Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteRosa Ribeiro: “Ninguém vai para o consulado para ser rico” A secretária-geral do Sindicato dos Trabalhadores Consulares, das Missões Diplomáticas e dos Serviços Centrais do Ministério dos Negócios Estrangeiros diz que os trabalhadores do Consulado-geral de Portugal em Macau e Hong Kong sofrem uma pressão acrescida devido ao número de utentes, sendo penalizados com as taxas de câmbio nos salários. A “greve histórica” destes trabalhadores começa dia 5 de Dezembro É a primeira vez que funcionários de consulados e embaixadas portuguesas organizam uma greve desta dimensão. Qual será a adesão em Macau? Só contabilizamos os números da adesão no primeiro dia de greve, pois não contamos as intenções de participação. Tem razão quando diz que é uma greve histórica, pois é a primeira vez que dentro do sindicato se processa uma greve para todo o mundo. Já houve uma greve de cinco semanas, mas apenas na Suíça. Esta será uma greve de seis semanas e acontece devido ao agravamento da situação e à inércia para a resolução de várias questões. Os problemas não são de hoje. No caso de Macau, quais são os mais prementes? Os trabalhadores do Consulado estão sujeitos a uma grande pressão e os salários estão sem revalorização há muitos anos. Há um empobrecimento constante, além de que em Macau há trabalhadores que não têm protecção social nem vão ter direito a reforma relativamente a todos os anos de prestação de funções. Essa é uma situação absolutamente inadmissível e, infelizmente, Macau é um posto fora da zona Euro e tem as questões da degradação cambial. Tem o problema, semelhante a todos os outros trabalhadores de outros postos consulares, que é estarem sem aumentos desde 2009. Quando têm aumentos, como foi o caso de 2020, foi de 0,3 e de 0,9 por cento este ano, sem que tenham em conta a realidade local. É um conjunto de situações que nos faz crer que o pessoal de Macau vá aderir em força a esta greve. Neste momento um funcionário do Consulado ganha quase tanto como um empregado de um hotel. Exactamente. Os trabalhadores em Macau estão praticamente a ser pagos a níveis quase semelhantes aos do pessoal pouco qualificado. Mas todos os trabalhadores têm qualificações elevadas sobre todas as matérias, pois em Macau tanto tratam de matérias de registo civil como renovam passaportes, cartões de cidadão ou emitem vistos. Temos trabalhadores com um leque de funções extremamente variado e uma polivalência que é rara. Têm uma capacidade de trabalho invejável porque passam de um sector a outro sem problema, e têm um conhecimento profundo da realidade em que vivem. Como são todos funcionários públicos, estão sujeitos ao regime de Administração pública portuguesa e podem estar 11 anos sem aumentos de salários. Um trabalhador assim de certeza que está mais pobre. Ninguém vai trabalhar para o Consulado para ser rico. Pedimos apenas que os trabalhadores não empobreçam e que tenham ânimo e direito a carreira. Se estão durante anos congelados naquela carreira sem perspectivas de evolução é algo altamente frustrante. Temos as variações cambiais que jogam contra eles, e neste momento tem um factor de correcção cambial de 5,34 por cento, quando deveria estar nos 12,95 por cento. Perdem muito dinheiro todos os meses e isso também não é aceitável. Além de desempenharem muitas funções, são também profissionais bilingues devido à especificidade de Macau. Isso mostra que o nível de competência deles tem de ser elevado. Pessoas perfeitamente bilingues como eles deveriam ser técnicos superiores em vez de serem apenas assistentes técnicos. Todos os dias estão ali a trabalhar com duas línguas. Esse problema também existe noutros postos, mas Macau tem, de facto, essa especificidade. São trabalhadores extremamente empenhados que têm amor pela camisola de Portugal, porque podiam trabalhar noutro lado, a trabalhar no Governo de Macau, por exemplo, com outro desenvolvimento de carreira. Quantos funcionários faltam no Consulado neste momento para que o serviço funcione em pleno? Há a necessidade de nove a dez trabalhadores suplementares, porque temos de compreender que os que saem não são substituídos e há um acréscimo de trabalho para os restantes. Os trabalhadores estão exaustos fisicamente e desgastados moralmente com os problemas que não têm resolução à vista. Neste momento somos 1.200 trabalhadores em todos os postos consulares e embaixadas portugueses de todo o mundo, o que mostra que estamos depauperados. Somos uma ninharia no contexto dos funcionários públicos portugueses. Destes 1.200 temos ainda os trabalhadores das residências oficiais. Trabalhadores operacionais e técnicos ao serviço das comunidades temos cerca de 850. Estes números não correspondem ao nível de representação que Portugal deveria ter tendo em conta a extensa rede diplomática. Macau é um grande posto tendo em conta o número de trabalhadores que tem. Dissemos na Assembleia da República, quando interpelados na Comissão dos Negócios Estrangeiros, qual seria o número de reforço global, e falamos em 500 com base num estudo feito. O ministro [João Gomes Cravinho], numa reunião, disse-nos que não era bem este o número que tinham pensado, mas que não estaria muito longe disso. Para nós, não era contratar 500 trabalhadores em quatro anos, mas sim já. Há um tempo de aprendizagem para cada trabalhador. Se queremos chegar ao fim da legislatura com reforço de pessoal temos de os recrutar de uma vez só, para estarem operacionais daqui a três ou quatro anos. Também queremos uma garantia, de que quem vai para a reforma seja substituído, sem que estes trabalhadores entrem no novo recrutamento. Isto porque temos verificado que há substituição das saídas sem novas contratações. Há 100 saídas, mas depois há 100 entradas, pelo que é falsa a ideia de reforço de trabalhadores. Esta deveria ser uma tarefa prioritária do Governo, porque sem isso estamos sempre ao lado da questão e as comunidades vão continuar extremamente insatisfeitas. Somos nós que somos confrontados com os utentes e somos muitas vezes confrontados e agredidos. Agressões verbais são mais que muitas. Há esse tipo de casos no Consulado em Macau? Sim. Não há registo de agressões físicas, mas as pessoas quando entram para serem atendidas já vêm frustradas porque estiveram muito tempo à espera. Já se dirigem ao funcionário como se ele fosse o culpado. Não é verdade, porque os funcionários fazem horas extraordinárias sem qualquer compensação, unicamente por brio profissional. Terminou, na última semana, a discussão na especialidade do Orçamento para 2023 em Portugal. Mais uma vez se verificou que não vai haver um reforço de verbas para resolver este assunto. Queremos saber como, com quase o mesmo dinheiro, se vai fazer um recrutamento. Este ano ainda há concursos a decorrer. Parece-nos evidente que não há uma prioridade neste sector da Administração pública. É muito simples: somos tratados à parte, apesar de sermos funcionários públicos. Somos esquecidos. Os trabalhadores nestes postos não são uma prioridade. Apresentamos a todos os grupos parlamentares [na Assembleia da República], para que fosse consagrado o princípio de respeitar a inflação dos países onde estão os trabalhadores para calcular a percentagem da sua actualização salarial. Este ano deram-nos uma percentagem de 0,9, baseada na inflação em Portugal entre Janeiro e Dezembro de 2021. Temos países com inflações muito superiores [no caso de Macau, a inflação está a 1,12 por cento]. Queremos rever o estatuto profissional para resolver esta questão. Os embaixadores e cônsules pouco podem fazer para minimizar estes problemas. Fazem o seu trabalho, que é reportar o que se passa ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. Muitos estão preocupados por terem os trabalhadores nessa situação. Simplesmente as decisões não estão nas mãos deles, mas não se coíbem de enviar alertas muito sérios para o Ministério. Temos colegas com dificuldades físicas e que vêm tratar-se a Portugal, a quem damos ajuda. Demos um aparelho ortopédico a uma colega que tinha um custo de três mil euros [cerca de 25 mil patacas], o Ministério deveria pagar e não pagou, porque não tinha seguro. Além dos salários, há outras questões que precisam de ser alteradas? Neste momento focamo-nos mais na questão dos salários, recursos humanos e protecção social. Há uma portaria de seguros de saúde que se aplica aos diplomatas, mas não aos trabalhadores. Há filhos e enteados no Ministério. Se querem ser tratados, têm de adiantar as despesas. Haverá uma segunda fase de rever o sistema de protecção social e o estatuto. Com esta norma travão, que impede que os nossos aumentos sejam superiores aos da Administração pública em Portugal, a nossa situação específica não é reconhecida. E isto também está nos planos de negociação. O que pode desbloquear a greve? Que nos sejam comunicadas as tabelas e que haja o aval do Ministério das Finanças, e que sejam publicados os textos que já foram negociados. Muitas vezes é difícil chegarmos a acordo face a um texto, e depois demora a ser publicado, mais de dois anos muitas vezes. É absolutamente incompreensível. A situação no Consulado de Macau é mais ou menos grave face a outros locais? É mediamente complicada a situação. Há mais pressão de trabalho em Macau do que em Pequim, veja-se pelo número de utentes. A situação não é das piores nem é das melhores, sendo que nenhum consulado ou embaixada está bem neste momento.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteRita Santos, membro do Conselho das Comunidades Portuguesas: “Só se lembram de nós quando aqui estamos” Conversámos em Lisboa com Rita Santos, representante máxima da Ásia e Oceânia no Conselho Permanente das Comunidades Portuguesas, sobre a importância e influência do organismo nas decisões do Governo português e sobre a polémica das pensões, que tem marcado a agenda mediática. Quanto à perda do estatuto de residente dos delegados do Fórum Macau, Rita Santos diz que o Governo de Macau “não fez por mal” Está em Portugal pela segunda vez num espaço de poucos meses. Que balanço faz das várias reuniões de trabalho desta viagem? No passado mês de Julho, o Conselho Permanente das Comunidades Portuguesas (CPCP) reuniu em Portugal, e um dos objectivos era discutir a revisão da lei do Conselho. Na altura o PS [Partido Socialista] tinha dito que iria apresentar em Outubro a proposta de revisão ao Parlamento. Pensámos que nesta fase de revisão orçamental [a discussão do Orçamento para 2023 terminou na semana passada] poderíamos apresentar as nossas opiniões. A proposta em causa tem uma parte solicitada por nós, que é o aumento do número de conselheiros de 80 para 100, mas tanto o PS como o PSD [Partido Social-Democrata] propõem um aumento de 80 para 90. Tal deve-se ao aumento de eleitores por causa do recenseamento automático, tudo para que a comunidade portuguese fique mais bem representada. Que outras propostas partiram dos conselheiros? O aumento do nosso orçamento. Propusemos mais de 400 mil euros, mas só autorizaram 250 mil. Se houver reunião do plenário, todos os conselheiros do mundo têm de ter um orçamento adequado. O adiamento das eleições é alheio ao conselho. Inicialmente, foi dito que iria ser implementado o projecto piloto do voto electrónico nas nossas eleições, mas parece que isso não vai avante. Porquê? Não nos deram razões preponderantes. Ficámos com a sensação de que o projecto piloto do voto electrónico está suspenso. Reunimos com um representante do Ministério da Administração Interna (MAI) que diz que vai haver uma alteração substancial, de tal forma que, se os eleitores não conseguirem receber o voto postal, podem votar pessoalmente. Mas isso não resolve o problema, porque há países onde votar implica longas horas de viagem. Mas voltando à lei do CPCP, todos os partidos esperavam a proposta do PS, mas no dia da reunião o PSD disse que ia apresentar também uma proposta sobre a mesma lei, com novas ideias, a fim de dar mais dignidade aos conselheiros, incluindo a criação de um passaporte de serviço especial. Queremos que as eleições para eleger os membros do CPCP decorram no segundo semestre de 2023, mas está tudo dependente da alteração da lei para podermos marcar as eleições. Tanto o PSD como o PS concordaram ainda, por exemplo, que haja uma consulta obrigatória ao CPCP em matérias políticas relacionadas com a comunidade. Isso não tem acontecido. Não. No caso do pedido de nacionalidade dos netos de portugueses pediram. Mas queremos que seja sempre, pois somos um órgão consultivo. A nossa proposta de revisão passa também pela integração, da parte dos conselheiros nos conselhos consulares das regiões onde residem. No nosso caso, não temos problemas em Macau porque temos boas relações com o cônsul, mas noutros países e regiões, se não houver boa relação, as reuniões não acontecem. Queremos também maior paridade nos órgãos do CPCP. Pedimos também um gabinete de apoio, porque os conselheiros trabalham todos por sua iniciativa, queremos uma estrutura melhor, com mais funcionários para a emissão dos pareceres. Acha que o papel do CPCP tem sido subaproveitado? Da minha parte, em Macau, por causa da nossa boa relação com o cônsul, as coisas funcionam bem. Mas Portugal só se lembra de nós quando estamos aqui [em Lisboa]. Não é agradável dizer isso. Falamos com o Presidente da República e ele diz-nos que tem sensibilidade para com o assunto, e diz que somos os embaixadores de Portugal lá fora. Disse-lhe que as nossas associações de matriz portuguesa promovem a cultura e a gastronomia, inclusivamente na área dos negócios. Ele [Marcelo Rebelo de Sousa] disse que é bom continuar a apostar na diversificação económica, sem depender do jogo, continuando Macau a ser uma plataforma. Nós, conselheiros, somos da opinião unânime de que temos de ser ouvidos. Desta vez, com os grupos parlamentares, penso que estão mais sensibilizados. Focamos o nosso discurso no CPCP e não noutras áreas. As associações de matriz portuguesa enfrentam dificuldades de financiamento. Acha que Portugal deveria dar-lhe uma atenção especial? A Casa de Portugal é como uma miniatura de Portugal em Macau. Há o apoio ao associativismo, mas o valor é uma miséria e nem dá para pagar a electricidade. O dinheiro acaba por não conseguir abranger Macau. A Associação dos Macaenses também promove Portugal. Espero que o país mostre maior carinho para com essas associações que trabalham arduamente. Sem elas Macau não tem a sua especificidade, que é acarinhada pela República Popular da China. Eu sei disso porque tenho contactos. Eles querem que continuemos a trabalhar para esse efeito. Com o projecto do voto electrónico para o CPCP suspenso, vai demorar bastante tempo até que os emigrantes possam votar online. Não sei porque demora tanto tempo. Não sabemos o porquê de tanto tempo. Da reunião com o MAI entendemos que há mais vontade de continuar com o voto postal e presencial. Não se tocou uma palavra na questão do voto electrónico e não sabemos qual o calendário. Sobre a questão do não pagamento do complemento de pensões a reformados fora de Portugal. Defende que foi um erro técnico do Ministério das Finanças. Houve uma falha técnica que não partiu da vontade do primeiro-ministro [António Costa]. Não é possível que o universo dos pensionistas a viver fora de Portugal, que é reduzido, possa ficar de fora deste complemento extraordinário de pensões. Não é um valor significativo, não vejo razões para a discriminação. Simplesmente esqueceram-se que a palavra “nacional” abarca apenas os idosos que residem em Portugal. Os idosos em Macau perderam cerca de 30 por cento do valor real das pensões desde a transferência de soberania, não ganham as sete mil patacas todos os anos e temos ainda de considerar a inflação. Reuniu com dirigentes da Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal. A situação que Macau vive relativamente à pandemia está a atrapalhar a vida aos empresários. Cem por cento. O que é que os jovens chineses e macaenses pensam? Desenvolvem o comércio online e querem que que a população local conheça melhor os produtos portugueses através desta plataforma online para depois ser mais fácil entrar no mercado chinês. O segundo passo é resolver a inspecção e legislação sanitária. A única carne que é possível exportar para a China é a carne de porco, sem a parte da cabeça. O resto tem de ser submetido à inspecção sanitária e a um percurso grande. Pergunto: um empresário de Macau consegue fazer isto? Não, tem enormes gastos. Além do vinho e carne de porco, nada mais pode entrar. O mercado de Macau é muito pequeno. Há muitos entraves de natureza burocrática para que a plataforma de Macau funcione em pleno? Tem de haver, da parte de cada país, uma discussão sobre as questões de inspecção e higiene sanitária. O Brasil é o país mais avançado nesse aspecto, porque o açúcar e a carne de vaca podem entrar, por exemplo. Tudo depende da iniciativa do país que exporta, por isso Portugal tem de ter mais iniciativa nesse sentido. Foi notícia a perda da residência dos delegados do Fórum Macau. O que pensa sobre isso? Quando fizeram a nova lei da emigração não tiveram essa sensibilidade. Não alertaram o Governo, que não fez por maldade. Tenho acompanhado o processo e cruzo-me com os delegados, que falam comigo. É preciso resolver esse assunto, por uma questão de dignidade. Nesta fase, não deveria ter sido feita esta alteração, porque o Fórum Macau é reconhecido pela própria China e os países de língua portuguesa. Os delegados têm de ter qualidade de vida para fazer este trabalho. Que balanço faz do mandato de Paulo Cunha Alves e expectativas para o novo cônsul, tendo em conta a progressiva redução da comunidade portuguesa? Não temos nenhuma queixa do doutor Paulo Cunha Alves porque ele resolve pontualmente todos os nossos problemas, incluindo as emergências dos portugueses em Hong Kong e alguns pensionistas de Macau que ficaram retidos em Hong Kong e que tiveram de tratar da prova de vida. Ajudou na emissão de vistos para chineses viajarem para Portugal bem como outros assuntos. Conversámos sobre a saída gradual dos portugueses e o sentimento geral que se vive na comunidade.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteMaló de Abreu, deputado do PSD pelo círculo Fora da Europa: “Macau merece uma atenção redobrada” António Maló de Abreu já visitou muitas comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo, mas Macau continua a não constar do roteiro devido à imposição da quarentena. O deputado social-democrata pelo círculo Fora da Europa na Assembleia da República está, no entanto, muito atento ao ensino da língua portuguesa, à falta de apoios às associações e à pouca atenção das autoridades portuguesas face ao território O seu objectivo é ir a Macau duas vezes por ano. Ainda não lhe foi possível. Neste momento não sabe ainda quando visitará o território. Tenho visitado as maiores comunidades portuguesas ou aquelas onde há mais dificuldades, como é o caso dos EUA, África do Sul, Venezuela. Espero que o mais rapidamente possível a situação da pandemia permita que a quarentena não seja tão extensa. Tenho feito alguns contactos, esperando que a situação melhore. As dificuldades de que fala prendem-se com as dificuldades no voto, no funcionamento dos consulados e embaixadas? Há de tudo um pouco. Temos locais em que as nossas comunidades estão muito envelhecidas, com questões sociais graves. Falo de dois casos, pelo envelhecimento e da situação política que se vive, que é o da Venezuela e África do Sul. O Estado português tem de estar muito atento a estas comunidades, sobretudo pelas questões sociais. Tem havido grande fuga de portugueses dessas comunidades. Mas há outras que também são importantes, como a dos EUA, onde a situação é mais estável, ou a do Canadá. Também dou especial atenção às comunidades que estão nos países de língua portuguesa. Estive em Timor-Leste, mas quero ir a Macau para conhecer melhor a comunidade portuguesa. Dos contactos que tem tido quais são as grandes problemáticas endereçadas à comunidade de Macau? No geral há um grande enfraquecimento dos consulados, sobretudo devido à perda de recursos humanos, não podendo dar resposta da melhor forma às solicitações que são feitas pelas pessoas. Anuncia-se até uma greve dos funcionários da rede consular e é a primeira vez na história que isto acontece. Seria grave para Portugal e está em causa o prestígio da própria instituição [Ministério dos Negócios Estrangeiros]. Tanto mais que já houve reuniões do ministro com os sindicatos e pareceu-me que tudo estava a ser resolvido. Mas percebi, pelo Orçamento de Estado, que nada está a ser resolvido, porque não existem verbas para a actualização dos salários ou a contratação de novos funcionários. Os consulados são o braço armado de Portugal junto das comunidades portuguesas. Não podem ser muito burocratizados nem muito formais, devem ser verdadeiras casas de Portugal. Infelizmente, a nossa rede consular tem sido depauperada e abandonada, e está hoje numa situação muito grave. Há promessas de que se irão resolver estes assuntos, mas não vejo solução à vista com a política que tem sido seguida. O que pensa do ensino do português no estrangeiro, sendo esta uma questão das comunidades que também tem sido muito abordada? Também está muito abandonado. É preciso um reforço, porque a língua é algo que nos deve unir a todos. O ensino do português é fundamental no estrangeiro e Macau terá especificidades que preciso de conhecer in loco. Admito que haja em Macau dificuldades acrescidas e penso que deveríamos marcar muito bem a nossa posição em Macau para não chegarmos um dia destes, pacientemente, ao fim da nossa presença em Macau, que é o que eu, infelizmente, acho que vai acontecer, em função de uma falta de política de apoio à nossa língua, cultura, associações, instituições e até à nossa comunicação social. No geral, na diáspora, a comunicação social é muito importante para manter a ligação entre as pessoas, há um investimento que deveria ser feito e que não se tem realizado. Temos a Escola Portuguesa de Macau (EPM) que é totalmente financiada pelas autoridades locais. Também tem sido um dossier esquecido pelo Ministério da Educação em Portugal? Interpelei, durante a discussão sobre o Orçamento de Estado, o ministro da Educação, sobre isso. Há duas escolas, Macau e Bissau, estão a zeros no Orçamento de Estado. Isso é muito estranho, e revela, no fundo, um afastamento do Estado relativamente à necessidade de reforço da nossa presença nessa área específica. Em Luanda há um grande reforço de verbas, e muito bem. Temos de ter uma rede pública em sítios estratégicos, capitais dos países de língua portuguesa ou sítios onde haja uma grande comunidade portuguesa deve haver, pelo menos, uma rede de escolas públicas financiada pelo Estado português. Temos de investir fortemente em Macau para que se aprenda o português nas condições necessárias. Não basta a EPM, penso que deveria haver uma grande plataforma do ensino do português, e essa é uma das falhas que existe. O Instituto Camões tem falhado? Tem sido absolutamente insuficiente. Deveria ser criada uma grande plataforma para o ensino da língua, numa espécie de telescola em que havia aulas, cursos e um canal dedicado exclusivamente ao ensino do português. Seria um canal difundido internacionalmente com conteúdos disponíveis em qualquer lugar, 24 horas por dia. As associações de matriz portuguesa que existem em Macau vivem hoje com mais dificuldades financeiras. O Estado português tem de dar mais atenção a este ponto? O apoio ao associativismo é fundamental e deve ser fortalecido. Estas são casas onde se mantém a cultura portuguesa que, de outra forma, morrerá, como tem morrido onde não se tem feito investimentos. Macau merece uma atenção redobrada, ainda para mais se quisermos manter ou intensificar as nossas relações com a China, que é um parceiro com quem temos de estabelecer laços mais fortes. O nosso local de eleição para estabelecermos as nossas plataformas de movimentos é a partir de Macau. É com portugueses em Macau, sentindo-se bem, com um conjunto de garantias, como a escola ou as associações, é fundamental. O papel de Macau como plataforma está muito presente no discurso político, mas há vozes que dizem que essa função não está ainda devidamente aproveitada. Os empresários portugueses continuam a não desfrutar dessa plataforma como deveriam? O nosso passado histórico em Macau é tão forte e intenso que a nossa presença naquela zona do mundo deveria passar por uma plataforma “logística” com base em Macau. Seria a partir dali que os nossos interesses seriam defendidos, incluindo para Pequim. Desvalorizar Macau como tem sido desvalorizado… não direi ainda abandonado. Mas é um grave erro de estratégia política se mudarmos a nossa direcção para Pequim em vez de instalarmos o nosso porta-aviões em Macau. A integração regional de Macau no país acontecerá, a seu ver, ainda antes de 2049? Espero que se cumpra o prometido, mas é uma questão que se prende com a nossa presença. Se os portugueses que vivem em Macau forem lentamente deixando o território, diria que é natural que antes dessa data não tenhamos nada a ver com Macau, o que é absolutamente lamentável. É como hoje não termos já nada na Índia, quando temos fortes raízes em Goa, onde deveríamos ter um consulado forte. Ou reforçamos fortemente a nossa presença em Macau, ou então é natural que os portugueses se sintam desiludidos e abandonem progressivamente o território, o que terá custos. Macau terá um novo cônsul em breve, Alexandre Leitão, embora a confirmação oficial ainda não tenha chegado. Que expectativas deposita neste nome? Se se confirmar, julgo que Macau terá um excelente cônsul-geral, com quem tenho afinidades pessoais. Espero que ele possa ajudar, trabalhando com a comunidade e com as autoridades locais. Será um excelente representante de Portugal e terá de lutar para melhorar as funções do seu consulado, motivando os portugueses que lá permanecem a manterem a sua presença. Apresentou uma proposta para a retirada do termo “cidadão nacional” do projecto do Governo português que dá apenas o complemento excepcional de pensão apenas aos reformados que vivem em Portugal. Vamos defendê-la publicamente em plenário amanhã de manhã [esta entrevista realizou-se um dia antes da sessão plenária de apresentação]. É a nossa grande proposta sobre as comunidades portuguesas, pois entendemos que não há portuguesas de primeira e de segunda, todos são iguais nos seus deveres, mas também o devem ser nos seus direitos. Não faz sentido que haja um suplemento de apoio às famílias em Portugal que não seja estendido aos portugueses que estão lá fora. É uma questão de igualdade de tratamento e de direitos. Uma outra proposta feita pelo PSD prende-se com a alteração da lei do Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP). O que está a falhar neste campo? Apresentaremos essa proposta até final deste mês. O CCP já ultrapassou largamente o seu prazo de eleição. Esperamos muitos meses pela proposta de alteração da parte do Partido Socialista, mas isso não aconteceu. Essa proposta tem muito a ver com as propostas já feitas pelos conselheiros, que estão no terreno e conhecem a realidade das comunidades portuguesas. Uma das ideias é alargar o Conselho, haver mais reuniões periódicas, fazer-se a experiência da eleição com o voto electrónico, serem mais ouvidos e ser obrigatório um parecer do CCP em algumas matérias. É também importante terem uma estrutura própria. Queremos que o CCP passe a ser escutado e tenha a dignidade que merece. Temos de acolher muitas das suas preocupações. A ideia do projecto piloto do voto electrónico é para que depois se possa estender às restantes eleições. Sou a favor do voto electrónico e acho que um dia destes todas as eleições decorrerão desse modo. É inevitável. Não vejo da parte do Governo vontade em trabalhar nesse sentido. Sabemos que a participação eleitoral da diáspora é lamentável, as cartas não chegam, há países onde os votos nem saem do correio. Também estamos muito disponíveis a alterar a lei eleitoral. Somos 1.500 milhões de portugueses na diáspora com direito de voto. Somos, no PSD, a uma maior representação de deputados no círculo da emigração, mas isso passa por uma maior participação dessas pessoas. Não temos de ter medo de encontrar as fórmulas necessárias para que haja uma maior participação nas eleições. AR | Proposta votada Foi esta quarta-feira que o deputado António Maló de Abreu apresentou a proposta do Partido Social Democrata de alteração do decreto-lei sobre o apoio extraordinário concedido aos pensionistas, no sentido da inclusão dos reformados que não residem em Portugal. A apresentação foi feita no âmbito da discussão, na especialidade, do Orçamento de Estado para o próximo ano. Na sua intervenção, o deputado disse que o Partido Socialista, no poder, “fez publicar um decreto-lei que abrange apenas os pensionistas residentes em território nacional”, acabando “por excluir liminarmente os que se encontram emigrados, tratando-se de uma manifesta injustiça, desprezando os mais velhos da nossa diáspora”. Disse ainda Maló de Abreu: “não pode haver portugueses de primeira e de segunda”. A proposta foi votada ontem na Assembleia da República, já depois do fecho da edição, não tendo sido possível saber de antemão o resultado.
