Rui Pedro Cunha, director da Fundação Rui Cunha: “Existimos para Macau e as suas gentes”

Faz hoje dez anos que a Fundação Rui Cunha (FRC) nasceu com o objectivo de fomentar o ensino e pensamento sobre o Direito de Macau, mas depressa se tornou também num importante polo cultural de ligação entre as comunidades chinesa e portuguesa. Rui Pedro Cunha lamenta que o projecto de dinamização do Direito local tenha ficado aquém das expectativas mas assume um olhar optimista em relação ao futuro

 

Foi o seu pai, o advogado Rui Cunha, que fundou a FRC. Mas este é também um projecto seu?

Estive envolvido na fundação desde o início. O meu pai falou comigo em 2011 quando começou a ter as primeiras ideias, pois ele sentia que havia a necessidade de criar uma fundação, embora na altura ainda não fosse certo se seria ou não uma fundação. Tivemos várias conversas, a ideia foi amadurecendo e culminou, em 2012, com a criação desta entidade.

Olhando para estes dez anos, considera que a FRC é uma peça vital da sociedade, pela sua intervenção cívica e eventos culturais que organiza? Ir à FRC tornou-se um hábito para muitos?

Não é uma peça vital da sociedade, mas acho que que se esforçou por ser útil e trazer algo importante para Macau. Deixa-nos muito contentes, a mim, ao meu pai e à minha irmã, ver que ao longo destes dez anos houve uma crescente aceitação da ideia que estava por detrás da criação da fundação. Muita gente entendeu rapidamente o propósito da sua criação e cooperou. Porque não somos só nós que fazemos os eventos mas sim as pessoas que vêm ter connosco, da sociedade civil, de algumas instituições, e até do Governo, e que apresentam ideias que gostariam de desenvolver. A fundação funciona como uma plataforma. Tivemos a sorte de os mais variados sectores em Macau terem visto algum valor no que estava a ser feito e quererem associar-se a nós.

Um dos objectivos iniciais da FRC era dinamizar o Direito de Macau. Isso foi cumprido?

Tem havido um esforço nesse sentido, mas talvez seja a área em que a fundação foi menos bem-sucedida, mas não foi por falta de esforço. Tivemos a sorte de ter connosco, desde o início, a drª Filipa Guadalupe, que é responsável por essa área. É uma pessoa muito dinâmica e esforçou-se para imprimir um ritmo elevado aos eventos que eram feitos na área do Direito, bem como nas cooperações, seminários e publicações. Tínhamos duas revistas e publicávamos dois a três livros por ano, mas isso agora está mais parado. Não tem havido muita participação da parte dos que são o alvo dessas iniciativas, que são pessoas cujas profissões estão ligadas ao Direito.

Quais as razões para essa falta de adesão? Porque é que a FRC não conseguiu ser bem-sucedida na dinamização do Direito local?

Teve algum sucesso, mas não aquele que gostaríamos que tivesse tido. Essa é a parte mais querida ao meu pai, porque durante toda a sua carreira exerceu na área do Direito e viu que Macau tinha ficado órfã com a mudança de soberania. Além disso, com a entrada de Portugal na União Europeia, havia uma quantidade de legislação produzida em Portugal e que não fazia muito sentido aplicar em Macau. Existia a necessidade de ajudar todos os intervenientes do Direito a continuar a estudá-lo e a desenvolvê-lo, porque este não é estático e tem de se adaptar à sociedade onde se insere. Não era nada de político, pretendia-se ajudar ao desenvolvimento do Direito. Penso que houve aqui um conjunto de factores que levaram a esta situação.

Terá falhado a ligação com o ensino do Direito, com o meio académico?

Penso que não. Existe uma boa cooperação com professores da Universidade de Macau e eu penso que sentem a mesma necessidade que nós. Um professor confidenciou ao meu pai que alguns alunos brilhantes não voltam a pôr os pés na faculdade quando acabam o curso [de Direito]. Este professor dizia isso com uma certa mágoa, e o meu pai disse que nós, na fundação, sentimos a mesma dificuldade de motivar os jovens para a necessidade de desenvolver mais o pensamento em relação ao Direito. Não terá sido por falta de ligação à academia. Até porque aquilo que fazemos é sempre complementar à parte académica, de forma nenhuma fomos concorrentes da academia. Quisemos sempre apostar numa formação mais prática e vocacionada para o exercício e estudo.

Em dez anos Macau mudou muito e caminha agora para a integração regional, com Hengqin e a Grande Baía. Onde fica a FRC no meio de tudo isto?

A FRC ficará em Macau, onde sempre esteve, mas a olhar para o que se está a passar em Hengqin e Grande Baía. São de facto tempos de mudança os que vivemos agora e vemos com expectativa o que vai acontecer. Temos noção de que estamos a caminhar para essa integração e a fundação cá continuará, de olhos bem abertos, a tentar ajudar a essa integração no que for possível, pois isso faz parte dos nossos desígnios. A fundação existe para Macau e para as suas gentes. Sei que tivemos muito sucesso dentro da comunidade portuguesa logo no início, mas ao fim do terceiro ano de existência passámos a ter mais apoio da comunidade chinesa. Tentámos ser sempre equilibrados na organização de eventos para as várias comunidades.

Sendo Macau um território de mistura de culturas, a FRC tornou-se um vector importante para essa ligação?

Não me cabe a mim fazer essa avaliação, mas esforçamo-nos por isso. Queremos fazer um bom trabalho na aproximação entre culturas. Apraz-nos ver que, da parte da comunidade chinesa, há cada vez mais uma genuína apreciação do trabalho que temos feito. Há muita gente que vem ter connosco e que diz que gosta muito do trabalho que estamos a fazer. Para Macau é muito importante manter este sinal da presença portuguesa e do encontro de culturas que é único no mundo. Macau só tem a ganhar se conseguir manter as raízes e a noção da razão de as coisas aqui serem diferentes, porque só assim é que as pessoas que nos visitam sentem interesse. Se desaparecem todos os traços históricos desta mistura de culturas, Macau passa a ser uma vila na China e deixa de ter a relevância que historicamente teve ao longo de 500 anos.

Quais os grandes desafios que enfrentam para manter esta fundação?

A pandemia trouxe muitas coisas negativas, mas também positivas, nomeadamente o facto de termos de fazer tudo com a “prata da casa”, o que nos ajudou a descobrir coisas que não conhecíamos. Temos grande expectativa [do fim da pandemia] para regressarmos a alguma sanidade mental, mas também para conseguirmos começar a organizar eventos de maior dimensão, algo que temos evitado.

Em termos financeiros houve algum impacto devido à pandemia?

Não houve um impacto directo porque não temos receitas dos eventos que fazemos. Por outro lado, há o desafio da sustentabilidade. Não encontramos, até agora, uma fonte de receitas que permita que a fundação seja sustentável, e é algo que procurámos no passado e vamos continuar a procurar. Desde o início evitamos pedir subsídios ao Governo e quisemos marcar a diferença em relação a outras associações.

Mas já foi feito algum pedido em todos estes anos?

Pedimos em casos específicos. Mas evitamos fazê-lo, e na maior parte dos casos tentamos fazer co-organizações com outras entidades em que cada uma paga parte dos custos.

Projectos para o futuro? O que a fundação pretende ser daqui para a frente?

Queremos continuar a fazer o que fizemos até agora e queremos estar atentos ao desenvolvimento de Macau e integração na Grande Baía e ao envolvimento em Hengqin. Vamos ter que nos adaptar porque estamos numa altura de mudança. A nossa actuação vai ter de mudar à medida das necessidades que foram sendo sentidas pela população. Existem alguns planos que é prematuro revelar já e que vão no sentido de ajudar as pessoas de Macau a compreender o que é Hengqin e de que forma podem tirar proveito das oportunidades que vão surgindo. Temos apenas algumas ideias, não só relacionadas com Hengqin, mas também sobre a história e estórias de Macau.

A FRC pode vir a ter um pólo em Hengqin, por exemplo?

Não há planos para isso, mas não pomos de lado essa hipótese. Depende muito da evolução do projecto e se for realmente útil termos uma presença em Hengqin. É prematuro falar ainda sobre isso. Não temos capacidade financeira para começar a abrir esses polos, gostávamos de a ter. Se conseguirmos encontrar formas de financiamento há ainda muitas ideias que gostaríamos de concretizar.

28 Abr 2022

Joaquim Magalhães de Castro: “A epopeia portuguesa terrestre tem sido muito esquecida”

Anos depois de ter relatado, em documentário, as viagens terrestres dos jesuítas pelos Himalaias, Joaquim Magalhães de Castro apresenta agora o “Reino do Dragão”. O filme estreou esta semana e conta a epopeia dos padres Estevão Cancela e João Cabral que os levou até ao Butão. Pode ser revisto na plataforma RTP Play

 

Como teve contacto com os relatos desta viagem de Estevão Cancela e João Cabral?

Este trabalho é o episódio que faltava contar da saga dos jesuítas. Há cerca de 12 anos fiz o documentário sobre a viagem dos jesuítas portugueses pelos Himalaias, em quatro episódios. Era um projecto que tinha há muitos anos. Conheci a história do padre Andrade, que é o primeiro ocidental, jesuíta, a chegar ao Tibete, em 1624, e essa história fascinou-me de tal modo que, conhecendo bem a região, quis fazer um documentário. Apresentei o projecto há mais de 20 anos à RTP, mostraram interesse mas nunca mais me contactaram, e ficou parado. Finalmente, em 2010, consegui levá-lo de novo à RTP e, através de uma produtora, consegui fazer o documentário. Andámos mais de um mês a percorrer a zona dos Himalaias, do Nepal, porque eu pretendia fazer a rota que estes padres fizeram.

Foram realizadas várias, portanto.

Sim. O padre Andrade abriu uma rota, da Índia, onde os jesuítas estavam sediados, e a partir daí, como julgavam que para lá dos Himalaias havia cristãos…

Mas não havia certezas?

Sabia-se por mercadores muçulmanos e alguns portugueses que lá tinham estado. Havia o mito. Os portugueses estavam na Índia, em Goa por exemplo, e foram ouvindo histórias de mercadores que vinham daquelas paragens, de pessoas que tinham templos e que adoravam imagens. Os portugueses cristãos procuravam aliados na fé e isso levou-os a pensar que naquela zona poderia haver cristandades perdidas. Era um mito muito antigo, de que havia o reino do Cataio, e partiram, disfarçados de mercadores.

O padre Andrade?

Sim. Atravessaram os Himalaias, zona completamente desconhecida para os ocidentais, e chegaram ao Tibete. Ele fundou uma missão católica e vieram mais padres. Ao longo dos anos abriram-se diversas igrejas, uma delas em Saparang, que foi o primeiro local onde o padre Andrade se estabeleceu e houve algumas conversões, mas claro que correu mal. Não há nenhum sinal visível de uma evangelização até aos dias de hoje. Com este documentário, fui seguindo o caminho desses jesuítas até ao Tibete, que abriram quatro rotas. Foi aberta, uns anos mais tarde, uma outra rota, em 1627. Nesse período houve muitas movimentações de jesuítas por zonas completamente desconhecidas junto do mundo ocidental, e iam escrevendo sobre elas. São documentos valiosíssimos, as cartas que enviavam. Algumas foram publicadas, outras não. Estas cartas foram compiladas pelo historiador francês Hugues Didier. Tenho esse livro em casa e é uma espécie de bíblia para mim.

Essa foi a base para este documentário.

Foi. [Dos quatro episódios que fiz há dez anos] estava por contar a rota mais a leste, que foi a de João Cabral e Estevão Cancela. Estavam numa missão em Cochim e foram para a zona de Bengala, até ao Butão.

Onde começa o documentário, precisamente.

Sim. Mas queria dizer que, na altura, esse projecto ficou-me atravessado. Anos mais tarde, encontrei em Macau um amigo, o Gonçalo Bello, empresário. Ele tinha visto os documentários e gostava do meu trabalho. Mencionei a história destes dois padres e ele ofereceu-se para me acompanhar ao Butão. Conhecemos um amigo cineasta e outro, empresário, que financiou parte do projecto. A zona de Bengala, na altura, tinha muitos comerciantes portugueses que ali negociavam um bocado por conta própria, fora do poder oficial de Goa. Havia todo o tipo de gente e já havia conventos, os padres tinham-se estabelecido lá. Estevão Cancela e João Cabral fizeram aquela rota e eu procurei ser o mais fiel possível a ela. Guiei-me pelos escritos de Estevão Cancela. O João Cabral escreveu uma carta mais tarde, mas o miolo veio dali. Quis encontrar os locais que ele escreve e identificá-los. Tem a zona de Bangladesh, Bengala e atravessamos para o norte da Índia, até ao Butão. Estes dois padres chegaram ao Butão numa altura em que o território se estava a formar como país independente, criando o chamado “Reino do Dragão Trovejante”.

Daí o título do documentário.

Exacto. As pessoas pensam que tem a ver com a China, mas não.

No Butão viajou com um guia, que mostrou novos elementos da rota dos padres jesuítas. Eles conhecem a história desta influência portuguesa.

No Tibete ocidental, onde os portugueses tiveram uma missão durante mais de 20 anos e fundaram uma igreja, não restaram vestígios. Mas no Butão as pessoas conhecem a história e as crianças até aprendem na escola que os primeiros ocidentais a chegar aquela zona foram dois padres portugueses. Foram feitas umas moedas comemorativas sobre a sua chegada, há uns anos. Ficámos apenas cinco dias, o que é muito pouco tempo para capturar todas as imagens que queríamos. Mas havia matéria para dois episódios. O guia, ao saber que éramos portugueses, fez o seu trabalho de casa e deu-me muita informação. Os padres terão levado sete canhões para negociar, porque os jesuítas eram homens muito pragmáticos e não revelavam isto nos seus escritos, mas muitos foram negociantes para financiar as suas viagens. Ofereciam presentes também. Esses dados foram-me dados pelo lado butanês. O Estevão Cancela acabaria por falecer no Tibete, e aí está sepultado, e João Cabral acabaria por fazer nova viagem, tendo sido o primeiro ocidental a chegar ao Nepal. Voltaria à Índia e faria muitas viagens. Teve uma vida longa. E até esteve em Macau, tendo sido reitor do Colégio de São Paulo.

A certa altura, no documentário, depara-se com um templo quando procurava um palácio. Houve sítios e monumentos que mudaram ao longo dos anos ou que não foram preservados?

Sim. Nesse caso, encontrei um templo hindu, mas mais antigo. Esse palácio, por exemplo, seria feito de materiais perecíveis, como madeira, e deve ter desaparecido tudo.

Este documentário revela outra faceta menos conhecida em relação à missão dos jesuítas?

Isto é matéria para uma vida inteira. Se fosse milionário não faria outra coisa. Tenho uma lista imensa de trabalhos que gostaria de fazer com histórias de jesuítas. Esse método de seguir as suas pisadas é fascinante, porque cativa a pessoa e é também pedagógico, baseando-se em textos que foram deixados escritos. Essa epopeia terrestre tem sido muito esquecida, e quando se fala da expansão portuguesa fala-se sempre das viagens marítimas e das zonas que os portugueses se estabeleceram através das feitorias. Há a ideia que foi um império construído junto à costa, mas esquecemo-nos que fizemos viagens pelos continentes adentro.

22 Abr 2022

Ruby Yang, cineasta de Hong Kong: “Histórias sobre a vida humana são as que mais me atraem”

Mestre do documentário, Ruby Yang tornou-se, em 2006, na primeira mulher chinesa a conquistar um Óscar com “The Blood of YingZhou District”, um documentário que expõe a crua realidade de crianças e famílias infectadas com o HIV, numa altura em que o assunto era ainda mais tabu na China. A propósito de um ciclo de cinema sobre a sua obra, que decorre na Cinemateca Paixão, o HM conversou com a realizadora

 

A Cinemateca Paixão inaugurou ontem um ciclo de cinema dedicado ao seu trabalho. É importante mostrar os seus documentários em Macau? Estes são os mais representativos da sua carreira?

Penso que sim. Serão mostrados seis documentários meus e penso que as pessoas poderão ver parte do meu universo.

Qual é o documentário mais importante para si? Talvez o que lhe deu o Óscar, “The Blood of YingZhou District”?

Cada documentário tem a sua importância, mas as pessoas reconhecem mais “The Blood of YingZhou District” como o mais importante, porque ganhou esse prémio. É importante também porque ajudou os chineses a prestarem atenção à questão do HIV.

Quando realizou esse projecto, quais foram os maiores desafios que enfrentou no trabalho de campo, efectuado na província de Anhui?

Foi muito difícil fazer este documentário na altura, porque estávamos em 2004 e a China não estava ainda preparada para discutir o HIV. Era muito difícil chegar às pessoas que quisessem falar sobre esta doença e o impacto dela. Foi muito desafiante encontrar crianças ou famílias que quisessem falar connosco e ser filmadas.

Quando venceu o Óscar, o que sentiu? Esperava esta distinção tão importante?

O Óscar abriu-me muitas portas. É uma curta-metragem, se fosse um filme maior as pessoas prestariam ainda mais atenção, mas foi o primeiro filme com um tema sobre a China que recebeu um Óscar, por isso foi muito importante para o público chinês, muito mais do que para o público ocidental. Foi a primeira vez que um tema como este, o HIV na China, foi abordado e levou à conquista de um Óscar. E penso que, além do prémio, o mais importante foi o impacto que o documentário teve. Muitas pessoas começaram a prestar atenção às crianças e pessoas que sofriam com o HIV.

Hoje em dia é mais fácil discutir o HIV na China?

Há uma maior abertura [para falar disso], porque a esposa de Xi Jinping [Peng Liyuan], antes de este ser Presidente, foi nomeada pelo Ministério da Saúde como embaixadora ou porta-voz para a questão da Sida. Devido a isso, as pessoas que viviam com o HIV passaram a ser encaradas com uma maior normalidade. O impacto foi semelhante ao que se sentiu quando a Princesa Diana apertou a mão a um jovem com HIV [nos EUA]. Passou a ser um tema mais aceitável.

Ser a primeira mulher chinesa a receber um Óscar foi também importante para chamar a atenção para o trabalho das cineastas? Contribuiu para que as mulheres que fazem cinema tenham mais voz?

Sim, penso que serviu como uma validação para as mulheres realizadoras. Muitos jovens perceberam que também podiam pisar um palco com o seu trabalho, podiam ser nomeados para um Óscar.

O seu trabalho também se foca muito em algumas realidades de Hong Kong, que mudou muito nos últimos anos. Que novas realidades gostaria de explorar nos seus documentários?

Há mais restrições sobre os temas que podemos discutir em Hong Kong, mas penso que as pessoas ainda conseguem fazer filmes interessantes sobre as vidas individuais ou a vida em comunidade. Pode reflectir-se sobre a identidade cultural. Os filmes nem sempre têm de ser sobre política. Sou professora, ensino produção de documentários, e temos estudantes que, devido à covid-19, não conseguiram sair para entrevistar pessoas, então foi-lhes pedido para fazerem projectos sobre eles próprios. Como se sentem como chineses em Hong Kong, qual o caminho de vida que querem seguir. Na sociedade asiática não se fala muito disso, não se explora o interior e não se mostra ao mundo. Gosto que os jovens explorem mais essas questões.

Porque decidiu abraçar o género documentário?

Estudei em São Francisco, EUA, no final dos 70, e foi quando percebi que havia um enorme estigma e racismo contra os sino-americanos. Não era o caso das pessoas em Hong Kong, onde todos são chineses. Mas num país estrangeiro ou numa comunidade diferente, o chinês fica de fora, e houve muitas questões identitárias que me surgiram. Não estava a estudar cinema e depois aconteceu trabalhar com muitos grupos que falavam dessa questão e que procuravam construir uma voz totalmente diferente para as pessoas asiáticas que viviam na América. Nos anos 80 havia muitos estereótipos em Hollywood. Não se viam verdadeiros rostos asiáticos na televisão, no cinema. Isso mudou 20 anos depois, mas naquela altura era o que acontecia. Foi assim que fiquei interessada no género documentário e depois fiquei interessada em explorar a vida destas pessoas. Comecei a fazer os meus próprios filmes e segui este caminho para a minha carreira. Tem sido muito interessante ver tantos mundos diferentes, vivências que nunca tinha revelado, e gosto de facto do género documentário.

Quando fez “A Moment in Time”, um documentário sobre a comunidade chinesa em São Francisco, recorreu a algumas experiências pessoais? Foi vítima de racismo ou de discriminação?

Felizmente cheguei no final dos anos 70 e as coisas começaram a mudar. Comecei a ver menos racismo no mundo artístico. Mas tive consciência, com as gerações mais velhas, do racismo que eles tiveram de enfrentar. Entrevistei muitas pessoas que se mudaram para São Francisco nos anos 30 e 40 e que me contaram as vidas que tiveram na Chinatown. Felizmente não vivi nenhum episódio de racismo.

Prefere esse mundo real em relação à ficção, por exemplo? Vê-se a fazer um filme ficcional?

Gostaria de fazer isso, possivelmente. A ficção é baseada na vida das pessoas, constrói-se ali algo e depois condensa-se a história. Mas a vida real é muito mais interessante do que a vida ficcionada.

Quais são os principais temas que gosta de explorar no cinema?

As histórias sobre a vida humana são as que mais me atraem mais. Não consigo explicar propriamente o que me atrai, mas quando me deparo com algo interessante simplesmente digo “uau, esta é uma grande história, será que é possível transformá-la num documentário?” Nem todas as grandes histórias podem ser transformadas em documentários, porque é um storytelling visual. Se imaginarmos a história em imagens e de como pode ser transformada num filme, isso implica sempre que escolhemos uma parte, e não toda a história.

Gostaria de fazer um documentário sobre Macau? Sente-se atraída pelo modo de vida, pelo cenário?

Teria de viver lá durante um tempo para sentir o pulsar da cidade e das suas histórias. Não poderia simplesmente chegar e fazer um documentário. Mas gostaria de o fazer. Tenho um estudante de Macau, que é muito bom e talentoso, e tenho a certeza de que há lá muitas histórias à espera de serem exploradas.

Além de ensinar, que novos projectos está a desenvolver?

Estou a terminar o meu livro anual sobre o cinema de Hong Kong nos anos 50 e 60. Eu e o meu marido coleccionamos elementos publicitários dos filmes e é muito interessante. Nesse período o cinema feito em cantonês era muito rico.

Como descreveria o mercado cinematográfico actualmente em Hong Kong? Há mais desafios?

Com os problemas surgem as oportunidades. E sem dúvidas que podemos explorar novas formas de storytelling. Podemos olhar para o Irão, onde ainda se fazem muitos filmes mesmo que haja censura. Assim sendo, as pessoas podem desenvolver técnicas muito interessantes de storytelling. Temos de nos reinventar a nós próprios como realizadores.

21 Abr 2022

Maria Fernanda Ilhéu, economista: “Não me surpreendia se a política de zero casos começasse a ser ajustada”

Convidada a comentar os recentes projectos de integração regional, Maria Fernanda Ilhéu defende que, com a pandemia, Macau e HK podem sofrer maior impacto económico do que as outras cidades da Grande Baía. Sobre a ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau, lamenta que “não esteja a ter um impacto significativo na integração económica”. Já quanto à política de zero casos covid-19, a economista diz que é possível que a China venha a seguir outro caminho que tenha também em atenção a economia, como fizeram outros governos na Europa

 

Que análise faz à evolução do projecto da Grande Baía desde que foi anunciado?

É expressamente referido [nos planos anunciados pela China] que se espera que em 2035 a área da Grande Baía se torne num ecossistema económico, com um modo de desenvolvimento suportado pela inovação de competitividade internacional. A estratégia nacional do Governo chinês assenta em seis princípios básicos, como a orientação pela inovação e reforma, o desenvolvimento coordenado e o planeamento holístico, a prossecução de um desenvolvimento verde e conservação ecológica, a abertura e cooperação com um resultado win-win [ganhos mútuos], a partilha de benefícios do desenvolvimento para melhorar a qualidade de vida das pessoas e aderir ao princípio “Um País, Dois Sistemas” de acordo com a lei.

Mas há ideias fundamentais por detrás destes princípios.

Há dois pilares estruturantes. Um político, de integração de Hong Kong e Macau na província de Cantão, percebendo-se que na cidade de Guangzhou ficará a governação da coordenação regional do Delta do Rio das Pérolas. Há também o pilar económico, de diversificação e de complementaridade, em que as 9 + 2 cidades do Delta irão simultaneamente concorrer e cooperar, sendo que à partida cada um trará para o processo mais valias. Existe um encorajamento aos empresários para pensarem os negócios em termos regionais. Estamos a falar de um mercado doméstico de 71 milhões de pessoas com um poder de compra médio-alto dos mais elevados ao nível chinês e comparável ao poder de compra da classe média nos países do Sul da Europa. Mas esta região do Delta do Rio das Pérolas é também uma das mais abertas da China, com uma elevada proximidade e conectividade económica com os Países da ASEAN, que em conjunto têm cerca de 8,8 por cento da população mundial. Se fossem uma só entidade seriam a sexta economia do mundo e a terceira da Ásia.

