Ana Saldanha, autora de “Literatura, Arte e Sociedade em Portugal”: “Há falta de perspectiva para compreender o passado”

O novo livro de Ana Saldanha, apresentado hoje na Fundação Rui Cunha, dá a conhecer as manifestações literárias e artísticas no Portugal contemporâneo entre o Golpe de Estado de 1926, a instauração do fascismo e a Revolução do 25 de Abril de 1974. A docente do Instituto Politécnico de Macau analisa movimentos e autores que não se dissociam do seu tempo

 

Como surgiu a possibilidade de editar este livro, que traça um olhar transversal à sociedade portuguesa entre 1926 e 1974?

Trabalho com literatura portuguesa desde o meu doutoramento e tenho trabalhado bastante com a literatura produzida durante o fascismo, nomeadamente a literatura neo-realista. Tenho trabalhado também com a literatura do pós-25 de Abril das décadas de 70 e 80. Tenho feito também trabalho com a arte muralista, com a literatura feita por autoras mulheres, e este livro partiu da ideia de juntar tudo isto e fazer uma obra que se dedicasse ao período do fascismo e do 25 de Abril de um ponto de vista da sociologia da literatura.

Temos então um olhar transversal sobre tudo o que se fez na área da cultura neste período de tempo.

Não considero que a literatura se deva desligar dos movimentos da sociedade e de outras manifestações artísticas. Temos de ter uma visão de conjunto para compreender a literatura, arte e aspectos socio-políticos. É nesse sentido que construo este livro: compreender a literatura não apenas fechada no seu próprio universo mas algo que comunica com todos os outros aspectos da sociedade, com a canção, a arte e o cinema.

Entre 1926 e 1974 acontece muita coisa na sociedade portuguesa. Olhando para as representações artísticas de 1926, consegue fazer uma comparação face a períodos posteriores relativamente ao papel que tiveram?

A questão será mais a inversa, pois a partir do golpe militar de 1926 instala-se uma nova situação socio-política em Portugal. Portanto, todas as manifestações artísticas das décadas de 20 e de 30 não se podem desligar desse contexto, e não é por acaso que o neo-realismo vai depois surgir na década de 40. Não considero que possamos ler as manifestações artísticas sem ter uma compreensão prévia do contexto socio-histórico. Temos de fazer uma leitura dialéctica.

Foram-se construindo passos para, em 1974, dar lugar a outras manifestações, como a música de intervenção no período do 25 de Abril. Em 1926 não haveria outro tipo de expressões ao nível da música, haveria outras.

Sim. Ainda que a música de intervenção surja de uma certa linha contestatária que já vinha de antes do 25 de Abril. Mas mais uma vez não a podemos compreender sem compreender também o contexto socio-histórico. Em relação à literatura, como diz Eduardo Lourenço, nos anos que imediatamente se seguiram ao 25 de Abril, de facto não há uma grande produção literária. Esta só surge no final da década de 70. Mas durante esse período em que não há uma grande produção literária temos, por exemplo, a arte que se manifesta de uma outra forma, que sai das galerias e que vai para as ruas, tal como a música. E a música de intervenção vem um pouco no sentido da arte, porque deixa de estar escondida. A música torna-se na palavra do povo português, ela é apropriada pelo povo. De uma certa forma é uma manifestação artística, em que há um autor, quem a cante, mas há também um movimento colectivo em volta disto, inclusivamente com a arte muralista. Esta interligação entre o colectivo e o individual também é bastante interessante como fenómeno socio-estético depois do 25 de Abril. Naturalmente que a literatura, depois de um período de censura, com o 25 de Abril e a ideia de construção de uma sociedade diferente, seguiu depois os seus caminhos próprios, ainda que nas décadas de 70 e 80 esteja extremamente ligada ao passado recente português.

A arte muralista foi algo muito específico, de um certo período de tempo. Depois da Revolução deixou de se pintar murais, pelo menos com a mesma força.

Há aqui uma questão do facto de a arte ser apenas acessível a uma elite. E antes do 25 de Abril para se ver arte era necessário ir a uma galeria e a um museu. O 25 de Abril veio trazer a possibilidade de todos terem acesso à arte. Esse processo foi muito importante no Brasil, mas ao contrário. Durante a Ditadura Militar traz-se a arte para a rua como forma de consciencialização através de outras expressões artísticas, como a impressão em notas de um real da questão “Quem matou Herzog” [referência ao assassinato do jornalista Vladimir Herzog em 1975]. Em Portugal é assim também, com ligação a um terceiro elemento, bastante peculiar, que é o facto de podermos participar nessa construção da obra de arte. Muitos dos murais foram pintados pelas pessoas que eram orientadas por alguém. Todos podiam participar na construção de uma obra de arte. Havia uma espécie de reciprocidade e isso tem a ver com o contexto revolucionário.

Dedica também um capítulo às antigas colónias neste livro. Macau, ainda que não fosse uma colónia, olhava com algum distanciamento sobre estas manifestações que iam acontecendo na então metrópole?

Não me debruço sobre Macau e não faço essa ligação. O contexto das colónias interessa aqui para compreender a Guerra Colonial, a razão da formação do MFA [Movimento das Forças Armadas], a ligação que tem depois com todo o processo de guerra. Interessa-me como um contexto sócio-histórico e não tanto como produção. Não falo da produção literária que é feita a partir da situação colonial, o que me interessa é, na literatura produzida depois do 25 de Abril, a forma como a situação colonial e a guerra é tratada pelos autores.

E como foi tratada?

Depende. O que acontece é que a guerra colonial passa a ser parte da matéria literária. Depois do 25 de Abril foram anos extremamente traumáticos e passou a haver uma literatura que, reflectindo sobre o passado recente português e a censura, tinha também de reflectir sobre este processo. Este período, de tão traumático que foi, era difícil que não entrasse na matéria literária. Temos o António Lobo Antunes, o escritor onde talvez a guerra colonial esteja mais presente na sua literatura. Dificilmente poderíamos compreender a literatura do Lobo Antunes sem compreender o que foi a guerra colonial, ainda que a vivesse como médico. Mas a guerra colonial surge também em obras de autores como Manuel Alegre, Olga Gonçalves ou Mário de Carvalho.

Depois do 25 de Abril surgem autores como José Saramago, Prémio Nobel, Fernando Namora, José Cardoso Pires. Como caracteriza esta literatura portuguesa do pós-25 de Abril, já com algum distanciamento?

Mesmo que a matéria revolucionária e os acontecimentos históricos pareçam estar ausentes, é sempre uma literatura que não pode ser entendida sem que se faça uma compreensão do 25 de Abril. É esta a ideia que defendo neste livro. Estas obras só surgem porque houve o 25 de Abril, e é como se a matéria socio-histórica estivesse sempre presente. Há uma geração de autores que fazem a reflexão a partir daquilo que escrevem é feita a partir de um contexto revolucionário ou pós-revolucionário.

Esta obra dedica-se ao público no geral, mas os alunos que a folhearem vão ter, no fundo, acesso a uma compilação de dados sobre o Portugal contemporâneo.

Sim. Não há nenhuma obra deste tipo em Macau e, para mais, com esta perspectiva sociológica da literatura. Havendo uma ausência de produção do ponto de vista teórico, mas também nesta tentativa de conjugação da matéria literária com o contexto social e histórico, e para mais com este contexto que é tão importante, como é o da Revolução de Abril, e todo o período do fascismo português, achei que seria necessário ocupar este espaço. Além disso, aqui no IPM há várias disciplinas ligadas à literatura portuguesa onde penso que este livro se pode inserir. Há também uma falta de perspectiva, quer historiográfica quer social e estética que permita reunir e compreender o passado recente português, interligando todos os movimentos da vida e da história.

3 Jun 2021

Carlos Piteira, investigador da Universidade de Lisboa: “A história de Macau é a história dos macaenses”

A comunidade macaense vive hoje a “ameaça” crescente de absorção no contexto das novas políticas chinesas, mas há um caminho possível: aceitar a reformulação da identidade, que chineses naturais de Macau se possam afirmar como macaenses, e apostar no trabalho da diáspora. Carlos Piteira, investigador, fala hoje destes temas numa palestra online promovida pelo Centro Cultural e Científico de Macau

 

A comunidade macaense ganhou com a distinção de Macau como cidade criativa da gastronomia pela UNESCO?

Lateralmente, porque essa designação é dada à gastronomia de Macau.

Que são várias gastronomias.

Exacto. A gastronomia macaense aparece quase pendurada, e diria que quase forçada, de forma a ser incluída. Não é o motivo de ser dessa atribuição. Macau foi consagrada como cidade criativa [da gastronomia] no sentido da oferta turística, e de facto tem uma gastronomia bastante diversificada, específica do sul da China, e até com particularidades em relação a Hong Kong. Macau oferece esse produto ao turismo e dedica parte dos seus menus à gastronomia macaense. A comunidade retira alguma vantagem disso porque também se fala da sua gastronomia.

Fala hoje sobre a identidade macaense. A gastronomia é um traço identitário, tal como o patuá, como referiu.

Esses são dois traços identitários quase desenterrados da história e fazem parte da construção da identidade macaense no que eu chamo de reforço. São criados em núcleo familiar e duas coisas construídas no processo histórico da identidade. Mas actualmente, quando a identidade macaense tem esta situação de quase sobrevivência, qual é a estratégia para o seu reforço? É desenterrar traços identitários e tentar torná-los públicos. Deixam de estar num ambiente familiar e há esta necessidade de reforçar e projectar a identidade macaense com os elementos da histórica. Estes dois elementos passam no período pós-transição a serem elementos de projecção pública.

Há então diferenças temporais, entre o antes e depois de 1999.

Há que reconhecer o processo histórico da comunidade macaense em Macau desde a sua génese ao que se pode chamar de consolidação, e depois a ampliação desse grupo étnico com projecção na diáspora. Hoje podemos dizer que a comunidade macaense tem um núcleo embrionário em Macau e também pela forma como se vai afirmando nas casas de Macau na diáspora. Temos a manutenção viva do que é a possibilidade de afirmar a identidade. Mas ela passa pelos modos de pensar e sentir de um macaense em relação à sua forma de estar. E aqui entram várias abordagens possíveis.

Quando fala de desenterrar a história, a identidade macaense é ameaçada há muitos anos. Não era necessário ter outras estratégias, ou não é possível?

Quando digo que a identidade está ameaçada, é neste contexto actual do pós-transição. Até 1999 ela nunca esteve ameaçada, mas teve afirmações diferentes ao longo do processo histórico. A história de Macau é a história dos macaenses. Com o processo de transição ela é ameaçada, mas está lá. Havia concepções de que provavelmente a comunidade macaense ou a portuguesa, ou outros grupos em Macau, iriam desaparecer. Isso não sucedeu e ainda bem, mas entra-se num processo de ameaça porque [a comunidade] perde um dos factores fundamentais, que é ser o elemento de articulação entre portugueses e chineses. E aqui começa o dilema do macaense.

Com a Grande Baía e a integração regional, esse perigo de desaparecimento é maior.

Macau vai tendo alguma singularidade específica por ser um território que conjuga particularidades que têm a ver com a presença portuguesa, não só pela herança como pela manutenção. Por isso é que ainda se festeja o festival da Lusofonia e tem os jornais portugueses, por exemplo. Mas a partir do momento em que os desígnios de Macau são desviados para os desígnios da China… e não começou com a Grande Baía, mas sim com o Pan Delta 9+2, que dá depois origem à estratégia Uma Faixa, Uma Rota. Isto assenta numa estratégia de globalização por parte da China, naquilo que é a nova ordem económica mundial, onde o país se posiciona muito bem. Mas dentro de Uma Faixa, Uma Rota, recupera-se o conceito da Grande Baía e depois integra-se o Fórum Macau. O desvio que se está a fazer, da importância de Macau passar a ser um elemento destes projectos, é que vai deslocar a importância da presença macaense e portuguesa. [Estas presenças] diluem-se nesta lógica e correm o risco de não serem um elemento preponderante. As duas comunidades que realçam a distinção de Macau como elemento único, ao serem absorvidas… ainda estamos no início, mas o caminho é esse, não tenho grandes dúvidas. E aqui a ameaça é enorme. Ainda é maior do que no período pós-transição.

Ainda assim, acha que as autoridades chinesas e de Macau dão importância à identidade macaense?

Actualmente, já tenho dúvidas. As coisas precipitaram-se com as questões de Hong Kong. É preciso lermos as dinâmicas. Esses fenómenos de Hong Kong precipitaram a intervenção por parte da China no modus operandi naquilo que é a intervenção em Um País, Dois Sistemas, que está desvirtuada da sua concepção ocidental e europeia para uma concepção chinesa e oriental. Falamos da mesma coisa, mas com interpretações diferentes. Os acontecimentos de Hong Kong precipitaram um conjunto de medidas que, nesta altura, são mais centralizados e que têm um efeito de contágio em Macau. Resvalam de forma muito mais rápida em Macau para esta situação de ‘anulação’ daquela que era a sua identidade natural. Mas esse é um processo histórico que levará o seu tempo. No entanto, esta questão acelerou em dois anos o que levaria 10 anos, e que permitiria que houvesse uma nova vaga de portugueses e macaenses que pudessem reafirmar outra forma de estar.

E agora já não é possível?

É menos possível. Esta era a consequência natural: apostar numa renovação geracional, quer da presença portuguesa quer dos macaenses. A minha posição é muito crítica aquilo que é o Estado português e do que poderia ter feito, porque nunca assumiu uma estratégia a médio prazo para Macau. Levou sempre pontualmente meia dúzia de eventos e não o reforço da presença portuguesa activa de forma a consolidar esse ciclo geracional que fosse mantendo a língua portuguesa, por via da Lei Básica, mas também pela via da funcionalidade do Fórum Macau.

Em termos de associativismo é possível dar resposta a este inevitável desaparecimento da identidade?

As associações têm ligações fortes à comunidade chinesa e ao poder chinês, mas essa sempre foi a sobrevivência dos macaenses, mas tinham um contraponto, que era a relação com o poder português. Nesta fase [é provável] que estes movimentos sejam sugados pela vertentes mais ligadas aos interesses da China. Esse pode ser um problema difícil de resolver, porque depois anula a razão de ser daquilo que é a dualidade do macaense, com matriz híbrida. Sempre funcionamos assim. Há aqui ainda o elemento diáspora, que é fortíssimo.

De que forma é que a diáspora pode ajudar?

Pode ser um elemento aglutinador, e diria com alguma obrigação da diáspora em Portugal. Resta-nos o sentimento de pertença a uma comunidade, o reconhecermo-nos a nós mesmos, e isso não desaparece. Os macaenses na diáspora e em Macau serão ou não capazes de manter esta lógica identitária, de não se deixarem diluir? O problema dos movimentos associativos é a rivalidade e o facto de se manterem enquanto houver subsídios. Esse é o drama que vamos ter. [Estas estruturas] podiam ser reforçadas. A Casa de Portugal poderia ter uma força enorme e não tem. Basta que se retire o subsídio. Assim como as associações macaenses que não se conseguiram autonomizar numa situação de confronto. A diáspora pode alimentar essa vertente. Da parte de Portugal, veja-se o que o Estado português tem feito. Estas entidades persistem não por vontade legítima, dos portugueses e macaenses…

Mas por vontade do Governo chinês.

Exactamente. Nunca se colocou esta questão e coloca-se agora porque há uma ameaça cada vez maior, o que leva a que possa haver uma reformulação da identidade do macaense.

Em que sentido?

Não haja dúvidas de que há um movimento de reclamação de identidades regionais, no caso de Hong Kong, Macau e em toda a zona do sul da China. As pessoas querem ser chinesas e querem reclamar a identidade. E aqui a política Uma Faixa, Uma Rota é um elemento que vai incentivar isso, porque vai criar diferenças regionais na implementação de uma estratégia económica. Macau pode-se posicionar e podemos assistir a um grupo de chineses, nascidos e criados em Macau, que se consideram macaenses.

E isso é aceite?

Tem de ser aceite. É mais um instinto de sobrevivência, ampliar este grupo. Porque dentro do grupo dos macaenses há diferenças significativas, temos gente com matriz fundamentalista, mais ligados ao passado, e outras que aceitam portugueses [como sendo macaenses] e que têm vivências diferentes. Esta abertura à reclamação de uma identidade macaense aos naturais de Macau pode dar uma revitalização e uma reformulação identitária. E aí haverá histórias diferentes, e lá estamos nós outra vez.

 

Distinção da UNESCO

A palestra online em que participa Carlos Piteira é promovida pelo Centro Cultural e Científico de Macau, dirigido por Carmen Amado Mendes, e acontece hoje a partir das 16h30, hora de Macau. O tema em análise é Macau como Cidade Criativa da Gastronomia, distinção atribuída pela UNESCO, e conta ainda com intervenções de Álvaro Rosa ou Marisa Gaspar, entre outros.

28 Mai 2021

Heitor Romana: “Macaenses têm de estar no exercício do poder”

Assessor do ex-Governador Rocha Vieira em Macau e actualmente professor catedrático no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, Heitor Romana fala do tom paternalista que a China tem assumido em relação a Hong Kong e Macau e defende que os macaenses têm de ter maior protagonismo no poder político em prol da sua sobrevivência

 

Falou recentemente, numa palestra online, da importância da cultura estratégica dos países na tomada de decisões diplomáticas. No caso da China, que análise faz?

A cultura estratégica da China tem como elemento de referência o conceito de tempo histórico, civilizacional, estratégico. Quando os líderes chineses, o Partido Comunista Chinês (PCC), nas diferentes gerações, se referem ao papel da China na ordem internacional, no equilíbrio do sistema internacional, vão sempre apoiar a posição do país no mundo, e até a sua política interna e externa, em aspectos de base ideológica. A propósito do conceito “o sonho chinês”, de Xi Jinping, é trabalhado num quadro onde estão sempre presentes as ideias de história e tradição e valores culturais. Outro aspecto da cultura estratégica associado ao tempo é a ideia de flexibilidade, dualidade, equilíbrio. Podemos dizer que há uma certa continuidade em ideias chave no pensamento chinês que incorpora os princípios do equilíbrio, harmonia.

A China tem vindo a afirmar que não quer enveredar pela via bélica.

Exactamente. A China proclama que quer harmonia para o mundo. Mas há uma dualidade, as contradições que são a marca do comportamento estratégico chinês, o Ying e o Yiang. É o equilíbrio dessa contradição que sustenta essa harmonia. A forma como a China olha para a ordem internacional também é assim. Vejamos, aliás, um conceito interessante que não é de Mao Tse-tung, mas que ele desenvolveu, que é o das contradições antagónicas e não antagónicas. Foi Lenine que avançou com isso, na ordem internacional e na luta de classes. A China pratica isso no desenvolvimento da sua política externa. As contradições antagónicas, que separam de forma incontornável os actores, e aí poderemos dizer que há uma contradição antagónica entre a China e os EUA.

Refere-se ao sistema político.

Por exemplo, mas não só. Também pela percepção que cada país tem do que deve ser a ordem internacional. A China rejeita liminarmente a hegemonia dos EUA no mundo. Hoje a China continua a assumir o papel de líder do [eixo] Sul-Sul, dos [países] que se opõem à hegemonia dos EUA ou dos blocos que se venham a constituir.

Até que ponto essa cultura estratégica se verifica na relação da China com as regiões administrativas especiais?

Há um aspecto central da cultura chinesa que é a natureza paternalista do exercício do poder ao longo da história, e também de indulgência. Primeiro por parte do Imperador e depois pelo Partido. É a ideia de que o indivíduo deixado a si próprio tem dificuldades em sobreviver, e a comunidade também. Historicamente e culturalmente Macau e Hong Kong são chineses, têm a influência do sul da China. E há uma perspectiva paternalista que, aliás, é muito visível quando Hong Kong e Macau voltam à soberania chinesa, à Pátria-mãe. Esta perspectiva paternalista do poder aplica-se perfeitamente a Macau e a Hong Kong.

Como?

Essa visão paternalista observa-se sobretudo em Macau, porque Hong Kong e Macau não são a mesma coisa. A ideia de garantir, controlar, disciplinar, monitorizar, para que tudo corra bem. Mas este discurso foi aplicado também em Portugal durante quase 50 anos, de que a sociedade deixada sozinha resultava num caos. É esse o medo da China, o caos.

Também em relação a Taiwan se verifica esse paternalismo?

É algo potencialmente belicista. O caso de Taiwan tem outros contornos, também há o regresso à Pátria-mãe. Taiwan é o filho pródigo que se afastou e que mais tarde ou mais cedo vai ter de voltar ao regaço da família e será castigado se não o fizer. Mas Taiwan tem outros contornos que não se esgotam nesta leitura, nomeadamente estratégicos. Tem uma posição geoestratégica fundamental na ligação entre o mar do sul da China e a China setentrional. Está no eixo de passagem do comércio marítimo do Estreito de Malaca até ao Japão. Hong Kong e Macau também têm esse posicionamento, mas não se compara. Mas a propósito de Hong Kong e Macau, esse paternalismo político dentro da cultura estratégica faz o seu caminho.

Mas até que ponto há diferenças?

É preciso perceber, sem complexos, que Hong Kong era uma colónia de um grande poder mundial, o Reino Unido. Hong Kong é uma grande metrópole cosmopolita, um centro de negócios, porta de entrada durante muito tempo de investimento estrangeiro na China e, por isso, tem uma posição geoestratégica ímpar, que dá à sua sociedade um carácter único. Há a figura dos naturais de Hong Kong que é diferente ds macaenses, é uma espécie de cidadania. O “hongkonguer” é até um conceito político. Corresponde a uma forma de estar e de vida e, aliás, a Lei Básica estabelece que durante 50 anos se mantém mais ou menos alterada essa forma de vida. Em Macau isso existe, mas não vale a pena fazer uma comparação com Hong Kong. Mas em relação a Macau, queria fazer a justiça do seu papel na China.

Em que sentido?

Macau já não é só a capital do jogo e verdadeiramente nunca foi só isso. Há uma funcionalidade geopolítica de Macau para a China em três momentos. Macau tem uma importância para a China que não pode ser esquecida.

Que momentos são esses?

Dois deles correspondem também a interesses de Portugal. O primeiro momento foi em 1987 com a assinatura da Declaração Conjunta. Macau estava num processo de transformação, o PCC tinha aprovado as quatro modernizações e a política de abertura ao exterior, que levou à criação das Zonas Económicas Especiais. O ano de 1987 antecede o processo de abertura da China. A China aí procurou garantir a credibilidade internacional e demonstrar que era um parceiro fiável. O processo que começou em 1987 e terminou em 1999 corresponde no plano dos interesses estratégicos externos da China ao momento de afirmação do país na ordem internacional. E Macau tem um papel importante aí porque foi o seguro da estabilidade da China. Se as coisas tivessem corrido mal em Macau a imagem da China teria sido afectada.

