau está a subsidiar o turismo doméstico. A curto prazo é bom, mas a longo termo não é a solução, temos de abrir as nossas fronteiras para trazer dinheiro à economia.”

Ainda assim, Glenn Mccartney diz tratar-se de uma “boa medida” pois mantém os funcionários das concessionárias a trabalhar. “Essa é uma vantagem, as pessoas estão preparadas para o regresso do turismo e penso que essa é uma boa abordagem por parte do Governo.” Além disso, a população “pode compreender a importância desta indústria chave” e saber mais sobre o património de Macau, remata.

O académico acredita que a pandemia pode também levar o Governo a fazer algo que faltou nos últimos anos: planeamento. “No passado não tem havido um grande planeamento em termos de previsões e cenários e esse é um bom exercício. A pandemia pode acelerar esse processo”, rematou.

5 Ago 2020

AULP | Orlando da Mata diz que reconhecimento de cursos com Portugal “abre portas”

O reconhecimento automático dos cursos de universidades portuguesas em Macau “abre portas” e é um passo para a internacionalização do ensino superior, entende Orlando da Mata, presidente da Associação de Universidades de Língua Portuguesa. No próximo ano, Macau acolhe o 30º encontro da associação, adiado devido à pandemia da covid-19

 

[dropcap]O[/dropcap]rlando da Mata, presidente da Associação de Universidades de Língua Portuguesa (AULP) e reitor da Universidade Mandume Ya Ndemufayo, de Angola, disse ao HM que o reconhecimento automático dos cursos de universidades portuguesas em Macau, e vice-versa, “abre portas” e é uma medida positiva para a crescente internacionalização.

“O reconhecimento facilita e desperta o interesse dos estudantes. Abre portas. É muito bom que isso aconteça”, disse o responsável em entrevista ao HM. Para Orlando da Mata, “temos de abraçar esse desafio [de internacionalização]”, tendo em conta que existem cerca de 300 milhões de falantes de português no mundo.

“O português tem um grande potencial de expansão pelo mundo. A internacionalização do ensino superior nos países de língua portuguesa é um grande desafio que temos pela frente e o reconhecimento dos estudos é fundamental”, acrescentou.

Encontro em Macau

Orlando da Mata está em final de mandato e, no próximo ano, será eleita em Macau a nova direcção da AULP. O território acolhe o 30º encontro da associação, adiado devido à pandemia. “Vai coincidir com os 40 anos da Universidade de Macau (UM). Vamos fazer uma avaliação do trabalho realizado nos últimos anos”, adiantou o reitor, sem querer adiantar mais detalhes sobre o trabalho feito até aqui à frente da direcção da AULP.

Quanto ao Programa de Mobilidade da AULP, que funciona com todas as universidades dos países de língua portuguesa e de Macau aderentes, está temporariamente suspenso devido à pandemia. “Neste momento, estão envolvidas 66 das 140 universidades que fazem parte da AULP e temos cerca de 132 alunos seleccionados. Infelizmente, devido à pandemia da covid-19 está parcialmente suspenso, mas assim que as condições estiverem reunidas iremos dar sequência ao programa.”

Orlando da Mata destaca o trabalho feito por Rui Martins, vice-reitor da UM, “um grande dinamizador”. Além da participação da UM e do Instituto Politécnico de Macau na AULP, também a Universidade de São José “já manifestou interesse em aderir à AULP”. O reitor queria, no entanto, acolher na AULP mais instituições do território. “Seria muitíssimo interessante que outras instituições de ensino superior de Macau integrassem a AULP. O interesse é todo nosso”, frisou.

Relativamente ao desenvolvimento do ensino superior em Macau, “tem estado a desenvolver-se e a afirmar-se com qualidade na região”, disse Orlando da Mata, dando destaque à UM, que é hoje “uma universidade de referência, não só pela qualidade do ensino, mas também da investigação científica”.

Em tempos de covid-19 impõe-se a necessidade de pensar o ensino superior fora da caixa, com uma maior aposta no online, defendeu. “Um dos grandes desafios é a adaptação e re-invenção. Se antes estávamos mais focados no ensino presencial hoje temos de utilizar outras formas para complementar o que não é possível fazer neste momento com o ensino presencial. As universidades têm de ser inovadoras e criativas para darmos resposta a esta pandemia”, rematou.

