Alexandre Baptista, artista plástico: “O Homem é um bicho de difícil compreensão”

Alexandre Baptista está na RAEM para a inauguração de “Drawing is giving one’s heart” que acontece amanhã no Albergue SCM pelas 18h30. Traz consigo o tema que lhe dá mote à vida numa exposição provocadora que previa 40 trabalhos mas que devido à superstição com o número 4 passou a 38, não fosse o mau agoiro tecê-las

[dropcap]O[/dropcap] Alexandre é já um artista de sucesso e reconhecimento internacional. Como tem sido este percurso e quais os principais desafios?
Não tem sido nada fácil. Não é fácil apresentar o meu trabalho seja onde for. Nos últimos anos comecei a viver em sítios muito diferentes. Depois regresso a Portugal e resolvo ter mais um desafio. O sair constantemente da zona de conforto não é fácil. É penoso e tem imensas consequências.

Estas idas e vindas são importantes na sua criação?

São, porque é uma forma de conhecer outras realidades, outras pessoas e outras culturas. Começo a olhar para o mundo de um modo diferente e aprende-se muito com o bom e com o mau. Tenho a certeza que tudo isso acaba por ter um forte impacto no meu trabalho.

“Acho que os portugueses desperdiçaram Macau. Demos isto de mão beijada”

O seu trabalho é provocador…
Eu sempre fui muito provocador, mesmo quando não tinha razão tinha que encontrar forma de a ter.

alexandre.baptista.3_sofiamotaO que está na génese dessa vontade de provocar?
Acho que tem a haver comigo mesmo. Adoro provocar tudo. Lembro-me já na faculdade, no Porto, enquanto se tinha a ideia de que o artista é aquele que não tem cuidado nenhum com a imagem, eu ia para a escola de fato, gravata e a fumar charuto.

Tendo um trabalho marcado pela controvérsia, como tem sido a aceitação do mesmo?
Não é nada fácil. Tenho vendido, sim! Tenho exposto em vários sítios e países mas tem sido muito duro. As pessoas no início olham de lado para o meu trabalho. Por exemplo quando cheguei a Miami e comecei a correr as galerias até questionavam se aquilo era mesmo pintura. Pensavam que pela perfeição era stencil. Depois mostrava peças de pequeno formato em papel e que de facto era pintura. Não é para me gabar mas tenho consciência das minhas capacidades técnicas e das minhas limitações. Quando faço alguma coisa tenho que dominar o material para o trabalhar. Na altura tratei também de fazer umas peças em madeira e quando as viram naquele suporte ainda ficaram mais admirados. Foi aí que surgiram algumas exposições em Miami. Mas no início olhavam de lado. Em Portugal também. Lembro-me de uma vez levarem umas peças minhas para uma galeria para mostrar a um coleccionador e disseram que era colagem. As pessoas muitas vezes suspeitam mas tenho tido também alguma aceitação.

“Mesmo o que está subjacente à pintura, é desenho. Se uma pessoa não souber desenhar, não sabe fazer rigorosamente nada”

Não nos traz aqui pintura mas sim desenho. Porquê esta opção?
Para mim desenho também é pintura. Tenho uma relação muito forte com os materiais. Por exemplo, uma folha de papel, tenho que a sentir e que perceber a relação táctil. O papel tem outra coisa muito boa que é o som que o lápis ou o pincel produzem que também me toca. Depois usar um papel e partir do princípio que tenho que deixar uma grande parte deste suporte à vista é muito interessante enquanto desafio. Por outro lado tenho uma grande parte da minha obra desenvolvida só em papel. Se vejo em algum lado papéis que me interessam compro e guardo para depois os poder trabalhar.

Traz cá uma série de trabalhos que tem feito ao longo do tempo. Como foi a selecção do que traria a Macau?
A primeira ideia que tive para esta exposição foi a de misturar papel com outros suportes. Mas depois comecei a perceber algumas dificuldade em fazer exactamente o que queria do modo que achava mais correcto. A dada altura disse que só havia uma forma: tudo em papel. Depois o título desta exposição “Drawing is giving one´s heart” é uma espécie de mote de vida. Tenho uma relação muito forte com esta frase . O desenho para mim também é muito abrangente. Neste caso, e por exemplo em duas peças que fiz recentemente em Londres, é uma conjunção de fotografia, serigrafia e pintura sobre papel. E isso para mim é desenho. Mesmo o que está subjacente à pintura, é desenho. Se uma pessoa não souber desenhar, não sabe fazer rigorosamente nada.

Há um outro lado na sua obra que “mergulha” no ser humano. Porquê?
O Homem é muito interessante. Olho para o que se passa à nossa volta e há coisas que não entendo mesmo. A forma como reagimos e interagimos com outras pessoas às vezes são coisas tão absurdas e patéticas que me pergunto porquê? Sem qualquer conotação religiosa ou coisa do género, nós andamos aqui e vivemos o tempo que temos que viver e não percebo porque se criam tantos conflitos. Acho que viveríamos muito melhor e de consciência muito mais tranquila se não tivéssemos envolvidos em atritos. Não consigo perceber essa necessidade do Homem de criar problemas ao outro. O Homem é um bicho de difícil compreensão. Mesmo em relação a mim enquanto costumava fazer um exercício interessante em que estava atento a mim mesmo e acho que tenho vários “eus”. Parece um pouco os heterónimos de Fernando Pessoa, mas curiosamente um dos seus heterónimos era um tipo chamado Alexander Search com o qual me identifico. Há uma identificação não só do nome mas pelo facto de eu também andar sempre à procura.

Essa “fragmentação” também aparece no seu trabalho?
Sim. Por exemplo na minha pintura tenho o hábito de trabalhar em suportes separados e depois juntá-los. Cada suporte tem uma forma de trabalhar diferente e todos têm princípios distintos, mas quando os junto parecem que são unos. Também têm os meus vários “eus”. Se calhar esta vontade de me perceber também faz com que também trabalhe sobre o Homem.

Tem andado em movimento e agora está em Londres…

Agora estou “exilado” de Portugal. Estou em Londres há pouco mais de um ano e é uma espécie de exílio porque não contacto com Portugal ou com as comunidades portuguesas. Acho que para perceber melhor o meio onde estamos não há nada melhor do que conviver com as outras comunidades. A portuguesa já eu conheço. É igual em todo o lado. Depois estar longe é também pensar numa língua diferente que é sempre um exercício interessante, além do convívio com as pessoas de lá que é altamente desafiante.

Nesta procura permanente, tem algum projecto agora em mãos?
Tenho alguns projectos ambiciosos que gostava muito de colocar em prática. Um deles é muito complicado porque não é um tema fácil. Há uma peça dessa série que foi exposta em Macau em 2014 e é um trabalho que aborda a forma como vivemos a liberdade e a ausência dela. Quando somos castrados da nossa liberdade. A investigação começa em Auschwitz e vem até aos nosso dias e à sociedade contemporânea. Isto porque acho que vivemos numa sociedade extremamente hipócrita e castradora. Isso acontece nas questões raciais, religiosas que estão desde sempre associadas a guerras e a questões de modelação social, questões de género ou escolha sexual. Outro aspecto tem a haver com a imagem e ornamentação do corpo e o que isso interfere na nossa liberdade e julgamento. Este trabalho aborda todas estas questões. Dizemos que vivemos numa sociedade livre, mas não. Temos imensas regras que nos condicionam a nós e ao que dizemos. Estamos a viver num país onde se diz que a democracia está implementada mas isso é também uma pura fantochada. Para mim as pessoas devem viver a vida da forma que entenderem. Claro que reconheço que têm que existir algumas regras mas não deveremos castrar as pessoas das suas opções. Tenho um outro que tem a haver muito com a religião e a sua relação com o caos.

alexandre.baptista.5_sofiamotaComo assim?
Comecei a olhar para este conflitos todos mais recentes do médio oriente e comecei a recuar no tempo. Com a pesquisa sobressai o facto de todas as guerras que temos tido têm um princípio étnico-religioso. Acho que isso leva ao caos. Esse trabalho está todo feito, é uma instalação que está totalmente pronta na minha cabeça. É constituída por dez fotografias gigantes em que existe um altar a que chamo de “profanação do sagrado” e um espaço em que as pessoas interactivamente possam experienciar um estado caótico proporcionado pelo som que já está feito. Falta-me agora um espaço que possa acolher este projecto. Gostava de pôr estes trabalhos em prática mas, mais uma vez, não é fácil, até porque são delicados e controversos. Por outro lado também são projectos para pôr as pessoas a pensar e as pessoas cada vez mais não o querem fazer.

Tendemos para uma sociedade alienada?
Sim. É mais fácil as pessoas cada vez mais fugirem do pensar. Caminhamos para o individualismo exacerbado e pela indiferença pelos outros. Isto aliado a uma futilidade muito grande da sociedade de hoje com o culto da imagem. As pessoas só se preocupam com a imagem mesmo sem conteúdo. Não acho isso nada interessante. Não há consciência política nem de cidadania.

Em Macau sente a questão racial?
Não sinto esse confronto de forma explicita mas a comunidade chinesa e portuguesa vivem totalmente à parte uma da outra. Posso estar redondamente enganado mas para mim são dois mundos que coabitam no mesmo espaço e é só isso.