Mas estamos perante a evolução esperada?

É difícil de dizer. O que vemos é que estão a cumprir-se os prazos para a criação das infra-estruturas físicas e legais. Podemos falar, por exemplo, da abertura do comboio de alta velocidade Guangzhou-Shenzhen-Hong Kong Express Link e da Ponte Hong Kong – Zhuhai – Macau, ambos essenciais para as pessoas que trabalham nestas cidades, ou entre estas cidades. Não nos devemos esquecer que muitas empresas têm actividade em várias delas e que muitas pessoas trabalham numa cidade e vivem noutra, portanto a rápida mobilidade é muito importante. No entanto, podemos ter as infra-estruturas físicas de mobilidade, mas se não se puderem usar fácil e livremente, então o objectivo integração económica para que foram construídas, fica prejudicado.

Em que sentido?

Quando vivia em Macau e tinha de me deslocar a Hong Kong, considerava a viagem de jetfoil muito desconfortável e pensava que se tivéssemos uma ponte seria fantástico porque poderia deslocar-me no meu carro. Como economista, antecipava o grande boom económico que seria para Macau, porque muitas pessoas que trabalhavam em Hong Kong iriam preferir o estilo e qualidade de vida local. Para mim, a construção de uma ponte era o grande projecto. Agora temos uma ponte que liga Macau a Hong Kong, mas ali só podem circular transportes públicos e só algumas entidades têm direito a utilizar o carro nessa ponte, sendo que o jetfoil continua a ser a solução de transporte preferível para a maioria das deslocações individuais. Não vejo que [a ponte] esteja a ter um impacto de integração económica significativo.

Ao nível das fronteiras também houve mudanças.

Sim, temos também um novo posto fronteiriço em Macau, inaugurado em 2020, mas aguarda-se que o corredor permanente para a passagem de automóveis esteja concluído. Foi considerado pelo Executivo de Macau que este posto facilitará a expansão da actividade para Hengqin. Mas se nesse corredor rodoviário só poderem passar veículos com dupla matrícula de Macau e China, e se essas matrículas forem de difícil obtenção para a maioria dos cidadãos, então os efeitos também não serão espectaculares. Em termos do pilar de integração política foi dado um passo importante na criação do “Projecto Geral de Construção Aprofundada entre Guangdong e Macau em Hengqin”. Esta zona visa o desenvolvimento e diversificação da economia de Macau, que por limitação de espaço, tal como está, não consegue evoluir da perigosa dependência da indústria do jogo.

Ou seja, há aqui uma mudança lenta.

Estão a dar-se passos significativos no processo de integração de Macau na área da Grande Baía, mas é um processo feito a passo e passo, que poderá ser mais ou menos lento, conforme a forma como as infra-estruturas físicas e legais forem sendo impulsionadas pelas autoridades governamentais envolvidas, e se as populações locais as entenderem e aceitarem.

A pandemia e a política de casos zero vai obrigar a um ajustamento dos objectivos económicos traçados para a Grande Baía?

Antes da covid-19 a região estava a crescer muito e mais do que o resto da China. Visitei, em Dezembro de 2019, as cidades de Guangzhou, Dongguan, Foshan, Shenzhen, Zhuhai e Macau. Nestas duas últimas cidades tinha estado há poucos meses, mas as restantes já não as visitava há cerca de cinco anos. Fiquei impressionada com o crescimento e grande dinamismo que ali presenciei. A covid-19 teve um impacto na economia mundial e se atrasar a evolução deste projecto isso será normal. O plano é que este ano esteja formado o enquadramento para que esta área seja uma baía internacional de primeira classe, mas teremos de aguardar até Dezembro para saber se esta meta será cumprida ou não. Não será de estranhar que as economias de Hong Kong e Macau venham a sofrer economicamente mais que a economia das nove cidades que estão no continente.

E porquê?

Por um lado, porque as fronteiras entre Hong Kong e Macau, e de ambas com o continente, têm estado, nestes últimos dois anos, fechadas com frequência. Mas temos agora um outro factor altamente perturbador, a guerra na Ucrânia, que não deixará de ter efeitos disruptores na economia mundial e obviamente também na chinesa.

Até que ponto este conflito vai ter impacto nos projectos chineses?

Não podemos ainda prever como vai afectar os projectos “uma faixa, uma rota” na Eurásia ou o dinamismo da indústria e o comércio externo da China. Portanto, os objectivos económicos para a Grande Baía não ficarão imunes a esta dupla ameaça mundial que estamos a viver, a pandemia e a guerra.

Mas, e quanto aos efeitos da política de casos zero?

Até agora a China privilegiou sempre a saúde à economia, e é assim que encaro a política de zero casos covid-19. Mas, pragmaticamente, a China poderá que ter de seguir uma política que tenha também em atenção a economia, como fizeram muitos governos na Europa, nomeadamente em Portugal, que considero um caso de sucesso. Não ficarei surpreendida se a política de zero casos covid-19 começar a ser ajustada.

Na Grande Baía cada cidade tem os seus objectivos definidos. Macau será a plataforma de ligação com os países de língua portuguesa, mas está a apostar também no desenvolvimento do sector financeiro. Acredita que a região vai conseguir cumprir com estes objetivos a curto prazo?

A situação de Macau como plataforma de ligação com os países de língua portuguesa poderá ser grandemente melhorada a curto prazo, porque já existe muita experiência nesse processo e já percebemos que algumas políticas, e sobretudo algumas formas de implementação, podem ser melhoradas e ensaiadas. Em relação ao sector financeiro será mais difícil de concretizar a curto prazo. Não se cria um ecossistema financeiro confiável [tão rapidamente].

Como encara o projecto da Zona de Cooperação Aprofundada com Hengqin?

Como a grande oportunidade para a economia de Macau crescer de uma forma diversificada. É também um teste à administração conjunta das autoridades de Macau e Guangdong de um espaço económico, dentro de um equilíbrio de políticas e práticas respeitando o princípio “Um País Dois Sistemas”.

13 Abr 2022

Garcia Leandro, ex-presidente da Fundação Jorge Álvares: “Há ainda algumas pessoas com grande influência em Macau”

Filha da transição, a Fundação Jorge Álvares vê sair, ao fim de seis anos, o general Garcia Leandro da presidência, embora se mantenha como curador. Em jeito de balanço, o antigo Governador de Macau diz deixar a entidade com mais património, apesar de persistir a necessidade de obtenção de receitas fixas

 

Optou por sair ao fim de seis anos da presidência da Fundação Jorge Álvares (FJA), ou atingiu o limite de mandatos?

Foi um processo normal. Sou curador desde o ano de 2000, e como administrador estive entre 2009 e 2016, e depois fiz o mandato [como presidente]. Vou fazer 82 anos e não tinha de estar mais. Fiz o meu melhor nestes anos todos e saí, naturalmente. Esta não é uma fundação pessoal, o presidente não é sempre o mesmo, e eu fiz os anos que entendi que tinha de fazer. É o final do meu mandato.

Continua a desempenhar outras funções na Fundação?

Continuo como curador.

Olhando para trás, sente-se orgulhoso do trabalho realizado e que construiu outra imagem para a FJA?

Quanto à imagem que eu dei, outros é que terão de tirar essa conclusão. Fiz o melhor possível. Nessas decisões que o último governador de Macau tomou, sobre a criação de três entidades, o CCCM para que houvesse em Portugal uma representação permanente do que foi a história, cultura e geografia de Macau e do Oriente, criou o IIM em Macau e a FJA, que tem um objectivo muito específico, que é dar apoio ao CCCM quando o Estado [português] não corresponde a isso. E é o que tem sido feito, porque quando o CCCM foi criado, havia o Governo de Macau, que construiu todas as instalações, em Lisboa. No final houve a transferência de administração e aí o último governador [Vasco Rocha Vieira], entregou aquelas instalações ao Estado português. Aí o CCCM ficou sob responsabilidade do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Seguimos com algumas dificuldades porque o Governo de Macau, inicialmente, fez um grande investimento ali, comprou aquele local e pagou as obras de restauração, e depois entregou ao Estado. Depois começaram a surgir dificuldades financeiras, quando foi a situação da Troika. Em 2009 e 2010 o apoio da FJA ao CCCM aumentou muito, de modo que a FJA é hoje considerado o maior mecenas.

Tem dado anualmente cerca de 100 mil euros anuais [cerca de 1 milhão de patacas].

Sim, desde que sou presidente. Primeiro foi a Troika, depois a crise das moedas, depois a pandemia. Temos dado esse montante por ano para recuperar uma parte relacionada com a biblioteca e o centro de documentação, bem como o Museu.

Foram feitos alguns ajustes financeiros pela FJA que vive de aplicações financeiras. Acredita que o actual modelo de gestão é viável a longo prazo ou são necessários ajustamentos?

O modelo que foi encontrado no início, o investimento inicial, foi com dinheiro de Macau e algum dinheiro privado. Mas não ter receitas certas significa que estamos muito dependentes do resultado das aplicações financeiras. Encerramos estes seis anos com um superavit em relação ao património financeiro que tínhamos recebido, mas não deixa de ser algo feito com muito cuidado em relação às despesas. Foi feito um ajuste nos contratos já feitos. Uma das coisas importantes no perfil da senhora que me sucedeu, Maria Celeste Hagatong, é uma carreira muito ligada às finanças, à banca e agora é presidente da COSEC, uma empresa de seguros para as empresas exportadoras. Isso significa que tem uma grande ligação às finanças, bancas e a empresas portuguesas e chinesas, que talvez possa encontrar algum mecanismo com receitas certas [para a FJA]. E nós sentimos essa necessidade. No final destes 22 anos os resultados concretos sejam positivos com as actividades feitas, aumentamos o nosso património em termos de instalações e obras de arte, graças a uma propriedade e casa que passamos a ter em Alcainça, perto de Mafra, e o património não foi delapidado, pelo contrário. Temos pouco pessoal a trabalhar e a administração tem um pagamento simbólico.

A aproximação da FJA à China é fundamental nos novos tempos que correm? Macau também caminha para a integração regional.

Sim. Macau, tendo esta relação histórico-cultural com Portugal, não deixa de ser hoje parte integrante da China. Além de manter a relação com Macau, a cultura portuguesa [que lá existe] e as instituições, queremos ter relações directas com a China na área que, para nós, é a mais importante, que é a do ensino superior.

A Fundação deve apostar noutras áreas além desta vertente pedagógica e de investigação?

Temos uma área editorial. No ano passado publicámos um livro para os jovens, e foram oferecidos dez mil exemplares a todas as escolas do ensino secundário e ensino básico de Portugal e Macau, e também para os nossos embaixadores no Oriente. Trata-se de uma história que se chama “Nau do Trato”, um navio que nos séculos XVII e XVIII navegava entre Goa, Malaca, Macau e Japão. É um livro das professora Isabel Alçada e Ana Maria Magalhães. Além disso, o embaixador de Portugal em Pequim criou um fundo para a tradução de obras de autores portugueses para chinês. Neste momento já há 11 obras traduzidas, a “Nau do Trato” também está a ser traduzida. No total serão 28 livros de autores portugueses traduzidos. Temos também as nossas obras de arte no Museu do CCCMacau. Não sendo grande, é um museu que alguns especialistas internacionais consideram de uma enorme qualidade, em termos de algumas peças.

Mas não é um espaço muito visitado e conhecido.

Há de facto uma necessidade [de maior visibilidade], e isso passa pela ajuda da FJA. São necessárias obras mas há uma máquina financeira e burocrática do Estado que tem atrasado algumas coisas. A FJA dá todo o apoio técnico que é necessário.

Quais os grandes desafios da divulgação da cultura macaense em Portugal neste momento?

É evidente que, deixando de haver uma presença com novo sangue português em Macau, embora permaneçam vários especialistas, e sem uma grande emigração para o território… mas mais importante do que o número de pessoas é a sua qualidade. Se virmos hoje há algumas pessoas que ainda têm uma grande influência em Macau. Claro que esse acompanhamento das instituições de origem portuguesa em Macau é feito e tem tido o nosso apoio. O próprio Governo da RAEM tem dado muito apoio a estas instituições. Mas Macau é parte da China, mas não deixa de ser um registo histórico e cultural que marca a diferença face a outra cidade chinesa, e até em relação a Hong Kong. A primeira diocese foi criada em Goa, a segunda em Coxim, a terceira em Malaca e a quarta foi em Macau. Portanto Macau é filha de Malaca e neta de Goa. Houve uma época em que nenhum estrangeiro ia à China sem ter de passar por Macau. E todas as dioceses que foram, aos poucos, criadas na China, Japão e Coreia, saíram de Macau. Portugal é um país que tem pretensões de amizade com a China. Repare que estive no país duas vazes, ainda como governador de Macau, sem que os dois países tivessem relações diplomáticas.

Isso é um sinal importante.

A primeira vez que estive, durante três semanas, foi numa chamada visita de amizade, com oito pessoas de Macau, em 1978. Além disso, Macau era um local de grande convivência, e os chineses têm uma grande preocupação com o ensino dos filhos. Havia todo o tipo de escolas em Macau, e todas estas pessoas se davam bem. Claro que, com uma minoria da população portuguesa, a nossa presença fez-se de uma maneira que não foi por imposição. Deixámos uma herança dourada no que diz respeito ao património histórico e cultural e de relacionamento entre dois países. Independentemente das nossas relações com países da Europa e da CPLP, e com ligações à relação Euro-Atlântica, esta relação com a China é muito específica, que só nós é que temos, melhor do que a relação que os ingleses têm com Hong Kong, e que devemos manter.

Um delegado de Macau à APN falou da importância de preservar a comunidade macaense. É um sinal de Pequim não se vai esquecer dos macaenses no futuro?

A etnia Han constitui mais de 90 por cento da população chinesa. E a comunidade macaense é mais do que uma etnia, é uma relação histórica, cultural e de riqueza que a China privilegia. A maneira como esse trabalho será feito é da responsabilidade das autoridades chinesas, mas sempre numa relação de contacto e consulta connosco.

Macau está neste momento a seguir uma política de zero casos covid-19 e muitos portugueses estão a regressar. Acredita que está a ocorrer uma grande mudança na comunidade?

Há uma mudança evidente e a nossa capacidade de intervenção é através da qualidade das instituições e das pessoas. E isso temos. Há muitos portugueses, macaenses ou portugueses de Macau que representam Portugal e que têm feito um grande esforço. Esse esforço tem sido acompanhado pelo Governo da RAEM com apoios permanentes. Nas visitas que fiz em 2011, 2018 e 2019, gostei de ver que as instituições portuguesas estão muito bem tratadas, e isso com o apoio do Governo local.

12 Abr 2022

Anabela Santiago, académica: “Vão aparecer alternativas à política zero casos”

Anabela Santiago, doutoranda pela Universidade de Aveiro e investigadora na área dos assuntos chineses, aponta que não é possível a China desconfinar da mesma forma que o Ocidente está a fazer, mas defende que poderão surgir “em breve” alternativas à política de zero casos covid-19. A académica aponta ainda que, com Xi Jinping, a propaganda chinesa passou a ter um maior foco na legitimidade do Partido

 

Como tem evoluído a propaganda na China nos últimos anos? Encontramos grandes diferenças entre líderes, sobretudo desde que Xi Jinping subiu ao poder?

A propaganda na China tem evoluído, tal como no resto do mundo, na forma como ela é veiculada e nos seus meios de suporte essencialmente. Refiro-me em concreto às plataformas digitais, às redes sociais mais populares da China como o Weibo ou o WeChat, por exemplo. Os meios de suporte dos mass media é que sofreram uma alteração devido à entrada na chamada era digital e aos milhões de utilizadores da Internet na RPC. A essência da propaganda, essa, também se foi moldando (embora mais lentamente) às mudanças ocorridas na sociedade chinesa, nomeadamente à melhoria da qualidade de vida da população em geral, o que acarretou um aumento exponencial da classe média chinesa e uma maior procura por fontes de informação. No que diz respeito aos sucessivos líderes e ao actual – Xi Jinping – a propaganda sempre serviu como um modo de difusão dos vários “motes” políticos adoptados ao longo das lideranças: o desenvolvimento com base na inovação científica, a criação de uma sociedade harmoniosa e mais recentemente o “sonho chinês”. Com Xi Jinping uma das principais diferenças é o retorno a um maior enfoque na legitimidade do PCC como via única para o progresso com um forte apelo ao nacionalismo e aos valores confuccionistas mais tradicionais.

Até que ponto tem sido feita uma adaptação às redes sociais e à comunicação social por parte do aparelho de propaganda? Há uma maior capacidade de atracção das gerações mais jovens ao Partido?

Tem havido uma adaptação à era digital no sentido de atrair mais população jovem. O Partido está consciente das mudanças ocorridas na sociedade e o facto de a população estar mais instruída e pedir mais informação levou a essa preocupação nos meios de comunicação social.  Também a preocupação com a imagem internacional levou a propaganda a assumir um papel cada vez mais de instrumento de “nation branding”, quer a nível interno, com um forte apelo ao nacionalismo e ao “grande rejuvenescimento da nação chinesa”; quer a nível externo, com um esforço nítido de se afirmar como actor relevante e responsável na nova ordem internacional.

Afirmou que a propaganda é uma ferramenta de soft power, sobretudo aplicada ao projecto da Rota da Seda da Saúde. Com o conflito na Ucrânia, acredita que a China terá de redefinir a sua estratégia de propaganda no que diz respeito à diplomacia, fomentando ainda mais a imagem de um actor mundial que não procura conflitos bélicos?

Creio que a China irá manter esta ambiguidade de posicionamento em que tem estado até agora desde o início da invasão russa à Ucrânia. Isto porque apesar das diversas transformações geopolíticas ocorridas no mundo globalizado nas últimas décadas, a China mantém-se fiel em termos de política internacional aos princípios que resultaram da Conferência de Bandung, em particular, os da não-ingerência nos assuntos internos de outros Estados-nação, o respeito pelas soberanias nacionais e integridade territorial. Portanto, apesar da “amizade” que tem com a Rússia e da rejeição no que diz respeito à acção da NATO, a RPC não apoia a invasão da Ucrânia. Pode até perceber os motivos, mas não aprova os meios bélicos para atingir os objectivos que a Rússia pretende atingir. Julgo que a China, nesta matéria, não irá mudar a sua posição nem a mensagem que tem vindo a passar nos meios de comunicação relativamente a este assunto.

A manutenção da política de casos zero de covid-19 no país e os impactos que esta está a ter na economia vai obrigar a um redesenhar da estratégia de propaganda a nível interno?

Dada a dimensão da população chinesa e a densidade populacional, sobretudo nas cidades, não é possível aliviar as medidas na China do mesmo modo que tem sido feito no Ocidente. Os confinamentos em massa continuam a ser a solução a mais curto prazo para conter surtos. No entanto, e muito devido aos impactos económicos e sociais causados por estes confinamentos e quarentenas prolongadas, o Governo chinês já manifestou a sua preocupação na busca por um modelo de combate que seja mais “científico e específico”. A retórica da “saúde das pessoas em primeiro lugar” vai ser mantida nos próximos tempos, mas a divulgação de novas alternativas à política de zero casos covid-19 irá começar a aparecer em breve com base em evidência científica, dando, quiçá, origem a uma “política anti-covid com características chinesas”.

Em relação ao conceito de Nation Branding, a China fá-lo de forma diferente face a outros países?

A China tem sentido uma necessidade acrescida de desenvolver campanhas no sentido de promover a sua imagem externa, visto que a sua rápida ascensão económica e o seu peso crescente na esfera política internacional a colocam no centro de muitos debates, ora numa posição de poder em ascensão pacífico, ora como uma ameaça ao status quo e ao equilíbrio mundial. Em 2003, encetou uma grande campanha de marketing externo se assim se pode chamar com o mote da ascensão pacífica (“PRC’s peaceful rise”). Outra grande manifestação de ‘Nation Branding’ ocorreu em 2008, com a realização dos Jogos Olímpicos em Pequim, que amplamente contribuiu para difundir a imagem de uma nação próspera, mas também coordenada, harmoniosa, integradora e acolhedora. As estratégias de ‘Nation Branding’ são amplamente estudadas ao pormenor, mas não diferem assim tanto das estratégias usadas noutros países.

O esforço de legitimação do Partido Comunista Chinês (PCC) poderá ser feito de outras formas, além da propaganda?

O esforço de legitimação do PCC é um trabalho implícito em toda a acção económica, política e social do Partido. Os resultados falam por si, mas começam a haver cada vez mais gerações na China que não conheceram outra realidade a não ser esta da China moderna e próspera. Portanto, a necessidade de lhes transmitir que isso só foi possível graças a uma economia de mercado socialista com características chinesas em que o PCC foi sempre o eixo central das políticas levadas a cabo é essencial do ponto de vista dos altos dirigentes do PCC e, acima de tudo, do actual líder Xi Jinping. A propaganda estatal nisso tem um papel fundamental e continuará a tê-lo.

 

Propaganda no CCCM

Anabela Santiago foi uma das oradoras do ciclo de conferências de Primavera promovido pelo Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM). No passado dia 31 a doutoranda da Universidade de Aveiro deu a palestra intitulada “A dimensão externa das políticas públicas da China contemporânea: O papel da propaganda”, que deu origem a esta entrevista. O ciclo de conferências no CCCM acontece novamente entre os dias 18 e 23 deste mês, com um painel de conversas sobre a Ásia.

6 Abr 2022

António Caeiro, autor de “Os retornados de Xangai”: “Este livro é uma saga humana”

A comunidade portuguesa em Xangai começou a formar-se em meados do século XIX e chegou a ser a segunda mais importante na cidade. Com o estalar do conflito entre comunistas e nacionalistas, muitas famílias foram para Macau, dando depois origem à diáspora macaense espalhada pelo mundo. O livro “Os retornados de Xangai – Histórias de portugueses do Oriente”, do jornalista e autor António Caeiro, conta as suas vidas

 

Como chegou a este projecto de reunir os testemunhos daquele que é considerado o primeiro grupo de retornados para Portugal?

Desde muito cedo, quando fui para a China, ouvi falar da existência de uma comunidade portuguesa em Xangai numerosa e completamente desconhecida do grande público. Além disso, havia a particularidade de se saber quando tinha começado e acabado, entre meados do século XIX até meados do século XX. Existiu num determinado local, à margem de diversos impérios, como o português, britânico ou chinês (Império do Meio), e que não só se estabeleceu durante várias gerações como foi durante muito tempo uma das principais comunidades estrangeiras de Xangai. Sabia-se muito pouco sobre isso e à medida que fui investigando, em arquivos e ouvindo pessoas…

Falou com descendentes dessa comunidade também.

Sim. Essa comunidade, maioritariamente de Macau, acabou por se dispersar pelo resto do mundo. Só uma pequena parte é que foi para Portugal, pois a maioria foi para o Brasil, Austrália, Canadá, EUA… achei que valia a pena conhecer mais figuras e histórias, e à medida que fui fazendo este trabalho mais surpreendente se revelou a história desta comunidade.

Uma das histórias que o livro conta é a de Art Carneiro, músico e antepassado de Roberto Carneiro, presidente do conselho de administração da Escola Portuguesa de Macau.

Há várias personagens absolutamente surpreendentes e deslumbrantes. O pai de Roberto Carneiro, com o nome artístico de Art Carneiro, é sem dúvida uma figura que atravessa todo o livro. Ele nasceu em 1904 e iniciou a carreira musical em Xangai. Mais tarde veio a ser um dos pioneiros do jazz em Portugal, participou na primeira jam session organizada em Lisboa, em 1948, cerca de um ano depois de ter regressado a Portugal. Art Carneiro tocou com uma das melhores orquestras dos anos 20 e 30 em Xangai, que tinha na altura centenas de salões de baile e cabarés. Tinha a vida nocturna mais animada de toda a Ásia, era também a capital do jazz. Era uma das cidades mais cosmopolitas do mundo. Mas desde que o livro foi impresso que me cruzei com outras histórias e pormenores que, se soubesse, tinha incluído no livro, pois cada pessoa tem a sua história.

Macau surge aqui como um território fundamental neste elo de ligação entre Portugal e a China.

Sim, porque os portugueses estabeleceram-se em Macau no século XVI e quando se dá a Guerra do Ópio, em meados do século XIX, os ingleses vencem o conflito e uma das consequências foi a anexação de Hong Kong e a obrigatoriedade, exigida aos chineses, de abrir cinco portos ao comércio internacional. Um deles era Xangai. Quando os ingleses se estabeleceram aí, os primeiros estrangeiros a estabelecerem-se na cidade foram os portugueses de Macau que já lá estavam há várias gerações e conheciam bem a cultura local. Estavam ambientados, misturados e com um nível de instrução capazes de serem quadros das empresas que os ingleses e americanos estavam a fundar em Xangai. Macau era um território pequeno e com poucas oportunidades de trabalho, mas Xangai era uma economia em expansão. Praticamente não havia nenhuma família de Macau que não tivesse alguém em Xangai.