Nunu Wu Entrevista MancheteWu Zhiwei apostou na exportação de vinho português que ele próprio produz na Quinta da Marmeleira “Quero trazer turistas chineses para Portugal” Wu Zhimei, empresário de Macau, hoje vice-presidente da Câmara de Comércio e Indústria China-Portugal, está presente na MIF para divulgar os vinhos portugueses que produz na Quinta da Marmeleira, perto de Alenquer, um espaço que comprou e desenvolveu, não apenas para a produção vinícola, mas também para explorar o enoturismo, sobretudo com turistas vindos da China, a quem pretende mostrar Portugal, a sua gastronomia e cultura Por que razão escolheu Portugal para expandir os seus negócios? Em 2014, resolvemos responder à chamada do Governo da China, a propósito da iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”. Como a China e Portugal, graças a Macau, têm um intercâmbio histórico de centenas de anos, escolhi Portugal como o país onde procurar oportunidades de negócio. Resolveu então comprar uma quinta para a produção de vinho, entre outras actividades… Na verdade, eu também gosto especialmente das paisagens portuguesas e de provar vinhos. Porque escolhi este negócio? De facto, experimentava os vinhos tintos portugueses em Macau e considerava que esses vinhos tintos portugueses apresentavam uma boa qualidade e um excelente rácio entre a qualidade e o preço. Parecia-me que a divulgação desses vinhos não era suficiente, por isso decidi para ir para Portugal e entrar no negócio do vinho. Assim, desde então que passei a importar vinhos portugueses para a China, também com o objectivo de responder aos desígnios da política nacional de fazer de Macau uma plataforma para os Países de Língua Portuguesa (PLP). Também considerei que se pode melhorar a capacidade de produção dos vinhos portugueses, em termos do rácio de qualidade-preço alto. Tenho passado mais tempo em Portugal do que em Macau, desde 2014, por posso dizer que sou um participante da iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”. Porque decidiu comprar a Quinta da Marmeleira e não outra? Como a Quinta da Marmeleira pertence à região de Lisboa, além de ser uma zona legítima dos vinhos, em 2018, a cidade de Alenquer, em que a quinta fica, foi classificada como Cidade Europeia do Vinho. Na verdade, trabalho no sector imobiliário, por isso tenho algum conhecimento na observação do sector, devido à minha experiência. A conveniência dos transportes também influenciou a nossa preferência. Por exemplo, do aeroporto de Lisboa até à quinta só gastamos 20 minutos de automóvel, e do centro da cidade para a quinta são apenas 40 minutos. Mas o seu projecto não se limita apenas à produção e venda de vinho. Que outras áreas pretende desenvolver? Naquele momento, em 2014, quando fiz este investimento, pensei em desenvolver turismo cultural na quinta, para atrair turistas chineses e outros. Achei interessante que experimentassem, conhecessem e provassem os vinhos in loco e que compreendessem como se produz o vinho. Na realidade, é um processo muito interessante, que pode atrair muita gente. Em vários locais de Portugal, já existe este tipo do chamado enoturismo, nomeadamente no Douro. Actualmente, estamos já a avançar com o projecto de um resort na quinta. Já há dois anos que temos preparados os autocarros para as excursões e outros aspectos complementares, incluindo também alguns elementos da cultura chinesa, tal como esculturas em pedra dos “Vinte e quatro exemplos filiais” e dos 12 horóscopos chineses. Qual é a situação actual do seu projecto de resort? Já entrou em funcionamento? A situação… não vou dizer que o Governo português trata lentamente dos pedidos, porque existem variados factores como, por exemplo, a pandemia. Mas estamos à espera da aprovação do Governo português. Isso quer dizer que o projecto está parado? Não. Há sempre muito para fazer, para melhorar. Desde o início deste ano que voltámos a arrancar com o projecto. Os trabalhos relacionados com as vinhas, os materiais de construção e os autocarros para as excursões estão preparados. A quinta tem uma história de 500 anos, por isso existem lá muitos engenhos antigos que faço questão de manter, esperando que os turistas possam ver a diferença entre os modos antigos e as técnicas modernas de produção de vinho. Temos, portanto, muitas coisas que vêm de longe e têm uma história de centenas de anos. A minha intenção é continuar a preservá-las, incluindo as paredes dilapidadas e antigas. Quanto é a proporção dos compradores oriundos da China? 80 por cento dos vinhos da quinta são exportados para o Interior da China. Actualmente, as empresas estatais como a China Palace Hotel, o Grupo de Construção de Comunicações da China e muitos hotéis são os nossos clientes. Os nossos vinhos também estão disponíveis nas plataformas de negócio electrónico como, por exemplo, a JD.com. Acredito que, no futuro, a China pode vir a tornar-se no maior comprador dos vinhos no Mundo. Pode dizer-nos qual o volume de negócio de venda dos seus vinhos? Não fazemos a estatística sobre o volume de negócio. É difícil calcular um número porque a quantidade de uvas continua a aumentar e a colheita acontecerá nos próximos anos. Quer dizer que não se trata de um negócio que implica um lucro imediato? Não. Quando comprei a quinta, resolvi remover as espécies que achava más e plantei outras espécies. Naquele momento, muitas pessoas explicaram-me que ia perder muito dinheiro, porque o crescimento das vinhas leva o seu tempo e as uvas dos primeiros anos não são apropriadas para a produção de vinho, ou seja, era preciso esperar pelo menos três anos para que as uvas pudessem ser utilizadas com esse fim. Ainda assim, decidi a alteração, porque queria plantar as melhores espécies naquela região. A pandemia também não veio ajudar… Apesar de sofrermos com a pandemia, insistimos na produção de vinhos de qualidade. Enquanto exportadores de vinhos, a boa qualidade será sempre o conceito da nossa empresa. E tem mesmo de ser assim, porque não só os mercados do Interior da China, mas também os de outras regiões, têm requerimentos rigorosos e elevados. Actualmente, as pessoas do Interior da China têm um nível elevado de consumo de vinho. Qual é o papel da filial do grupo em Macau? A filial em Macau também serve como uma das empresas vendedoras do grupo. Em Hengqin, temos um armazém muito conveniente para colocar e manter os nossos produtos. Em Macau, os nossos vinhos já estão disponíveis nos supermercados e nos melhores hotéis. Quais os melhoramentos que precisam de ser feitos para que Macau cumpra o seu papel da plataforma entre a China e os países lusófonos? Na realidade, acho que o Governo de Macau já faz um grande esforço nessa área e as políticas nacionais também deram muitos apoios à importação de produtos dos países lusófonos. Por isso, não sinto que existam aspectos em que o Governo precise de melhorar, ou seja, na minha opinião, o Governo já desempenha bastante bem o seu papel. Tem ideias para a Grande Baía ou para a zona da cooperação aprofundada de Henqin? Sim, de facto, desejamos e estamos prontos para participar nesses projectos regionais e nacionais. No entanto, nesta fase não posso divulgar mais pormenores. Só os anunciarei quando os concretizar.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteMário Godinho de Matos, embaixador: “Macau será uma peça importante no ‘puzzle’ da Grande Baía” Mário Godinho de Matos fez parte do Grupo de Ligação Conjunto Luso-Chinês entre 1989 e 1991 e recorda um processo diplomático que correu bem, mas que não é hoje estudado e lembrado como devia. Questionado sobre o actual esvaziamento da comunidade portuguesa, o embaixador diz tratar-se de um ponto negativo tendo em conta que as negociações visavam a fixação de chineses e portugueses no pós-1999 Falou do facto de as negociações sobre a transição de Macau terem sido bem-sucedidas, mas lamentou que esse ponto seja hoje desconhecido. É algo que caiu no esquecimento das autoridades portuguesas? Seguramente que não caiu no esquecimento, porque todo este processo foi muito acompanhado aqui, naquele tempo, e é muito relevante no nosso relacionamento bilateral com a China. Creio que no plano académico, por exemplo, poderíamos ter muito a ganhar se falássemos mais nesses tempos. O processo é tão rico e tem tantos aspectos que podem ser agora bem estudados que merecia mais atenção. Como olha para a postura das autoridades portuguesas em relação à RAEM ao fim de todos estes anos? Poderia haver uma maior proximidade? Nos anos 2000 houve uma grande proximidade, sobretudo no plano económico, pois houve muita gente a fazer negócios e a dirigir-se a Macau. Creio que aí o processo de transição cumpriu a sua tarefa, que era garantir ao território o seu desenvolvimento e a modernização ou aperfeiçoamento. A partir de 2019, com a pandemia, houve uma travagem, que é geral, e que se veio a repercutir no território. Falamos de um aspecto particularmente sensível para a RPC que tem a política de zero casos covid, algo que é muito limitativo para a realização de actividades. Temos assistido a cidades paralisadas e isso, de facto, não é bom para o desenvolvimento económico, cultural e social do território. É uma questão universal e que aqui, talvez, tenha tido maior incidência. Há um progressivo desaparecimento da comunidade portuguesa em Macau. É um ponto negativo tendo em conta as negociações que decorreram no âmbito da transição? Sim. O grande objectivo das negociações, que se prolongaram durante 11 anos, e tudo o que serviu de base à Declaração Conjunta, era dar garantias à população, aos portugueses que quisessem ficar em Macau e os que sentissem vontade de lá ir, bem como de os fixar. Veremos se quando a pandemia estiver mais resolvida se tudo poderá ficar como na situação anterior ou até melhor. Mas o objectivo era mesmo o de fixar a população portuguesa e também chinesa e dar ao território todas as condições para se desenvolver e aperfeiçoar as relações no âmbito político. Disse que houve falhas no processo de negociação, nomeadamente ao nível do pagamento das pensões dos funcionários públicos. Que outros aspectos menos bons pode apontar? Nos três primeiros anos do Grupo de Ligação fizemos a adesão aos acordos internacionais, entre outras coisas. Estávamos numa fase muito inicial do processo e, digamos, o objectivo era criar condições para que tudo aquilo funcionasse. Lembro-me do gabinete de tradução jurídica, um departamento importantíssimo para casar duas legislações. Havia obstáculos de todo o tipo e questões que precisavam, às vezes, de ser clarificadas. A questão da data [para a transição] arrastou-se muito tempo, porque os chineses pretendiam um processo simultâneo com Hong Kong e isso, para nós, era uma questão de princípio. A questão da data foi difícil de negociar. Para os chineses a barreira era 2000, e por isso é que encontramos esta data [20 de Dezembro de 1999], que fosse perto do ano 2000 e não colidisse com a data de Hong Kong. Foi uma negociação intensa, com uma flexibilização da parte chinesa, que tinha interesse em que tudo corresse bem, sempre tendo Taiwan como objectivo final. Nesse sentido, como olha hoje para a implementação do conceito “um país, dois sistemas”? Vamos ter de acompanhar muito o que está para vir. No plano dos princípios o sistema continua vigente e esperamos que assim aconteça. Mas essa caminhada para Taiwan tem tido algumas dificuldades de percurso e não está claro que passos serão dados nesse sentido. A integração de Macau na China, tendo em conta os vários projectos de cooperação regional, vai ser mais rápida do que se esperava? Penso que sim, sobretudo no plano económico, porque o dinamismo da região é de tal ordem que me leva a crer que, na integração da zona da Grande Baía, Macau andará à frente e será uma peça importante nesse puzzle. Aula aberta na UL para alunos de Ciência Política O HM falou com Mário Godinho de Matos no contexto de uma aula aberta que o embaixador deu no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa na última sexta-feira. Perante uma plateia de alunos de Ciência Política, o responsável começou por dizer que o “processo de transição de Macau teve os seus altos e baixos, gerou críticas, mas a verdade é que foi um exercício diplomático específico, curioso, numa zona que nos dizia muito, pois estávamos ali há cinco séculos, e que se resolveu com algum êxito”. “Isso é de assinalar e talvez mereça ser mais conhecido”, acrescentou ainda, lembrando que o caso de Macau foi em tudo diferente da restante descolonização portuguesa no pós-25 de Abril, um “processo totalmente descontrolado”. Mário Godinho de Matos lembrou que houve três pilares essenciais neste processo de transição, nomeadamente a língua, os funcionários públicos e a legislação. Acima de tudo, “não faltavam meios, eu tinha luz verde para contratar o número de técnicos necessários para as negociações”. “Os chineses queriam que a transição se fizesse ao mesmo tempo da de Hong Kong, mas não queríamos um processo igual, pois os territórios eram diferentes e havia especificidades que tinham de ser preservadas, tal como a boa relação com os chineses e a nossa presença histórica de 500 anos.” Que futuro? Mário Godinho de Matos afirmou que o caso de Macau poderá agora voltar a ser mais falando tendo em conta a questão de Taiwan, uma vez que o princípio “um país, dois sistemas”, pensado por Deng Xiaoping, foi estabelecido para tratar a situação da Ilha Formosa. “Deng Xiaoping pensou que com a institucionalização deste conceito único haveria confiança, da parte das autoridades de Taiwan, e seria um passo importante para as negociações com a Formosa. O comércio entre a China e Taiwan é intensíssimo, mas, a verdade é que, no plano político e social, vemos que há uma cada vez maior desconfiança entre as duas partes e não sabemos muito bem como isto vai terminar. O que se esperaria é que alguma negociação fosse possível à semelhança do que aconteceu com Macau e Hong Kong”, adiantou. O embaixador não deixou de destacar a existência do Fórum Macau que “envolve a China, Portugal e os PALOP” e que, além da ligação bilateral específica [entre a China e Portugal], traz “um desenvolvimento importante”. “É uma iniciativa exclusivamente chinesa e não deixa de ser curioso que a China tenha encontrado essa via para se relacionar com os países de expressão portuguesa e com Portugal”, concluiu.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteJosé Leitão, representante do escritório da MdME em Portugal: “Continuamos convictos da retoma de Macau” Depois de anos a operar em Portugal em parceria com um escritório de advogados local, a MdME estabelece-se agora no país por conta própria, apostando na assessoria jurídica ligada ao investimento entre Portugal e a China. José Leitão, responsável pelas áreas de compliance e Direito público, fala dos planos de expansão do escritório que aposta cada vez mais na internacionalização A MdME abre agora oficialmente o escritório em Lisboa, mas já tinham presença em Portugal há algum tempo. Tínhamos feito o trabalho preparatório e operamos desde que temos a licença da Ordem dos Advogados, há alguns meses. Mas estamos agora a fazer o lançamento [oficial] porque pudemos mudar de instalações e aproveitamos o facto de ter mais sócios em Portugal. Na realidade, já trabalhávamos há alguns anos com Portugal fruto de uma parceria que tínhamos com os escritórios da Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva & Associados. Agora operamos como escritório independente. Quais os principais projectos que pretendem desenvolver a curto prazo? Queremos recrutar mais profissionais, crescer e fazer o percurso normal de uma sociedade de advogados internacional em expansão. Temos planos a longo prazo, estamos aqui para ficar e esse é o passo seguinte para a nossa expansão, quer pela natureza das operações e a nacionalidade dos advogados, pois temos um ADN chinês e português, quer pela proximidade dos dois países e pelo fluxo de investimento que existe nos dois sentidos. Achamos que uma sociedade internacional nascida em Macau está tendencialmente posicionada nestes dois fluxos de investimento. O nosso plano é fazer crescer a nossa assistência e sermos a sociedade internacional de advogados que assiste os clientes nas suas necessidades jurídicas e nas suas relações entre Portugal e China. Mais do que uma questão estratégica, o estabelecimento do escritório em Lisboa não é também uma questão de sobrevivência, tendo em conta a situação em Macau, com a redução da comunidade portuguesa, por exemplo? O passo natural para as sociedades de advogados em Macau é mesmo a internacionalização? Acho que sobrevivência é uma palavra um pouco pesada. O plano de internacionalização com uma presença em Portugal é até do tempo pré-pandemia. Obviamente que a pandemia veio desacelerar o ritmo e obrigou-nos a gerir os nossos esforços de outra maneira. Já sentíamos esta necessidade. Independentemente das circunstâncias que acontecem neste momento em Macau, compreendemos que elas têm impacto na comunidade portuguesa, porque torna difícil as viagens, as pessoas não têm como tirar férias, e para nós faz sentido uma diversificação. Macau é o centro da nossa actividade, continuamos a ter um projecto de longo prazo para Macau. Continuamos convictos da retoma de Macau e do regresso à normalidade. Há aqui um elemento de diversificação e internacionalização. Não lhe chamo sobrevivência, mas [este passo] ajuda, evidentemente. Esta estratégia em relação a Macau passa por Hengqin? Estamos atentos a todos os desenvolvimentos que estão a ser feitos no âmbito do estreitamento da ligação de Macau com a China. Hengqin surge no contexto do estreitamento de relações com a China, tal como a Grande Baía, e queremos fazer parte desse projecto. Achamos que Hengqin está ainda numa fase de evolução e ainda se vai revelar num futuro próximo qual será o papel de Macau e dos profissionais como os advogados. Mas Hengqin faz, sem dúvida, parte dos nossos planos e é um horizonte para o qual olhamos com interesse. Promovem actividades em diversas áreas como consultoria e alta finança. Que perfil traça dos vossos clientes? São clientes que, ou querem fazer o movimento para a entrada no mercado português, seja a título individual ou colectivo, ou são clientes que estão cá em Portugal e que sentem necessidade de ter um serviço jurídico mais focado neles e ciente das especificidades culturais. É fundamental trazermos essa compreensão aos clientes. No fundo, somos a ponte entre estas duas culturas. Eu vivi quase 14 anos em Macau, temos advogados chineses, e temos uma polinização cultural que é um elemento diferenciador. O nosso perfil de cliente é aquele que já tem alguns investimentos no mercado português ou quer fazer investimentos com algum volume e têm necessidade de ter um maior apoio na área do Direito português e de um aconselhamento estratégico. A entrada no mercado com barreiras de língua, culturais e jurídicas pode ser um processo difícil. Nós fazemos a assessoria jurídica, mas também ajudamos os clientes a navegar nesta nova realidade. A China investe em Portugal há muitos anos, houve a política dos vistos Gold. Como descreve hoje o investimento chinês em Portugal? Portugal é um parceiro de negócios natural da China, e somos o mais antigo de todos. Achamos que a relação comercial entre Portugal e a China é estratégica para os dois países. Evidentemente quando se criam certas condições privilegiadas de investimento existe um ciclo de um maior investimento, menos focado e mais de oportunidades, e depois vai-se refinando até se tornar um investimento menos quantitativo e mais qualitativo. É isso que vai acontecer. Existe uma lente covid nos últimos dois anos que distorce todas as análises que se possam fazer, mas achamos que o apetite [pelo investimento] continua. O futuro vai ser marcado por investimentos mais estruturados e qualitativos, focados em áreas de interesse específicas. Macau pretende desenvolver o seu sector financeiro… E tem feito alguns desenvolvimentos, no âmbito do mercado das obrigações. Tem feito algumas reformas. A reforma do sistema financeiro tem sido feita e é uma área em que somos bastante activos. Face a esse mercado de obrigações, há interesse da parte das empresas portuguesas, incluindo no projecto da plataforma comercial? A questão da plataforma é uma discussão antiga. Parece um slogan. Não é um slogan, mas sim um desígnio. Como todos os desígnios demora tempo a ser implementado e depende de uma confluência de factores. Acho que estão a convergir mais. O mercado de obrigações é um sistema de capitalização de empresas interessante em Macau. Falta ainda, e achamos que temos um papel nisso, algum reconhecimento de parte a parte. Falta a sensibilização das entidades para o sistema jurídico que é semelhante ao português, o que oferece algumas garantias, nomeadamente o facto de as leis estarem em português. Em Macau, onde são emitidas e vendidas as obrigações, falta a sensibilização do mercado local para o que são as empresas portuguesas. Existe interesse, mas é preciso ainda algum trabalho de fundo de sensibilização e de um maior conhecimento das ferramentas dos dois mercados. É essa ponte que queremos fazer. Há ainda um desconhecimento, junto das empresas portuguesas, do potencial de Macau? É difícil dizer que há uma falta de conhecimento. Qualquer pessoa de qualquer empresa grande em Portugal reconhece que Macau é um mercado com potencial. Mas falta ainda o meio logístico na supressão da distância cultural que há entre as duas realidades. Macau continua a ser um mercado muito distante e que precisa de intérpretes que o conheçam bem para o auxílio nessa entrada [das empresas]. Até que ponto a política covid zero tem impacto nas relações comerciais entre os dois países e na vossa actividade em particular? A paralisação da entrada de pessoas não faz com que as situações jurídicas do dia-a-dia não continuem a existir. Continuamos a ter muito trabalho [com o mercado chinês]. Sentimos a economia e as perguntas que os nossos clientes nos fazem virados para a ideia de que estas restrições são a prazo. A ideia é como pode haver uma melhor preparação para o ciclo que virá a seguir. Penso que estas restrições são temporárias e o comportamento dos agentes económicos e nós, como auxiliar de negócios, terá a ver com isso. Acho que nos próximos meses as medidas vão começar a ser progressivamente aligeiradas e confio que, a curto prazo, teremos algo parecido com a normalidade.