Já esteve em Macau com várias exposições. Como tem sido?
Não tenho razão de queixa de Macau. Todas as vezes que tive trabalhos aqui, vendi. Tenho ainda pessoas que sei que são seguidoras do meu trabalho e também tenho pessoas que considero minhas amigas. Em relação a Macau, a primeira coisa que penso é que “isto era nosso e porque é que não aproveitámos?”. Depois penso também que isto é muito pequeno. Quando aqui estive a primeira vez só havia o casino Lisboa e agora estão cá as operadoras americanas todas. Acho que os portugueses desperdiçaram Macau. Demos isto de mão beijada.

Que conselho dá hoje aos jovens artistas que se vêm com as dificuldades inerentes a um início de carreira?
Que façam aquilo que gostam e que não olhem para trás. Vale a pena correr riscos. Eu ainda continuo a corrê-los todos os dias. Como pessoa devo muito à pintura. Por exemplo lembro-me dos meus pais me darem dinheiro para comer na escola e eu só almoçava para poder poupar e gastar em material de pintura. Começaram aí os sacrifícios. Por outro lado o meu pai apoiava-me de uma forma estranha porque nunca dizia que o meu trabalho era bom. Mais tarde vim a saber por um tio meu que não o fazia para que eu não me acomodasse.

14 Jun 2016

António Katchi: “Executivo tem tratado a lei cada vez pior”

Um Governo que não cumpre a lei e a utiliza em seu bel-prazer, um território que está a perder as suas liberdades e um Direito local cada vez pior. São algumas das opiniões de António Katchi, jurista e docente do Instituto Politécnico de Macau, que afirma não ter medo de dizer o que pensa

Em 2011 afirmou que Macau caminhava para um sistema anti-democrático. Já atingimos esse ponto?
De facto, sempre houve a expectativa que Macau pudesse ser um regime democrático ou, pelo menos, caminhasse para esse lugar. A verdade é que Macau tem apenas um pequeno elemento democrático que é a eleição por sufrágio directo de uma parte dos deputados. Claro, havia a expectativa que essa parte fosse aumentando até que se chegasse à eleição integral da Assembleia Legislativa (AL), por sufrágio directo, e também à eleição do próprio Chefe do Executivo através do mesmo sistema. Ora passaram quase 17 anos sobre a transferência da soberania e não houve nenhum passo nesse sentido. Pelo contrário, houve até um passo atrás com a extinção dos municípios.

Que eram eleitos de forma parcial…
Sim, havia um órgão que era parcialmente eleito por sufrágio directo e os municípios, os dois, o Leal Senado e o das Ilhas, foram extintos e substituídos pelos Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (IACM), cujo Conselho de Administração é inteiramente nomeado pelo Governo. Portanto, não houve a evolução que se espera, mesmo que fosse gradual, para um regime mais democrático.

Mas Macau poderia algum dia sê-lo?
Não. Não se pode ter essa ilusão, de que em Macau poderia haver um regime plenamente democrático, porque Macau é uma região em que o regime é totalitário. Mesmo que por hipótese a AL e o Chefe do Executivo fossem eleitos por sufrágio universal directo, o facto é que eles estariam sempre subordinados a autoridades políticas nacionais destituídas de democraticidade.

Mas há outros sinais…
No capítulo dos direitos, liberdades e garantias têm surgido, por vezes, ameaças. Houve uma deterioração daquilo que normalmente se diz o primado da lei, portanto, no comportamento da Administração Pública. Isto é, após a transferência da soberania o Executivo tem tratado a lei cada vez pior. Porque muitas vezes as autoridades administrativas invocam a lei não como um fundamento que, de acordo com a interpretação possa justificar a acção, mas apenas como um pretexto que manifestamente não oferece qualquer justificação para a acção concreta.

Por exemplo?
Um dos exemplos mais conhecidos é quando se invoca a Lei da Segurança Interna para impedir a entrada em Macau de pessoas que não põe minimamente a segurança interna do território. Pessoas que não estão ligadas a organizações terroristas, nem a qualquer outro tipo de organização criminosa, nem em relação às quais existem menor fundamento para que as mesmas queiram vir aqui causa distúrbio, ou exercer qualquer actividade ilícita. Quando se proíbe a entrada de um jornalista, um advogado, de um professor universitário, de um deputado, de um sindicalista ou até de uma pessoas que só vem apanhar o avião para qualquer outro lado, como já aconteceu, tudo isto significa que o Governo invoca esta lei, sem especificar o artigo. Mas mesmo que especificasse não existiria a menor relação naquilo que está previsto e aquilo que é o motivo real do qual eles estão a proibir a entradas das pessoas.

A proibição do chamado “referendo”, em 2014, avançado pela Associação Novo Macau é outro exemplo de como o Governo usou a lei de forma errada e para seu interesse?
Sim. O Governo invocou uma série de argumentou que nada tinham a ver com a situação. Primeiro, aquilo não era um referendo, se não o era e era apenas uma sondagem como é que se pode dizer que aquilo era ilegal pelo facto da constituição chinesa e a Lei Básica não preverem a figura de referendo? Logo aqui já está errado. Depois o Gabinete para a Protecção de Dados Pessoais veio a invocar uma parte do segundo acórdão do Tribunal de Última Instância (TUI), repare, uma parte apenas, a que lhe interessava. Com esta parte pegaram ainda na Lei de Protecção de Dados Pessoais e fizeram uma mixórdia para dizer que os movimentos que organizavam o chamado referendo, estavam a violar a lei.

O Governo usa a lei de forma ilegal, para atingir os seus próprios interesses?
Exactamente, neste caso, para interesses do regime chinês. O Governo está agir contra a lei. Neste caso, foi deste o Chefe do Executivo e da Secretária para a Administração e Justiça, que estavam envolvidos neste processo, até à antiga coordenadora do Gabinete para os Dados Pessoais, Sónia Chan, actual Secretária, todos eles, juntamente com a polícia, foram coniventes com esta violação da lei. Violação de direitos fundamentais com a invocação de uma disposição legal, mas que estava a ser manipulada. Assim como estava a ser manipulado o acórdão do TUI.

E no futuro?
A maior ameaça que as pessoas poderão vir a sofrer na sua liberdade de expressão ainda está para vir. Essa ameaça está contida no documento que o Governo divulgou recentemente sobre a Lei Eleitoral. É uma autêntica lei mordaça.

Quais os riscos se esta proposta for aprovada?
Se isto vier a ser uma lei obviamente que virá violar de uma forma bruta a liberdade de expressão, em geral, e nomeadamente a liberdade de propaganda política que é uma decorrência da liberdade de expressão. De acordo com a proposta, o que está previsto é que a partir do momento que o Chefe do Executivo fixa a data das eleições e até duas semanas antes do acto eleitoral, ou seja, até ao início do período oficial de campanha eleitoral, ninguém poderá falar publicamente sobre as eleições. Nem as pessoas que se vão apresentar como candidatos se podem assumir como tal, nem as pessoas que pretendem apoiar essa candidatura poderão falar em abono dessa mesma candidatura ou criticar outras, nem nós. Nem jornalistas, nem os residentes, nem os membros das associações, nem simpatizantes. Ficaremos amordaçados e não poderemos dizer nada. Isto é como uma suspensão da liberdade de expressão.

Mas mesmo no período eleitoral há entraves…
Sim. Os candidatos só poderão realizar as actividades que tiverem sido previamente indicadas à Comissão Eleitoral. O documento prevê que antes do início da campanha eleitoral os candidatos forneçam à Comissão em causa, uma informação completa sobre todas as actividade de campanha que pretendam realizar e que lhes entreguem todos os materiais de campanha. Isto é claro de um controlo total. E as pessoas só poderão falar em abono ou em critica de algum candidato se se tiverem registado como apoiante. Quem não o fizer não poderá sequer dar a sua opinião. Isto não é suspender a liberdade de expressão?

Sempre se mostrou uma pessoa que aponta do dedo ao que considera errado. Outros docentes universitários sofreram represálias por expressão livremente as suas opiniões. Não tem que o mesmo lhe aconteça?
Não tenho medo, mas tenho noção que podem existir consequências. Achei chocante os casos de Eric Sautedé e Bill Chou. Foram demonstrativos da tal degradação do ambiente de liberdade que se vive em Macau. Felizmente isso não aconteceu em todas as instituições, não sei de nenhum caso no Instituto Politécnico de Macau (IPM) em que alguém tenha sido perseguido por exprimir as suas opiniões. Espero que assim continue. O que aconteceu na Universidade de Macau (UM) e na Universidade de São José (USJ) foi bastante grave, eu diria até que seria razão suficiente para o Governo demitir o reitor da UM, se outras razões não houvesse, como por exemplo a repressão que foram vítimas alguns estudantes, em 2014, na cerimónia de graduação, que estavam a manifestar o seu apoio ao professor Bill Chou. Portanto, medo não direi que tenha, mas consciência que as pessoas correm alguns riscos, sim, correm. Se algum dia aparecer num canal de televisão chinês a confessar algum crime, com certeza não estarei a falar de minha livre e espontânea vontade.