Era uma comunidade importante…

Chegaram a ser três mil portugueses. Nos anos 30, registados no Consulado [português em Xangai] estavam dois mil portugueses. A Guerra do Ópio é um episódio traumático na história da China, pois os chineses dizem que foi promovida pela Grã-Bretanha para desenvolver o seu comércio do ópio, que era proibido na China. A seguir, deu-se a tal abertura forçada dos portos chineses e a entrada em força dos estrangeiros e do capitalismo, do comércio internacional. Isso mudou muito a China e Xangai foi, de certa forma, o berço da modernização da China, e foi aí que apareceu o próprio Partido Comunista. Em todos esses portos havia portugueses. É curioso que as tipografias eram, em grande parte, dominadas por tipógrafos portugueses formados em Macau. Estes iam trabalhar para Hong Kong e depois iam para vários portos. Imprimiam jornais e toda a informação que era difundida nesse novo mundo marcado pelo comércio internacional.

Esta comunidade passou por várias fases da história da China. Mas o grande motivo para o seu regresso foi o conflito entre nacionalistas e comunistas?

Houve uma altura em que era a segunda comunidade de estrangeiros mais importante, a seguir aos ingleses, e que depois foram ultrapassados pelos japoneses. Depois houve uma grande vaga de emigração russa a seguir à revolução comunista na Rússia, em 1917, que passou a ser a segunda comunidade. O primeiro êxodo dá-se com a invasão japonesa, em 1937. Muitas famílias estrangeiras deixam Xangai, uma grande parte vai para Hong Kong onde tinha familiares e outra vai para Macau. Depois acabaram por regressar a Xangai. Finalizada a II Guerra, começa a guerra civil na China, e com a aproximação do exército comunista e tomada do poder pelo Partido Comunista, muitas empresas estrangeiras começaram a sair. Com isso desapareceram muitos dos postos de trabalho ocupados pelos portugueses. Graças ao trabalho de um grande investigador, Jorge Forjaz, consegue-se saber quem foi o último português a sair, já nos anos 60.

Mas o livro refere que em 1953 terá saído a última família portuguesa de Xangai.

Era uma família de apelido Collaço. Já havia muito poucas, a maioria foi para Macau, que se tornou num centro de refugiados, mas a maioria não ficou no território, tendo partido para outros sítios. Foi o início de uma nova diáspora. Para Portugal foram muito poucos porque não tinham muitas raízes. Veio a família de Roberto Carneiro, por exemplo. As casas de Macau espalhadas por esse mundo fora foram criadas por estas pessoas.

Uma das características desta comunidade é que o regresso a Portugal não foi fácil, pois não havia essa ligação forte ao país e à língua.

Todos contam que falavam inglês entre eles, e só os mais velhos é que falavam algum português. Havia uma ligação mítica a Portugal, muitos nunca tinham visitado o país, tinham apenas alguns familiares. Muitos falavam francês e algum chinês. Depois Xangai era muito cosmopolita e Portugal nos anos 40 era um país pobre e cinzento. Acima de tudo encaro este livro como uma saga humana, que envolveu portugueses, e isso toca-nos muito. Temos uma ideia de que existiu esta comunidade, mas quase todas as pessoas com quem falei me disseram que não faziam ideia da sua dimensão.

30 Mar 2022

Kerry Brown, autor de “China Through European Eyes”: “A China continua a ser um mistério”

Kerry Brown, professor de estudos chineses no King’s College de Londres, acaba de lançar a obra “China Through European Eyes”, que reúne escritos e ideias de missionários, exploradores e filósofos sobre a China dos últimos 800 anos. O académico realça a enorme importância que Macau teve na ligação do país ao mundo, sobretudo ao longo do século XVI, e de como esse papel deveria ter mais destaque

 

O seu livro compila escritos e ideias de europeus sobre a China nos últimos 800 anos. Neste processo foi difícil para si juntar num só livro tantas ideias?

Sim, poderíamos incluir uma enorme quantidade de escritos e ideias. Mas queria incluir os trabalhos das figuras mais influentes, não foram especialistas na China, mas que são sobretudo intelectuais europeus que ficaram famosos em outras áreas, mas que escreveram sobre o país, como Hegel, Voltaire ou Simone de Beauvoir, Carl Jung ou Max Weber. Todos eles foram muitos influentes em áreas que nada têm a ver com a China. Há também personalidades que desenvolveram um trabalho mais ligado ao país. Creio que muito poucos dos filósofos europeus que escreveram sobre a China estiveram de facto no país.

Como explica o facto de a China ter estado tão presente no imaginário destas personalidades?

Os primeiros contactos deveram-se ao comércio, e pelo facto de a China ter produtos que interessavam aos comerciantes europeus, sobretudo para as companhias do Reino Unido e da Índia, que foram muito activas neste comércio durante o século XVII. Antes tinham sido os portugueses. Os britânicos sempre tiveram muito interesse no comércio com a China. Temos também as missões cristãs na China que decorreram ao longo do século XVI, e temos Matteo Ricci como um dos grandes exemplos, nome que também incluo no livro. Depois verificamos um grande interesse pela cultura e filosofia chinesas nos trabalhos de Voltaire, por exemplo, e outros autores que desenvolveram um grande interesse pelo confucionismo.

Falando da importância de comércio para o conhecimento do país. Macau teve aqui um papel fundamental também.

Absolutamente. Matteo Ricci foi uma figura crucial para este livro e para a ligação dos europeus com a China. Esteve em Macau, embora grande parte da sua carreira tenha sido feita na China. Mas Macau teve uma enorme importância, tivemos os jesuítas que tiveram influência nos escritos e pensamentos de autores como Voltaire e outros. Macau é um lugar histórico de cruzamento e penso que há uma falta de compreensão e de exposição da sua importância [neste contexto]. O território era mesmo o ponto chave na ligação entre a China e o mundo exterior ao longo do século XVI, e Hong Kong não aparece até bem mais tarde, e quando tal acontece é em circunstâncias muito diferentes. Então este livro não fala muito de Macau, mas penso que este território, enquanto região que permitia um acesso à China, deu muitas informações aos que escreveram [sobre o país] e que surgem neste livro. Há muita literatura e estudos sobre Macau, mas penso que é um trabalho que necessita de ser mais exposto.

Em relação aos chineses que viajaram para a Europa, foram decerto em muito menor número se compararmos com os europeus que viajaram para a China. Porquê?

Havia emigração a partir da China, e muitos dos comerciantes europeus cruzaram-se com chineses em alguns portos que falavam relativamente bem inglês. Não era algo usual à época. Havia missionários que convidavam alguns chineses a viajarem até à Europa. Havia alguns chineses que vinham de facto ao continente, mas os dados históricos são muito limitados. Eles vinham, mas há poucas evidências, por exemplo, de chineses no Reino Unido até um período relativamente tardio. E julgo que isso se deve ao facto de a frota marítima inglesa ser superior, então os chineses teriam mais dificuldades em fazer estas viagens até à Europa. E também se deve ao modelo económico na China, pois durante a dinastia Ching o modelo económico era mais virado para o mercantilismo, muito contido, então não havia um forte impulso para procurar recursos fora do país. Mas nos últimos 500 anos muitos mais europeus foram à China do que o oposto, mas não é isso que se passa agora, e essa é uma transformação histórica.

Já no século XX o panorama dos exploradores ou missionários que iam para a China mudou. Como descreve as grandes diferenças face ao período imperial?

O período de governação de Mao Zedong trouxe, de facto, grandes barreiras [às viagens]. Não era fácil viajar até ao país, penso que Simone de Beauvoir levou três ou quatro dias a chegar, passando por locais no Médio Oriente e Índia, e depois viajou para a China via Hong Kong. O acesso à China nesta altura fazia-se sobretudo por convite e não era fácil. Os casos que inclui no livro são de pessoas que foram convidadas pelo Governo e que faziam parte de delegações que visitavam o país. Os escritos de Simone de Beauvoir são relativamente simpáticos em relação à China, Roland Barthes é talvez menos simpático em relação ao país, mas não é frontalmente crítico. Não se pode notar, nestes escritos, um forte criticismo face ao que viram, e muitos terão aceite que o lhes foi mostrado. Mas estas palavras tiveram um grande impacto cá fora, porque o acesso ao país era bastante limitado.

A grande questão é, 800 anos depois, e com todos estes escritos, continuamos a não compreender a China na totalidade?

Diria que é impossível conhecer qualquer país na sua totalidade. Eu próprio não compreendo o Reino Unido completamente. Mas, claro, que as mudanças que ocorreram na China nos deram uma outra dimensão sobre o país, porque agora é um país comunista com uma economia mais virada para o capitalismo. É um país mais proeminente do que alguma vez foi, então isto dá-nos novas ideias. A ideia que temos sobre a China não é estática, e a ideia que Voltaire, por exemplo, tinha do país não é aquela que temos hoje. Há elementos que se mantém iguais, como a ideia de um Governo centralizado ou da existência de um sistema burocrático. Alguns elementos da cultura chinesa e da sua importância para a identificação dos chineses. Mas sim, a China continua a ser um país com algum mistério. Mas esta questão não é nova e acontece há muitos séculos.

Os media e a globalização mudaram a forma como vemos a China, além de que os chineses viajam agora muito mais. De que forma estes factores nos alteram a visão sobre o país?

Esses factores trouxeram uma maior complexidade à questão. Há mais fontes de informação sobre a China neste momento, e sem dúvida que a covid-19 alterou a forma de viajar de chineses, incluindo estudantes, que vinham para o Ocidente. Há novas perspectivas e depende sempre de cada pessoa. Não há uma única resposta para aquilo em que o chinês acredita. Claro que o Governo incute um único sistema de pensamento nas pessoas, mas há diferentes crenças e complexidades. Essa globalização de que fala só mostra que a China tem hoje uma forte presença a nível mundial em relação ao passado e só isso trouxe novas perspectivas.

Os encontros da Assembleia Popular Nacional terminaram recentemente. Qual o caminho que a China irá fazer nos próximos meses?

Já antes da invasão da Ucrânia havia um cenário de muita incerteza. Este vai ser um ano difícil e o mercado chinês está a passar por um período de transformação. A previsão de crescimento económico de 5,5 por cento não é má, mas tudo depende da qualidade desse crescimento. As autoridades devem pensar em questões de investimento, saúde pública, serviço social ou alterações climáticas. É bom que apresentem uma previsão positiva de crescimento porque o resto do mundo está a enfrentar grandes desafios. Embora mantenham relações algo pragmáticas com a Rússia, não acredito que estejam satisfeitos com o que está a acontecer na região da Ásia Central. A grande questão é se vão manter esta lealdade.

O comércio entre a Rússia e a China tem crescido nos últimos anos. Como será a sua evolução com esta guerra?

É provável que cresça, porque a Rússia vai passar a ter opções muito limitadas em matéria de energia e de comércio. Mas tudo depende do nível de lealdade que a China vai continuar a ter em relação à Rússia, e penso que não vai querer estar muito envolvida. Se Putin avançar para um ataque mais nuclear a China não vai conseguir manter-se em silêncio e ficar no banco. Agora mantém uma posição de neutralidade, mas a certo ponto a situação vai ficar desconfortável. Historicamente, a China e a Rússia sempre tiveram relações difíceis. Para já, a China vai gerindo a situação, mas quantos mais danos se verificarem, mais difícil será manter essa posição.

18 Mar 2022

Pedro Paulo dos Santos, académico: “Macau está perfeitamente integrado na China”

Prestes a terminar a sua tese de doutoramento, Pedro Paulo dos Santos defende que sem uma data para a nova conferência ministerial o Fórum Macau tornou-se numa “entidade adormecida”, mas que pode ter um papel importante a desempenhar em Hengqin. O académico da Universidade Cidade de Macau acredita que os países de língua portuguesa continuam a responder de forma diferente ao potencial da entidade que é ainda pouco conhecida na RAEM

 

Devido à pandemia não há ainda uma data para a conferência ministerial do Fórum Macau. Isso faz com que pareça uma entidade adormecida?

Diria que, devido à covid-19, o Fórum Macau abrandou os seus deveres. As conferências ministeriais são o seu ponto alto e é a ocasião onde estão representados os mais altos dignatários. É nessas conferências ministeriais que são apresentados os planos de acção para os três anos seguintes. Assumo que tudo o que tenha sido proposto no plano de acção anterior foi aprofundado ou estabelecido. Sem uma nova conferência ministerial não se sabe muito bem o caminho que o Fórum Macau vai fazer, porque as suas iniciativas estão paradas. Este vive destas pequenas iniciativas empresariais, porque não é propriamente uma grande organização internacional, não tem um grande impacto nas relações entre os países. Sem estas conferências é uma entidade adormecida, de facto.

O Fórum Macau já existe há 19 anos. Quais as grandes lacunas em termos funcionais?

O Fórum é ainda muito pouco conhecido, até mesmo em Macau. Antes de começar a minha tese de doutoramento fiz um questionário para tentar perceber a sua visibilidade no território, na China e nos países de língua portuguesa. E no seio de 40 pessoas, a maioria portugueses residentes em Macau, diria que apenas três ou quatro conseguiram dizer alguma coisa sobre o Fórum. Isso acontece talvez também por sua própria culpa.

Em que sentido?

Porque não tem feito grandes projectos internacionais, não aparece nas notícias como a entidade responsável por grandes acordos. Logo aí o seu impacto é muito limitado. Mas será que o Fórum Macau foi criado para melhorar o lado visível das relações bilaterais entre os países de língua portuguesa e a China? Penso que não. A China tem cerca de dez organizações internacionais semelhantes ao Fórum Macau, e a nível regional também tem vários. No trabalho que estou a desenvolver para a minha tese de doutoramento foquei-me em seis pontos em particular, e em todo o hemisfério sul apenas três ou quatro países não fazem parte de um fórum chinês. Talvez aí o fórum mais conhecido seja o FOCAC (Fórum para a Cooperação China-África), porque conta com todos os países africanos. Estes fóruns não foram criados para ter um grande impacto nas relações económicas ou nas trocas comerciais, e são essas coisas que têm mais visibilidade.

Qual foi então o grande propósito para a criação destas entidades?

Os fóruns foram criados para permitir à China mostrar um pouco um outro lado. O país criou estas plataformas multilaterais às quais chamou fóruns, e a maneira como funcionam está ligada à discussão de ideias. Apesar de a China ser a líder, quando os países se sentam à mesa todos participam na criação dos planos de acção, e isso ajudou a criar confiança, pois essas mensagens passam para os governos. Pelo estudo que tenho feito, e usando o Fórum Macau [como base], o foco [destes fóruns] foi mais para as áreas relacionadas com cultura, educação, recursos humanos, e isso ajudou a China a promover mais a sua cultura e língua. Isso tem mais impacto em países em desenvolvimento, e não tanto com o Brasil e Portugal, por exemplo.

Com o Fórum Macau, de certa forma, tem sido esse o cenário.

Este tem tido um impacto secundário na ajuda das relações entre os países de língua portuguesa e a China. Não tem projectos muito visíveis. Há aqui duas questões, e uma delas é a falta de conhecimento sobre o Fórum Macau. Esta conferência que deveria acontecer agora seria um ponto de viragem, com novas instalações que são bem maiores e mais visíveis do que as anteriores. Com a nova conferência ministerial haveria maior atenção da imprensa e era falado que a China iria apresentar novas medidas, e isso não aconteceu. Então o Fórum manteve-se estagnado. Estamos numa situação de hibernação que não sei quando irá acabar.

Que outras conclusões da sua investigação pode avançar?

A tese tem um estudo comparativo de seis fóruns chineses para entender como funcionam e qual o seu propósito, e também para distinguir o Fórum Macau dos outros. Tem também um capítulo sobre o papel do Fórum Macau na política externa chinesa, bem como um estudo aprofundado sobre a estrutura organizacional do Fórum e o seu funcionamento, para ver se há uma paradiplomacia ou se existe segundo o modelo diplomático tradicional.

E há de facto uma paradiplomacia, há outros actores nesse relacionamento?

Sim. Este estudo conseguiu provar que há um sistema híbrido na estrutura organizacional do Fórum Macau. Há alguns elementos diplomáticos, e nas conferências ministeriais temos representantes dos governos a participar, e há uma clara linha de comunicação do Fórum a nível governamental. Mas em termos de paradiplomacia existe a participação de membros não ligados aos governos, mas que tentam puxar agendas ligadas aos seus países. E isso consegue-se ver em determinadas áreas.

Como por exemplo?

Inicialmente, o Fórum Macau tinha um foco nas áreas comerciais e na economia, mas começou a mudar para outras áreas, como a cultura, começamos a ver outros elementos a participar. Falo de elementos que fazem trabalho exterior aos governos e isso era impossível não acontecer. Há vários elementos paradiplomáticos em funcionamento no Fórum Macau.

Macau está a caminhar para a integração regional. Qual será o papel do Fórum Macau em projectos ligados a Hengqin ou Grande Baía, por exemplo? Deveria mudar a sua linha de actuação neste contexto?

Macau está perfeitamente integrado na China, como sempre foi um objectivo. O acordo assinado para 50 anos [Declaração Conjunta] foi sempre pensado para a integração das duas regiões administrativas, e sem dúvida que Macau está muito mais integrado do que Hong Kong, e assim irá continuar. Nota-se que cada vez mais a RAEM se aproxima das políticas chinesas. Em relação ao futuro do Fórum, temos de analisar também [além de Hengqin] a Grande Baía, que é talvez o maior projecto da China a nível nacional neste momento. A nível internacional, é o projecto “Uma Faixa, Uma Rota”. E Hengqin vai ter um papel importante. A China não está a entregar Hengqin a Macau, nem nada que se pareça. Está a tentar criar mais uma zona neutra onde negócios dos países de língua portuguesa, e até estrangeiros, possam entrar na China através desta zona. E aí o Fórum Macau poderá ter um papel importante, e os países de língua portuguesa deveriam tomar atenção a isso, pelo ponto de ligação que se pode criar. Já existem os acordos CEPA que facilitam a importação, exportação e transporte de produtos para a China, mas tendo uma zona neutra como Hengqin, que pode receber escritórios de empresas, isso iria ajudar bastante os países de língua portuguesa a entrar no mercado chinês, com a ajuda do Fórum.

Há ainda desigualdades na reacção dos países de língua portuguesa sobre o potencial do Fórum Macau?

Sem dúvida. Vemos isso de uma maneira mais flagrante no facto de os países africanos de língua portuguesa, desde o início, terem enviado os seus representantes que fizeram o seu trabalho a tempo inteiro. Portugal só enviou os seus representantes há seis ou sete anos e o Brasil só agora tem o seu representante a tempo inteiro, e não completamente, porque é o cônsul-geral do Brasil para Hong Kong e Macau que também tem essa função. O Brasil nunca teve um representante a tempo inteiro e isso dá-nos uma ideia de que alguns membros aderiram mais rapidamente à iniciativa do que outros.

Como explica a postura do Brasil?

O país é uma grande economia e vai continuar a ser, pode ter uma certa rivalidade com a China, sobretudo ao nível da cooperação sul-sul, e África também, que sempre olhou com alguma desconfiança para o Fórum Macau. Talvez tenha havido alguma desconfiança no início em relação a Portugal, e tem agora um participante activo. Mas a nível geral penso que todos os grandes países de língua portuguesa deveriam levar o Fórum Macau um pouco mais a sério, talvez não pelo que tenha feito até aqui, mas pelo seu potencial. E não pode ser só a China a tentar levar esta iniciativa para a frente. A China sabe que não consegue tirar benefícios se outros países não os tiverem. O Fórum Macau não está a ser bem utilizado pelos países de língua portuguesa e a pandemia não ajudou, mas tem de haver uma mudança de mentalidade.

17 Mar 2022

Maria José de Freitas, arquitecta: “Património começa a ser visto como um activo”

A arquitecta portuguesa falou esta quarta-feira, no ciclo de conferências do CCCM, sobre a relação entre o património imóvel de Macau e as alterações climáticas. Maria José de Freitas alerta para a ausência de respostas para o velho problema das marés na zona do Porto Interior e pede um calendário para a implementação dos planos de pormenor a nível urbanístico

 

Quais as problemáticas que apresentou nesta ligação do património local com as alterações climáticas?

Parti da questão da Grande Baía onde existem nove cidades que, com maior ou menor impacto, são afectadas pelas alterações climáticas, e que têm a ver com a subida do nível das águas e com o facto de nestas cidades haver muitas zonas de aterro. Em Macau e em Hong Kong isso também acontece. Nestas cidades da Grande Baía existe património e em Macau e Hong Kong existe um património mais miscigenado. Macau será a única cidade com património classificado pela UNESCO e, portanto, há que preservá-lo e prevenir situações decorrentes da subida do nível das águas. A situação deve ser monitorizada a nível local, regional e internacional. No caso de Macau, com a construção de tantos aterros e com os constrangimentos causados pelo estrangulamento da bacia hidrográfica do Delta do Rio das Pérolas, o assoreamento do rio e a poluição ambiental, uma vez que no sudeste da China era a fábrica do mundo, surgiram condições que afectam bastante o nosso património.

Que exemplos concretos que pode dar?

Na conferência falei de três casos concretos, alguns deles passaram directamente pelas minhas mãos, como é o caso das Ruínas de São Paulo, que foi o primeiro caso de património com o qual trabalhei em Macau, em 1991, quando cheguei. Fui absorvida pelo Laboratório de Engenharia Civil de Macau (LECM) que achou que, para esta área, era melhor ter um núcleo de arquitectura, que eu coordenei. Nesse trabalho fez-se uma prospecção para ver o estado das fundações da fachada da antiga igreja. O que é hoje visível é uma fachada praticamente auto-sustentada em fundações, mas não se sabia, à data, a sua profundidade e em que condições estavam. Não há tremores de terra, mas há ventos derivados dos tufões, cuja periodicidade e intensidade se prevê que seja cada vez maior. Nessa altura, a fachada estava afectada por uma série de manchas que afectavam o granito. Foi então feita esta análise e a descoberta dos achados arqueológicos obrigou, de alguma forma, à alteração do projecto. Houve um envolvimento da população à época, o que é importante, tal como a presença da tecnologia, e na altura o LECM apetrechou-se para dar resposta, e foi tratada a pedra de granito das Ruínas para evitar a sua degradação. Mas a população deve protagonizar este alerta constante em relação à protecção do património.

Que mais casos apresentou?

Falei da farmácia Cheong San, onde o dr. Sun Yat-sen exercia medicina. O edifício foi adquirido pelo Governo em 2011 e depois foi recuperado, e quando foi feito esse processo descobriram-se achados arqueológicos do antigo cais de acostagem, porque aquela zona foi um aterro também. Além disso, apresentei a situação dos estaleiros de Lai Chi Vun, que passaram a ser foco de maior atenção depois do tufão de 2018 [o Hato]. Na altura, conseguiu-se um consenso para que eles fossem classificados e protegidos. Há um projecto em curso que vai contribuir para uma mais valia científica e cultural não só das pessoas que habitam naquela povoação como dos visitantes. O património imóvel e as alterações climáticas têm uma sinergia muito grande entre si e isso pode contribuir para posicionar o património como um activo. O património cultural não é nada que pertence ao passado e que está imóvel, mas começa a ser considerado um activo cultural para o futuro.

No caso de Lai Chi Vun há essa classificação, mas o plano concreto de requalificação parece demorar a ser concretizado. As autoridades vão conseguir dar resposta face às alterações do clima cada vez mais rápidas?

[É preciso tempo], estando vários organismos envolvidos [nesse processo], como é o caso do Instituto Cultural (IC) ou da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes. Os estaleiros em si são estruturas vulneráveis e estão muito degradadas e pode de facto acontecer isso. Há dois casos de estaleiros que já não existem e que serão conservados como zonas verdes. O resto precisa do seu tempo para acontecer. Penso que até ao final do ano uma parte destes estaleiros vai poder ser visitado e é possível assistir a essa recuperação. Ao longo do tempo [esse plano será concretizado], só espero que não ocorram mais incidentes como o Hato. Acredito que o IC está atento a essa situação e que a nova presidente, que tem uma formação na área da arquitectura e que esteve à frente deste departamento do património, está também atenta a essas questões. A população está sintonizada também com estas matérias.

Em relação aos novos aterros e à subida do nível das águas, acredita que os projectos habitacionais em curso já têm em conta essas alterações climáticas?

A cota que se vê mais quando se analisa as plantas cartográficas de Macau, das zonas planas e de aterro eram cotas de três a quatro metros acima do nível médio das águas. Sei que actualmente a cota dos novos aterros é de cinco metros, daí que tenha havido estudos nesse sentido e que evidenciam essa necessidade de olhar para uma subida do nível das águas e que dá uma maior margem de segurança. Tudo o que acontece na zona do Delta [do Rio das Pérolas] deve ser avaliado em conjunto em universidades e laboratórios de engenharia. O que me causa maior apreensão é a ocorrência de marés na zona do Porto Interior.