Andreia Sofia Silva Entrevista ManchetePaul Pun: “Problemas sociais tornaram-se mais complexos” Recentemente escolhido para um novo mandato de três anos à frente do Conselho Profissional dos Assistentes Sociais, Paul Pun, que é também secretário-geral da Caritas, diz que há uma maior necessidade destes profissionais devido ao impacto da crise económica. Paul Pun fala da tendência de existirem mais jovens a escolher esta profissão e que, para já, não é a altura certa para flexibilizar o recrutamento ao exterior Acaba de ser escolhido para um novo mandato de três anos à frente do Conselho Profissional dos Assistentes Sociais. Que planos tem para este cargo? É a segunda vez que ocupo este lugar. Precisamos de seguir a missão principal segundo a lei, porque o Conselho tem como objectivo a promoção do desenvolvimento profissional dos assistentes sociais. Queremos manter bons contactos com a classe, ouvindo as suas ideias em prol do crescimento profissional. Temos cerca de dois mil assistentes sociais em Macau e há que garantir que seguem a direcção certa na prestação dos serviços à comunidade. Este não é o trabalho de uma só pessoa e todo o Conselho tem de trabalhar em conjunto. É apenas o meu segundo mandato e, para mim, é ainda uma novidade. Temos de respeitar as diferentes formas de pensar, é um trabalho de grupo. No meu dia-a-dia sempre servi os outros, e temos de continuar a fazer bem o nosso trabalho mesmo que os outros nem sempre tenham conhecimento disso. Acha que são necessários mais assistentes sociais, tendo em conta as questões que surgiram com a pandemia, como o desemprego e maiores dificuldades financeiras? Claro que hoje há uma maior procura por assistentes sociais, pois os problemas sociais tornaram-se mais complexos e é necessária mais ajuda para os que enfrentam maiores dificuldades. Esta é uma profissão que visa ajudar os que estão mais vulneráveis a encontrar esperança e um caminho por si próprios e junto das suas famílias. Claro que com mais recursos teríamos mais assistentes sociais para preencher esta lacuna. Se tivermos mais lares de idosos vamos necessitar de mais assistentes sociais. Actualmente, há um grande número de jovens interessados em fazer trabalho social, abraçando uma profissão em que podem ajudar a comunidade. Vejo, junto dos meus colegas, que há cada vez mais pessoas a aderir à área do serviço social, o que é uma boa tendência. Porque é que há uma maior procura por essa área profissional? Os salários são suficientemente atractivos? No passado, a profissão de assistente social não era muito atractiva, e muitos hesitavam na hora de a escolher. Mas agora esta área, não apenas por causa de uma maior estabilidade salarial, permite que os jovens conheçam mais pessoas e possam lidar com diferentes áreas, tendo um conhecimento mais profundo da sociedade. Os jovens procuram desafios e penso que este tipo de trabalho, apesar de ter muitas pressões e ser árduo, traz-lhes mudanças e melhorias. Sentem-se melhor se ajudarem o outro. Os assistentes sociais não têm um horário de trabalho fixo e têm, muitas vezes, de trabalhar muitas horas, prestando atenção às pessoas quando estas enfrentam problemas. Eu, quando faço trabalho social, não tenho pausas. Os jovens sabem que não é um trabalho fácil. Como descreve a qualidade dos cursos superiores na área do serviço social? Não basta olhar para as universidades locais e para a qualidade dos cursos que oferecem. O nosso Conselho já estabeleceu os critérios base para garantir uma prática de qualidade da profissão. Os cursos que temos em Macau estão num nível diferente dos do estrangeiro. As instituições do ensino superior de Macau têm a vantagem da sua localização. Mas claro que a profissão não pode ficar apenas restringida a Macau e temos de olhar para fora, para outras questões ligadas ao desenvolvimento do serviço social lá fora. Tudo para continuarmos a progredir na formação e captar mais profissionais. Não podemos dizer que somos melhores do que lá fora, ou que os cursos no estrangeiro são melhores do que os nossos. Temos de apostar no desenvolvimento dos nossos programas educativos. Eu estudei lá fora, mas também em Macau, portanto sei a diferença. Na verdade, gostei de estudar cá também. É necessária uma maior flexibilidade para contratar assistentes sociais do estrangeiro? Nós, como Conselho, não abordamos esse tema. Mas no trabalho de campo as pessoas pensam uma coisa diferente. Algumas pessoas podem defender que são necessárias oportunidades para profissionais de fora, mas há quem queira preservar as vagas para os locais. Não sabemos que progressos serão feitos a esse nível, mas penso que, actualmente, os locais precisam de emprego. Nesta fase, apenas os residentes podem ser assistentes sociais, mas se no futuro haverá maior abertura aos não residentes, tudo vai depender das necessidades do terreno. Posso dizer que, nesta fase, não é uma boa altura para recrutar profissionais lá fora. Será necessária uma discussão em prol de um ajustamento da legislação. Houve críticas sobre a falta de transparência acerca da escolha dos vogais para este Conselho. Alguns profissionais disseram não se sentir representados com este órgão. Esses problemas estão resolvidos? Temos toda a abertura para falar. O Conselho tem um papel único, temos membros propostos pelo Governo e outros pelo próprio Conselho. E da nossa parte temos uma total abertura, não queremos excluir ninguém, mas o número [de membros escolhidos pelo Conselho] é limitado. Respeitamos o desejo do Governo em recomendar membros para o Conselho. Há quem esteja satisfeito e quem não esteja, mas é a sociedade a expressar diferentes vozes. Respeitamos todos os contributos dados para a profissão de assistente social. Se um dia já não estiver no Conselho, não vou dizer que é uma injustiça. Foi um canal a que tive acesso para ajudar a desenvolver a profissão. Temos de respeitar o processo de decisão do Governo. O trabalho de assistente social enfrenta hoje mais desafios do que antes? Sem dúvida que é mais desafiante, embora ajudar os outros sempre tenha sido. Amanhã teremos mais desafios, mas isso não significa que os profissionais desistam ou deixem de ter ambições.
Andreia Sofia Silva Entrevista Manchete Via do MeioTereza Sena, historiadora: “Houve confiança do Imperador em Tomás Pereira” Acaba de ser lançado, em Portugal, o livro “Tomás Pereira e o Imperador Kangxi – Um Diálogo entre a China e o Ocidente”, editado pela Guerra e Paz, e da autoria de Tereza Sena, historiadora e ex-residente de Macau. Trata-se de uma narrativa histórica, com elementos ficcionais, do percurso do jesuíta português até à China e da relação especial que estabeleceu com o Imperador Kangxi. O objectivo é mostrar mais detalhes sobre a missão deste português jesuíta ainda pouco conhecido do grande público Quando começou o projecto para a construção desta narrativa histórica? Tudo partiu de um convite da embaixada de Portugal em Pequim, na pessoa de José Augusto Duarte [ex-embaixador] que fez uma proposta à Universidade de Macau em prol de uma maior divulgação da figura de Tomás Pereira. Este não é um trabalho académico, mas sim uma narrativa histórica destinada ao grande público. É uma obra síntese sobre Tomás Pereira, que é ainda desconhecido. Na altura, fiquei em Macau mais algum tempo e fui enquadrada na Universidade de São José com o objectivo principal de escrever esta obra, que poderá ser traduzida para chinês e para inglês. Decidiu então escrever sobre a relação próxima que Tomás Pereira teve com o imperador Kangxi. Esta foi a forma de abordar [o tema] e trazer um pouco para o lado português as relações sino-ocidentais e o papel de Macau, bem como os aspectos da acção dos missionários, com especial destaque para os jesuítas, devido ao papel que tiveram na corte imperial. Há todo um trabalho académico que foi feito sobre Tomás Pereira, sobretudo em 2008, uma série de iniciativas comemorativas dessa personalidade, quando se celebraram os 400 anos do seu falecimento. Nessa altura, do ponto de vista científico, ele era uma figura pouco estudada. Em toda a historiografia, mesmo dos jesuítas, dá-se sempre relevo a outras personalidades na corte de Pequim. Nessa altura surgiu o projecto, no seio do Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM), de reunir, com vários académicos, as diversas obras de Tomás Pereira, que estavam dispersas, nomeadamente as cartas. Que trocou com que personalidades? Dentro da própria Ordem, com os superiores e os companheiros, e temos algumas cartas trocadas com autoridades, algumas com o próprio rei de Portugal, e cartas de viagens que fez. Temos um texto, a pedido de um antigo mestre dele, o João Queirós, sobre o budismo na China. Mas esse foi um trabalho académico, aqui faço uma abordagem diferente, uma tentativa de construção de um quase romance, um guia do que foi a vida de Tomás Pereira, mas contextualizado. Isto porque pouco sabemos dele até à sua chegada a Pequim. Tentei fazer esse ajuste biográfico, construindo uma narrativa em que o Tomás Pereira aparece como protagonista, mas não como herói. Aparecem no livro uma série de conjunturas em que ele está inserido. Fui buscar textos, mesmo que não sejam do tempo do Tomás Pereira, que contextualizam a viagem marítima, a vida em Goa, a formação dos jesuítas, um pouco da história de Macau. Há depois uma segunda parte em que o protagonista entra directamente em cena e já é uma narrativa construída, mas onde fui buscar mais elementos à sua epistolografia [escrita de cartas]. Não só utilizei material que tinha compilado em 2008 como me socorri das Obras Completas de Tomás Pereira, que foram depois publicadas. Porque é que Tomás Pereira foi tão importante? Houve uma grande propaganda, por parte dos jesuítas franceses, com o Tratado de Nerchinsk [assinado em 1689], quando se conseguiu uma certa liberdade religiosa em Pequim, embora não fosse plena. Há que olhar para os conflitos entre as nações que existiam na altura. A Companhia de Jesus [a que pertencia Tomás Pereira] estava cada vez mais nacional e menos internacional, porque tinham membros de todas as nacionalidades. Os jesuítas eram criticados pela exclusividade da missão missionária na China por parte de outras ordens, que também queriam ter as suas missões e, como sabemos, a Companhia de Jesus teve a exclusividade, até certa altura, do trabalho missionário na China e no Japão. Houve a contestação dos direitos do Padroado também. Tomás Pereira foi um acérrimo defensor dos direitos do Padroado e assume um papel extremamente importante nesse aspecto, tendo sido atacado por muitos, acusado de estar ao serviço do Padroado. Sendo um jesuíta português de grande envergadura, e com assento na corte de Pequim, com contactos com o Imperador, ensinando-lhe música, e sendo-lhe confiadas algumas missões importantes, mesmo ao serviço da corte… Tais como? Uma delas foi o papel de mediador na assinatura do tratado sino-russo [de Nerchinsk]. Foi-lhe atribuída a responsabilidade sobre o tribunal das matemáticas, embora em conjunto com outro jesuíta. Houve uma confiança que o Imperador depositou em Tomás Pereira, que é, de facto, uma figura de relevo nas relações sino-ocidentais e é um português. Não é tão conhecido, porque todos falam do Mateus Ricci, por exemplo. Todos tinham o seu papel no seio da Companhia de Jesus, mas de facto Tomás Pereira não é uma figura tão popular como os outros. Esta relação com o Imperador Kangxi foi de facto especial. Creio que sim, embora tenhamos de ter sempre alguma precaução. Nestas narrativas jesuíticas sobre este conflito de interesses, de contestações, de Roma e de outras ordens, sempre com as pressões nacionais por detrás, qualquer gesto do Imperador, relativamente aos jesuítas, à Missão, à própria Companhia ou à Igreja, era exacerbado. Colocavam tudo nas cartas para que o Ocidente soubesse da sua relação privilegiada com o Imperador. Por isso temos sempre de ter alguma precaução. Os pequenos gestos que são descritos, de ofertas do Imperador, por exemplo, têm de ser interpretados como sinais que o Imperador dava de estima daquelas pessoas, e que os considerava seus cortesãos, embora respeitando uma hierarquia na corte imperial. Chegou-se a estabelecer uma espécie de relação de amizade entre os dois? É muito difícil de dizer, embora Tomás Pereira se tenha referido ao “grande amor” que o Imperador sentia por ele. Amor no sentido figurado, de respeito. A minha interpretação é que se tratou mais de uma relação de respeito e de confiança. Ao atribuir-lhe determinadas tarefas e missões o Imperador revela ter confiança em Tomás Pereira. Havia sempre um cerimonial, regras. Era uma relação sempre um pouco à distância, até porque o Imperador era sempre intocável. Não havia uma intimidade entre os dois como a concebemos no Ocidente. Eles poderiam, por exemplo, inquirir mais directamente o Imperador, enquanto os restantes cortesãos tinham de fazer um requerimento. Sente que, com esta obra, dá mais um contributo para o conhecimento da China, também, além da própria figura de Tomás Pereira? Sim. A ideia é também essa, mostrar e despertar a curiosidade do leitor que não está familiarizado com estas temáticas para este tipo de relações e sobre a presença de portugueses na China, neste período, com determinados objectivos. Perceber como se faziam os contactos, como se organizava a corte imperial chinesa e até como era o papel de Macau em tudo isto. Este tipo de livros praticamente não tem uma bibliografia porque é quase ficção, ainda que seja uma narrativa histórica. O livro tem muitos elementos ficcionados? Alguns. A parte da viagem, por exemplo. A infância. Inspirei-me em leituras que já tinha feito e em muitos textos que são aqui utilizados, [existindo elementos] que fazem parte do nosso imaginário sobre a Expansão e que nem são do tempo do Tomás Pereira. Fiz isso para mostrar, por exemplo, como era a vida a bordo. É uma narrativa plausível, e se ele não passou exactamente por aquilo, poderia ter passado. A ideia é dar a conhecer a vida destes homens e por isso não dei a Tomás Pereira o papel de herói, mas sim de protagonista de um movimento que envolveu muitos portugueses. Não se sabe a rota exacta que fez de Macau para Pequim, e aí aproveitei elementos dos escritos do Fernão Mendes Pinto, por exemplo. Foi uma conjugação de múltiplos textos que fazem parte da nossa memória colectiva.
João Luz Entrevista MancheteTiago Bonucci Pereira: “Não tenho dúvidas em relação ao interesse de empresas portuguesas em vir para cá” Apesar de ter sido fundada há pouco tempo, e com uma pandemia a mudar o mundo pelo meio, a Associação de Cooperação e Desenvolvimento Portugal-Grande Baía criou mais um elo numa amizade secular entre Portugal e China. Tiago Bonucci Pereira, um dos fundadores da associação, dá conta dos laços e interesses comuns que aproximam empresas e instituições dos dois lados do mundo na construção do projecto da Grande Baía Como surgiu a ideia de criar a Associação de Cooperação e Desenvolvimento Portugal-Grande Baía? Foi no Verão de 2019, numa conversa entre amigos, com o Miguel Lemos Rodrigues. Falámos sobre o assunto. A ideia era criar uma associação para fomentar a interacção entre Portugal e a China, através da Grande Baía, com Macau como canal de ligação. Discutimos o assunto, fizemos um levantamento sobre as outras associações e organizações que já existiam. A ideia, desde o princípio, foi complementar aquilo que já existia e estava estabelecido e trabalhar em colaboração com outras associações e instituições. Tendo em conta a tenra idade da associação, quais são os vossos primeiros focos de acção? Queremos atacar em várias vertentes, mas sem misturar as coisas. O plano empresarial, com certeza, é um dos focos de acção, mas também o plano cultural e institucional, nas muitas variedades que isto engloba tendo em conta os diferentes pontos de possível colaboração entre Portugal e China na zona da Grande Baía. O projecto da Grande Baía está muito baseado na questão da inovação, factor ao qual não é indiferente a evidência de que a província de Guangdong tem estado na linha da frente na China desde há décadas. O projecto, além da integração, é fundado na ideia de ser uma zona de inovação por excelência. Estes objectivos vão de encontro à estratégia portuguesa, por exemplo, a Indústria 4.0 e a aposta nas indústrias de valor acrescentado. Além da vertente empresarial, existem outros pontos comuns. Sim, claro. As questões ligadas ao mar abrem outro foco de união entre todos os países de língua portuguesa, mas também com a Grande Baía. Há trabalho académico e científico importante, ao nível da investigação, a ser feito nesta zona. Estamos a falar de trabalho encarado de uma forma muito prática. Além disso, outro aspecto muito importante para a zona da Grande Baía prende-se com as alterações climáticas. Estamos numa região de monções e as alterações climáticas vão trazer a subida das águas do mar. Em termos de recursos, isso nunca foi um problema em Guangdong, que é das províncias chinesas com mais recursos hídricos. Mas a questão do aquecimento global é importante, é uma questão fundamental. Já para não falar depois da ramificação para as áreas da energia. Portanto, existem aqui muitas possibilidades e áreas de possível colaboração. Qual será o papel da Associação de Cooperação e Desenvolvimento Portugal-Grande Baía nestes domínios? A nossa associação quer contribuir para que haja cooperação nestas áreas, mas sem misturar as coisas. Queremos que cada actividade esteja focada em determinado assunto. Como encara as acções da associação neste curto período de vida? É um bocado difícil fazer uma avaliação em tão pouco tempo de actividade. Falando com base apenas naquilo que fizemos até agora, a resposta tem sido positiva. Organizámos um evento em Fevereiro, em colaboração com a Fundação Rui Cunha, a Câmara de Comércio de Indústria Luso-Chinesa e a Associação Nacional de Jovens Empresários de Portugal. O evento ocorreu em simultâneo aqui em Macau e em Portugal e o feedback foi de grande entusiasmo com o projecto. Agora, tudo isto está constrangido pelas limitações que estamos a viver ao nível das viagens. Muitas pessoas, nomeadamente empresários, contactaram a nossa associação com vontade e curiosidade para vir cá explorar as possibilidades desta zona. Mas as circunstâncias impedem que isso aconteça. Aliás, temos planos nesse sentido, queremos trazer cá pessoas, mas isso, por enquanto, ainda não é viável. Mesmo com a possibilidade de fazer quarentena, isso não é realista. Num cenário pós-pandémico, quais são os planos da associação? Queremos trazer cá empresários portugueses e instituições, em colaboração com outras entidades e instituições congéneres como a nossa e atrair empresários da Grande Baía que queiram visitar Portugal, conhecer as empresas e instituições portuguesas. Consideramos que a cooperação institucional pode ser muito importante, nomeadamente em Macau e Hengqin. A colaboração ao nível de instituições de investigação e desenvolvimento, é uma parte muito importante do projecto e dos objectivos da associação e Cantão é líder nestas áreas. Investigação e desenvolvimento estão fortemente ligados à inovação. A cooperação institucional nestas áreas pode ser de muito interessante para explorar, até na criação de incubadoras e spin-offs, ou na promoção de colaboração de pequenas e médias empresas de Portugal e de cá. A ideia é contribuir para criar estas ligações e sinergias nesse sentido, tanto ao nível empresarial como ao nível institucional. No contexto de relações institucionais, o que poderia ser melhorado a nível de políticas que facilitem circulação de bens e pessoas no espaço da Grande Baía? Que papel a associação pode ter, enquanto elo entre sectores decisórios? É uma questão pertinente. Claro que não é o lugar das associações e das instituições definir estratégias possíveis para fazer face a isto. O papel que podemos ter é fornecer feedback e opiniões às instituições da Grande Baía, que estão a trabalhar isto. Esta é uma questão que faz parte do projecto. Ainda no passado mês de Maio, no 13º Congresso do Partido Comunista da província de Guangdong, isso foi um assunto discutido. Definiram-se estratégias para os próximos cinco anos na província e a questão de como estabelecer plataformas de comunicação e interacção num cenário em que temos três jurisdições diferentes é um desafio em si. Isso faz parte do projecto de integração que a Grande Baía representa. Julgo que à semelhança daquilo que tem sido a evolução institucional chinesa ao longo das últimas décadas, vai ser um processo de “tentativa e erro”, por assim dizer. Será um processo de ajuste de acordo com a forma como as coisas correrem. Mas essa é uma questão exclusivamente do âmbito das instituições chinesas. Nós estamos aqui para dar feedback e contribuir nesse sentido. A convicção existe, este projecto da Grande Baía, sendo que é um projecto com uma dimensão interna importante, também pretende atrair investimento, empresas e talentos estrangeiros. Uma das ideias do projecto é que esta região seja uma zona de interacção e inovação. Portanto, é certo e desejável da parte das instituições chinesas que venham empresas e investidores do estrangeiro, contribuam para o desenvolvimento desta região. Tudo vai passar por aí. Como encara as possibilidades que Hengqin representa para as instituições portuguesas? Acho que as características de Macau fazem com que a estratégia para a Ilha da Montanha ofereça uma possibilidade de cooperação muito forte, tanto ao nível técnico, como empresarial e cultural. É aí que acho que se pode estabelecer uma ponte entre a China e os países de língua portuguesa. Hengqin pode ter um papel muito importante nessa área. Temos o exemplo de Xangai, aí o papel está bem definido, enquanto plataforma para estabelecimento de uma indústria de serviços moderna, em que é clara a promoção de interacções numa zona povoada por empresas apostadas nesses sectores. Em Hengqin, as coisas parecem ainda não estar assim tão bem definidas, mas julgo que seria um bom começo apostar na cooperação institucional, na cooperação em investigação, e na colaboração ao nível dos sectores das artes e da cultura. Qual o papel da língua portuguesa, enquanto factor agregador e cultural, para vender um pouco de Portugal na Grande Baía, e da Grande Baía em Portugal? Há pessoas que têm feito trabalho importante nessa área, como o professor Carlos André, mas também instituições como o This Is My City, que tem feito um trabalho muito importante nessa área, a CURB também é outra instituição a desenvolver um trabalho muito importante. O papel de Macau enquanto plataforma de interacção entre a China e os países de língua portuguesa é algo que tem aparecido em sucessivos planos quinquenais da China. Portanto, não há dúvidas em relação à vontade política para que Macau