Paul Pun, secretário-geral da Caritas Macau: “A economia não pode ser a única prioridade”

O secretário-geral da Caritas considera que o progressivo retorno à normalidade pode ser a chave para lutar contra a degradação da saúde mental da população. No primeiro semestre de 2021 a Caritas recebeu 5.713 chamadas devido a problemas emocionais. Sobre o contexto político, defende que os residentes têm de “descortinar novas formas de contribuir para o futuro”

 

Disse que um novo surto covid-19 podia levar a população a atingir “o maior pico de instabilidade emocional da história”. Quão frágil está a saúde mental dos residentes?

Antes da pandemia a situação da saúde mental de Macau era consideravelmente boa, comparando com outras regiões do mundo. O estilo de vida em Macau não acarreta muita pressão e é normalmente descontraído. A taxa de desemprego era baixa e o apoio mútuo na comunidade era forte. Normalmente os idosos enfrentam muitas situações adversas ao nível da saúde mental em todo o mundo, mas, do meu ponto de vista, aqui em Macau os idosos gozavam de boas condições antes da pandemia de covid-19. A razão para isto acontecer está relacionada com o facto de se apoiarem uns aos outros, de existirem boas relações de vizinhança e bons planos de apoio social. Mas, passado o primeiro mês desde o início da pandemia de covid-19 em Fevereiro de 2020, a situação começou a piorar até agora. As pessoas não conseguem arranjar trabalho, estão a enfrentar uma crise financeira e têm de suportar esse novo desafio. Durante um, dois ou três meses, tudo bem, as pessoas aguentam, mas, passado meio ano ou um ano, a situação começa a ficar difícil.

Do contacto que tem no terreno quem está a sofrer mais neste momento?

São as pessoas responsáveis pelo ganha-pão, ou seja, pelo suporte da família. Estou a falar de pessoas de meia idade, entre os 40 e os 60 anos, que estão a sofrer uma grande pressão e têm dificuldades em arranjar trabalho. A taxa de desemprego foi de 3,9 por cento em Julho e em Agosto foi de 2,9 por cento, o que revela melhorias. No entanto, a grande questão aqui é a incerteza. Como vamos recuperar de forma a voltar a viver uma vida normal? Penso que a resposta está na mentalidade, ou seja, na forma como as pessoas se veem a si próprias e a situação em seu redor. Actualmente tudo à volta parece uma infindável lista de aspectos negativos. No entanto, mesmo que não consigamos ver coisas positivas a acontecer, pelo menos, é possível não nos sobrecarregarmos apenas com factores negativos.

Como é que essa conjugação de factores contribui para afectar a saúde mental dos residentes?

As pessoas que não conseguem atribuir um sentido à sua vida, consideram que quem decide o seu futuro é o destino. Uma mentalidade errada pode causar danos na capacidade para trabalhar, criar condições para uma boa vida familiar, trabalhar ou cultivar relações com colegas e outras pessoas. Sobre o estado mental da população de Macau, uma coisa é certa. O que podemos fazer é compreender-nos uns aos outros, ajudar os elementos que compõem a sociedade de Macau a compreenderem-se uns aos outros e, especialmente, a compreender-se a si próprios. Desta forma, é possível lidar com as pessoas que estão a sentir muita pressão, deprimidas ou afectadas por outros factores do foro psicológico.

Quantas pessoas solicitaram ajuda à Caritas devido a problemas emocionais ou mentais?

Entre Janeiro e Junho de 2021 recebemos 5.713 pedidos de ajuda no nosso serviço de apoio telefónico disponível 24 horas por dia. Destas, 142 chamadas estava relacionadas com tentativas de suicídio. Além disso, 39 pedidos de ajuda foram de jovens e 15 estavam relacionados com questões emocionais.

Recentemente uma estudante de 16 anos cometeu suicídio. De que forma a pandemia está a afectar a saúde mental dos jovens?