O processo de transição de Hong Kong foi bem mais conturbado.

É verdade. Mas mesmo assim em Hong Kong acaba por correr bem. Houve questões de natureza política que envolveram o último Governador, mas não se evitou que a transição tivesse corrido com normalidade, nunca houve uma ruptura. Houve algumas posições antagónicas, também verificadas em Macau, mas a nossa diplomacia era completamente diferente, menos agressiva.

De que posições antagónicas fala em relação a Macau?

A questão da localização dos quadros e a atribuição da nacionalidade portuguesa aos chineses residentes em Macau, uma questão muito sensível.

Resolvida por Mário Soares.

Sim. Mas era um problema. A localização da justiça também era outro problema. E há um outro que é de uma enorme sensibilidade. Participei nesse processo. Chegou a estar em cima da mesa e a ser discutido a possibilidade, quer em Hong Kong quer em Macau, da implementação da pena de morte. E não está lá, na Lei Básica. Isso são vitórias muito importantes para Portugal. Não quero ser injusto para Portugal nem para Macau, mas provavelmente a China estava naquela fase em que queria garantir que era um parceiro credível na ordem internacional, com uma posição mais defensiva.

E qual a segunda funcionalidade de Macau?

Temos de 1999 até 2016 uma funcionalidade, que achava que era mais de narrativa do que foi na prática, que é quando a China cria o China-Africa Fórum e quando Macau passa a ter a funcionalidade de ligação à CPLP graças à instalação do secretariado do Fórum Macau. Essa segunda funcionalidade de Macau é de natureza geoeconómica. A terceira funcionalidade é a que Macau vive hoje, de geotecnológica.

Em que sentido?

Tem a ver com a zona da Grande Baía, que tem um espaço extraordinário de crescimento tecnológico e científico. Tem activos tecnológicos e académicos e Portugal pode entrar novamente em Macau através da cooperação científica e tecnológica. Não nos podemos esquecer que Macau, para o seu território e população, tem muitas instituições do ensino superior. Não há falta de massa crítica para se alavancar projectos de investigação científica no espaço da Grande Baía. [Macau] até pode desenvolver pequenos nichos tecnológicos que têm a ver com essa massa crítica. Apesar da dimensão de Macau, o ponto de ligação de culturas é mais do que um discurso.

Em que sentido?

Uma vez, numa palestra, lancei uma provocação: imaginar que Macau, um dia, não tinha um único falante de português. A influência portuguesa terminava nesse dia? Acho que não. Há questões relacionadas com uma forma de vivência, modelos organizacionais da Administração, a paisagem urbana que são marcantes ainda. Há a ideia de para onde irá o macaense no futuro.

Esse é o grande debate, onde fica a comunidade macaense quando a integração regional é, cada vez mais, uma realidade.

Era inevitável. Não falo da extinção do macaense porque há sempre elementos de continuidade. Mas a apresentação da variável macaense tem de ter uma componente política, não se esgota na componente identitária e cultural. Os macaenses têm de estar também no exercício do poder.

Mas não têm estado. Hoje temos apenas um secretário macaense [Raimundo do Rosário].

Pois. Mas o macaense, no sentido identitário e sociológico, só conseguirá ter presença se essa presença for política e também na máquina da Administração pública. São esses dois pilares importantes da afirmação dos macaenses no século XXI. A comunidade macaense tem de estar nas universidades e nos centros estratégicos. No período da transição a comunidade ganhou muito maior projecção do que tinha até então. Mas Portugal fez muito e a Administração portuguesa fez muitíssimo. Deixamos dois tipos de herança, incluindo infra-estruturas físicas. Podíamos ter deixado mais, podíamos, mas fizemos em pouco tempo o inimaginável. E deixamos um modelo de organização social, de matriz portuguesa, de concepção da justiça, da Administração. Há um sistema para democrático, com a composição do órgão legislativo e elementos de participação política, mas de sujeição também.

Este sistema será mantido até 2049?

É um grande desafio. A Lei Básica de Macau, tal como a de Hong Kong, são documentos emanados do poder central. Dentro do PCC existem facções e a evolução desse jogo irá depender da aplicação mais ou menos plástica da aplicação das leis básicas. O processo de transição das duas regiões teve momentos de avanços e recuos negociais que resultaram de interpretações diferentes dos Estados, mas também das disputas internas dentro do Partido sobre o que deveria ou não ser aplicado dentro de Macau e Hong Kong. É da dialéctica dessas forças [internas do Partido] que vai resultar o ajustamento à evolução da realidade política, social e económica das duas regiões administrativas especiais.

18 Mai 2021

Paulo Osório, linguista e professor catedrático: “Macau não deve ser só árvore das patacas”

Professor Catedrático de Linguística Portuguesa na Universidade da Beira Interior, Paulo Osório gostaria de realizar em Macau um estudo que faça a descrição do português falado no dia-a-dia, para que se possam identificar problemáticas e criar, a partir daí, novos materiais didácticos. Paulo Osório defende que a UM “tem tido um espaço mais reduzido de evolução” nesta área face ao IPM

 

Colabora com a Universidade de Macau (UM) e o Instituto Politécnico de Macau (IPM) ao nível dos doutoramentos, mas também se dedica ao estudo da expansão do idioma em termos históricos.

Uma das minhas áreas de investigação tem sido a história da língua portuguesa. Há um período que me tem interessado particularmente, que é do século XV em diante, a que o professor Ivo Castro chama o ciclo da expansão da língua portuguesa, quando a língua vai em busca de outros territórios graças à expansão ultramarina. Esse processo da diáspora foi longo e claro que o português ao chegar a esses espaços teve de contactar com as línguas já existentes. Isso aconteceu na Ásia, em África, no Brasil. Este tema tem-me levado a fazer várias questões para as quais tenho tentado encontrar algumas respostas, e que não são fáceis.

Tais como?

Por exemplo, conheço bem Macau. E um dos aspectos que me faz muita confusão é que, embora a implementação dos portugueses tenha sido longa, o português enquanto língua de comunicação basicamente não existe. Noutros pontos do globo o português conseguiu vingar e ter uma implantação. Mas na Ásia… quando falo em Ásia os dois locais que tenho como referência e que conheço melhor são Macau e Timor-Leste. São dois pontos onde não notámos grande implantação da língua. É quase impossível uma comunicação em língua portuguesa em Macau. Mas é interessante porque se olharmos para um território como Hong Kong, e que teve um processo de colonização, o inglês ficou bem radicado.

Na sua visão, porque é que o português não ficou como língua de comunicação em Macau, apesar de ser língua oficial?

Seria mais fácil dizer que não houve empenho por parte do poder local na língua portuguesa, mas isso também não pode ser dito assim. Temos instituições de ensino com departamentos de português. Temos ainda o IPOR que tem feito a defesa da língua portuguesa. Temos de fomentar mais políticas linguísticas de defesa da língua portuguesa, mas há um factor linguístico que não podemos escamotear, que é o facto de estarmos na presença de línguas tipologicamente muito diferentes, o português e o cantonês / mandarim. Isso faz com que seja mais difícil a própria aquisição e aprendizagem de um falante de chinês. Há depois outras questões que não são linguísticas, mas que estão envolvidas no desenvolvimento da língua, e que têm a ver com o facto de estarmos perante culturas muito diferenciadas. Em Macau é curioso… saio e noto pouca presença portuguesa. Há a calçada portuguesa no Leal Senado, temos algum património, mas não me parece que haja uma relação tão directa entre o que lá foi deixado com a existência de facto de uma permanência tão duradoura. Tivemos várias classes profissionais que propiciaram a ida da língua portuguesa para esses pontos. Uma das quais foi os missionários, que têm aqui uma importância muito grande. Talvez possam ser feitas outras medidas de investimento. Se reparar, a língua oficial da UM é o inglês, nem sequer é o mandarim ou o português. Acaba por ser, com a proximidade de Hong Kong, a língua de comunicação, como uma segunda língua, e é a única

Que projectos está a desenvolver com a UM e o IPM?

Na UM tenho colaborado com a professora Maria José Grosso ao nível de júris de provas de doutoramento, questões de aprendizagem do português como língua não materna. Com o IPM tenho colaborado com a professora Rosa Bizarro, há um ano, para dinamizar sessões ao nível do doutoramento em português. O doutoramento da IPM em português é muito interessante, abrange vertentes da linguística e da literatura, que tem bastantes alunos. Pelo que conheço, parece-me que o IPM tem feito um esforço muito grande na defesa e expansão do português e até na formação que têm dado aos professores. Um dos aspectos que gostaria de estudar no terreno era fazer um estudo descritivo do português que é falado, a fim de tentar aferir algumas diferenças linguísticas mais acentuadas nos dois sistemas de língua e depois como isso se pode operacionalizar para a sua aprendizagem. O professor de português de língua estrangeira tem de ter atenção à questão da descrição das línguas em uso, para depois poder fazer algumas pedagógico-didácticas para se aferir um maior sucesso. Ensinar português a hispano falantes não é o mesmo do que ensinar a língua a chineses ou macaenses.

Como seria feito esse estudo?

Seria um trabalho no terreno, de auscultação e gravação de reproduções de falantes que usem o português, ou que saibam um pouco da língua, de modo a que conseguisse diagnosticar quais são as principais dificuldades no uso do idioma. Para que depois possamos desenvolver a criação de materiais didácticos para o ensino do português. Tem de haver uma aposta nesse campo. Mas só quando diagnosticamos as dificuldades é que conseguimos depois elaborar os materiais para promover esse processo de aprendizagem da língua. Deveria haver muitos mais materiais didácticos, pois nem sempre são os suficientes para as necessidades.

Espera que com este doutoramento no IPM o ensino do português possa chegar a um outro nível?

Vai permitir uma formação de quadros. Esses doutorandos, muitos deles são professores, de Macau e da China, e serão as pessoas indicadas para fazer o ensino da língua portuguesa. Tem sido assim a nossa história, neste momento em Portugal estamos a fazer uma grande aposta na formação de quadros angolanos.

Que análise faz ao ensino do português em Macau, em termos gerais?

Tem sido feito um esforço, e temos também a Escola Portuguesa de Macau. Esse esforço deve ser continuado. Macau não deve ser só um espaço da árvore das patacas, mas quem vai com a missão de ensinar tem de ter isso mesmo, um espírito de missão, quase como um sacerdócio. O que não é fácil. É sempre possível fazer melhor, mas acho que o português tem sido dinamizado com algum afinco. Parece-me que talvez a UM tenha tido um espaço mais reduzido de evolução do que o IPM. O IPM tem abraçado mais para si essa função de ensino e difusão do português. Na UM tem-se optado mais pela investigação neste domínio, até porque têm o centro bilingue português-chinês, onde não tenho visto muita produção. As primeiras teses de doutoramento em português do IPM ainda não saíram, há um ano tinham um número muito significativo de alunos. A UM já tem uma tradição mais antiga ao nível da academia e tem naturalmente muitos doutoramentos.

Voltando à expansão do português na Ásia. Foi feita em diferentes fases, a diferentes ritmos?

A implantação das línguas em todos os territórios não ocorreu com a mesma intensidade. Encontrou sempre resistências locais. Mas a partir do momento da expansão ultramarina digamos que a língua se estende nos diferentes pontos do globo. Claro que com pontos intermitentes de actuação, para os quais muitas vezes não temos muitos dados. Depois foi tendo as suas evoluções. No fundo, o português que chega a esses territórios já é uma língua, segundo alguns académicos, um português moderno, do século XVI para a frente, que põe termo ao português medieval ou antigo.

No caso de Macau, quando os portugueses chegaram ao território, já era esse português que se falava.

Esse português moderno é que vai para esse espaço fora da Europa.

Depois da chegada dos portugueses podemos falar dos missionários jesuítas como os grandes dinamizadores do português em Macau.

Sim. Não apenas expandiram a língua como também contribuíram para o seu ensino, que era uma tarefa muito importante. Os missionários vão ter em vários pontos do espaço asiático uma importância muito marcante na difusão e ensino do idioma.

Há muitas comunidades de luso-descendentes onde restam estas formas de falar e que são resultado da expansão do português. As autoridades portuguesas deveriam dar mais atenção a esses crioulos?

Deveria haver mais atenção e até mais estudos. Sob o ponto de vista governamental deveria haver um maior cuidado pela descrição desse tipo de línguas e da sua preservação. Há alguns grupos que vão sendo excluídos e vamos perder o testemunho desses falares. Tratam-se de formas linguísticas muitíssimo importantes que atestaram a passagem dos povos. Seria importante uma preservação através de um estudo científico. É complexo, porque implica trabalho de campo. Não digo que se deva dar um estatuto de língua, porque isso prende-se com outras questões, mas sim dignificar essas formas de falar como uma forma importante do património imaterial das civilizações.

13 Mai 2021

Bruno Simões, empresário e presidente da associação MISE: “Este ano é para esquecer”

Empresário e presidente, desde 2019, da associação Macau Meetings, Incentives and Special Events (MISE), Bruno Simões assume que este será um ano perdido para a área das exposições e convenções e considera que o Governo deveria ter tido “coragem política” para dar apoios diferenciados por sector. O empresário defende que o sector MICE em Macau tem de começar a preparar-se para eventos online ou híbridos, com maior pró-actividade do Executivo

 

No ano passado, no início da pandemia, revelou grande receio do que viria aí para o sector das exposições e convenções. Um ano depois, que balanço faz?

Temos uma grande dicotomia, pois Macau está fechado ao mundo, à excepção para a China, que representa uma grande fatia dos eventos de empresas em Macau. Mas não representa tanto como os visitantes, cuja percentagem é quase gritante, já vai em mais de 80 por cento. Os eventos de valor acrescentado são, sobretudo, feitos por multinacionais e são encontros regionais, onde se reúnem pessoas não apenas da China, mas de vários pontos da Ásia. Esse era um grande mercado de Macau e não tem luz ao fundo do túnel. Já todos sabemos que a recuperação vai ser difícil e a abertura das fronteiras vai ser um passo demorado, tendo em conta o nível de exigência do Governo. Ainda agora com Hong Kong, o Chefe do Executivo [Ho Iat Seng] disse que se poderiam abrir as fronteiras sem quarentenas se o território estivesse 15 dias sem novos casos de covid-19. O nosso mercado de eventos corporate está à espera do próximo ano para se começar a reactivar, e não sabemos a que nível e com que restrições.

Que análise faz à actuação do Governo? Carrie Lam, Chefe do Executivo de Hong Kong, anunciou primeiro o diálogo sobre esta matéria, mas depois Macau ficou em silêncio.

Depois de tudo o que já foi dito e o que aconteceu, o sector está convencido de que este ano é para esquecer a nível de eventos internacionais, porque é impossível. Podem acontecer alguns eventos, mas nada que se compare com os níveis que tínhamos antes. Poderemos ter alguns eventos de empresas da China, e têm acontecido eventos grandes – ainda há dias houve um evento de seis mil pessoas no Sands, vieram todos da China, com o teste contra a covid-19 feito. Mas o mercado internacional vai demorar mais tempo.

O Governo anunciou apoios para as PME há cerca de um ano. Esses apoios têm sido suficientes para a área das convenções e exposições?

No nosso sector não foram suficientes e estão muitas empresas a fechar, como agências de viagens, de eventos. Apesar dos números do desemprego mostrarem que este está nos mesmos níveis, na prática isso não acontece. Há muitas pessoas que ganham menos, e, por exemplo, na nossa empresa, em termos gerais, ganhamos menos um terço dos salários. Os apoios foram iguais para todas as empresas, mas um ano depois há empresas que iriam necessitar de mais apoios do que outras.

Pode dar exemplos?

As agências de viagens, as empresas de eventos. No fundo há sectores da economia que praticamente não foram afectados. Por exemplo, eu tenho um supermercado ou uma mercearia, não fui afectado, mas recebi o mesmo apoio que uma empresa de eventos, que não tem negócio há um ano. Estas medidas universais são medíocres e não espelham bem a realidade. É preciso coragem política para tomar estas decisões por sector.

E não tem havido essa coragem.

Não, claramente, nestes apoios e em todos. Por isso é que se dá o mesmo subsídio a todos os residentes, desde o mais rico ao mais pobre. Vão pelo caminho mais fácil, que gera menos contestação.

Continua a não se falar da verdadeira crise? Os números da taxa de desemprego não espelham a realidade?

Isso tem uma explicação simples: quase todas as empresas têm trabalhadores-não-residentes (TNR) e, para isso, têm de ter um determinado número de residentes inscritos. É por isso que as empresas não despedem, porque querem manter os blue cards para quando regressar o mercado. Mas se essas pessoas trabalham ou se recebem, essa é outra conversa. Mas estão inscritas.

No caso das suas empresas, como está a situação?

Tem sido difícil lidar com a crise. Reorientámo-nos para prestar outro tipo de serviços na área do marketing, por exemplo, e fazemos eventos locais e online, essencialmente team building virtual. É uma área que tem crescido muito. O sector dos eventos em Macau tem de se adaptar à nova realidade, ter capacidade e know-how de produzir eventos online e híbridos. Assim que os eventos comecem a vir para Macau os clientes vão pedir esses serviços. Se até agora se fazia uma reunião de vendas de uma empresa, vinham 200 ou 300 pessoas de uma multinacional, hoje em dia é preciso que esse evento seja transmitido online e tenha em atenção as pessoas que não conseguiram fazer a viagem, e que se inclua o acesso dessa conferência a mais pessoas. E o sector não tem essa experiência, não se está a fazer formação suficiente nem a investir o suficiente nesta área. Deveria haver uma aposta nesse sentido por parte do sector, com algum apoio do Governo. Nas nossas empresas vamos fazer uma aposta nos eventos virtuais, recorrendo às novas tecnologias de realização de eventos híbridos. Essa é a grande aposta que o Governo deveria fazer agora, em parceria com o IPIM [Instituto de Promoção do Comércio e Investimento de Macau] e Direcção dos Serviços de Turismo. O sector deveria estar a ser ensinado e preparado para essa evolução.

O IPIM não está a ser pró-activo?

Não está. O IPIM faz as suas promoções para a China, mas esse é um mercado que está a abrir. O IPIM tem de ensinar o sector a evoluir.

Houve um ano para o sector olhar para si mesmo e isso ainda não aconteceu.

Não aconteceu. As empresas estão à espera do que vem aí e penso que têm de ser pró-activas, têm de estar preparadas. Essa adaptação ainda vai demorar e vamos correr o risco de, mais uma vez, as empresas de Hong Kong virem para Macau fazer eventos e terem pessoas com mais experiência e know-how. Nos últimos anos as empresas maiores e com mais experiência é que vêm a Macau fazer os eventos, porque as empresas locais não têm essa capacidade para o fazer.

Antes da pandemia o sector já tinha alguns constrangimentos. Agravaram-se?

Também sofremos bastante concorrência das empresas da China, que vêm atrás clientes que fazem aqui os eventos. Mas essa concorrência é boa. O sector está a sofrer com dois grandes factores: a apetência que os organizadores de eventos têm por Macau, e a taxa de câmbio. Continuamos com a pataca indexada ao dólar americano e Macau não está relativamente mais caro do que outros destinos. Mas o território não tem sabido evoluir a nível das infra-estruturas e das atracções, tem sido um desenvolvimento lento. As infra-estruturas do aeroporto, dos terminais marítimos, dos transportes, e a nível de atracções estamos muito parados, há destinos mais dinâmicos do que nós. Fazer eventos fora dos hotéis, por exemplo, é muito difícil. Isso faz com que sejamos menos competitivos.

Mas qual é a vantagem competitiva de Macau?

A abundância de infra-estruturas para reuniões. Temos uma capacidade muito grande, a nível da Ásia, para eventos e reuniões. Mas não chega, porque hotéis grandes e bons há em todo o mundo. Os visitantes querem bares de rua, restaurantes, e o Governo de Macau não está a cuidar desses factores. Na experiência à chegada os turistas são relativamente descurados, isto se compararmos com Hong Kong. O Governo deveria prestar atenção ao nível de qualidade dos serviços, e depois apostar nos segmentos mais estratégicos, como fazer um evento fora dos hotéis, na zona do Lago Nam Van ou nas Casas-museu da Taipa, por exemplo. Tem de haver visão estratégica, um destino não se limita a ter bons hotéis.

É presidente da associação MISE desde 2019. Quais os novos projectos que têm em mente para os próximos tempos?

O maior projecto é o lançamento de um guia online para quem quer organizar um evento em Macau que dá informações sobre espaços e fornecedores. É uma ferramenta que existe em mercados mais competitivos, como Singapura ou Hong Kong. Queremos proporcionar esse serviço aos sócios e a quem quiser entrar, no fundo, ao sector.

O Governo lançou o programa de passeios para os locais. Isso pode dinamizar a área do turismo?

É uma grande ajuda. Nos dias que correm qualquer coisa é boa. Na nossa empresa fazemos qualquer coisa mesmo que não tenha muito a ver com a nossa actividade. Esses programas do Governo são muito importantes. O conceito de staycation [vá para fora cá dentro] faz todo o sentido, e será sempre um sucesso. Poderia ser um pouco mais democrático, pois está concentrado em poucas empresas. Mas compreendo o Governo, tem de negociar com muita gente, é difícil. Poderia ser mais universal e simplificado, mas acho que o programa tem todo o mérito.

Mesmo se for implementada uma bolha de viagem com Hong Kong, a recuperação vai continuar a ser lenta?

O sector dos eventos, este ano, é para esquecer, como disse há pouco. Podem acontecer alguns eventos, mas nada que se compare com os níveis que tínhamos antes.

11 Mai 2021

Kevin Blackstone, embaixador dos EUA em Díli: Timor-Leste tem um ano para corrigir problemas de tráfico humano

Por António Sampaio, da agência Lusa

O apoio dos Estados Unidos a Timor-Leste pode ser condicionado se as autoridades timorenses não corrigirem problemas que continuam a existir na forma como lida com tráfico humano, disse à Lusa o embaixador daquele país em Díli. “É uma questão séria e razão pela qual o Congresso impõe consequências a países que não eliminem o que é, no essencial, escravatura moderna”, explicou Kevin Blackstone, em entrevista à Lusa. “É uma preocupação real e não pode perpetuar-se indefinidamente”, sublinhou.

Desde meados do ano passado que Timor-Leste foi colocado na “lista de vigilância” do nível dois dos três usados pelo Governo norte-americano para determinar até que ponto os países cumprem as suas obrigações no combate ao tráfico humano.

Uma queda para o nível três implicaria que os Estados Unidos não poderiam dar a Timor-Leste qualquer apoio de desenvolvimento, segundo as regras definidas em Washington.

“Normalmente, um país pode ficar na lista de vigilância do nível 2 durante dois anos. Se Timor-Leste estiver novamente nessa lista este ano, terá mais um ano para demonstrar progresso significativo. Ou seja, até meados de 2022”, explicou.