Rematando: coloca de parte a possibilidade de Macau atingir o sufrágio universal?
Acho que pode depender da correlação de forças que se estabeleça em Macau, Hong Kong e na China. Claro que podemos dizer que o regime chinês é muito mais poderoso do que a população de Macau. Isto é, mesmo que Macau lute muito é claro que sabemos que se o regime chinês quiser recusar o sufrágio universal, terá possibilidade de o fazer. Mas é preciso avaliar os custos dessa decisão, porque isso poderá fazer com que a nossa sociedade se torne altamente instável. O regime chinês terá de avaliar os prós e contras, e pensar que apesar de detestar a democracia, e a temer, poderá chegar a um ponto em que considere que é melhor ter uma sociedade tranquilizada com um regime político que não lhe agrade, a uma sociedade constantemente agitada, e com prejuízo para a economia local. É possível que venha a existir o sufrágio universal, mas tudo isto depende da luta popular. Sem a mobilização da população em favor de um regime democrático, o regime chinês não o irá fazer.

Depois da adesão histórica na manifestação de 2014 contra o Regime de Garantias, acha que estamos a perder o ritmo?
Isto tem altos e baixos. As pessoas, em geral, mesmo aquelas que gostam de estar em manifestações também não têm disponibilidade para estar de forma constante. Acho que as pessoas do sector público temem participar, principalmente as que estão com vínculos precários. Mas mesmo as que estão no quadro têm medo, nomeadamente por temerem consequência a nível de classificação de serviço.

E esta luta dos jovens pró-democratas, Jason Chao, Scott Chiang?
Tenho muita consideração por eles, acho-os bastante dedicados à causa pública, bastante corajosos. Nós bem sabemos que há muitas pessoas com esta idade que preferem estar, com todo o direito, tranquilos na sua vida. Estes novos jovens sacrificam o seu tempo e até a sua liberdade, como foi o caso de Jason Chao, para lutar pelas suas ideias e mudanças que acham que são boas para a sociedade. Posso não concordar com tudo mas acho que, de forma geral, lutam por boas causas, questões de maior liberdade, ambiente, maior participação das pessoas nos assuntos públicos, entre outras.

Quando o ex-procurador é acusado de corrupção e detido, o que é que isto releva de Macau?
Sou muito céptico em relação à campanha “Anti-corrupção” da China. Esta campanha não é contra a corrupção, isto é uma purga dentro do partido comunista. Não estou a dizer que as pessoas que tenham sido apanhadas, não sejam realmente desonestas, e não tenham feito aquilo de que são acusadas. Primeiro, não temos a certeza se estas pessoas fizeram aquilo a que são acusadas; depois, não sabemos quantas pessoas que fizeram coisas destas, ou pior, e que não são apanhadas, nem sequer incomodadas. Por outro lado, nós não podemos esquecer o procedimento que tem sido seguido na China continental. É que não é o Ministério Público (MP) que aparece com uma acusação, começa sempre por um acto da Comissão de Disciplina e Controlo dentro do Partido Comunista, ou seja, podemos crer que o Comité Permanente do Partido Chinês, ou seja, aquele conjunto de sete pessoas que dominam superiormente o partido, dá indicações para investigar ou acusar, eventualmente sem investigação, determinadas pessoas. Só depois é que passa para o MP e depois essas pessoas são levadas para tribunal, e já se sabe que não há garantia de independência dos tribunais na China.

E em Macau?
Em princípio não será assim, mas não sabemos. Como é que eu posso saber se o Comissariado Contra a Corrupção não se transformou num braço da cúpula do partido chinês, nesta campanha anti-corrupção? Não estou a dizer que sim, mas também não ficava admirado que assim fosse.

Passando para o Direito de Macau. Está a ganhar, ou ganhou, uma identidade própria?
Acho que o Direito de Macau se não piorou muito foi graças a certas correcções feitas na AL. Isto porque muitas vezes há anteprojectos de propostas de lei horríveis, por exemplo a da Lei Eleitoral, mas depois, com as consultas públicas, melhoram, mas pouco, e quando chegam à AL ainda estão muito maus. Depois, devido à intervenção de alguns deputados, principalmente os eleitos por sufrágio directo, e dos seus assessores, são melhorados.

Mas ainda assim aquém?
Sim, mesmo assim aquém.

Por que é que este trabalho dos assessores da AL não é feito pelos assessores do Governo?
Na AL os deputados, em princípio, deixam falar os assessores jurídicos, porque os deputados não são superiores hierárquicos dos assessores. Portanto, cada deputado não é chefe dos assessores e por isso não têm autoridade para proibir que os mesmos se manifestem, e parto do princípio que até têm interesse em ouvi-los para eles próprios ficarem informados e terem argumentos para discutir com o Governo. Isto é diferente com o que acontece na Administração. Às vezes há pessoas que podem pensar que os assessores jurídicos do Governo são menos bons, ou que não cumprem o seu papel, mas isso não é verdade. Eles muitas vezes tentam fazer o melhor trabalho mas são impedidos. E muitas vezes o que escrevem é posto na gaveta.

Antipatia pelo Governo chinês não implica antipatia contra a China

Passando à região vizinha, concorda com a separação de alguns jovens democratas da vigília para recordar Tiannamen?
De todo, não concordo absolutamente. Isso implica uma ruptura pela luta da democracia em Hong Kong, como além significa uma quebra na solidariedade nacional que seria bom que existisse, pela luta da democracia na China. Seria muito importante que existisse uma unidade entre os activistas que lutam pela democracia, pela liberdade, pelos direitos humanos e pelos direitos laborais na China. Por outro lado, evidentemente que a luta pela chamada independência de Hong Kong é algo que é virtualmente impossível, além de que, no meu ponto de vista, isto é ilegítimo. Hong Kong não é uma nação: é uma parte da China, que foi roubada pelo imperialismo britânico através das guerras do ópio. Portanto, que Hong Kong é território historicamente chinês não suscita qualquer dúvida. Não há fundamento para a exigência da sua independência. Esta divisão do movimento democrático de Hong Kong vem enfraquecer o próprio movimento e vem dar argumentos ao regime chinês para lançar a ideia de separatismo, alegando que as pessoas de Hong Kong não são patriotas, sobretudo os democratas. Mais ainda, esta separação está a dar força à ideia da China que dar a liberdade aos democratas para apresentar candidatos ao Chefe de Executivo, iria colocar em risco a soberania chinesa sobre Hong Kong.

Mas há uma atitude de ódio ao regime chinês?
Pois, a cúpula dirigente do Partido Comunista tem responsabilidades na crescente antipatia da população de Hong Kong relativamente ao regime chinês. É óbvio que, de um ponto de vista racional, a antipatia ao Governo chinês não deveria implicar antipatia contra a China. Eu, por exemplo, antipatizo com o regime, mas adoro a China como nação, ao mesmo tempo que odeio o regime. Infelizmente algumas pessoas criam esta aversão à China, não são raros os exemplos de pessoas que se recusam a falar mandarim, alguns nem sequer querem aprender. Há um culto de ódio. É irracional detestar a China porque se detesta o regime. Porque é que isto acontece? Não é só desinformação em Hong Kong, é também a atitude arrogante, prepotente, sobranceira, odiosa do Governo chinês, que não consegue gerar a simpatia a alguém, nem nos dirigentes norte-coreanos.

É uma atitude além fronteiras…
Sim, não é só com o seu povo, mas também com os países vizinhos. Uma atitude que cada vez mais a deixa isolada, e os países vizinhos, mesmo com regimes semelhantes ao chinês, acabem por cair nos braços do imperialismo americano. É o caso do Vietname, que se tem vindo a aproximar dos Estados Unidos da América que, por exemplo, vai agora comprar armas aos americanos. Porque é que isto acontece? Só por causa dos EUA que querem aumentar a sua presença? Sim, talvez. Mas a outra parte é por culpa da China que se afasta em vez de se aproximar. Em vez de suscitar confiança, tenta mostrar a sua força, ao mesmo tempo que de forma hipócrita diz que ninguém tem nada a temer.

Há uma tendência, a nível mundial, para este tipo de regime actualmente? Como por exemplo, a eleição de Rodrigo Duterte, actual presidente das Filipinas.
É um facto que quer a recente eleição do Duterte e a possível eleição do Donald Trump (nos EUA), significam vitórias de extrema-direita, como poderá acontecer em França, como esteve prestes a acontecer na Áustria. Claro que isto não é assim em todos os países, mas é um facto que ultimamente tem acontecido. Isto resulta do descontentamento da população em relação a outros candidatos que não fizeram nada, ou quase nada, para melhorar as condições de vida das pessoas. Nas Filipinas o Governo anterior nada fez para resolver problemas estruturais do país. Com a pobreza existe esta possibilidade.

10 Jun 2016

Entrevista | Miguel Campina, arquitecto

Miguel Campina considera o Plano de Desenvolvimento Quinquenal “tardio e fraco” e diz que não existe planeamento no território por força dos interesses e dos lobbies. O arquitecto, residente em Macau há vários anos, aponta ainda críticas aos planos já anunciados para os novos aterros

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap] Plano de Desenvolvimento Quinquenal foi apresentado recentemente. Que comentários faz para as medidas apresentadas para o sector das Obras Públicas?
Este Plano veio tarde e veio fraco. Esperava-se que ao fim de 16 anos tivesse havido a oportunidade de fazer um documento mais interessante, porque basicamente volta a ser um plano de intenções, em que se repetem muitas das coisas que têm sido ditas nas Linhas de Acção Governativa (LAG). Estamos a falar de um documento que repete à exaustão uma série de conceitos que têm sido utilizados e cujo conteúdo está por definir.