Acredito que um dos factores tem a ver com as escolas e o ambiente envolvente. Os jovens, além de terem de responder em termos académicos, têm a pressão dos pais, pares e amigos. Os adolescentes que não têm uma boa saúde mental não conseguem, por exemplo, dormir bem, viver uma vida normal e têm tendência para sofrer de doenças mentais, depressões ou esquizofrenia. Se não descansam o tempo necessário e não têm uma vida normal que inclua desporto, por exemplo, essas pessoas correm mais riscos de ver a sua saúde mental afectada. Para alguns jovens, quando chega a época de exames, e não conseguem obter bons resultados ou os pais colocam muita pressão nesse sentido, a escola acaba por lhes trazer sentimentos negativos. Da minha experiência, são principalmente factores associados à saúde que afectam os que acabam por cometer ou tentar cometer suicídio.

O Governo devia considerar relaxar algumas medidas anti-epidémicas para transmitir esperança à população? Até que ponto isto pode ser importante?

Se turistas puderem vir a Macau isso significa que estamos progressivamente a voltar à normalidade e terá um claro impacto no nosso bem-estar. Se nós, residentes de Macau, podermos viajar para outros destinos, claro que isso contribui para reduzir tensão. No entanto, se não podemos ir a lado nenhum, podemos, pelo menos, mudar de ambiente com alguma frequência e circular entre Macau, a Taipa e Coloane para termos actividades sociais diferentes. Recuperar algumas actividades organizadas por instituições como escolas e lares que foram suspensas devido à pandemia também é importante. Voltar à vida normal é uma forma de reduzir a tensão. Muitas pessoas não conseguiram ainda descobrir como podem viver sem viajar. Eu, por exemplo, posso. Se estiver sentado aqui a ouvir música ou a falar com outras pessoas [consigo viajar]. Mas nem toda a gente é capaz de fazer isto. O relaxamento de medidas irá levar a uma vida mais normal e isso pode contribuir para uma vida mais saudável.

De que forma a pandemia está a afectar os trabalhadores não residentes?

Temos um serviço de distribuição de comida desde Setembro de 2020, dedicado aos migrantes [TNR] que perderam o emprego e têm dificuldades em continuar a viver em Macau. O Governo tem diminuído o número de TNR com contrato e, por isso, todos os meses temos em Macau 900 pessoas que não podem arranjar emprego ou não conseguem regressar aos países de origem. Como é que estas pessoas sobrevivem em Macau sem salário? Se nos países de origem já não tinham condições de dar dinheiro à família, agora em Macau também não. Por isso, acho que devemos pensar em formas de dar mais apoio financeiro [que lhes permita enviar dinheiro para casa]. Não nos podemos esquecer que este grupo tem dado um contributo positivo à sociedade. Quando o Governo anunciou o plano de testagem em massa, estas pessoas acederam, contribuíram e respeitaram sempre as regras de prevenção epidémica.

Diariamente, a Caritas presta apoio a quantas pessoas?

Pelo menos 2.000 recorrem aos nossos serviços diariamente. Maioritariamente têm entre 30 e 40 anos, já que os mais jovens tiveram mais facilidade em manter o emprego. No final de 2020, tínhamos a nosso cargo cerca de 1.000 pessoas, esse número duplicou. Entre Fevereiro e Julho de 2020 estávamos a acompanhar menos de 100 casos, porque essas pessoas, apesar de não terem trabalho não precisavam de ajuda. Mas agora acompanhamos 2.000 casos. Ou seja, passámos de 35 para 1.000 e agora 2.000.

Porque decidiu deixar o cargo de director da Escola São João de Brito?

Como a escola tem 35 anos é uma altura bastante indicada para deixar o cargo. Além disso a Caritas tem 70 anos e estamos numa altura em que se completa um ciclo. Outro factor é a entrada em vigor de uma lei que diz que não é possível acumular, como tenho feito até agora, os cargos de director e representante legal da escola. Por isso, dado que canalizo principalmente as minhas preocupações para as pessoas mais necessitadas e, tendo de escolher uma das funções, optei por ser o representante da escola e dedicar-me mais à Caritas. Desta forma posso continuar ligado à educação, mas não sou o director. Além disso, esta é a altura ideal para ajustar o meu foco no trabalho da Caritas.

Sente que em Macau as preocupações financeiras estão em primeiro lugar?