Considerando que Timor-Leste “está no caminho certo”, Blackstone referiu que os responsáveis com quem falou nos últimos três meses, desde que apresentou credenciais, mostram “empenho e compromisso” em lidar com os problemas que persistem.

Como exemplo, e como primeiro passo “significativo” destaca a informação do Ministério da Justiça de que já está preparado e enviado para o Conselho de Ministros o rascunho da lei para a criação da comissão anti-tráfico de seres humanos. “Acho que é um passo significativo criar uma entidade que lide com este assunto”, sublinhou.

O diplomata sublinha que na sua análise o Departamento de Estado olha para questões como o enquadramento legal e sua aplicação, incluindo processos judiciais e condenações e direitos e proteção das vítimas.

“Em muitos casos as potenciais vítimas estão cá ilegalmente e tem sido tradição que são deportadas. E isso torna difícil avançar em acusações sem testemunhas e também em controlar os números ou registar testemunhos sobre o que está a acontecer”, explicou.

“Penso que o sector judicial entende isso. E penso que com este novo enquadramento legal, com autoridade especifica a entidades, veremos melhor identificação de vítimas e potencialmente seguimento para processos judiciais”, frisou.

Num relatório sobre o tema, a Organização Internacional das Migrações considera que Timor-Leste regista três tipos de trafico de pessoas (TIP na sua sigla em inglês), nomeadamente tráfico para o exterior (70%), de outros países para Timor-Leste (20%) e tráfico interno (10%).

A OIM nota que Timor-Leste “é um país de destino para homens, mulheres e crianças traficadas com o propósito de trabalho forçado e exploração sexual comercial”, sendo que a maioria das vítimas de tráfico são mulheres oriundas da China, Indonésia, Tailândia e Filipinas.

“As vítimas são frequentemente abordadas com promessas de melhores perspectivas de emprego e educação, oportunidades para pagar dívidas ou para ganhar grandes salários na economia do dólar norte-americano”, considerou.

Timor-Leste, segundo a OIM, é ainda um país de origem para o tráfico humano, nomeadamente “associado à migração laboral para fora da província de East Nusa Tenggara, na Indonésia”, com a pobreza e o subemprego a serem os principais motores.

“Esta migração ocorre frequentemente sob a forma de viagens irregulares para a Indonésia com base em informações de família, amigos, vizinhos e/ou comunidade. As mulheres e raparigas timorenses são particularmente vulneráveis a serem enviadas para a Indonésia e para outros países com o objetivo de servidão doméstica”, notou.

No caso interno, a OIM refere haver “tráfico doméstico que envolve principalmente crianças e menores de 18 anos para fins de servidão doméstica, trabalho e exploração sexual”. Em 2018 a OIM diz que foram identificadas 64 vítimas de tráfico de um total de sete casos investigados.

No seu relatório de meados do ano passado, em que Timor-Leste foi colocado na “lista de vigilância”, o Departamento de Estado considera que “o Governo de Timor-Leste não cumpre plenamente as normas mínimas para a eliminação do tráfico, mas está a fazer esforços significativos”.

O executivo, considera o texto, “não confirmou quaisquer casos de tráfico e diminuiu significativamente o número de investigações de tráfico”, com serviços inadequados de apoio e proteção a vítimas e, pelo quinto ano consecutivo, sem finalizar ou aprovar “procedimentos operacionais padrão para a identificação das vítimas”.

No relatório, Timor-Leste foi “desclassificado para a Lista de Vigilância de Nível 2”. Os EUA recomendam aumentar investigações a crimes de tráfico humano, iniciar processos judiciais e condenar e punir traficantes, “incluindo funcionários cúmplices”.

Mais recursos para apoio e proteção de vítimas, oferecendo os mesmos serviços a vítimas do sexo masculino que do sexo feminino, a criação de uma comissão anti-tráfico humano e um plano de acção anual, com melhor recolha de dados, são também recomendados.

7 Mai 2021

Francisco Manhão, presidente da APOMAC: “Governo deve construir casas para funcionários e pensionistas”

Há 20 anos nascia a Associação dos Aposentados, Reformados e Pensionistas de Macau, pronta para defender os interesses e direitos dos mais velhos. Hoje, Francisco Manhão, presidente da direcção, pede que o Governo construa mais casas para funcionários públicos e reformados e lembra que a isenção do pagamento do imposto profissional foi “uma grande vitória”. Quanto à expansão da associação para a abertura de uma clínica, o pedido foi, para já, recusado pelo Governo. Manhão diz que vai continuar a ser candidato à presidência da associação enquanto as forças o permitirem

 

20 anos depois, a APOMAC.

Um grande sucesso. Não há dúvidas de que a maioria dos que têm acompanhado a APOMAC nos últimos 20 anos reconhece o nosso trabalho em prol da nossa classe, que são os aposentados e os que pertencem à terceira idade.

Quais têm sido as maiores dificuldades que têm enfrentado?

As dificuldades que temos é sempre com a Caixa Geral de Aposentações (CGA), devido à prova de vida e da isenção do pagamento do IRS. Depois tivemos também a dificuldade, sobretudo este ano, em fazer a prova de vida na devida altura, por causa da pandemia. A CGA enviou os impressos numa data mas só chegaram a Macau quase dois meses depois, e não para toda a gente. Criou-se um pânico porque uns receberam [a pensão] e outros não. As pessoas ficaram atrapalhadas e começaram a aparecer na APOMAC a perguntar o que se passava com as suas pensões. Esse atraso também se deveu ao funcionamento dos correios. Temos uma lista elaborada dos nossos associados e pedimos à CGA que enviasse, de acordo com a nossa lista, [os impressos] através da DHL, às expensas da APOMAC, para não haver dúvidas e falhas, mas a nossa sugestão não foi bem recebida. Só em finais de mês de Março é que houve outros pensionistas a receber o impresso para fazer a prova de vida. Agora tudo chegou à CGA, mas [o processo] foi uma anedota. Enviamos via DHL, chegou a Hong Kong, depois Alemanha, depois Espanha e Lisboa, mas não foi descarregado em Lisboa. Tudo voltou para o Quénia, depois Alemanha, Espanha e finalmente chegou a Lisboa outra vez.

Na sua visão, qual o principal problema social que o Governo deve resolver?

Já é altura de o Governo da RAEM construir também prédios para funcionários públicos e aposentados e pensionistas. Não é apenas pensar em casas económicas e sociais. Mas louvo esta atitude do Governo em resolver este problema para os residentes, mas não se pode esquecer desses grupos. Sabemos que todos têm dificuldades em adquirir um apartamento ou alugar.

Na Assembleia Legislativa os direitos e interesses dos idosos têm sido bem defendidos?

De um modo geral, penso que sim. Esta classe está bem protegida, tendo em conta tudo o que o Governo tem vindo a fazer.

Nestes 20 anos como tem sido a relação da APOMAC com o Governo?

Praticamente, temos tido um bom relacionamento com todo o Governo da RAEM, com os secretários também. Mas politicamente [a implementação de políticas] não depende só deles. Mas eles têm cumprido sempre e apoiado a nossa associação.

Como vê agora os próximos dez anos, quais as expectativas? Há novos projectos?

Neste momento só posso dizer bem do trabalho do actual Governo no aspecto do apoio aos residentes. Tudo depende se a pandemia vai desaparecer ou não, aí podemos ter novos planos. Por enquanto nada podemos fazer. Continuamos a defender os interesses desta classe junto do Governo na questão da habitação. Se a situação melhorar acredito que o Governo também vai pensar em questões como a pensão para idosos. Mas percebemos que, dada esta situação, o Governo despendeu muito dinheiro para o apoio não apenas para esta classe como para a população em geral.

O novo Chefe do Executivo [Ho Iat Seng] tem dado esse apoio?

Sem dúvida, sobretudo na questão da pandemia. Mas Macau também teve um bom momento e temos uma boa reserva financeira com capacidade para suportar todas estas despesas, apoiando os residentes. É natural que as receitas para o Governo tenham sofrido uma redução, mas todos percebem. Não podemos ser muito exigentes, o Governo também tem de olhar para o futuro, não é só para o presente.

Um dos projectos que tinham era ocupar mais um piso no actual prédio onde se encontram para fazer uma clínica de atendimento aos idosos. O Governo já deu o aval?

A última resposta dos Serviços de Saúde de Macau (SSM) foi negativa. Não sabemos porquê, não disseram mais nada. Não vamos insistir neste processo mas estou confiante de que, em termos de futuro, vamos atingir este objectivo. Acredito que os SSM podem vir a sair destas instalações. É difícil prever quando podem sair, mas estou confiante nisso.

A vossa cantina é muito procurada, sobretudo pelos pratos macaenses que confeccionam. Em 20 anos foi também um espaço que cresceu.

Sim, graças aos nossos associados e a pessoas que procuram pela comida macaense. Felizmente temos uma cozinha que prepara bastantes pratos macaenses e nem sempre as pessoas sabem onde podem saborear esses pratos.

Com a pandemia, além das questões com a CGA, houve mais constrangimentos que sentiram no vosso funcionamento?

Estávamos preparados, e conseguimos adquirir máscaras. Na entrada da associação temos um controlo da temperatura corporal. Seguimos as medidas do Governo e felizmente estamos bem controlados nesse aspecto.

Gostava de ver alterações nos valores das pensões?

O mais importante não é o aumento do valor das pensões mas sim o contributo da APOMAC em fazer isentar o pagamento do imposto dos aposentados e pensionistas de Macau. Isto é que foi algo para o qual contribuímos e conseguimos. Hoje estão isentos do pagamento de imposto profissional e, para mim, isso é que foi uma grande vitória.

A APOMAC sempre defendeu os assuntos relacionados com a velhice, e a Associação dos Trabalhadores da Função Pública de Macau também faz um pouco esse trabalho. Não há aqui rivalidade?

Não, cada qual desempenha o seu papel. Se acharem que também devem fazer esse trabalho, é lá com eles. Nós só nos preocupamos com a nossa parte, não nos interessa o resto.

A APOMAC tem sido presidida por si e também conta com o Jorge Fão na direcção. Vai continuar a candidatar-se?

Vou, enquanto tiver forças nas pernas, estarei sempre disponível. É uma coisa que fundamos e que gostamos de fazer, que é fazer o bem e não olhar a quem.

Mas não haverá também o problema de não haver pessoas para o substituir?
Gostaria, mas até hoje não conseguimos ter alguém com esta disponibilidade.

7 Mai 2021

Paulo Moura, jornalista e autor de “Cidades do Sol”: Na Ásia “há um amor pelos consensos”

Lançado esta semana, “Cidades do Sol – Em busca de utopias nas grandes metrópoles da Ásia”, espelha parte de realidades e sonhos da classe média que habita cidades tão diferentes como Manila, Bengalore, Hong Kong ou as metrópoles chinesas que nasceram do zero, como Shenzhen. Paulo Moura fez-se à estrada em busca de utopias, deixando Macau para mais tarde – o jornalista assume querer estudar melhor o território, e até viver nele, para poder escrever com maior conhecimento de causa

 

A questão da utopia. Deve ter-se deparado com várias utopias, porque as cidades que estão no livro são todas diferentes. Qual a utopia que lhe transmitiu uma mensagem mais forte?

O meu projecto para esta viagem era encontrar as novas classes médias da Ásia, por ser a zona do mundo onde a classe média regista um crescimento maior. Pensa-se que dentro de poucos anos a classe média asiática será mais numerosa do que no Ocidente, além de que a classe média define muita coisa no mundo, os gostos, a cultura popular. Quis conhecer quem são estas pessoas, o que são, o que pensam. No centro de tudo isso, há a utopia: o que é que estas pessoas sonham? Uma das capacidades da classe média é a capacidade de sonhar, que as pessoas que vivem na pobreza não têm. Tentei perceber se também sonham com um mundo melhor além dos sonhos individuais, as utopias. Se têm causas políticas, sociais, ambientais. Se no Ocidente tudo isso está em crise, porque já não se acredita em nada, os ideais estão todos muito desvalorizados, será que a Ásia pode trazer uma lufada de ar fresco ao Ocidente? Era essa a minha busca. Mas isto é uma narrativa de viagem, não é uma busca científica, de investigação. As coisas que encontrei não se podem generalizar.

Mas qual foi o seu critério para a escolha dessas cidades?

As cidades que cresceram muito, as cidades novas, como Manila, Jakarta e Shenzhen. Essas cidades são utopias em si mesmas, porque, por um lado, foram desenhadas. Shenzhen, por exemplo, foi criada do nada. Correspondem a uma utopia de cidade. Aí acontece logo o primeiro choque. Na China, por exemplo, estas cidades que cresceram muito, como Xangai ou Pequim também, foram planeadas como se não houvesse uma experiência de grandes cidades, como no Ocidente, que correram mal, dando origens a problemas de solidão, e ambientais. Hoje, no Ocidente, vemos a questão ao contrário, das pessoas que querem sair das cidades e ir para o campo, vemos a retirada dos automóveis do centro das cidades. A China tinha a oportunidade de começar a construir cidades mais humanas nesse sentido, e não o fez. Esses erros estão agora a ser corrigidos e a explicação dada é que quiseram passar por todas as fases: urbana, industrial, em que cada um gosta de ter o seu carro.

Falou da possibilidade de emergirem ideias novas da Ásia. Depois desta viagem, e deste livro, acredita nisso mesmo?

Algumas coisas que encontrei foram decepções, e outras foram boas surpresas. Há um fenómeno diferente [em relação ao Ocidente], que é o valor que se dá às comunidades, à família. Nas grandes cidades existem os mesmos problemas, mas na Ásia existe um culto das relações familiares e de amizade. Depois há a relação com a tecnologia. Acho que na Ásia é uma relação mais fácil, mais natural, enquanto que no Ocidente é uma relação muito tensa. Estão todos no Facebook, mas há sempre uma relação de desconfiança, do que põe em perigo a nossa privacidade ou o que nos torna mais solitários. O que várias pessoas me disseram na Ásia é que as redes sociais não constituem um perigo de solidão, pelo contrário. Há depois um traço importante que é o amor pelos consensos. Na China, o próprio discurso político fala muito nisso.

Do consenso social, da harmonia.

A palavra harmonia é fundamental em todo o discurso político na China. Nessa viagem entrevistei várias pessoas, até ligadas à política, de forma mais ou menos indirecta, e todos falavam nisso, de que a ideia que a China pretende trazer ao mundo é a harmonia. Mas na realidade significa uma ideia política, o que o Governo chama de “o sonho chinês”, uma alternativa ao chamado “American Dream”. A China tem essa influência legítima, de que não seja apenas uma influência económica, mas também cultural. Mas harmonia leva à ideia de consenso, ao invés do confronto. Falo de pessoas comuns, e olham para a forma de viver no Ocidente como sendo muito conflituosa. Acho que muitas pessoas na Ásia se incomodam com isso, porque parece que vivemos sempre com um grande mal-estar. Há um certo espírito de submissão. Até em Hong Kong, a maior parte das pessoas que contestam acabam por ter um pouco esse espírito, nomeadamente alguns intelectuais com quem falei. Mas é comum em todos os sítios por onde passei. Por exemplo, na Índia.

Esteve em Bagalore.

Sim, fui lá precisamente por ser a cidade que produz software, a Sillicon Valley da Ásia. Entrevistei um rapper muito conhecido, o mais famoso do sul da Índia. E a música dele é muito parecida com a dos rappers norte-americanos. A música dele e as letras apelam ao consenso, à obediência dos jovens. Era radical quando era mais jovem e depois ficou mais moderado. Um fotógrafo em Hong Kong disse-me que na escola os jovens não gostam de querer sobressair ou de competição.

Mas Hong Kong é uma cidade muito competitiva, e o livro aborda o facto de ser um importante mercado financeiro.

Hong Kong é uma excepção, uma cidade original, diferente de tudo o resto.

A certa altura diz que é a sua cidade.

Sim. Não a conhecia antes desta viagem, e confirmei que é daquelas cidades onde me sinto em casa. Isso tem a ver com o facto de estar um pouco em dois mundos, tem um pé no Ocidente e outro na China. Mas estes valores de uma cidade mais consensual e com menos conflitos são muito apelativos no Ocidente. É uma onda que está a surgir em vários pontos do mundo e que vai ser dominante. Nesse sentido a Ásia tem uma palavra a dizer, na ajuda ao Ocidente.

No capítulo de Hong Kong começa pelo grupo social que não pertence à classe médica, que são as empregadas domésticas, que ficam na rua aos domingos porque não têm para onde ir.

Foi espontâneo. Cheguei a Hong Kong a um domingo e deparei-me com aquela realidade que é incontornável. Não se pode fingir que não se vê aquilo. Resolvi falar com as pessoas, mas também acho um fenómeno interessante. Mas é a classe média que as usa como empregadas e isso diz algo sobre essa classe. Há ali condições que não são muito aceitáveis, que roçam a escravatura, e essas pessoas da classe média não se apercebem disso, acham natural que essas pessoas não tenham os mesmos direitos. No Ocidente luta-se para que os emigrantes tenham esses direitos.

Chegou a Hong Kong no primeiro trimestre de 2019, um ano turbulento. Depois de falar com todas essas pessoas, que análise faz do território? Há descontentamento dessa classe média não apenas por razões políticas, mas também económicas, nomeadamente o problema da habitação?

Claro que sim. A situação em Hong Kong é muito complexa. No Ocidente vemos as coisas assim, “aqueles jovens estão a lutar pela liberdade”, mas não é bem assim. Há várias coisas misturadas. E os próprios protestos têm uma história. Tem a ver com uma mentalidade que interpretaríamos como de direita na Europa, face aos protestos anteriores. Mas os nossos conceitos na Ásia são diferentes, e mesmo quando chegamos à Europa de Leste, os ideais de esquerda ou de direita são um pouco diferentes. Quem viveu em regimes comunistas tende a olhar para a direita como uma coisa mais libertadora. Ao contrário de Portugal, que viveu numa ditadura de direita. A China é um país comunista, de esquerda. Esses conceitos baralham-se quando vivemos numa outra realidade. Senti que as pessoas em Hong Kong se sentem sufocadas, pelo facto de a habitação ser cara, e depois há uma espécie de angústia em relação ao futuro.

Macau não é uma metrópole como são estas cidades e talvez por isso terá ficado de fora do livro. Fez apenas uma referência no final.

A minha lógica era de facto ir às cidades emergentes, embora no livro faça grandes desvios. Na China fui a muitas zonas rurais, por exemplo. Mas não quis escrever muito sobre Macau porque não sei o suficiente. Nas outras cidades posso ter o papel de turista, mas em Macau há uma história comum, não sou um mero estrangeiro. Não arrisco escrever de forma leviana. Precisava estudar melhor Macau.

Mas diz que Macau é uma válvula de escape para a China, e o “sucedâneo da utopia”.

Refiro-me ao jogo. Engraçado porque nessa perspectiva de primeira impressão, quando se chega a Macau e à nova zona dos casinos, é um choque. É uma coisa desproporcional, conheci bem Las Vegas mas aquilo [Cotai] é maior. E soa ainda mais artificial. Mas se pensarmos no jogo, é uma ideia de utopia. Primeiro, numa perspectiva individual, é a ilusão de que facilmente conseguiremos ganhar milhões. A utopia é ela própria um sonho que nos parece alcançável. A ideia de válvula de escape é porque os chineses vão a Macau para jogar, gastar o dinheiro, a possibilidade de fuga, de sonhar.

Quando assume que não sabe muito sobre Macau, não é também uma questão generalizada, por parte das pessoas e das autoridades? Macau tornou-se uma coisa longínqua.

Sim. Era importante falar. Houve um processo histórico e, em relação a Macau, quando foi entregue à China, fechou-se um capítulo, deixou de ser tão importante para Portugal. Depois é um território que está longe e sempre houve uma ilusão de que Portugal ainda tem uma grande influência em Macau. Mas é chocante, porque quem chega… pode haver a influência [do português] numa elite, os macaenses ou o Governo, mas eu entrei num táxi, tentei apresentar o nome em português e o taxista mandou-me embora porque não percebia. E foi por isso que não quis escrever.

Mas deixamos o património, a língua portuguesa, que ainda é oficial, uma escola portuguesa.

Mas ninguém fala português na realidade. Há outras antigas colónias onde o português se manteve. É uma realidade histórica complexa. Existe uma pequena marca, apesar de tudo. E pelo que percebi, das conversas que tive, a China valoriza essa relação, apesar de ser o gigante que é, a comparar com Portugal, que é uma formiga. E a aprendizagem do português é apoiada. Apoia-se que Macau seja essa ponte com o mundo lusófono, e nesse sentido parece que Portugal não fala muito nisso. Parece uma coisa exótica, esquecida. E isso deveria ser explorado. Gostava de viver um tempo em Macau para conhecer mais sobre a China também.

6 Mai 2021

João Ribeiro de Almeida, presidente do Instituto Camões: Português visto como língua de cumplicidade e solidariedade

O presidente do Instituto Camões, João Ribeiro de Almeida, disse à agência Lusa que a língua portuguesa, que já foi de colonização e de resistência, é hoje um idioma de “cumplicidade” e de “solidariedade” entre os países lusófonos.

“A nossa língua foi e é uma língua de pontes. Historicamente foi o que foi, como outras línguas de países que colonizaram, mas hoje é sobretudo uma língua de cumplicidade, de amizade e solidariedade”, disse João Ribeiro de Almeida.

O presidente do Camões – Instituto da Cooperação e da Língua (IC) falava, em entrevista à agência Lusa, em antecipação ao Dia Mundial da Língua Portuguesa, que se assinala amanhã, dia 5 Maio, por decisão da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).

Para João Ribeiro de Almeida, que há cinco meses assumiu a liderança da agência pública para a língua e cooperação, esta segunda celebração do Dia Mundial da Língua Portuguesa “será mais uma oportunidade” de todos os países que falam português estarem “ligados em rede”.

O presidente do Camões classificou a distinção da UNESCO à língua portuguesa, a primeira não oficial das Nações Unidas (ONU) a ter um dia mundial, como “altamente inspiradora e motivadora”.

“Temos este ‘bombom’, motivador e altamente inspirador, que é o facto de a UNESCO, que não deixa de ser uma agência da ONU, ter declarado um dia mundial de uma língua que não é a língua oficial das Nações Unidas”, disse, sublinhando “o prestígio” que esta decisão dá ao português.

“Não somos uma língua qualquer, somos uma língua à qual é dado um especial tratamento, se bem que ainda não tenha aquele tratamento que nós gostaríamos”, disse, aludindo ao objectivo de ter o português como idioma oficial das Nações Unidas.

O responsável do Camões considerou ainda que essa “é uma corrida de longo curso”, assegurou que Portugal está a trabalhar “quotidianamente” para esse objectivo e defendeu, por agora, uma aposta concentrada na diplomacia.