4 Ago 2020

Diplomacia | Embaixador diz que relação entre Portugal e China vai além de Macau

Numa videoconferência promovida pela Câmara de Comércio Luso-Chinesa, o embaixador português em Pequim, José Augusto Duarte, exortou os empresários portugueses a não ficarem presos ao passado no que à relação com a China diz respeito. O responsável defendeu a criação de mais voos entre Portugal e a China e a aposta nos turistas chineses

 

[dropcap]O[/dropcap] embaixador de Portugal em Pequim, José Augusto Duarte, afirmou na sexta-feira que a relação bilateral entre Portugal e a China vai além de Macau e que os empresários portugueses não devem ficar na sombra dos antepassados.

“O papel de Macau tem uma ligação incontornável na relação com a China. É um caso de estudo daquilo que deve ser o diálogo entre as nações”, disse o embaixador, numa videoconferência organizada pela Câmara de Comércio e Indústria Luso-Chinesa (CCILC), lembrando que “a relação com a China é mais vasta do que Macau e não pode ser um livro de nostalgia”.

O diplomata, que falava a uma centena de empresários e gestores sobre “As Relações Bilaterais e a Nova Fase da Parceria Estratégica”, evento que se realizou no âmbito do ciclo “Connecting China to Portugal”, organizado pela CCILCA, desafiou assim os empresários a construírem “um novo legado e um novo futuro”.

José Augusto Duarte admitiu, no entanto, que no quadro do Fórum Macau há actualmente o desafio de “aliviar as barreiras alfandegárias” nas exportações que passam por Macau para a China continental. Os países de língua oficial portuguesa, ao exportarem para a China Continental através de Macau, enfrentam uma dupla tributação e novas barreiras alfandegárias.

“Temos aqui um desafio e seria bom aliviar as barreiras alfandegárias”, prosseguiu, realçando o papel do Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa (Macau).

“Parceiro incontornável”

O embaixador disse ainda que a China é “um parceiro incontornável em todo o mundo” e que a “aposta e compreensão deste mercado” pelos empresários portugueses “é fundamental”.

Portugal “tem de estar unido e ter uma enorme parceria estratégica entre o Estado e os privados. É uma responsabilidade colectiva”, realçou, desafiando os empresários a exportarem para a China, lembrando que os termos de troca das exportações pelas importações são desfavoráveis a Portugal.

Mesmo assim, referiu que no primeiro trimestre deste ano, o peso das exportações de bens agroalimentares nacionais no total das exportações para a China aumentou 255 por cento face ao período homólogo de 2019.

As empresas portuguesas já se encontram habilitadas a exportar carne de porco, produtos aquáticos, laticínios, uvas de mesa, bens agroalimentares de baixo risco como o azeite, vinho ou mel.

Adiantou que diversos processos negociais estão em curso entre Portugal e a China para permitir a exportação, nomeadamente de carne bovina, aves, ovinos e de peras e citrinos.

“Há que não ter receio e sofrer de timidez para irmos para este mercado [de 1,4 biliões de consumidores]. Há que superar as dificuldades e é desejável e saudável para uma relação equilibrada”, realçou José Augusto Duarte.

A resposta da China face à pandemia da covid-19 torna este país um dos que “mais rapidamente recuperarão”, pelo que se trata de “uma aposta certa”, pois será o que “terá o maior crescimento na próxima década”. Além disso, o embaixador considerou que Portugal tem capacidade para absorver mais capital chinês, investimento que “cumpre as regras de mercado e respeita a leis portuguesas”.

Voos unidos

José Augusto Duarte defendeu ainda a importância das negociações do acordo bilateral de investimento entre a China e a União Europeia (UE), considerando que deveriam ficar concluídas ainda durante a presidência alemã da UE, que antecede a portuguesa. “Era um passo muito importante devido ao desgaste que a pandemia tem causado e iria estimular muito a produtividade e as trocas comerciais”, disse o diplomata, lembrando também que o transporte aéreo regular, de passageiros e mercadorias, é da “maior importância” na conectividade com a China.

Neste domínio, disse que o “ideal era haver todos os dias” ligações aéreas entre os dois países e defendeu que Portugal deve apostar nos turistas chineses, pois são “ordeiros e não conflituosos, gostam de consumir e pertencem ao segmento de turismo de alta gama”.

3 Ago 2020