Maria Fernanda Ilhéu, economista: Uma Rota de “aprendizagem conjunta”

Conversámos com a presidente da Associação Amigos da Nova Rota da Seda (ANRS) por ocasião da celebração do sexto aniversário da instituição. A economista Maria Fernanda Ilhéu acredita que os casinos vão continuar a ser fundamentais, enquanto o país assim o entender, e que serão criadas alternativas em prol do “equilíbrio” económico

 

São seis anos de existência da ANRS. Que balanço faz?

Registámos a associação no dia 21 de Dezembro de 2016, e foram 21 os sócios fundadores. Começámos a trabalhar com o objectivo de dar a conhecer o projecto da nova rota da seda e tentar identificar áreas de cooperação entre Portugal e China no âmbito desta iniciativa. Logo em 2017 produzimos um documento de trabalho utilizando várias áreas de cooperação. Foi um pontapé de saída para a reflexão. Fizemos variadas conferências sobre esse tema. Queríamos que as pessoas entendessem o que estava patente nesta iniciativa, como efectivamente ela se financiava e quais as áreas de interesse. Todos os anos fazemos uma grande conferência que vai focando em várias áreas desta Iniciativa. Queremos que as pessoas e as empresas se consciencializem da importância do relacionamento com a China e da forma de trabalho conjunto com diversas entidades de Portugal, China e terceiros mercados, de forma a conseguirmos um desenvolvimento sustentável global.

Como encara a evolução da Iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” ao longo dos últimos seis anos?

Evidentemente que com o contexto da pandemia e, mais recente, da desestabilização que a guerra na Ucrânia tem provocado, dificultou ou atrasou alguns projectos, mas a Iniciativa continua a funcionar do ponto de vista das entidades envolvidas. Há dias vi que a Argélia aderiu. Nos últimos anos, foi sempre agregando mais vontades no sentido de cooperação. Neste momento, 141 países e 32 organizações internacionais assinaram acordos de cooperação com a China no âmbito da Iniciativa, e foram assinados cerca de 207 projectos de grande envergadura. A nova rota da seda, além dos grandes projectos de cooperação, tem também uma posição de cooperação entre a China e os parceiros que engloba várias áreas. Em Portugal, verificamos o bom relacionamento que continua a existir com a China e que proporciona diálogo que continua a existir com essas parcerias.

No entanto, a Iniciativa tem sido criticada pela dependência financeira, em relação à China, da parte de alguns países.

Há aí uma série de pontos que são politizados de uma forma que não tem uma análise racional da situação. Temos de ver que esta Iniciativa e as políticas de financiamento ao longo do tempo. Quando surgiu a Iniciativa, constituíram-se, na China, fundos de investimento, nomeadamente o “Fundo Rota da Seda” e outro ligado ao Banco de Desenvolvimento chinês. Foi-se vendo, aos poucos, que esses projectos não podiam ser feitos sem uma análise financeira que permitisse concluir se o país que queria desenvolver determinado projecto tinha capacidade financeira para explorá-lo de forma sustentável. A primeira grande ideia, e que marcou, de certa forma, a ideia que as pessoas tinham dessa Iniciativa, é que eram, sobretudo, infra-estruturas de comunicação, nomeadamente comboios. Esses países tinham necessidade disso, na via-férrea, portos ou barragens. O que aconteceu é que não foi feita uma análise inicial séria desses países. A China não acautelou algumas situações, nomeadamente a construção de um porto no Sri Lanka, uma vez que o país não tinha capacidade nem de investimento nem de exploração do porto. Estes investimentos não são ofertas. No caso do Sri Lanka, a entidade financiadora teve de assumir a gestão do porto por cerca de 100 anos. Nesse consórcio estavam também entidades francesas, pelo que não foram apenas financiadores chineses. Ao longo do tempo algumas coisas se concluíram.

Tais como?

Em primeiro lugar são projectos que se pagam a longo termo e é necessário ter análises sérias financeiras e económicas para a sua sustentabilidade. Depois são investimentos muito grandes e a China não é o grande investidor. Há cada vez mais o recurso às multilaterais financeiras e já foi feito o apelo para a participação de entidades privadas. Há uma evolução, que é de análise racional e económica, com efeitos de progressão do relacionamento entre países. Há movimentação de pessoas, equipamentos e conhecimento, e há uma interligação entre entidades. O país que está à cabeça destes projectos tem sido a China, mas o país vê com muitos bons olhos parcerias trilaterais. A estrita politização da análise da Iniciativa pode ser, de certa forma, tendenciosa para servir determinados fins e objectivos políticos.

Portugal tem sabido tirar partido da nova rota da seda, ou há ainda um grande desconhecimento de empresas e outras entidades?

Esta é uma Iniciativa de longo prazo e de aprendizagem conjunta, e o pontapé de saída foi muito orientado para a construção de projectos de comunicação, como disse. Mas tem evoluído. Hoje em dia fala-se da Rota da Seda digital, por exemplo, da saúde e bem-estar, na Rota da Seda Cultural. Há várias áreas em que se pode cooperar e algumas nem exigem um investimento muito avultado. Em relação às parcerias com Portugal, elas têm existido em várias áreas, nomeadamente na área da saúde e bem-estar, bem notória quando começou a covid-19 na China. Várias entidades portuguesas disponibilizaram-se a apoiar a China e depois vimos o reverso. Não há um grande projecto de infra-estruturas a decorrer, mas há investimento chinês que tem sido bastante importante na sustentabilidade e desenvolvimento das empresas onde foi feito. Relativamente ao Porto de Sines, a forma como o concurso público [para a sua exploração] foi feito não atraiu nenhum investidor, e não apenas os chineses. É sempre num contexto de concurso público internacional que as infra-estruturas se desenvolvem. Não há uma situação em que o Governo chinês vem falar com o Governo português para desenvolver algo, nunca será por essa via.