Estão a ser desenvolvidas algumas obras, mas acha que essas soluções são as ideais?

Já se falava da ocorrência de marés no século XVIII, XIX, já foram feitos muitos planos e nunca se chega a um consenso sobre a forma de organizar os diques para proteger o património. Se toda a baixa da cidade sofrer inundações sucessivas, qualquer dia não temos a possibilidade de manter a Macau que conhecemos. Estes novos aterros devem ser analisados em conjunto para que se tomem medidas a tempo. Sei que é uma preocupação referida no plano director de uma forma teórica, e tem de ser sinalizado na prática.

Sobre o plano director, está satisfeita com as respostas dadas quanto às alterações climáticas?

Este plano é uma cartilha de boas intenções e remete para a fase dos planos de pormenor para as 18 zonas. Seria demasiado cedo para avançar com propostas, mas em Macau é sempre demasiado cedo para se fazer qualquer coisa e quando se faz, muitas vezes já é tarde demais. O plano poderia ter incluído mais especificações em determinadas zonas e áreas. A proposta apresentada para discussão, e refiro-me mais ao relatório técnico, e que justifica algumas das opções tomadas, aparece agora no plano de uma forma mais aligeirada. Remete-se para os planos de pormenor e ficamos na expectativa sobre quando é que eles serão finalizados. Não há um planeamento nesse sentido e essa deveria ser uma adenda a fazer ao plano director, para que fosse especificado um calendário para esses planos de pormenor, e quais são prioritários para o desenvolvimento, nunca perdendo uma visão de conjunto com os transportes, serviços e educação da população.

 

Debate no CCCM 

A palestra que Maria José de Freitas deu esta quarta-feira intitula-se “Alterações Climáticas e o Património Imóvel em Macau: Mitigação dos Impactos” e integrou um ciclo de conferências da primavera que o Centro Cultural e Científico de Macau, em Lisboa, está a organizar num formato híbrido. Até este sábado será possível assistir a palestras inteiramente dedicadas a Macau e a várias áreas de estudo. O programa completo e link Zoom poderá ser consultado no website https://www.cccm.gov.pt/conferencias-da-primavera/

11 Mar 2022

José Manuel Duarte de Jesus, embaixador jubilado: “A diferença entre a China e a Rússia é enorme”

Ex-embaixador de Portugal em Pequim e Pyongyang, José Manuel Duarte de Jesus defende que a China tem mantido uma estratégia para a sua política externa semelhante desde 1949 e que precisa de um mundo estável para a sua sobrevivência. Quanto à situação na Ucrânia, o embaixador jubilado acredita que a China “está a fazer as coisas com grande subtileza”

 

Quando é fundada a RPC, em 1949, Mao Zedong passou a liderar um país ainda fechado ao mundo. Neste período como eram as relações externas chinesas?

Na conferência de Bandung [em 1975], Zhou Enlai, então primeiro-ministro chinês, delineia as grandes linhas que vão orientar a diplomacia chinesa e a política externa. É interessante ver que, no caso da China, comparando com a maior parte dos países, tem havido uma constância enorme na sua política externa.

Até aos dias de hoje.

Mesmo com os problemas que se colocam hoje com a Ucrânia, julgo que a linha básica é a mesma. Isso verifica-se no caso de Taiwan e até com os problemas de agora. As últimas declarações de Wang Yi [ministro dos Negócios Estrangeiros] sobre a Ucrânia não diferem muito da política estabelecida. Vimos que a China condena a invasão, mantém a sua ideia de multilateralismo, a defesa das grandes orientações da ONU. A sua abstenção nas votações manteve-se quando foi do problema da Crimeia. A ideia da China é evitar meter-se nas crises internas de outros Estados.

A China abstém-se, mas a comunidade internacional insiste numa tomada de posição. Isso vai acontecer?

Condeno absolutamente a invasão na Ucrânia. Mas uma coisa é condenar, outra é votar publicamente contra. A China já está a assumir alguma posição. Recentemente houve um longo telefonema da ministra dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia com Wang Yi. A China está a fazer as coisas com grande subtileza, está a ter uma intervenção no sentido de promover o diálogo, mas não o faz publicamente. O pragmatismo da China, no que diz respeito à política externa, é imenso. Duvido que a China torne pública uma posição. Temos de ter alguma atenção a estas coisas que se vão dizendo, nomeadamente da grande aproximação entre a Rússia e a China.

Porquê?

Temos de ser prudentes. A China baseia-se, além de Karl Marx e Lenine, na filosofia antiga. E lembro-me muito, nesta situação, de uma coisa que Confúcio escrevia e que se aplica muito a esta situação, sobre a virtude, quando ele diz que sabe harmonizar-se com o outro quando esse outro é diferente, mas não o copia. Esta ideia está presente. A diferença entre a China e a Rússia é enorme.

E sempre foi.

A aproximação [dos dois países] é pragmática. Julgo que tentar uma harmonia não é copiar o modelo. É difícil entender a China quando não se tenta entender um pouco do seu passado cultural, e que comanda muitas das reacções que a China tem no mundo.

A Rússia é hoje uma oligarquia, afastada dos ideais do comunismo. Mas a China tem uma forte relação comercial com o país. Acha que esta relação poderá sofrer mudanças profundas nos próximos tempos?

É natural, suponho que todo o mundo vai sofrer mudanças. Vamos ter uma ordem mundial com fortes diferenças e ajustes. É difícil prever o que vai acontecer, mas estamos perante um modelo russo que é capitalista no pior sentido da palavra capitalismo. A dependência daquele senhor [Vladimir Putin] dos grandes oligarcas é enorme. A Rússia é fundamentalmente pragmática e nas relações externas o pragmatismo é a única ideologia da China. Daí digamos que haja uma grande vantagem para o diálogo e para a paz mundial. Pode ser um actor importante para ultrapassar clivagens.

No período da Guerra Fria dominavam dois actores, a URSS e os EUA. A China procurava uma outra via diplomática?

A China buscava para si um apoio no que, naquela altura, se chamava o Terceiro Mundo, a criação de um bloco que ultrapassasse os problemas entre os EUA e URSS. Tinha depois a Índia que queria fazer exactamente o mesmo, embora na altura nenhum deles [China e Índia] fosse ainda uma potência. A China teve uma evolução que lhe permitiu pôr em prática esse modelo a nível mundial com maior eficiência do que a Índia, que não conseguiu a mesma progressão tecnológica.

Com Deng Xiaoping o país abre-se ao mundo. A evolução económica do país teve um impacto na forma da China se relacionar com os outros países, com uma visão mais economicista?

Com certeza, sempre houve essa visão. Isso porque a China sempre foi pragmática e deu, desde a velha Rota da Seda até à actualidade, um valor especial às relações comerciais no sentido de poder ultrapassar a problemática política. Essa tem sido sempre uma aposta grande na China. A URSS sempre quis vender o seu modelo político a outros países e isso ficou muito evidente no caso da guerra colonial nas antigas colónias portuguesas em África. Havia movimentos que estavam ligados à URSS que queriam copiar o seu modelo.

E que obtinham financiamento.

Exactamente. Sabemos que a China financia todos. A ideia é sempre esse pragmatismo e isso ajuda a China a ultrapassar clivagens ideológicas ou ligadas ao poder. Hoje assistimos a um novo bipolarismo, já não entre a URSS e EUA mas entre os EUA e China. Mas a China tenta sempre partir este modelo, às vezes consegue, outras vezes não.

Essa estratégia verifica-se em projectos políticos actuais como é o caso de “uma faixa, uma rota”, em que há um amplo investimento da China em diversos países. É uma cópia desse modelo no período colonial?

Acho que sim. E é algo que vem desde os tempos da velha rota da seda: pegar em todos aqueles que são inimigos da China e torná-los parceiros económicos. O modelo tem sido sempre o mesmo com adaptações às circunstâncias. Há aqui uma orientação milenar que a maior parte dos políticos e analistas se esquecem.

A análise que tem sido feita à diplomacia chinesa peca por não olhar para esse lado filosófico, essa base confucionista, e que é diferente de outros países?

Sim. Há sempre um erro, mas penso que Portugal é dos países que menos comete esse erro por ter uma experiência de 500 anos de convivência com o país através de Macau. Tenho alguns exemplos que aconteceram comigo, e fiquei abismado com frequência por ver até que ponto essa história ainda se reflecte no nosso diálogo. Esse modelo que criámos permanece, com altos e baixos, e Portugal deveria explorar mais, do ponto de vista diplomático, este vector.

Actualmente a China parece estar a usar a pandemia como uma ferramenta de soft power, e Xi Jinping tem usado muito o conceito do “socialismo com características chinesas”. Com base nestes dois factores, como olha para a estratégia diplomática de Xi Jinping para os próximos tempos?

Sou prudente nessas coisas, porque mesmo a China tem desvios nesse tipo de linhagem ideológica. O problema que está a acontecer, e que é grave, são as relações com os EUA. Vimos que o Trump teve uma política externa desastrosa para a imagem externa do país. Estava com esperança de que Joe Biden viesse dar uma volta a isso, mas infelizmente não deu.

Ou ainda não teve tempo para dar?

Agora é tarde demais para dar, e ainda por cima tem de lidar com problemas internos graves. Ele quer afirmar-se e nesse processo não quer dialogar, porque acha que dessa forma fica com uma imagem de fraqueza. Isso prejudica porque estamos perante dois pólos economicamente e tecnologicamente concorrenciais. Sem diálogo, o problema é grave e isso junta-se ao problema que temos hoje na Ucrânia. Penso que da parte da China há uma vontade real de diálogo, porque sem isso os problemas económicos podem agravar-se no país. A China está numa grande fase de desenvolvimento e para isso precisa de um mundo estável, a sobrevivência do país depende dessa estabilidade, pois permite-lhe ter relações vantajosas. Se há uma guerra ideológica isso prejudica gravemente a China.

Um cenário de guerra comercial com os EUA está afastado?

Infelizmente não está.

Em relação a Taiwan, paira o fantasma de um conflito armado?

Convém não confundir Taiwan com a Ucrânia, que não têm nada a ver um com o outro. Mais uma vez a política da China em relação a Taiwan foi sempre a mesma, que é afirmar que o território faz parte da China desde a dinastia Ming. A diplomacia chinesa tem sido basicamente a mesma, mas infelizmente a diplomacia americana tem sido um zigue-zague nos últimos anos. E há académicos a afirmar isso, incluindo o próprio Kissinger.
É difícil prever o que vai acontecer, porque vai depender muito da influência externa dos outros países. Teremos de ver qual vai ser a atitude dos EUA face a Taiwan. A China vai, de certeza, manter a posição de “wait and see” [esperar e ver] e não vai copiar o senhor Putin e invadir. Se não tivesse surgido o problema da Ucrânia a questão de Taiwan seria um dos maiores focos de tensão a nível mundial. Vamos ter esperança de que as coisas se resolvam com Taiwan de uma maneira diferente, porque Taiwan é hoje uma grande economia e já é diferente da região que era nos anos 70. É natural que o diálogo tenha de ter uma formulação diferente.

A Coreia do Norte condenou as forças ocidentais na invasão da Ucrânia. Sendo uma potência nuclear, tal como a Rússia, teme algum tipo de união entre os dois países para um maior poder nuclear?

Espero que isso não aconteça. Não vejo nenhum tipo de ligação possível entre Putin e Coreia do Norte, são actores radicalmente diferentes. Quando eu lá estava, um dos inimigos da Coreia do Norte era a URSS. Mas quando há inimigos comuns, a união entre adversários é relativamente possível, pelo que há sempre um perigo. Não podemos esquecer as quatro potências nucleares a Oriente e não podemos brincar com o fogo, com o louco da Coreia. A Coreia do Norte é mais um laboratório psíquico do que um Estado. Nunca vi nem vejo comparação com outro país. Mas quem tem um cão tem de saber lidar para que ele não morda.

 

Orador no CCCM

José Manuel Duarte de Jesus será um dos oradores no ciclo de conferências da Primavera organizado pelo Centro Cultural e Científico de Macau. No dia 31 deste mês irá apresentar a palestra “A construção de uma imagem externa na diplomacia da República Popular da China, desde Zhou En Lai até aos nossos dias”, que serviu de ponto de partida para esta entrevista. José Manuel Duarte de Jesus participa na qualidade de académico do Instituto do Oriente, ligado à Universidade de Lisboa.

10 Mar 2022

Sheyla Zandonai, antropóloga e autora do livro “The City in Review”: “Todos os caminhos apontam para Hengqin ”

A residir no território desde 2008, a antropóloga e professora universitária Sheyla Zandonai prepara-se para lançar, em Abril, um livro que reúne os artigos de opinião que publicou no antigo jornal Business Daily e no portal Macau News Agency. Editado pelo Instituto Internacional de Macau, “The City in Review – Episodes of hope and not so in Macau” contém posições sobre urbanismo, transportes públicos, jogo ou a protecção do património e pretende ser “um registo da memória recente” de um território em permanente mudança

 

Este livro é uma compilação das suas crónicas, mas desde então Macau tem mudado muito rapidamente. Olhando para os textos em perspectiva, como vê a evolução do território a nível sócio-económico?

A nível sócio-económico, provavelmente por causa da pandemia, mudou completamente a situação das contas públicas, a situação individual, com pessoas a perderem o emprego ou a trabalhar a tempo parcial para não serem despedidas. Há menos dinheiro, menos impostos do jogo e o Governo teve de ter uma certa cautela, apesar da reserva. A situação não vai voltar ao que era porque ocorreu uma grande mudança no sector do jogo. Penso que a pandemia é o grande factor disruptor do funcionamento da sociedade.

Em relação ao passado.

Sim, e em relação há uns bons anos sem dúvida, pois mudou a maneira de viver em Macau, há menos liberdade de movimento. Houve adaptações no mercado de trabalho e tem acontecido nos últimos meses algumas pessoas, do meio não chinês, acabarem por deixar a cidade. É uma mudança lenta [face à pandemia], e as pessoas passam por uma fase de frustração ou acabam por sair. Mas voltando ao livro, ele está organizado por temas, e há alguns que ainda são relevantes, ou que contêm questões que não foram resolvidas e continuam em debate. Há outras questões que já tiveram desenvolvimentos ou respostas do Governo.

Um dos capítulos é sobre o desenvolvimento urbanístico, e finalmente Macau tem um plano director. Esse é um ponto positivo, por exemplo?

Da perspectiva do Governo, que sempre quis apresentar um plano director, sem dúvida que é uma conquista, e também para a sociedade no geral. Houve ataques ao tecido urbano de Macau que aconteciam porque faltava um plano, por exemplo. Em relação à protecção do património, sabemos que em Macau houve edifícios que foram destruídos, mesmo estando numa zona que deveria estar protegida. Há outros elementos envolvidos e não basta haver uma lei. Penso muito no Instituto Cultural, cujas opiniões devem ser seguidas e muitas vezes isso não aconteceu na prática. Falo do caso do Farol da Guia, é o exemplo mais emblemático do embate com o desenvolvimento urbano.

O facto de as pessoas estarem a sair de Macau vai mudar o tecido social, composto por várias comunidades? Isso vai alterar o funcionamento da sociedade?

Há uma mudança nesse tecido humano. Nos últimos anos, e até antes da pandemia, já era possível notar, em termos das práticas adoptadas, uma vontade do poder de dar mais projecção ao residente chinês de Macau. Existem muitas instituições locais que recrutaram mais chineses, na área do ensino, por exemplo. O que acontece, desde que o Governo fechou a porta à contratação de mão-de-obra estrangeira, é que todas as empresas, no sector dos negócios ou do ensino, só podem contratar mão-de-obra da China ou de Hong Kong. Se, por exemplo, uma universidade abre uma vaga para professor, parece uma porta aberta para recrutar em todo o mundo, mas na prática não podem trazer ninguém que não seja dessas duas zonas, ou que já esteja em Macau. Isso tem criado problemas às instituições que não conseguem recrutar pessoal e obriga a que os professores tenham de dar horas de aulas além do que deveriam para cobrir as faltas. Muitos colegas também se foram embora. Será mais problemático em departamentos que precisam mesmo de mão-de-obra estrangeira, como os de línguas, por exemplo. Existe também o grupo dos filipinos que foi o primeiro a sofrer um golpe que mudou bastante a maneira como viam Macau, como um local de trabalho. Muitos blue card ficaram mesmo sem possibilidade de voltar. São exemplos que mostram existir uma mudança nesse tecido. Não tenho números e provavelmente os novos Censos vão ter números interessantes de observar. Se haverá uma alteração profunda, penso que no que toca à existência de comunidades estrangeiras, sim. Mas é sempre bom lembrar que a comunidade chinesa é maioritária, mas há menos vozes de diversidade, embora Macau tenha uma história de multiculturalidade. Sem dúvida que há um impacto da política adoptada para lidar com a pandemia. Este livro funciona um pouco como um registo da memória recente de Macau que terá algum valor académico, porque são artigos que contam factos.

Publicou há uns anos um estudo sobre “Macau governada pelas suas gentes”, em que concluía que este conceito foi desenvolvido por Pequim. Até que ponto ainda tem espaço para existir no contexto da integração regional?

Existe essa divisão entre o chinês que é de Macau e o que vem do continente. Mas existem critérios que definem o que é uma pessoa de Macau, e isso está até estabelecido pela Lei Básica. Há membros do Governo que são residentes de Macau mas que vêm da China e começaram aqui a carreira como funcionários públicos. É um trabalho que tem sido feito desde a transição e estas pessoas já são consideradas de Macau. Esse é um fenómeno histórico em Macau, que é o facto de o chinês do continente se ter tornado num futuro residente.

O sector do jogo está numa fase de mudança e o Governo tem uma estratégia de redução do peso dos casinos na economia. Até que ponto isso vai mudar o panorama sócio-económico de Macau?

A tendência é que Macau venha a ter uma reputação mais positiva. O jogo é ainda visto, e não apenas pela China, como uma actividade quase sórdida, com um cunho negativo. A maior mudança, em termos da estrutura do jogo, como ele tem operado desde a época do Stanley Ho, é no sector dos junkets. O jogo VIP vai sofrer, inevitavelmente, porque o grande controlo agora é feito no fluxo de capitais. Penso que a ideia é transformar o jogo, ou os casinos, em lugares de lazer e entretenimento, com maior investimento nas artes. Isso é o que tem sido feito e não é uma mudança repentina. O facto de os junkets terem sido presos foi um pouco surpreendente, mas a China já tinha enviado alguns sinais. As empresas querem manter-se no mercado, e o jogo ainda vai continuar a ser a principal actividade económica durante uns anos, mas todos os caminhos apontam para Hengqin. Esta vai ser a alternativa ao jogo, porque na cidade em si nada mais tem um volume tão relevante. Talvez nos tornemos numa sociedade mais saudável, porque, em vários aspectos, o jogo provoca distúrbios nas famílias, com as pessoas a trabalharem à noite e por turnos, por exemplo. Mas é preciso que haja emprego, por isso os casinos ainda se vão manter.

É preciso um período de transição para que a economia se foque nas PME e na investigação.

Há inúmeras áreas em Macau que podem ser desenvolvidas, como o ensino de línguas. Macau tem um pouco essa relevância devido ao seu papel de plataforma, embora a China também tenha apostado no ensino de línguas e de tradutores. As startups são relevantes, mas não podemos esquecer que Shenzhen está aqui ao lado e a competição é enorme. Mas existem nichos e oportunidades de negócio. Se a ideia do Governo é mesmo transformar [o território] num centro de investigação, há condições para isso. É preciso algum tempo também. Mas isso por si só não vai mudar as mentalidades. É difícil ver o caminho e é preciso acompanhar os sinais e a direcção de Pequim. Haverá um momento em que vai ocorrer uma mudança e uma nova leva de pessoas, o que vai mudar o perfil e a função de Macau.

8 Mar 2022

António Izidro: “Acho interessante a ideia de estabelecer um paralelo entre Li Bai e Camões”

António da Amada Izidro, macaense, bilingue em Chinês e Português, foi Chefe do Departamento de Informação no Gabinete de Comunicação Social, até se reformar em 2002. Daí para cá um dos seus maiores interesses tem sido a poesia e a vida do poeta chinês Li Bai. Agora vai publicar um livro – “Li Bai – A Via do Imortal”, que intersecta a biografia com numerosos dos seus poemas traduzidos para língua portuguesa. O lançamento, integrado na Semana de Cultura Chinesa do Hoje Macau, terá lugar na próxima segunda-feira, dia 7 de Março, na Fundação Rui Cunha, pelas 18:30

 

Como nasceu o seu interesse por Li Bai e pela poesia chinesa?

Quem gosta de poesia chinesa, delicia-se. Quem não gosta, aprende a gostar. A poesia chinesa, como dizia um político chinês, é como cana-de-açúcar. Começa-se a degustar a parte menos doce da raiz e à medida que vai roendo tronco acima, o aroma açucarado intensifica e enche a boca. Por quê Li Bai? Das recordações da sua infância ao tempo de exílio, uma vida tumultuosa, Li Bai caracteriza-se por ser um poeta com verdadeiro amor à pátria. Uma vida contemplativa nos montes, exótica sob o luar, escondida no vinho. Provavelmente, é o mais multifacetado dos compositores chineses, de personalidade ímpar, que dificilmente se dobra. Os seus poemas são um cardápio de temas tão abrangente que não se encontra noutros poetas: misticismo, erotismo, espiritualidade, poemas melíferos e ácidos, sentimentais e românticos, tudo pincelado com a mesma originalidade e riqueza de estilo. Verticalidade é porventura o termo que assenta bem no seu discurso.

Que passos teve de dar para fazer este livro? Visitou locais frequentados pelo poeta?

De Sichuan até Hangzhou, um trajecto de quilómetros e mais quilómetros por entre municípios e vilas. «Ainda é possível ´respirar´ Li Bai», dizia eu. «Antigamente talvez se pudesse dizer isso. Hoje está tudo mudado», assegurava-me o meu cicerone, que aí procurou guiar a conversa para a excelência dos locais que o poeta pisou e que me ia mostrar. De manhã cedo metemo-nos no caminho. Quanto a mim, era para satisfazer um fascínio nascido no dia remoto em que sentia a necessidade de rasgar novos horizontes e lançar o trabalho rotineiro para as raias do esquecimento. A política de reformas e abertura mudou toda a China, cintilam agora grandes e modernas metrópoles. Os montes, em cadeia, capeados de pinheiros, os rios e vales verdes, esses, felizmente, é que não mudaram, nem as pedras, nem os pagodes que ainda emanam ´cheiros´ do poeta imortal. Foram muitos museus percorridos e papelada sem fim consultada. Eu sabia dos livros, mas preferia testemunhos vivos. De tudo fui ouvindo, perguntando, memorizando e anotando.

Para realizar este livro, visitou então numerosos lugares na China. Como correram essas viagens e o que trouxe delas? Quanto tempo lhe levou a realização deste livro?

Trouxe um volumoso bloco de notas que fui ordenando, pesquisando e acrescentando novos elementos, mas sem ainda o impulso para iniciar o trabalho. Foi então que a covid-19 estoirou e veio a ordem governamental que mandou fechar tudo. Eu também me fechei, mas no meu quarto deleitando-me com Li Bai durante cerca de um ano.

Depois de tanto tempo a conviver com ele, com que ideia ficou do poeta e do homem Li Bai?

Digamos que tem um perfil incompleto, quase perdido, mas nele tudo fala, nada esconde: homem de forte personalidade, sensível ao mal alheio, grande espiritualidade, observa a vida ao redor e não poupa críticas através de uma forma subtil. O filme pessoal que tinha pensado apresentar à história, contracenando com figuras heróicas do passado ruiu na estratégia, no idealismo que lhe parecia verosímil e no não aderir aos sistemas corruptos que grassavam na corte Tang, no curto tempo em que lá permaneceu. Granjeou, indiscutivelmente, a simpatia do imperador, num ambiente em que não faltaram oposição e ciúmes, com os quais os círculos do poder o alvejavam. Conquistou amizades e admiração dos seus pares. Morreu com dissabores e frustações. A fama e a arte ficam para a posteridade e a história. Acho interessante a ideia – penso que não é despropositada – de estabelecer um paralelo entre Li Bai e Luís de Camões, não me refiro ao engenho e à arte dos dois, evidentemente. É possível constatar, porém, que fizeram um percurso de vida que se assemelha em alguns aspectos: Camões também lia poemas na corte portuguesa, viajou por mares, enquanto que Li Bai peregrinou pelas montanhas. Ambos lutaram pela causa da pátria, receberam pensão da coroa, ambos foram presos. Li Bai morreu só e frustrado, no limiar de uma nova dinastia, enquanto que Camões viveu seus anos finais na pobreza. Terá dito o poeta luso que morria com a Pátria.
Repara nestes dois poemas:

O teu perfume ficará em mim para sempre,
mas onde andas tu, meu amor?
Suspiro e folhas amarelas caem dos ramos.
Choro e o musgo verde brilha, húmido de orvalho.
Li Bai

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.
Luís de Camões

Tem algum método particular para abordar a tradução de uma língua tão distante da portuguesa como o chinês?

