Jorge Arrimar, autor de “Cuéle – O Pássaro Troçador”: “Fiz-me escritor de Macau”

Lançado no fim do ano passado, “Cuéle – O Pássaro Troçador” conta a história, com elementos ficcionados, de António José de Almeida, figura importante das zonas de Humbe e Chibia, no sul de Angola, entre meados do século XIX e finais do século XX. Autor de Macau e antigo director da Biblioteca Central de Macau, Jorge Arrimar sente-se cansado do formato do romance e com vontade de regressar à poesia

 

Quando conversámos, em 2020, disse-me que estava a trabalhar num romance histórico sobre Angola. Porquê um romance histórico?

O romance histórico, desta vez, não foi um começo. Antes já havia escrito e publicado três livros que fazem uma trilogia, “A Trilogia dos Planaltos”, de romance histórico que têm como matriz Angola, mais precisamente a minha zona de origem, que é no sul do país.

Fazia sentido contar a história de António José de Almeida, que é a personagem central do livro? O que lhe despertou interesse nesta personalidade, ao ponto de escrever um livro?

António José de Almeida é uma figura que aparece nessa trilogia. Mesmo antes já fazia referência aos pais dele e depois ao seu desaparecimento, pois António José de Almeida e o seu irmão ficaram órfãos muito cedo. Porém, ficaram com algo do pai, como a ideia de que Huíla seria uma terra promissora para a sua actividade. Eles então vão descendo e ficam no Sul, primeiro numa região chamada Humbe e depois Chibia. Esta família fez de Chibia a sua terra principal. Esta é uma figura muito importante porque marcou profundamente aquele tempo em que viveu, finais do século XIX e princípios do século XX. Morreu em 1924. Apenas conheci amigos e descendentes de António José de Almeida, mas ficou-me sempre na memória as histórias que o meu avô contava sobre ele. Dizia-me sempre que tinha sido um homem extraordinário, porque não era só poderoso em termos económicos como se tinha revelado um homem de grande magnanimidade, de uma ligação aos outros que não era vulgar. Marcou profundamente em termos económicos, sociais e familiares a terra onde viveu, e, apesar de toda a importância que teve na época, era pouco conhecido. E hoje também o é, pelo que este livro é como um resgate ao desconhecimento de António José de Almeida e de outras figuras que também aparecem no romance. Tinha a ideia da existência de figuras importantes do sul de Angola que estavam esquecidas e perdidas no tempo.

Não estão feitas as pazes com o passado colonial português. Permanecem muitas histórias desse tipo que não são contadas por causa do esquecimento que foi sucedendo após o 25 de Abril de 1974, como se estas histórias do quotidiano tivessem ficado no período colonial? Com este romance, pretende resgatar algumas delas?

De facto, é assim, porque Angola, com o 25 de Abril e a independência, envolveu-se numa terrível guerra civil e isso fez com que a sobrevivência estivesse em primeiro lugar. As histórias passaram a ser outras, de exílio, morte, fuga. É uma guerra que só termina em 2002 e que rompeu com o tecido social. Houve pessoas que passaram a viver noutras terras e houve um corte com as histórias contadas em contexto tradicional. Hoje, mais do que nunca, o português é falado porque representava sobrevivência na guerra civil. A guerra civil fez com que o português fosse mais falado em Angola do que no próprio período colonial.

“Cuéle – Pássaro Troçador”. De onde vem o termo “Cuéle”?

É uma palavra onomatopeica, porque o próprio pássaro canta assim, “cué…”. O “cué…” é “cuéle” na língua da zona, do Planalto de Huíla. Depois inscreve-se no português com uma ligeira adaptação e passa a ser “cuéle”. O pássaro aparece no título porque é um elemento que acompanha toda a trama romanesca. Ao longo do livro, de quando em quando, o Cuéle aparece no cimo de uma árvore a cantar. É um pássaro troçador, ele troça das nossas indecisões, dos nossos orgulhos, perdas e falhanços. É um bocado como o grilo falante, como um elemento da nossa consciência. Portanto, o Cuéle era muito conhecido entre os caçadores, porque quando um deles falhava o tiro aparecia logo o pássaro a cantar de forma trocista.

Tem formação em História. De certa maneira, com a edição deste livro, regressa à sua formação de origem.

Enquanto estudioso e homem da História, ela às vezes revela-se árida. Às vezes cansamo-nos porque tem de ser lida aos poucos, porque se pretende científica, e prendemo-nos a aspectos que não aligeiram a narrativa. Na História encontramos muito vazios porque temos de ter sempre certeza das fontes, porque elas têm de suportar a nossa tese. No género literário em que comecei, a poesia, sempre escrevi e sempre senti necessidade de ir mais além e só conseguia isso com a literatura. Todos os que escrevem romance histórico sentem que só com a literatura podem encontrar respostas. Também tenho escrito coisas que não têm a ver com o romance histórico, pois publiquei, não há muito tempo, um conto chamado “Catarina”, passado nos Açores. Os livros mais “pesados” foram entre a História e o romance histórico.