Faltam medidas concretas ao nível da habitação e novos aterros?
Não seria natural que neste Plano se abordassem aspectos excessivamente concretos, mas apenas linhas gerais e objectivos. Os objectivos estão genericamente apontados mas insuficientemente esclarecidos. Não vi nenhuma referência à política demográfica, embora se fale do bem-estar da população. Não surge nada que explique como se resolvem problemas reais, em termos de alteração dos padrões de distribuição de riqueza. As pessoas não passam fome, mas a maioria das pessoas não passa bem. Não vale a pena iludir a questão: sabemos todos que existem em Macau profundíssimas desigualdades. E não se compreende como é que não se reconhece essa questão no Plano e como não são apresentadas soluções. Basta pensar nas LAG. Quais os níveis de concretização? E se as medidas que foram anunciadas como sendo necessárias e se chega ao fim do ano e elas não foram postas em prática, ficamos todos a perder.

miguelcampina_6_sofiamotaE há medidas que se repetem ano após ano em todos os relatórios.
E o que é que isso quer dizer? Se não foram executadas por falta de meios era necessário tomar medidas para o evitar e isso não se tem verificado. Relativamente ao urbanismo, este Plano era um instrumento fundamental desde sempre. É difícil perceber porque é que se demorou tanto tempo num esboço do chamado Plano do Ordenamento Urbanístico do Território, que tem um nome pomposo mas um conteúdo limitado. Vieram equipas dedicar-se durante anos sucessivos à análise de propostas para Macau e o que aconteceu é que as decisões relativas aos aterros foram tomadas durante o exercício de Edmund Ho e por um Secretário que ficará para a história por ser extremamente empreendedor e imaginativo nas práticas de desvio de montantes que não eram devidos (Ao Man Long).

[quote_box_right]“Macau foi literalmente destruído, numa certa perspectiva. Fizeram-se imensas coisas que podiam ter sido evitadas e não o foram por decisão política. E, porventura, por incapacidade”[/quote_box_right]

Depois disso o que se procurou foi preencher os espaços que ele criou com as decisões que foi tomando e todo esse exercício de ocupação de novas áreas foi feita de uma forma difícil de perceber e aceitar. Há uma prática corrente em Macau que são as consultas públicas, uma forma populista e demagógica, e que fazem sentido para algumas coisas, mas para outras não, por serem decisões políticas. Não faz sentido esta pseudo-democraticidade que depois não tem correspondência noutras coisas fundamentais, como a composição da Assembleia Legislativa (AL), a qualificação de quem é nomeado pelas autoridades para exercer o seu papel de defesa dos interesses públicos mas sim de interesses específicos, por sector. Dentro deste jogo de faz de conta, o que se passa com este Plano e as LAG é bastante difícil de se aceitar quando se fala tanto em critérios científicos. Critérios básicos como o da transparência e competência não estão presentes, portanto isto é tudo a fingir. Houve uma série de oportunidades perdidas e houve oportunidades de não fazer coisas evocando a inexistência de leis. Quando não se tem a certeza, não se faz.

Que exemplos pode apontar?
A determinada altura coloca-se [a questão] às autoridades se se iria avançar ou não com aquele absurdo da habitação pública em Coloane (complexo de Seac Pai Van). Foi a porta que se abriu para tudo o que se seguiu. Aconselharia o senso que antes de fazer ou dar seguimento aquele verdadeiro disparate tivesse sido usada alguma prudência. Não havia plano e isso serviu para justificar que aquilo podia avançar e tudo o que se avançou depois. E agora como não há plano, e existe um impreciso, avança-se com tudo o resto. É um mundo perfeito.

Já que falamos de Seac Pai Van, a questão da preservação de Coloane tem estado na ordem do dia. Nesta altura é possível travar a construção da zona?
A gestão de tudo depende da vontade. A questão aqui não é se é possível ou não, é se se está interessado, ou não.

E estão interessados?
Nada interessados. Todas as desculpas são boas para justificar o que não deve ser feito. Neste Plano Quinquenal refere-se com algum ênfase a necessidade de preservar a natureza e plantar mais árvores, tornar uma cidade verde. O melhor seria pintarem toda a Macau de verde, seria a solução para as questões de sustentabilidade. Na prática não há a menor vontade de fazer seja o que for. Estragar está na ordem do dia porque sempre esteve. A ausência de planeamento em Macau está sempre associada às vantagens dos lobbies, dos interesses económicos. Em Macau foi sempre assim. Esta discussão que existe agora sobre Coloane é tudo uma conversa da treta. Se tudo for definido olhando para a política, não, não se deve construir. Mas se for da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês, aí já é diferente. E esse é sempre o mesmo problema.

miguelcampina_5_sofiamotaRaimundo do Rosário está a tentar arrumar a casa?
Uma coisa é o facto de alguns Secretários se confrontarem com uma herança pesada e não é fácil dar conta do recado. Foi anunciado pelo Secretário que o seu objectivo era tentar arrumar a casa e cumprir objectivos tendo em conta as limitações existentes. Não falamos do passado porque ele fala por si: Macau foi literalmente destruído, numa certa perspectiva. Fizeram-se imensas coisas que podiam ter sido evitadas e não o foram por decisão política. E, porventura, por incapacidade, mas essa pode ser evitada com o uso de recursos externos, porque o que não tem faltado à Administração são recursos materiais. Está-se a tentar fazer melhor, mas a justificação com base que a RAEM é jovem, deixou de funcionar. É jovem para umas coisas e não é para outras? A razão é fácil de intuir: tem mais a ver com os interesses que estão aqui em causa do que com a incapacidade real de resolver esses problemas. É preferível não resolver porque existe visão de curtíssimo prazo em Macau, e isso serve quem está. E quem está não está interessado, não esteve nem vai estar, nos que vêm a seguir.

Há essa falta de responsabilização.
São responsáveis por, mas não têm a responsabilidade de… este sistema está auto-justificado, não fez porque não estava preparado, porque não tem recursos…as justificações são boas, mas quais os aspectos positivos? A sociedade de Macau sofreu um influxo de investimento nos últimos anos, de rendimentos, que se calhar não foram aproveitados da melhor maneira e também isso se deve a essas carências. Há uma efectiva falta de vontade e depois alguns dos nossos dirigentes têm uma grande falta de mundo, com pouca abertura a algumas questões e nenhumas preocupações sobre questões de fundo. Fala-se muito na educação. Houve progressos indiscutíveis. Podia e deveria ter havido mais? Claro. Mas há casos gritantemente difíceis de entender.

Como por exemplo?
A Universidade de Macau. Como é que se consegue compreender o fenómeno da UM? Li que o Chefe do Executivo reconhecia que alguma coisa não estava bem com a UM. Mas quem é o patrão da UM? Só agora é que deu por isso?

O que está a falhar?
O que parece é que a UM tem um estatuto que lhe permite comportar-se como muito bem entende, à revelia daquilo que seriam as expectativas de quem a sustenta. No curso de Direito puseram lá um senhor (John Mo, director da Faculdade) que não tinha as mínimas condições para exercer o cargo e teve lá o tempo que esteve e só saiu porque teve outros projectos. Este é um exemplo do que não deveria acontecer. Fala-se neste Plano (Quinquenal) que irão finalmente pôr um sistema de responsabilização dos cargos públicos. Mas isso não é inerente ao exercício de qualquer profissão? É difícil falar do Plano Quinquenal sem que à nossa mente surjam as cerejas às quais ele está ligado, as questões do passado e do presente, e que têm sempre a ver com interesses.

Os empreendimentos do Cotai estão quase a ser inaugurados, já são conhecidas algumas ideias para os novos aterros. Que Macau teremos para os próximos anos?
Houve a oportunidade no Cotai de se fazerem as coisas de forma planeada e muito do que se diz hoje sobre o reforço das actividades não jogo estava previsto nos primeiros anos de aparecimento dos casinos, em 2003 e 2004.

E nada foi cumprido.
Mais uma vez: não foi cumprido, não porque os instrumentos não existissem, mas porque não convinha ao Governo aceitar regras que pudessem depois limitar a negociação específica de determinados investimentos. Isso iria limitar escolhas de clientes preferenciais e amigos do peito. Ignorou-se esse instrumento que seria particularmente interessante e que teria contribuído de forma construtiva para que a estrutura de ocupação do Cotai tivesse seguido outras regras e hoje apresentasse outro perfil. Os novos aterros não vão constituir a solução para todos os males de Macau. Se as regras do jogo não se alterarem, o que vai haver é uma transferência de regras para novas áreas. Temos o plano da Praia Grande (Zonas C e D dos novos aterros, Fecho da Baía da Praia Grande), que tem estado a ser sujeito a pressões enormíssimas e não deixará de vir a ser alterado no sentido de permitir uma ocupação mais intensiva do que o original. O plano dos novos aterros do porto exterior foi exactamente a mesma coisa, em que uma das primeiras acções do Governo foi acabar com ele. Criou-se a ausência de regras que permitiu a construção dos casinos em frente ao Grand Lisboa. O plano foi pura e simplesmente revogado.