Sim. Primeiro, procuro sempre encontrar o contexto histórico-cultural, às vezes físico, em que a poesia foi escrita. Em segundo lugar, faço uma tradução literal palavra a palavra, expressão a expressão. Em terceiro lugar, reescrevo tudo de modo a fazer sentido em português, sem que perca com isso o seu sentido original. Finalmente, procuro sentir o que terá sentido o poeta e volto a reescrever. Nem sempre fico satisfeito com o resultado (risos).

De facto, o seu livro e as notas apresentam, de forma erudita, os contextos em que vários poemas foram escritos. Considera isso fundamental para o entendimento desta poesia?

É preciso contextualizar não só em termos históricos e geográficos, mas também as circunstâncias, os sentimentos, as ideias que os poemas versam. São episódios distintos e ambientados, inseridos na vida do poeta Li Bai. As notas dos poemas, diria, são como o sal que se quer para a comida. Os detalhes eliminam o surreal e enquadram melhor o leitor na compreensão, no alinhamento com os cenários vividos pelo autor. É um tratamento virtual que se dá à leitura poética.

Considera estas traduções poéticas o ponto mais alto da sua carreira de tradutor ou preferia traduzir discursos oficiais e ser intérprete como no tempo em esteve no GCS?

Diria antes que foi um trabalho fascinante e o cumprimento de um propósito que me impusera. É recomendável manter-se sempre activo intelectualmente. Tive oportunidades de praticamente traduzir de tudo e todos. O trabalho profissional deve ser abrangente e o ineditismo circunscreve-se no âmbito da criação que não se deve abdicar. Traduzir e interpretar poemas clássicos chineses sã devera penoso mas empolga o espírito e assoberba a vontade.

Nascido em Macau, assistiu ao final da administração portuguesa e a duas décadas de administração chinesa. Que mensagem gostaria de deixar aos presentes e futuros governantes desta terra? E aos seus conterrâneos macaenses?

Continuo a achar que não podemos cruzar os braços e deixar escoar uma sociedade em que os ventos do Norte sopram cada vez mais fortes, num processo de transformação sem precedentes que acabará (espero que não) por diluir irremediavelmente a identidade e cultura macaenses. Há que atiçar o empenho para garantir que as condições existam; que os ´filhos da terra´ de agora e gerações vindouras possam assumir um papel mais interventor nos diferentes sectores sociais, sem fomentar o individualismo, mas posto ao serviço da sociedade de Macau e da comunidade macaense. O actual critério que rege a atribuição de cargos públicos de responsabilidade de acordo com o ratio étnico-racial da população local julgo que deve ser reconsiderado. Afinal, os portugueses de Macau (naturais e não naturais) são herança de uma história de cinco séculos, não é?

Teve alguns apoios para a realização deste trabalho?

Essencialmente livros de consulta e alguns mestres sinólogos.

1 Mar 2022

Arnaldo Gonçalves, autor de “Por quem os sinos não dobram”: “Lojas maçónicas em Macau vão desaparecer”

O novo livro de Arnaldo Gonçalves, “Por quem os sinos não dobram – A maçonaria e a Igreja Católica”, aborda o conflito secular que sempre existiu entre estas duas instituições e as razões da sua origem. O autor considera que as lojas maçónicas em Macau têm vindo a perder membros, devido à saída de muitas pessoas do território, e que vão acabar por desaparecer com o tempo

 

Como nasce este livro que faz a ligação entre os valores maçónicos e os dogmas da igreja?

Estive sempre ligado, na parte académica, à ciência política e relações internacionais, e foram essas áreas que ensinei em Macau. Mas quando vim para Portugal achei que a parte filosófica que a maçonaria me dava não chegava, e tinha muita curiosidade intelectual em relação a isso. Fiz então um mestrado em estudos da religião e escolhi o tema para a tese de mestrado sobre o grande arquitecto do universo, que é central na maçonaria, e a qualificação que damos a Deus, para poder incluir gentes de várias religiões. Eu não tenho nenhuma religião, e na maçonaria agregamos essas pessoas. Quando elaborei a tese tive curiosidade de perceber as razões da animosidade da Igreja contra a maçonaria. Peguei então nas insígnias, nas bulas, estudei o pensamento dos Papas, e entre 2020 e 2021 comecei a juntar a documentação para tentar perceber esse conflito, que do meu ponto de vista não fazia grande sentido.

Porquê?

Os valores da solidariedade, da fraternidade, da inter-religiosidade, que existem muito na maçonaria, achava que a Igreja também os tinha. E o livro faz esse balanço do passado, de como a Igreja se coloca [perante a Maçonaria]. Com os últimos três Papas, a Igreja fez um grande esforço de ligação com outros espaços religiosos. Apesar de se assumir como o caminho da salvação preferencial, a Igreja católica neste momento aceita que as pessoas possam ser judeus ou protestantes, por exemplo, e terem um caminho espiritual como aquele que a Igreja pontua. Queria perceber porque continua a existir esse bloqueio, porque é que os católicos são dissuadidos de participar nas lojas maçónicas, porque é que havia a pena da excomunhão dos que participavam, até há pouco tempo.

E a que conclusões chegou?

Percebi que há vários factores [para essa situação de bloqueio]. Existe a questão histórica, da tradição, do dogma da Igreja, de que os Papas nunca se enganam, e que em matéria de ensino religioso ou dogma, quando estes tomam determinada decisão, esta não pode ser revogada. Por exemplo, o Papa João Paulo II, ou o Papa Francisco, não podem dizer que a bula de um outro Papa é um perfeito disparate e não faz sentido. E esta é uma situação que acho confrangedora e sem sentido. Sendo uma pessoa fora do catolicismo, sou muito ligado ao Papa Francisco e aos seus valores, porque é latino, tem uma sensibilidade parecida com a nossa. É uma pessoa muito agregadora. No livro cito muitas declarações dele, incluindo uma em que ele diz “Somos todos irmãos”, porque não fazem sentido estas divisões dentro das várias religiões, escolas e congregações. E o livro tenta dar essa reflexão pessoal às pessoas de dentro e fora da maçonaria, no espaço católico.

Foi fácil o acesso a fontes e documentos? Que desafios enfrentou para a escrita deste livro?

O acesso às fontes da maçonaria foi relativamente fácil, porque eu tinha os documentos históricos que estão no website do Vaticano. Encontrei algumas coisas nos jornais. Acedi a núcleos documentais do Grande Oriente de Inglaterra, de Itália, e isso ajudou-me muito. Na Igreja, não tive grande saída. Tentei contactar o nosso cardeal na Santa Sé, mas ele não me respondeu. Achei que estar dependente de um contacto com a Igreja para o acesso às fontes não ia adiantar muito em relação ao livro. Essa foi a pequena dificuldade. O livro faz suficientemente o contraditório com os textos escritos pela Igreja e nos comentários que existem da parte das Grandes Lojas e maçons.

No caso de Macau, tem-se verificado também este conflito entre a maçonaria e a Igreja?

Não há diálogo nenhum. Falo, no livro, no debate que foi promovido pelos Papas Paulo VI e João XXIII, em que impulsionaram iniciativas de diálogo discretas. Mandataram bispos para aproximar as organizações maçónicas e ver se se podia ultrapassar a proibição de católicos na maçonaria. No caso de Macau acho que não, porque a Igreja Católica é muito conservadora, sempre achou que a maçonaria ia contra a fé e os próprios ensinamentos da Igreja, e nunca houve uma grande aproximação, sobretudo no tempo em que Macau tinha administração portuguesa. Foram duas realidades completamente diferentes. Em Macau, há poucos maçons enterrados em cemitérios cristãos. Mas se formos ao cemitério protestante encontramos vários maçons. E daí o nome do livro “Por quem os sinos não dobram”, porque os sinos não dobravam por serem maçons, os católicos não os reconheciam como estando no caminho para a salvação. Achavam que o maçon estava perdido. Essa separação continua a existir, mas conheci o caso de um bispo de Macau que frequentava um núcleo de maçons ligado ao Grande Oriente Lusitano, e há fontes que dizem, embora isso não esteja provado, que ele terá sido iniciado na maçonaria.

Qual o panorama da maçonaria nos dias de hoje em Macau, tendo em conta as mudanças pelas quais atravessa a comunidade portuguesa?

Estive ligado à formação de duas Lojas em Macau, a Grande Loja Legal de Portugal e a Grande Loja Unida de Portugal. São as duas lojas que existem, bem como uma terceira ligado ao Grande Oriente Lusitano. Esta está mais ligada à comunidade macaense, ao Jorge Neto Valente, ao arquitecto Maneiras, a pessoas mais antigas da comunidade. A maçonaria é muito discreta, até devido à arquitectura jurídica em Macau e a premência que se coloca nos problemas da segurança nacional e da defesa da identidade da China, acho que há a possibilidade de os maçons não virem cá para fora com tomadas de posição. O facto de a comunidade portuguesa ser cada vez mais pequena reflecte-se nas Lojas, porque muitos regressaram a Portugal. Uma das lojas a que pertenci, com pessoas de diferentes nacionalidades, tinham um grande peso dos filipinos. Com a evolução e redução da actividade do jogo e desaceleração do crescimento dos casinos, eles foram sendo despedidos e regressaram às Filipinas. Percebo que é difícil as Lojas terem quórum para conseguirem funcionar. Este problema existe em Macau e talvez em Hong Kong. Quem não tem raízes familiares acabou por regressar aos seus países de origem.

Gradualmente as lojas maçónicas em Macau vão desaparecer?

Sim. Acho que com o tempo vão desaparecer à medida que vão tendo menos membros. Acho que nem é preciso qualquer iniciativa da China, depois de 2049, para as lojas maçónicas desaparecerem. Além disso, as Lojas não têm grande atracção pelos chineses, que têm uma mentalidade diferente. Eles participam em associações que têm alguma forma de retribuição, através de oportunidades e contactos. As lojas maçónicas não têm essa vocação de partilha de negócio, pelo que é inevitável que elas se mantenham como uma realidade puramente ocidental.

Como têm operado as lojas maçónicas em Macau? Onde se encontram os seus membros?

São diferentes mentalidades. Em Hong Kong existe uma estrutura maçónica, constituída no tempo dos ingleses, que é na Camden Road número 1, onde reúnem todas as lojas. Em Macau, isso nunca existiu, porque não era fácil, porque a maçonaria, na tradição portuguesa, é muito escondida, e não apenas discreta. O Grande Oriente Lusitano talvez tivesse umas instalações físicas, mas tenho ideia que depois de 1999 deixaram de o fazer e passaram a usar um hotel para fazer as reuniões. Nas minhas lojas aconteceu a mesma coisa, nós temos espaços onde acontecem as reuniões, improvisamos a decoração, mas no fim as coisas são arrumadas e nada identifica esses espaços como sendo da maçonaria.

Falou dos macaenses ligados à maçonaria. Têm um perfil de adesão diferente em relação aos portugueses?

São os mesmos princípios. Existem alguns macaenses que pertencem à loja do Grande Oriente Lusitano em Macau e tiveram essa ligação, porque também têm uma forte relação de amizade entre eles. Mas a comunidade macaense também é muito dividida. Existem essas pessoas que não têm uma vocação católica e que podem ser maçons, mas a predominância da comunidade macaense é praticamente do cristianismo, muito ligada ao bispado. Como existe esta questão de os católicos serem dissuadidos de pertencerem à maçonaria, nunca houve esse apelo para os macaenses participarem. É difícil uma adesão em massa porque têm medo de ser prejudicados. Diria ainda que em Macau não há maçonaria feminina, nem a maçonaria mista. Sempre achei estranho porque isso nunca foi possível em Macau, o que mostra o conservadorismo da sociedade.

28 Fev 2022

Álvaro Laborinho Lúcio, autor de “As sombras de uma azinheira”: “A vida é ainda um deslumbramento”

Álvaro Laborinho Lúcio, autor, jurista e ex-ministro da Justiça em Portugal, está de regresso à escrita com “As sombras de uma azinheira”. Um romance que conta as mudanças profundas que Portugal viveu com o 25 de Abril de 1974 a partir de duas personagens centrais – João Aurélio, o pai ausente, e Catarina, a filha cheia de dúvidas. Escrever é um acto de prazer para Laborinho Lúcio, que recorda a imensa alegria que sentiu com a Revolução de Abril

 

O seu novo romance parte de um acontecimento histórico em Portugal – o 25 de Abril – para uma história ficcionada. Como foi este processo?

Todos concordamos que esse foi um período de grande transição no país. O que me estimulou a escrever este livro foi a aproximação do aniversário dos primeiros 50 anos do 25 de Abril. A ideia era tentarmo-nos aproximar desta data e começarmos, como cidadãos, a ter algum contributo para essas celebrações, para que não sejam apenas uma festa mas também uma reflexão sobre o que aconteceu, o que está a acontecer e o que pode acontecer nos próximos anos.

Porquê o formato romance, e não outro?

Poderia ter escrito um ensaio. Mas entendi que a ficção era, talvez, a forma mais indicada de poder ter algum contributo para essa aproximação dos 50 anos. Este é um romance que não incorpora o debate político, e passa-se entre os 45 anos que antecederam o 25 Abril de 1974 e os 45 anos que lhe sucederam. [A história] acontece no seio de uma família cujo núcleo central era composto por um marido e mulher que há muito tempo ambicionavam uma mudança política em Portugal e que, ao mesmo tempo, desejavam ter um filho. Acontece que, por mero acaso, na noite de 24 para 25 de Abril, a mulher dá à luz o seu primeiro bebé, ao mesmo tempo que o país viu ser dada à luz a mudança que esse casal ambicionava.

Nasce então Catarina.

Sim. Com esse nascimento morre a sua mãe no parto. Temos então ao longo do romance um pai que renuncia a tudo, ao desígnio da mudança, à sua militância política ligada ao Partido Comunista Português e resolve abandonar tudo, inclusivamente a sua filha, e passar a vida na aldeia, que também vai definhando aos poucos. Ele fica virado para o passado e torna-se um desistente, porque, no fundo, naquele momento percebeu que não iria ver nada realizar-se na sua vida. Por sua vez, o bebé fica entregue aos cuidados dos tios, que vai fazer a sua vida nos 45 anos que sucedem ao 25 de Abril. Ao longo dessa vida Catarina vive sempre uma grande incerteza, que é saber se para ela é apenas a data de uma revolução, ou se tem direito a uma identidade. O 25 de Abril é a data da revolução ou é a data do seu nascimento? É esta a questão que ela interioriza ao longo da vida que nos dá um Portugal novo, também à procura da sua identidade.

Isso permite ao leitor uma espécie de exercício de reflexão.

Permite que o leitor olhe para as lutas de uma classe média comum envolvida numa luta contra a ditadura, que levou ao 25 de Abril. É como se essa luta se cruzasse com a redefinição da identidade de um país e com as pessoas que se tentam definir nesse Portugal novo. Espero, como escritor, que os leitores se encontrem nestas mudanças radicais e, ao mesmo tempo, nas várias contradições que essas mudanças foram propondo a cada um de nós, como desafios para a nossa própria identidade.

O livro apresenta então duas personagens centrais, Catarina e o pai, que possuem um forte simbolismo.

Sim. Estas personagens diferem um pouco das outras porque o autor não se preocupou com a sua consistência. Estas duas personagens são os olhos que o autor coloca no rosto dos leitores para que eles vejam, através delas, a proposta que ele lhes faz de avaliação do que foi o país antes do 25 de Abril e do que é o país depois. Daí que haja nelas uma personagem muito construída, fechada sobre si própria, que é o João Aurélio, e a parte relativa à Catarina, que é uma personagem em construção, feita por ela e pelo autor. Ao longo da narrativa há como que um diálogo entre os dois.

Este romance, não incorporando o debate político puro e duro, tem sempre esta perspectiva política.

Este é um livro em que somos chamados pelo exterior e olhamos para as coisas com uma perspectiva política de aproximação ou distanciamento consoante o ponto de vista. Os três primeiros livros que escrevi são romances mais intimistas. Este é uma leitura crítica face ao exterior e ao posicionamento que esse exterior deve ter e que nos desafia.

Quando nos aproximamos dos 50 anos do 25 de Abril é premente pensar a sociedade, o sistema político e a democracia que existe hoje em Portugal? Este livro é um exercício de reflexão sobre tudo isso, ainda que de forma metaforizada?

Sim, é sempre dessa forma. Estamos a falar de um romance, uma obra de ficção. Há um momento em que João Aurélio, no fim da vida, e passeando no cemitério, falando com os mortos, acaba por falar com um velho padre da região onde vivia, que lhe vem dizer para ter cuidado com a história da revolução, pois todas as revoluções acabam por caminhar para sentidos que não lhe estavam destinados no início, e que haveria o risco de acabar numa nova ditadura. Mas há questões relacionadas com a profissão da personagem Catarina e os lamentos que ela tem por não conseguir, na sua actividade, colocar a Academia a discutir a essência da política. A ideia é que no quotidiano das nossas famílias é que devemos ser celebrantes do 25 de Abril, temos de estar vivos, activos e responsáveis pelo que for o destino do nosso dia-a-dia e a definição do nosso futuro.

Espera que o livro lance este debate? Que espera dos leitores com esta obra?

Agora estou na fase da angústia, porque acabei o que tinha para fazer, o livro já está nas livrarias e deixou de ser meu, passou a ser dos leitores. Agora é a minha vez de esperar o que os leitores me dizem do livro que eles entendem que é. Ficaria muito feliz se me dissessem que se identificam com ele, sendo um livro que coloca os leitores perante as suas escolhas, que é identificar-se com as várias personagens e as questões que estas colocam. Neste ponto há uma aproximação deste livro com os anteriores, porque nenhum dos livros que publiquei até agora são romances fechados. Diria que são romances que terminam com a parte da própria escrita do leitor, que acaba por escrever um novo romance a partir daquele que eu lhes forneço. Ficarei agora expectante.

Escrever romances é um exercício de liberdade nesta fase da sua vida?

Em parte é. Tenho sempre muita dificuldade em responder porque razão eu escrevo romances. Eu próprio também não sei muito bem.

Simplesmente escreve.

Tenho imenso prazer em fazê-lo e em construir uma relação com a escrita. Não venho do mundo literário e tenho uma escrita conservadora ou tradicional. Mas depois na construção do romance diria que é uma escrita com muita influência da modernidade. Dá-me um gosto imenso de poder participar na vida pública através da escrita, criar, e para mim a vida é ainda um deslumbramento e está carregada de futuro, e é nesse futuro que gosto de intervir. Guardo do passado boas memórias mas não cultivo a ideia de saudade. Esta [a escrita de romances] é uma boa forma de intervir no futuro.

Como viveu o 25 de Abril? Achou que era um Portugal novo que se iniciava?

Senti uma grande alegria, mas foi difundida no tempo porque aconteceu uma circunstância curiosa. Eu era juiz na comarca de Oliveira do Hospital, tinha sabido da decisão de me colocarem em Coimbra e fisicamente eu mudar-me-ia para a cidade no dia 25 de Abril de 1974. De 24 para 25 comecei a arrumar caixotes e tinha marcado a transferência de mobiliário para a tarde do dia 25, e quando acordei e todos me falavam de uma revolução. Não sabia onde era, precisava era de ir para Coimbra. Mas depois percebi que havia uma revolução em Portugal, mas não se sabia muito bem qual era o seu sinal. Havia o risco de se fazer uma viragem ainda mais à direita e fiquei um pouco sem saber o que fazer. Entretanto o senhor que ia fazer o transporte das minhas coisas não aparecia, e ele disse-me que havia uma revolução e não podíamos ir para Coimbra. Depois, já em casa, vi televisão e percebi que a revolução era aquela que eu sempre tinha querido. Foi uma emoção muito grande.

Com o 25 de Abril as mudanças na sua profissão foram muito acentuadas?

O livro que escrevi em 2012 é exactamente sobre isso, é uma narrativa crítica da justiça. É um livro quase auto-biográfico, sobre um magistrado que começou a trabalhar em 1968, e que sou eu. Nunca senti, mesmo antes do 25 de Abril, que não tivesse independência para o exercício da função. Algumas vezes houve uma maneira mais insidiosa de procurar condicionar uma tomada de decisão, mas eu não me deixei influenciar por isso. Mas não era fácil, não nos sentíamos libertos como nos sentimos a seguir ao 25 de Abril. Antes do 25 de Abril havia uma grande dependência face ao Executivo para nomeações. Poderia haver quem se deixasse influenciar mais, mas eu nunca senti que fosse influenciado por isso. Depois do 25 de Abril as mudanças foram tantas que acabámos, nós magistrados, por incluir questões novas que a realidade nos colocava.

23 Fev 2022

Francisco José Leandro, académico: “O Irão é muito importante para a China”

“A Geopolítica do Irão” é o mais recente livro do académico Francisco José Leandro, da Universidade Cidade de Macau, editado em parceria com Carlos Branco e Flavius Caba-Maria. A obra aborda as diferenças na sociedade iraniana antes e depois da queda do Xá, Mohammad Rezā Shāh Pahlavi, sem esquecer o actual posicionamento do país no mundo

 

A que questões este livro pretende responder sobre o papel geopolítico do Irão?

Uma delas passa por contribuir para a mudança da narrativa da discussão sobre os assuntos do Irão, que infelizmente são dominados pela retórica política e não pelo estudo académico. Queremos também demonstrar que o Irão é um actor racional e contribuir para desvendar as razões que estão por detrás dessa racionalidade, bem como abrir uma oportunidade para uma escrita inclusiva e plural sobre o Irão como um actor geopoliticamente incontornável naquela zona do globo. Pretendemos também explorar o contexto geopolítico do Irão nas perspectivas da sua vizinhança, do vis-à-vis nas relações regionais e inter-religiosas e na relação com as designadas grandes potências, como a Rússia e a China.

O capítulo da sua autoria é dedicado à história do sistema político iraniano e ao seu modelo híbrido, fortemente marcado pelo Islamismo. Acredita que, à luz deste sistema, poderá algum dia haver uma abertura do país ao Ocidente?

Um dos aspectos que procurei demonstrar no meu capítulo foi precisamente o facto de o Irão ser politicamente diferente, por razões históricas, sociais e pelo seu contexto geopolítico. O sistema político do Irão resulta de um número dificilmente quantificável de factos, mas certamente directamente associado ao regime dos Pahlavi e da relação que este estabeleceu com a administração americana. Para além deste facto, tal como todos os regimes teocráticos, fundamenta-se numa verdade absoluta, a de que é possível uma interpretação humana do conceito divino de bem-comum, facto que, do ponto de vista do ocidente, se revela muito difícil de aceitar. Temos, todavia, o dever de entender a realidade, de que o Irão é uma potência regional decisiva para a estabilidade da região. Os sistemas políticos nascem por razões bem determinadas, desenvolvem-se no contexto das suas idiossincrasias domésticas e nos seus contextos regionais e, naturalmente transformam-se. Não conhecemos, no momento presente, sociedades capazes de implementar sistemas políticos absolutos e perpétuos… este ou qualquer outro. Todavia, não antevejo uma substancial transformação política do Irão, no curto prazo, no que respeita ao Ocidente.

O livro traça uma diferença na evolução do sistema geopolítico do país a partir dos acontecimentos da Primavera Árabe. Muitas destas revoluções foram fracassando nos seus pressupostos iniciais. Dez anos depois, de que forma o país foi mudando com estes acontecimentos?

O livro não pretendia fazer o estudo das questões internas do regime iraquiano. O que posso observar é a existência de uma certa estabilidade interna, cujo sistema político foi concebido para a proporcionar. O Irão debate-se com problemas estruturais de desenvolvimento e uma diversidade étnico-cultural complexa, bem como um conjunto de fronteiras com vizinhos em situação complicada – factos que dominam a agenda política interna, sempre no respaldo da procura de autonomia e livre de interferências externas. Esta narrativa continua muito presente na sociedade Iraniana, no sentido em que um dos autores usa a expressão “antifragility” [anti-fragilidade]. Bem sabemos que não há revoluções imaculadas. Mas o peso do passado anterior a 1979, e o legado do conflito armado com o Iraque (2003) em que o Irão apoiou os EUA, estão ainda na memória colectiva dos iranianos, ou pelo menos tem vindo a ser um argumento de peso na preservação do sistema político-social em vigor. Os recentes protestos políticos no Irão, têm em regra um contorno socioeconómico e/ou de natureza social-cultural, frequentemente com demonstrações de ambos os lados na abordagem aos problemas.

Recentemente Joe Biden lamentou os poucos progressos feitos com o país ao nível do Acordo Nuclear assinado em 2015. Acredita na evolução diplomática a curto prazo com Washington?