desempenhe esse papel. Claro que, nesse sentido, a língua portuguesa e a interacção cultural é algo muito importante para a presença portuguesa nesta zona e algo que é bem-vindo cá. Porém, isto tem de ser trabalhado. Julgo que instituições como as que referi devem ser apoiadas, porque estão a fazer um excelente trabalho e seria fundamental fomentar a continuidade desses projectos. Todas as actividades que apontam nesse sentido de estabelecer e fortalecer laços culturais devem ser apoiadas. Outra instituição que está a fazer um papel muito importante nessa área é a associação Amigos da Nova Rota da Seda. Nós estamos a planear uma actividade conjunta em breve, daqui a uns meses. Como classifica a presença institucional e empresarial de organizações portuguesas nas cidades da Grande Baía? Quem poderia responder melhor a esta questão seria o Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP), tanto em Macau como em Cantão. Diria que é difícil falar disso neste momento, porque claramente havia uma tendência crescente da presença de instituições e empresas portuguesas até 2020, mas nos últimos anos é um bocado difícil falar disso. Ainda assim, não tenho dúvidas em relação ao interesse de empresas portuguesas em vir para cá. É inevitável que esse interesse continue a crescer e tenho a certeza que serão muito bem-recebidas. Como analisa a evolução do interesse das instituições portuguesas em fomentar laços com as congéneres chinesas? Não tenho dúvidas nenhumas em relação a esse interesse, particularmente da parte das instituições portuguesas, com certeza. Recordo-me das palavras do então Ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, na nossa conferência de apresentação que reiterou que as relações entre Portugal e China são muito boas, porque ambas as partes percebem muito bem a posição de cada uma. Percebem que têm características diferentes em termos de sistema política, etc., mas existe um respeito mútuo, que não é de agora, mas que persiste desde sempre, com relações que duram há séculos e que são para continuar. Essa proximidade tornou-se evidente face a acontecimentos recentes. Lembro-me, por exemplo, de uma polémica com o embaixador norte-americano em Portugal. Na altura, a resposta do Governo português foi clara em relação à forma como não haveria qualquer influência possível no que concerne às relações entre Portugal e a China. Noutro plano também tivemos a aquisição de 30 por cento da Mota Engil por parte da China Communications Construction Company há cerca de um ano. Nem mesmo crispações no cenário geopolítico podem colocar entraves a esta relação. Não acredito nisso. Claro que é óbvio que existe uma fricção entre Estados Unidos e China há alguns anos, e aconteceram algumas discussões ao nível da União Europeia, sim senhor, mas isso não beliscou as relações entre Portugal e a China. A China vai ser a maior economia do mundo provavelmente até ao final da década. Representa a vários níveis o maior mercado do mundo. Por exemplo, nas energias renováveis vão representar cerca de 40% do mercado de painéis solares até ao final da década. É um parceiro económico ao qual não existe escapatória. Mas além desta realidade, existem relações de amizade que persistem há muito tempo, não há razões nenhumas para meter isso em causa. Como analisa o papel do Governo de Macau e das instituições neste cenário de relações entre países? Em relação ao Fórum Macau, é uma instituição cujo espaço de manobra é definido pelos países participantes. Não me cabe a mim tecer qualquer tipo de comentário. Em relação ao Governo de Macau, também é difícil falar, porque eu não sei o que está a ser discutido em termos de projectos de colaboração, ou projectos com vista a fortalecer essas ligações. Sei, no entanto, que houve grande abertura para acolher projectos com países de língua portuguesa e com Portugal. Por exemplo, a agora Universidade Politécnica de Macau teve um papel de liderança no que concerne à língua portuguesa. Mas também temos de compreender as circunstâncias actuais, nomeadamente que o Governo tem agora em mãos vários desafios, percebo que isto não esteja no topo de agenda, neste momento, mas tenho a certeza que continua na agenda do Governo e que há abertura para dar seguimento ao projecto. É algo que está definido estrategicamente para Macau, nomeadamente o seu papel de ligação aos países de língua portuguesa. Há claramente vontade de trabalhar nisso. Que projectos estão na calha para os próximos tempos? Estamos a trabalhar no projecto com a Associação dos Amigos da Rota da Seda, em Portugal, temos outro projecto ainda num estado muito embrionário. Está para ser trabalhado e será lá para o final do ano. Temos mantido contacto também com a Universidade de São José, mas ainda estamos em conversações.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteMarco Duarte Rizzolio, co-fundador da competição de startups “928 Challenge”: “Pandemia tem sido um desastre para as empresas” O “928 Challenge”, uma competição de startups entre Macau, China e os países de língua portuguesa acaba de vencer em Angola, na Angola Innovation Summit, o prémio de melhor programa de ideação e competição de startups. Marco Duarte Rizzolio, co-fundador do programa, que conta com o apoio do Fórum Macau, deseja obter um maior reconhecimento das autoridades e continuar o trabalho feito em prol do empreendedorismo local O 928 Challenge venceu o prémio “Melhor programa de ideação e competição de startups”, na Angola Innovation Summit. O que representa este prémio? É o reconhecimento do bom trabalho que desenvolvemos no 928 Challenge e da importância que o nosso projecto tem, sobretudo junto dos países de língua portuguesa. É um programa que permite aos jovens desses países terem uma experiência internacional, porque muitos dos programas de ideação em competições são sempre muito locais, e este evento trouxe a vantagem de abrir uma porta para o mundo, neste caso ao 928 Challenge, a Macau e à China. O 928 Challenge foi criado pela primeira vez no ano passado e o nome significa nove cidades da Grande Baía, duas regiões administrativas especiais e oito países de língua portuguesa. Trata-se de uma competição em que o maior co-organizador da competição é o Fórum Macau. Como funciona a competição? No fundo, vamos de encontro aos objectivos da plataforma comercial de Macau. O 928 Challenge é uma competição de ideação de startups, e no ano passado focámo-nos apenas nos projectos de startups universitárias. Este ano teremos projectos universitários e as startups que existem no mercado. Seguimos a filosofia do Fórum Macau, que é dinamizar ideias de negócio que fazem a ponte entre a China e os países de língua portuguesa, e vice-versa, pois temos muitas equipas chinesas a participar. Teremos agora a segunda edição [da competição] que começa em Outubro, com candidaturas até 30 de Setembro, e gostaríamos que Macau reconhecesse este prémio como uma entidade que faz parte do ecossistema [de negócios] que está a promover Macau como uma plataforma. Queríamos ter mais reconhecimento de Macau do nosso trabalho e que nos continue a apoiar. Participaram, também em Angola, no primeiro encontro de ecossistemas de empreendedorismo e inovação dos países de língua portuguesa. Como analisa este ecossistema, com países muito diferentes ao nível empresarial? Macau apresenta mais vantagens ou desvantagens neste contexto? Em primeiro lugar, foi interessante saber o grau de desenvolvimento do ecossistema de empreendedorismo, saber quem são as entidades que estão mais à frente neste processo, e vermos o potencial de podermos criar uma cadeia internacional de mentores e jurados. Mas os ecossistemas são, de facto, muito diferentes. De um lado temos Portugal e o Brasil, que são muito desenvolvidos, e os restantes países estão em vias de desenvolvimento, portanto não podemos comparar. São muito diferentes e em relação à inovação estão muito atrás, mas têm um papel fundamental no empreendedorismo, ao incentivarem cada vez mais jovens a aprender e a criarem os seus próprios negócios. É também importante a inovação nestes países dado o grau muito menos avançado de digitalização, e há muita coisa que pode ser melhorada. Portugal cresceu muito nos últimos anos em matéria de inovação, por exemplo. Portugal, com a Web Summit, registou um boom e é um dos ecossistemas de empreendedorismo que tem crescido muito na Europa. Uma grande notícia é o facto de a Web Summit agora ser não só em Portugal mas também no Rio de Janeiro, com dois eventos anuais. Isso, para a lusofonia, é muito importante, porque temos os maiores eventos ligados ao empreendedorismo e inovação que vão ser em dois países lusófonos. Daí ser importante estarmos mais unidos e conhecermo-nos melhor, as entidades e as realidades de cada país, pois isso permite uma troca de mentores e oradores, ou equipas que se podem mover no contexto da Lusofonia. Quais os projectos que estão a ser desenvolvidos neste momento no contexto do 928 Challenge? Na primeira edição tivemos 800 participantes, 150 equipas, com a participação de todos os países de língua portuguesa. A Universidade do Porto ganhou, em segundo lugar ficou a Guiné-Bissau. Este ano a grande novidade é a abertura da competição a todas as startups já no mercado, e não apenas a projectos universitários. Mantemos o foco na ligação entre a China e os países de língua portuguesa, mas agora em seis áreas: cuidados de saúde, Fintech [tecnologia associada à área financeira], Agribusiness [negócios ligados às áreas da agricultura e pecuária], Blue Economy [negócios relacionados com a exploração e preservação das zonas marinhas] e Renewables [negócios ligados às energias renováveis]. As startups dentro dessas áreas podem participar. Temos um Boot Camp de duas semanas, com duas horas online por dia, onde damos a conhecer as oportunidades de negócio nos países de língua portuguesa e a Grande Baía. Aí falamos dos ambientes de negócio, e os participantes ficam com um maior conhecimento do que é a lusofonia e as oportunidades que existem. A segunda semana é mais virada para o apoio à construção da ideia dos jovens universitários, e no caso das startups ajudamos a que as ideias sejam enquadradas no mercado da lusofonia e na plataforma de Macau. No ano passado, 89 equipas submeteram um pitching [apresentação do projecto em prol da captação de investimento] e seleccionamos 16 finalistas, 8 projectos universitários e 8 startups. Não temos ainda a lista dos membros do júri, mas no ano passado tivemos personalidades como o CEO do BNU ou o empresário Kevin Ho, por exemplo. Temos vários prémios e a Alibaba é um dos nossos apoiantes. Neste contexto de pandemia há receio de arrancar com startups, em investir? Graças à pandemia fizemos o 928 Challenge, pois foi o online que permitiu fazer esta conexão. O evento é híbrido, uma vez que os países de língua portuguesa não podem vir a Macau. Mas os chineses podem, e o ano passado vieram à primeira edição. Mas, por outro lado, a pandemia tem sido um desastre para todas as empresas. As startups, pequenas e médias empresas e as multinacionais. Em 2022 há uma grande retoma em termos de investimento em startups, já em níveis pré-pandemia, nos EUA e na China. Nos países de língua portuguesa também já há uma retoma. As empresas têm agora fome de retomar os negócios e de crescimento. A economia de Macau está a mudar muito rapidamente, com o jogo a perder peso e as atenções viradas para Hengqin. Onde é que os jovens empreendedores querem apostar? A diversificação vai demorar muito tempo, mas pode ser feita com vários sectores. O empreendedorismo e a inovação são dois ingredientes para essa diversificação. Dependemos demasiado do jogo e temos de nos abrir a outros sectores e precisamos de empreendedores de várias áreas. É isso que eles querem fazer, Hengqin quer atrair empreendedores, mas é uma coisa que leva tempo. Shenzhen levou cerca de 20 anos. No ano passado, com 800 participantes, quisemos demonstrar que há esse interesse em fazer negócios dentro da plataforma, mas é preciso ter meios para que isso aconteça. O mercado laboral é também pouco flexível, o que não ajuda à expansão das startups. Sim, muita coisa tem de mudar. É preciso ter a residência, e tem de haver uma flexibilização se queremos ter mais talentos de fora. É também difícil para os chineses arranjarem emprego, por exemplo. Uma das chaves para desenvolver outros sectores económicos é, sem dúvida, através do empreendedorismo. Para a diversificação de Macau podemos falar de três eixos: o Governo, o principal impulsionador, as empresas e as universidades. Como olha então para a aposta no empreendedorismo por parte do ensino superior local? A Universidade de Macau é a que está mais à frente, com mais meios. Já tem um centro de incubação [de startups], tal como a Universidade de Ciências e Tecnologia de Macau e o Instituto de Formação Turística, que criou, no ano passado, a primeira incubadora. A Universidade de São José também anunciou a criação de uma incubadora, pelo que vemos aqui um movimento, com as universidades locais a apoiarem cada vez mais o empreendedorismo. Vejo cada vez mais eventos, cursos e acções virados para esta área e espero que isso continue. Na Angola Innovation Summit, como foi a reacção ao projecto da Grande Baía? Quando os países de língua portuguesa tomam conhecimento de que há um concurso lusófono que pode dar acesso à China ficam com os olhos a brilhar, porque normalmente as competições são dentro dos países. Aqui damos o acesso ao maior mercado do mundo e, este ano, os vencedores, além de receberem os prémios, vão ter sessões de Business Matching [conexão de negócios] com entidades da Grande Baía. Tem uma empresa, a Follow Me Macau, ligada à organização de eventos e turismo. Como está o negócio? Estamos completamente parados há quase três anos. A situação é muito frustrante, e tenho sorte porque somos uma pequena empresa. Estava numa incubadora, éramos apenas três pessoas e os custos eram os de um negócio online. Hoje em dia sou apenas eu na empresa. Estamos à espera de melhores dias.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteUn I Wong, advogada da área empresarial: “Macau continua focado no mercado local” Advogada em Lisboa, com experiência nos ramos empresarial e imobiliário, Un I Wong é natural de Macau e olha com interesse para o projecto da Grande Baía, afirmando que o território ainda tem de trabalhar muito para atingir os objectivos estabelecidos. A jurista defende que Macau olha demasiado para o mercado local e que é preciso ter confiança para chegar a projectos internacionais O projecto da Grande Baía tem ainda muitas áreas para explorar? É um projecto muito importante e acho fascinante que a China esteja sempre a desenvolver novas iniciativas para crescer, tal como “Uma Faixa, Uma Rota”. A Grande Baía será o motor do crescimento económico na China a curto prazo. Como o projecto começou há pouco tempo, ainda existem muitas áreas a explorar, mas com a colaboração do Governo Central e do sector privado não tenho dúvidas de que muitas pessoas e entidades, incluindo de Macau, vão tirar proveito do projecto. O seu trabalho, na área empresarial e do imobiliário, acaba por estar muito ligado aos projectos da Grande Baía. Acompanho alguns processos na China porque desempenho funções como conselheira para a área internacional e exploro as oportunidades que existem. Notamos mais projectos entre fronteiras, ou seja, de empresas chinesas que nos contactam com o intuito de colaborar com Macau e que querem saber como o projecto pode ser lançado. Fomos também solicitados por escritórios de advogados do outro lado da fronteira que procuram a nossa colaboração. Esta é uma área com grandes potencialidades e o Governo está a investir muito no projecto, o que faz com que o sector privado também esteja a investir. Já se contam vários exemplos de sucesso, mas posso falar do caso do BNU, que está em Hengqin. Uma das vantagens mais imediatas que vejo [na Grande Baía] é o facto de a mão-de-obra na China continuar a ser mais barata do que em Macau, além de existirem mais talentos. Conheço empresas que decidiram mudar a sede para Hengqin, tendo contratado locais lá. Mas a gestão e decisão continuam a ser de Macau. A ideia é muito interessante, porque poupam-se custos e conseguem-se mais talentos. Macau está no caminho da integração na Grande Baía, mas continua a ter um problema de falta de recursos humanos. Pode ser um entrave para o desenvolvimento? Faltam talentos, mas prefiro focar-me na questão dos profissionais qualificados. Essa é a maior urgência, porque o projecto de Macau ser uma plataforma comercial começou há muitos anos e, apesar do Governo ter investido bastante, o impacto continua a ser muito limitado. Como trabalho em dois sítios [Macau e Portugal], percebo que neste contexto não há muitas pessoas que conheçam as necessidades concretas de duas realidades. Muitas pessoas que trabalham em Macau continuam a focar-se muito no mercado local e não têm visão internacional. Não querem participar nos projectos com impacto internacional, pelo menos neste nicho luso-chinês. Este ano, o Banco de Portugal revelou que a China é o quinto maior investidor em Portugal, sendo que 41 por cento do investimento vem do Luxemburgo e 22 por cento de Hong Kong. E questionei-me: onde está Macau? Será que a plataforma é eficiente? Que razões aponta para essa lacuna? Tenho muitos amigos que trabalham em empresas chinesas que investem em Portugal e percebi que não conhecem bem Macau e não têm informações sobre o território. Quando comparam Macau com Hong Kong, como não há grandes vantagens competitivas para o investimento luso-chinês, facilmente escolhem Hong Kong ou outro sítio que também tenha vantagens fiscais e onde o sistema possa ser mais avançado quando comparado com a economia de Macau. O que temos, neste momento, não é suficiente. A única coisa que Macau tem de mais benéfica é a isenção do imposto quando há dividendos, caso uma empresa de Macau faça investimentos nos países lusófonos. Mas isto é algo aprovado todos os anos [no Orçamento], não é uma lei, e por isso não é suficiente. Pretende-se desenvolver o sector financeiro em Macau e abrir uma bolsa de valores virada para o mercado lusófono. Acha que estão reunidas as condições para isso? Macau tem de trabalhar muito para conseguir tornar o sector financeiro mais sofisticado e internacional. O objectivo não é apenas ajudar as empresas chinesas, mas também ajudá-las a sair para fora, para que captem investimento. Existe, de facto, um grande potencial que está muito bem definido, que é a captação de investimentos luso-chineses para Macau. É algo possível, mas desafiante, pois já existem dois mercados bolsistas bem estabelecidos em Hong Kong e Shenzhen [dentro da Grande Baía]. A bolsa de valores em Macau, eventualmente, não será muito dinâmica, mas, pelo menos, pode ser algo bem trabalhado e trazer valores para o território. Só apostando na plataforma com os países de língua portuguesa Macau pode ter mais-valia na Grande Baía. O sistema jurídico que temos neste momento não é suficiente para apoiar um projecto tão complexo como a criação de uma bolsa de valores. Falta de legislação, como o Código dos Valores Imobiliários. Há muito trabalho a fazer, e sei que o Governo está a estudar e a planear para isso. Mas é possível ir além da plataforma? Penso que o turismo é uma área em que Macau já tem muita experiência e capacidade. Os grandes resorts estabelecidos no território, com grandes eventos, conseguem atingir uma qualidade de serviço muito alta, com grande capacidade em termos de logística e de recursos humanos. É uma área na qual Macau pode partilhar conhecimentos com outras cidades da Grande Baía, com Portugal e até com os restantes países de língua portuguesa. Mas em relação à plataforma, penso que os incentivos devem ser reforçados. Fiscais? Vários. Actualmente, além da isenção do imposto de que falei, não há muitos mais incentivos. Macau pode ser uma boa ponte em termos de comércio, não tão forte como Hong Kong, mas beneficiamos do Acordo CEPA. Os benefícios aduaneiros são também importantes para vários produtos. Mas também outros incentivos, como regimes específicos para vários tipos de talentos, algo que acontece em muitas províncias chinesas. Cada cidade, quando quer captar talentos, tem um programa, com a concessão de subsídios ou facilitação de alojamento. Macau pode pensar nisso também, além do regime de residência. É também importante aumentar a eficiência na emissão de vistos e atribuição de residência. Conheço casos de empresas de Macau que não conseguem contratar pessoas fora de Macau, devido às limitações para a emissão de blue cards. Tenho conhecimento, por exemplo, de uma empresa portuguesa que quer abrir uma sucursal em Macau e não consegue contratar pessoas. Desta forma, devem ser implementados programas específicos para estes projectos e proporcionar maior flexibilidade. Se tratamos os projectos dos países de língua portuguesa como se fossem iguais aos outros, quem investe pensa em ir para Hong Kong ou outra cidade, questionando o valor de Macau. É também preciso construir a confiança, pois ainda é fraco o conhecimento dos projectos internacionais. E em relação ao investimento português na Grande Baía? O Plano de Resolução e Resiliência (PRR), em vigor em Portugal, pode fomentar o investimento, embora não directamente. Continua a existir em Portugal grande falta de conhecimento sobre a Grande Baía. Trabalho com várias associações e think-tank luso-chineses, e sei que só este ano começaram a acontecer mais seminários focados no projecto. Antes só se abordava o assunto de vez em quando. Mas continuamos ainda na fase inicial para que os portugueses saibam o que é a Grande Baía. Quando a pandemia passar, o Governo chinês também terá interesse em promover a Grande Baía em Portugal. Mas tenho conhecimento de várias empresas portuguesas na área da tecnologia que têm interesse em entrar na China. A maior dificuldade que têm é não saber quem contactar e para que cidade devem ir. Por isso, o nosso papel é servir de intermediários, ajudar nos investimentos e bater em algumas portas. O maior desafio é, sem dúvida, arranjar os parceiros certos para os projectos. Na Grande Baía, como cada cidade tem objectivos definidos, vai ser mais fácil para as empresas portuguesas perceber para onde querem ir. Portugal pode, sem dúvida, ter uma relação mais estreita com a Grande Baía. Enquanto advogada, acredita que o futuro passará pela interligação dos sistemas jurídicos de Macau e da China? Um dos maiores desafios da Grande Baía é como tratar as diferenças entre os dois ordenamentos jurídicos. Estudei também Direito da China, além da minha formação em Direito português, e será difícil mitigar as diferenças. A promoção do intercâmbio e formação contínua é muito importante.