E não houve outro.
O que serve melhor é a ausência de um plano. Relativamente aos novos aterros, se for mantido o plano original, é fraco. Andaram anos a fazer aquilo mas o resultado ficou bastante aquém do que poderia ser a oportunidade de planear novas áreas da cidade. É mais do mesmo, é a reprodução do que poderia ser aplicado em qualquer área da República Popular da China para investimento imobiliário. Não há um momento de inovação, de estrutura, que seja diferente e melhor do que aquilo que vemos habitualmente. Como vai ser feita a articulação desta área com as zonas já existentes? Aquilo existe num contexto e é preciso estabelecer as amarras, para que haja um complemento e ajudem a resolver alguns problemas do tecido urbano. O que vai acontecer é que à medida que houver a deslocação de algumas populações, o que vai ser feito aos bairros antigos? Andamos com a saga dos bairros antigos há cerca de dez anos. Depois existe um grupo privilegiado que tem sempre acesso a essas coisas e com o objectivo de oportunidades de negócio. Neste processo acelerado de integração inter-regional, assistimos a um esforço de investimento nas áreas adjacentes leva à criação de oferta próxima de Macau. As pessoas com capacidade do lado de cá vão mudar-se para o lado de lá. A médio prazo Macau será um destino dentro de uma área mais vasta, certo tipo de actividades continuam em Macau, a maior parte desloca-se, a habitação vai deslocar-se, e isto tenderá a ser uma área especializada. Uma espécie de bairro francês. Será também o distrito do Jogo e do entretenimento.
FOTOS: SOFIA MOTA

6 Jun 2016

Nuno Gonçalves, dos The Gift: “Queremos sempre o espectáculo como se fosse o último”

A abertura da digressão da banda portuguesa The Gift já conta com sala esgotada em Macau no concerto que tem lugar hoje no Centro Cultural. Nuno Gonçalves, fundador e músico da banda, está radiante, não só com este espectáculo que representa a abertura das comemorações dos 20 anos de carreira, como pelo disco – ainda sem nome – que aí vem e que contou com a produção de Brian Eno

[dropcap]E[/dropcap]sta digressão, iniciada hoje, marca os 20 anos de vida dos The Gift. Como é que nasceu e tem sido esta aventura?
A banda nasceu como qualquer banda nasce. Pelo menos tenho esperança que hoje as bandas ainda nasçam dessa forma. Amigos de escola com amor pela música, com uma vontade própria da idade em fazer coisas. Depois pelo facto de virmos de uma cidade pequenina, como é o caso de Alcobaça, e por isso não termos tanto acesso à cultura como nos grandes centros urbanos, o que criava em nós uma motivação extra. Foi assim que começámos, num sótão pequenino em Alcobaça. De 1994 até hoje é uma história com muito trabalho em que fazemos os discos das nossas vidas e investimos muito tempo e dinheiro nas digressões. Queremos sempre apresentar um espectáculo diferente e o melhor possível, como se fosse o último.

Algumas dificuldades quando se foram profissionalizando?
No início ainda estudávamos. A música era um hobby, apesar de ser um hobby que nos roubava muito tempo. A profissionalização da banda só se dá entre 1998 e 2000. Sentimos algumas dificuldades associadas ao facto de sermos uma banda de fora dos grandes centros urbanos, que cantava em Inglês, com um estilo não muito definido. Não éramos Fado, não éramos o Pop da época, éramos diferentes dos Santos e Pecadores ou dos Delfins….

Mantêm hoje essa diferença?
Acho que sim. Ao fim destes anos todos, e também pela presença e voz da Sónia e pela maneira como faço as músicas, acabamos por ter a nossa identidade e acho que essa também é uma das mais valias da banda.

A entrada da Sónia inicialmente não era prevista…
Não imaginava uma voz feminina, mas a partir do momento em que a Sónia cantou, fiquei rendido. É um dado curioso. Imaginava sempre a banda, o que também terá a ver com a adolescência, como uma coisa muito de rapazes.

Não é a primeira vez que está em Macau. Como foi em 2000?
Foi óptimo. Recordo-me desse ano em que andávamos com 12 músicos em palco. Vínhamos de Hannover e depois seguíamos para Paris. Foi uma época muito produtiva da banda. Foi um espectáculo muito engraçado porque na altura não vínhamos com muitas expectativas. Acho também que uma das grandes vantagens da banda é essa de não ter expectativas em muita coisa. Tentamos sempre fazer o nosso melhor e se corre bem, ainda bem. Lembro-me que estava cheio e que esgotámos os CDs todos que tínhamos trazido para venda. Divertimo-nos imenso. O público era também muito heterogéneo, dos oito aos 88 anos.

Esta abertura de digressão em Macau foi por acaso ou planeada?
Sabíamos que à partida seria mais ou menos por esta altura. Há uma lacuna de espectáculos normalmente entre Janeiro e Maio, apesar de nós, e por gostarmos de tocar em teatros, fazermos muitas vezes nesta altura os nossos concertos também. Aqui calhou e ficámos muito lisonjeados com isso. Por um lado vamos ter tempo para trabalhar e por outro vamo-nos divertir imenso porque vamos trabalhar para um público que à partida não está conquistado e isso é óptimo.

O que esperam deste espectáculo hoje?

Disseram-me que estava esgotado. Vamos fazer o nosso melhor e acho que as pessoas vão gostar muito.

Como é que é levar a música que se faz em Portugal ao mundo, visto os The Gift também já terem esse papel?
Acho que levar a música portuguesa ao mundo já se faz há muitos anos e mais especificamente no Fado. No nosso caso, é um bocadinho diferente, tentamos levar outra música. Na minha opinião é uma música mais identificativa do Portugal moderno do que propriamente duas guitarras e um xaile preto. Acho que Portugal tem bastante mais cor e é bastante mais luminoso do que isso. Nesse sentido, e o facto de ser também diferente, faz com que seja também mais difícil. Ainda não há estradas traçadas por uns Heróis do Mar, ou por uns GNR. Infelizmente essas grande bandas portuguesas e muito identificativas da nossa geração não conseguiram passar além fronteiras. Ao contrário de nomes como a Amália Rodrigues, Mariza, Dulce Pontes ou Madredeus. Existe uma auto-estrada com via verde aberta para o Fado na ‘worldmusic’, que não existe no Pop. O caminho é mais difícil. Nós, por exemplo, temos mercados em que estamos mais solidificados, como o de Espanha. Isso será também pela proximidade geográfica e por isso acaba por nos permitir abrir a nossa própria estrada. Por exemplo em Madrid já tocámos para 1700 pessoas. Já temos também uma presença forte nos média. Por outro lado já não temos a mesma projecção nos média de Portugal, o que pode significar que é um caminho já traçado, em que não somos mais a coqueluche da música portuguesa. Mas existe em Espanha um crescer de interesse ao ponto de virem a Portugal ver espectáculos nossos. No Brasil também temos tido destaque bem como nos Estados Unidos, onde com maior ou menor frequência, também vamos.

Relativamente à estrada aberta do Fado. Os The Gift também já tiveram um projecto associado a ele. Como correu?
É um projecto ligado ao Fado porque cantamos poemas de temas de Fado, mas que por si não o era. E só assim eu o poderia fazer. Não sou de todo amante do género, tal como não sou amante de Heavy Metal e convidei o Fernando Ribeiro dos Moonspell para fazer parte do projecto.

E como foi abordar essa coisa pela qual não se tem um gosto especial?
O facto de não gostar do estilo não é porque não ache que a Mariza, a Carminho ou a Ana Moura não tenham um talento tremendo. O mesmo se aplica aos novos compositores. Tem a ver com o xaile negro e toda aquela penumbra e melancolia que eu também tenho na minha música, mas gostava de ver mais cor nas coisas. O projecto da Amália Rodrigues foi pedido pela Paula Homem. No início disse imediatamente que não, mas depois ela disse-me que queria que fosse um projecto sem Fado e aí já entendi melhor e aceitei. Foi um grande sucesso e muito divertido para nós. Criámos laços que ficaram para a história, a Sónia por exemplo acabou por conhecer o Fernando e tiveram um filho, a minha filha nasceu nessa altura, etc. Foi uma época muito luminosa, divertimo-nos muito porque não havia a pressão de carreira e sabíamos que era um projecto que tinha um início e um fim.

A música que se faz em Portugal está boa e recomenda-se?
Sim, acho que sim e acho que sempre esteve. Não sou daquelas pessoas críticas em relação à música portuguesa. Quando começámos, por exemplo, existia um concurso de música moderna alternativa na nossa cidade de Alcobaça. Sem querer e sem se falar muito nisso nós tínhamos à porta uma pequena “Factory” do Andy Warhol naquele espaço todas as semanas. Nunca achei que a música portuguesa era de má qualidade. O que se fala muitas vezes é que não há oportunidades, que as rádios não passam esse tipo de bandas, etc. Nós não temos razão de queixa da rádio. Continuamos a perceber que é na rádio que se fazem os grandes sucessos e é de lá que saem os hits. Se a rádio está boa? Não considero. Acho que está muito má. Acho que há uma incoerência tremenda nas playlists. Não há uma linha condutora.

