Ana Bárbara Pedrosa, escritora: “Ser mulher é irrelevante no que escrevo”

Com apenas dois romances lançados, Ana Bárbara Pedrosa é considerada uma das novas vozes da literatura portuguesa. O HM conversou com a escritora no FOLIO – Festival Literário Internacional de Óbidos sobre o seu último romance, “Palavra do Senhor”, onde a autora fez um exercício de desconstrução de uma série de dogmas presentes na Bíblia

O seu percurso como escritora é muito recente. Como surgiu esta oportunidade?

Simplesmente escrevi um romance, enviei-o para a editora que o quis publicar, neste caso o “Lisboa Chão Sagrado” [2019]. O processo de edição foi relativamente rápido. Já publiquei, entretanto, outro, “Palavra do Senhor”, depois da pandemia, o que me tem permitido um maior contacto com os leitores. Penso que tem uma premissa que agarra, que é a hipótese: “E se de Deus escrevesse um romance?”

Em “Palavra do Senhor” abordou a questão da religião, que gera sempre algum debate, nomeadamente a relação de Deus com Maria, que é repensada. Porque decidiu enveredar por aí?

Não houve propriamente uma decisão ponderada, não tive muito tempo para pensar no assunto. Os escritores têm sempre aqueles livros na cabeça, que sabem que um dia vão pegar, aqueles temas. Eu também tenho isso, temas que ainda não agarrei por, talvez, não ser o momento, por achar que não tenho a maturidade necessária para escrever a narrativa que vou formando na cabeça. No meu caso, “Palavra do Senhor” não teve nada disso. Tinha acabado de publicar, uns meses antes, “Lisboa, Chão Sagrado”, e tinha começado uma outra narrativa, mas houve uma altura em que comprei o volume do Frederico Lourenço, a nova edição do Novo Testamento, da Quetzal. Um dia sentei-me para ler os quatro evangelhos do Novo Testamento e pensei que um crente terá sempre de ter um problema, porque o que está ali é a palavra que deve ser lei, uma questão de dogma, mas a verdade é que essa palavra se contradiz em minudências. Por exemplo: Maria saiu do túmulo em silêncio ou de lado? Há duas versões. Há pormenores em que se denota que aquilo que é dito como uma verdade divina tem, na verdade, erros humanos, ou tem uma interpretação.

Partindo dessa premissa, como começou o trajecto para a criação literária?

Pensei que a única forma de o problema se resolver era que esse Deus, essa entidade de que todos os crentes falam, mas que nunca deu [sinal] de si, dissesse qual era a verdade, estabelecesse a última versão das várias versões em que os crentes têm acreditado. A minha abordagem à Bíblia, aqui, não é uma coisa religiosa, no sentido em que não proponho uma nova leitura, mas a questão da abordagem literária, o interesse pela história. Da mesma forma que existe literatura de ficção científica, aqui interessou-me fazer uma coisa diferente e entrar nessa cabeça que nos está vedada em termos de história, porque há quem diga coisas em nome de um Deus que nunca falou, e na História nunca existiu. A partir do momento em que se parte para o “E se?”, é para começar a escrever. Quando se cogita “o que será ser esse Deus, que nunca falou, mas de quem todos têm uma opinião”, e escrever o que ele acha e o que pode ser verdade ou mentira dentro da história contada. Depois foi muito divertida a questão de dirigir o primeiro olhar sobre as coisas, mas também de criá-las. Naquele capítulo em que falo da criação dos dinossauros, estou a criá-los. O problema deste livro não é um imbróglio religioso. Não tenho muito interesse [nesse tema].

É religiosa?

Fui criada como católica, mas sou ateia. É uma coisa que acho da vida, não tenho paciência nenhuma para os dogmas, mas como instrumento literário é uma coisa muito forte. É um livro escrito na primeira pessoa e eu gostei muito de ser essa personagem.

A linguagem do romance está injectada com algum sentido de humor. Foi um instrumento para descomplicar a temática?