Pedro Arede Entrevista MancheteGina Rangel: “Nunca houve problemas como hoje” Fundadora da Ludwig’s Legacy, associação dedicada à protecção dos animais, e membro influente da comunidade macaense, Gina Rangel questiona a competência das autoridades para tomar decisões “exageradas”, que colocam em risco a saúde de pessoas e animais. Sobre a comunidade macaense, aponta que “tem de ter a coragem” de lutar por Macau e ser frontal na relação com o Governo Tendo vários cães e enquanto fundadora de uma associação de protecção dos animais, como tem encarado os constrangimentos impostos pelo confinamento parcial de Macau? Tem sido uma absoluta frustração, porque os meus cães não conseguem fazer as necessidades em casa. Mesmo que lhes ponha fraldas é impossível. Além disso, é preciso dizer que, em Macau, as pessoas com uma certa idade, como eu, já passaram por outras doenças graves como a cólera, febre tifoide e varíola e conseguimos sobreviver, com as devidas precauções, claro. Depois de ter passado por isto tudo, devo dizer que nunca houve semelhante exagero [como agora]. Estas medidas são absolutamente desproporcionais e, passados dois anos [com a mutação do vírus e o acesso às vacinas], a covid-19 não passa de uma forte gripe, muito mais transmissível que as primeiras estirpes. Em princípio, não mata ninguém e, dada a alta transmissibilidade, o facto de o Centro de Coordenação de Contingência dizer que quer chegar aos zeros casos, é utópico. Em nenhum lado isso foi possível e, hoje em dia, já ninguém fala da gripe, tudo é covid-19. Até parece que as pessoas deixaram de morrer de cancro ou de outras doenças. As medidas que interferem com a normalidade da vida dos cidadãos devem ser proporcionais e estas não são. Como tem sido a logística de cuidar dos animais quando é proibido sair de casa para os passear? Tenho três filhotes, com 15, 10 e 7 anos. Já fui apanhada quatro ou cinco vezes pela polícia quando os fui passear. Quando eles passam, assumo a situação e aproximo-me para falar a bem. Se calhar eles também não têm prazer em estar a fazer isto e alguns também têm animais, mas têm de obedecer a estas regras desproporcionais. As autoridades têm certamente coisas mais importantes para fazer. Também nesse sentido, médicos e enfermeiros que estão aí nos centros dos testes em massa, andam muito cansados. Conheço o caso de uma pessoa que durante dois ou três dias trabalhou 16 horas diárias, para dar apoio às testagens. Por isso, além de o Centro de Coordenação não se interessar pelo bem-estar dos animais, tem de ter em consideração o bem-estar da população de Macau. Para eles é fácil, mas será que trabalham assim tantas horas como os outros que andam aí? O que pode ser feito para ultrapassar esta situação? Acho que é preciso insistir com o Governo sobre esta questão, porque eles não querem saber dos animais. Pergunto mesmo: será que algum dos representantes que estão na conferência de imprensa tem animais em casa? Julgo que não. Gostam de animais? De certeza que não. Além disso é preciso dizer que, segundo o Centro de Controlo de Doenças dos Estados Unidos, os animais praticamente não podem ser infectados com covid-19 ou transmitir a doença. A percentagem de transmissão é quase nula. Garanto que nenhum dos representantes do Governo procurou averiguar essa questão a fundo. Fruto desta situação, alguns dos animais acabam por ficar desesperados, porque não aguentam mais tempo sem fazer as suas necessidades. Tenho amigos que me contam que os animais aguentam mais de 10 horas sem fazer as suas necessidades e isto não é saudável. Até podem morrer. Tanto veterinários, como nas petições que começaram a circular, já se falou que impedir os animais de ir à rua só faz mal. Nas sociedades que respeitam verdadeiramente os direitos dos animais nunca foi proibida a saída dos cães durante os confinamentos. O meu lema é “viver e deixar viver”, mas quando alguém, agride os direitos dos que não têm voz, ou seja, idosos, bebés e animais, sinto-me na obrigação de reagir. O prolongamento do confinamento parcial veio piorar ainda mais a situação… Sim, estou muito preocupada. O prolongamento do confinamento parcial e a intransigência em relação aos passeios dos cães demonstrou, uma vez mais, a ignorância do Governo em não querer saber mais sobre a baixa transmissibilidade da covid-19 nos animais. Isto só mostra que não gostam de animais. Será que querem matar todos os cães de Macau? Depois de a população demonstrar descontentamento em relação à medida, o Governo não voltou atrás e o secretário para a Administração e Justiça, André Cheong, que eu considero muito inteligente, não deu qualquer resposta quando foi questionado. Não se percebe porque não querem ajudar os animais. Podiam simplesmente dizer que os animais podem sair por um curto período de tempo só com os donos, mas as pessoas não se podem juntar. Ou seja, se duas pessoas que vão passear os cães se encontram na rua, isto é considerado perigoso, mas quando vamos fazer os testes em massa, onde estão centenas de pessoas, deixa de o ser. Outra questão são os animais que estão em edifícios classificados como zonas vermelhas. Será que o canil do IAM tem espaço para todos? Além disso, será que estas restrições todas não vão fazer com que as pessoas acabem por abandonar animais? O canil é pequeno, não tem espaço suficiente e tem animais que estão à espera de ser adoptados, sendo provável que acabem por ser abatidos de forma a arranjar espaço para outros que pretendem ir para lá e têm de pagar pela sua estadia. Está surpreendida com a forma como o Governo tem comunicado com a população? Sim, ultimamente fiquei desconcertada quando, passados dois anos, a médica [Leong Iek Hou], veio ensinar as pessoas a desinfectar as compras e a limpar os legumes e as hortaliças. Tenho 70 anos e, desde que sou gente, lembro-me que, sempre que as nossas empregadas chegavam a casa das compras, a primeira coisa a fazer era limpar tudo, até porque, nessa altura, não havia frigorífico. Agora, passados dois anos, vêm ensinar estes cuidados de saúde à população? Para mim, isto demonstra incompetência. Além disso, pelo que tenho ouvido nas conferências de imprensa, hoje em dia, a qualidade dos serviços de tradução deixa muito a desejar. Numa altura em que é essencial informar as várias comunidades de Macau sobre as medidas a adoptar, torna-se necessário aumentar a qualidade das traduções. Se pessoas como eu ficam confusas por não perceber o que está a ser traduzido, isso é um factor de ansiedade que não ajuda à manutenção da calma e do espírito de cooperação que todos temos de ter para ultrapassar este momento difícil. Tendo vivido sempre em Macau, como considera que a população, em geral, e a comunidade macaense, em particular, está a atravessar esta fase? Sinceramente tenho tido pouco contacto com as pessoas, mas tenho amigos de todas as etnias. O que digo neste momento é que a maioria das pessoas de Macau, em particular os macaenses têm de ter a coragem de se expressar. Reforço que, quando digo macaenses, incluo as famílias chinesas de Macau. Eles amam Macau tanto quanto os macaenses, no sentido estrito da palavra. Muitos deles dependem dos apoios do Governo, como os próprios jornais, aliás. Eu entendo essa parte, mas impressiona-me que se ande a dar o “amén” a tudo o que o Governo faz. Nunca esperei ver a comunidade macaense assim. Hoje em dia, temos cá muitas pessoas que nada sabem de Macau e que vêm só para trabalhar e, portanto, ninguém quer saber. Ou seja, vão andando enquanto há comida e o Governo lhes dá subsídios. Estes eu ainda percebo, mas a comunidade macaense… não devíamos lutar pela nossa terra e pela nossa história? Já passámos por tanta coisa. No entanto, nunca houve problemas como os de hoje. A comunidade macaense tem de ter a coragem de se expressar. Não precisamos de fazer demonstrações ou sair à rua, basta cada qual dizer a verdade ao Governo e eles hão-de perceber que estão a exagerar. À luz do que tem acontecido ao longo do confinamento, acha que o Governo não se interessa pela saúde mental da população? Sinceramente, acho que sacrificam a vida das pessoas para além daquilo que é razoável e necessário. Com o arrastar das proibições é a sanidade mental que fica afectada. Há suicídios na comunidade, mas já se viu alguém do painel da conferência de imprensa a falar disso? Volto ao que disse atrás, não existe um bom equilíbrio entre prós e contras em termos das medidas a aplicar e acabam por ser desproporcionais.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteRui Pedro Cunha, presidente da Câmara de Comércio Europeia em Macau: “RAE’s são apelativas para empresas europeias” Acaba de assumir funções como presidente da Câmara de Comércio Europeia em Macau (MECC) em condições adversas, tendo em conta a pandemia. Ainda assim, Rui Pedro Cunha não baixa os braços e defende que a entidade nunca deixou de trabalhar nos bastidores para incentivar trocas comerciais, aguardando melhores dias para a cooperação económica Como surgiu a oportunidade de estar à frente da câmara de comércio? A MECC tem como membros as câmaras de comércio dos países europeus em Macau, e também sócios empresariais e individuais que compartilham dos objectivos da MECC. O desafio de liderar a MECC surgiu da Câmara de Comércio Britânica (BritCham), que propôs o meu nome para substituir o anterior Presidente, Henry Brockman, que se ia ausentar de Macau. A nomeação foi bem acolhida pelo conselho de administração e pela assembleia-geral, que aceitou a nomeação e me elegeu para completar o mandato até Outubro 2023. Que projectos pretende desenvolver? A mudança de presidente não altera os planos da MECC, que são definidos pelo conselho de administração. Os eventos presenciais estão suspensos devido à situação pandémica. No entanto, as iniciativas de bastidores como a organização de informação e preparação de eventos continuam a decorrer. A câmara vai continuar a procurar novas formas de dinamizar trocas comerciais e cooperação bilateral entre as comunidades de negócios de Macau e da Europa, perseguindo o objectivo de ajudar ao desenvolvimento da RAEM que, necessariamente, passa pela diversificação económica. A MECC vai também continuar a apostar na comunicação e cooperação entre as câmaras associadas. Quais os grandes desafios em manter uma câmara de comércio a funcionar na sua plenitude tendo em conta a continuação de medidas restritivas? Os tempos de incerteza que vivemos afectam toda a sociedade, e a câmara não é excepção, uma vez que a maior parte dos eventos que organiza estão suspensos e só poderão ser retomados quando as regras o permitirem e os membros se sentirem confortáveis para o fazer. Todos aguardamos com expectativa os melhores dias que virão depois de ultrapassada esta crise, e cá estaremos para ajudar os nossos membros a aproveitar as oportunidades que surgirão quando a retoma económica se tornar uma realidade. Não nos podemos focar nas dificuldades, mas sim procurar as oportunidades e manter esperança no futuro. De que forma pode Macau potenciar as suas relações com a União Europeia (UE), sobretudo em termos comerciais? Macau tem toda uma história de entreposto comercial entre a China e a Europa e também o resto do mundo. Dentro do contexto actual, as duas regiões administrativas especiais são as que têm um ambiente mais ocidentalizado e, portanto, são mais apelativas para empresas europeias que saibam ver as vantagens desse enquadramento, nomeadamente legal e fiscal. Para os negócios funcionarem, não bastam as trocas comerciais pontuais, são necessárias as pessoas que dão continuidade a esses negócios, e com certeza a RAEM saberá encontrar formas de atrair essas pessoas para benefício do desenvolvimento do território. A câmara de comércio pode representar um papel importante para empresas do mercado da UE que querem chegar ao mercado chinês e, sobretudo, à Grande Baía? A câmara tem todo o gosto em dar ajuda a empresas europeias que se queiram estabelecer em Macau. É natural que as empresas europeias reconheçam as vantagens da RAEM, e que se queiram basear aqui como primeiro passo para entrar no mercado da Grande Baía, ou até da China Continental. Neste contexto, a ligação com Hengqin é também fundamental? Hengqin é uma oportunidade de cooperação mais aprofundada entre a RAEM e a China Continental, e se para a RAEM Hengqin é uma parte fundamental do futuro desenvolvimento do território, para empresas europeias poderá ser também uma oportunidade que não deve ser ignorada. Depende muito do sector de actividade das empresas em questão estar ou não dentro da actual lista de sectores prioritários de Hengqin. Quais os principais feitos obtidos pela MECC até à data? Não me compete colher os louros do muito trabalho feito no passado, estando eu a entrar agora. Mas importa reconhecer que a MECC tem tido um papel importante na comunicação e cooperação entre as câmaras dos países europeus em Macau, e entre estas e as entidades oficiais. Não são feitos que tenham visibilidade pública, mas são importantes pelo efeito agregador que têm para a comunidade de negócios europeia no território. Hoje em dia, devido à pandemia, não há visitas oficiais de representantes europeus, mas quando estas visitas ocorriam a MECC teve uma participação activa e articulava sempre as suas actividades com as do escritório da UE em Hong Kong e Macau. Que processos ou dossiers mais específicos de investimentos ou pedidos de consulta acompanharam nos últimos tempos? Mais do que consultas, as câmaras de negócio potenciam ligações. Quem faz negócios precisa de sentir alguma segurança nas opções que faz, e o contacto com outras pessoas que enfrentaram questões semelhantes ajuda a tirar dúvidas e consolidar decisões e, por vezes, também surgem oportunidades de cooperação ou novos negócios nesses contactos. Como descreve a ligação da Câmara de Comércio com as autoridades de Macau, nomeadamente com o IPIM [Instituto de Promoção do Comércio e Investimento de Macau], no fomento de relações comerciais? A MECC mantém relações cordiais com as entidades oficiais da RAEM, sem razões de queixa, e não se substitui a nenhuma delas nas respectivas funções. O IPIM, em particular, tem apoiado bastante as câmaras de comércio, apesar das condições económicas adversas dos últimos anos. Como os objectivos da MECC se coadunam com os objectivos de desenvolvimento do território, existe uma saudável cooperação com as entidades oficiais que por certo se vai manter no futuro. Acha que a UE tem encarado as RAE’s tendo em conta o potencial destes territórios? A RAEM tem um grande potencial como porta de comércio para a China Continental, principalmente para os países lusófonos. Portanto, é natural que as estruturas geo-económicas estejam atentas às oportunidades que daí podem surgir. Existem em Macau várias empresas europeias a operar e a desenvolver bom trabalho. À medida que outras tomam conhecimento das vantagens de terem uma presença na RAEM, surgirão com certeza mais empresas interessadas. A UE já é o maior parceiro de comércio internacional da China, tendo ultrapassado os EUA em 2021, e a China é a maior fonte de importações da EU. Portanto, a interdependência económica entre a China e a UE é cada vez maior. Não nos devemos iludir quanto ao peso que as RAE’s têm neste enquadramento, mas faz sentido que, quer a China, quer a Europa, tenham a ganhar com o desenvolvimento económico da RAEM enquadrada do projecto da Grande Baía.
Andreia Sofia Silva EntrevistaAlfredo Gomes Dias, historiador: “Macau manteve o seu caminho” O livro “Macau entre Repúblicas”, da autoria do historiador Alfredo Gomes Dias, foi apresentado na segunda-feira no Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa. A obra traça o panorama de um território embrenhado entre o republicanismo em Portugal e na China, de 1910 e 1911, e a forma como Macau conseguiu manter o seu estatuto Como surgiu este projecto? Este livro parte de um projecto de investigação mais vasto, uma vez que estudo a história de Macau desde 1987, sempre focado na história contemporânea, entre o século XIX e a primeira metade do século XX. Nos trabalhos de investigação que fui fazendo deparei-me com a coincidência das datas da implantação da I República em Portugal e da República na China. Como temos sempre a ideia de que não há coincidências na história, mas sempre algum significado, fui à procura do contexto que explicava como dois países geograficamente opostos tinham desenvolvido, em simultâneo, um processo que levou ao fim da Monarquia em Portugal, com a Dinastia de Bragança em 1910, e depois o fim da dinastia chinesa em 1911. É curioso pensar que estas duas dinastias tiveram uma duração semelhante, começando ambas no princípio do século XVII. Que causas históricas realça para explicar essa coincidência? Percebe-se que houve um movimento internacional de processos históricos em diferentes impérios que levam à sua decadência e à implantação de regimes republicanos, em Portugal, na China e na Turquia, por exemplo. É nesse processo de decadência que explicamos, em parte, a I Guerra Mundial. Tentei então explorar os significados mais profundos além da semelhança entre datas. Qual o republicanismo com maior impacto em Macau? O movimento republicano chinês tinha maior expressão no território face ao português, dada a proximidade geográfica da China? A proximidade geográfica tem um peso grande porque, ainda por cima no início do século XX, as proximidades geográficas não eram as mesmas que são hoje. Além disso, tínhamos as pontes sociais e políticas que existiam no território, nomeadamente da parte de uma certa elite com a China, que explica a influência posterior do republicanismo chinês em Macau. Temos depois de associar as questões do republicanismo chinês com as questões sociais e políticas que existiam na altura entre Portugal e a China, porque havia questões diplomáticas que estavam em aberto que levavam a movimentos sociais que, de alguma forma, se manifestavam em Cantão contra a presença portuguesa. O movimento republicano acaba também por sofrer com esta influência. A nível internacional, a Revolução dos Jovens Turcos, por exemplo, foi um dos movimentos que inspiraram ambas as revoluções republicanas. Houve, assim, uma forte influência de movimentos que ocorriam na Europa. Exactamente. No princípio do século XX assistimos a um processo quase em cadeia de decadência dos grandes impérios. Depois, a I Guerra Mundial faz desabá-los por completo. Por um lado, processos internos levaram à decadência de cada império, mas depois também a conjuntura internacional e a influência que leva a algum contágio entre territórios e que acabam por conduzir a tensões militares e diplomáticas que levam à I Guerra. A China era um país mais aberto ao Ocidente em relação ao que viria a ser depois de 1949? Havia maior penetração dos ideais políticos ocidentais no início do século XX? Isso depende um pouco dos contextos. Se pensarmos em Xangai, isso é absolutamente verdade. A cidade era cosmopolita e abriu-se completamente ao mundo, instalando-se depois a comunidade conhecida como os “portugueses de Xangai”. Nesta altura, a cidade recebe cerca de 40 nacionalidades diferentes, segundo o estudo que fiz, porque era, de facto, uma cidade completamente aberta ao mundo. O período republicano até à II Guerra Mundial é mais aberto, até pela presença de Sun Yat-sen e as relações diplomáticas que tinha com outros países. Este processo é limitado pela situação interna do país. A implantação da República leva a uma transformação do regime, mas depois o processo de instabilidade política, com os senhores da guerra e o conflito civil entre o partido do Kuomitang e o Partido Comunista Chinês, põe em causa qualquer processo de abertura ao Ocidente. Como era Macau entre estes dois mundos? Foram nomeados governadores republicanos, como Carlos da Maia. As elites políticas debatiam ideias entre o mundo português e chinês? Em toda a governação feita até 1974, não me parece que tenha havido grande influência de ideias políticas do republicanismo em Macau. A sua singularidade, e o que permitiu a sobrevivência ao longo de todos estes séculos, foi sempre construída por parte da Administração portuguesa percebendo que a vida no território tinha as suas particularidades e não permitia oscilações tendo em conta a mudança de regimes que ocorriam em Portugal. Isso é bastante visível entre meados do século XIX até à década de 70 [do século XX], pois não creio que as grandes mudanças políticas ocorridas em Portugal tivessem uma forte influência na forma de governar Macau. Até por força da necessidade de determinadas relações com a comunidade chinesa e a China que não era compatível com as infecções políticas de Portugal. Que conclusões históricas tira deste trabalho de investigação? É muito interessante perceber a forma como Portugal e China, em contextos geográficos diferentes, participaram num contexto político global que existiu nessa época. Macau, apesar dessas mudanças, manteve o seu caminho e a sua forma de estar que lhe garantiu a sobrevivência até 1999. No último estudo, feito com Joana Barroso Hortas, foi também interessante ver como a imprensa em Portugal tratou [o movimento republicano chinês] e como os republicanos portugueses foram lendo as notícias na China. Quais as reacções mais comuns que encontraram? Os republicanos portugueses acolhiam, muitas vezes com discursos com grande esperança, o movimento na China como se fosse o ecoar do republicanismo no mundo. Havia, por outro lado, análises mais cautelosas do que se estava a passar. Isso ensina-nos a perceber o que era o pensamento republicano em Portugal, olhando para acontecimentos internacionais. O estudo pode ser interessante nessa perspectiva, mesmo para quem pretende aprofundar conhecimentos sobre o republicanismo em Portugal e na imprensa. As notícias sobre a República na China, no momento em que ainda se estava a consolidar a República em Portugal, era uma forma de dar alento ao nascimento do republicanismo português. Alguns dos ideais do republicanismo português passavam pelo sufrágio universal ou maior acesso da população à educação. Até que ponto havia semelhanças com os ideais republicanos na China? Os ideias sociais estão lá, mas têm uma roupagem um pouco diferente. As situações sócio-políticas e económicas da China eram um pouco diferentes face a Portugal. Os costumes chineses foram profundamente alterados com a República e isso é interessante de ver no livro, porque tentamos ilustrar o estudo da imprensa com imagens e ilustrações dos jornais republicanos em Portugal, que revelam bem o esforço que a República chinesa estava a fazer no sentido de mudar os hábitos sociais. Os princípios defendidos por Sun Yat-sen levavam a uma ideia de romper com o regime político anterior mas também de construir, do ponto de vista social, uma China diferente, em prol da melhoria do bem-estar do povo chinês. Falta estudar mais a influência de Sun Yat-sen em Macau? Penso que sim, porque é uma figura com uma dimensão e relevância tal, que penso que haverá sempre deficiência em matéria de investigação. Mas em que medida temos fontes que nos permitam construir outras narrativas e perspectivas históricas sobre a presença de Sun Yat-sen, de forma a dar um novo contributo sobre a sua vida em Macau? Deveria haver um esforço grande em Macau no sentido de procurar essas fontes ou reinterpretar as que já existem.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteAlexandre Pais, director do Museu Nacional do Azulejo: “Portugueses não tinham o segredo da porcelana” Estudioso da influência da porcelana chinesa na cerâmica portuguesa, Alexandre Pais é um dos contribuídores do livro “Rotas da Cerâmica”, que conta a história do comércio da porcelana e da sua produção em Jingdezhen, na China. O livro editado pelo Instituto Confúcio da Universidade de Aveiro também aborda o período de grande exportação para a Europa, sobretudo para Portugal, a partir dos séculos XVI e XVII Como surgiu a possibilidade de participar nesta obra? Já tinha tido contactos com o professor Carlos Morais e fizemos uma série de projectos. O meu texto é sobre a integração da faiança portuguesa de inspiração oriental e é um resumo da minha tese de doutoramento. O livro, em si, é importante porque nos apresenta o ponto de vista do Oriente em relação à porcelana. Normalmente, tudo o que existe é sempre do ponto de vista do Ocidente. Pelo que li, há muita bibliografia oriental à qual os ocidentais não têm acesso, incluindo sobre escavações arqueológicas. Como chega porcelana chinesa a Portugal ao ponto de inspirar a nossa cerâmica? Ela entra nos finais do século XV e início do século XVI, após a descoberta do caminho marítimo para a Índia. Portanto, com Vasco da Gama chega logo uma série de porcelanas. Ela depois começa a ser comercializada em grande quantidade, e Portugal é o primeiro país europeu a comercializar grandes quantidades de porcelana, mas também outro tipo de materiais e objectos. A porcelana entra de facto no gosto de toda a sociedade, com objectos para todas as bolsas, menos para as classes mais desfavorecidas. Até à burguesia, digamos assim? Do que chamamos burguesia, que na altura não existia, mas mercadores, classes um pouco mais abastadas que não pertenciam à nobreza. A porcelana é disseminada por todo o mercado europeu, e depois, quando perdemos a independência e ficamos sob alçada da coroa espanhola, outros países começam a cobiçar as rotas portuguesas do Oriente, nomeadamente os holandeses. [Chega mesmo a haver] a apreensão de diversas caravelas que transportavam porcelanas, que depois são vendidas no mercado de Amesterdão, e a partir daí a Holanda começa a querer o caminho e perdemos essa rota comercial pela associação com Espanha. Não quer dizer que deixe de entrar porcelana em Portugal, mas entra pouca, e não temos já essa importância. Não temos provas, mas parece-nos que as olarias portuguesas começam a produzir um tipo de decoração que, não sendo porcelana, invoca o Oriente. Existe um produto genuíno que é mais raro e caro, mas os portugueses começam a consumir esta faiança que tem qualquer coisa de exótico. E é por aí que vai sendo feita esta produção. É curioso porque surge um pouco também como contraponto às produções espanholas, que são diferentes. Depois também terá algumas componentes exóticas. A sensação que tenho é que a nossa faiança surge como contraponto ao que é produzido na península e como resposta à perda da rota e da quantidade de porcelana que vinha para a Europa. O domínio espanhol levaria a porcelana chinesa também para Espanha. Não estudei muito esse ponto, mas é óbvio, porque os espanhóis, ao ficarem com o reino português, ficaram com todas as rotas comerciais. Depois havia a rota de Manila para compensar a questão das rotas holandesas, e a porcelana e os espanhóis também faziam encomendas específicas à China, como os portugueses anteriormente também faziam. Mas Espanha acaba por beneficiar do facto de nos ter sob sua alçada. Depois de 1640 como ficou o comércio da porcelana? Reforçou-se, houve uma expansão no mercado? Não inicialmente, porque os primeiros 20 anos não foram fáceis. Falamos de 1640, mas o processo da restauração da independência foi longo. Isso nota-se pela própria produção de faiança: numa fase inicial, ainda tenta acompanhar a questão do exotismo, mas começamos a notar uma certa decadência. À medida que vai havendo dinheiro e reforço das rotas comerciais portuguesas, e como depois começa a ser possível encomendar directamente na China, a produção passa a ser completamente diferente da que era no século XVI. Aí era o azul e branco, mas a partir desta altura, em finais do século XVII, começamos a ter as chamadas famílias, verde, rosa. Começamos a ver, como há uma alteração do gosto e da própria utilização, pois a sociedade torna-se mais complexa, uma mesa portuguesa começa a ter mais produtos, surgem mais exigências em termos de higiene, por exemplo. Aí começam a ser encomendadas à China uma série de formas diferentes e objectos com outras características, surgem as peças brasonadas. Com o século XVIII dá-se uma grande expansão da loiça brasonada para o mercado interno, e aí a faiança deixa de ter qualquer importância. Além do brasão, que elementos destaca nessas peças? Algumas obras são encomendas específicas com elementos