Sim e isso pode ser um problema. A economia e as finanças são temas importantes que são normalmente colocadas no topo das prioridades. No entanto, da forma como eu vejo a questão, a economia é apenas uma parte dos elementos importantes na nossa vida. Sem bons valores, respeito pelos outros, preocupações ambientais e sem cuidar da comunidade, a economia não pode estar no topo das prioridades.

No passado, chegou a ser candidato à Assembleia Legislativa. Como viu os tópicos abordados pelas listas nas últimas eleições?

Quando concorri às eleições legislativas, o meu tópico principal não estava ligado à economia, mas passava mais por transmitir as ideias de amor e paz que, convenhamos, não são bons tópicos para quem está a concorrer às eleições. Nessa altura, em 2001, estava a promover a ideia de cuidar melhor dos trabalhadores migrantes, uma fatia da população que não vota. Promovi também a necessidade de cuidarmos melhor dos doentes mentais e das pessoas com baixos salários. As 14 listas de candidatura tiveram a sua própria agenda e deram prioridade a convencer os votantes a ir às urnas. Respeito todos os que têm vontade de contribuir para a nova legislatura e, naturalmente, o tópico principal foi a economia.

É preciso falar de amor com mais frequência?

Quando digo amor, não estou a falar na perspectiva da caridade. Para mim, se eu fosse o Governo, falar de amor deveria significar que me preocupo com os cidadãos, como se fossem meus filhos. Os filhos não precisam dizer aos pais do que precisam, pois se eu fosse o pai teria a capacidade de sentir as suas necessidades. Quando falo de amor, falo na capacidade de identificar e sentir as necessidades das pessoas. Durante a pandemia, aquilo que a sociedade de Macau precisa, muito provavelmente, são empregos. Mas, se pensar mais a fundo diria que repensar as políticas sobre a covid-19 seria uma necessidade maior. Por exemplo, pensar se não se deveria abrir as fronteiras à entrada de pessoas provenientes de alguns países para que a economia pudesse ser ligeiramente diferente. Ou, por exemplo, não havendo restrições para quem entra das províncias vizinhas, discutir mais a fundo essa possibilidade com Hong Kong. Se eu fosse o pai, esta era a maneira como sentiria as necessidades das minhas crianças. Quando nos preocupamos, estamos a colocar em prática o amor. O que quero dizer é que, se não tenho janelas em casa, não preciso de me mudar para uma casa nova com janelas, mas, pelo menos, mostro ao meu filho ou à minha filha que estou preocupado com eles e que um dia vamos passear ao jardim.

Em que se materializava a paz que propunha?

No dia do ataque às torres gémeas em Nova Iorque, estava nos Três Candeeiros a fazer campanha eleitoral e ouvi alguém a dizer que as torres tinham caído. De imediato parámos tudo para pensar nas vítimas dos ataques. Quando falo de paz, quero dizer que na Assembleia Legislativa, apesar das discordâncias dos deputados e dos ataques, é preciso que todos se entendam uns aos outros. Podemos discordar, mas não podemos nunca deixar de nos respeitar uns aos outros.

Além da pandemia, a desqualificação de candidatos contribuiu para a fraca participação da população na campanha eleitoral?

Não vou comentar o caso das desqualificações, mas diria que os residentes de Macau têm de se preparar para um novo padrão de vida em termos políticos. Não podemos comparar a actual situação com o passado, mas considero que temos de descortinar novas formas de contribuir para o futuro. A atmosfera que se viveu na campanha é incomparavelmente diferente do passado. Não foi tão competitiva. Apesar de o cenário político ser menos competitivo, os residentes de Macau têm de descobrir o que podem fazer enquanto cidadãos, olhar para os candidatos vencedores e pensar se um dia podem também eles vir a comunicar com as entidades decisoras. Além disso, mesmo que não seja dentro da Assembleia Legislativa, é possível fazer a diferença. Tal como eu, e eu não sou nada, é possível tornar o que nos rodeia um pouco melhor no sector social e educativo. Mas diria que a sociedade está a mudar e as pessoas que fazem parte deste círculo devem ser capazes de se ajustar. Ainda há muito a fazer.

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