Que respostas lhe são dadas pela poesia?

A poesia dá respostas do sensível. Vivemos sempre tocados por coisas às quais só a poesia responde. Nunca parei de escrever poesia. O facto de estar a escrever prosa ou ficção não quer dizer que não escreva poesia, porque exige menos trabalho oficinal, pois os textos são mais curtos. Não quer dizer que sejam mais fáceis. Se calhar exigem menos tempo, posso escrever um poema num dia, mas não posso escrever um romance num dia, puxam-se a sentimentos diferentes e a poesia pode aparecer ao mesmo tempo que um romance. Eugénio de Andrade gostava muito de mostrar esse lado oficinal do poema, mais trabalhoso, para que as pessoas não pensassem que bastava que escrever poesia era assim fácil, só com inspiração. Eu, por exemplo, trabalho muito os poemas.

Conheceu pessoalmente Eugénio de Andrade. É uma das suas grandes referências?

Aí está Macau. Foi lá que o conheci. Eugénio de Andrade foi convidado pelo Instituto Cultural e foi visitar a Biblioteca [Jorge Arrimar foi director da Biblioteca Central de Macau], sendo um homem de livros. Aí preparei uma exposição com o que tínhamos sobre ele e editámos um catálogo sobre a sua obra. Falamos um pouco nessa ocasião. Mais tarde, passando pela foz do Douro, fui visitá-lo onde vivia e onde se criou depois a Fundação Eugénio de Andrade. Mas não privei muito mais com ele. É um poeta de que gosto muito e que me marcou bastante.

Como está a relação da sua escrita com Macau?

Estive em Macau pouco tempo antes da pandemia. Fui convidado pela Universidade de Macau e participei num encontro sobre a literatura de Macau. Da minha parte, emocionalmente, estou muito ligado a Macau e devo-lhe muita coisa, foram tempos muito importantes na minha vida. Fiz-me escritor de Macau por aquilo que fui escrevendo, mesmo não sendo macaense. Sou de Macau pelos anos que lá vivi e pelo que fiz. Penso que me consideram um escritor de Macau. Costumo dizer que a geografia da minha escrita tem três pontos essenciais, Macau, Angola e Açores.

A literatura que se faz de Macau é, acima de tudo, saudosista, emotiva? É uma literatura que remete para algo que já não existe?

Haverá quem o faça, pois quem sai de Macau leva Macau consigo e há essa tendência de escrever sobre o que se passou lá. Aí, é natural que o saudosismo apareça. Mas há escritores que permanecem em Macau e que falam do presente.

Há uma grande mudança em Macau e nas comunidades portuguesas e macaense. Acha que isso levará a alterações na literatura de Macau?

Quando há mudanças sociais muito grandes isso reflecte-se a todos os níveis e a todo o tipo de arte. Afinal, vivemos em sociedade e prendemo-nos a muitos fios invisíveis que essa mesma sociedade cria e quando são cortados isso reflecte-se no nosso pensamento. No caso de Macau, todos sabem que a pandemia levou à saída de pessoas de origem não chinesa. São pessoas que marcavam a sociedade e a literatura, e aí é natural que a escrita e a literatura reflitam essa situação. Mesmo que a minha escrita tenha algo de oriental, eu não deixo de ser um escritor que vem de fora e que se tentou inscrever naquela sociedade, com os seus limites, e naquela cultura e forma de escrever. Claro que sou pessimista, porque se as pessoas saem, que lugar têm pessoas parecidas comigo em termos do que escrevem, do que falam e viveram? Se foi quase reduzido ao zero e se deixa de ter expressão, então posso dizer que sou pessimista.

Tem projectos novos para depois deste romance?

Neste momento, estou a descansar de uma escrita muito pesada como é a do romance, e sobretudo deste que vai quase às 500 páginas e tem uma mancha muito apertada, porque senão seria muito maior. É um livro muito pesado e o seu peso reflecte também muito tempo de trabalho. Foram quase dez anos a trabalhar neste romance. Estou agora mais ligado à poesia, porque é mais solta e etérea. Quando a abordamos de forma poética é sempre mais leve e isso descansa-me do trabalho que tive com “Cuéle”. Penso que durante algum tempo vou descansar da prosa.

Como é viver dez anos ligado a um romance?

Não vivo da escrita, não sou um escritor profissional e faço outras coisas. Não sou um homem solitário, tenho família. Gosto muito de viver com estas pessoas que me rodeiam. Coordeno a biblioteca de uma universidade e vou fazendo outras coisas. Fiz intervalos no romance e houve períodos em que tive mesmo necessidade de fazer intervalos e de me afastar da escrita, da trama, dos enredos para os perceber melhor.

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