“A nossa intenção é continuar este processo. Além de ser língua de cumplicidades, de solidariedade e de paz, também é língua de resistência. Temos de ter alguma resistência no nosso percurso”, disse.

Aposta de futuro

O português é falado por mais de 260 milhões de pessoas nos cinco continentes, estimando-se que, em 2050, esse número cresça para quase 400 milhões e, em 2100, para mais de 500 milhões, segundo estimativas das Nações Unidas.

As projecções para o final do século apontam que será no continente africano que se registará o maior aumento do número de falantes, nomeadamente em Angola, que deverá ter uma população superior a 170 milhões de pessoas e Moçambique com mais de 130 milhões de pessoas. Globalmente, 3,7 por cento da população mundial fala português, que é língua oficial dos nove países membros da Comunidade dos Países (CPLP) e de Macau.

4 Mai 2021

José Ximenes, Procurador-geral de Timor-Leste: “Instituição está hoje mais forte”

Entrevista por António Sampaio, da agência Lusa

O procurador-geral da República timorense, que termina na quinta-feira o seu mandato de oito anos à frente do Ministério Público, declarou-se orgulhoso por liderar uma instituição que está mais forte, apesar dos desafios que enfrenta.

“Fico orgulhoso, mas com um sentido de grande responsabilidade e contente porque em termos processuais conseguimos deixar menos processos pendentes para o novo PGR”, afirmou José Ximenes em entrevista à Lusa, onde fez um balanço do seu mandato.

“Avançamos na formação contínua e na consolidação da instituição que está hoje mais forte”, disse.

Condecorado em maio de 2017, com o Colar da Ordem de Timor-Leste “pela excelência do seu desempenho profissional e pelas extraordinárias qualidades e competências pessoais”, José Ximenes termina oficialmente o mandato na quinta-feira, quando toma posse o seu sucessor, Alfonso Lopez, atualmente número dois da PGR.

Primeiro magistrado do Ministério Público a chegar ao topo da carreira, José Ximenes disse sentir “não apenas um grande orgulho, mas também uma grande responsabilidade”, tendo procurado impor ao longo dos oito anos “uma linha estratégica de orientação” na PGR.

Desde que assumiu o cargo, em 2013, José Ximenes explicou que traçou várias prioridades, com destaque inicial para “a redução dos processos pendentes”, especialmente quando o Ministério Público era criticado pela morosidade processual.

Para isso, explicou, foi emitido um despacho a obrigar os magistrados do Ministério Público a finalizar pelo menos 25 processos por mês. Quando chegou ao cargo ‘recebeu’ 5.006 processos a que se somaram, entre 2013 e 2017 (primeiro período do mandato) mais 15 mil processos.

“No meu primeiro mandato mobilizamos a movimentação processual de mais de 20 mil processos e na conclusão do mandato só estavam pendentes 2.240 processos. Apesar de terem entrado mais de 19.000 processos no segundo mandato, a 31 de março deixo apenas 2.600 processos”, explicou.

“Não se trata apenas de focar o trabalho na quantidade, mas também na qualidade. Uma exigência é que a justiça seja célere. Não podemos ter um processo de investigação e acusação concluído e depois ter que esperar cinco anos para o processo avançar.

José Ximenes manifestou orgulho no apoio dado pelo Conselho Superior do Ministério Público e frisou os esforços para impor “disciplina de trabalho”, algo que considerou “um dos maiores problemas quer do setor público quer do privado” em Timor-Leste.

Como segunda prioridade definiu o combate à corrupção e criminalidade organizada, “um dos grandes desafios do futuro”, reforçando, disse, o trabalho nesta área criando em 2014 um gabinete dedicado ao tema que foi “transformado num gabinete central” no ano seguinte.

A terceira prioridade foi o reforço do serviço de contencioso do Estado e a cooperação institucional ao nível nacional e com instituições estrangeiras na região e no espaço da CPLP.

No segundo mandato, a PGR acrescentou “o reforço do serviço de curadoria de menores e família”, criado em 2011, mas limitado inicialmente a matérias cível, e que passou a intervir também em matérias criminais, incluindo violência doméstica e abuso sexual de menores, entre outros.

Reforço de formação contínua dos magistrados e do processo de socialização de leis foram outras das áreas de intervenção.

No que toca a recursos humanos, o Ministério Público passou de 13 magistrados timorenses apoiados por quatro magistrados internacionais, em 2013, para os 37 magistrados de hoje, com o número de oficiais de justiça a passar de pouco mais de 40 para 95, a que se soma 22 outros na fase prática de formação.

“O mais importante para dar força ao PGR, e hoje posso dizer que a PGR é uma instituição forte, de grande autonomia e independência, tem sido consolidar os recursos humanos e o seu trabalho”, disse.

“Além de exigirmos aos nossos magistrados que trabalhem, é essencial continuar a formação contínua, investir cada vez mais nos recursos humanos”, disse, destacando a colaboração nesta área com Portugal, Estados Unidos e outros parceiros internacionais”, frisou.

Entre outros avanços destacou, por exemplo, a inclusão do tétum como língua de formação da International Law Enforcement Academy, em Bangkok, onde magistrados e autoridades policiais têm recebido formação.

Os mandatos de José Ximenes ficaram marcados por polémica, com críticas ao Ministério Público por morosidade no tratamento de processos com contornos políticos, envolvendo alegados casos de corrupção.

Em 2017 registou-se ainda uma tensão interna com sete procuradores timorenses a serem condenados disciplinarmente a seis meses de suspensão de atividade, sem vencimento, depois de escreverem aos líderes do país a questionar a liderança do procurador-geral e outros responsáveis do Ministério Público.

A condenação, pelo Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), envolveu sete de um grupo de 18 procuradores que em abril escreveram ao Presidente da República, ao Parlamento Nacional e ao primeiro-ministro a questionar a liderança do Ministério Público (MP).

Os subscritores diziam haver “motivos de grande preocupação” sobre o funcionamento do MP, que consideram funcionar num sistema de “familiarismo, nepotismo e divisionismo”, sem justiça nas promoções na carreira.

O documento apontava alegadas irregularidades, abusos de direitos, criticava diretamente um dos assessores estrangeiros do MP, que acusa de “atitudes imorais”, e diz que a liderança do MP gere a instituição “como se fosse a sua companhia privada”.

O texto acabou por servir como base para uma resolução do Parlamento Nacional, em que os deputados pediam a exoneração imediata do procurador-geral, José da Costa Ximenes, “por não reunir condições objetivas para a nomeação do cargo”, considerando que “o seu primeiro mandato se caracteriza pela prática de inconstitucionalidades e ilegalidades graves”.

Igualmente a causar tensão estiveram dois casos de grande relevo, nomeadamente o contra a ex-ministra das Finanças, Emília Pires e o casal de portugueses Tiago e Fong Fong Guerra. Na entrevista José Ximenes disse que as críticas fazem parte do processo, e que “ajudam a tornar o Ministério Público mais forte”, frisando que as tensões internas estão resolvidas.

“Hoje, no nosso último encontro do CSMP, disse que temos que enfrentar os desafios dentro do Ministério público. Temos diferenças de ideias, falamos delas cara a cara, mas para fora o Ministério Público é só um”, afirmou. O novo PGR, Alfonso Lopes, toma posse na quinta-feira.

28 Abr 2021

Guilherme d’Oliveira Martins, ex-ministro da Educação: “Negociar a Declaração Conjunta obrigou a coragem”

Guilherme d’Oliveira Martins dá amanhã, às 18h30, uma palestra online sobre a relação entre arte e educação na Fundação Rui Cunha. Em entrevista, o administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian e antigo ministro da Educação, que acompanhou a criação da Escola Portuguesa de Macau, revela-se orgulhoso do trabalho feito e lembra as negociações com a China para a Declaração Conjunta como o principal momento da presidência de Mário Soares

 

Arte e educação. São complementares e fundamentais?

A arte é fundamental, uma vez que se trata da primeira etapa da aprendizagem de qualquer ser humano. Os estudos de psicologia educativa demonstram que o primeiro passo que damos tem a ver com a aprendizagem dos sentidos e das artes. Hoje sabemos que ainda dentro da barriga da mãe uma criança já responde a estímulos musicais, e por isso quando temos educação de infância deparamo-nos imediatamente com o primeiro passo em relação às artes, música e pintura. Quando um dia perguntaram a Sophia de Mello Breyner o que era indispensável numa escola, ela disse: “Poesia, música e ginástica”. O jornalista ficou muito surpreendido, e disse: “Mas, senhora dona Sophia, e a matemática?”. Sophia respondeu: “Acha que é possível distinguir uma redondilha de um alexandrino, ouvir uma pauta de música, sem relacionar a matemática?”. O jornalista ficou esclarecido. Sophia estava a falar da aprendizagem das suas referências mais antigas, a escola grega, que tem todos estes elementos. As artes estão sempre no princípio. E daí a importância que o ensino artístico tem quando falamos daquilo que é uma experiência indispensável, a do diálogo, inovação, da criação e da capacidade de nos conhecermos melhor.

Fala destas questões para um território onde existe a Escola Portuguesa de Macau (EPM), um projecto educativo diferente…

Que eu conheço muito bem. Tivemos a oportunidade de desenvolver um projecto que superou as expectativas iniciais. Sinto um especial orgulho em virtude da qualidade do projecto educativo e dos resultados alcançados. Houve, no início, muitas dúvidas naturais, estávamos próximos do handover e não sabíamos sequer o que iria ser o futuro desenvolvimento da EPM. Daí ter superado as expectativas como um projecto pedagógico de grande qualidade e que vai ao encontro daquilo que são as exigências da contemporaneidade.

Que desafios aponta à EPM para o futuro? Hoje a maior parte dos alunos tem o chinês como língua nativa.

Essa é hoje uma realidade muito evidente, a do multilinguismo. O futuro é o diálogo entre várias línguas, é indispensável garantir o paradigma da educação e da formação ao longo da vida. Há a necessidade de aprendermos várias línguas e de em simultâneo garantir que, ao termos conhecimento, podemos dialogar melhor. O centro académico do mundo onde existe o maior número de aprendentes de língua portuguesa está em Pequim. Sou jurista de formação e quando saí da universidade fui para a contratação internacional, para o Direito internacional. Tive de trabalhar na língua inglesa e um dos problemas que existia era a falta de compreensão dos subscritores dos contratos em relação ao conteúdo dos mesmos. Hoje não temos qualquer dúvida de que quem assina um contrato tem de saber as suas consequências na língua que domina. O português é hoje a língua mais falada no hemisfério sul…

Graças ao Brasil.

Sim, ao português do Brasil. E há uma compreensão exacta que leva a que a nossa relação com a cultura chinesa, com a aprendizagem das instituições da República Popular da China (RPC), parta desta ideia, da necessidade de aprender o português porque é uma língua importante. Estamos a chegar à sua primeira pergunta, sobre a importância das artes. Esta capacidade que temos de aprender várias línguas, paralela à necessidade de usarmos a linguagem universal da arte, para podermos dialogar melhor.

Que análise faz à intervenção do Estado português na EPM nos últimos anos? Houve algum distanciamento?

É indispensável continuar a haver uma atenção especial e um acompanhamento relativamente à experiência da EPM. É algo que, quer junto do ministro da Educação e do Governo, tenho exprimido com especial ênfase, até pela ligação antiga que tenho à escola, em relação a alguém de quem sou muito próximo, que é o professor Roberto Carneiro [ligado à Fundação da EPM]. Essa atenção terá sempre resultados positivos no plano político e na relação com o centro fundamental da economia mundial, que é a RPC e a língua chinesa.

Quando era ministro da Educação e lidou com o dossier da EPM, quais eram os maiores receios relativamente ao período pós-1999?

O receio fundamental não se verificou, que era uma redução muito drástica do número de alunos e da presença da língua portuguesa em Macau. Considero que o trabalho realizado e a prática assumida em Macau tem permitido que a língua portuguesa continue a ter um lugar importante.

As autoridades chinesas também contribuíram para esse sucesso ao apostar na língua portuguesa, nomeadamente Pequim, além do apoio financeiro das autoridades de Macau à escola.

Não tenho dúvidas. Sei bem, até porque a minha experiência, na sociedade civil, em termos do diálogo cultural, tem sido positiva. O papel da RPC no aspecto da língua é positivo.

Acompanhou o diálogo com a China relativamente à Declaração Conjunta quando era assessor de Mário Soares na Casa Civil da Presidência da República. Considera que a Declaração Conjunta e a Lei Básica têm sido cumpridas por Pequim?

Pelo que tenho acompanhado, sim. Há uma relação que globalmente é positiva.

Portugal deveria dar mais atenção a Macau no plano político, e não apenas económico?

Nesse domínio, não tenho uma leitura pessimista. A minha preocupação é defender o aprofundamento do carácter positivo dessa relação. Tenho uma perspectiva positiva [da evolução da situação após 1999], pois penso que devemos fazer um esforço real para que as coisas corram o melhor possível.

Em relação à relação bilateral entre Portugal e China, que análise traça sobre o seu futuro?

A posição portuguesa desenvolve-se no contexto europeu e compreendendo as condicionantes geoestratégicas actuais. Vivemos um sistema de polaridades difusas e vão haver vários focos de desenvolvimento. A verdade é que não podemos pensar no futuro da geoestratégia mundial sem o papel crescente da China e a sua importância. É indispensável que essas polaridades que encontramos devam pender para se equilibrar em nome da paz. Uma cultura de paz para mim é particularmente importante e isso só existe se houver equilíbrio de várias influências. Naturalmente que esse equilíbrio obriga a que a Europa tenha maior protagonismo na cena internacional ao lado dos grandes polos que se vão desenvolvendo. O que mais se vai desenvolver nos próximos anos será o polo asiático e a RPC. Devemos fazer com que haja mais cooperação na cultura, na ciência, economia, de forma a que possamos ter paz. Daí a importância que tem a ONU e sobretudo uma perspectiva positiva relativamente à acção dos vários países. Não posso deixar de referir a nova rota da seda e a importância que um país com uma grande costa marítima, como é Portugal, com relacionamento com todos os continentes, tem numa estratégia como essa.

O dossier Macau foi muito importante no período da Presidência de Mário Soares. Houve momentos de tensão também.

Naturalmente que sim. Recordo-me que havia, da parte de Mário Soares, uma consciência muito clara relativamente à importância da cooperação com a Ásia e com o desenvolvimento das potências asiáticas nos vários domínios. Falo da China, mas também da Índia. De facto, se hoje não temos qualquer dúvida sobre a importância geoestratégica da Ásia, nessa altura nem todos puderam ver tão longe como o então Presidente da República, que compreendeu bem que o futuro estaria justamente num país tão antigo e rico culturalmente e espiritualmente como a China.

A China era também um país em desenvolvimento, isso também terá contribuído para uma diferente visão por parte das autoridades portuguesas.

Mas a verdade é que o lugar que hoje a China tem no mundo confirma a ideia que então existia, de que o desenvolvimento iria ter um curso de grande importância. Daí chamar a atenção para o facto de se ter confirmado essa ideia que só os mais lúcidos tinham.

Se tivesse de apontar o momento de maior tensão durante a Presidência de Mário Soares, relativamente a Macau, qual seria?

O momento em que se tornou indispensável assinar a Declaração Conjunta e subscrever um regime que se revelou positivo, mas onde havia muitas desconfianças nos anos 80.

Em relação às autoridades chinesas ou ao futuro?

Ao futuro. Nem todos seguiam a ideia de Mário Soares e outros governantes. Aí devo referir que além de Soares também o general Ramalho Eanes teve um papel extremamente positivo porque conhecia Macau. Eles tiveram um papel importante ao poder antecipar o futuro. Havia desconfianças que os rodeavam, a opinião pública está sempre cá e tem uma visão menos aberta e consciente. Quer Eanes e Soares compreenderam que o futuro passaria por Macau. Sinto-me sempre em casa em Macau e ao se assinalar os 100 anos da publicação de Clepsydra, de Camilo Pessanha, o facto de ele ser um autor da língua portuguesa, é um forte elo que nos leva a compreender a importância do diálogo cultural com Macau. Os 100 anos da Clepsydra podem e devem ser uma oportunidade para uma reflexão positiva sobre a importância desta relação cultural. Daí ter referido a complexidade da Declaração Conjunta e não factos menores, episódios que ocorreram que foram circunstâncias menores. No plano dos factos, menciono essa negociação que obrigou a coragem, a visão de futuro, designadamente a compreensão quanto à permanência da língua portuguesa. É algo que existe em Macau, mas [que existe] também pela compreensão da RPC.

Programa “Arte na Escola”

A palestra online protagonizada por Guilherme d’Oliveira Martins insere-se no programa educacional e artístico “Arte na Escola”, que arrancou a 25 de Março e que é desenvolvido pela associação BABEL em parceria com a Associação de Pais da Escola Portuguesa de Macau. Importado do modelo que a Fundação Serralves, em Portugal, apresenta em várias escolas, “Arte na Escola” destina-se a toda a comunidade escolar, incluindo pais, alunos e educadores.

20 Abr 2021

Álvaro Laborinho Lúcio, autor e ex-ministro da Justiça: “Deveríamos estar inquietos com o que está a acontecer”

Álvaro Laborinho Lúcio tem estado muito ligado à escrita e à reflexão sobre as questões da arte e educação desde que se afastou do Direito, área à qual dedicou grande parte da sua vida. O autor fala dia 19 de Abril sobre estes temas, por videoconferência, entre as 18h30 e as 20h30 na Fundação Rui Cunha. Em entrevista, Laborinho Lúcio discursa sobre o novo livro que aí vem e de como a Democracia continua a ser fundamental

 

Fala dia 19 de Abril na Fundação Rui Cunha sobre as questões da arte e educação. São essenciais uma à outra, complementam-se?

Sim, e essa é uma forma muito correcta de pôr a questão, porque ajuda muito a desenvolver aquilo que se pretende quando se liga educação e arte. É essencial colocarmos a questão da relação entre a educação formal, ministrada na escola, e a educação em geral. Filio-me muito no pensamento de Mikhail Epstein, que dizia que a educação é uma actividade de humanos para o bem da humanidade. É esta dimensão da condição humana que, no fundo, constitui o objecto central da educação, que tem de ser transportada para a escola.

Como?

Quando partimos desse ponto de vista facilmente compreendemos que a arte é fundamental, porque é talvez a única forma que o humano tem de adquirir ou atingir alguma transcendência. A arte é fundamental para compreendermos o mundo, a vida, a evolução da humanidade, para sermos capazes de desenvolver pensamento critico. Mas a arte como uma entidade autónoma, como se fosse uma disciplina própria [na escola], como se fosse português ou a matemática, e não uma actividade dos tempos livres onde as crianças se divertem.

Relativamente ao Direito de Macau tem sido dada a devida atenção por parte das autoridades relativamente à sua preservação e manutenção?

Toda a minha vida foi praticamente ligada à justiça e ao Direito. Ultimamente tenho-me preocupado com outro tipo de temas, nomeadamente a educação. Uma das leis base da organização judiciária [de Macau] passou pelas minhas mãos. Teria todo o gosto que esse acompanhamento fosse feito segundo as linhas e orientações dos acordos políticos que foram estabelecidos, nomeadamente com a China, mas tendo sempre a noção de que há um ponto de vista português e a expressão de uma cultura portuguesa que gostaríamos de deixar como manifesto nesse território, e que o pudéssemos ir conservando. Entendo que deve haver uma preocupação do Estado português em manter também essa presença.

Foi ministro da Justiça entre 1990 e 1995, na altura que se produziram em Macau os grandes códigos que ainda hoje vigoram. Quais as grandes preocupações e desafios à época?

Daquilo que foram os acordos assinados e da possibilidade de aceitação da política “um país, dois sistemas”, em que no fim de contas era possível encontrar ainda a manutenção por um período longo, que ainda se mantém, da legislação portuguesa, muitas das dificuldades resultavam de perspectivas no direito privado português e até do direito processual que não era aquilo que imediatamente mais casava com a própria cultura da RPC. Houve a dificuldade em manter essa perspectiva e, ao mesmo tempo, encontrar uma forma de não criar, pela via do Direito, uma conflitualidade social, em que a certa altura não houvesse entendimento possível. Mas foi possível construir códigos estruturantes. Recordo-me de um dos problemas na altura era o de saber se seria preferível ensinar Direito aos chineses ou chinês aos portugueses. Esta era uma grande questão, nuclear, porque entendia-se que da boa ou da má decisão resultaria a preservação durante mais ou menos tempo do próprio Direito português.

Publicou “O Beco da Liberdade” em 2019. Porque decidiu enveredar pela escrita?

Sempre tive uma certa propensão para essa experimentação. Enquanto exerci funções públicas, muito ligado à justiça, não me sentia à vontade para entrar na escrita de ficção, embora quisesse experimentá-la. Se se escreve para publicar, à medida que se publica damos uma imagem de nós próprios, o que não quer dizer que as personagens que criamos sejam o nosso reflexo, mas de alguma maneira sempre que escrevemos manifestamos um ponto de vista ou um ponto de vista estético. Achava que o meu compromisso institucional com a justiça me obrigava a ter algumas reservas. Quando me jubilei decidi escrever, e escrevi talvez o maior livro que publiquei até agora, “O Julgamento”, que é uma narrativa crítica da Justiça. Terminava aí a minha relação com a Justiça e em termos do que projectei para o futuro. Comecei depois com um livro mais pequeno a interessar-me pela questão da educação, e é curioso que começo pelos direitos da criança. E é por aí que entro na escola e na educação. Mas em simultâneo surgiu a primeira experiência da escrita de ficção, o primeiro romance, e correu bem, foi bem aceite. Talvez não fosse um disparate. Ainda hoje digo que sou um escritor amador.

Achava que ia ser um disparate, receava a não aceitação do público?

Sim. Tinha uma insegurança em relação a isso, que continuo a ter. Olho para mim com a ideia de que os romances sejam aceites sem haver uma recusa da sua qualidade. Não é nesta altura que num golpe de dedos passo a ser um escritor notabilizado no mundo inteiro. Tenho a noção dos limites e é dentro deles que me quero manter. Fiquei feliz com as reacções e isso animou-me a escrever esse romance, “O Beco da Liberdade”, que também foi bem recebido. Tenho outro livro praticamente concluído e que poderá eventualmente ser publicado este ano. Depois tenho um ou outro conto disperso. Hoje tenho a minha vida muito limitada à escrita literária e às questões da educação e da cidadania.

Pode avançar alguns detalhes sobre essa nova obra?