O Acordo nuclear sobre o Irão é um dos exemplos da irresponsabilidade dos EUA, no contexto de potência global. A retirada dos EUA dos acordos estabelecidos em 2015 não só colocou a comunidade internacional, designadamente a União Europeia (UE) e a Rússia, numa posição muito difícil, como as perspectivas da reeleição de Trump em 2024, fazem com que o regime Iraniano exija novas garantias de que as sanções não se vão repetir, pelas razões já observadas. Neste contexto, devo lembrar que o programa nuclear iraniano foi lançado na década de 1950, com a ajuda dos EUA, como parte do programa Átomos para a Paz e que o Irão é signatário do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), que proíbe o desenvolvimento dessas armas, garantindo, porém, o direito de dominar a tecnologia nuclear para fins pacíficos. Em 2022, iniciaram-se negociações entre o Irão e a Rússia no sentido de aumentar a capacidade nuclear iraniana. Como um dos autores [deste livro] refere, o acordo nuclear de 2015 foi uma vitória do multilateralismo, que a administração Trump usou para objectivos domésticos, com manifesto desprezo pelos seus aliados internacionais. Relembro que não existiam motivos objectivos que indicassem o incumprimento irreconciliável da parte do Irão. A questão nuclear funciona também como um factor que complica outras áreas de cooperação, designadamente das questões associadas ao desenvolvimento e aos direitos humanos. Os EUA colocaram o Irão numa posição com alternativas escassas, perante a comunidade internacional ainda dominada, pelos menos em parte, pelos próprios EUA. A evolução deste acordo depende da capacidade normativa de UE (dissociada dos EUA, actor que, para o Irão, não é confiável) e do papel construtivo da Rússia e da China.

Um dos países envolvidos nestas negociações é a China. Quais os interesses mais prementes que Pequim procura ao negociar com o Irão, sobretudo tendo em conta o projecto “Uma Faixa, Uma Rota”?

Geopoliticamente o Irão é muito importante para a China e para a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”, e também como parceiro na região do Médio Oriente. Um dos elementos demonstrativos desta importância foi precisamente o facto de que, muito recentemente, a Organização de Cooperação de Xangai (SCO) ter iniciado um processo formal para conceder a adesão plena ao Irão. Esta vai ser a segunda vez que a organização se expande depois de incluir a Índia e o Paquistão (2017), estendendo seu alcance da Ásia Central-Sul e ao Médio Oriente. Desde 2016 que o Irão tem uma parceria especial abrangente com a China e faz parte da lista de Estados que assinaram o memorando de cooperação para a implementação da iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”. O desapontamento com comportamento dos EUA e indirectamente com a UE, associado ao pragmatismo chinês, às suas (da China) necessidades de energia, ao seu projecto de transformação do sistema financeiro internacional e, finalmente, considerando as necessidades de defesa do Irão, creio que a cooperação China-Irão se vai intensificar nos anos mais próximos. Um dos autores do livro acrescenta ainda uma razão ideológica que une a China e o Irão é a aversão partilhada a todas as formas de colonialismo, designadamente o neocolonialismo americano.

22 Fev 2022

Carmen Amado Mendes, presidente do CCCM: “Queremos congregar a comunidade científica” 

Tomou posse há dois anos e desde então que tem procurado re-organizar as instalações do Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM) e reunir académicos, empresários, diplomatas e o público em geral. Com um novo plano estratégico em vigor para um período de dez anos, Carmen Amado Mendes fala de falta de recursos humanos e das dificuldades financeiras colmatadas com o apoio de instituições

 

Que balanço faz destes dois anos à frente do CCCM?

Penso que a análise que fiz no plano estratégico foi muito realista e não tive surpresas face aos problemas que identifiquei e aos desafios que me esperavam. Estes dois anos têm sido uma tentativa de dar resposta a isso e desenvolver projectos que posicionem o CCCM no lugar de promoção do conhecimento na área dos estudos asiáticos, e não apenas junto de um público especializado, como os académicos, mas do público em geral. Queremos também abranger essa função de think-thank, incluindo os diplomatas e os empresários. Mas as dificuldades que identifiquei no início mantiveram-se ao longo destes dois anos.

E quais foram, concretamente?

A maioria delas esteve ligada com a falta de recursos humanos e financeiros. Sem o apoio da Fundação Jorge Álvares teria sido impossível concretizar muitas das obras de transformação do Centro, ou coisas básicas como a instalação do sistema Zoom no auditório. E o apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) também facilitou, pois ao atribuirmos bolsas de doutoramento FCT a estudantes que ficam envolvidos na nossa actividade científica, ganhámos muito em recursos humanos qualificados. Temos dificuldades financeiras, acentuadas pelo atraso na aprovação do Orçamento de Estado. Temos ainda a questão das instalações provisórias, pois durante todos estes anos de vida do CCCM temos pago renda pelo espaço onde tínhamos a biblioteca e o arquivo, e isso não fazia qualquer sentido. Finalmente conseguimos concluir as obras no nosso edifício onde fica o museu, o que nos permitiu mudar a biblioteca, e deixar de pagar renda. Com isso promovemos o uso de salas de aula para as formações que disponibilizamos e gabinetes para investigadores. Estou contente por estarmos já numa fase final.

O CCCM estava subaproveitado nas suas funções?

Não faço essa afirmação. Acho que é difícil alguém estar na presidência do Centro, e tendo em conta a limitação dos recursos humanos e financeiros, concentrar-se em muitas coisas ao mesmo tempo. A presidência anterior teve a grande visão de apostar em projectos científicos que posicionaram o CCCM no mapa numa área de investigação específica, inclusivamente de muitas instituições europeias, que eu tenho vindo a aprofundar e a tornar mais abrangente. No entanto, tenho dado prioridade à requalificação das instalações, e também à resolução de uma série de problemas burocráticos, como a legalização de espaços. Foi opção minha apostar em juntar os académicos e criar condições para que as pessoas viessem ao Centro, criar bolsas de doutoramento para trazer jovens investigadores e publicar dissertações de mestrado e teses de doutoramento de valor. Temos como áreas privilegiados de investigação as relações internacionais, a História, filosofia, línguas e tradução chinês-português, incluindo línguas minoritárias, como é o caso do crioulo macaense. Mas isso não significa que não nos possamos abrir a outros campos de investigação, como o científico e, por exemplo, promover o diálogo entre a medicinal ocidental e a chinesa, bem como outro tipo de ciências.

Relativamente ao projecto do think-thank. Quais as grandes questões às quais o CCCM pretende dar resposta?

Ainda não podemos falar em órgão, nem em grupo de pessoas, é apenas uma ideia que sempre me acompanhou ao longo da minha vida académica. Sempre mantive esta preocupação com a aplicabilidade prática da investigação, numa ligação com diplomatas e com empresários interessados nas áreas desenvolvidas no Centro. À medida que vamos juntando académicos de várias áreas de trabalho, empresários e diplomatas, conseguimos organizar eventos dos quais estes grupos profissionais retirem alguma vantagem e utilidade para a tomada de decisões. Quis dar a conhecer o Centro aos diplomatas da Ásia que estão em Lisboa, porque muitos deles achavam que o facto de o Centro ter Macau no nome que a sua missão se restringia ao território, e tenho dito que a sua missão é a promoção das relações Europa-Ásia. Os diplomatas têm mostrado interesse e temos desenvolvido acções de cooperação concretas.

Pretendem reforçar as parcerias com Macau, por exemplo?

Temos com a Universidade de Macau (UM) um protocolo com resultados concretos e evidentes de colaboração profícua. Um desses resultados é o envolvimento da UM na criação de publicações conjuntas do CCCM, bem como a criação de uma rede de arquivos digitais de todas as bibliotecas e arquivos que, em Lisboa, têm documentação sobre a Ásia [Portuguese Asian Digital Archives Network]. A UM tem sido o nosso parceiro privilegiado entre as instituições de ensino superior em Macau, disso não há dúvidas. Estabelecemos também protocolos com a Universidade de São José e com a Universidade Cidade de Macau, que tem tido um envolvimento muito activo nestas conferências que estamos a organizar. O CCCM manteve o acordo com o Instituto Politécnico de Macau. Estamos a negociar um protocolo com a Universidade de Ciências e Tecnologia, e com o Instituto de Estudos Europeus assinámos um acordo em Junho do ano passado. Fora do meio académico, gostaria de destacar a cooperação com o IPOR, que contamos que tenha resultados concretos a curto prazo.

Que outros projectos relevantes vão desenvolver nos próximos tempos?

Vamos aumentar a oferta formativa, por exemplo na área da história da arte e da caligrafia chinesa, em cooperação com o Center for Language Education and Cooperation (CLEC). Em breve vamos fazer uma Oficina de Patuá e manter a colaboração com a Universidade Alcântara Sénior no ensino da disciplina de cultura chinesa e História de Macau. Estamos em conversações com uma rádio local para a criação de visitas de estudo online ao nosso museu, bem como de um programa do ensino da cultura chinesa em mandarim, patuá e cantonense. A nível dos museus estamos a criar o circuito asiático, que será um roteiro para quem tem interesse em ver arte relacionada com a Ásia em Lisboa. Contactámos todos os museus que têm colecções ou peças relevantes sobre este continente. Estamos também a concluir a edição de um Catálogo do Museu, que conta com o apoio de instituições de Macau. Mas os projectos mais próximos são mesmo as três conferências da Primavera, dedicadas a Macau, China e restante Ásia. Tive a preocupação, quando cheguei, de considerar o Centro como uma plataforma de ligação dos académicos e estrangeiros, com ligação a Portugal, que trabalham sobre a Ásia. Não temos recursos fixos, com um grande número de investigadores, mas temos uma grande capacidade para atracção e junção desses académicos. Em Portugal não somos tão poucos a trabalhar sobre a Ásia, mas somos poucos por instituição. Se não trabalharmos em conjunto, dificilmente teremos visibilidade internacional. A prioridade é congregar a comunidade científica; quero que estas conferências sejam de toda a comunidade.

18 Fev 2022

Helena Cabeçadas, autora: “Macau é uma cidade sedutora”

Sobrinha neta do Almirante Mendes Cabeçadas, Helena Cabeçadas, autora de “Macau – Uma Cidade Improvável”, viveu em Macau na década de 80, onde trabalhou nas áreas da toxicodependência e da saúde mental. Foi amiga do arquitecto Manuel Vicente e recorda um território onde a beleza e a repulsa andavam lado a lado. As memórias e as experiências são agora contadas no livro “Macau – Uma Cidade Improvável”, lançado em finais de Dezembro do ano passado

 

Diz que este livro faz parte da sua geografia afectiva. Como surgiu este projecto?

Este livro nasceu a partir de um conjunto de três livros que eu tinha escrito, e que considero como a minha biografia afectiva. Foram as cidades onde vivi, que me marcaram profundamente e alteraram a minha visão do mundo. O primeiro livro que escrevi foi sobre Bruxelas, onde vivi no final da minha adolescência. Estive exilada lá dos meus 17 aos 27 anos. Depois escrevi o livro sobre a minha infância em Moçambique, onde vivi dos oito aos dez anos, numa sociedade colonial. O terceiro livro foi sobre Filadélfia, onde trabalhei na área da droga e da toxicodependência, e em que me confrontei com uma cidade em decomposição, onde o racismo era muito forte. Foi também um choque cultural muito forte, que me marcou bastante. E depois Macau, onde vivi uns cinco anos e onde me confrontei com uma cultura completamente diferente que me marcou. Macau e a China foram um desafio para mim.

Porque foi para Macau?

Sempre me seduziu muito o Extremo Oriente. Em Bruxelas tinha procurado estudar o chinês e as religiões, e a hipótese de ir para Macau dava-me a possibilidade de desbravar esse mundo. Em 1983 fui requisitada pelo Governo de Macau e o meu marido foi trabalhar para a TDM. Não foi sempre fácil do ponto de vista profissional, o mundo da toxicodependência era muito fechado e muito masculino. Era pesado e dificilmente penetrável para um olhar ocidental e feminino.

Quais eram os principais perfis de consumidores à época?

Eram sobretudo consumidores de heroína, que era barata e de boa qualidade. O acesso era fácil. Por outro lado, havia uma tradição das casas de ópio, que só se tornaram ilegais em 1946. Ainda era uma tradição relativamente recente. Os mais velhos ainda estavam ligados ao ópio. Muitas vezes a iniciação dos mais novos ainda se fazia pelo ópio e depois partia para a heroína. Foi uma época em que a heroína se propagou muito na Ásia.

As mulheres eram pouco consumidoras, e havia poucas mulheres terapeutas?

Era um mundo muito masculino, e havia um registo mais prisional do que terapêutico, o que contrastava com aquilo que eu conhecia em Portugal e nos EUA. Éramos poucos terapeutas e funcionava como um grupo de guardas prisionais. Incomodava-me esse registo porque não estava de acordo com a minha visão [de abordar o problema], pois defendia a reabilitação. Em Hong Kong, em contrapartida, tinha contactos muito interessantes do ponto de vista profissional, porque fazia-se ali um trabalho que tinha mais a ver com a minha maneira de encarar esses problemas. A barreira da língua e da cultura também era muito grande, e o facto de ser mulher tornava as coisas mais difíceis.

De todos os sítios onde esteve, Macau marcou-a mais, ou menos, e porquê?

É uma pergunta difícil porque são idades diferentes. Em Moçambique era uma criança e em Bruxelas estava a descobrir o mundo, a Europa. Portugal era um mundo muito fechado, era o mundo do Estado Novo.

Fugiu do regime quando foi para Bruxelas.

Sim. Fui expulsa de todas as escolas do país. Fui presa com 16 anos e tive depois um processo disciplinar. Fazer o curso em Bruxelas permitiu-me contactar com outro mundo, tive colegas de todo o mundo. A Universidade Livre de Bruxelas era muito aberta e tolerante. Foi um desvendar de mundos. Quando fui para Macau, ou mesmo para Filadélfia, já era adulta. Em Macau foi-me lançado o desafio da cultura chinesa, de tentar decifrar aquele mundo.

O que é muito difícil.

A própria China estava a abrir-se ao mundo. Fui à China, onde as pessoas ainda se vestiam à Mao [tse-tung], não havia carros nem publicidade, só bicicletas, aos milhões. Era engraçado porque era um mundo muito diferente daquele que conhecíamos na Europa e até em Macau e Hong Kong. As raparigas tinham as fardas à Mao, mas já usavam saltos altos e batom, era o início de uma sociedade de consumo. Não senti miséria, mas havia pobreza. Essas viagens na China eram sempre mal vistas pelo poder, o país não gostava que os estrangeiros estivessem soltos, fora de uma excursão, sem guias. Macau era uma espécie de bolha, tínhamos a comunidade portuguesa, mas era uma sociedade cosmopolita. Muitas vezes tinha um pesadelo, o de estar fechada rodeada de guardas vermelhos que não me deixavam sair. Naquela altura ainda estávamos muito perto da Revolução Cultural, e a memória das pessoas ainda era muito forte em relação a esse período, que foi vivido de uma forma dramática em Macau, com o 1,2,3.

Como era trabalhar na Administração portuguesa à época?

Também dei aulas na Escola Superior de Enfermagem, foi engraçado porque tive contacto com jovens. Dava aulas de sociologia e antropologia, tive a oportunidade de organizar o curso, também na área da saúde mental. Tinha liberdade para organizar essa formação no Centro Hospitalar Conde de São Januário. Se no centro de recuperação de toxicodependentes tinha dificuldades e pouca liberdade para fazer o que queria, no hospital tive essa liberdade. Fiz um estudo preliminar sobre a criação de um centro de saúde no Fai Chi Kei e isso fez-me contactar com os Kaifong, os Operários. Isso ajudou-me a mergulhar no pensamento chinês e nas questões de saúde mental.

Como era o panorama nessa altura em matéria de saúde mental? Ainda hoje é um assunto tabu no seio da comunidade chinesa.

Na altura era mais difícil. Era complicado de abordar o problema, era como se não existisse. Mas nessa altura alguns psiquiatras portugueses procuraram também alterar a maneira de encarar essa questão e tentámos discuti-la com as pessoas. Contribuiu para abrir aquele mundo.

De todos os elementos de Macau que estão no livro, qual foi o que mais a fascinou? Que experiência foi mais marcante?

Acho que a própria existência da cidade é fascinante. É uma cidade improvável. Como é que no sul da China surgiu aquela cidade, longe de tudo? Como é que conseguiu afirmar-se, começar a existir e aguentar-se ao longo dos séculos? Houve um lado que também achei interessante, que é o facto de, no meio de tantas situações dramáticas que a cidade atravessou, Macau ter sido um importante centro de apoio a refugiados. Teve essa generosidade e gentileza, e isso torna-a numa cidade sedutora. Penso que é exemplar para os tempos que vivemos hoje em dia na Europa, com essa capacidade de absorver e receber apesar de estar fechada de tudo. Mas Macau oscilava entre o fascínio e a repulsa, havia uma grande beleza, como na Baía da Praia Grande, cheia de juncos, com uma vida intensíssima, e depois os cheiros nauseabundos, os ratos, as baratas. Depois havia o mundo macaense, mais próximo de nós, mas também complexo, um pouco impenetrável.

Foi amiga do arquitecto Manuel Vicente, uma figura muito importante para Macau.

Sim, foi padrinho da minha filha. Tenho muitas saudades dele, uma das pessoas mais fascinantes que conheci em Macau. Conhecia a região muito bem, tinha um humor extraordinário, contava histórias delirantes, inclusivamente sobre os diferentes governadores e as gafes que eles cometiam. A casa dele era um espaço de liberdade.

Encerra-se, com Macau, os capítulos da sua geografia afectiva.

Lisboa também faz parte disso, mas é uma cidade demasiado próxima e faz demasiado parte de mim. Não tenho um olhar distanciado que tinha em relação a Macau, Bruxelas ou Filadélfia. Tenho mais dificuldade em escrever sobre Lisboa.

27 Jan 2022

Milena Pires, a diplomata que quer ser a “voz jovem” na presidência de Timor-leste

Por António Sampaio, da agência Lusa

A diplomata timorense Milena Pires disse à Lusa que se vai candidatar à Presidência da República em resposta aos muitos apelos a que haja “um rosto jovem” na política do país, e que o faz com sentido de “responsabilidade e dever cívico”.

“Precisamos de caras novas, ideias novas e soluções também diferentes para as dificuldades e desafios que o nosso país enfrenta e vem enfrentando. É tempo de Timor-Leste ter uma mulher experiente e competente no mais alto cargo da magistratura da nação”, afirma, em entrevista à Lusa.

“Com toda a humildade, penso que tenho esse perfil e poderei responder a esse anseio da nova geração e de todos aqueles que reclamam mudança e transformação”, diz.

Milena Pires anunciou formalmente a intenção de candidatura ao cargo que tem sido sempre ocupado por homens, mesmo antes de o chefe de Estado Francisco Guterres Lú-Olo anunciar a data das eleições, previstas para março.

A pré-candidata considera que apesar das mudanças que o país já viveu nos últimos anos, Timor-Leste continua a ser “fortemente patriarcal, com muita influência e predominância dos homens na vida política e social”.

Motivo pelo qual, sublinha, “é importante haver uma face feminina e feminista nos mais altos cargos da nação para haver igualdade, justiça e verdadeira democracia”.

“Quando se testemunha a onda de violência e discriminação contra as mulheres e crianças, os LGBTI, os portadores de deficiência e os mais marginalizados e vulneráveis da nossa sociedade, a minha candidatura é importante para a mudança e transformação necessária a uma sociedade mais justa, inclusiva, solidária e equitativa”, enfatiza.

Milena Pires considera que “quando se trata de reconhecer a competência e a experiência nessa área, o fato de ser mulher, mãe e ativista pela igualdade e contra a discriminação, ajudará certamente, pois seria a primeira Presidente nesta condição”.

“Precisamos de exigir e incutir os mais altos standards e responsabilização nas figuras publicas do nosso país, para que sejam verdadeiros defensores dos direitos humanos de todos, em particular os mais vulneráveis da nossa sociedade”, refere.

A diplomata diz-se motivada por “grande sentido de responsabilidade e dever cívico” e vontade de dar o seu contributo a Timor-Leste e que a sua decisão surge em resposta a um “forte e constante apelo de muitos grupos de jovens e estudantes, em Timor-Leste e em várias partes do mundo que se juntaram” e a desafiaram a candidatar-se.

Apelos, nota, que enfatizaram a necessidade “de um rosto jovem na política timorense que possa dar corpo aos ideais de transformação e mudança há muito ansiadas pelos jovens e, de uma forma geral também pela sociedade timorense”.

A ex-embaixadora timorense junto das Nações Unidas, respondeu por escrito – a seu pedido -, a várias perguntas colocadas pela Lusa sobre a sua candidatura presidencial.

Sobre divisões que ainda permanecem entre timorenses do interior e da diáspora, Milena Pires diz que sempre contribuiu para a luta do país, dentro e fora, com funções de relevo e de representação nacional.

“O importante é dar o meu total contributo para esse povo e país que precisa urgentemente de avançar, de consolidar as suas instituições e de mostrar ao mundo que também podemos ser um exemplo de sucesso, de prosperidade e desenvolvimento. Todos os timorenses, independentemente da sua cor, religião ou passado podem contribuir para esse objetivo e ideal”, afirma.

“Vivi muitos anos fora de Timor, tantos quantos já vivi dentro do meu país. E considero isso positivo porque vi e aprendi com o mundo e com a necessidade de levar o meu país e o meu povo a uma situação diferente e para melhor, porque todos merecemos isso”, refere.

Mais jovem e com um percurso diferente dos chefes de Estado anteriores, Pires considera que apesar do reconhecimento quanto ao papel dos líderes mais velhos, fundadores da nação, se nota “algum cansaço na forma como a geração anterior conduziu e conduz a política”.

E 20 anos depois da restauração da independência – o próximo Presidente tomará posse nesse aniversário, em 20 de maio de 2022 -, “subsistem os grandes problemas de base e estruturais, quer económicos, quer sociais e políticos”, agravados pela pandemia da covid-19.

Questionada sobre quem apoiaria se não vencer e não passar à segunda volta, Pires insiste na sua “plataforma concreta e um conjunto de ideias, princípios e objetivos que irão mudar o rumo da política em Timor-Leste, mas diz que apoiará “o candidato que melhor garanta os objetivos e ideias e respeite os princípios” que defende.

O Presidente, considera, deve não só garantir o normal funcionamento das instituições e assegurar o respeito pela constituição, mas também “deve estar à altura dos desafios que o país enfrenta”, como fator de “unidade e coesão nacional”.

Prioritário será igualmente “a necessidade e a urgência de uma mudança política, de novas ideias e soluções para os problemas que o país enfrenta”, um trabalho de constante sincronização com o Governo.

E, finalmente, pretende contribuir para criar “uma imagem diferente de Timor-Leste no mundo” face à atual “imagem bastante fragilizada e desacreditada”.

“Precisamos, de alguma forma, renascer das cinzas que a enorme crise política, económica e social, e sobretudo e pandemia do covid-19 fez mergulhar o nosso país”, diz.

Milena Pires considera que o povo timorense deve escolher alguém “que possa representar a mudança e a transformação pela qual todos anseiam no país”, “competente e com provas dadas” e que “seja verdadeiramente o símbolo e o garante da unidade de todos os timorenses”.

A aposta na experiência internacional para chegar a PR

Embaixadora de Timor-Leste junto das Nações Unidas, entre 2016 e 2021, Milena Pires aposta na experiência internacional para chegar a Presidente do país.

Um dos membros da comunidade timorense na diáspora durante a ocupação indonésia, Milena Pires, 55 anos, considera que o seu passado político e profissional são “o suporte e a confiança que dão esse sentido e a razão de ser” à candidatura, como explica à Lusa.

Trata-se de um percurso que lhe permitiu criar uma “base bastante rica de experiência e competência” que, defende, ajudarão no exercício do cargo de chefe de Estado.

Durante a ocupação indonésia atuou sempre na frente externa e diplomática e depois do referendo de 1999, já em Timor-Leste, foi membro e vice-presidente do Conselho Consultivo Nacional da Administração Transitória das Nações Unidas (UNTAET), o órgão embrionário da futura Assembleia Constituinte e de que também fez parte, eleita pelas listas do Partido Social Democrata (PSD).

Milena Pires integrou o primeiro grupo de deputados do primeiro parlamento depois da restauração da independência, em 2002, mantendo o cargo de vice-presidente do PSD durante vários anos.

Soma-se a isso uma experiência larga em cargos de liderança em agências das Nações Unidas, como representante da UNIFEM em Timor-Leste e como membro eleito do Comité das Nações Unidas para a Eliminação de Todas Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW).

A diplomata esteve na fundação de várias organizações não-governamentais, foi assessora técnica e política em várias instituições não governamentais e ministeriais, incluindo o gabinete do vice-primeiro-ministro do IV Governo Constitucional e no Ministério do Comércio, Indústria e Ambiente.