O que é que aí vem?
Vamos lançar um novo disco que já está feito. Se não for no final deste ano será para o ano. Tivemos a sorte de realizar este projecto de sonho produzido pelo melhor produtor do mundo que é o Brian Eno, misturado pelo não menos conhecido Flood, e é uma história de sonho. Aprendemos imenso. Foi tremendo. Foram dois anos de trabalho que chegaram agora ao fim. Temos um disco de sonho para lançar que rompe com barreiras dos The Gift e que constrói, para mim, as nossas melhores canções de sempre. Acho que ao final de 20 anos conseguirmos este projecto com o Brian Eno foi a cereja no topo do bolo e pode ser o início de uma nova etapa muito importante dos The Gift.

Como foi trabalho com esse “monstro” que é o Brian Eno?

Foi a melhor experiência que podíamos ter, quer profissional, quer enquanto relação. Um ser humano extraordinário. Tem também uma maneira muito interessante de conduzir as pessoas e os músicos. Eu nem tenho muitas palavras. Tudo poderá ser hipérbole. Quando falo do trabalho com ele é tudo muito grande e muito bom.

2 Jun 2016

Liliana Inverno: “IPOR é mais do que a sua oferta formativa”

Depois de três anos, Liliana Inverno está de partida. Deixa o centro de língua portuguesa do IPOR com a sensação de dever cumprido. Instituto que é, aponta, muito mais do que números, turmas e alunos. Atrás da cortina existe muito trabalho e projectos

[dropcap dtyle=’circle’]O[/dropcap]Instituto Português do Oriente (IPOR) publicou uma Manifestação de Interesse para as funções de Coordenador do Centro de Língua Portuguesa, lugar ocupado por si. De saída, qual o balanço que faz do trabalho realizado?
Efectivamente, confirmei recentemente à Direcção a minha intenção de, cumpridos os três anos de contrato inicialmente previstos e atingidos os principais objectivos definidos para esse período, querer regressar à vida académica, em particular à investigação e à orientação de trabalhos académicos. Com a excepção de actividades pontuais de arbitragem científica e o acompanhamento de projectos já iniciados, esta foi uma dimensão da qual, por opção, me desliguei durante os últimos três anos, para poder centrar-me exclusivamente nos compromissos que com gosto assumi com a Direcção do IPOR em 2013.

Não é possível assumir as duas funções?
A minha avaliação é a de que, nem o meu método de trabalho, nem as regras das universidades – que impõem, por exemplo, que apenas doutorados com ligação a instituições universitárias possam orientar teses – nem o nível de exigência que hoje a diversidade de esferas de intervenção do CLP impõe permitem essa conciliação. É neste contexto que surge a Manifestação de Interesse. Gostaria que fosse possível conciliar as actuais funções, que me proporcionaram uma das mais ricas e desafiantes experiências profissionais até hoje, com uma carreira académica.

Como olha o trabalho desenvolvido até aqui?
Foram três anos de um trabalho colectivo muito exigente, mas acima de tudo, muito enriquecedor, de implementação da visão e estratégia que a actual Direcção, em boa hora, definiu para a acção do CLP e na qual Coordenação e corpo docente se empenharam por levar a bom porto. Creio que o conseguimos. Mas mais importante que o meu balanço, que sou parte interessada, é o balanço que a instituição faz desse trabalho. É, por isso, para mim motivo de grande satisfação que esse balanço também seja positivo, como de resto já o exprimiu publicamente o director da instituição, João Laurentino Neves.

O Curso Geral do IPOR foi alvo de uma reestruturação curricular quando assumiu funções. Pode explicar esse processo e quais as metas atingidas?
A reestruturação curricular de que foi objecto o Curso Geral do IPOR, em 2013, passando de um sistema de organização próprio por módulos para o sistema de organização por níveis definido no Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas (QECR), é a face mais visível de um processo que se estendeu a toda a oferta formativa da instituição e que visou o seu alinhamento com as orientações dos documentos de referência internacional para o ensino e certificação de línguas estrangeiras e do Português língua estrangeira, em particular.

O objectivo foi atingido?
Sim, esse objectivo, no essencial, está hoje cumprido, não só no Curso Geral, mas também no Curso de Crianças, nos cursos intensivos de iniciativa própria da instituição e nas formações para fins específicos solicitadas por instituições parceiras. Creio que conseguimos desenvolver um conjunto de ferramentas que oferecem a formandos e instituições parceiras uma garantia de elevada qualidade na formação e certificação disponibilizadas pelo IPOR: programas alinhados com os descritores do QECR para todas as formações, distinguindo entre programas globais, modulares, ponderados e parciais em função da natureza, público e objectivo de cada formação; instrumentos e critérios de avaliação de diferentes tipologias (colocação de nível, diagnóstico e avaliação de desempenho); exames próprios de certificação, reconhecidos pelas instituições oficiais de Macau, em consonância com a estrutura e objectivos dos exames do sistema de certificação CAPLE.

Antes dessa reestruturação, este curso não conseguia atribuir ao alunos uma certificação que respeitava o conjunto de competências comunicativas definidas no QECR?
Na análise que fizemos com a direcção, o que sentimos é que a organização modular não respondia às necessidades actuais e criava fragilidades que importava corrigir. O que fizemos foi precisamente assegurar que elas seriam reduzidas ao máximo, o que passava por adoptar o Quadro como referência quer para a elaboração dos programas, quer para a organização curricular das formações, quer para todas as certificações correspondentes.

Qual a oferta que neste momento o IPOR tem para quem queira aprender a Língua Portuguesa?
Embora o Curso Geral seja, de facto, o curso mais antigo e também aquele que reúne o maior número de alunos, a oferta formativa da instituição alargou-se de forma substancial nos últimos três anos, ajustando-se ao alargamento que igualmente se verificou ao nível das instituições com as quais o IPOR coopera actualmente. Para além do Curso Geral, o IPOR oferece ainda o Curso de Português Língua Não Materna para Crianças e Jovens (nível A1 a B1), cursos gerais intensivos de nível A1 e B1 e cursos intensivos de conversação. Para além deste núcleo central de formações, o IPOR desenha e coordena ainda um número crescente de formações, gerais e específicas, promovidas por mais de uma dezena de instituições parceiras, entre elas três instituições de ensino superior.

Relativamente às cooperações, há pouco tempo a Liliana deslocou-se à Austrália. Em que consistem estes acordos? Porque são uma mais valia?
A direcção do IPOR tem desenvolvido vários contactos no sentido de dar corpo a recomendações que têm vindo a ser formuladas em Assembleias Gerais pelos Associados da instituição, que, por norma, partilha com os diferentes coordenadores das unidades orgânicas da instituição. Entre essas recomendações figurava a de conferir uma vertente regional à acção do IPOR. Desses contactos resultou a orientação conferida ao CLP de preparar e orientar uma formação na Austrália, que me coube a mim executar.

Quando iniciou funções disse que um dos objectivos era reforçar a “interligação e da cooperação com as instituições da RAEM ao nível do ensino do Português enquanto língua estrangeira”. Conseguiu? O que se fez, ou está a fazer para que isto aconteça?
O CLP participou, ao lado da direcção, no reforço, da interligação e da cooperação com as instituições da RAEM ao nível do ensino do Português língua estrangeira. Fizemo-lo, antes de mais, ouvindo as necessidades dessas instituições e alargando em conformidade a nossa oferta formativa para fins específicos. Dessa abordagem resultou um aumento muito significativo do número de formações prestadas. Veja, só para 2016 temos já confirmadas cerca de 40 formações. Foram ainda criadas novas parcerias e reforçadas as existentes.

Por exemplo?
O recente desenvolvimento de um programa de iniciação à Língua Portuguesa, em regime intensivo, para os funcionários públicos, por via do renovado protocolo com os Serviços de Administração e Função Pública. Iniciámos também uma colaboração com o BNU, desenvolvendo um programa de formação linguística especificamente destinado aos seus trabalhadores. No Instituto de Formação Turística, para além das cinco disciplinas curriculares de Língua Portuguesa que já assegurávamos, passaremos brevemente a assegurar duas outras disciplinas curriculares e iniciámos este mês o primeiro de um conjunto de três cursos para a área do turismo, sendo que, em ambos os casos, a certificação será conjunta. Ou seja, pela primeira vez teremos uma certificação conjunta com uma instituição de ensino superior.

O IPOR tem ganho ou perdido alunos? Qual é o crescimento dos dados relativamente às matrículas?
Tenho sempre alguma dificuldade em compreender esta obsessão com os números porque não consigo deixar de sentir que a ela está subjacente a ideia de que o balanço a fazer sobre a intervenção do CLP deve assentar exclusivamente no aumento ou diminuição do número de alunos na sua oferta própria. É óbvio que este é um dado importante e, felizmente, os números têm-nos sido favoráveis. Mas como acabei de explicar, o contributo desta unidade orgânica do IPOR para o cumprimento da missão da instituição vai muito além daquilo que é a sua oferta formativa. Compreende, também, o desenvolvimento de projectos de formação dirigidos aos docentes do IPOR e de instituições do sistema educativo da RAEM e da região Ásia-Pacífico. É nesse contexto que surgem, por exemplo, as formações para docentes que temos desenvolvido no âmbito do Programa de Desenvolvimento e Aperfeiçoamento Contínuo sobre a preparação de candidatos para a certificação CAPLE. Na esfera de acção do CLP recai também, em estreita articulação com a direcção, a supervisão de projectos editoriais de suporte às formações de PLE e de acções de promoção da língua portuguesa. O IPOR lançou já o Guia de Conversação Chinês-Português e tem em fase de conclusão três outros projectos editoriais de grande significado. Em 2015, foi realizado também um Encontro de Pontos de Rede na Ásia, para o qual contámos com a participação de leitores de sete países e o contributo de colegas de instituições de ensino superior locais.