relacionados com os locais a que se destinam, como é o caso das casas religiosas. As grandes alterações prendem-se com a morfologia, a quantidade de peças que são encomendas com novas utilidades. São produzidas terrinas com a forma de animais, vegetais e frutas, o que tem a ver com a cenografia barroca das mesas temáticas. Eram, portanto, feitas encomendas específicas aos fabricantes chineses. Sim, mas isso já no século XVI. Havia motivos que eram levados para o centro produtor e que às vezes não eram bem interpretados. Mostrava-se um motivo e ele era invertido, por exemplo. Há erros porque o oleiro chinês não sabia interpretar bem as instruções, frases ou palavras invertidas, por exemplo. O livro fala dos centros de produção na China, nomeadamente em Jingdezhen. Era uma importante actividade económica na altura? Sim. Jingdezhen é uma região quase totalmente dedicada à olaria. Havia mais centros produtores na China, mas esta região era o ponto principal. Produziam também para outros centros na Ásia, mas era em Jingdezhen que estavam os centros de produção imperiais. Havia loiça para a corte, para o imperador e para exportação. Este centro ainda hoje está activo e replica muitas produções antigas. O que revela o comércio de porcelana sobre as ligações entre Portugal e a China? O Oriente sempre foi um foco de interesse para o Ocidente. Os portugueses são um povo muito curioso em relação a outras culturas e povos. Nota-se essa predisposição até na nossa expansão. O Oriente era uma civilização muito requintada e avançada e suscitava curiosidade. Ter objectos de uma cultura que não é próxima, com uma noção de exotismo, é sempre um factor apetecível, e dá uma dimensão mais sofisticada a quem a possui. Despertou-me curiosidade, na caracterização da cidade de Lisboa no século XVII e dos tipos de população, com pessoas oriundas da Índia, do Japão, da China. A convivência era relativamente estável entre essas populações e a população portuguesa. Nós mostrávamos as nossas faianças no Oriente? Os missionários levavam algumas peças? Suponho que seria algo residual. Tentei perceber se na China e Japão haveria faiança portuguesa, e tenho informação escrita de que haveria alguns exemplares em Hiroshima, mas não tenho mais dados. Portugal importava mais porcelana chinesa do que outros países europeus? Não sei se isso está estudado. Inicialmente, no século XVI, até à perda da rota comercial, tínhamos mais comércio com o exterior. Éramos os maiores importadores de produtos chineses, nomeadamente de porcelana. Nos séculos XVII e XVIII já existiam as companhias orientais holandesas e inglesas. Tendo em conta a quantidade de serviços de porcelana brasonados que há em Portugal dessa época, mostra que tínhamos um papel muito destacado na importação. Ainda se encontram influências dessa ligação na cerâmica de hoje em dia, por exemplo? Não. Essa influência dura todo o século XVII, e um dos últimos anos começa a ser já muito residual. A partir do momento em que retomam as rotas comerciais com a China, no final desse século, a faiança volta a ser um produto para classes menos endinheiradas, sem necessidade de grande decoração. Nessa altura as olarias portuguesas começam a trabalhar mais no azulejo. A cerâmica passou para segundo plano. Há visões do Oriente no azulejo português, por exemplo? Sim, visões da China e do Japão feitas com base em gravuras europeias. Muitas retratam um quotidiano que é imaginado, sempre com a ideia do exótico. Não é o retrato real de uma sociedade, mas a fantasia sobre o que é a vida do outro. Falamos de uma sociedade que, para nós, era pagã, adorava vários deuses, tinha hábitos estranhos. Mas ainda no século XVII, encontramos alguma influência exótica no azulejo português, embora não seja determinante. No caso da faiança, essa influência está muito presente inicialmente, mas progressivamente o que interessa é uma recriação de elementos que vão sendo aplicados na faiança. Depois adicionam-se elementos ocidentais, criando-se um produto híbrido. Nós não tínhamos o segredo da porcelana. Porquê? Não se percebia que material era, e pensava-se que a matéria de porcelana era um tipo de búzio específico. A produção de porcelana nunca foi privilegiada porque tínhamos imenso comércio com a China e, provavelmente, terão pensado que não valeria a pena produzir em Portugal. Demora algum tempo até a Vista Alegre começar a produzir porcelana, já no século XIX, ainda que o segredo do material tivesse sido descoberto antes. A história do comércio Editado pelo Instituto Confúcio da Universidade de Aveiro, “Rotas da Cerâmica” conta com a participação de diversos autores, com a edição por Carlos Morais e Ying Han. Além da colaboração de Alexandre Pais, o livro tem ainda a colaboração de Guo Mo, da Universidade de Ciências e Tecnologia de Macau, que aborda “os motivos chineses na faiança portuguesa: três exemplos de ‘venerar sem subserviência’”. Destaque ainda para o capítulo dedicado à “expansão e influência da cultura da cerâmica chinesa no sudeste asiático”, da autoria de Han Yeliang e Zhi Rui, da Universidade de Línguas Estrangeiras de Dalian, na China.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteAna Cristina Alves, autora e académica: “Este livro é um diálogo intercultural” Acaba de ser lançado, com a chancela da editora Labirinto, o novo livro de poesia de Ana Cristina Alves, especialista em filosofia chinesa, docente e responsável pela área educativa do Centro Científico e Cultural de Macau. “Visitações” reúne poemas que estabelecem um diálogo permanente entre as espiritualidades ocidental e oriental, partindo da base do “I Ching – O Livro das Mutações” Como surgiu a possibilidade de editar esta obra? Foi uma experiência poética. A última vez que estive em Macau foi em 2015, mas andei muito pelo Oriente e pelo sul da China. Entre 2011 e 2015, estive muito voltada para temas religiosos, fiz investigação na Academia Sínica, recolhi dados sobre templos, que são cerca de dez mil. A pesquisa para o trabalho científico não foi publicada, ficou na gaveta. Nos dez anos que estive em Macau visitei sempre os templos. Sempre gostei muito da espiritualidade chinesa, porque é aberta a receber influências de várias religiões e nenhumas se zangam umas com as outras. Sobre esse projecto que ficou na gaveta… Sim, ficou ali. Entretanto, chegou a pandemia, que nos remeteu a todos para casa. Sempre encarei a arte como terapia, sou capaz de estar o dia todo a ouvir música, por exemplo. Como nesses dois anos de pandemia estive bastante tensa, e como gosto muito de escrever e de poesia, foi uma maneira de me agarrar à vida pelo lado positivo, pois fomos bombardeados com notícias negativas todos os dias. Recordei-me então das experiências que vivi nas visitas ao Oriente e começaram a surgir espontaneamente poemas que estão divididos em vários capítulos. Como dividiu tematicamente o conteúdo? Os capítulos são sobre divindades chinesas, seres sagrados do Oriente e do Ocidente, porque eu sou portuguesa e o meu olhar ocidental está lá inevitavelmente. Escrevi também poemas sobre festividades e seres sagrados ligados a divindades. Outros escritos resultaram de visitas a templos. Tudo do ponto de vista poético, não científico, através de um diálogo intercultural. A última parte do livro é sobre poesia de adivinhação, numa tentativa para chegar a um amor diferente, objectivo, mas também compreender o mistério que não se deixa compreender por palavras. Quanto mais nós tentamos entrar em certas esferas e explicar tudo de forma racional, pior é. Peguei no clássico I Ching – O Livro das Mutações. Já a Fernanda Dias [poetisa] tinha feito uma experiência deste tipo, em Macau, porque a obra tem 64 hexagramas. Ela fez um poema para cada um deles, em “O Fio de Seda”, publicado em 2012. Utilizei a filosofia da complementaridade e fiz poemas sobre 32 hexagramas, porque acredito sempre nos opostos que não são oposição, mas que são complementares. Qual o objectivo desse exercício? Foi uma tentativa de entrar neste mistério que não entendemos, mas que sentimos através da nossa intuição, de que há qualquer coisa da qual é difícil falar do ponto de vista racional. São 32 poemas dedicados à adivinhação. Mas foi muito compensador. De cada vez que escrevia um poema, por muito más que fossem as notícias sobre a pandemia, nunca me deixavam muito maldisposta. A arte compensava e era como se estivesse a fazer terapia. Esta obra, “Visitações”, surge num momento muito particular da nossa história colectiva e individual, em que nos confrontamos com a pandemia. Alguns poemas mostram esse lado. Em que sentido? Por exemplo, há uma divindade muito malandra (Na Tcha), um menino que provoca muitos desacatos e que acaba por magoar um dos filhos do Rei Dragão, que nunca lhe perdoa. Esta divindade está mesmo ao lado das Ruínas de São Paulo [Templo de Na Tcha] e tem um dom especial: combater epidemias. É óptimo para estes tempos. Como descreve este livro? É um diálogo intercultural, que aponta para uma espiritualidade, mas que não a define, não diz “é assim”, ou de outra forma. Não há dogmas, mas leituras de possíveis caminhos espirituais, uma espiritualidade muito aberta, com a mistura de divindades. Um dos capítulos é sobre seres divinos, sagrados e monstros, no Ocidente e no Oriente, sempre numa tentativa de diálogo. Na primeira parte do livro temos poemas dedicados à minha sensibilidade reservada, enquanto que a maior parte dos poemas têm como fio temático a espiritualidade chinesa e o diálogo com a espiritualidade ocidental. O que significa esta sensibilidade reservada? São poemas mais seculares, mais do dia-a-dia, que surgem em confronto com situações. Tenho lido muito e gosto muito de Fernando Pessoa, dos clássicos, mas também de Luís de Camões e Sophia de Mello Breyner. Mas o meu despertar poético é sempre sobre situações da vida e por qualquer coisa que se está a passar no aqui e agora. A guerra na Ucrânia preocupa-me muito, por exemplo. Não é tanto a sensibilidade de receber influência dos outros poetas, mas quando me surge este chamamento poético, este diálogo, é sempre sobre algo que está a acontecer na minha vida. Que poema destaca nesta obra? “Macau Tricolor” é um poema de que gosto muito. Dentro das experiências poéticas uma das que gosto de fazer é misturar línguas dentro do próprio poema, é um traço da minha poesia. Este poema é sobre Macau e surge na sequência do 24 de Junho, antigo Dia de S. João, quando ocorreu a batalha contra os holandeses, em 1622. Começa por ser escrito em português, depois passa para patuá, graças ao pouco que aprendi com o Adé, e depois termina em chinês. Celebro os portugueses, os macaenses com a sua especificidade e os chineses que estão em Macau, a quem pertence não só a terra como a administração. Escreveu outros poemas sobre a China? Há muitos poemas sobre a China e as festividades tradicionais chinesas, sobre a festividade dos barcos dragão e o ano novo chinês. Mas esta China é aquela que eu deixei em 2015 e não a de hoje. No livro “Migrando pelos Dias” falo mais da China dos dias de hoje. Este livro aborda a China espiritual e tradicional, assim como o contacto com o Ocidente também cultural e espiritual. Tenho um poema sobre o São Martinho, o Natal e a Páscoa. Saí de Macau há sete anos, e o que me lembro da China e de Macau está mais na cultura do que na vivência diária. Porquê o nome “Visitações”? A capa, que está muito bem conseguida, tem duas portas fechadas. Então é como bater à porta de algo, de um mundo misterioso, e a visitação é a tentativa de entrar nesse mundo, mas a porta mantém-se fechada. Está semi-aberta com a nossa sensibilidade, mas pouco compreendemos sobre esse mundo com seres sagrados e divindades. “Visitações” é então essa ideia de visitar um mundo transcendente. Acredito que com a poesia se consegue lá chegar. Tem uma larga experiência como investigadora, sobretudo na área da filosofia oriental. Escrever estes poemas trouxe-lhe outra perspectiva da China? Desta vez usei o clássico “I Ching – O Livro das Mutações”, que o padre Joaquim Guerra chamava “A Bíblia Chinesa”. Dá uma outra visão menos pragmática e utilitária da cultura chinesa. Leva-nos à cultura tradicional que valorizava a sensibilidade poética. Não nos podemos esquecer que os governantes, para passarem os exames imperiais, tinham de fazer poesia e saber interpretá-la, para chegarem a oficiais e mandarins. Este contacto com os clássicos é a entrada no mundo da história, que hoje muitas vezes é esquecido na China contemporânea porque valores económicos, e outros, se levantam.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteDora Nunes Gago, autora: “Gostava que o leitor encontrasse esperança” A ex-directora do departamento de português da Universidade de Macau lança amanhã em Lisboa o livro de contos “Floriram por engano as rosas bravas”. Segundo a autora, a obra resultou de uma sucessão de idas e vindas a Macau, da inspiração em vultos culturais como Camilo Pessanha e Maria Ondina Braga, mas também da vontade de estabelecer uma ligação com a realidade noticiosa local “Floriram por engano as rosas bravas” contem alguns contos que já foram publicados. Porquê lançar agora esta obra? Não foram muitos publicados. Se calhar, no leque de 24 contos, seis tenham sido publicados, pelo que a grande maioria são textos inéditos. Esta é uma colectânea que fui organizando nos últimos seis anos. Recordo-me que o primeiro conto foi escrito no Ano Novo Chinês de 2016. No fundo acaba por ser um registo dos últimos dez anos de vivências em Macau e na Ásia, pois comecei a trabalhar na Universidade de Macau em Fevereiro de 2012. Fiz alguns rascunhos de situações que vivi e conheci, como viagens, e alguns contos baseiam-se em notícias de jornais, como é o caso do suicídio da então directora dos Serviços de Alfândega [Lai Man Wa], nos Ocean Gardens, ou aquele caso da morte do meio irmão do presidente da Coreia do Norte que foi assassinado em Kuala Lumpur e que viveu em Macau [Kim Jong-nam]. “A Roleta da Vida” é um conto sobre alguém que perdeu tudo num casino. Foi um trabalho feito ao longo do tempo, até que vi que era altura de juntar tudo e publicar. Decidiu então pegar em assuntos do quotidiano e adaptá-los à literatura. Como foi o processo criativo de unir realidade e ficção? Essa junção aconteceu de forma muito natural. Escrevo há muitos anos e a escrita e a literatura sempre foram, para mim, uma forma de olhar o mundo e também de me tentar integrar nele. Foi um pouco isso que tentei fazer através desses contos, tentar perceber melhor as diversidades culturais que existem em Macau e integrá-las em mim. Daí que acaba por ser quase inevitável essa junção dos mundos. Quando se sentava para escrever, que temas da actualidade local lhe despertavam mais a atenção do ponto de vista literário? Sempre me interessei por tudo. Uma boa história pode surgir no momento mais inesperado. Não procurei nos jornais ou em meu redor temas específicos. Por exemplo, a investigação que tenho feito na universidade, que tem muito a ver com imagens do estrangeiro e relacionadas com exílio, talvez tenha sido um pouco condicionada por isso. Mas interessam-me sobretudo temas sociais, que tenham a ver com cultura e sociedade. Tudo depende de como as coisas vão surgindo e do que despertam em mim. Porquê o género conto? Tenho uma colectânea de poemas completa e também estou a escrever algumas crónicas, que irei publicar em breve. O romance está ainda numa fase inicial porque exige outro tipo de trabalho, não é apenas inspiração, mas o trabalho textual tem de ser mais persistente e exigente, algo que não tenho conseguido conciliar com a minha profissão. O conto, por ser uma narrativa mais breve, e por ter um princípio, meio e fim, e porque naturalmente sempre tive mais tendência para ser sintética do que analítica, foi o género em que me senti mais à vontade. O título da obra remete para um poema de Camilo Pessanha. Pessanha é, aliás, uma grande influência para este livro, tal como Maria Ondina Braga. No caso do verso de Pessanha é curioso porque gostei muito dele e andava dentro de mim há muitos anos, há mais de 30 anos talvez, desde que li o poema. De repente, achei que esse verso fazia sentido porque está incluído num poema que fala de questões como a brevidade da vida, os desencontro, as ilusões e desilusões. É um poema simbolista com uma temática muito densa e que achei que se encaixava muito bem nesta colectânea. Quanto à influência da Maria Ondina Braga, sempre me identifiquei muito com a sua obra. Cheguei a conhecê-la pessoalmente num encontro de escritores, nos anos 90. Foi engraçada a minha entrada na sua obra. Em 1991, quando era aluna da Universidade de Évora, ganhei um prémio de escrita que incluía uma viagem a Macau. Quando regressei a Évora fui à livraria do centro comercial e havia lá um livro da Maria Ondina Braga, o “Nocturno em Macau”. Tinha acabado de sair. Identifiquei-me muito com esse romance e parecia que dava resposta a um certo fascínio que tinha sentido por Macau. A partir daí comecei a ler muita coisa sobre a autora e a nível de investigação também tenho escrito muita coisa sobre ela. Tem sido uma presença forte na minha vida. No prefácio é referido o lado de exilado de Pessanha, que morre em Macau, dependente do ópio. Há também esta relação com Pessanha? Camilo Pessanha é uma figura muito relevante na literatura portuguesa. É o nosso grande poeta simbolista e deixou uma grande influência na literatura portuguesa, nos modernistas, em Fernando Pessoa, por exemplo. Tendo este livro Macau como um dos cenários e estando Pessanha tão ligado a Macau, Pessanha é um autor que não se pode ignorar quando se fala de Macau e quando referimos o Oriente. É uma presença muito interessante. O primeiro conto é “A Chegada” e depois termina com o conto “A Partida”. Há aqui a ideia de distância, de exílio, de ligação a uma terra que se ama mas não se conhece? É verdade. Esta ideia de exílio colocou-se ainda mais nestes dois anos com a questão da pandemia, pois não pude ir a lado nenhum. Foi viver numa bolha à parte do mundo, uma bolha que fica longe. Outra das mensagens muito presente no livro é o contraste entre culturas e línguas. Sim. É também uma questão muito relevante em Macau, a questão linguística e as dificuldades que muitas vezes existem para se comunicar. Mas a literatura está sempre aberta às interpretações e cada leitor pode descobrir mensagens diferentes. Mas o que eu gostava realmente que o leitor encontrasse é a mensagem de esperança, mesmo nos momentos mais complicados e difíceis. Tentei em muitos contos apontar essa ideia de esperança. Este livro mostra uma percepção do que é Macau? Talvez. Macau é um território muito complexo, é um espaço geograficamente pequeno mas que tem dentro dele muitos mundos e culturas. Ao mesmo tempo é também um espaço em constante mudança, mas suponho que, pelo menos, o leitor fica com uma imagem de alguns aspectos relevantes do território. Este livro vai ser editado em Portugal. Sente que existe interesse das editoras portuguesas relativamente a Macau e ao Oriente, sobretudo na literatura? O panorama editorial em Portugal é complicado porque há imensas editoras e existe a sensação de que todos são escritores. Isso tem-se sentido muito nos últimos tempos, e faz impressão porque é um país onde não há muitos leitores. Creio que ainda há algum interesse pelo Oriente, porque continua a ser um mundo um pouco misterioso, apesar das viagens e da banalização. Que cenário traça em termos de edição de livros e produção literária em Macau, em língua portuguesa? Creio que esse mercado estará vivo mas começa a ressentir-se com a saída de estrangeiros, nomeadamente portugueses. Um dos problemas que vejo no mercado literário em Macau é a circulação dos livros fora do território.
Andreia Sofia Silva Entrevista ManchetePaulo Canelas de Castro, académico: “Conflito na Ucrânia obriga UE a testar limites” A Declaração Schuman, que marcou o arranque do que é hoje a União Europeia, foi assinada há 72 anos. Paulo Canelas de Castro, especialista em Direito Internacional e Europeu, analisa o projecto europeu que actualmente enfrenta a situação caótica da guerra na Ucrânia, assim como a chegada ao pelotão da frente de novos actores internacionais, nomeadamente a China Tendo em conta os objectivos iniciais, como encara a evolução do projecto europeu desde a sua génese? A União Europeia (UE) é hoje uma realidade incontornável do nosso mundo A Declaração Schumann visava reconciliar duas grandes potências em conflito durante anos, construir um mundo de paz e garantir a prosperidade económica e social. Julgo que a trajectória da União Europeia (UE) e dos Estados-membros nestes anos é a prova de que essa aspiração foi conseguida. A Europa vive num mundo de paz e não voltou a haver guerra dentro do espaço da UE, que se tem alargado. E em termos económicos, como avalia o projecto? Saiu-se de uma situação de grandes dificuldades no pós-II Guerra Mundial para um cenário em que existe o maior mercado interno do mundo. Isso explica que todos os Estados que saíram de regimes autoritários tenham procurado tornar-se membros da UE. Claro que permanece sempre a necessidade de revigorar o projecto europeu, mas parece-me imperioso celebrar essa mensagem inicial de paz que deu influxo ao projecto europeu. No contexto China/Estados Unidos, considera que a UE conseguiu manter a sua posição estratégica? Há muito que a UE está confrontada com um mundo diferente. A consagração em 1992 da própria noção de UE, diversa das precedentes Comunidades Europeias, é credora dessa interpelação fundamental. Em reacção à queda do Muro de Berlim, o projecto europeu deu um salto qualitativo evidente, tornando-se um projecto político também, que respeita aos cidadãos europeus, que interpela e procura mobilizar e integrar cidadãos, além de prosseguir a vertente de integração económico-social mais plural e exigente. A UE confronta-se hoje com uma realidade geopolítica diferente, mais complexa do que a vivida durante a Guerra Fria, nomeadamente com outras potências a emergir, como a China. Este contexto global cria uma nova tensão para a qual a UE procura encontrar soluções. Hoje, acontecimentos ou tendências internacionais recentes interpelam a UE a repensar-se. Em que sentido? Assim se explica, por exemplo, a adopção recente da uma bússola estratégica em que configura orientações para os novos desafios de um mundo em mudança. E há que tomar posição relativamente a essa situação nova, profundamente perturbadora do quadro de segurança estabelecido, que é uma guerra às portas da UE. Ainda por cima desencadeada por um grande Estado que partilha a geografia europeia. Um Estado que, durante algum tempo, se pensou honraria a sua responsabilidade especial consagrada na Carta das Nações Unidas, que após a Guerra Fria ensaiou uma estratégia de alguma aproximação aos países ocidentais, mas que agora não coloca em crise todo esse quadro de segurança da Europa. Na sua óptica, qual o papel da UE neste contexto? A guerra na Ucrânia interpela a UE a regressar e reafirmar os seus valores, a dar resposta a questões práticas imediatas, como o enorme fluxo de refugiados, ou ainda a questões politico-diplomáticas como a procura da Ucrânia por um ancoramento no horizonte europeu. Isto tendo em conta que a Georgia e a Moldávia também pediram a adesão a UE por viverem situações de proximidade com a realidade que a Ucrânia já vivia antes da guerra. A entrada da Ucrânia na UE é possível, juridicamente, neste contexto? Que implicações terá? Os critérios de adesão à UE exigem que o Estado candidato tenha uma economia de mercado funcional e seja um Estado de Direito. Há depois procedimentos que têm de ser cumpridos para provar o preenchimento destes requisitos, nomeadamente estabilidade e segurança. Procura-se que a adesão não conduza a conflito ou instabilidade no quadro da UE. Num tal quadro mais largo de exigências, esta pode ser uma condição difícil de preencher. Os Estados-membros terão depois de tomar uma posição, conjuntamente com a instituições europeias. Há indícios de uma compreensão muito aguda por parte dos europeus de quanto a situação na Ucrânia os interpela. Temos uma tomada de posição institucional, sobretudo da parte da presidente da Comissão Europeia, que reconhece a legitimidade da Ucrânia em prosseguir esta aspiração. Teremos de ver como os líderes dos Estados-membros reagem. Outros factores concorrem em sentido divergente, tal como o facto de algumas candidaturas à UE passarem por um processo demorado até obterem resposta. Muito se tem falado da necessidade de a UE ter uma nova estratégia em matéria de defesa. Qual a sua posição? A UE não era, inicialmente, um projecto de defesa ou militar. O fim da Guerra Fria teve o efeito paradoxal de fazer a UE perceber que a dimensão política também era importante e que na reconfiguração do mapa geopolítico, com a dissolução da URSS e a reconfiguração do mapa da Europa, teria de assumir uma vertente de segurança e defesa. Isso explica que a UE após Maastricht e, sobretudo o Tratado de Lisboa, tenha assumido uma política externa comum onde o vector defesa que tem crescido ao longo dos tempos. Este conflito na Ucrânia vai obrigar a UE a testar os seus limites e a pensar em termos inovadores como é que prossegue este vector num quadro mais hostil e menos estável. Muitos Estados na UE têm uma relação histórica com o centro russo da [antiga] URSS que trazem este tema para a agenda da UE de forma mais determinada. Como o fazem outros Estados em posições de liderança, como a França e Alemanha. A noção de que existem riscos sérios de segurança à porta da Europa, que é necessário uma resposta muito unida e determinada relativamente a ameaças do exterior levam a UE a ter de pensar de forma inovadora. Temos sinais de que alguma coisa está a acontecer. Tais como? A acusação fundada de que os europeus não contribuíam o suficiente para a NATO e para a sua própria segurança, poderá estar a perder actualidade. Assiste-se também ao repensar de posição de Estados neutrais membros da União. A UE terá de pensar qual será a forma eficaz de responder aos desafios com que se confronta na área militar e de segurança, mas também na área diplomática e de acção humanitária. A relação com a NATO será uma questão central neste quadro, mas ela também se joga noutros campos da actualidade da UE. A questão do acordo-quadro entre a China e a UE em matéria de investimentos ficou pendente nos últimos meses. Que expectativas tem nesta matéria? O acordo parecia-me interessante e importante para aproximar a UE de um actor fundamental nas relações internacionais contemporâneas. Neste período de grande instabilidade nas relações internacionais, em que todas as certezas foram postas em causa, mais proximamente por força da pandemia e em que todos os processos da globalização que pareciam sólidos se revelaram afinal, algo frágeis, era importante evitar mais um vector de tensão. Mas esse vector existe. Um acordo como este correspondia a aspirações da UE e da China de revigorar as respectivas economias e sociedades e dar um passo em frente numa relação que vinha a esmorecer, apesar da proclamação de que a relação configuraria uma parceria estratégica. O acordo contemplava elementos muito inovadores no sentido de integrar a China numa visão de construção do mundo segundo regras que foram criadas na ordem mundial para o conjunto dos seus membros. Sabe-se, porém, que, por forças de práticas de direitos humanos que serão contraditórias com tais aspirações e as regras do próprio acordo, o Parlamento Europeu introduziu um elemento de perturbação neste processo de aproximação. Parece-me que, de momento, não há dados novos que permitam ultrapassar esta situação. A última cimeira UE-China teve, deste ponto de vista, poucos resultados palpáveis e as diferentes posições em relação ao conflito que marca a hora presente [Ucrânia] acabam por ter um impacto negativo. As possibilidades práticas de retomar este acordo, num quadro com discursos de tom diferente, não me parecem ser a perspectiva mais imediata. Isso não quer dizer que não fosse útil. Mas gostaria de frisar quão auspiciosos são, pelo contrário, os entendimentos entre a UE e a China no domínio da resposta internacional às alterações climáticas, bem como da relevância das instituições internacionais e do multilateralismo, numa senda de governação global em que importa que estes dois actores principais das relações internacionais contemporâneas estejam comprometidos. É no quadro desta perspectiva que via como particularmente relevante o acordo compreensivo sobre investimentos. Quais os grandes desafios da UE nos próximos tempos? É óbvio que estamos perante uma emergência. Este conflito injustificado tem reflexos imediatos na UE. Pede respostas imediatas no plano humanitário de acolhimento de refugiados, e a UE respondeu de forma condigna a essa crise. Exige também resposta diplomática de UE para surtir efeitos, nomeadamente de diálogo com a Rússia. Há também que permitir, por um lado, a legítima resistência da Ucrânia e sinalizar, ao mesmo tempo, à Rússia, que as suas acções são uma clara violação do Direito internacional e, por isso, têm de ser devidamente sancionadas. A UE tem sinalizado Estados que mais directamente se têm sentido agredidos, não lhes negando o horizonte europeu a que aspiram. Isso vale para a Ucrânia mas também para a Geórgia e Moldova que têm experiências similares, com ocupações parciais dos seus territórios. Mas a UE tem de lidar também com questões estruturais. Uma delas é a pandemia, que acentuou a necessidade de reconstruir o tecido sócio-económico tão afectado. A UE tem também que contribuir para uma globalização mais justa e sustentável, em que os diversos actores não tenham que viver angústias perante a paralisia dos processos globais. As crises e emergências que se esperam não devem também fazer perder de vista a relação com o ambiente e a preservação do planeta. Há que fazer a transição climática, não sendo permitidos adiamentos, tal como a transição digital que deve estar ao serviço da humanidade, da ecologia e do respeito pelos direitos dos indivíduos. Além disso, a guerra na Ucrânia coloca uma nova urgência na prossecução da transição energética, sem mais delongas, apesar de provavelmente ser um processo custoso.