É um romance, mas em que tentarei, embora não seja fácil, dar uma imagem de Portugal 45 anos antes do 25 de Abril e 45 anos depois. É um romance que termina imediatamente antes da pandemia porque esse será um tema para outra história. Será um Portugal de gente comum activa e não um Portugal de vilões ou heróis. Quem era essa gente de classe média empenhada politicamente antes do 25 de Abril e depois com muitas dúvidas depois? O título ainda não está fechado mas há-de ter lá pelo meio uma azinheira, que vem um pouco da música “Grândola, Vila Morena” [de Zeca Afonso].

Hoje questiona-se a democracia, e há quem a questione como a culpada dos problemas que existem em Portugal, um deles a lentidão da justiça. O que é preciso mudar para que se comece a pensar de outra forma, com mais confiança nas instituições e na própria democracia?

Deveríamos estar responsavelmente inquietos com o que está a acontecer. Para criar de facto uma inquietude mas também para a tornar responsável. Julgo que neste momento estamos a desenvolver combates que já não sabemos a quem se dirigem e sobretudo a que consequências podem levar. Precisamos de perceber várias coisas e depois agir de acordo com elas. Um dos aspectos mais saudáveis da democracia é o conflito, que é essencial, e quando não existe nenhum é perturbador. Mas o conflito não pode ser com as primeiras coisas que nos vêm à cabeça. Temos quebras extraordinárias de coesão social, percentagens de exclusão nas sociedades e temos de viver com esse tipo de manifestações menos serenas e compreender o que está por detrás disso. Mas não podemos é substituir o que ia sendo um contrato social e um pacto social entre os cidadãos e as instituições que os representam por um novo poder, que é o poder das redes sociais.

Que veio mudar muita coisa.

Tudo é permitido e tem repercussões nefastas. A democracia é uma coisa tão extraordinária que temos de a aceitar na sua fragilidade natural. Não podemos pedir tudo à democracia, porque o que pode oferecer maior eficácia é, talvez, a ditadura. Qualquer totalitarismo nos dá a maior segurança, o problema é aquilo que perdemos para ter essa segurança. Qualquer totalitarismo nos dá maior eficácia, o problema é aquilo que perdemos para ter essa eficácia. A democracia e o Estado de Direito são absolutamente essenciais e temos de saber qual o estado da arte em matéria do Estado de Direito. Tenho algumas dúvidas de que hoje o Estado de Direito esteja saudável. Pergunto se é verdadeiramente um Estado de Direito democrático e social que temos hoje ou se não é antes um Estado de economia liberal de mercado, que é uma coisa completamente diferente. O conjunto de valores por detrás do Estado de Direito foi substituído pelo valor do dinheiro e pelo da eficácia, que é aquele valor que permite dizer que os fins podem justificar os meios.

Programa “Arte na Escola”

A palestra de Álvaro Laborinho Lúcio insere-se no programa educacional e artístico “Arte na Escola”, que arrancou a 25 de Março e que é desenvolvido pela associação BABEL em parceria com a Associação de Pais da Escola Portuguesa de Macau. Importado do modelo que a Fundação Serralves, em Portugal, apresenta em várias escolas, “Arte na Escola” destina-se a toda a comunidade escolar, incluindo pais, alunos e educadores.

16 Abr 2021

Eileen Stow, gerente das pastelarias Lord Stow’s: “Grande Baía continua muito distante”

Quando lhe telefonaram a dizer que o seu nome constava na Lista de Honra da Rainha Isabel II para se tornar Membro da Ordem do Império Britânico, Eileen Stow não conteve as lágrimas. Hoje, recorda o episódio com humor e relaciona a distinção com o trabalho comunitário que desenvolve na Câmara de Comércio Britânica em Macau. Eileen Stow conta como geriu a crise mantendo salários e porque encara Hengqin e a Grande Baía como projectos de investimento demasiado longínquos

 

Que significado tem para si esta distinção?

Não esperava. O cônsul-geral [do Reino Unido em Macau e Hong Kong] ligou-me a perguntar se eu iria aceitar a distinção, e eu desatei a chorar (risos). Tiveram de confirmar tudo antes de avançar com o meu nome. Fiquei muito feliz e penso que a distinção está relacionada com a forma como representamos o nosso país no estrangeiro. Não tem a ver com o meu negócio, mas sim com o trabalho que desenvolvo na câmara de comércio e com associações de caridade.

Que balanço faz desse trabalho diplomático que tem desenvolvido nos últimos anos?

Quando vim para Macau, o meu irmão [Andrew Stow, falecido em 2006] disse-me que, enquanto expatriada, tinha de colocar a cabeça na almofada e pensar no melhor que podia fazer. Levei isso a peito e é o que tenho tentado fazer. Na câmara de comércio faço muito trabalho com a comunidade, não estou apenas ligada ao lado empresarial.

Actualmente, que desafios enfrenta nesse trabalho?

Há poucos britânicos em Macau com os seus próprios negócios, e aqueles que os têm são muito locais, como agências imobiliárias ou pastelarias. Há poucos a fazer comércio a nível internacional. Em Hong Kong a situação é muito diferente. Em conversas que tive com o cônsul-geral notei que os empresários se sentem optimistas com, por exemplo, eventuais mudanças que o Brexit poderá trazer. Mas as restrições nas fronteiras estão em vigor e é difícil traçar o retrato completo da situação.

A comunidade britânica em Macau é então composta essencialmente por pessoas que trabalham nas operadoras de jogo, em funções de gestão.

Sim, a construção civil é um sector que emprega muitos britânicos. A maior parte trabalha também na área do jogo. Isso faz com que seja uma comunidade muito de passagem, porque estão ligados à maioria dos projectos do Cotai. Mas também temos alguns jornalistas e associações a trabalhar connosco.

As restrições nas fronteiras de que falou não tiveram então grande efeito a nível empresarial.

Não houve efeitos ao nível dos negócios, mas em termos das viagens individuais sim. Ainda assim, a câmara de comércio não recebeu muitas queixas ou pedidos de aconselhamento nesta área, o que é interessante. Todos seguem com as suas vidas em Macau o melhor que podem. Diria que a impossibilidade de viajar até Hong Kong afectou muito as pessoas. Há muitas pessoas que vão a Hong Kong por questões médicas.

Tem conhecimento de famílias separadas, por exemplo?

Tenho amigos com filhos que estudam em Hong Kong, e as mães tiveram de sair para acompanhar os filhos, e os maridos ficaram para trás.

Quais os principais projectos da câmara de comércio para os próximos tempos?

O projecto da Grande Baía está a internacionalizar-se e a desenvolver-se, e queremos fazer esse acompanhamento. Assim que as restrições das fronteiras forem aliviadas, queremos promover viagens para que mais empresários possam conhecer as oportunidades trazidas pelo projecto de integração. Outro projecto é estarmos mais ligados com os nossos membros, que não são apenas britânicos, mas também chineses ou australianos. São pessoas que estão interessadas em negócios com o Reino Unido. É mais uma questão de ver aquilo de que precisam, porque a câmara de comércio constitui este serviço comunitário para os seus membros, para que tenham os contactos certos. Há dez anos a minha empresa precisava desesperadamente de uma mudança ao nível de gestão, e ao participar num evento da câmara conheci uma pessoa que me deu o aconselhamento de que precisava.

O que pensa do projecto da Grande Baía?

É uma visão de longo prazo. Conheço um grupo de pessoas que investiram do outro lado da fronteira e que, até agora, ainda não estão arrependidos. Mas depende do tipo de negócio. Se tiveres um banco, claro que é um bom sítio para abrir uma sucursal, se operares no mercado imobiliário também. Mas se tiveres uma pastelaria talvez seja melhor ficar aqui. Tive essa discussão com os meus parceiros [sobre a possibilidade de investimento]. Do ponto de vista do empresário individual vai levar décadas até chegarmos a essa fase [de investimento]. Há muitas pessoas interessadas, mas isso não significa que abram representações dos seus negócios do outro lado da fronteira.

Com a crise gerada pela pandemia, e a diminuição do número de turistas, como está o negócio da Lord Stow’s?

Tem sido muito desafiante. A nossa empresa adoptou uma atitude diferente porque sempre lidamos com as restantes crises pandémicas. Estivemos parados sem nada e mantivemos os nossos funcionários, pagando os salários. Tínhamos dinheiro suficiente para lidar com estas diferentes fases, conseguimos ter algum dinheiro a entrar graças aos clientes locais habituais, mas é interessante ver a percentagem de negócios que se perderam associados às perdas que os casinos tiveram. Diria que perdemos cerca de 70 por cento das nossas receitas.

As medidas que o Governo implementou para apoiar as Pequenas e Médias Empresas (PME) são suficientes?

Se fosse uma PME com base nos padrões do Governo diria que não são suficientes. Mas a crise não nos afectou muito porque somos maiores do que uma PME, temos 165 empregados. O grande problema em todos os negócios são as rendas, os custos fixos. Tivemos um senhorio muito generoso que foi compreensivo e nos ajudou reduzindo a renda. O Venetian foi incrível, e na Taipa também.

Depois desta crise, tem planos para a marca Lord Stow’s? Pondera abrir novas lojas?

Temos de agarrar novas oportunidades e perceber as novas tendências de mercado, mantendo o equilíbrio com os aspectos tradicionais da nossa marca. Temos a ideia de abrir algo, mas de uma forma diferente como fizemos até aqui.

Fala-se muito também das oportunidades de negócio na Ilha de Hengqin. Abrir uma loja lá está nos vossos planos?

Encaro isso como encaro um investimento na Grande Baía: essas águas continuam muito distantes, porque estamos muito focados em Macau, e investir lá é como ir para o estrangeiro. Não posso explicar mais do que isto. As pessoas de Macau habituaram-se a esta mentalidade de ‘pequena ilha’ e sair para fazer negócios lá é diferente. Quem chegue agora a Macau pode ver as coisas de forma diferente.

O Governo tem promovido viagens turísticas para locais, e as restrições nas fronteiras parecem manter-se. Que medidas sugere para reinventar o sector turístico?

É difícil apresentar novas estratégias nesta altura, e mesmo pequenas ideias parecem uma gota no oceano. Vejo grupos de artistas apaixonados pela arquitectura local, e é isso que Macau tem para oferecer, essas coisas maravilhosas. Mas é sempre uma gota no oceano comparado com os números do jogo. Nunca vi Macau mencionado nas notícias internacionais pela forma bem-sucedida como lidou com a pandemia e manteve a unidade. Foi feito um trabalho extraordinário e deu-nos uma sensação de segurança, como se vivêssemos numa bolha.

14 Abr 2021

Joseph Chan Nap-kee, especialista na política “Uma Faixa, Uma Rota”: “China nunca quis ser a ‘polícia do mundo’”

O presidente do Centro de Investigação e Desenvolvimento Económico ‘Uma Faixa, Uma Rota’, sediado em Hong Kong, defende que existe no Ocidente uma visão errada de que a dívida gerada pelos empréstimos concedidos pela China neste âmbito é uma armadilha. Joseph Chan Nap-kee frisa que os uigures devem ser ajudados com empregos, uma vez que não dominam o mandarim, e alerta para a presença de espiões em Hong Kong

 

Faz parte do projecto silkaandroadexplained, que tem por objectivo a despolitização desta iniciativa. Concorda que este seja o caminho?

Todas as reacções dos países ocidentais depois do lançamento deste projecto têm um lado bastante político, mas há também o aspecto dos negócios e das trocas culturais. Arrancámos com esta iniciativa com a ideia de partilha cultural antes de avançarmos para a área dos negócios. Mas os países precisam de dinheiro e o foco acaba por recair mais na economia. Esta política não é um tratado, não é como a NATO, ou outra organização internacional. Não há requisitos especiais para aderir. Qualquer país o pode fazer, mas claro que o Ocidente olha para tudo isto de uma forma diferente em relação à perspectiva da China, como se o país quisesse conquistar o mundo. Mas do que temos visto até agora a China deu zero provas de querer ser o número um ou de querer conquistar o mundo. O que o Presidente Xi está a tentar trazer com esta iniciativa prende-se com o facto de a China estar a crescer muito rapidamente. Temos recursos humanos de topo, temos 1.4 biliões de pessoas. Há 40 anos a nossa população era jovem, mas estamos no século XXI e com uma população mais envelhecida. Depois de 40 anos da reforma e abertura [com Deng Xiaoping] a maior parte das cidades chinesas tornaram-se sítios tão caros para viver como Hong Kong, Tóquio ou Londres. Por isso têm de movimentar as indústrias para outros países, repetindo a mesma fórmula de sucesso da China em outros países.

Pode dar exemplos dessa transferência?

Temos o Paquistão, com uma população superior a 200 milhões de pessoas, o Bangladesh, a Indonésia, as Filipinas. Todos estes países têm uma grande força de trabalho e precisam do mercado chinês. O foco do nosso presidente é partilhar com eles a nossa experiência, alargar o mercado em prol do desenvolvimento económico. Acho que ‘uma faixa, uma rota’ é sobre isso. Fala-se muito na questão da dívida [dos países em relação à China] como uma armadilha. Do facto de a dívida ser muito superior ao PIB [Produto Interno Bruto] destes países ou da sua real capacidade de pagamento. De novo, penso que este é um pensamento muito ocidental.

Porquê?

Há 40 anos, quando a China avançou para a reforma e abertura, o Ocidente emprestou muito dinheiro ao país. E isso foi uma armadilha? Tínhamos condições de pagar? Com a política ‘Uma Faixa, Uma Rota’há um calendário de pagamentos, e se os empréstimos não forem devolvidos, o país abre a possibilidade de um novo pagamento. Ou seja, nunca há a intenção de transformar essa dívida numa armadilha. Isto tem a ver com o facto de o Ocidente estar habituado a ser o número um, a controlar quando os países de terceiro mundo começam a emergir. Sentem-se ameaçados. Em 1979 a China só podia pedir emprestado. O país nunca entrou em incumprimento e foi isso que levou o país a recuperar. O que surpreendeu o Ocidente foi o facto de a China ter crescido até ser hoje um dos principais mercados mundiais. Segundo os padrões do FMI [Fundo Monetário Internacional], ainda somos um país em desenvolvimento.

A União Europeia (UE) olha também para esta política como uma ameaça, ou pelo menos alguns países europeus?

Acredito que a maior parte das nações europeias não olham para esta política como uma ameaça, mas como uma oportunidade.

Quais os maiores desafios trazidos pela pandemia em relação a esta política? São necessárias mudanças nos investimentos em prol de uma adaptação a uma nova realidade?

O sucesso da China deve-se ao que aconteceu há 40 anos, quando se decidiu apostar na construção de infra-estruturas para facilitar o crescimento. Isto prova que sem infra-estruturas os sectores da logística e manufactura não poderiam ter atingido os padrões actuais. Isso leva também a outras questões. Como uma nação em desenvolvimento, será que temos escolha? O Ocidente fala muito das questões da democracia e das alterações climáticas. Para ser honesto, penso que a China é o único país que está a apostar nesta matéria. Sabemos que temos problemas de poluição que é preciso resolver, e a China é o único país que gasta grande parte do seu orçamento com as alterações climáticas. Quando falamos de democracia, qual é o padrão? Nos últimos dias todos falam da questão do algodão de Xinjiang. Já esteve em Xinjiang?

Não. 

Diria que mais de metade dos que falam sobre Xinjiang nunca estiveram lá.

Não são fáceis as deslocações à província.

É muito fácil ir a Xinjiang. Temos muitos investimentos na região e passo muito do meu tempo lá. O que aconteceu com a BBC, não houve sequer verificação de factos. Será que temos de perder tempo com uma questão gerada nas redes sociais? Não. Vamos gastar tempo a ajudar os uigures. Como os podemos ajudar? Dando-lhes empregos.

E é essa a ajuda desejada pelos uigures?

Iria recusar ajuda, se lha dessem? Você iria aproveitar o emprego. A maior parte dos uigures são iletrados, então o que podem fazer? Podem ter formação. Pensa que os uigures podem trabalhar sozinhos num país onde a maior parte da população é da etnia Han? Nos EUA, se os migrantes não falarem inglês, conseguem trabalhar? É essa a questão. Se os uigures ficarem restringidos em Xinjiang, sem a ajuda dos Han, como pode haver um crescimento e criação de emprego? Não podem sobreviver. Porque é que ninguém critica os americanos? Mas não quero enveredar muito por esse caminho porque ‘Uma Faixa, Uma Rota’ não tem a ver com política. É para ajudar os nossos países vizinhos. A China nunca quis ser um líder global, a ‘polícia do mundo’, porque somos ainda um país em desenvolvimento.

E os EUA querem ser essa “polícia do mundo”?

Claro, ainda são. Por exemplo, qual é o seu papel em Hong Kong? Nenhum. São assuntos internos que temos de resolver com o país. Porque é que estão a meter as mãos em Hong Kong?

O território tem uma nova lei eleitoral e foi implementada a lei de segurança nacional. Não teme que esta situação política possa afastar os empresários?

Não. Os números falam por si. Os empresários podem falar sobre isso, mas não estão a ir embora. Os espiões têm medo, mas não os empresários no geral.

Que tipo de espiões?

Hong Kong tem muitos espiões, isso é conhecido. O território é um dos principais centros de espionagem do mundo. [Estão nas ] organizações não governamentais, em algumas plataformas de redes sociais, revistas. Não têm uma presença, mas sim uma representatividade, e o que fazem? Recolhem dados para outros países. São estas as pessoas que se preocupam com a lei da segurança nacional (risos).

Qual o papel que Hong Kong deve ter na política “uma faixa, uma rota”?

Desempenhamos um papel muito importante porque Hong Kong é a única cidade na China onde vigora a Common Law, e onde está implementada a política “um país, dois sistemas”. Continuamos a ter autonomia em tudo. Não temos capacidade diplomática porque somos apenas uma cidade, mas temos as nossas regras e o nosso Direito.

Olhando para Macau, há uma relação próxima com o Direito português. Qual é a sua visão para o papel de Macau na política “uma faixa, uma rota”?

Macau tem outro papel a desempenhar, tem de lidar com os países de língua oficial portuguesa. O Brasil é parte desta política, e porquê? Porque o actual presidente é pró-Trump [Jair Bolsonaro], não estou certo de ele ser pró-Biden. A China compra muitos produtos ao Brasil, como carne. A relação entre os dois países não é tão boa como antes, mas não posso dizer que seja uma relação má. Digo isto porque o cônsul-geral do Brasil em Hong Kong continua a promover a ‘Uma Faixa, Uma Rota’. Acredito que estão a tentar melhorar as relações.

9 Abr 2021

André Lui, arquitecto e especialista em património, sobre edifício da Alfândega: Um marco da soberania chinesa

Que motivos o levaram a considerar o edifício importante para a educação patriótica?

André Lui: O edifício da Alfândega em Macau era uma das representações da soberania chinesa, durante a Dinastia Qing. Pode ver-se que nos dias de hoje, a nível do património de Macau, encontramos muitos edifícios com influências europeias, principalmente relacionadas com a administração portuguesa. Mas, para encontrarmos edifícios que representem a soberania chinesa em Macau relacionados com a Dinastia Qing é muito difícil, para não dizer que não há.

Qual a razão desse cenário?

Foi porque durante o século XIX o governo português adoptou políticas diferentes… Mas, se forem feitos estudos arqueológicos naquele local […], é possível encontrar vestígios desse edifício. Só que a importância não se esgota no edifício da alfândega.

Este edifício pode ter um interesse além de Macau, mas antes nacional?

Sem dúvida! Na China não é normal encontrar vestígios de edifícios alfandegários desta data. E se tivermos em conta o contexto político nos dias de hoje, pode ser uma forma de ensinar o patriotismo.

Quais são os outros motivos de interesse?

Antes de ser construída a alfândega existia naquele local um edifício religioso, a Igreja de Nossa Senhora do Amparo. É esse o nome da rua naquele local. As pessoas que anteriormente participaram nos estudos arqueológicos naquela zona encontraram vestígios de três épocas distintas. Uma das épocas é o início da Dinastia Qing, ou seja, no século XVII. Existem também vestígios do século XIX, nomeadamente com as fundações da alfândega chinesa. Depois há vestígios do século XIX, porque houve ali um edifício mais recente, que era uma construção azul. Actualmente já não existe, mas em termos de arqueologia e valor histórico aquela zona é muito importante.

Considera que o Governo devia tentar ficar com o terreno e construir um museu sobre a importância do edifício?

Era uma boa opção. Se olharmos para aquela zona, nunca vai permitir que seja construído um bom projecto, em termos de edifícios residenciais ou comerciais, porque os acessos são muito difíceis. Por outro lado, aquele terreno tem um valor histórico e arqueológico para Macau. Há uns anos, o Governo comprou o terreno da farmácia de medicamentos ocidentais Chong Sai, de Sun Yat Sen, e construiu um museu. Gostava de ver o Governo fazer algo semelhante neste local, com um museu ou um museu arqueológico. Um pouco à imagem do que foi feito em Lisboa, com a Casa dos Bicos, em Lisboa.

Pode dizer-se que além do valor histórico seria também outra atracção turística…

Exactamente, e que se integra muito bem como zona de interesse para quem gostava de visitar as Ruínas de São Paulo. Seria bom para promover o turismo em Macau.

8 Abr 2021

Xu Chang, académico do centro de estudos “um país, dois sistemas” do IPM: Uma política com “vitalidade”

Xu Chang, especialista na Lei Básica e académico do centro de estudos “um país, dois sistemas” do Instituto Politécnico de Macau defendeu que continuam a poder ser expressas opiniões na sociedade sobre o caso TDM e a proibição de manifestações, o que prova a “vitalidade” dessa política. Sobre a lei da segurança nacional, o académico pede uma revisão do diploma

 

Um especialista do Centro de Estudos ‘Um País, Dois Sistemas’ disse à Lusa que a polémica em Macau sobre a liberdade de expressão e de manifestação só prova “a vitalidade” da fórmula criada por Pequim. A proibição de várias manifestações em Macau desde o ano passado e a recente definição de uma linha editorial patriótica na TDM foram alguns dos casos controversos que ‘alimentaram’ a discussão pública sobre a violação da Lei Básica, e que se estaria a assistir ao fim do princípio ‘um país, dois sistemas’.

“De momento estas questões podem causar discussões e suscitar diferentes respostas na sociedade. Várias opiniões podem ser expressas. Isso por si só mostra que [o princípio] ‘um país, dois sistemas’ continua a ter vitalidade e a desempenhar um papel em Macau”, argumentou o académico do centro de estudos do Instituto Politécnico de Macau (IPM).

Por outro lado, mostra que “o espírito de procura de um terreno comum para se manter as diferenças entre os dois sistemas ainda existe e é respeitado”, defendeu, recusando opinar sobre a forma como se geriu legalmente cada incidente específico. Contudo, o especialista afirmou que “a população em geral está muito satisfeita porque a liberdade de expressão e de manifestação estão abrangidas na Lei Básica” e que é possível comprovar no território que “o princípio ‘um país, dois sistemas’ está totalmente implementado em Macau”.