O seu último cargo de relevo foi de embaixadora nas Nações Unidas em Nova Iorque, que ocupou entre 2016 e o ano passado.

Antes da sua nomeação para Nova Iorque, exerceu as funções de assessora para a Coordenação das Políticas de Indústria e Ambiente, junto do Ministério do Comércio, Indústria e Ambiente do Governo de Timor-Leste.

Entre 2011 e 2014 fez parte do Grupo de Peritas no Comité das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), em Nova Iorque e Genebra, e antes disso foi assessora do vice-primeiro-ministro, coordenador da Gestão da Administração do Estado, durante o Quarto Governo Constitucional de Timor-Leste.

Com ampla experiência na gestão de políticas e programas de desenvolvimento, trabalhou em instituições governamentais e nāo-governamentais timorenses, bem como em organizações multilaterais, onde exerceu diferentes cargos.

Entre eles destaca-se o cargo de especialista para o Reforço da Sociedade Civil, no Programa “Justice Facility”, coordenadora do Setor da Justiça no Relatório do Estado da Nação e especialista para a Comunicação Social, no Ministério da Educaçāo de Timor-Leste.

Mulher do atual secretário-exexutivo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), Zacarias da Costa, foi ainda conselheira no Serviço para o Tratamento e Reabilitação dos Sobreviventes de Tortura e Trauma, em Sydney, Austrália, onde também exerceu funções, ainda em início de carreira, no Conselho Timorense da Austrália.

Durante a sua carreira, também exerceu funções em Inglaterra como “Asia Policy Officer” no Instituto Católico para as Relações Internacionais (CIIR), sediada em Londres, e depois, já em Timor-Leste, como Coordenadora de Programa e Chefe do Escritório do Programa das Nações Unidas para as Mulheres (UNIFEM).

Considera-se uma “ativista empenhada dos direitos humanos e, em particular, dos direitos das mulheres e da igualdade do género, bem como do direito a participação política”.

Milena Pires é autora de vários artigos sobre estes temas em livros e revistas da especialidade e participou em inúmeros seminários e conferências a nível nacional, regional e internacional, sobre temas que vão desde a participação das mulheres na tomada de decisões, a violência contra as mulheres, e o tráfico de mulheres e exploração sexual.

Membro do Corpo Diretivo de várias organizações da sociedade civil, e membro fundadora da REDE FETO – a Rede das Mulheres Timorenses, é formada em Sociologia e Literatura Inglesa, e tem um filho.

As eleições estão previstas para março e qualquer candidato tem que formalizar a candidatura no Tribunal de Recurso com pelo menos 5.000 assinaturas. A data das eleições será anunciada este mês pelo chefe de Estado, Francisco Guterres Lú-Olo.

13 Jan 2022

Comandante das Forças Armadas timorenses será candidato nas eleições presidenciais

O comandante das Forças Armadas timorenses anunciou hoje que vai ser candidato às eleições presidenciais previstas para março, mas referiu que, para isso, precisa da boa vontade do atual chefe de Estado para poder passar à reforma.

“Vou avançar. O senhor Presidente da República ainda não anunciou a data das eleições. Mas quando decretar, sem dúvida que me vou pronunciar”, afirmou Lere Anan Timur, em entrevista à agência Lusa.

“Já tenho 70 anos e este é o último passo na carreira. Vou tentar chegar até lá”, disse.

Para que isso ocorra, depois de o chefe de Estado marcar as eleições, é necessário concluir a sucessão na liderança das Falintil-Forças de Defesa de Timor-Leste (F-FDTL).

“É um processo que não é complicado, mas que depende da boa vontade do senhor Presidente da República, para não complicar a minha situação”, explicou.

“Eu estou na idade da reforma, já cumpri até mais do meu mandato. Já estou no terceiro mandato, que é uma coisa nova. É tempo de pedir a minha reforma”, acrescentou.

O requerimento com o pedido vai ser enviado ainda este mês para o Presidente, disse, iniciando-se depois o processo de nomeação do seu sucessor.

“Tem de haver boa vontade do senhor Presidente. Somos irmãos e um irmão não pode trair outro. Se recusar tem de explicar porque é que recusa a minha reforma”, disse.

Se o pedido de passagem à reforma for aceite, Lere Anan Timur vai preparar uma proposta com potenciais sucessores no cargo que enviará ao ministro da Defesa, Filomeno Paixão de Jesus, a quem cabe depois reunir o Conselho Superior Militar.

Uma proposta será levada por Filomeno Paixão ao Conselho de Ministros, que fará depois uma recomendação para o Presidente, a quem cabe fazer as nomeações.

Para Lere, porém, a boa vontade de Francisco Guterres Lú-Olo devia ser ainda mais ampla, cedendo o espaço ao comandante militar para que seja só ele o único candidato do partido em que os dois militam, a Frente Revolucionária do Timor-Leste Independente (Fretilin).

Lere, aliás, considera que a Fretilin tem de apoiar a sua candidatura, “queiram ou não queiram”, porque é membro do Comité Central do partido e que assim é preciso “chegar a um entendimento” com o atual chefe de Estado.

“Eu e o Lu-Olo temos de chegar a um entendimento. Eu vou dizer: irmão, já estiveste como presidente do Parlamento, como PR, porque é que não me cedes este período agora? Quero chegar a um acordo com o irmão Mari [secretário-geral da Fretilin] e Lu-Olo de um só candidato”, afirmou.

O mesmo relativamente a outro dos potenciais candidatos, o ex-Presidente da República José Ramos-Horta, que tem sido apontado como potencial candidato apoiado por Xanana Gusmão, presidente do Congresso Nacional da Reconstrução Timorense (CNRT).

“O irmão Horta também podia pensar bem nisso. Já foi Presidente, é Nobel da Paz. O meu irmão deve refletir e pensar bem. Que obra é que deixou incompleta no seu mandato? Deixou alguma”, questionou.

“Eu sempre disse que de 2022 a 2027 são cinco anos decisivos. A última oportunidade para a velha geração, dos katuas. Até lá Xanana terá 80 e tal anos, assim como Ramos-Horta e Mari. É bom serem só pais da nação nessa altura”, considerou.

Para já, referiu, o seu apoio mais consolidado está entre “os veteranos, o pessoal da resistência” e da luta contra a ocupação indonésia, mas garantiu que o seu apoio é maior, “e em todo o país, não só na ponta leste” de onde é originário, ou da Fretilin.

Questionado sobre se gostava de ter o apoio de Xanana Gusmão, Lere recordou que o líder histórico é seu padrinho de casamento e os laços que os unem.

“Estivemos sempre ao lado do nosso irmão, prontos até a oferecer a nossa vida para salvar a dele, como irmão dele. E um irmão não abandona outro. Mas com ou sem o apoio dele, vou avançar”, garantiu.

Nas últimas semanas tem se falado de outro eventual apoio à candidatura de Lere, de José Naimori, líder do Kmanek Haburas Unidade Nacional Timor Oan (KHUNTO), um dos três partidos no Governo e cuja mulher, Armanda Berta, presidente do partido e atual vice-primeira-ministra, anunciou já a intenção de também se candidatar à Presidência da República.

Lere Anan Timur nega acordos políticos e explicou que as conversas e diálogos com Naimori – estiveram juntos recentemente em cerimónias tradicionais, por exemplo – tem a ver exclusivamente com “relações emocionais e pessoais e não políticas”.

“O partido do Naimori veio das artes marciais, do Korka. Até a minha própria família está dentro da Korka e há esta relação emocional de tio e tia, irmão e irmã. Falámos por causa desta relação pessoal, mas não é política”, reforçou.

Ainda que agora assuma uma corrida eminentemente mais política, Lere nunca deixou de ser uma voz política, mesmo nas funções atuais, o que suscitou várias críticas de vários quadrantes, algo que rejeita.

“Muitos desses que falam dizem que o padre se quer falar de política deve tirar a batina. Mas o padre quando fala política não fala de partidos. A sua função e obrigação é estar ao lado dos indefesos, dos que não têm voz. Assim como eu”, considerou.

“Sou militar, sempre disse que sou Fretilin, desde 1975 fui sempre da Fretilin. Se a Fretilin não existisse eu diria que era da Fretilin. Mas não sou general da Fretilin. Quem critica, não pensa”, insistiu.

E rejeitou comparações com outros generais do mundo que aproveitaram as independências para “se sentar na cadeira”, afirmando: “Eu edifiquei o Estado, a nação de Timor-Leste, com o meu próprio sangue e eu preocupo-me com a estabilidade nacional e o desenvolvimento”.

“Se falasse do meu partido ou do partido A ou B, estria contra a Constituição, mas sou como o padre, que está ao lado dos desprotegidos, que não têm voz e que sofrem. No impasse político, não podem calar a boca dos militares e andarem a fazer como querem”, afirmou.

“Aqui em Timor-Leste, toda a gente diz: ‘fakaran ba rai Timor’, derramar o sangue pelo povo de Timor. Eles só falam teoria, mas eu não, eu derramei o meu próprio sangue”, disse, apontando para o dedo que perdeu num combate”, disse.

Reiterando que nada o impede de falar, assegurou que vai manter sempre a “voz política”. “E quando for político só vou ter ainda mais voz”, enfatizou.

Perfil | O comandante que quer ser chefe de Estado

Lere Anan Timur, 69 anos, hoje comandante das Forças Armadas timorenses e pré-candidato presidencial, terá para sempre o seu nome ligado ao braço armado da luta contra a ocupação indonésia, quando conquistou uma reputação feroz e destemida.

Se vencer as próximas presidenciais, previstas para março próximo, será o quarto membro do braço armado da resistência à ocupação indonésia, depois de Xanana Gusmão, Taur Matan Ruak e o atual, Francisco Guterres Lú-Olo, a assumir o cargo.

Nascido em 02 de fevereiro de 1952, “dia de S. Tito”, de que ‘emprestou’ o nome de batismo, Tito da Costa Cristóvão, o outrora comandante das Falintil, o braço armado da resistência, é natural de Iliomar e descendente “de combatentes” de outrora.

O nome por que hoje é conhecido – e pelo qual criou uma reputação quase mítica entre os adversários militares indonésios – é uma mistura de tradição e de ‘batismo’ da guerrilha.

“Lere é um nome que vem da tradição da minha zona, de Illiomar, de bisavós lutadores. O Anan é da língua do Xanana Gusmão. Numa reunião, estávamos a discutir sobre nomes e o Xanana disse, olha tu ficas Anan. Perguntei o que isso significvaa e ele explicou que queria dizer ‘filho”, conta, em entrevista à Lusa.

“Eu era Lere Timur, e no nosso dialeto Timur é gente da montanha. Anan Timur ficava filho da Montanha. Filho da Montanha de Iliomar”, explica.

Perdeu os três irmãos no mato, sobreviveram duas irmãs e três meios-irmãos, filhos do pai, polígamo e que tinha outra mulher.

É, aliás, quando fala da morte do seu último irmão, numa operação militar nos anos 1990, que a voz, marcada pelo bom humor e pela descontração, lhe fica embargada, obrigando-o a secar lágrimas.

“Foi uma operação de 1995, que me doeu muito moralmente, porque o meu próprio irmão tombou. Éramos quatro irmãos. Agora sou o único. Morreram todos no mato. Mas essa, em que morreu o meu irmão, foi a mais dura”, conta.

Como muitos em Timor-Leste, o nacionalismo e o patriotismo veio da influência de portugueses e da igreja, e em concreto, no seu caso, quando tinha “18 ou 19 anos” um padre português no colégio Salesiano incutiu-lhe o patriotismo e nacionalismo.

“Apesar de ser português, incutiu-me o patriotismo de Timor e isso fez com que começasse a desprezar o colonialismo português. O padre falou-me de colonização, de opressão, das lutas anticolonialistas de África e isso inspirou-me a olhar para a frente, para o futuro de Timor-Leste”, recorda.

O 25 abril só lhe fez reforçar a coragem para “prosseguir o espírito patriótico”, que viu traduzido no partido que, considera, desde aí se tornou “sangue no corpo”, a Frente Revolucionária do Timor-Leste Independente (Fretilin), que assumia uma “política anticolonialista e anti-imperialista e combatia a exploração do homem pelo homem.

“Eu estava na altura na vida militar, no exército português quando a Fretilin nasceu. Fui militar português, estava destacado aqui no destacamento de paraquedistas em Díli. Eu e os meus colegas militares reuníamo-nos sempre e até falámos de fazer um golpe”, recorda, sorrindo.

“Simpatizei-me à Fretilin, o partido revolucionário, que representa mais os meus ideais. Sinto isso sem dúvida ainda hoje, apesar de estar fardado. Durante a luta também houve a despartidarização das Falintil, como elemento de unificação. Mas isso não apaga o que está na alma. A Fretilin é o sangue que me corre nas veias”, afirma.

A vida desde aí foi sempre um misto de política e combate: começou como quadro político até à queda das bases de apoio, em 1978, e depois com funções cada vez mais militares na fase da luta de guerrilha.

Foi comandante de destacamento sul, entre 1978 e 1979, em 1981 com a Conferência Nacional de Maubara foi eleito para o Comité Central da Fretilin (CCF), onde tem estado desde aí.

Com uma reputação feroz na luta, temido pelas forças indonésias, Lere diz que houve “muito heróis que tombaram”, e que sem querer dizer se foi melhor ou pior que outros, “assustava os indonésios”.

“Os próprios generais diziam quando me conheceram: Este é que é o Lere, que tanto procuraram no mato”, refere.

Durante a luta, só uma vez, em março de 1983, esteve prestes a ser capturado, depois de ser atingido nas pernas e num dos dedos, da mão direita. “A agressividade dos meus camaradas safou-me e eles conseguiram tirar-me do cerco do inimigo”, recorda.

Foi Comissário Político da Ponta Leste e depois na região fronteiriça e a partir de 1984 assumiu “tarefas puramente militares”, com operações “intensas e consecutivas” até ao final da década.

Lere assume depois o comando da quarta unidade, composta por duas companhias, A e B, sendo primeiro comandante da unidade e primeiro comandante da Companhia B.

“Podemos dizer que quem vai à guerra dá e leva. Perdemos homens e armas, mas o inimigo também levou bem. Até 1990, conseguimos tirar mais de cento e tal armas ao inimigo. Tivemos sucesso, mas também perdemos, armas e homens”, diz.

Mais do que os combates, da luta recorda “o próprio sacrifício” que diz ter unido todos os timorenses.

“Não havia discriminação ou uma separação de loromonu ou lorosae, de fataluku ou makassae de firakos ou caladis”, diz, referindo-se às várias linhas que têm dividido os timorenses.

“O próprio sacrifício e sangue derramado dos nossos companheiros da luta construiu o espírito de camaradagem e solidariedade. Foi uma luta verdadeiramente nacional, uma luta generalizada de todo o povo de Timor-Leste”, insiste.

9 Jan 2022

Christy Un e Gladys Ng, Genervision House: “Só com transparência há responsabilização”

Em menos de um ano, a Genervision House, ONG dedicada à promoção dos 17 Objectivos de Desenvolvimento Sustentável definidos pela ONU, acolheu uma importante base de apoio em Macau. Ao HM, a fundadora do projecto Christy Un e a responsável de projectos comunitários, Gladys Ng sublinham a importância de apresentar acções concretas rumo ao desenvolvimento sustentável de Macau em diversas áreas. Na base deve estar a transparência e a capacidade de adaptação à realidade local

 

Como nasceu a Genervision House e quais os principais objectivos do projecto?

Christy Un: Penso que a Genervision House é, de certa forma, resultado da pandemia, porque foi uma ideia que começou quando eu e a Arianna [outra das fundadoras] estávamos confinadas em diferentes países e conversámos muito por zoom, sobre a enorme quantidade de incertezas que há no mundo. Nessa altura, vimos também que em Macau há uma necessidade de diversificar a economia e introduzir mudanças rumo ao desenvolvimento mais sustentável. Por isso, decidimos criar a Genervision House e, quando voltei a Macau, começámos esta plataforma. Pouco tempo depois, organizamos um primeiro evento sobre a promoção dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) definidos pela ONU em Macau. Daí começámos a promover mais actividades e a contar com a participação de mais pessoas, membros e voluntários.

Desde que foi fundada no início de 2021, como tem sido a aceitação da Genervision House?

Christy Un: Ao longo deste ano, tem havido cada vez mais vozes, quer provenientes da comunidade local, quer de outras organizações ou até do meio empresarial preocupados com matérias relacionadas com o desenvolvimento sustentável. Além disso, temos uma base de apoio que tem crescido e transmitido o seu apreço pela sinceridade e empenho que temos colocado nesta tentativa de fazer a diferença. Esse apoio tem sido demonstrado pelo número de pessoas que participam nos nossos eventos e que colaboram connosco.

Gladys Ng: Juntei-me à equipa depois de participar numa actividade da Genervision, pois identifico-me totalmente com o que está a ser feito. Na altura, fiquei entusiasmada por ver tantas pessoas a falar apaixonadamente sobre tópicos relacionados com o desenvolvimento sustentável, pois era algo que pensava ser muito raro em Macau. Acho que a Genervision House é também uma comunidade para os residentes de Macau que se preocupam com estes tópicos. Quando voltei a Macau [depois de estudar nos EUA], fiquei algo confusa e perdida, porque senti que, em Macau, ninguém se preocupava com a questão da sustentabilidade. Confesso que me senti muito sozinha, mas depois de me juntar à equipa da Genervision e conhecer mais pessoas, comecei a sentir que havia, de facto, pessoas que se preocupavam com estes assuntos aqui. É importante sentir que não estamos sozinhos e que é possível continuar a ter esperança.

Qual a importância de promover em Macau os ODS e quais são as principais preocupações dos residentes?

Christy Un: Os ODS são referenciais internacionais que o mundo está a tentar alcançar. Falando a nível local, ainda existe um grande desconhecimento sobre o que são os 17 ODS definidos pela ONU. Por exemplo, estes objectivos nem são sequer mencionados [pelas autoridades], usando-se, muitas vezes e apenas, chavões relacionados com o desenvolvimento sustentável, que está cada vez mais proeminente a cada dia que passa. Mas, concretamente, como podemos alcançar este desenvolvimento sustentável e estarmos alinhados com as melhores práticas internacionais? A nossa ambição e vontade é trazer estas questões para a comunidade local. Além disso, porque estes objectivos devem ser atingidos em 2030 e nós já estamos praticamente em 2022, há uma grande urgência no trabalho que estamos a fazer, para não falar nas questões que a pandemia levantou, e que mostrou como era importante introduzir mudanças.

Que objectivos a Genervision está focada em desenvolver em Macau?

Christy Un: A nossa organização foca-se em cinco dos 17 ODS, embora isso não queira dizer que não nos foquemos em todos, pois, no fundo, estão interligados. Estamos focados na promoção da igualdade de género, na educação de qualidade, na redução de desigualdades, na acção contra a mudança global do clima e nas parcerias e meios de implementação. A nível local, estes são os principais problemas a nível de sustentabilidade. Por exemplo, em termos de acção climática, em Macau há muito desperdício de resíduos sólidos e alimentares e, actualmente, as únicas medidas ambientais estabelecidas estão relacionadas com aquilo que é observável.

Gladys Ng: Sim, não há preocupação de reduzir o desperdício na fonte, por exemplo. Além do desperdício alimentar, é preciso dizer que, em Macau, há muitos tufões e que eles se estão a tornar mais frequentes. Se olharmos para os dados desde que há registos, houve 8 super tufões que obrigaram a içar o nível 10, sendo que destes, três ou quatro aconteceram nos últimos cinco anos. É algo sobre o qual temos de agir, mas parece que tanto o Governo, como as organizações locais estão a tomar medidas desajustadas à realidade e sem base na ciência climática.

Sentem que, muitas vezes, o termo “sustentabilidade” é usados sem base científica e de forma inconsequente?
Gladys Ng: Sim, por exemplo, Grupo de Trabalho Interdepartamental Contra as Alterações Climáticas que foi criado pelo Governo em 2015, nunca publicou qualquer documento ou relatório e apenas reuniu uma vez. Por isso, parece não haver um plano de acção climático claro ou um projecto. Temos o objectivo de atingir a neutralidade de carbono até 2060, seguindo o plano nacional da China, mas não temos metas a curto ou médio prazo ou sequer um plano com acções concretas sobre a forma de atingir esse objectivo. Apenas sabemos que vamos lá chegar, mas não sabemos como.

Sentem que os residentes de Macau estão preocupados com estas questões e que esses receios não são devidamente acompanhados?

Christy Un: Não estamos só a falar do lado ambiental, porque os ODS envolvem também aspectos económicos, sociais e ambientais. Por exemplo, sobre o tópico “redução de desigualdades” não existe em Macau uma definição de limiar de pobreza, ao contrário do que acontece em Hong Kong. Tudo isto torna mais difícil contabilizar quantas pessoas estão abaixo do limiar da pobreza no território. Os próprios subsídios atribuídos pelo Governo escondem uma sociedade bastante desigual.

Em que campos Macau está melhor e onde consideram que estagnou?

Gladys Ng: Um dos tópicos em que Macau tem evoluído é na igualdade de género e ao nível da educação e taxa de escolaridade. Tem havido também uma redução ao nível da diferença de vencimentos entre homens e mulheres.

Christy Un: Sim, tem havido uma melhoria nestes aspectos, mas outros temas não têm progredindo muito, como a violência verbal, que muitas vezes não é tida em conta pela comunidade local. Além disso, sentimos que é difícil para as mulheres denunciarem estes casos e outros de assédio sexual ou violência doméstica, por exemplo.

Gladys Ng: Sobre a violência doméstica, importa dizer que muitos dos agentes das autoridades chamados para acudir estes casos, não têm capacidade para avaliar se se trata de uma situação severa. Outro tópico que importa melhorar é ao nível da participação política, já que é possível ver que a proporção de mulheres em cargos políticos é muito menor que a dos homens. Isto, quando mais de metade da população são mulheres. É algo em que é preciso trabalhar.

Ao nível das alterações climáticas e da reciclagem, o que pode ser feito em Macau?

Christy Un: Apesar de a situação estar a melhorar e de haver mais pontos de reciclagem em Macau, acho que falta coordenação entre os diferentes sectores e aquilo que as pessoas estão realmente a fazer no seu dia-a-dia. Por exemplo, encomenda-se muita comida e isso aumenta de forma tremenda o uso de plástico. Outro aspecto é que, apesar de o desenvolvimento sustentável ser um chavão aplicado em muitos projectos políticos, o Plano Director não contém menções ambientais, por exemplo. As alterações climáticas não são mencionadas e é importante que esses termos constem das políticas e que se diga à população que é urgente actuar.

Gladys Ng: Outra questão está relacionada com a transparência do Governo ao nível dos projectos em desenvolvimento. Por exemplo, ao nível da reciclagem, a maioria das pessoas assumem à partida que os resíduos não vão ser separados e reciclados, mas sim enviados em conjunto para serem incinerados. Essa é a ideia geral que as pessoas têm e isso é um problema de transparência. Por isso, precisamos definitivamente de mais abertura do Governo acerca do que está a ser feito e ao nível dos resultados alcançados.

Christy Un: Só com transparência há responsabilização. Isto é verdade para todos os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável, porque, apesar de existirem dados e referências para monitorizar o progresso, há também uma necessidade de estabelecermos os nossos próprios objectivos e referências.

Que tipo de actividades são promovidas pela Genervision House?

Christy Un: Temos vários tipos de actividades. Umas mais experimentais e outras, como workshops, não só para a comunidade local, mas também para o sector privado. Nestes eventos, introduzimos estes conceitos dos ODS, como podem ser aplicados e qual a situação em Macau acerca destes tópicos. Temos também abordagens temáticas, sobre turismo sustentável, por exemplo. Temos recebido bom feedback porque as pessoas sentem que estamos lá de coração para transmitir a mensagem. Além disso, nos workshops que fizemos com a Wynn Macau e a Sands China, os funcionários foram muito participativos. Estamos muito gratos porque este projecto começou há menos de um ano e sentimos que chegámos no momento certo porque a comunidade tem essa necessidade.

Dado o contexto peculiar que estamos a viver, não só pela pandemia, mas também a nível político, consideram que transmitir este tipo de conhecimento e alcançar objectivos globais é hoje uma tarefa mais complexa?

Christy Un: Definitivamente. Nos dias que correm, há muita tensão gerada por dicotomias ideológicas e sabemos que, para aprender com os outros e para partilhar o que estamos a fazer dentro de portas, temos de desenvolver o intercâmbio cultural e entendimento mais profícuo. Por isso, há de facto um lado perverso gerado pela tensão geopolítica. Mas sentimos que temos um papel a desempenhar na promoção do entendimento porque, no final, a concretização dos 17 ODS é aquilo que mais importa e precisamos de colaborar, para que isso possa acontecer. Considero também que, apesar destes objectivos poderem envolver aspectos políticos, é possível promover acções baseadas em conhecimento científico e ser-se objectivo sobre o que é preciso fazer. Isto, para que possamos seguir em frente sem interferência das questões políticas. Além disso, porque todos estes objectivos são provenientes da ONU e a maioria dos países, especialmente a China e os EUA, quer fazer parte de uma solução multilateral, acho que que esta é também uma forma de dizer que temos mesmo de arregaçar as mangas e fazer o que é preciso em conjunto.