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteCarlos Ascenso André, académico e linguista: “Língua portuguesa tem a dimensão do mundo” Celebra-se hoje o Dia Mundial da Língua Portuguesa e, para Carlos Ascenso André, tradutor, académico e linguista, é fundamental chamar a atenção para a grandeza de um dos idiomas mais falados do mundo. O especialista em literatura clássica defende que a língua portuguesa é apenas uma e que o papel de Macau é agora outro na difusão e ensino do idioma, bem como na formação de professores Este dia significa o quê, na prática? Não sou dado a dias internacionais. Acho estas efemérides importantes enquanto se justificar chamar a atenção para o que deu origem a esses dias internacionais. O Dia Internacional da Mulher, por exemplo, é importante enquanto houver desigualdade de género. No caso da língua portuguesa, este dia justifica-se para chamar a atenção, a vários níveis, para a sua importância. Deve-se chamar a atenção de fora do universo da língua portuguesa, pois nem todas as pessoas desse universo têm a consciência da grandeza e importância do idioma. Falo dos países que não são falantes da língua. Mas deve-se também chamar a atenção dentro do universo do português, porque uma grande parte dos seus falantes não se dá conta dessa importância. Não me importa falar do lugar que ocupamos em termos do número de falantes, mas sim chamar a atenção para uma língua que nasceu num território minúsculo e ganhou as fronteiras do mundo. Isto é uma coisa que merece dois sentimentos, admiração e respeito. Não tem a ver com o passado colonial e não devemos confundir essas realidades. Ganhámos esta grandeza e é uma língua que vai crescer muito mais do que as outras. Segundo as últimas projecções estatísticas, se não houver nenhum cataclismo em África, chegaremos a 2100 com mais de 500 milhões de falantes de português. Vamos duplicar o número actual. O resto decorre tudo daqui: podemos falar das escolas, das universidades, do crescimento da língua nos vários territórios. Portugal é um país de escritores, mas não tanto de leitores. Actualmente, no sistema educativo, os nossos autores são bem ensinados e divulgados? Não tenho uma visão tão pessimista em relação ao número de leitores que existem hoje. Tenho uma visão pessimista em relação à apetência por bens culturais que se verifica na sociedade moderna, há explicações para isso. O número de atracções é muito grande e as pessoas gastam menos tempo na leitura. Comparo os meus netos comigo. Eu cresci numa aldeia e visitava sempre a biblioteca itinerante da Gulbenkian, e pouco mais tinha para fazer a não ser ler. Hoje os meus netos têm iPads, computadores, e, apesar de tudo, gostam de ler, e eu sinto-me feliz com isso. Acho, com realismo, que é preciso fazer alguma coisa pelos nossos leitores. Os nossos responsáveis devem preocupar-se na presença dos nossos autores clássicos no panorama cultural e nos programas educativos. Escritores como Eça ou Camões mereciam outro lugar nos programas educativos. Mas é preciso que os nossos professores saibam ensinar esses escritores, para que não sejam odiados. Camões, se não for bem ensinado, pode ser odiado. Mas não podemos falar só de clássicos, pois a língua portuguesa tem a dimensão do mundo. Temos o Machado de Assis, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade. Tem o Craveirinha e Mia Couto, em Moçambique. Estes autores precisam de ser trazidos para a mesa do nosso convívio. Isto faz falta para termos a dimensão da língua portuguesa e acho que esse passo não foi ainda totalmente dado. Se olharmos para o nosso passado colonial, não há ainda a união certa entre esses vários autores de língua portuguesa? Há, mas uma coisa são as instituições, outra são as pessoas. Refiro-me à língua portuguesa e às culturas de língua portuguesa. Tenho essa preocupação, sobretudo agora que presido à Associação Internacional de Lusitanistas. Algumas pessoas cultas, falantes de português, não têm a noção de que a língua portuguesa é só uma. No Brasil há muita gente que não pensa assim, e é um erro. Mas as culturas de língua portuguesa são muitas. Esta é uma realidade que contribui para a nossa riqueza e é um enorme património sobre o qual é preciso alertar as pessoas desde os bancos da escola. E penso que não se faz isso. A chegada da língua portuguesa à China foi o grande desafio para Portugal em matéria de política externa de língua? Está a ser, mas não foi. Quem apostou mais forte no crescimento da língua portuguesa no Oriente foram os chineses e não os portugueses. Nós fomos atrás deste impulso mas não fomos os primeiros. A China fez isso por motivos de natureza política, e na sua expansão, sobretudo comercial, ocupou um lugar de enorme relevo nos países de língua portuguesa. O país também quer estar na Europa e usou Portugal como porta de entrada para isso. Precisou, assim, da língua como instrumento, exactamente como os jesuítas precisaram do chinês para fazer a sua penetração na China. E foi graças a esse lado comercial que o português cresceu muito no interior da China. Em 2013, quando cheguei a Macau, havia 12 ou 14 universidades chinesas que leccionavam português. Em 2018 havia 43, e agora são 55. Este é um crescimento fantástico. As instituições portuguesas aperceberam-se desse crescimento e hoje há uma aposta política e um forte investimento no desenvolvimento da língua a Oriente. O Brasil fez esse trabalho do ensino da língua e edição de livros mais cedo? O Brasil tem mais vantagens do que Portugal, nomeadamente graças aos autores, que têm um maior potencial de leitores do que os autores portugueses. Uma das minhas traduções do latim foi sendo publicada em Portugal com edições de mil a dois mil exemplares, enquanto que no Brasil teve uma edição de 20 mil exemplares. Mas gostava que houvesse um envolvimento dos países de língua portuguesa, sem Portugal, nesta política de internacionalização da língua. Não vejo nem o Brasil, Angola ou Moçambique a fazerem investimento semelhante como aquele que é feito por Portugal através do Instituto Camões. Portugal é o país mãe da língua, mas justificava-se, sobretudo do Brasil, um maior investimento. Se o investimento do Brasil no ensino da língua e das culturas portuguesas fosse proporcional ao número de agentes de ensino que trabalham em instituições de todo o mundo, seguramente que estaríamos bem melhor. No caso de Macau, considera que as sucessivas administrações portuguesas fizeram pouco pela língua portuguesa no território, e menos do que o que está a ser feito pela RAEM? Não tenho essa impressão. Portugal tem dois fortíssimos agentes em Macau que dependem de financiamento português, que é a Escola Portuguesa de Macau (EPM) e o Instituto Português do Oriente. O resto é feito por instituições locais. Os outros fazem o que podem tendo em conta as necessidades do mercado, e há que distinguir as realidades. Da parte do Governo de Macau todo o investimento resulta de opções políticas e não de necessidades do sistema. É o honrar do compromisso que está na Lei Básica, não precisa de ir além disso e penso que às vezes vai bem além disso. Portugal não tem a obrigatoriedade de fornecer os elementos que o sistema precisa, tem é de fazer uma aposta política no crescimento da língua. Através da EPM e do IPOR, que fazem um trabalho excelente, Portugal está a cumprir o que deve. As instituições políticas em Portugal têm demonstrado sempre muito respeito por aquilo que é feito em Macau. Macau vai perder relevância como plataforma no ensino da língua? Macau desempenhou um papel fulcral num determinado momento, que foi o período de 2013 a 2019, que foi assumir a liderança do processo no interior da China, e peço desculpa por falar em causa própria. Fizemos isso com o Centro Pedagógico e Científico da Língua Portuguesa, fazendo formação de professores e reunindo com universidades, mas estas desenvolveram-se. Mas em breve haverá um professor doutorado em várias universidades chinesas. Chegamos a este ponto e o papel de Macau já não é o mesmo, pois essas instituições ganharam o estatuto de razoável autonomia e dispensam um pouco o paternalismo das instituições de Macau. O território deve ter um papel de acompanhamento. O que tem a língua portuguesa de mais apaixonante junto do estudante chinês? O que mais atrai os estudantes é o mercado. Os chineses aprendem português porque é um bom instrumento para ter um emprego. Sobre a cultura de língua portuguesa há sobretudo curiosidade. Mas há duas ou três coisas que os atraem, que é o facto de esta ser uma língua de Portugal e aberta a outras latitudes. Fascina-os o facto de ser uma língua de outros países maiores. Fascina-os a relação que a língua mantém com a Europa, e desde 1974 somos um país aberto à Europa, depois do 25 de Abril. Os alunos chineses fascinam-se sobre essa abertura. Não somos uma ilha isolada e fazemos parte da cultura mediterrânica.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteRostam Neuwirth, académico: “Macau está focada no lado bom da inteligência artificial” O director do departamento de Estudos Jurídicos Globais da Universidade de Macau, Rostam Neuwirth publica em meados de Agosto o livro “The EU Artificial Intelligence Act: Regulating Subliminal AI Systems”. O académico olha para a proposta de lei da Comissão Europeia que visa regulamentar usos e efeitos negativos da inteligência artificial e defende um maior debate mundial sobre esta matéria, incluindo em Macau Este livro analisa a proposta de lei da Comissão Europeia que regulamenta a inteligência artificial e também uma recomendação da UNESCO. Esta é uma problemática que vai estar cada vez mais presente no nosso dia-a-dia? O livro foca-se essencialmente na legislação proposta pela Comissão Europeia, que ainda não está em vigor. Esta proposta, que entra agora num complexo processo legislativo, deverá ser implementada no final deste ano. A proposta foi tornada pública em Abril do ano passado e visa apenas a União Europeia, mas depois a UNESCO adoptou também uma recomendação focada apenas nas questões éticas associadas ao uso da inteligência artificial. Não se trata de uma lei ou de um tratado internacional, mas revela um consenso e preocupação da UNESCO sobre as questões éticas associadas à inteligência artificial. A sua pergunta é filosófica e prática ao mesmo tempo, porque, se olharmos da perspectiva de que nada é novo e que a tecnologia há muito que vem acompanhando a evolução da humanidade, ao mesmo tempo percebemos que a inteligência artificial é algo novo que traz desafios. Não sabemos o que vai acontecer. O que é claro é que vemos um rápido desenvolvimento dos ciclos de inovação tecnológica nas últimas décadas. A rapidez com que são introduzidas inovações está a acelerar. E o que atingiu um nível sem precedentes é esta extensão da tecnologia face ao corpo humano. Com a inteligência artificial chegámos a um ponto em que, pela primeira vez, replicamos a mente humana. Até agora era apenas feita a reprodução dos movimentos do corpo humano. Será possível prever comportamentos através destes dados e da combinação destas tecnologias? Será que irão manipular a mente humana? À medida que conhecemos mais o sistema, melhor o podemos usar. A tecnologia tem um lado bom e mau, e se traz benefícios ou efeitos negativos depende sempre do uso que lhe damos. De que forma a proposta da Comissão Europeia aborda estas questões? O meu livro analisa um artigo desta proposta de lei sobre a proibição dos sistemas de inteligência artificial recorrerem a técnicas subliminares. Esta é uma questão interessante, definir o que é subliminar. Mas isto levanta uma consciência relativamente aos nossos pensamentos e comportamentos. A legislação também chama a atenção para um efeito negativo desta manipulação, que segundo a proposta deve ser regulada e proibida caso isto aconteça. Falamos das primeiras propostas legislativas sobre este assunto, a nível mundial? Na União Europeia sim. Quando, no processo de pesquisa para este livro, falei com cientistas e especialistas em computação, disseram-me que a inteligência artificial não faz sentido. Mas surgiu como conceito que é difícil de definir de uma forma conclusiva. Penso que o que é novo na União Europeia é uma tentativa de regular, de forma específica, a inteligência artificial, porque já existe legislação a nível mundial que regula alguns destes aspectos, como os dados pessoais ou as plataformas de redes sociais. O problema é que a inteligência artificial está de facto a penetrar em todos os campos das nossas vidas. É uma questão multidisciplinar. A minha preocupação com este livro é ver como a lei será aplicada. Pode haver uma fragmentação se olharmos em termos de Direito público, privado, para os sectores da saúde e das forças de segurança. As ferramentas com as quais tentamos lidar com este fenómeno estão ainda muito fragmentadas. A União Europeia deu um passo e a UNESCO também, no sentido de tentar olhar para a inteligência artificial [no seu todo]. Pelo que tenho visto nos últimos 20 anos, em matéria de regulação de media, por exemplo, é que há uma convergência. Uma das contradições do nosso tempo é que a tecnologia está a convergir ao mesmo tempo que a legislação diverge. Em que sentido? Há um cientista político que escreveu um livro intitulado “Cosmopolitismo” que diz que o paradoxo dos nossos tempos é que temos problemas globais tratados e olhados de forma local. Vimos isso na pandemia, que é um problema mundial, mas que foi tratado localmente. No livro diz que a inteligência artificial traz dificuldades severas em matéria de Direito e da própria democracia. Esta área vai ter um maior impacto em actos eleitorais ou no mundo da política, influenciando a opinião pública? Infelizmente não é uma novidade, porque tivemos o escândalo da Cambridge Analytica. Em todas as eleições vemos queixas sobre uma interferência do exterior, da Rússia, por exemplo. Esta é já uma realidade, a existência de plataformas como o Twitter ou o Facebook [com impacto nos resultados eleitorais]. Um dos aspectos importantes destas plataformas e do poder destes dados é que, conscientemente, permitimos a manipulação. Nos anos 50 já ouvíamos falar de publicidade subliminar, uma experiência feita nos cinemas e com marcas como a Coca-cola, por exemplo. Eram mostradas imagens que só eram percepcionadas pelo nosso inconsciente. Segundo alguns livros, temos plena consciência em apenas cinco por cento das situações, sendo que nos restantes 95 por cento não temos essa percepção. Quando conduzimos um carro há muitos gestos que são automáticos, por exemplo. Esta publicidade sublimar teve um impacto e houve legislação europeia que proibiu isto. Em Macau há também uma lei sobre esta questão que vigora até hoje. Actualmente, este tipo de publicidade subliminar está muito mais sofisticada, e quando combinamos vários tipos de tecnologia com dados e comportamentos humanos é verdade que estas tecnologias te conhecem melhor do que tu te conheces a ti próprio. Quem controla os algoritmos e estas tecnologias tem um grande poder e claro que pode manipular comportamentos. Este debate em torno da inteligência artificial vai estar muito presente nos próximos 30 a 40 anos e sobre esta legislação em particular cada país deveria fazer o seu debate, porque estas plataformas operam de forma global. Acredita que as autoridades de Macau vão prestar mais atenção à regulação desta matéria nos próximos anos, tendo em conta o debate que tem surgido na área dos dados pessoais, por exemplo? A lei que vigora em Macau foca-se apenas na transmissão de publicidade subliminar na televisão, que é proibida. Isto trouxe um importante precedente. Estudos feitos depois do ano de 2000 confirmam que estas técnicas são eficientes, podemos mostrar imagens muito rapidamente e [manipular] o consumidor. Sabemos o diferente impacto que têm jogos violentos, por exemplo, e há muitos factores a ter em conta, mas os efeitos estão cientificamente provados. Acredito que toda a jurisdição deveria debater estas matérias e vemos que a China, por exemplo, tem tentado reduzir o tempo que as crianças gastam a jogar online. Mas é uma aproximação sectorial. Muitas máquinas são desenhadas com o efeito de manipular, pois quanto mais tempo se vê mais se consome. Estes são os lados negativos e penso que mesmo em Macau estas questões têm de ser analisadas. Na Universidade de Macau discutimos muitas vezes a questão do efeito do digital na educação, após um período de aulas online devido à pandemia, e há perigos em termos psicológicos da utilização online. Em Macau, um estudo conduzido por um colega mostra que o vício da internet aumentou nos últimos dois anos. As iniciativas legislativas têm de seguir este caminho, embora haja diferentes aproximações por parte das jurisdições. Penso que neste momento Macau está focado no lado bom da inteligência artificial, com a ideia de cidade inteligente e na resolução do problema do trânsito, por exemplo, e não tanto nos efeitos negativos. Temos de usar a tecnologia a fim de reduzir os perigos e maximizar os benefícios.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteJosé Duarte de Jesus, autor de “O outro lado da diplomacia (1960-2007)”: “Há conversas que revelam uma outra China” A nova obra do embaixador português jubilado revela uma conversa com Li Peng, ex-primeiro ministro da China, sobre a tentativa do líder chinês de dialogar com os estudantes na praça Tiananmen. O livro de José Duarte de Jesus inclui conversas com algumas personagens relevantes na política do século XX, como Mário Soares e Samora Machel, e informações diplomáticas com base em documentos agora desclassificados. O livro foi apresentado no passado dia 21 de Abril no Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa Fotografia de Álvaro Isidoro, Global Imagens Afirma que este não é um livro de memórias, reunindo situações e conversas que foi tendo ao longo da sua vida diplomática. Porquê esta partilha? Tive sérias dúvidas em publicar o livro. Achei que tinha falta de conteúdo, que não era interessante, mas um grupo de pessoas incentivou-me [a publicar]. O livro tem coisas muito diversas, não só as personalidades que refiro, como as épocas e lugares em que essas conversas tiveram lugar, que vão desde o Norte de África a França ou à China. As partes mais substantivas dizem respeito a Moçambique e à China. O que estas conversas e testemunhos dizem da sua carreira como diplomata? Não é tanto sobre a minha carreira. Muitas das personalidades com quem falei foram importantes, como as mais antigas do período da guerra colonial e a Portugal. Há coisas que eu refiro passadas em França com o Mário Soares, por exemplo, sobre o fim da URSS, e que me pareceram interessantes acerca das posições sobre a queda da URSS, se se devia intervir [no processo] ou não. Depois, sobre África, as informações que eu incluo têm muito a ver com a política portuguesa no início dos processos de independência [das antigas colónias], nomeadamente de Moçambique, tal como conversas com Samora Machel ou matéria sobre a política de Jaime Gama [ex-Ministro dos Negócios Estrangeiros]. Há ainda muita coisa que não se conhece. Tornei pública essa informação depois de ter recebido autorização para desclassificar muitos documentos que estavam no arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Sobre a China apresenta dois episódios interessantes. Há conversas que revelam uma outra China, que não a China oficial. Uma delas foi uma conversa que tive com Li Peng sobre os acontecimentos de Tiananmen ou com a filha de Deng Xiaoping, pintora, Deng Ling, de quem cheguei a organizar uma exposição em Portugal. Foi interessante ver o que ela pensava sobre Mao Tse-tung e o posicionamento da China. Já em 2007, fui chefiar uma delegação da União Europeia (UE) à China para um diálogo sobre liberdade religiosa e direitos humanos. Foi uma viagem reveladora de uma série de coisas que passam um pouco à margem do que chamaria de “diplomacia oficial”. Voltemos à conversa com Li Peng. Este disse-lhe que procurou dialogar com estudantes na praça de Tiananmen, mas uma estudante chegou a cuspir-lhe em cima. Essa conversa nem foi directamente comigo, mas com Mário Soares. Eu estava ao lado dele. Foi num jantar aquando da visita oficial de Soares à China. O Mário Soares, sendo uma pessoa irreverente, resolveu falar da questão de Tiananmen, e ele [Li Peng] disse que a sua filha teve uma importância especial [face a Tiananmen], tendo referido que tentou dialogar com os manifestantes, que tinha ido à praça de Tiananmen e que lhe tinham cuspido na cara. Ele disse que não podia fazer nada e voltou para trás. Contou que a filha disse não querer mais que o seu pai se sujeitasse a uma situação dessas, que a envergonhava. Esta história pareceu-me importante para vermos a problemática por detrás da história de Tiananmen. Esta conversa revela que Pequim também quis dialogar com os estudantes. Há uma série de documentos que foram publicados, “Tiananmen Papers”, que mostram o que se passou e que ainda hoje muito está por saber, sobre os elementos que fomentaram a impossibilidade de entrar em diálogo, nomeadamente serviços secretos de outros países. Quem descreve isso muito bem é [Henry] Kissinger. Um grande amigo da China, mas um homem republicano, americano, que disse que o grande objectivo do país era manter a paz e o equilíbrio internamente e havia quem quisesse o contrário. Havia [em Tiananmen] um movimento espontâneo que foi largamente manipulado por forças com interesses estrangeiros. A China não tinha serviços de polícia, só tinha exército. Depois houve conversas com Portugal para arranjar uma polícia de cavalaria. Pensou-se que era melhor ter cavalos contra multidões do que tanques do exército. O exército foi enviado para a praça Tiananmen porque não havia outra opção? Exactamente. Mas não sei como ficaram esses diálogos com Portugal. Esses interesses de que falou relacionam-se com a queda da URSS e com a tentativa de reduzir a influência do comunismo? A ideia era provocar o Governo chinês. É difícil saber hoje qual era o movimento espontâneo e qual a manipulação que se estava a fazer por detrás. Os “Tiananmen Papers” revelam até diálogos que chegaram a existir com as autoridades de Pequim que receberam delegações de estudantes, com o diálogo a ser totalmente impossível por parte destes. Dava a ideia de uma vontade de provocar e não de dialogar. Sobre a conversa com a filha de Deng Xiaoping, decorreu em 1994, já num outro período. Falamos de Mao Tse-tung, na Revolução Cultural. Recordo-me de um exemplo que ela me deu, afirmando que houve excessos, mas que era importante lembrarmo-nos do primeiro imperador Han, que teve movimentos terríveis contra o Confucionismo. Ela dizia que ele era celebrado pelas coisas positivas, como a Muralha da China, por ter unificado a escrita, por ter permitido a criação de uma entidade própria, e não pelas coisas más. Estas conversas mostraram uma China diferente do que é vendido pelo Ocidente. Já em 2007, deslocou-se novamente a Pequim, chefiando uma delegação da UE. Ficou surpreendido com o que viu? Fiquei eu e parte da delegação, que era composta por pessoas de várias nacionalidades. No livro cito uma conversa com um monge budista sobre a liberdade religiosa, num mosteiro que não ficava muito longe de Pequim, que dá uma visão diferente das coisas. Também incluo uma conversa que tive com o então bispo de Pequim, que era presidente de um órgão da Assembleia Popular Nacional. Claro que a Igreja chinesa tem uma desobediência disciplinar em relação Vaticano, não é uma dissidência de fundo. Os bispos nomeados são reconhecidos pelo Vaticano, mas há uma disciplina diferente, mas isso hoje está a ser ultrapassado. Também aqui em matéria de liberdade religiosa a China está à procura de diálogo? Aposta no diálogo, absolutamente. Foi isso que retirei da conversa com o bispo de Pequim. É curiosa a ligação com Portugal, algo que eu desconhecia, através da escolha do primeiro nome português. Sobre a Coreia do Norte, faz referências a Kim Jong Nam, presidente do Presidium da Assembleia Popular Suprema da Coreia do Norte, e com o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros. Achei Kim Jong Nam um tipo extraordinário, que visitou Macau. Deu-me a ideia de ser um homem capaz de dialogar, embora a Coreia do Norte não tenha nada a ver com a China. Costumo dizer que não é um país mas um laboratório psíquico. As pessoas que encontramos na rua são automatizadas e psicologicamente condicionadas. Kim Jong Nam era um homem que podia ser aproveitado pelo Ocidente como um pólo de diálogo. Essa visita de Kim Jong Nam a Macau, que resultados teve? Durante bastante tempo havia um relacionamento de Macau com a Coreia do Norte que passava um pouco à margem de uma série de coisas. Hoje não sei se existe essa ligação, mas na altura era uma ligação comercial e não só. Havia uma série de coisas secretas que se passavam, chegou-se a verificar que havia notas falsas da Coreia impressas secretamente em Macau. Não eram ligações directas com o Governo de Macau e penso que depois as autoridades tentaram abolir isso. África tem também uma posição muito central neste livro. Samora Machel [ex-presidente de Moçambique] teve uma época muito ligada a Moscovo e depois teve uma nova época com o novo congresso da Frelimo em que isso foi ultrapassado. Em grande parte quem convenceu os EUA a ajudar o novo rumo da Frelimo foi o Jaime Gama, quando foi ministro. Samora Machel, em conversa comigo, levou-me à janela e disse-me para serem retirados os tanques soviéticos, para que nós fôssemos para lá. Houve uma série de processos secretos em que estive envolvido, pois os EUA forneciam dinheiro, através de nós [Portugal] secretamente. Fui incumbido de tratar dessa operação secreta. Abri uma conta na Suíça, o número dois da embaixada americana trazia-me um cheque ao meu gabinete e eu depositava na Suíça. Tudo num segredo total sem conhecimento do restante Ministério. O nosso embaixador na Suíça perguntava o que eu ia lá fazer, e eu dizia que ia numa outra missão. Jaime Gama dava-me ordens para essa transacção. Com esse dinheiro comprávamos armamento não letal para a Frelimo contra a Renamo, que estava feita com a África do Sul. Os EUA pagavam e isso era feito através de Portugal para ajudar a Frelimo contra a África do Sul.