Tem-se feito muita coisa, mas como é que o IPOR se pode tornar atraente para novos e mais alunos?
Creio que o IPOR já é atraente para quem, na RAEM, deseja aprender português. De qualquer forma, a capacidade de qualquer instituição depende sempre da sua capacidade de se manter atenta àquelas que são as expectativas e as motivações de quem as procura. No IPOR, uma dos mecanismos que encontrámos de manter essa atenção passa, por exemplo, pelo inquérito de avaliação pelos formandos de todas as formações que assegura.

Quais os planos futuros para o IPOR? Há a possibilidade de se expandir em termos e infra-estruturas?
Como compreenderá, não me pronunciarei sobre matérias que são da exclusiva competência da direcção do IPOR e da sua Assembleia Geral. O que posso dizer, é que foi para mim um privilégio ter tido a oportunidade fazer parte do presente desta Instituição. Quanto ao futuro, enquanto se mantiver a orientação estratégica seguida nos últimos quatro anos, estarei sempre disponível para dar os contributos que me sejam solicitados, ainda que à distância.

Considera que é dada a devida importância à nossa língua na RAEM? As pessoas estão sensibilizadas para a oportunidade que têm em aprender esta língua?
A língua é de todos os que a falam e o espaço que ocupa nas suas vidas depende muito daquela que é a sua motivação de base para exercer cidadania nesse espaço linguístico e cultural.

Deu aulas em África, agora está na Ásia. Como é ensinar a mesma língua mas em culturas tão diferentes?
O processo de aquisição e aprendizagem de uma língua, diz-nos toda a literatura disponível, é o mesmo em todos os continentes. O que muda é o estatuto que a língua assume em cada contexto – tipicamente língua segunda nos PALOP e língua estrangeira na Ásia – e, consequentemente, a relação que o aprende estabelece com ela.

Sai com a sensação de dever cumprido?
Sim, e a isso não é alheio, nem o apoio que sempre tive da direcção, nem o empenho com que sempre contei por parte do corpo docente do IPOR e pessoal administrativo. Mas saio, acima de tudo, com a absoluta convicção de que a viagem é a recompensa do caminho.

13 Mai 2016

Amy Sio: “Se o pulmão da cidade for destruído, Macau não será sítio para viver”

Engenheira do Ambiente, Amy Sio acredita que a DSPA ignora a existência destes profissionais, referindo que “quando o líder não tem conceitos, os subordinados não sabem fazer políticas”. A fundadora do grupo online “Our Land, Our Plan” diz que Coloane tem de ser preservado, para que Macau não fique poluída como Pequim, mas também diz que a intenção é promover o desenvolvimento sustentável

Porquê a criação do grupo “Our Land, Our Plan”?
Em Agosto do ano passado, depois da terceira ronda de consulta pública sobre os novos aterros, pensámos sobre quais seriam as conclusões. Eu e vários amigos pensamos que poderíamos fazer mais, recolhendo as opiniões dos jovens e entregando uma carta ao Governo. Também queríamos que mais residentes pudessem dar as suas opiniões e fizemos uma recolha online. Percebemos que, em geral, a população não soube que foi feita uma consulta pública, nem percebeu a importância dos novos aterros. Sentimos que não foi uma boa consulta pública.

Portanto a criação do grupo não visava apenas a preservação de Coloane.
Não, o nosso objectivo é em relação a terrenos e ao planeamento urbano. Na realidade muitos terrenos em Macau têm sido utilizados sem qualquer tipo de planeamento. Pode-se construir hoje e destruir amanhã. Por exemplo, as obras do metro ligeiro ou do Terminal Marítimo do Pac On são coisas inconcebíveis. Pensamos em como podemos tornar a cidade melhor, para que não se desenvolva sem ordem. Avançamos com o grupo porque queremos levar os residentes a compreender melhor o que está a acontecer.

Como foi decidida a composição do grupo?
São membros de diferentes áreas. Temos médicos, enfermeiros, psicólogos, designers. Estudei Engenharia Ambiental mas trabalho na área das convenções e exposições e também com indústrias criativas. O background não é muito profissional mas é abrangente.

O “Our Land, Our Plan” fez a sua primeira manifestação no último 1 de Maio. Conseguiu ver pessoas diferentes no protesto, ainda que o número de participantes tenha diminuído?
Sim, notei que havia pessoas diferentes. Muitos amigos meus também participaram pela primeira vez e muitos deles são funcionários públicos e profissionais que até então não davam muita atenção aos assuntos sociais, mas participaram de forma activa. Esperamos que mais jovens possam apresentar as suas opiniões junto do Governo. Espero que a sociedade mude e que se possa apoiar mais as pessoas a falarem a verdade e a dizerem o que pensam. Compreendo que isso não é fácil, mas acredito que vai haver cada vez mais residentes a avançar neste sentido.

FLORA_4_SOFIAMOTAMas actualmente há poucos participantes nas consultas públicas.
É verdade, mas o problema é que o Governo não se importa, ou não responde às perguntas. Já passei por essa experiência e é irritante. Consegui sentir que o Governo faz consultas públicas para nada.

Acredita que é difícil promover a protecção ambiental em Macau?

Não é difícil. Já fomos mais de dez vezes para a rua recolher assinaturas para a petição que pede a protecção de Coloane e descobri que muitos dos residentes desconhecem o que se passa. Em cem pessoas talvez três saibam. Mas quando falamos com eles, compreenderam o problema. Quero esclarecer aqui que o “Our Land, Our Plan” não é um grupo de preservação ambiental, queremos sim promover o desenvolvimento sustentável.

Como assim?
Enquanto engenheira do ambiente sei que temos a parte da preservação e a parte do desenvolvimento sustentável. Pequim é o melhor exemplo: há dez anos não era assim e actualmente é uma cidade que não serve para viver, já que as pessoas têm de comprar oxigénio para respirar. E isso porque não foi desenvolvida de forma sustentável. Temos um conceito simples: podemos lidar com um problema de poluição com dez dólares americanos, mas se ele não for resolvido já e se se mantiver até um certo nível, nem com cem dólares americanos resolvemos 10% desse problema. A Engenharia Ambiental serve para poupar dinheiro, mas muitos não entendem isso e pensam que estamos a impedir o desenvolvimento de um lugar. Se Pequim tivesse um plano a capital do país podia ser muito diferente. É verdade que o meio ambiente pode ser recuperado, mas quando se ultrapassa um certo nível, já não é possível, mesmo que se gaste muito dinheiro.

Portanto para termos um desenvolvimento sustentável há que proteger Coloane.

Estamos muito preocupados com Coloane porque não está em causa apenas a preservação das árvores mas toda a linha básica de Macau. Se não preservarmos o único recurso verde que temos prevejo que Macau possa ser a próxima Pequim e isso não está muito longe de acontecer. Daqui a dez anos poderemos já estar arrependidos, já nesta geração. Se o pulmão da cidade for destruído, Macau não será um sítio para viver e aí irei emigrar, isso é certo.

O “Our Land, Our Plan” visitou a zona do Alto de Coloane (onde vai ser construído um edifício de cem metros)? É uma zona que pode ser desenvolvida?
Fizemos a visita. Olhando para todo o território, do que é que Macau precisa? É óbvio que não temos falta de habitações de luxo, porque a taxa de desocupação de casas é elevada. Coloane é o único espaço que pode servir para construir verdadeiramente o Centro Mundial de Turismo e Lazer, tudo depende dos actuais recursos que existam para se fazer um plano de desenvolvimento sustentável e dou como exemplo a construção de um mangal. Desenvolver não é destruir e as áreas do lazer e do turismo são o que os turistas e os residentes procuram. Porquê fazer a coisa contrária e destruir o único espaço de lazer? Estou mesmo preocupada.

Estão em causa interesses entre o Governo e o empresário? Pergunto isso tendo em conta a decisão do Governo e da construtora de não publicarem o relatório de impacto ambiental, aprovado pelos Serviços de Protecção Ambiental (DSPA).
É preciso pensar, em primeiro lugar, se é adequado ou necessário desenvolver. Obviamente que não é apropriado nem necessário desenvolver a montanha. Portanto, um relatório de impacto ambiental só deveria ser feito caso houvesse uma necessidade absoluta de desenvolvimento, para responder a um grande interesse público. Mas este projecto não deveria ter sido aprovado logo à partida. Preocupamo-nos com este relatório porque a população deve ter conhecimento disso e não vejo qualquer problema na sua publicação. Mas com a actual situação, podemos imaginar os problemas…

Governo gasta dinheiro de forma errada com a DSPA”

Macau possui muitos engenheiros do ambiente? Conseguem trabalhar nesta área?
A Engenharia Ambiental visa sobretudo resolver problemas com os resíduos e com a poluição. Penso que todos os anos há cinco novos licenciados. Temos profissionais mas são ignorados, incluindo o Governo, que gasta dinheiro de forma errada com a Direcção dos Serviços de Protecção Ambiental (DSPA). Muitos profissionais não conseguem desenvolver as suas capacidades e ajudar à criação de um planeamento para Macau, apenas podem concluir um trabalho a seguir ao outro.