7 Jan 2022

Paulo Costa, fundador do movimento “Também somos portugueses”: “Queremos estabelecer ligação com Macau”

O que começou com um movimento que chamou atenção para as más condições de voto das comunidades portuguesas transformou-se numa associação que luta pela participação eleitoral. Acabar com a exclusividade do voto presencial nas Presidenciais e nas eleições para o Parlamento Europeu são alguns dos objectivos. Paulo Costa, fundador do movimento “Também somos portugueses”, quer ter representantes em Macau e defende mais poderes para o Conselho das Comunidades Portuguesas

 

Acaba de ser criada a associação com base no movimento que ajudou a fundar. Sente que as ideias que defendem ganharam importância no espaço político?

Queremos passar para um segundo nível. Primeiro tentámos que as pessoas tivessem maior facilidade em votar, e por isso foi lançada uma petição em 2015, entregue em 2018. Conseguimos um dos nossos primeiros objectivos, que foi o recenseamento automático dos emigrantes, que antes era opcional. Passámos de 300 mil para cerca de 1,5 milhões de pessoas recenseadas. Contudo, ainda existem problemas, como com o voto postal. Acho que podemos duplicar o número de votos em relação às últimas eleições. Mas, para isso, temos de melhorar o voto postal, [tendo em conta que] há países em que este sistema pura e simplesmente não funciona, embora seja melhor do que o voto presencial. Daí propormos o voto digital.

Foram dados alguns passos nessa matéria. O secretário de Estado da Administração Interna chegou a propor uma votação experimental para o Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP).

Esse projecto piloto está em andamento, mas foi adiado porque implica uma alteração na lei. Acho que vai prosseguir, talvez este ano. Temos reuniões regulares com um grupo de trabalho que está a trabalhar nisso e também na melhoria do voto postal. Mas falta o alargamento às restantes eleições, e aí tocamos nos votos para o Presidente da República. Neste momento, a votação é presencial, bem como na eleição para o Parlamento Europeu. Implementar o voto remoto nesses sufrágios é outra das nossas missões, uma medida que tem várias objecções políticas, mas achamos que é uma questão de democracia. Em Macau é mais fácil votar presencialmente, mas os emigrantes que vivem na China não têm essa facilidade. Numa eleição presidencial, com segunda volta realizada 15 dias depois da primeira, os emigrantes não conseguem votar, porque nesse período de tempo não conseguem enviar os votos pelos correios. A sua participação só pode acontecer através do voto digital.

Que outros projectos pretendem desenvolver?

Além de facilitar o voto, os eleitores também têm de ser incentivados a votar.

Não acha que o distanciamento geográfico conduz ao distanciamento em relação à política portuguesa?

Sim. Estive duas vezes no Reino Unido e sei que muitas pessoas emigraram zangadas com a crise política, porque sentiram que o país as mandou embora. Outros acham que são abandonados, porque os consulados funcionam com problemas e agora, com a pandemia, as coisas pioraram. As pessoas sentem que não têm as coisas básicas, como obter um passaporte ou cartão de cidadão. Compilámos um conjunto de recomendações para os partidos políticos para serem incluídas nos programas eleitorais. Queremos que, nas várias comunidades, se façam entrevistas a personalidades dos países ou regiões sobre a questão do voto e da participação política dos portugueses. Isso implica ter uma presença local. Temos contactos com o CCP, através das redes sociais, com quem partilhamos prioridades. Mas o CCP é um órgão consultivo. Em alguns aspectos conseguem acesso mais fácil ao Presidente da República ou ao Governo, mas nós também temos esse acesso mais facilitado e podemos agir com mais força. Isso implica uma presença local para que haja esse incentivo.

Disse-me que, para já, não têm nenhum representante em Macau. Já foram feitos alguns contactos?

Pretendemos estabelecer ligação com Macau. Quando fizemos a petição, contactámos pessoas que nos auxiliaram. Este ano vamos avançar na procura desses pólos locais. E Macau faz todo o sentido. Chegámos a ter contactos, [colaboradores], mas não tivemos representantes locais.

Alguém do CCP?

Contactámos com todos os conselheiros e pedimos a colaboração deles na recolha de assinaturas para a petição. Não foram tantas como gostaríamos. Acho que os portugueses têm alguma dificuldade em participar em questões políticas, afastam-se, e essa é uma questão didáctica que temos de fazer.

Sendo Portugal um país com vários círculos de emigração, como explica que haja tantos problemas ao nível da participação cívica, com atrasos e burocracias? Há falta de vontade política?

Um dos lados é o Governo e da própria Administração pública. Passámos por um período de cortes financeiros, que levou ao fecho de vários consulados. Houve um desinvestimento bastante grande em relação aos emigrantes e um corte que ainda não foi recuperado. Só agora, com o recenseamento automático é que as autoridades tiveram real consciência das transformações que houve na estrutura das comunidades. Há muitos tipos de emigrantes e essa é uma das questões que muitas das vezes não é endereçada.

Em que sentido?

Contestamos a primazia que é dada em relação aos emigrantes empresários. Isso faz todo o sentido, mas não deve ser algo exclusivo. É importante perceber porque é que as pessoas emigram. Chegámos a fazer um projecto, o “Cartas de Londres”, que enviámos ao Governo, a contar as histórias das pessoas que tinham emigrado recentemente, até porque também contribuem para a economia.

Acha que o CCP deveria ter mais poderes na ligação com Lisboa?

Uma das coisas que sugerimos é que seja consultado obrigatoriamente para várias matérias. Neste momento não é. E que tenha uma maior facilidade de propor alterações legislativas. Não é um órgão que possa propor leis, mas a secretaria de Estado das comunidades portuguesas pode. Queremos que o CCP tenha um segundo grau de intervenção, incluindo junto de partidos políticos. Chegamos a propor que os votos postais fossem enviados para os consulados em vez de serem enviados para Lisboa, mas não a proposta não teve seguimento. Foi-nos dito que não havia uma proposta de lei nesse sentido, então é como se essa sugestão não existisse, o que não faz sentido. As sugestões do CCP têm de ter mais impacto.

Muitas das questões que levantam confrontam-se com a falta de meios dos consulados e embaixadas. Sem investimento público será sempre difícil colocar em prática as sugestões que propõem.

Lutamos constantemente para que sejam dados mais recursos aos consulados. Mas também fazemos imensa pressão para que se consiga fazer mais com meios digitais.

Falam também na falta de representatividade dos emigrantes no Parlamento, pois existem apenas quatro deputados eleitos pelo Círculo Fora da Europa. Haverá margem para alterar este panorama?

Não avançamos com um número desejável de deputados [para esse círculo eleitoral]. Se pedíssemos deputados em proporção igual ao que existe no país, 25 mil eleitores por um deputado, queria dizer que com 1,5 milhões de portugueses recenseados teríamos umas dezenas de deputados. Não pedimos isso porque sabemos que há muita gente na diáspora que não está interessada em votar. Temos ambições bastante altas quanto à participação dos emigrantes, mas nunca vamos ter uma participação de 80 por cento, por exemplo. Queremos que mais pessoas votem, queremos incentivar o voto, em especial entre aqueles que nos dizem “elegemos sempre os mesmos quatro deputados”.

6 Jan 2022

Pedro Pombo, antropólogo: “Macau torna-se visível em apontamentos”

Depois de uma temporada em Goa, o antropólogo Pedro Pombo, vencedor de uma bolsa do Instituto Cultural, está nas ilhas Maurícias a investigar as comunidades chinesas da região e as relações com o comércio de cules e ligações a Macau. O investigador indica que Macau era importante enquanto ponto de partida por ser português, embora a quase totalidade das rotas de transporte de pessoas tenham sido indirectas

 

Está nas ilhas Maurícias a investigar novas perspectivas do comércio dos cules. Em que fase está o processo de investigação?

Não sou um especialista de Macau, tenho um percurso em história de arte e um doutoramento em antropologia, com trabalho de campo feito em Moçambique. Saí da Índia há pouco tempo, onde estive três anos na Universidade de Goa. Quando me mudei para a Índia comecei a ter interesse em estudar as diásporas do país que tinham saído para a costa oriental africana. Como me situo na zona do oceano Índico, comecei a ter um interesse cada vez maior não só na costa africana como nas ilhas que fazem parte do oceano Índico ocidental. Comecei a interessar-me sobre algumas dicas pontuais que ia vendo e que se relacionam com Macau, nesta região. Tendo em vista a grande história dos trabalhadores contratados, os cules, muitas vezes esta parte do mundo [zona do Índico] passa, no contexto do império português, ligeiramente ao lado. É interessante passar por territórios que nunca foram coloniais e ver como estas relações entre diversos impérios coloniais se fazem. No século XIX o transporte destes trabalhadores, via Macau e Hong Kong, acaba por ter maior expressão e ser em maior número, apesar de começar décadas antes e continuar décadas depois.

E surgiu devido à abolição da escravatura.

Houve uma transição, na parte do oceano Índico, entre a substituição desse sistema por um sistema de trabalho contratado. Muitas vezes os dois sistemas funcionaram ao mesmo tempo. A abolição da escravatura foi feita de forma diferente em vários sítios, muitas vezes era só o transporte de escravos e não a escravatura em si. [Faço] o cruzamento entre a procura em arquivo histórico e bibliográfico e a pesquisa de comunidades de etnia chinesa, especialmente nas ilhas Maurícias. [Procuro estabelecer] diálogo entre o trabalho de arquivo e ver a parte contemporânea a nível de cultura e da presença de comunidades chinesas. Isso tem sido estudado, mas não com este lado de contemporaneidade.

Quais os arquivos que vai analisar?

Vou investigar três arquivos, um deles ligado a uma família hindu de Goa, que tem uma importância fundamental a nível do comércio. Estiveram sempre em Goa, com agentes em Macau, e, a certa altura, tinham o monopólio com os mercadores franceses que vinham para esta zona. As ilhas Maurícias foram mais ou menos ocupadas pelos holandeses, mas depois a grande ocupação e desenvolvimento das plantações de cana de açúcar foi feita pelos franceses no século XVIII. Os ingleses conquistam depois as Maurícias e a ilha da Reunião fica francesa. Os impérios britânico e francês sempre estiveram presentes nesta zona.

Porquê o interesse nesta família?

Este não é um arquivo histórico oficial, mas é um arquivo de comércio, com grandes ligações a Macau, a essa região das ilhas Mascarenhas e a Moçambique. Mas abre-nos uma porta a este comércio que vai além do mundo português. Depois há o arquivo departamental da ilha da Reunião e os arquivos históricos das Maurícias. Vou ficar aqui alguns meses, porque os arquivos das Maurícias são bastante grandes e tenho encontrado muitas informações. Depois volto à ilha da Reunião para fazer o trabalho mais etnográfico e entrevistar pessoas que fazem parte da comunidade chinesa.

O comércio dos cules tinha epicentro em Macau. Pretende analisar outras rotas comerciais?

Macau [nesse aspecto] está estudado, assim como Hong Kong. A larga maioria dos trabalhadores engajados que partiram para as ilhas ou zonas costeiras saíram da Ásia do Sul, sobretudo da Índia, mas um enorme número saiu da China, por Hong Kong e Macau, incluindo Amoy, ou Fujian. Também pretendo estudar os arquivos em Macau. O interesse é colocar em diálogo os dados que encontro em arquivo, como nomes de barcos e rotas indirectas, documentos de trocas comerciais entre diversos armadores privados. Quero estudar como é que esse ponto de partida pode ser encontrado num sítio que não é o mais óbvio nas rotas dos cules através de Macau. Cuba e Perú foram os grandes destinos directos de Macau, com milhares de trabalhadores engajados, com uma conexão a territórios ingleses e franceses. Havia a difícil relação entre Macau e Hong Kong devido aos abusos que foram cometidos nestes contratos, houve situações de quase escravatura, além de que Macau foi bastante criticado pelo império britânico [por causa deste comércio].

Existem, portanto, várias rotas indirectas desse comércio.

Sim. Esta região não é a mais evidente para estudar, mas com a minha pesquisa fui encontrando referências. Há dúvidas e ausências, mas permite-me começar a elaborar uma história menos conhecida, e com uma ligação à etnografia e observação [das comunidades]. Vou tentar perceber se há referências de léxico dessas comunidades a Macau, se há alguma herança histórica que ficou em algumas palavras ou expressões.

O comércio dos cules é ainda uma parte polémica da história de Macau.

Falamos de sistemas de trabalho bastante problemáticos do ponto de vista dos direitos humanos. Havia imensos relatórios a criticar situações insustentáveis. Pode-se argumentar que os britânicos exageravam para retirar o comércio de Macau, mas, de facto havia muitas críticas. Observo nos sítios onde existem comunidades de origem chinesa e indiana que a sua presença parte de um trabalho contratado. Mais tarde houve emigrantes livres, comerciantes. Tem existido um reconhecimento de que é uma história que é necessário falar e dignificar. No que toca à Ilha da Reunião e Ilhas Maurícias, existe um enorme interesse em reconhecer estas comunidades que fazem parte da diversidade cultural local. Do que existe em Macau, e aqui, não vejo que seja uma parte da história problemática ou sobre a qual não se deva falar. É um assunto com um grande significado e não sinto que seja tabu. Vejo uma enorme vontade e orgulho em celebrar uma herança cultural chinesa de comunidades diversas que falavam diversas línguas.

Pode traçar algumas rotas que este comércio de trabalhadores foi assumindo?

[Os arquivos mostram que] cerca de 90 por cento dos barcos que traziam trabalhadores contratados, e que chegaram à ilha da Reunião, vieram directamente de um porto na China do sul. Às ilhas Maurícias chegavam barcos de Penang, Calcutá e Singapura. Isso significa que as rotas eram indirectas para esta parte do mundo. O estreito de Malaca tinha cidades que eram entrepostos, de chegadas e de saídas, e Calcutá era um dos grandes portos de saída para o império britânico. [Isto] significa uma enorme diversidade de rotas e de armadores de barcos. Havia uma enorme circulação. Outro dos dados interessante é que se consegue encontrar a origem dos trabalhadores, e até agora, pelo que encontrei, a grande maioria era de Cantão e da província de Fujian. [Encontro] alguns barcos com números significativos de trabalhadores que são nascidos em Macau. E este “Born in Macau” penso que seja o lugar de origem, poderão não ter nascido em Macau, mas já viviam lá ou, pelo menos, foi o porto original. Muitas vezes é complicado seguir as rotas completas. Existe ainda uma percepção de que as comunidades sino-mauricianas são, na verdade, diferentes, com tempos diferentes. Aparece uma diversidade linguística também, e tenho interesse em saber mais, como é que essa história e diversidade ainda é vivida pelas gerações mais novas, já completamente integradas.

Portanto, rotas directas de Macau para essa zona das Maurícias eram poucas.

Existem poucos barcos de Macau que tenham vindo directamente para aqui. Os armadores não parecem macaenses. Mas é interessante ver que, Macau, como ponto de partida, e pelo facto de ter sido um território português, tem muita importância. Mas depois no transporte em si, os barcos podiam ser franceses, britânicos ou espanhóis, ter várias nacionalidades e ser de armadores privados. Esta diversidade torna difícil fazer um percurso bastante rigoroso. Macau fica quase invisível, mas torna-se visível em pequenos apontamentos e comentários.

4 Jan 2022

Carlos Piteira, antropólogo: “Macau sempre foi uma terra de pecados”

Carlos Piteira lançou um novo artigo académico a defender que a identidade chinesa das regiões do sul da China vai sofrer mudanças com a modernização progressiva, graças a projectos como a Grande Baía. No momento em que se celebra o 22.º aniversário da implementação da RAEM, o académico lamenta que se olhe para os portugueses de Macau como emigrantes e defende que a comunidade é fundamental para que os macaenses mantenham a sua singularidade

 

O seu novo artigo traz a ideia de que a identidade chinesa nesta região está em mudança. Em que aspecto?

Há uns anos fiz uma apresentação sobre os efeitos da modernização na questão da identidade. Depois reformulei e tentei generalizar mais essa questão do impacto na própria reformulação da identidade chinesa. Este é um problema com o qual a China vai ter de se defrontar, e que ainda não percebeu não se tratar de uma questão política, mas social.

Que é a integração destas identidades no sul da China.

Exactamente. Macau e Hong Kong são laboratórios, e temos Zhuhai e Shenzhen, em termos de modernização, e depois a Grande Baía. Há um núcleo económico que vai trazer modernização ao movimento social. Falamos de duas coisas paralelas e que podem ser coincidentes ou não. A dinâmica social poderá sobrepor-se às vontades políticas, porque a modernização vai trazer bem-estar e estilos de vida.

Mas problemas também.

Claro, mas sem carga ideológica. Macau é um exemplo disso, porque teve um processo de modernização mais cedo, assim como Hong Kong, o que levou a um modo de vida diferenciado que se traduz na identidade regional ou local. Independentemente do regime, as pessoas querem é sentir-se bem, esse é um direito que as populações têm.

Terem emprego…

Bem-estar, habitação. É o que Macau e Hong Kong oferecia, bem como Cantão e Shenzhen. Esse bloco do sul da China vai ser a garantia de que o país vai ser uma potência económica. O foco está ali e a modernização terá os seus efeitos. Daí que defenda, neste artigo, que esse efeito acarreta a reformulação da identidade dos chineses.

E não só dos macaenses.

Porque essa já está a sofrer alterações. Hong Kong e Macau são laboratórios sociais interessantes para quem analisa o efeito de uma dinâmica social, independentemente do modelo político. A China já se apercebeu disto, mas ainda não sabe como vai analisar. O país paralisou no tempo, esteve fechado ao mundo, e não há mais experiências deste tipo. Há uma dinâmica social que é alheia às vontades.

Têm sido feitos estudos que concluem que a maioria dos chineses locais têm ligação identitária à nação. Isso será mais evidente, o sentir-se menos chinês de Macau e mais chinês da China?

Diria que o reforço vai ser nas duas vertentes. Uma coisa é a identidade nacional, o patriotismo, e essa é a tradição histórica. Em paralelo, surgiram identidades regionais em Macau e Hong Kong e que se vão alastrar a zonas como Cantão. As pessoas vão reclamar uma identidade paralela à nacional, e isso vai assentar nos efeitos da modernização. Não é algo ideológico. Será muito suportada na qualidade de vida, e é isso que a China promete com o projecto da Grande Baía.

As casas para idosos…

E a riqueza. Não faz sentido desligar isto do projecto nacional. Por isso digo que Macau, ao ser sugado pela Grande Baía, algo que acontece por imperativos da própria China, coloca-se a questão regional na nacional. Mas como vamos, no meio disto tudo, manter a presença singular da lusofonia? Esta é a questão central, porque está determinada na forma de integração de Macau.

E como é que isso pode ser feito?

Aí o trabalho é do Governo português, e não de Macau. O trabalho que está em aberto é o das autoridades portuguesas, e ainda temos 30 anos. Tenho esperança que as coisas possam acontecer. Tenho uma certa simpatia pela capacidade que os portugueses que estão em Macau têm de resistir, porque é uma resistência absurda. Estão completamente sozinhos. É algo muito individual e em alguns casos até se põe a vida em jogo nessa capacidade de resistir. Porque Macau não perdeu qualidade, a vida das pessoas não se alterou muito. Mas temos a questão dos valores. Nunca podemos ver a presença portuguesa em Macau como se fossem emigrantes. Este foi um erro de base.

Isso foi visto pelas autoridades portuguesas desde a transição.

Foi sempre. A lógica, depois da transição, foi ver a comunidade como emigrantes. Isso nunca deveria ter sido feito, porque é uma presença portuguesa numa tentativa de manter um legado que, provavelmente, até poderia ir além dos 50 anos.

Falamos de pessoas que ficaram, permaneceram, e que voltaram após 1999.

E há alguns que apostam já na vida dos seus filhos, numa lógica de legado. Esta é a grande lacuna 22 anos depois. Os macaenses sobrevivem devido à presença da comunidade portuguesa.

E por resistência também?

Sim. O macaense não tem a necessidade de sair de Macau, mas a comunidade portuguesa tem sempre um plano B para regressar a Portugal. O macaense tem ligações com o poder chinês para se manter e para ele não há essa questão de Macau se transformar na China, porque sempre foi inevitável. Mas como é que essa pequena etnia e comunidade se consegue diferenciar. Vai ter de fazer estratégias, e já se nota.

Como por exemplo?

Alguns macaenses já se deslocam para a matriz chinesa.

A mudança de identidade chinesa também acontece aí.

Há essa simbiose. A comunidade chinesa modifica-se, porque quer ser de Macau. Temos chineses que já se auto-denominam como macaenses e temos macaenses que já se ligam a essa identidade mais de matriz chinesa, mas querendo manter uma diferenciação dentro desse grupo. Até à transição, os macaenses eram portugueses, mas eram diferentes. Agora podem ser chineses, mas também diferentes. A gastronomia e o patuá estavam esquecidos na história, e de repente saíram das casas das pessoas.

Há elementos identitários da comunidade macaense que necessitam de ser explorados?

A religião é um desses elementos, com raízes portuguesas e filipinas também, as procissões e o carnaval. O festejar o carnaval é algo macaense, bem como o Chá Gordo. Há aqui coisas que podem ser ressuscitadas como um traço singular dos macaenses. A comunidade vai muito por aí, mas tem um instinto de sobrevivência.

Sempre teve…

Sempre teve. Este instinto é que vai levar a reformulações na identidade macaense. Na geração pós-transição as coisas têm sido diferentes, porque esta vive num mundo global e tem ligações não apenas com Portugal. Mas se desaparece a comunidade portuguesa é um problema para os macaenses, porque é isso que reforça a lógica de ligação, mesmo não tendo essa matriz tão garantida.

Se a comunidade portuguesa desaparecer…

[A comunidade macaense] fica monolítica. Neste momento, há um equilíbrio, porque esta inverteu as relações de poder com os chineses, mas os portugueses, a sua alma, estão lá. Se os portugueses saírem, os macaenses viram-se para a comunidade chinesa.

Mas, 22 anos depois da transição, a comunidade portuguesa está em profunda transição. Há muitos quadros qualificados a deixarem o território, por exemplo.

O processo está a ser acelerado e não era para ser assim. Era para ser um processo mais gradual, quase sem darmos por isso. Poderíamos chegar ao fim dos 50 anos e Macau ser um espaço singular capaz de ser culturalmente diverso.

Falando da educação. Disse-me que uma das grandes transformações será neste sector. Há dias saiu uma notícia sobre a vontade de Pequim de aumentar o domínio do mandarim no ensino. O que vai acontecer?

Os programas escolares vão ter de ser alterados, e também ao nível da história de Macau. Mas essa já está feita por investigadores chineses. A consequência natural seria sempre reformular os valores através da educação. A Escola Portuguesa de Macau [EPM] vai ser apanhada por isto, e vão ter de introduzir programas.

O ensino do mandarim tem ainda pouca expressão.

Mas vai ser forte. Aqui, o Ministério da Educação em Portugal tem de se pronunciar. A particularidade de uma escola portuguesa em Macau é a possibilidade de os chineses estudarem essa estrutura curricular. Se lhe tiram isto, tiram tudo, passa a ser uma escola normal. A estrutura curricular poderia ter disciplinas obrigatórias e opcionais, por exemplo, fora do programa oficial. Não tenhamos ilusões: o programa oficial é para entrar. Na rua pode ser o cantonês, mas quem vai para a escola tem de aprender mandarim. Macau vai ser um sítio onde os futuros dirigentes chineses vão ser formados e há a questão tecnológica e das universidades.

Afirma, no artigo, que as autoridades de Macau estão a dar novas directrizes à população para que esta tenha novas referências identitárias. Estas mudanças não acontecem espontaneamente?

Diria que poucas coisas são espontâneas nos chineses. Mas é uma imposição numa lógica de reposição de valores nacionais. Não falamos de uma identidade espontânea. O que está na agenda é que temos de ser chineses, mas isso sempre esteve.

O seu artigo deixa também a ideia de que a mudança de identidade passa também por alterar a ideia de que já não se pertence a um lugar dominado pelo jogo.

O jogo vai mudar, e há sinais disso. Veja-se o paralelismo entre a brecha que se abriu no jogo e a construção da tecnologia na Ilha da Montanha, com a criação de novos empregos. A aposta será na tecnologia e nas PME, mas não sei se isso resulta. Para quem está atento, o desenho está feito. Mas Macau tem a tradição do jogo desde os primórdios, que não tem nada a ver com o pensamento político. Sempre foi uma terra de pecados.

21 Dez 2021