Não quis, mas foi surpreendente porque depois de o livro sair toda a gente me falou do sentido do humor dele. Quando o entreguei [à editora] achava que estava a entregar um livro sério. Tenho tendência para fugir para a piada e se calhar é natural criar alguns cenários humorísticos. Terá sido isso que aconteceu, sem ter essa intenção. Mas é bom que os leitores possam ter esse sentido. Há um ridículo de um Deus que está sempre a fazer asneiras. Se olharmos para a história do planeta e da humanidade, ao assumirmos que há um Deus que criou tudo isto e que ama os humanos, também é inevitável pensar nos erros. Tive uma dificuldade acrescida neste livro.

Qual foi?

Como partia da história do planeta, tive de encaixar isso no sentido de um fio condutor da narrativa. Estava a criar os dinossauros, mas a seguir tinha de os matar. Tive de fazer esta criatura toda poderosa a brincar, a experimentar, e depois a fazer isso com as personagens humanas. E há depois a questão da paixão por Maria em que eu inverto o paradigma, pois ela passa a ser o cerne da religião e Jesus o instrumento.

Ao contrário do que a religião católica nos conta.

Aí, a Maria é um útero fértil, não existe como pessoa.

Mas existem versões que dão um papel mais importante a Maria.

Mas não são canónicas, e nunca é um papel pessoal, mas de fêmea.

A função reprodutora de Maria.

Sim, e engravidar de um Deus sem permissão é quase uma violação divina. A verdade é que Maria foi uma mãe que perdeu o filho para a construção da Igreja. O tempo que passa com Jesus acaba por ser muito reduzido, porque ele tem a missão de construir a Igreja. Para uma mãe, não parece um rumo feliz.

Pretende explorar mais esta tema no futuro?

Nunca pretendo nada depois de um livro. Posso recuperar alguma coisa, mas a partir do momento em que ele é entregue para edição a ideia fica aí. Para mim, a temática não é religiosa, mas sim a construção de uma personagem, o “e se?”.

Pode falar da próxima obra depois de “A Palavra do Senhor?”

Prefiro não falar até as coisas estarem decididas. Escrevi algo que está na gaveta e acho que daqui a uns meses vou recuperar.

Como é o seu processo de escrita? Como decide “é isto” e não outra coisa?

Varia muito. Escrevi o “Lisboa, Chão Sagrado” em dois meses. Mas primeiro tive uma ideia, escrevi 20 páginas, e acho que vou incluir isso num quarto livro, que já escrevi há uns anos, mas que está péssimo. Com o “Palavra do Senhor” reescrevi uma parte.

Escreve crónicas no jornal digital “A Mensagem” e também no Observador. Como salta para este tipo de escrita, onde decerto aborda outros temas?

Os temas da crónica também estão no romance, as ligações entre pessoas, que é o que me interessa mais no romance, tanto do ponto de vista da escrita como da leitura. Claro que um romance é um projecto mais ambicioso, com mais dúvidas e que demora muito a planear. E nunca se tem certeza de nada. A crónica apanha um momento fugaz.

Há quem a considere uma das novas vozes femininas da literatura portuguesa…

Não sou uma voz feminina, sou uma voz literária. Acontece muito isso, ninguém diz a um homem que é um autor masculino, aparece sempre como neutro. A questão de ser mulher é irrelevante naquilo que escrevo. Não escrevo sobre mulheres. O que me interessa na literatura é ser o outro, e não me interessa ser outras mulheres, por exemplo.

Como é a sua relação com o leitor?

É evidente que, a partir do momento em que se escreve com a intenção de publicar, é essencial respeitar o leitor. Às vezes, mais na poesia, naquele tipo de escrita mais fragmentária, parece-me que a criação assenta mais em apontamentos individuais que não têm o objectivo de contar uma história. Às vezes parece uma vaidade de palavras, como se escrever complicado fosse bom. Em Portugal há isso, no Brasil nem tanto. Não cumpre o jogo da comunicação, é pretensioso. Claro que ao escrever também me interessa comunicar com o leitor.

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