De resto, o Centro de Estudos ‘Um País, Dois Sistemas’ do IPM tem tido um papel importante na passagem da mensagem patriótica chinesa em Macau, ao promover sessões nas escolas sobre a Constituição e a Lei Básica. “A introdução da Constituição e da Lei Básica nas escolas primárias e secundárias é muito útil para incutir o pensamento patriótico nos jovens e para alimentar gerações de patriotas para transmitir a causa patriótica de Macau”, explicou.

A última manifestação a ser proibida em Macau estava marcada para o passado domingo. Depois de ter sido autorizada pela PSP, os serviços de saúde do território alegaram razões de prevenção pandémica para não autorizar a concentração e o protesto, apesar de Macau não registar casos locais há mais de um ano e nunca ter identificado qualquer surto comunitário.

O protesto visava em especial uma das medidas de apoio anunciadas pelo Governo e era organizado por dois deputados associados ao campo pró-democracia com assento na Assembleia Legislativa.

Uma nova lei

O mesmo especialista disse que é necessário continuar a mexer e ampliar a aplicação da lei da segurança nacional em Macau até se criar um “sistema vivo”. Xu Chang afirmou que a legislação relativa à defesa de segurança do Estado chinês já data de 2009, que “não foi usada”, que “o conteúdo é limitado” e, por isso, “deve ser melhorado e alterado”.

O académico lembrou, contudo, que o Governo tem vindo a rever o sistema, com importantes alterações na Lei de Bases da Organização Judiciária, como a exclusão de juízes estrangeiros no julgamento de crimes em que esteja em causa a segurança nacional, e em algumas disposições especiais ao nível da investigação e acusação.

“A Lei de Defesa de Segurança do Estado foi promulgada em 2009 e centra-se principalmente nos sete artigos da Lei Básica que proíbem conteúdos relevantes, tais como crimes por traição, subversão, secessão, subversão contra o Governo Central e roubo de segredos de Estado”, começou por explicar, para concluir: “O seu conteúdo é relativamente restrito, e precisa de ser melhorado e alterado”.

A legislação não foi usada desde então e “deve ser gradualmente aplicada, para se tornar progressivamente num sistema vivo, de acordo com a situação real de Macau”, sustentou.

Por outro lado, assinalou que “a construção de um sistema de defesa da segurança nacional é um tema eterno, porque o âmbito da segurança nacional está a tornar-se cada vez mais extenso”, abarcando conceitos que podem ir desde a segurança ecológica até à nuclear.

Por isso é que o verdadeiro poder nesta matéria pertence indiscutivelmente a Pequim, até porque “é limitado aquilo que as autoridades locais podem fazer”, concluiu.

A lei da segurança nacional foi promulgada em 2009 em Macau. O Governo já tinha frisado que a actual legislação estipula “apenas a composição e as penas dos sete crimes tradicionais que ameaçam a segurança nacional, enumerados no artigo 23.º da Lei Básica”.

Ao contrário de Hong Kong, em Macau não há qualquer organismo de investigação criminal dependente do Governo central, nem a possibilidade de extradição para o interior da China por crime cometido no território. A tipologia dos crimes é outra das diferenças, bem como o âmbito de práticas criminalizadas, bem menos abrangente em Macau do que em Hong Kong.

A moldura penal definida no caso de Hong Kong é uma das grandes diferenças. Isto porque a lei de Macau estabelece, como sanções principais, penas de prisão que oscilam entre um e 25 anos de prisão, mas na região vizinha a moldura penal prevê penas que vão dos dez anos a prisão perpétua.

Tentativa de ocidentalização

Na mesma entrevista, o especialista defendeu também que se tentou usar Hong Kong para atingir Pequim, para que o território servisse de base para ocidentalizar a China. Xu Chang lembrou ainda que na região vizinha foram entoados ‘slogans’ anti-China, anti-comunistas e independentistas, o que era “estritamente proibido sob o domínio britânico”.

Ou seja, acusou, “tentou-se usar Hong Kong como uma base ou ponte para a ocidentalização e subversão da China”, algo que ficou patente nos protestos violentos de 2019, argumentou.

O académico afirmou que parte da comunidade internacional não percebe a simplicidade da fórmula chinesa em vigor nas duas regiões administrativas especiais chinesas: “A parte principal do país forma um sistema socialista e Hong Kong e Macau mantêm o sistema capitalista original e permanecem inalterados”.

Ou seja, explicou, “‘Um País, Dois Sistemas’ é um arranjo institucional inabalável e imutável de longo prazo” e “os dois sistemas existem sob a premissa de um país”, tendo sido realizados “alguns ajustes realistas às circunstâncias especiais de Hong Kong”.

Para Xu Chang, não é realista a ampliação das diferenças entre os dois sistemas defendida por parte da comunidade internacional, que não entende a premissa. Isto porque, procurou esclarecer, essas diferenças “estão, na verdade, em contradição com o regresso do exercício da soberania pela China”.

Fórmula para Taiwan

Já em relação a Taiwan o docente do IPM lembrou que a fórmula ‘Um País, Dois Sistemas’ tinha sido desenhada para contemplar a ilha. Após o fim da guerra e o estabelecimento da China comunista, em 1949, o líder da República da China derrotado, Chiang Kai-shek, e as suas tropas exilaram-se na ilha de Taiwan. Nos anos 1990 começaram a realizar eleições democráticas, mantendo-se no poder forças que não aceitam a reunificação com a China, apesar das ameaças de Pequim. “O povo de Taiwan não faz certamente parte das forças hostis, mas é o próprio Governo de Taiwan que assume um estatuto hostil”, sustentou Xu Chang.

“No processo de resolução dos problemas específicos que precisam de ser resolvidos, serão tomadas boas medidas para proteger os direitos e interesses legítimos dos residentes de Taiwan e, ao mesmo tempo, para se adoptarem disposições mais adequadas com base nas lições aprendidas com a implementação da experiência histórica de Hong Kong e Macau”, acrescentou.

Xu Chang é licenciado pela Faculdade de Direito da Universidade de Pequim, com especialização em Direito Internacional, pós-graduado em Direito Administrativo Constitucional e Doutor em Direito. Tem trabalhado em Hong Kong e Macau desde meados da década de 1980, tendo publicado centenas de artigos e monografias relacionados com o sistema político e de desenvolvimento económico e social destas duas regiões administrativas especiais chinesas. O especialista esteve ainda envolvido na elaboração da Lei Básica de Macau.

7 Abr 2021

Fernando Vitória, ex-assessor jurídico da DICJ: “Deveria ser criado um Código de Jogo”

O antigo jurista da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos (DICJ) defende que há ainda muita legislação dispersa nesta área e defende a compilação num Código. Em entrevista, Fernando Vitória afirma que a quebra nas receitas pode ser “um bom argumento” para “pressionar” Pequim a “abrir mais concessões de jogo”

 

Recentemente, um académico do IPM defendeu que Macau deveria legalizar o jogo online. Há espaço para avançar nesta matéria?

Falou-se muitas vezes sobre o jogo online. Houve alguns requerimentos formalizados por sociedades que não eram as concessionárias para [a legalização]. Mas a conclusão dos decisores políticos era sempre a mesma: se já tínhamos tantos casinos e não precisávamos, à data, de mais dinheiro, para quê o jogo online? Havia a convicção de que era mais uma causa de adição. Creio que não se avançou a sério por razões políticas e sociais. Faz algum sentido neste momento, mas não sei até quando este momento [de crise] se vai prolongar. Na China temem um bocado o jogo online, mas na verdade as pessoas já jogam online, com as apostas desportivas. Há um certo receio de que isso se torne de tal maneira popular que se torne um vício comunitário. Mas era uma possibilidade.

Mantém-se as lotarias chinesas, e já foi defendido que esse tipo de jogo deveria acabar em prol da renovação do sector. Concorda que haja mudanças ao nível das lotarias quando se renovarem as concessões?

Sim, porque é um sector que foi muito desprezado. É muito antigo, mas nunca houve grande investimento nas casas de lotarias chinesas, embora elas sejam muito importantes do ponto de vista cultural. Não se deveria acabar com o Fantan, embora as receitas sejam simbólicas, nem como as lotarias chinesas, porque isso faz parte da chinesa.

Na questão das novas concessões o Governo continua a não avançar grandes detalhes. Isso poderá ter influência nos investimentos futuros?

Já se deveria ter dado uma indicação geral da política do Governo em relação às actuais concessionárias. Essa é a questão principal do conceito de concessão que tem várias vantagens, mas que tem esta desvantagem, que se verifica na fase final da concessão: com o receio de a perder, a concessionária deixa de fazer investimentos. Isso é mau do ponto de vista da receita e até do ponto de vista da imagem do Governo. Sei que agora há a desculpa da pandemia e da incerteza quanto à política da China acerca da saída dos seus cidadãos para Macau.

Mas depois olhamos para o Cotai e os projectos avançam, apesar de serem investimentos que já estavam programados.

Já há muitos anos. Mas isso foi uma das coisas extraordinárias que aconteceram em Macau e isso deve-se ao Sheldon Adelson [ex-CEO da Sands China, recentemente falecido], que arrastou todos os outros. Projectos que estavam programados há cinco ou seis anos, foram agendados nos bancos. Em 2015 havia o compromisso por parte do Governo com cinco casinos. Neste momento, as coisas estão no fim de período, não sei se depois de mais um ano ou dois os investimentos vão continuar, até porque há limitações de espaço. Daqui a diante vai ser diferente. Os investimentos no Cotai vão abrandar bastante.

A questão das subconcessões tem agora de ficar totalmente esclarecida com um novo concurso público?

Tem de ficar resolvido e esta é a melhor oportunidade. Na realidade, nem se podem considerar como sendo subconcessionárias porque reportam directamente ao Governo e não à concessionária. Como a lei diz que só podem existir três concessionárias, estamos perante um dilema legal. Teria de se mudar a lei e não sei se haverá problemas na Assembleia Legislativa (AL). Esse era um dos grandes receios. Mas factos são factos, e a solução passa mesmo por uma alteração da lei na AL. A primeira subconcessionária, a Venetian SA, era para ser a sociedade gestora da Galaxy. Mas como eles se desentenderam e tornaram a relação impraticável, não havia possibilidade nenhuma de comunicação, teve de se arranjar uma solução de recurso, e foi essa, a da subconcessão.

Porque se desentenderam?

Nem uns, nem outros estavam interessados em explicar os pormenores do desentendimento. Mas teve, desde logo, a ver com uma concepção de jogo de Sheldon Adelson, que vinha de Las Vegas, e que trazia um know-how extraordinário, que chocou com a maneira mais cautelosa e até diferente da Galaxy, mais ligada à realidade chinesa de Hong Kong. Isso nunca foi dito publicamente, mas os investimentos previstos pelo senhor Adelson eram completamente incomportáveis para a Galaxy. A Galaxy não estava preparada para dar garantias financeiras. A solução da subconcessão até nem foi má, foi a possível na altura. Resolveu o problema de uma forma prática, mas não do ponto de vista jurídico-legal. Um dia destes, nos tribunais, corre-se o risco de alguém invocar a ilegalidade ou a falta de fundamentação da actividade de uma subconcessionária. Convém acautelar isso, sobretudo se houver interesses.

Não há também um certo status quo a manter para que isso não aconteça?

Sim. O pragmatismo chinês acaba por nunca colocar isso em questão de uma forma directa, mas a questão tem de ser resolvida do ponto de vista legal, sob pena de haver conflitos de interesses. Aí o juiz tem de aplicar a lei e isso criaria um problema complicado para o Governo.

Há uma nova redução do número de promotores de jogo licenciados. É um sinal dos novos tempos? Temos a crise do jogo e também a mudança de postura das concessionárias?

O futuro passa por aí. Mas a grande revolução com a liberalização do jogo não foi ao nível dos casinos nem das concessões, foi a nível dos junkets. Era terra de ninguém. Havia três ou quatro regras, mas aquilo nunca funcionou como uma verdadeira actividade legal. Era algo tão disperso e opaco que era preciso fazer algo. Progrediu-se bastante e a lista dos promotores acabou por ficar reduzida, porque perceberam que as exigências legais já não permitiam trabalhar como antes. A pouco e pouco percebemos que todos os anos havia sempre menos promotores. A tendência era ficarem os mais preparados e os que tinham melhores condições do ponto de vista de organização societária e financeira. Essa redução é natural e não quer dizer que a actividade se reduza completamente, quer dizer é que eles têm de começar a funcionar de uma forma mais transparente. E resolver o problema do financiamento.

Em que sentido?

Acho que o principal problema dos promotores é a forma como obtêm o dinheiro. E muito, o que dá origem depois a casos como o da Dore.

É também algo que tem de ser alterado na lei.

É. A questão principal aí é que eles estavam numa zona cinzenta, mas ilegal, de angariar financiamento através de juros muito elevados. Estavam a entrar na zona cinzenta de oferecerem juros muito altos às pessoas que tinham uma promessa de rendimento elevadíssimo se investissem junto dos promotores. E eles estavam a cumprir porque faziam muito dinheiro, mas isso é uma actividade bancária. Depois com tanto dinheiro surgiram vários problemas. Não tinham bancos por detrás para gerir tanto dinheiro. Os promotores mais importantes foram para a bolsa de valores de Hong Kong e aí já existe um controlo mais apertado sobre a sua actividade, mas na angariação de fundos muitos continuam a viver num mundo sem regras e que contraria a ordem jurídica de Macau. Não podem dizer que não conheciam esta situação porque isso foi discutido na AL. Foi dito que essa era uma actividade de bancos.

A percepção de que os junkets estão ligados ao mundo do crime terá cada vez mais tendência para desaparecer?

Quando estava em Macau tinha a percepção de que havia muita actividade criminosa e até violenta associada aos junkets. Mas aos poucos, com a regulamentação e maior transparência da sua actividade, isso foi-se alterando. Deixou de haver a conotação com o crime mais violento para haver a conotação com o branqueamento de capitais e com a transferência de dinheiro de diversas proveniências, como a China. O dinheiro aparecia não se sabe bem de onde, com valores extraordinários. A propósito da regulamentação de branqueamento de capitais fiz o primeiro inquérito destinado a pessoas que queriam jogar além de um certo limite. A maioria das respostas à pergunta “qual a origem do dinheiro?”, era “a minha mãe deu-me”. Mas a situação também não era como os americanos pintavam, que achavam que era um mundo completo de branqueamento ou de apoio ao terrorismo. Não é, porque falamos de transferências entre a China e uma região autónoma que está integrada na China. Mas penso que em Macau não é possível, de um momento para o outro, dispensar os promotores de jogo. Há uma tradição e prática que tem alimentado os casinos.

Falando das decisões dos tribunais, Macau atingiu um nível de excelência na área do Direito do jogo?

Há ainda um caminho a percorrer, até porque sobre o jogo não há muitas decisões. Há questões ligadas ao jogo, como as actividades de promoção de jogo. Creio que os juízes, a maior parte deles, não têm nenhuma especialidade em Direito do jogo. Há um conjunto de normas que ainda não foram devidamente testadas nos tribunais e que são um bocado polémicas, tal como a da responsabilidade solidária das concessionárias em relação à actividade dos promotores. Os tribunais não estão preparados para isso. Havia a ideia de que estas questões nunca deveriam ir para os tribunais, mesmo na Administração portuguesa sempre se fugiu a essa ideia de levar estes casos para tribunal. Então há um longo caminho a percorrer por parte dos tribunais e da legislação e há que aperfeiçoá-la, não em função dos problemas suscitados pelo passado, mas também pela experiência dos juízes. Estes devem ser ouvidos. Mas apesar das melhorias introduzidas a legislação está ainda bastante dispersa, deveria ser criado um código do jogo.

Acredita que pode haver jogo na Ilha de Hengqin? A Macau Legend Development, de David Chow, investiu num complexo comercial, o 勵駿龐都廣場PONTO, por exemplo.

Não lhe sei dizer. Mas, com David Chow tudo é possível.

É um empresário carismático?

À sua maneira é. Em todos os investimentos que ele fez em Macau ninguém percebia muito bem como é que ele conseguia tão rapidamente concretizá-los, mesmo que só dessem prejuízos, como é o caso da Doca dos Pescadores. Ele tem uma maneira diferente de ser empresário. Havia rumores de que tinha ligações especiais a Stanley Ho. Neste momento, ele consegue ter o apoio do Governo Central.

É um dos fortes candidatos a uma licença de jogo?

Acredito nisso, mas depende de muitos interesses e da abertura do Governo Central em relação ao alargamento do número de concessões. Isso tem sido falado, até para satisfazer a vontade de David Chow e a mais um ou outro que foram deputados. Há lugar a mais empresários locais. Há a questão do equilíbrio entre as concessões chinesas e as americanas. Depois de Pansy Ho ter vendido uma parte da sua participação na MGM creio que houve algum receio de que os americanos passassem a dominar o sector do jogo. E a China manifestou preocupação junto da nossa direcção [DICJ]. Esse pode ser um argumento para que haja mais concessões a empresários ligados a Macau, Hong Kong e China.

Poderemos ter seis concessões e mais uma?

A ideia da concessão é limitativa. Mas em relação às licenças de jogo pode haver dezenas e de várias formas. Talvez esta situação de redução das receitas do jogo possa ser um bom argumento para pressionar o Governo Central a abrir mais concessões.

1 Abr 2021

Zeng Zhonglu, professor do Instituto Politécnico de Macau: “Macau está a ficar para trás”

O professor do Centro Pedagógico e Científico nas Áreas do Jogo e do Turismo do Instituto Politécnico de Macau, Zeng Zhonglu defendeu que as autoridades locais deveriam apostar na legalização do jogo online sob pena de atrasar-se face a outros mercadores. O académico sugere a aposta na área da inteligência artificial e afirma que adiar o concurso público para as novas licenças de jogo pode afectar o investimento

 

O especialista em turismo e jogo Zeng Zhonglu disse, em entrevista à agência Lusa, que Macau deve pensar em legalizar o jogo ‘online’ e apostar na importação de talentos que desenvolvem Inteligência Artificial (IA) na China. O professor do Centro Pedagógico e Científico nas Áreas do Jogo e do Turismo do Instituto Politécnico de Macau (IPM) defendeu que “a única forma de Macau desenvolver a tecnologia de IA na indústria do jogo é de recrutar talentos da China continental”.

“A IA é muito importante para o jogo ‘online’. Até ao momento, Macau não tem uma indústria de jogo ‘online’. No futuro, Macau devia considerar legalizar o jogo ‘online’, caso contrário vai atrasar-se, porque outros territórios, outros países, estão a desenvolver esta área muito rapidamente”, avisou, para concluir que, nesta área, “Macau está a ficar para trás”.

Ainda que Macau consiga oferecer casinos e hotéis de luxo, os melhores da Ásia, frisou o académico, hoje o jogo ‘online’ é “uma ameaça potencial para o negócio” para a capital mundial do jogo.

“A competição entre destinos, tornou-se cada vez mais feroz, cada vez mais intensa” e, por isso, “Macau deve distinguir-se (…), deve encontrar um novo caminho”, advertiu o académico, uma vez que os casinos reais de Macau podem começar a ser preteridos.

O docente do IPM sublinhou que um pouco por todo o mundo os jogos ‘online’ “estão a desenvolver-se muito rapidamente, especialmente durante a covid-19”, e que em muitos países, as receitas dos jogos de azar na Internet duplicaram.

Por outro lado, sustentou, o território “deve convidar algumas empresas de tecnologia de ponta, especialmente no sector dos jogos, empresas de ‘software’”, em especial dos Estados Unidos e Austrália, para virem a Macau e utilizarem o conhecimento [sobre o consumidor] de Macau (…) para fazerem produtos únicos”.

Em Macau “as empresas de jogo têm um contacto próximo com os clientes para que possam conhecer os comportamentos ou preferências dos clientes muito melhor do que outros locais”, explicou. Por isso, o território “deve utilizar estes conhecimentos para desenvolver jogos, ‘slot machines’ ou alguns outros produtos de jogo” para o mercado asiático, que conhece bem, afirmou.

Finalmente, Zeng Zhonglu assinalou que Macau tem ainda de encontrar novas formas de atrair turistas, uma vez que as promotoras de jogo já não podem ir à China angariar grandes apostadores, devido a uma mudança legislativa imposta por Pequim.

A questão do concurso

Na mesma entrevista, Zeng Zhonglu disse que o Governo deve manter o concurso de concessão de licenças para casinos em 2022 porque um adiamento pode trazer incerteza e afastar o investimento. Contudo, “se a pandemia continuar este ano e no próximo, o Governo deve ponderar adiar o concurso para as novas licenças”, defendeu o professor.

Ainda assim, sublinhou, “se a pandemia acabar rapidamente, talvez no fim deste ano, acho que o Governo deve seguir o plano inicial” e manter o calendário de 2022 para realizar o concurso para as licenças de jogo.

A razão é simples, justificou: “O adiamento, de uma forma geral, não é bom para a indústria [do jogo] por causa da incerteza”, que “não é boa para fazer investimentos e para se tomarem decisões”. Isto porque “Macau é um mercado muito importante que [as operadoras de casinos] não querem perder”, acrescentou.

O sector do jogo tem enfrentado uma crise devido às restrições nas fronteiras e à falta de turistas. Em 2019, os casinos obtiveram receitas de 292,4 mil milhões de patacas, mas, no ano passado, devido ao impacto causado pela pandemia, a indústria terminou 2020 com receitas de 60,4 mil milhões de patacas, uma quebra de 79,3 por cento em relação ao ano anterior. No ano anterior à pandemia, o território atraiu quase 40 milhões de visitantes.

Legado português já não chega

O especialista em turismo frisou também que o legado português não chega para ‘vender’ Macau aos turistas e que o território tem de descobrir outras narrativas históricas para promover produtos turísticos e reforçar a sua singularidade.

“Macau tem mais de 400 anos de cultura mista de portugueses e chineses. Esta cultura é única. É diferente”, começou por afirmar o académico. “Macau tem, naturalmente, muitos edifícios de arquitectura em estilo português, mas isto não é suficiente”, sublinhou.

A RAEM “deve estudar os 400 anos de história e encontrar mais histórias (…) para que possa desenvolver mais produtos” turísticos, explicou. E Zeng Zhonglu dá um exemplo: “Durante 400 anos, para muitos chineses Macau foi a única saída para países estrangeiros em toda a China. Naquela época, durante os 400 anos, muitos chineses famosos partiram de Macau para outros países. (…) Macau tem de desenterrar histórias”.

A ideia é criar valor acrescentado aos produtos turísticos: “Se o produto turístico tem uma história por detrás, o valor é bastante diferente na mente dos visitantes, por isso Macau deve encontrar os significados destes produtos e descobrir as formas eficazes de comunicar esses significados aos visitantes, para que Macau possa atrair os turistas da cultura a partir dos produtos artísticos, em vez de apenas comida, bebida e compras”.