Julie Oyang Entrevista MancheteMichael Xincheng Du, coleccionador de arte e antiguidades chinesas: “A civilização chinesa está pronta para uma nova interpretação” Após uma carreira no comércio e negócios internacionais, Michael instalou-se no Canadá e mergulhou no mundo dos coleccionadores, acumulando uma colecção excitante e invulgar. Agora a viver entre a sua terra natal, a China, e a sua nova casa, ele percorreu um longo caminho desde as suas raízes, crescendo em Harbin, a cidade do nordeste da China com um forte sotaque europeu. O que inicialmente inspirou o seu interesse em coleccionar arte e antiguidade chinesa? As primeiras obras que comprei foram em mercados de antiguidades, todo o tipo de artefactos em que tropecei, desde mobiliário Ming huanghuali a auspiciosos objectos de jade, a arte e ícones budistas. Depois de viver com eles durante algum tempo, percebi que estava um pouco envergonhado com a minha escolha aleatória. Sou emocional, mesmo obsessivo na minha resposta à arte e se o trabalho reflecte algo sobre o meu eu interior. Senti que me faltava algo que me tocasse verdadeiramente, mas não sabia o que me estava a faltar no início. Então não é só o prazer estético que é importante para si. Procura também uma experiência mais pessoal e mais autêntica como coleccionador? Quando comecei a coleccionar há muitos anos, já tinha percebido que era minha vocação trazer de volta o magnífico passado da civilização chinesa através do meu trabalho. O que eu precisava era de uma ligação íntima e intensa com o passado. Uma centelha privada, por assim dizer. Quero que esse passado esteja vivo na minha imaginação! Então o que aconteceu? O que aconteceu foi Yuan. Para um chinês, Yuan, ou destino, é escrito com incontáveis fios de seda cruzados. Ao contrário do destino ocidental, Yuan leva frequentemente a um resultado positivo. Foi há 25 anos atrás. Lembro-me que tinha um encontro com um amigo coleccionador de móveis na Áustria para ver algumas peças únicas que ele me queria mostrar em sua casa. Como fui conduzido através da sua arrecadação bastante cheia, algo em cima da mesa chamou-me a atenção. Era um dragão em forma de C feito de pedra de jade. Foi assim que me familiarizei com Hongshan, a cultura pré-histórica, em grande parte desconhecida mas única e surpreendente, que remonta a pelo menos 8000 anos. Então aprendeu o nome de Hongshan com um coleccionador estrangeiro?! Aprendi todos os dias com todos os tipos de pessoas e estranhos. Mas a cultura de Hongshan prova quão diversa e rica é a civilização chinesa e até que ponto ela remonta no tempo. Senti-me instantaneamente atraído pelos artefactos excêntricos e não categorizáveis de Hongshan, especialmente as esculturas de dragões em forma de C. É como se eu tivesse descoberto o meu animal espiritual de tempos esquecidos! A partir desse momento tenho querido recolher todos os artigos de Hongshan em que posso pôr a minha mão (risos). Foi assim que se tornou uma autoridade sobre a cultura de Hongshan. Na altura em que fala, é dono da maior colecção. Sim, absolutamente. Assim que comecei a aprofundar o assunto que permanece controverso entre os historiadores até hoje, sinto-me inspirado e intrigado. Hongshan recusa-se a fazer parte da história “oficial” chinesa. Na verdade, está a colocar um grande ponto de interrogação sobre a origem da civilização humana na Terra! Os sítios arqueológicos Niuheliang, Hongshanhou e Weijiawopu são importantes sítios representativos da cultura de Hongshan. O sítio arqueológico Niuheliang está localizado entre o Planalto Mongol e a zona offshore da planície do Norte da China, o sítio arqueológico Niuheliang apresenta o Templo da Deusa, que é um exemplo notável da história da criação que ostenta a maior escala, a mais alta patente, e a mais proeminente expressão de crenças que podem não ser da Terra. Acredita que o Templo da Deusa é dedicado aos visitantes extraterrestres que criaram a humanidade utilizando tecnologia extraterrestre? Tenho tido extensos intercâmbios com o futurista americano Nova Spivack sobre este assunto. Tal como eu, Nova é obcecado por Hongshan. É um empresário de tecnologia com um enfoque único na cultura. A sua Biblioteca Lunar mostra a sua ambição e grande visão. Esta Biblioteca Lunar é feita de pequenas páginas e imagens gravadas, contendo a nossa história humana mais importante e os tesouros culturais de todas as nações. Um backup do planeta Terra, na Lua, que irá durar até 5 mil milhões de anos. Investigações conduzidas tanto por Nova como por outras equipas científicas sobre artefactos de “imagens alienígenas” de Hongshan identificaram minerais de outros planetas. A descoberta deixou-me bastante emocionado. Isto significaria que toda a história humana poderia um dia ser reescrita e a chave está na minha colecção! Será esta a razão pela qual fundou uma nova casa de leilões de arte em conjunto com os seus parceiros chineses? A boa arte é dinâmica e a nossa interacção com a arte evolui a todo o momento. Reflecte as nossas vidas e experiências em mudança. Como coleccionador de arte, orgulho-me de fazer parte do renascimento chinês e de me envolver no rejuvenescimento da civilização chinesa. Quero envolver pessoas comuns no meu processo privado de curadoria e tornar cada vez mais pessoas proficientes na cultura e arte chinesas, o que é em grande parte desconhecido do mundo exterior. Penso que isso é errado. Onde fica a sua casa privada de leilões de arte? Fundada em Dezembro de 2020, a Baozhen International Art Auction House está localizada na cidade de Yantai, Shandong, a província natal de Confúcio. Sentado na praia com vista para as ondas tranquilas do Mar Amarelo, o edifício de escritórios cobre um total impressionante de 32.000 metros quadrados, incluindo 2000 metros quadrados para exposição permanente, 2000 metros quadrados para entretenimento e lazer, 2000 metros quadrados para restauração e restaurantes exclusivos. Temos também uma secção hoteleira separada, quartos e suites VIP. Quero que este lugar seja confortável, acolhedor e elegante, com uma grande orquestração de objectos e obras de arte a serem apresentados com muita atenção à História – o que deverá ser uma interacção viva e significativa com o futuro. É assim que vejo a história: não como o passado mas como algo virado para o futuro e orientado para o futuro. Isto é um contraste incrível ao apresentar o passado e as suas influências na nossa vida quotidiana, não é? A China mudou drasticamente nas últimas décadas, as cidades são quase como lugares de um planeta diferente. Olhando para trás, percebo que o passado é um tesouro de ideias inexploradas. O passado chinês tem lutado para obter mais exposição. A civilização chinesa é requintada, refinada e NÃO é aborrecida. Pelo contrário, é relevante, criativa e cheia de surpresas. O mundo é um presente inesperado. Tem uma força nutritiva sobre todos nós, tal como a Deusa de Hongshan. O grande escritor chinês Lu Xun (1881-1936) escreve sobre o dia em que a Deusa criou o mundo. “Ela caminhou para a beira-mar no mundo vermelho-carne, as curvas do seu corpo fundindo-se no mar de luz feito de rosas pálidas. Até que surgiu uma ruptura a partir do centro do seu corpo, alargando-se lentamente até se tornar um branco puro. As ondas no mar ficaram espantadas e atordoadas, subiram e caíram de forma ordeira”. Creio que a civilização chinesa está pronta para uma nova interpretação.
Hoje Macau EntrevistaJosé Ramos-Horta, presidente eleito de Timor-leste: “Gostaria de mobilizar investidores portugueses” O Presidente eleito timorense disse que vai aproveitar a visita prevista a Timor-Leste do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa para pedir ajuda na mobilização de investidores portugueses para o país, a pensar nas potencialidades regionais. “O que gostaria de ver, via o Presidente e o Governo, era realmente mobilizar investidores portugueses para Timor-Leste, com a CGD e outros bancos portugueses e, via Portugal, o europeu Exim Bank, ajudem e apoiem investimentos portugueses e europeus em Timor-Leste”, afirmou José Ramos-Horta em entrevista à Lusa. “Não é filantropia. Temos um mercado de 700 milhões de pessoas e Timor-Leste é o trampolim e é do interesse pragmático”, acrescentou. José Ramos-Horta falava à Lusa a menos de um mês de tomar posse oficialmente no cargo, em 20 de maio, numa cerimónia em que estarão presentes várias individualidades internacionais, com destaque para Marcelo Rebelo de Sousa, esperado em Díli a 18 de maio. “Há muitos anos que não temos a visita de um chefe de Estado português, mas Portugal está sempre presente. Felizmente Portugal, embora longe, tem sido um amigo seguro em tempos maus, em tempos bons. Portugal tem estado sempre connosco e é a porta de Timor para a Europa”, referiu. Entre outras questões que quer abordar no seu diálogo com Rebelo de Sousa, José Ramos-Horta destacou a questão “concreta mas que faz muito diferença” da agilização do processo de obtenção de nacionalidade portuguesa pelos timorenses que a ela têm direito. O moroso processo obriga a que os documentos tenham que viajar até aos serviços centrais em Lisboa com a resolução a demorar, em alguns casos, vários anos. “Faz muita diferença se colocarem aqui funcionários, reforçar a embaixada, alguém dos serviços centrais para com maior celeridade outorgar aos timorenses que têm direito ao passaporte português que é o cartão de livre de acesso à União Europeia”, declarou. “Já não é apenas para o Reino Unido, mas muitos estão a ir para outros países e eu estou em contacto com amigos na Alemanha para ver se a Alemanha abre um programa especial para trabalhadores timorenses. E Portugal pode agilizar a questão dos passaportes para timorenses”, frisou. Ramos-Horta recordou que a CPLP celebrou um novo acordo de mobilidade, mas notou que, “olhando para os detalhes, não há ali muita mobilidade”. O Presidente eleito insiste na questão dos laços económicos, afirmando que com a adesão de Timor-Leste à ASEAN (Associação de Nações do Sudeste Asiático) “nos próximos dois anos”, o país “vai fazer parte de uma região de livre comércio com quatro triliões de PIB [Produto Interno Bruto]”. E, concretizou, considerando que as indústrias farmacêutica e alimentar portuguesa, “de grande qualidade e com padrões da União Europeia”, poderiam instalar-se em Timor-Leste a pensar no mercado regional. “O problema é não vir a Timor-Leste só à procura de contratos, vir para investir, para um mercado da região. Quero incentivar a industria farmacêutica portuguesa, de medicamentos e equipamento, porque a pandemia pôs a nu o falhanço do sistema de fornecimento, demasiado concentrado na China e na Índia”, apontou. “E também a indústria de manutenção naval. Falar com Portugal, com os estaleiros para estabelecerem em Timor-Leste um estaleiro naval, para responder às nossas necessidades domésticas, que estão a aumentar, e temos que acorrer a Surabaya. Numa segunda fase trazer barcos de recreio da Austrália, e de Bali”, afirmou. Portugal, do seu lado, advogou, deve procurar ser “mais ágil” e dá como exemplo o “impecável trabalho” que tem sido feito pela euroAtlantic, com vários voos por ano para Timor-Leste, que são “caríssimos porque ninguém os apoia”. “E não me venham dizer que outras companhias não têm financiamento dos Estados. Portugal, Macau e Timor-Leste deviam apoiar a euroAtlantic a fazer voos regulares Lisboa-Macau-Díli, que comercialmente é totalmente viável”, disse. Ainda no quadro da lusofonia, Ramos-Horta referiu-se à redução da presença e das ações do Brasil em Timor-Leste, considerando que, neste caso, o falhanço parece ter sido timorense. “A presença brasileira foi muito visível nos primeiros anos, mas quando um país começa a distanciar-se ou diminuir a sua cooperação, não vou imediatamente encontrar as falhas do lado deles. Nós é que estamos ou não interessados”, admitiu. “Creio que do lado timorense não houve ativismo e ‘lobby’ do Brasil, devíamos dizer que queremos professores, por exemplo, e não houve ativismo em procurar promover e trazer investimento brasileiro para Timor-Leste, motivado também pela oportunidade numa das regiões das mais dinâmicas do mundo”, concluiu. Uma questão orçamental José Ramos-Horta disse que vetaria a proposta de Orçamento Geral do Estado (OGE) retificativo, por discordar da inclusão da criação de um fundo de mil milhões de dólares para os veteranos e do aumento de impostos. “Eu pediria para ser novamente debatido porque é obvio que o programa para os veteranos não é nada urgente, não é uma situação de emergência”, disse Ramos-Horta em entrevista à Lusa, referindo-se à proposta de OGE retificativo que está em tramitação parlamentar timorense. “Os veteranos têm tido muitos benefícios ao longo desses 10 anos, e mil milhões de dólares foram transferidos entre 2007 e 2021 para os veteranos. Não é muito eficaz”, afirmou. Ramos-Horta refere-se a uma proposta de OGE retificativo apresentado pelo Governo ao parlamento no valor total de 1.129 milhões de dólares, dos quais mil milhões de dólares, referiu, destinam-se à criação de um fundo para veteranos. O fundo foi uma das promessas feitas pelo primeiro-ministro, Taur Matan Ruak, e pelo secretário-geral do maior partido do Governo, a Fretilin, Mari Alkatiri, durante a campanha para as eleições presidenciais, em que os três partidos do Governo apoiaram a candidatura de Francisco Guterres Lú-Olo, que acabou derrotada por José Ramos-Horta. O Governo pediu ao parlamento que debata o OGE retificativo com urgência para concluir o processo ainda a tempo de ser Lú-Olo a apreciar o documento, dias antes do fim do seu mandato, que termina em 20 de maio. José Ramos-Horta considerou que o Governo deve ter pensado nessa proposta da “nova situação criada pela guerra Rússia-Ucrânia e pelo ‘lockdown’ de Shangai que cria a maior crise de todos os tempos”, com efeitos “brutais em cascata” que farão agravar também a crise em Timor-Leste. “Não é que não haja comida, não há é dinheiro, devido ao aumento grande de preços. E Timor é um pais quase felizardo. Só temos 1,3 milhões de pessoas, das quais 40% em pobreza e com prioridade temos que acudir a essas 40%”, advogou. “Esses mil milhões deviam ir, primeiro para emergência, as pessoas têm que comer, mas ao mesmo tempo para criar focos de emprego, mobilizar milhares de jovens pelo país e adultos para fazer manutenção de infraestruturas rurais”, considerou. Ramos-Horta considerou essencial canalizar esforços para isso, neste momento, mobilizando ao mesmo tempo as agências das Nações Unidas para “ajudar a distribuir alimentos e apoio a essas populações mais carenciadas”, com assistência “em géneros” da Austrália, da Coreia do Sul ou outros parceiros. “Trata-se aqui de mobilizar mil milhões de dólares para apoiar a população e a economia. E via diálogo tentaria convencer o Governo a repensar isto. Os veteranos podem esperar, porque de certeza que não é para depositar mil milhões de dólares de imediato numa conta à parte”, afirmou. José Ramos-Horta contestou outro dos elementos do OGE retificativo que prevê o aumento de impostos seletivos do consumo em vários produtos, considerando que “é melhor não pensar em aumentar impostos”, pois o setor produtivo timorense “já tem sido tão penalizado durante esta crise toda” e agora é mais penalizado pelo “pesadíssimo” custo da energia e do combustível. “É melhor termos incentivos para o setor privado. Compreendo o Ministério das Finanças e o Governo que anda há vários anos a pensar nisso, mas quando se começou a pensar em impostos foi em situação de pré-crise política, económica e social”, salientou. O Presidente eleito considerou ainda que o Governo deveria incentivar o diálogo com o setor bancário, no intuito de baixar as elevadas taxas de juro que chegam aos 14%, rejeitando o argumento do risco e da falta de garantias. “É uma grossa distorção das coisas. Entre alguém a pagar juros de 14 e alguém a pagar 4%, nas mesmas condições, sem colaterais, qual dessas é que acham que vai pagar? O Governo tem que intervir, dialogar com os bancos sobretudo com o BNCT e o BNU”, defendeu. “O Governo deve dar garantias, parcerias com os bancos para fazer os empréstimos, com partilha de risco para fazer empréstimos com juros mais baixos”, disse. José Ramos-Horta toma posse no cargo de Presidente da República às 00:00 de 20 de maio.
Hoje Macau EntrevistaRui Cunha: Jogo em Macau em “ciclo diferente” alinhado à política nacional chinesa O consultor da operadora Sociedade de Jogos de Macau (SJM), Rui Cunha, admite que o jogo no território está a entrar “num ciclo diferente” que necessita de estar alinhado com a política e interesses nacionais da China. “Macau não pode alhear-se dos interesses e de uma política global da China”, analisou Rui Cunha, advogado e consultor da SJM, a mais antiga operadora de jogo da região. Rui Cunha disse que foi graças ao rápido crescimento do sector, nos primeiros 20 anos desde a liberalização, que se “criou um super-emprego” e se permitiu a edificação de estruturas que, de outra forma, “seria difícil de ter”, como “hotéis, restaurantes” de um “grau internacional”. “Foi um ciclo que fechou e agora entraremos num ciclo diferente, melhor ou pior, mas estaremos num ciclo diferente”, analisou o advogado, notando que “poderá haver necessidade de fazer algumas correções” na área do jogo e, nesta perspetiva, há que ter “em conta que Macau é parte da China”. Admitindo que “não é muito possível que haja novamente um ‘boom’” do setor, Rui Cunha estimou que o território continua sem condições para “pôr o jogo de lado”, face à dificuldade em diversificar a economia. “Isto não vai ser possível tão cedo e forçá-lo pode trazer ainda alguma convulsão no próprio tecido social”, afirmou. O consultor refere-se especialmente ao impacto que uma crise pode ter entre os mais jovens, “que entraram no mercado de trabalho” com a liberalização do setor, e que “são os mais vulneráveis”, porque ingressaram “numa fase de euforia, habituaram-se a um determinado patamar, que se agora for reduzido vai trazer choques e, numa situação extrema, um maior desemprego”, analisou. Hengqin, a “base de ensaio” O advogado português Rui Cunha diz que a Zona de Cooperação Aprofundada em Hengqin vai servir de “base de ensaio” para a convivência entre os direitos de Macau, de matriz portuguesa, e o da China. “Ganhámos essa responsabilidade, vamos participar num esforço de fusão do que existe no resto da China e o que existe em Macau”, notou à Lusa o especialista jurídico português. Macau tem um sistema jurídico que pode “engrenar perfeitamente no sistema da China”, assumiu Cunha, alertando que agora, “mais do que nunca, há que refletir bastante sobre o Direito de Macau”. O especialista indicou que “o próprio edifício legal da China se modificou bastante” desde finais dos anos 1970, quando o líder Deng Xiaoping lançou reformas económicas que converteram o país numa das maiores potências mundiais. “A China evoluiu o seu sistema [jurídico] no sentido de efetivamente acompanhar o resto do mundo”, defendeu. A transferência de Macau para a República Popular da China, em 1999, decorreu sob o princípio ‘um país, dois sistemas’, fórmula segundo a qual o território mantém até ao ano 2049 uma soberania a vários níveis, incluindo o direito de matriz portuguesa, considerado um dos maiores legados deixados por Portugal. Rui Cunha considerou, por outro lado, “um processo normal” que, em Macau, se esteja a assistir a uma adaptação ao Direito chinês, constatando, no entanto, que “mais recentemente tem havido um endurecimento” da legislação vigente. Em 2019, foi introduzida na revisão da lei de bases da organização judiciária a exclusividade de juízes de nacionalidade chinesa no julgamento de processos relacionados com a segurança do Estado. O advogado admitiu que juízes estrangeiros e juízes chineses possam ter “sensibilidades diferentes”. E reforçou: “Não quer dizer que apoio, mas compreendo que haja esse receio [de ter juízes estrangeiros], porque são crimes em que há determinada sensibilidade que pode faltar a outros”. De qualquer maneira, ressalvou Cunha, processos ligados ao patriotismo ou à segurança nacional, “se forem aplicados de maneira sensata (…), pouca diferença irão fazer”. “Nós aqui em Macau também não precisamos de ir à rua para partir carros e montras, até porque é uma população que se habituou há 400 anos a ser silenciosa, talvez por força do hábito”, disse, numa referência às manifestações de 2019 em Hong Kong. O bilinguismo O advogado defende ainda que, com a necessidade de contratação de quadros bilingues e as restrições impostas pela pandemia, a população portuguesa no território “vai evoluir para uma natureza diferente”. Rui Cunha, advogado português de origem indiana, que vive em Macau desde 1981, observou que “hoje há uma necessidade cada vez maior da aprendizagem da língua chinesa” por parte dos profissionais em Macau. Cada vez mais, notou o advogado, os clientes do escritório que lidera sentem falta do “contacto direto” com quem os representa, e “pedem para falar com alguém em chinês”, já que recorrer a um tradutor “não funciona” como outrora. “Nós temos de ser um pouco realistas e eu, neste momento, penso que a admitir pessoas, uma das primeiras coisas que perguntamos é que línguas falam”, contou o advogado, referindo que há uma maior necessidade de recorrer aos profissionais locais bilingues, o que também “não é fácil”. “A comunidade portuguesa vinha para Macau, integrava-se totalmente na sociedade local, virava macaense no sentido de adotar Macau e ficar por aqui, o que não vai acontecer daqui para o futuro”, acrescentou. O advogado acredita que a emigração lusa para a região chinesa vai assemelhar-se à que existe atualmente para países com os quais Portugal “não tem uma grande ligação” histórica. “Gradualmente, iremos ter menos gente portuguesa que vem para ficar em Macau, temos pessoas que vêm, que fazem o trabalho, os seus negócios e voltam para Portugal”, anteviu. A contribuir para esta alteração do panorama da emigração portuguesa no território estão, ainda de acordo com o especialista jurídico, as restrições à circulação de pessoas, impostas pelo Governo local desde o início da pandemia e que têm levado membros da comunidade a abandonarem a cidade. Rui Cunha admitiu que, com a limitação das deslocações, o escritório C&C Advogados já perdeu “alguns elementos essenciais”. Além disso, a crise sanitária “tem afetado o negócio”, na medida em que “a base da clientela” é originária de Hong Kong. Macau, um dos primeiros territórios a ser atingido pela pandemia, registou até à data 82 casos de covid-19. Além das fronteiras estarem encerradas a estrangeiros desde março de 2020, os residentes que chegam de zonas consideradas de risco elevado, como é o caso de Portugal, são obrigados a cumprir, no mínimo, 14 dias de quarentena em hotéis designados pelas autoridades. Questionado sobre o futuro da língua portuguesa em Macau, o advogado acredita que “não desaparecerá tão cedo”, até porque “é desejada pelos chineses”. “A China sabe que precisa do mundo, precisa de um mercado, porque o mercado interno não é suficiente para se autossustentar”, disse. E salientou que, sendo o universo de língua portuguesa de grande dimensão, a China, “tendo pessoas a falar português, tem um acesso” privilegiado a esses mercados.