A China está a relaxar gradualmente as restrições no âmbito da pandemia. Isso poderá criar uma nova fase para a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”?

Sem dúvida. Por muito que funcionem as relações online não há nada como o contacto e diálogo com diversos agentes económicos. Falamos de relações de cooperação que são muito dinâmicas e que estão em permanente alteração. O que era importante há três anos hoje terá outra perspectiva. Em 2019 essas relações estavam a sofrer um boom enorme, e vimos a quantidade enorme de entidades chinesas que vieram a Portugal em várias áreas. Esperemos que em 2023, com estes sinais de abertura, esses contactos possam recomeçar lá mais para meados do ano.

A Iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” está muito presente no discurso político de Macau. O território está a aproveitar devidamente esta matéria ou poderia ser um actor mais activo?

Temos sempre dificuldade em fazer esse tipo de análise. É certo que em Macau existem as plataformas certas para desenvolver essa parceria, mas se podem ser melhoradas, podem. Porque é que a sua dinâmica, às vezes, não é tão profunda? Porque uma coisa são políticas, outra coisa são os tecidos empresariais. É necessário que os tecidos de Macau e de Portugal se acertem, e penso que isso ainda não aconteceu. As empresas podem não ter tido ainda os diálogos certos. Aí podemos tentar apostar em mais plataformas, e isso tem sido fomentado pelos Governos, mas talvez da parte das empresas não tenha ainda a dimensão necessária. A ANRS quer participar nisso.

Macau está numa fase de transição, com as novas licenças de jogo, enquanto o Governo mostra sinais de querer menos dependência dos casinos. É o desígnio certo para que o território possa corresponder à Iniciativa?

Sim. Esse é o grande desafio de Macau, mas não é de agora, é de há muitos, muitos anos. Quando fui para Macau, em 1979, fui precisamente para desenvolver o Fundo de Desenvolvimento Industrial e de Comercialização, cujo objectivo era apoiar a economia para não depender do jogo. A minha função era apoiar a internacionalização das empresas de Macau e reforçar as suas vantagens competitivas. Mas encontrámos uma série de obstáculos.

Quais?

Muitos foram resolvidos enquanto esteve lá a Administração portuguesa. Até 1999 houve surtos de desenvolvimento, construção, formação de pessoas, criação de universidades… tudo se passou no caminho certo. Mas temos de perceber que o jogo é avassalador, traz rendimentos enormes. Quando temos uma actividade que, de repente, permite às pessoas viver bem economicamente, as pessoas perguntam porquê fazer outra coisa.

Isso aconteceu consigo?

Sim. Cheguei à Universidade de Macau e o meu papel era trazer jovens para estudarem no ISEG [Instituto Superior de Economia e Gestão], onde era professora. Os professores que falaram comigo disseram-me que os alunos não queriam vir para Portugal, queriam acabar os cursos e começar a trabalhar porque em Macau tinham muitas solicitações de emprego. Vamos ter sempre essa situação, o jogo vai ser sempre a grande centralização económica e as pessoas vão sempre ter uma grande dependência do jogo. Mas podem-se criar áreas alternativas, e penso que a Grande Baía e a expansão de Macau para Hengqin são grandes oportunidades, porque trazem dimensão, o que Macau já não tem, e outros activos humanos. Enquanto houver jogo em Macau essa área vai ser sempre importante, pode é ser equilibrada e não haver uma substituição. São precisos apoios e entidades empresariais nessas actividades.

O desemprego aumentou e têm-se verificado situações sociais graves devido à pandemia. Isso pode mudar o paradigma que falou?

Acredito que empresas e jovens vão começar a olhar mais para fora. Os jovens estavam muito acomodados e tranquilos com o seu futuro. Este foi um grande acordar para a realidade. Daqui para a frente vamos assistir uma grande evolução em Macau.

Ontem celebrou-se mais um aniversário da transição. Que olhar traça relativamente à Macau de hoje?

A economia sempre foi dominada pelo jogo, mas quando fui para lá havia um sector fabril muito interessante que se desenvolveu mais a partir de 1979 e meados dos anos 80. O sector de exportação foi importante e viveu de vantagens competitivas externas, da existência de quotas de exportação do sector têxtil. Os empresários de Macau aproveitaram essas oportunidades e isso deu azo a uma actividade industrial interessante que proporcionou também um grande desenvolvimento da área urbana. Em função das novas zonas industriais foram construídas mais infra-estruturas de saneamento básico e comunicações. Acredito que se podem criar dinâmicas que equilibrem o peso do jogo, mas não acredito no total desaparecimento dos casinos enquanto a China decidir que eles têm de estar ali. Enquanto existir aval político o jogo não vai desaparecer e até se pode reforçar. Penso que esta lição de crise foi também para o jogo e não apenas para os jovens. Os casinos perceberam que têm de criar novas formas de expansão. Mas com a integração de Macau na China vão-se potenciar oportunidades de investimento noutras actividades. Mas respondendo à sua pergunta, Macau vai ser sempre uma plataforma entre a China e os países de língua portuguesa e penso que isso poderá ser reforçado. O país tem feito bastante esforço para que isso continue. O jogo vai continuar, mas serão criadas outras actividades e outros modos de vida. Macau estava confinado à sua dimensão física e humana, e não podem ser feitas omeletes sem ovos.

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