29 Mar 2021

Marcus Schütz, professor ligado ao projecto “Silk and Road Explained”: “Queremos despolitizar esta iniciativa”

Desmistificar ideias e explicar os passos a adoptar para investimento e cooperação são os objectivos principais do projecto “Silk and Road Explained”, que conta com a colaboração de académicos de vários países associados à política chinesa “uma faixa, uma rota”. Marcus Schütz, professor universitário e especialista em investimentos chineses no âmbito desta política, é um dos responsáveis pelo projecto. Defende que, nesta matéria, Macau tem um papel cultural e diplomático, enquanto que Hong Kong não conseguiu inovar além do seu papel de centro financeiro

 

Como surgiu a ideia de criar este projecto?

A primeira ideia foi reunir um grupo de académicos e colaboradores que trabalham com projectos relacionados com a política “uma faixa, uma rota”. Cedo percebemos que havia diferentes entendimentos daquilo que é esta política. Para mim, é mais uma narrativa, é uma forma de coordenar fundos e projectos, e não apenas chineses. É um esforço multilateral, embora tenha tido origem na China. Diria que a visão ocidental desta iniciativa está muito politizada e queremos estar afastados disso. O nosso objectivo é desmistificar algumas das narrativas que há por aí em torno desta política, mas isso nem sempre é fácil. Queremos despolitizar esta iniciativa com as explicações que damos e convidar mais participantes da China para esta discussão. Queremos mesmo ter uma visão neutra.

Querem aproximar-se mais de uma visão económica, talvez?

O Global Policy Institute, em Londres, que é um dos nossos colaboradores, tem uma visão das políticas que levam a melhores relações comerciais, a uma melhor integração e ligação em matéria de importações e exportações. Olham para os sistemas financeiros onde estamos inseridos, temos o dólar americano, o euro, o renmimbi. Esta é a parte das políticas, mas depois temos o lado prático, da implementação, que visa responder à pergunta: “se eu quero fazer parte disto, se me quero candidatar ao financiamento de um projecto, que passos tenho de dar?”. E há depois uma terceira parte, relacionada com as oportunidades que esta política pode proporcionar. Agora olhamos sobretudo para as oportunidades das empresas ocidentais.

Coloca-se a questão da dependência financeira de alguns países em relação à China, graças aos empréstimos concedidos?

A dependência desenvolve-se sempre quando se tem um parceiro de negócios. Vemos muitas vezes o argumento de que a China deliberadamente empresta dinheiro a países com mais fragilidades para que haja dificuldades em pagar esse empréstimo, para aumentar o impacto nas políticas internas desses países. Por exemplo, nos países africanos, uma investigação recente da Universidade John Hopkins olha para os empréstimos concedidos aos países africanos e não foi encontrada uma evidência de que isto tenha sido feito para aumentar a dependência desses países.

Com a pandemia, acredita que a política “uma faixa, uma rota” enfrenta grandes mudanças na forma de como os investimentos são feitos?

Na área da construção civil, por exemplo, a coisa boa é que este sector conseguiu manter-se à parte e foi um dos poucos que não sofreu com a pandemia. Quando olhamos para os investimentos na área das infra-estruturas não há nenhuma mudança, as coisas continuam. O único obstáculo da política “uma faixa, uma rota”, que eu penso ser significativo, é que a média de financiamento que a China pode atribuir a outros países é relativamente baixa. Neste momento, quando olhamos para estes projectos, vemos que têm sido financiados na sua maioria por entidades chinesas, e há depois uma participação muito pequena de outros países.

Portugal é um parceiro importante da China nesta política. Como olha para o futuro desta relação bilateral? É um país suficientemente competitivo?

Penso que não é necessário ser-se competitivo para participar [nesta política], porque há muitos países diferentes a participar, com modelos distintos. Pode-se ser um parceiro de investimentos, um país que serve de trânsito ao comércio ou aos mercados europeus. Portugal, geograficamente, está um pouco afastado, então a questão que se levanta é que tipo de acordos é que o país está à procura. Portugal está integrado na União Europeia e depende um pouco de como a discussão decorre e de como os Estados-membros se posicionam em relação à política “uma faixa, uma rota”. Um exemplo é a Grécia e o porto de Pireu. Isto é uma narrativa e podemos ter o nosso papel nessa narrativa.

Qual o papel das regiões administrativas especiais chinesas nesta política? Macau não é um centro financeiro como Hong Kong, mas aparece bastante no discurso político pela relação que pode ter com os países de língua portuguesa.

Os papéis de Macau e de Hong Kong devem ser muito diferentes. Vejo Macau como uma ponte de ligação aos países de língua portuguesa devido à herança portuguesa. Hong Kong é diferente, é um centro financeiro e tem uma moeda indexada ao dólar americano. Mas, por outro lado, apesar de ser um centro financeiro, não tem muito para oferecer à política “uma faixa, uma rota”. Quando olhamos em termos logísticos, para o lugar dos portos de Hong Kong e de Shenzhen, o porto de Hong Kong já não é estratégico nesta matéria. Vou a Hong Kong uma vez por ano onde dou aulas numa universidade, precisamente sobre a política “uma faixa, uma rota”. E sinto que Hong Kong está a enfrentar dificuldades na sua participação. É um centro financeiro, mas quando falo com parceiros de lá noto muitas questões sobre aquilo que esta política deveria ser e qual o papel que devem assumir.

A situação política em Hong Kong também deverá contribuir para essas dificuldades.

Macau tem sido tratado com mais simpatia pela China do que Hong Kong devido a essa situação. Falo com os estudantes, sei o que sentem e sinto que em Hong Kong há um grande descontentamento pela forma como as coisas estão a acontecer. A Grande Baía pode ajudar a trazer alguma aproximação, mas não vejo esta política a ser parte da iniciativa “uma faixa, uma rota”. Hong Kong está sem dúvida a enfrentar dificuldades em várias frentes.

Mesmo em relação ao projecto da Grande Baía há constrangimentos.

Hong Kong, para mim, falhou no desenvolvimento de ferramentas e capacidades, para ser verdadeiramente útil fora do sector financeiro. Isso é algo difícil de conseguir. Não há tecnologia, inovação, todas estas coisas não acontecem e também não acontecem na área financeira, o que é mais ridículo.

Mas Macau também procura uma diversificação económica, por exemplo, porque continua sem mais nada além do jogo.

Ninguém está a pedir a Macau para ter uma função específica, porque não é possível. O que é pedido é que seja um elo de ligação em matéria cultural e diplomática com outras regiões. Não vejo ninguém a exigir que os casinos participem na política “uma faixa, uma rota”. Macau tem os seus próprios problemas, e um deles tem a ver com a dimensão do território.

23 Mar 2021

Alexandr Svetlicinii, professor de Direito da Universidade de Macau: “Empresas estatais não são apenas actores económicos”

O autor do livro “Chinese State Owned Enterprises and EU Merger Control”, recentemente apresentado na Fundação Rui Cunha, faz uma análise da última legislação aprovada no seio da União Europeia que regula o investimento das empresas estatais estrangeiras, incluindo da China. Alexandr Svetlicinii acredita que estas leis podem trazer mais obstáculos e diz que Portugal tem um quadro regulatório mais brando do que alguns Estados membros

 

Quando começou a investigação que serviu de base a este livro?

Há vários anos que investigo este tema mas nos últimos anos tive um projecto de investigação com o Instituto de Estudos Europeus de Macau, que me ajudou a transformá-lo num livro. Apesar de este abordar o tratamento das empresas estatais chinesas também levanta questões importantes sobre as empresas estatais europeias dentro da UE. Quando houver uma recuperação da crise económica, causada pela covid-19, talvez vejamos um maior envolvimento dos Estados na economia com investimentos e empresas estatais. Veremos talvez mais políticas industriais do que antes. Todas estas questões ligadas à propriedade estatal são relevantes para a UE e não apenas por causa da China. Deve haver regras mais claras de como lidam [as empresas estatais chinesas] com as empresas estatais europeias.

Aborda no livro a ideia de “três grandes montanhas” aplicada aos investimentos estatais chineses.

Esta expressão simboliza alguns obstáculos que têm de ser ultrapassados. Faço esta comparação para identificar três quadros regulatórios que servem de base aos investimentos estrangeiros na União Europeia (UE), mais especificamente aos investimentos feitos por empresas estatais chinesas. A primeira montanha diz respeito ao “controlo da fusão”, que já existe há algum tempo e que consiste na regulação das empresas em termos de competição. A Comissão Europeia e os Estados-membros, dependendo do volume de aquisições, exigem compromissos ou condições e podem, muitas vezes, proibi-las. O que acontece é que as aquisições por parte das empresas chinesas levaram a uma série de questões, porque algumas delas, muito básicas mas ao mesmo tempo importantes, não foram devidamente respondidas.

Tais como?

Falo do conceito de “unidade económica singular” para empresas que estão separadas em termos legais mas são controladas pela mesma entidade. Em termos de competição são vistas como uma mesma unidade económica singular. Esta questão, relativamente às empresas estatais chinesas, não foi devidamente respondida. Houve muitos debates sobre até que ponto este “controlo da fusão” é suficiente para proteger os mercados europeus tendo em contas as preocupações ao nível da influência na competição das empresas. Também falo das mudanças das regras desse “controlo da fusão”, no sentido de que outras áreas, e não apenas a competição, devem ser incluídas. A Comissão Europeia não se mostrou disposta a mudar as regras do “controlo da fusão” porque são aplicadas de forma igual às empresas europeias. Então focaram-se em outras regulações.

Pode dar exemplos?

A análise do investimento directo estrangeiro baseado na segurança. Este regulamento foi adoptado em 2019 e começou a ser implementado em Outubro de 2020 e não introduz regras novas, mas exige aos Estados-membros que cooperem nesta análise aos investimentos estrangeiros. Muitos Estados-membros estão a adoptar novas regras e têm de partilhar informações sobre estes investimentos estrangeiros, incluindo com a Comissão Europeia. Esta é a “segunda montanha”, o segundo quadro regulatório. O terceiro está, para já, no formato de proposta.

E a “terceira montanha”?

É um relatório publicado pela Comissão Europeia em Junho do ano passado onde se propõe que se adoptem um conjunto de padrões de análise para as empresas estrangeiras e quaisquer empresas que façam negócios na UE com subsídios estrangeiros estatais. Actualmente, há um controlo estatal desses subsídios que são garantidos pelos Estados-membros, e há regras restritas sobre a atribuição de subsídios pelos Estados-membros da UE. Mas não há um quadro regulatório para os subsídios que são concedidos por empresas estrangeiras. A Comissão Europeia quer colmatar esta lacuna e no final deste ano deve apresentar uma proposta legislativa nesse sentido. Estes três quadros regulatórios serão aplicados aos investimentos estrangeiros e também aos investimentos chineses feitos por empresas estatais, tendo em conta a segurança de sectores considerados estratégicos por alguns estados membros da UE. As empresas estatais são, por norma, grandes beneficiárias dos subsídios estatais, por isso é que [este quadro regulatório] é também aplicável.

A relação entre as empresas chinesas e europeias, e a forma como estão presentes nos mercados, tem sido justa até agora?

O que posso dizer é que os dois sistemas regulatórios, na UE e na China, têm diferenças, e por causa disso as empresas que operam dentro e fora claro que podem parecer e tornar-se diferentes. Não chamaria uma relação injusta, mas distinta. A questão para a UE é como colocar no mesmo nível as suas próprias empresas e as estrangeiras. Por exemplo, os mercados europeus estão a tentar reduzir as diferenças com os quadros regulatórios que mencionei há pouco. E há depois o acordo de investimentos entre a China e a UE, onde se tentam impor condições de competitividade à China e isso é suposto ajudar as empresas europeias no acesso aos mercados e às operações no país. [É uma tentativa] de colocar entidades distintas, de ambientes diferentes, mais ou menos ao mesmo nível.

Relativamente ao acordo de investimentos, que análise faz? Quem beneficia mais com ele, a China ou a UE?

Um dos objectivos da UE foi garantir o acesso das empresas europeias ao mercado chinês e também colmatar estas lacunas na China para que as empresas europeias possam operar no país. Este acordo coloca alguns compromissos do lado da China e alguns deles estão directamente relacionados com estes objectivos. Se acompanharmos o desenvolvimento da China em matéria de investimento estrangeiro, nos últimos anos ela própria foi-se abrindo a novos mercados e sectores. O país reformou a sua legislação e tornou-a mais fácil para empresas estrangeiras. O que este acordo faz é instituir uma obrigação. Por exemplo, uma das preocupações da UE é que as empresas estatais tenham um tratamento preferencial, o que faz com que seja mais difícil aos investidores estrangeiros competir com elas no mercado chinês. E uma das obrigações é que ambas as partes devem garantir que as empresas estatais tomem as decisões com base em questões comerciais, ou seja, como uma empresa e não como um órgão estatal.

O livro refere a ideia de as empresas estatais chinesas serem vistas como “o pilar do socialismo com características chinesas”. A UE está a prestar mais atenção a esse lado político do investimento?

Há que compreender o tipo de efeito. Por exemplo, o facto de as empresas estatais poderem ser guiadas não só por razões comerciais mas também por algumas políticas e económicas, por a China querer desenvolver determinados sectores. Às vezes as empresas estatais podem tomar decisões que poderiam não se basear apenas na obtenção de lucros mas na implementação dessas políticas. Mas este facto não é único para a China, podemos nomear muitos países onde as empresas estatais têm essa função pública, e mesmo na UE isso acontece. As empresas estatais não são apenas actores económicos, também têm funções sociais e políticas. Talvez haja uma diferença em termos de intensidade, relativamente ao facto de as empresas europeias não serem tão importantes para o Estado como são na China.

Pergunto se essas empresas têm também uma agenda política.

Não parece que na UE haja uma clara compreensão ou articulação do tipo de agenda política das empresas estatais. Na adopção das regulações sobre o investimento estrangeiro, baseado em questões como a segurança e a ordem pública, um dos critérios incluído foi o domínio estatal sobre o investimento estrangeiro. A regulação europeia sugere que a propriedade estrangeira possa ser analisada caso represente uma ameaça em matéria de segurança nacional. Alguns Estados-membros também incluíram este critério nas leis nacionais. A própria UE não tem competência em matéria de segurança, então cada estado-membro vai decidir por si se considera ou não uma ameaça. Até agora não existe consenso por parte dos Estados-membros sobre eventuais ameaças à segurança ou ordem pública causadas pelos investimentos das empresas estatais. Mas há países com indústrias mais desenvolvidas, como é o caso da França ou da Alemanha, que parecem ser mais cautelosos relativamente ao investimento estrangeiro estatal, enquanto que outros países, com indústrias menos desenvolvidas, acolhem melhor esse investimento. Não o consideram uma ameaça e têm-no em conta consoante o sector de investimento.

Estas regulações podem trazer grandes mudanças a nível prático?

Todo este desenvolvimento legislativo pode criar um obstáculo adicional para os investimentos de empresas estatais estrangeiras. Contudo, o acordo de investimentos entre a China e a UE vai ser um exercício importante de construção da confiança entre ambas as partes. E se for implementado de forma satisfatória ambas as partes vão ganhar com ele e os futuros investimentos possam ser vistos de uma outra forma. Agora há uma atitude cautelosa por parte da UE, sobretudo numa altura de recessão económica. Devido à nova legislação e recessão económica talvez possamos esperar mais obstáculos a este tipo de investimentos em sectores estratégicos.

Este é o período da presidência portuguesa da UE. Espera algumas alterações em matéria política e legislativa na relação com a China?

Não vejo que neste período a relação entre a China e a UE sofra mudanças significativas. São poucos meses de presidência e provavelmente o acordo de investimento não será ratificado nos próximos seis meses, vai levar mais tempo. Mas quando falamos da relação bilateral entre a China e Portugal talvez seja mais aberta, por uma questão estratégica, comparada com outros Estados-membros. Um sinal que vemos é que Portugal já tem regras de análise de investimento directo estrangeiro desde 2004, mas estas não requerem uma pré-aprovação ou notificação dos investimentos estrangeiros. Apenas permitem que o Governo intervenha e reveja projectos individuais que possam gerar maior preocupação em matéria de segurança nacional. É um regime algo aberto. Alguns Estados-membros adoptaram regras mais estreitas, mas Portugal não o fez.

17 Mar 2021

Cloee Chao, representante dos Trabalhadores do Jogo | A mãe de todas as lutas

Criou uma associação laboral porque não tinha para onde se virar, afectada pelo fumo passivo nas salas de jogo. Cloee Chao subiu a pulso na indústria dos casinos, criou duas filhas que a acompanham em lutas laborais enquanto trabalhava por turnos e prepara-se para voltar a candidatar-se a deputada. Ainda não decidiu se corre com Ng Kuok Cheong, mas garante que vai continuar a cooperar com o deputado pró-democracia, com quem partilha lutas e princípios

 

Como chegou à indústria do jogo? Era algo que ambicionava? O que a atraiu?

A minha entrada na indústria do jogo foi há mais de 20 anos. Na altura, tinha acabado o ensino secundário complementar e estava com dificuldades para encontrar emprego. Consegui trabalho como secretária num escritório, através de recomendação de familiares. Nesse tempo, Macau era uma cidade pequena, a população era pouco mais de 300 mil habitantes e as oportunidades de emprego não eram muitas, excepto nos serviços do Governo e casinos. A admissão na indústria do jogo não era como nos dias de hoje, era difícil encontrar um formulário de proposta de emprego, mas arranjei um através da irmã de um amigo que era croupier no casino Lisboa. Isto foi antes da liberalização do jogo, quando só havia o Casino Lisboa. Preenchi e entreguei o formulário e ligaram-me da Sociedade de Turismo e Diversões de Macau (STDM) a perguntar se tinha interesse em ir a uma entrevista. Nunca tinha entrado num casino. No início, o meu trabalho era tratar das bebidas, atrás do croupier, além de recolher fichas de jogo, entre outras coisas. Tudo era uma novidade para mim, mas a STDM era uma empresa grande e dava formação aos trabalhadores. Depois de três meses de formação, e de um exame rigoroso, podia ser promovida a croupier.

Trabalhou num casino ao mesmo tempo que criou duas filhas, enquanto mãe solteira. Que protecções laborais faltam às famílias monoparentais?

Sou mãe solteira, responsável por todas as despesas da casa. Como este trabalho implica turnos, não pude cuidar das minhas filhas e tive de contratar uma empregada doméstica, o que aumentou as despesas. Se perguntar a assistentes sociais, vão-lhe revelar que as crianças com maiores problemas são oriundas de famílias em que os pais trabalham na indústria do jogo. Hoje em dia, faço todos os possíveis para que as minhas filhas me acompanhem, até em manifestações estão perto de mim. Por exemplo, nas últimas eleições a minha filha mais velha, que estuda na universidade, foi quem fez o design da nossa campanha. Mas, de facto, não há qualquer apoio a famílias monoparentais. Quando me divorciei, senti-me desamparada, não me facilitaram turnos que me permitissem cuidar da minha família. Lembro-me da felicidade que senti na altura da liberalização, porque se começou a falar de creches, disponíveis 24 horas por dia, para filhos de funcionários. Mas é complicado, mesmo para um casal, se trabalharem por turnos que não coincidem. A relação torna-se distante e, assim, é natural que a taxa de divórcio seja mais alta entre trabalhadores do jogo.

Que razões a levaram a criar a Associação Novo Macau pelos Direitos dos Trabalhadores de Jogo?

Foi devido à gravidade de uma doença que contraí por causa do fumo passivo. Tive um problema nas amígdalas, que me forçou a ir ao hospital todos os meses para receber tratamento. O médico disse-me que se continuasse a trabalhar naquele ambiente poderia morrer. Alguns colegas tiveram cancro e problemas respiratórios. Estes casos eram frequentes antes da aprovação da lei que proibiu o fumo do tabaco nos casinos. Nesta altura, tinha salário de supervisora, superior a 20 mil patacas por mês, e não podia abdicar desse dinheiro. Procurei a ajuda de outras associações, que não defendiam a abolição total do fumo. Depois de nos termos manifestado, decidimos começar a associação. Ao princípio não foi fácil, os colegas tinham receio de chatear o chefe ou arranjar problemas se estivessem comigo. Mas, lentamente, começámos a ser aceites.

Numa altura em que parte da população está em situação de subemprego, a DSAL recebe poucas queixas e dá conta de poucos conflitos laborais. Como analisa esta realidade?

A DSAL recebe menos queixas que nós. Nós ouvimos trabalhadores com problemas tão diversos como licenças sem vencimento, pressões para assinar demissões ou cartas de aviso. Durante este período de pandemia, percebo as empresas do jogo, face à quebra de lucros. Muitos anfitriões de salas VIP continuam sob licença sem vencimento, há pessoas com um terço do rendimento, quem tenha perdido bónus e a receber menos de 10 mil patacas. Na minha óptica, os trabalhadores mais afectados são da área da restauração, que tem muitos não residentes e locais em part-time, contratados através de agências de emprego, e estes não se queixam à DSAL.

Que confiança tem na Concertação Social. É um organismo eficaz? O que falta?

Todos os membros do Conselho Permanente de Concertação Social (CPCS) são nomeados, o Governo só ouve a voz de um lado. Se perguntar aos residentes, não acredito que muitos saibam o que é. Por exemplo, queremos dar as nossas opiniões sobre a lei sindical, queremos participar activamente, e não temos meios. Se compararmos com a Assembleia Legislativa, que só tem alguns deputados que representam a população, o CPCS tem zero.

Quais são as suas expectativas quanto à Lei Sindical?

Temos receio que a lei sindical não seja o que nós queremos, mas o que o Governo quer. Temos contacto com associações sindicais do exterior, ainda esta semana reunimos online. No passado, visitámos outras regiões como Estados Unidos, Espanha, onde existem leis sindicais. O mais importante é garantir convenções colectivas de trabalho e direito à greve. Estou preocupada com a possibilidade de estes direitos serem restringidos. Receio também que os sindicatos sejam organizados pelos próprios empregadores, com inscrição obrigatória no momento da admissão na empresa.

Está a ponderar a possibilidade de concorrer às eleições na lista de Ng Kuok Cheong. Não teme dividir o eleitorado de trabalhadores do jogo, que não se alinham com a política mais pró-democracia?

Todos sabem que os deputados Ng Kuok Cheong e Au Kam San apoiam as associações de operários e que partilhamos escritório, estiveram presente na fundação da nossa organização. Estou sempre presente nas actividades que promovem e também os convidamos para acções organizadas por trabalhadores do jogo. Creio que quem conhece a nossa associação, sabe que somos apoiantes dos deputados Ng Kuok Cheong e Au Kam San. É possível que haja quem tenha conceitos políticos diferentes dos deputados, mas não me parece que isso tenha grande impacto, uma vez que eles apoiam os trabalhadores há dezenas de anos. Mesmo que possam não concordar com alguns aspectos políticos, conhecem os seus desempenhos em questões laborais. Pelo contrário, acho que os apoiantes do campo democrático não nos aceitam porque nossa associação celebra o dia nacional e o aniversário da associação. Não somos do campo democrático, nem pró-Governo, somos uma associação de operários. Em Macau só existem estes dois campos. Independentemente de me candidatar, ou não, com Ng Kuok Cheong, vamos continuar a cooperar.

Concorda com as ideias e as lutas que Au Kam San e Ng Kuok Cheong têm protagonizado em Macau, como a vigília do 4 de Junho? Não acha que pode ser um risco político?

Ao longo dos anos, organizaram as suas actividades e que nunca foram suspensas, incluindo as actividades não puderam ser públicas devido à pandemia, acho que o maior risco político é desistirem de as organizar. Claro que me reconheço nestas lutas, se não concordasse não estaria com os deputados. Como as pessoas sabem, o campo democrático em Macau é moderado, mas pode ter sofrido com a atmosfera que se vive em regiões vizinhas. Mas creio que a população os apoia há muitos anos.

Numa eventual candidatura à AL, quais são as propostas e políticas que gostaria de ver implementadas em Macau?

Como eu sou trabalhadora do jogo, o foco principal é a esperança de participar no processo da renovação da concessão das licenças de jogo, fazer sugestões legislativas e lutar pelos direitos dos trabalhadores. Na altura da liberalização do jogo, as empresas candidatas às concessões prometeram muito, como creches 24 horas, dormitórios para funcionários, mas só vi estas promessas cumpridas no estrangeiro. Se calhar, porque faltam terrenos em Macau, mas ao longo dos anos não me parece que as empresas se tenham esforçado muito. De qualquer das formas, a cultura não-jogo é fraca em Macau. Por exemplo, The House of Dancing Water era muito conhecido, mas fechou devido ao impacto da pandemia. Desta vez, espero que as promessas feitas pelas concessionárias fiquem estabelecidas a escrito, de forma clara. Outro exemplo é o sector das exposições e eventos, que, de facto, estão bem desenvolvidas no Venetian. Mas é raro recrutarem residentes.

Como avalia o trabalho do Governo de Ho Iat Seng até agora e que medidas gostaria de ver implementadas?

Acho que o Governo tem feito um trabalho muito bom, incluindo com medidas que tiveram como prioridade o bem-estar da população, algumas corajosas, como fechar os casinos durante um período devido à pandemia. De 0 a 100, dou uma pontuação de 85 pontos. Demonstram maior capacidade de trabalho do que os governos anteriores. Por exemplo, as medidas de prevenção da pandemia não foram aplicadas às empresas de jogo apenas tendo em conta interesses negociais. Creio que o Governo impediu que muitos trabalhadores não fossem despedidos.

12 Mar 2021

Nuno Fontarra, arquitecto responsável pelo projecto da nova Biblioteca Central: “Será um disseminador físico de cultura”

O arquitecto português, do atelier holandês Mecanoo, é o responsável principal pelo projecto da Biblioteca Central, no edifício do antigo Hotel Estoril. Nuno Fontarra fala de um espaço que será multifacetado, com uma função social e de ligação à praça do Tap Siac. Grande parte do edifício será demolido, colocando-se a possibilidade de pavimentar a avenida de Sidónio Pais

 

Ficou surpreendido por vencer este concurso?

Não. Fizemos o projecto de concepção de design em Agosto do ano passado e sempre tivemos boas relações com o Governo de Macau. Eles aceitaram bastante bem o projecto e sabem que uma das nossas mais valias são as bibliotecas, temos várias construídas em todo o mundo. A única coisa que nos surpreendeu é que a concorrência era bastante alta, havia dois escritórios Pritzker, um suíço e um irlandês. Consideramos que fizemos um bom projecto por isso não nos surpreende.

Quando olharam pela primeira vez para o edifício do antigo Hotel Estoril, pensaram de imediato que seria um desafio para o vosso atelier?

Quando nos chegou o pedido do Governo para fazer o edifício, só tínhamos uma fotografia frontal do edifício. Não o tinha visto pessoalmente. Parecia muito interessante trabalhar com ele.

Do ponto de vista histórico também?

Sim, e o edifício tinha um carácter interessante. Mas quando vimos em detalhe percebemos que era completamente impossível [mantê-lo], porque os pés direitos são muito baixos, a estrutura não está em condições. O alçado fica para que a memória do edifício se mantenha, e o grande mural. Decidimos que estaria melhor lá dentro do que no alçado exterior. Lá dentro tem mais condições para se manter mais tempo, para que não se deteriore tão depressa. E também pode ser interessante no átrio, que vai ser bastante alto. Será sempre visível do exterior.

Desde o início deitar fora o mural não era uma opção.

Nunca foi uma hipótese. Podia mudar, mas o mural tinha de ser mantido. A segunda hipótese era ficar no alçado do edifício, mas assim que se demolir o edifício por detrás será quase impossível manter o alçado porque não tem muita qualidade. Como é de betão achamos melhor refazer o alçado com um material parecido, modernizando-o.

Grande parte do edifício será, portanto, demolido.

Exacto. Essa foi uma das decisões que se tomou logo no início. Por exemplo, a parte detrás do edifício é completamente irrecuperável, está num nível que não é compatível com uma biblioteca. Os pés direitos não têm mais do que 2,7 metros, é quase habitação.

A presidente do Instituto Cultural disse que o vosso edifício irá “ultrapassar a imaginação do público em relação às bibliotecas tradicionais”. De que forma é que pretendem marcar a diferença em relação ao conceito de biblioteca como o conhecemos?

Trabalhamos com bibliotecas há cerca de dez anos. Um dos projectos mais famosos é em Delft, onde está o nosso escritório, que é uma biblioteca da universidade. É bastante diferente de uma biblioteca pública. Depois fizemos a biblioteca de Birmingham que está numa condição parecida com esta, numa praça principal. [Tínhamos a ideia de] bibliotecas muito silenciosas, um local que não é dinâmico e que só oferece livros. A ideia é que esta biblioteca se integre com a vida da praça o mais possível e que não tenha apenas livros, mas onde se possa ver um filme ou ir a uma conferência. Se decidir só tomar um café, será um bom café. Chamamos de “live Internet”, em que a pessoa vai ver uma coisa, mas tem outras expostas. E será sobretudo um disseminador físico de cultura. As bibliotecas, sobretudo nos países nórdicos [da Europa] servem também o público.

Macau é um território na Ásia, mas com a presença da cultura portuguesa. Pretendem trazer essa modernidade da Europa, uma nova visão da arquitectura?

Não é tanto a arquitectura que impacta. O que vai impactar é a função da biblioteca. Isso passa-se não apenas nos países nórdicos, mas no Japão, por exemplo. As bibliotecas mudaram um bocado. Quando há problemas sociais, de isolamento, as bibliotecas passaram a ter um comportamento social pró-activo. Havia o bibliotecário atrás da sua secretária, só. Aqui a biblioteca em Delft, devido aos seus funcionários, foi considerada a melhor do mundo durante vários anos. Porque são funcionários muito diversificados, pessoas que vieram da rádio, da televisão. É um grupo muito dinâmico, com muitos voluntários. Esse é um comportamento social e a arquitectura apenas ajuda a fazer isso. A equipa tem de ser treinada e já percebi, pelas pessoas com quem tenho falado para este projecto, que são pessoas jovens e dinâmicas. Se lhe dermos a arquitectura certa podem tirar partido disso.

A praça do Tap Siac, com a calçada portuguesa, também vos inspirou?

Sim. Uma das coisas que nos interessava é que o edifício conferisse coerência a toda a praça, algo que o edifício do Hotel Estoril já fazia. Não queríamos mudar muito isso. Um dos problemas que temos neste momento, e que é difícil de resolver, é que há uma rua que passa entre a biblioteca e a praça [avenida Sidónio Pais] que corta um pouco essa possibilidade de relação com a praça. Seria melhor que se pavimentasse toda a rua, algo que talvez se possa propor nos próximos estudos que vamos fazer.

Além do mural, o vosso projecto também tem outros elementos históricos, como um mosaico.

E com o desenvolvimento do projecto ainda poderemos preservar mais. Queremos que haja um diálogo entre um edifício antigo e moderno. Tem de se contar uma história também, e quantos mais bocadinhos da memória do Hotel Estoril conseguirmos recuperar, melhor.

Este projecto esteve envolvido em várias polémicas, incluindo a retirada de um convite a Siza Vieira, ou as críticas face à pouca participação de arquitectos locais. Quer comentar?

Ainda falta discutir esses detalhes com o Governo, mas a nossa equipa terá arquitectos locais. Trabalhamos sempre com locais fora da Holanda, precisamos do know-how do arquitecto local. Falta também discutir a equipa de engenharia. Está totalmente assegurada a participação dos locais. Alguns arquitectos já têm uma certa idade e não estavam interessados em trabalhar connosco, já estão cansados de fazer este tipo de trabalho. Temos contactos com gente mais jovem.

Falamos do arquitecto Carlos Marreiros, por exemplo, que viu o seu projecto ser anulado pelo Governo?

Não. Temos contacto com ele, mas o arquitecto não está na equipa. Os detalhes da equipa ainda estão sob avaliação do Governo de Macau, mas [a participação de Carlos Marreiros] está fora de hipótese. Só temos contacto a nível pessoal.

O orçamento é de 500 milhões de patacas. Espera que possa ser mantido?

Sim, apesar de nos ter surpreendido o custo da construção em Macau. São valores mais altos do que na Holanda. Estamos a fazer a biblioteca de Nova Iorque e os valores são quase comparáveis, e é talvez o sítio do mundo onde é mais caro construir. Não entendemos bem porque é que isto acontece em Macau. Estamos habituados a trabalhar na China onde os custos de construção não são tão altos. Temos projectos em Shenzhen e os custos não são tão disparatados.

10 Mar 2021

Christiana Ieong, dirigente do Zonta Clube de Macau: “Aborto é questão social que precisa ser discutida” 

Por ocasião do Dia Internacional da Mulher, que hoje se celebra, a presidente da assembleia-geral do Zonta Clube de Macau diz que gostaria de ver mais mulheres na política, mas que cabe ao Governo liderar esse processo. Christiana Ieong defende a despenalização do aborto para assegurar o acesso das mulheres aos cuidados de saúde e o seu poder de decisão. Sobre a violência doméstica, a responsável alerta para a baixa taxa de condenações

 

Como está a correr a SMART Nursery desde a abertura? Com a pandemia, que estratégias foram implementadas em termos de gestão?

Estamos muito gratos por este projecto porque podemos fazer algo de forma directa para as mulheres e crianças. Temos muita sorte e sobretudo no que diz respeito às crianças, cada vez que falamos com os pais vemos que todos estão agradecidos pelo trabalho que fazemos. Em termos das operações, depois do lançamento em Setembro de 2019, mas não muito depois, fomos atingidos pela pandemia. Este foi o maior desafio mas não apenas para nós. E gerimo-lo bem. Estivemos fechados durante quatro meses e nesse período aproveitei para pensar na gestão da creche. Com esta nova equipa avançamos muito em pouco tempo e esse foi o lado bom da pandemia. Tornámo-nos uma das mais populares creches em Macau, por isso estamos no caminho certo. Compreendemos o que faltava ao mercado e criamos um produto novo, focado nas famílias mais jovens, por isso não estamos a competir com as creches tradicionais, que funcionam há mais de 30 anos e que fazem um excelente trabalho. Incorporamos novos elementos educativos, damos liberdade e um programa estruturados. As crianças podem brincar, criamos um ambiente que estimula a exploração.

O Dia Internacional da Mulher celebra-se hoje. Vê algumas mudanças na sociedade de Macau ao nível da igualdade e no acesso das mulheres a cargos de topo, nomeadamente na política?

O Chefe do Executivo expressou as suas preocupações sobre a igualdade de género e acredito que vai fazer alguma coisa em relação a isso. Acredito nas suas palavras porque ele é um homem de honra, e o que ele diz e o que vê ele faz, e faz da forma correcta. Reconhece o problema. Mas a questão é que quando nos referimos à igualdade e ao empoderamento das mulheres, olhamos para os centros de poder e quem está lá? Na Assembleia Legislativa há poucas mulheres e até temos uma a menos [Melinda Chan, que não foi reeleita nas últimas eleições], e nunca concordei com isso. Mesmo os deputados nomeados são quase todos homens. No Conselho Executivo também não há muitas mulheres. Se o Chefe do Executivo abordou esta questão acredito que vai fazer alguma coisa. E mesmo nas eleições por sufrágio directo nunca vimos muitas mulheres a participar, e também por sufrágio indirecto.

Porquê esta pouca participação na política?

O Governo tem de estar na liderança em relação a este assunto, porque não é algo que aconteça já amanhã. Isto exige muita determinação, então se o Chefe do Executivo fez menção a este assunto é porque vai fazer algo. Ele é muito competente e tem uma forma de o fazer [promover a igualdade de género]. Veremos o que acontece nas próximas eleições. Mas as mulheres também precisam de se mostrar mais.

O facto de poucas mulheres participarem nestas áreas é também um problema social.

Sim. Precisamos de nos mostrar e aproveitar as oportunidades quando elas aparecem, sair da nossa zona de conforto.

A pandemia afectou o papel da mulher na sociedade, a nível laboral e também familiar? Os problemas que já existiam tornaram-se mais evidentes?

A gestão da pandemia tem corrido bem em Macau comparando com outros territórios. Mas o efeito secundário é sobretudo emocional, porque muitas crianças ficaram fechadas em casa sem escola e isso atingiu mais as mulheres, porque têm ocupado o papel central no cuidado dos filhos e da família, sobretudo as mães que trabalham. A lei laboral não nos ajuda muito porque torna a nossa vida difícil. É complicado contratar empregadas domésticas, e isso revela que quando estavam a legislar não houve muitas opiniões de mulheres, dadas as desvantagens que a lei tem para o nosso lado. O Governo tem de pensar em ter mais mulheres no hemiciclo para nos representar. É uma lei difícil e que não é prática. Como vou contratar alguém de fora, em regime interno, um completo estranho, através de uma entrevista online? No caso de uma ausência prolongada da empregada temos de contratar uma substituta, e isso causa muita pressão às mulheres, afectando o desenvolvimento da sua carreira.

As mulheres migrantes estão numa situação mais frágil em relação à protecção dos seus direitos, em comparação com as mulheres locais?

Os seus problemas são muito diferentes dos vividos pelas mulheres locais ou expatriadas. Em termos económicos falamos de níveis sociais diferentes. Não posso falar muito sobre esse assunto porque não se pode generalizar.

Se o Governo melhorasse os salários destas trabalhadoras, estas poderiam estar num nível sócio-económico diferente.

Penso que isso já foi feito, com o aumento do salário mínimo. É algo que está em progresso, está a melhorar.

Que comentário faz ao trabalho da Comissão para os Assuntos das Mulheres e Crianças?

Penso que fizeram um bom trabalho no geral, porque construíram o enquadramento para a garantia dos direitos das mulheres e crianças. Mas dentro da comissão há dois grupos pequenos, um para os direitos das mulheres e outro para os direitos das crianças, e são liderados por homens. Falamos da necessidade de dar mais oportunidades às mulheres, mas isso não acontece dentro desta comissão.

Sobre a lei da violência doméstica. O Governo deveria avançar para uma revisão?

A taxa de acusações ou de condenações continua a ser muito baixa. É preciso uma maior consciência. A minha preocupação reside na forma como a lei é implementada. É preciso sensibilidade para com as vítimas que têm de viver com este trauma. Será que as autoridades têm experiência suficiente, e formação, para tratar devidamente destes casos?

É necessária uma nova mentalidade em relação à violência doméstica?

Sim, e também para reportar estes casos as vítimas têm de confiar nas autoridades. Se não houver consequências para os que cometem o crime, porque é que as vítimas vão denunciar os casos? É necessária essa confiança. Há também a preocupação do aumento dos casos com o prolongamento da pandemia. Haverá um maior stress financeiro devido aos casos de desemprego e conflitos familiares pelo facto de as pessoas estarem em casa.

Há muitas associações tradicionais em Macau que têm uma visão mais tradicional do papel da mulher. É preciso mudar isso, uma vez que essa visão acaba por influenciar as novas gerações?

Sim, sem dúvida. Em tudo. Há uma forma de mudar para melhor e para o amanhã. Quem achar que é perfeito tem um problema. Temos de nos juntar para mudar a sociedade. As associações como a Associação Geral das Mulheres ou a União das Associações de Moradores têm feito coisas boas por Macau há várias décadas. Deve ser feito um reconhecimento ao seu trabalho. Mas há novas questões sociais de diferentes segmentos da sociedade e o Zonta Clube de Macau está aqui para fazer o seu trabalho também. Há coisas que não podemos fazer sozinhos e temos de fazer esse trabalho em conjunto.

Há novos assuntos relacionados com as mulheres que precisam de ser abordados? A despenalização do aborto, por exemplo?

Não sou anti-aborto ou pró-aborto. Mas olho para isso como uma questão social que precisa de ser discutida e com a qual temos de lidar. Todas as mulheres deveriam ter acesso a cuidados médicos em todas as alturas. E as mulheres têm o direito de decidir o que fazer com os seus corpos. Isto é básico. Então apostemos na legalização.

8 Mar 2021

Kishore Mahbubani diz que Joe Biden está “de mãos atadas” devido à crescente hostilidade de Washington face à China

A crescente hostilidade da classe política norte-americana face à China vai “atar as mãos” do Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, na relação com Pequim, previu à Lusa um proeminente diplomata e autor de Singapura.

“Acho que é bastante claro que Joe Biden vai ter uma tarefa sinuosa”, afirmou Kishore Mahbubani, autor do livro “A China Já Ganhou?”. “Há um consenso anti-China muito forte em Washington”, apontou. “Os republicanos vão destruí-lo caso ele seja brando com a China (…), mas, por outro lado, penso que ele vai ter uma química muito boa com [o Presidente chinês], Xi Jinping”, acrescentou.

Investigador do Instituto de Pesquisa sobre a Ásia, na Universidade Nacional de Singapura, Mahbubani foi durante mais de 30 anos diplomata, tendo assumido a presidência do Conselho de Segurança das Nações Unidas entre 2001 e 2002. O autor considerou que a política de confrontação adoptada pelo anterior governo norte-americano de Donald Trump não conseguiu conter a ascensão do país asiático.

“O resultado, após quatro anos, é uma China mais forte e uma América mais fraca”, resumiu.
E, embora tenha parado com ataques retóricos e anúncios quase diários de novas sanções contra a China, a administração de Joe Biden ainda não anulou nenhuma das medidas do executivo anterior.

“Graves erros”

Mahbubani advertiu, porém, que os EUA estão a cometer “graves erros estratégicos” e a “subestimar” a China, ao avaliar o país de uma “perspetiva ideológica”. “Isto não é uma disputa entre uma democracia dinâmica nos Estados Unidos e um sistema comunista rígido na China”, apontou. “Na verdade, os EUA tornaram-se uma plutocracia e a China uma meritocracia.”

O autor lembrou que o Partido Comunista Chinês “recruta para os seus quadros as melhores mentes da China”, enquanto as doações privadas desvirtuaram o sistema político norte-americano, ao constituírem um “suborno legalizado”, que impede a execução de reformas e retira influência ao voto popular.

Mahbubani notou que o Ocidente – em particular, os Estados Unidos – tem vindo a cometer “erros estratégicos” que permitiram a ascensão da China. “A guerra no Iraque foi um presente geopolítico para a China: durante a década que a China mais cresceu, os EUA estiveram atolados a travar uma guerra completamente desnecessária.” “O mundo está a tornar-se multicivilizacional, onde a civilização ocidental não tem mais o monopólio, seja em termos de inteligência, conhecimento ou superioridade moral”, descreveu. “É um mundo muito, muito diferente”.

A adaptação do Ocidente

O Ocidente vai ter de adaptar-se a um mundo onde não é mais a força dominante, defendeu Kishore Mabubani, observando que os últimos 200 anos foram uma “aberração” histórica. “O Ocidente tem que parar de ser arrogante e começar a ouvir também.”

“O Ocidente há muito tempo habitou-se a que o resto do mundo se adapte à sua visão, sem ter que esforçar-se por se adaptar a outros contextos”, acrescentou. Mahbubani argumentou que a ascensão de países como a China e a Índia significam que Estados Unidos e Europa não são mais a força dominante na política mundial, e que devem agora aprender a compartilhar, ou até mesmo abandonar, a sua posição hegemónica.

“Até 1820, as duas maiores economias do mundo eram a China e a Índia”, observou. “O facto mais importante é que os últimos 200 anos de dominação ocidental constituem uma aberração histórica”.

“No século XIX, a Europa dominou o mundo, no século XX, os EUA dominaram o mundo. Muitos nos Estados Unidos e na Europa presumem que este é o estado natural das coisas e desejam que o seu domínio se prolongue no século XXI”, disse.

“No entanto, todas as aberrações têm um fim natural”, acrescentou, vincando que “a ascensão da Ásia é natural e teria que acontecer algum dia”. Em paridade de poder de compra, a China é já a maior economia do mundo, seguida pelos Estados Unidos. Japão e Índia ocupam o terceiro e o quarto lugar, respetivamente.

Mahbubani notou que o Ocidente – em particular, os Estados Unidos – tem vindo a cometer “erros estratégicos”, incluindo “guerras desnecessárias” no Médio Oriente. A crise financeira de 2008, causada por hipotecas de alto risco do mercado imobiliário, constituiu outra falha de governação.

Desde então, enquanto as economias desenvolvidas estagnaram, a China construiu a maior rede ferroviária de alta velocidade do mundo, mais de oitenta aeroportos ou dezenas de cidades de raiz, alargando a classe média chinesa em centenas de milhões de pessoas.

A pandemia de covid-19, que causou quase 1,5 milhão de mortos nos Estados Unidos e Europa, em contraste com o leste da Ásia, onde a maioria dos países conseguiu suprimir a doença nos primeiros meses, constitui outro exemplo de um Ocidente em declínio, apontou.

Os países ocidentais devem preparar assim as próximas gerações para diferentes escolas de filosofia e aprofundar os seus conhecimentos sobre a História e valores da Ásia, onde vivem hoje cerca de dois terços da população mundial.

“Devemos aprender a entender como pessoas de outras civilizações sentem, agem e pensam”, afirmou. “Os chineses entendem os sistemas e a forma de pensar ocidentais, mas o Ocidente desconhece a cultura, História e processos de pensamento chineses”, descreveu.

7 Mar 2021