A DSPA não tem feito um bom trabalho por falta de recursos humanos, políticas ou porque existe um problema na Administração?
Todos os titulares de cargos no Governo, para além dos que trabalham para a DSPA, deviam estudar novamente. Como não têm conceitos quando fazem políticas só podem ir curando onde há dor, mas deixam tudo piorar até que um dia aparece um cancro. Falando da DSPA, há uma falta de uma série de indicadores científicos para que possamos ter um desenvolvimento sustentável e uma capacidade de recuperação do meio ambiente, para que o ambiente e os seres humanos sobrevivam ao mesmo tempo. Temos um bom Produto Interno Bruto (PIB) e ainda temos condições de utilização dos espaços verdes.

FLORA_6_SOFIAMOTA Raymond Tam foi nomeado director da DSPA sem ter experiência nesta área. Temos um problema de termos um líder que não compreende e os subordinados que não sabem como fazer?
É exactamente isso. A DSPA considera-se um organismo de consulta mas não considera que tem responsabilidades, nem sabe qual é a sua missão. É normal que os residentes não compreendam isso, mas é inaceitável se o Governo não sabe fazer.Imagino que o presidente da China, Xi Jinping, esteja arrependido com os resultados em Pequim. Se ele tivesse outra oportunidade acredito que não tinha optado por aquele caminho, porque houve demasiada destruição. Espero que não fiquemos arrependidos daqui a dez anos.

Qual a posição do “Our Land, Our Plan” em relação ao Plano de Desenvolvimento Quinquenal da RAEM?
O documento tem escrito o que se devia fazer e que ainda não foi feito. Esperamos que o Executivo tenha um conceito de desenvolvimento sustentável. Lamento isso, bem como o facto do plano não ter notas positivas.

Quais os planos que o grupo tem para o futuro?

Vamos esperar para ver como é que o Governo vai lidar com o projecto do Alto de Coloane e esperamos fazer um “referendo civil” com outros grupos e uma manifestação. Ainda não temos uma data definida para fazer isso porque queremos pesquisar um pouco mais.

6 Mai 2016

António Caetano Faria, realizador de “Caminhar no Escuro”, e Ka Chon Leong, protagonista

“Eric – Caminhar no escuro” é uma homenagem ao que um filme transformou em conhecimento e amizade. É uma forma de descobrir receios, como o de ficar cego, sem tocar na parte mais dramática da tragédia. É um documentário que estreia a 10 de Maio às 19h30 no Centro Cultural, fazendo parte da edição deste ano do Festival de Cinema e Vídeo de Macau e que traz um protagonista com ideias bem fixas

[dropcap]A[/dropcap] sua carreira enquanto realizador tem sido fortemente dedicada ao documentário. Porquê?
ACF – Posso dizer que foi um acaso. Acho que comecei a fazer realização de documentários por gostar muito de filmagem. Talvez por ter criado uma relação com a câmara de filmar, porque acabamos por construir essa relação. Não é só um objecto. E essa relação fez com que explorasse mais alguma ideias além da imagem, de modo a tirar dela mais do que ela própria. Por isso, e também pela necessidade, por Macau ter poucos técnicos na área. Ajudou com que espoletasse o interesse na forma de contar histórias e de dizer o que sinto e procurar alguns tópicos em que o documentário me ajudou a exprimir.

Como é que aparece Macau na sua vida profissional?
ACF – Sou nascido e criado em Lisboa. Vim com uma relação que tinha na altura e apaixonei-me pela cidade. Começaram a sair ideias que estavam na gaveta e a partir daí comecei a explorar Macau a partir da imagem e também da mensagem…

ERIC_1_SOFIAMOTAMacau como fonte de inspiração?
ACF – Claramente. É uma cidade que me cativa imenso. Em que posso explorar tanto a minha relação com a câmara, como histórias diferentes que não tenho em Portugal, pelo menos, tão diferentes. Acho que aqui também existe um clima mais relaxado porque a economia é mais pujante e a vida acaba por ser mais fácil. Naturalmente, tendo a vida mais facilitada, consegue-se pensar em coisas mais pessoais.

Como é viver do cinema em Macau?
ACF – Não vivo do cinema em Macau. As pessoas estão todas enganadas. Vivo porque sou operador de câmara e editor. Realizo projectos também e acima de tudo tenho ideias e vou à procura de financiamento. Mas acaba-se por não se viver do cinema. Não dá o salário fixo nem há projectos fixos. Não temos muita coisa a ser filmada em Macau.

Como vê então a “indústria” do cinema em Macau?
ACF – Nos últimos oito anos há efectivamente um crescimento acentuado. Derivado das políticas do Governo, acima de tudo por causa do jogo. Querem dar a faceta do entretenimento e “lavar uma bocado a cara”. E isso faz com que em todas as áreas artísticas estejam a crescer. Mas não se pode dizer que seja possível viver disso.

Que sugestões daria para que isso fosse possível?
ACF – São vários factores. Precisa acima de tudo de haver um instituto de cinema e audiovisual em Macau, uma entidade do Governo que se dedique só a essa área. São projectos longos e que por vezes exigem muito financiamento e ao mesmo tempo envolvem muitas outras artes. Para um documentário, temos que arranjar compositores, cenários, direcção de actores. Por isso agora quando tenho uma ideia, normalmente uma que me toque a mim, parto depois à procura de financiamento.

Este documentário que vai apresentar, “Eric – Caminhar no escuro”, também foi uma dessas ideias que, de alguma forma, o tocam pessoalmente?
ACF – Claro que sim. Este documentário vem de algumas perguntas que tinha para comigo. Perguntas, receios e medos e essa ideia da possibilidade de ficar cego. Como é viver sem luz? Sem imagens? Dependo dessas imagens e por isso foi um documentário que fez sentido para mim, até para combater esse receio, essa forma de ver a cegueira. Foi a forma de tentar explorar o tópico.

E como é que apareceu o Eric? Como é que se encontraram?
ACF – Encontrei o Eric depois de alguma investigação acerca do tema e acerca de invisuais aqui. Queria especificar a vida de uma pessoa, queria pegar nessa pessoa e tentar explorar ao máximo como é que observa e sente as coisas. Os invisuais observam, podem não ver, mas observam. A visão é um complemento da nossa linguagem. O Eric foi uma forma de me descobrir a mim próprio e enfrentar os meus receios. Se o estou ou não a usar para isso, é uma questão que me coloco, mas acho que também que estou a ajudar a dar voz a estas pessoas.

Que voz têm estas pessoas, agora, depois de fazer o filme?
ACF – Não queria fazer o documentário do cego, o coitadinho da bengala. Não era isso que queria fazer. Espero que as pessoas quando saírem do filme não fiquem com esse sentimento. Mas é óbvio que tive que passar por partes trágicas da vida dele. Não nasceu cego, ficou cego. Por isso nesse sentido é óbvio que é uma história que mexe com todos nós. Mexeu imenso comigo e só posso agradecer pelo facto de o ter conhecido. Foi um privilégio fazer este documentário com ele.

Houve abertura da parte do Eric desde o início para colaborar no documentário?
ACF – Completamente. Encontramo-nos num café e a abertura foi automática. Começámos a falar imediatamente a mesma língua. Claro que, com o tempo, fui aprendendo outras formas de comunicação, visto ser uma pessoa que fala muito com gestos. Tive que aprender a comunicar com um invisual. Depois foi fazer um filme sem guião e as coisas foram-se proporcionando. Infelizmente, o tempo que tínhamos não era o necessário para fazer este documentário, acho que deveria ser mais explorado. No total tivemos apenas cerca de cinco, seis meses, o que não é muito tempo para se conhecer uma pessoa. Queria também ter uma relação de amizade para além de trabalho porque só assim é que se consegue chegar aos significados e às coisas mais profundas. Tenho agora com o Eric a construção de uma amizade.

Como é que estabeleceu os limites face ao “coitadinho”, numa história que tem, efectivamente, muito de drama?
ACF – Por um lado para fazer um documentário uma pessoa tem que ser nua e crua. Tentei ir buscar coisas minhas e gostos meus e fazer perguntas que eu achasse que até se relacionassem mais comigo do que com ele. A partir daí quis perceber as nossas semelhanças e não as nossas diferenças. Ele gosta de futebol e eu adoro futebol. As diferenças acabaram por não ser assim tantas. São perspectivas diferentes, só isso. Porque a realidade acaba por ser uma imaginação de todos nós.

O Eric trabalha com invisuais e está a acabar o mestrado em Psicologia. Que motivações?
KCL – Sou trabalhador estudante. Trabalho numa associação de invisuais de Macau em que organizo actividades lúdicas e de reabilitação. Para mim, a Psicologia é uma [forma de compreender] o que também sentem os invisuais. Por exemplo aqueles que tarde na vida perdem a visão, o que é isso para eles? Para mim será mais fácil entender essas pessoas. Mas principalmente quero usar o meu conhecimento para trabalhar. Quero ajudar também os jovens na vida normal. Dar-lhes alguma orientação, até porque normalmente não falam muito com outras pessoas. Alguns jovens são incríveis. Eles não gostam de falar com os pais ou os seus amigos que têm visão e preferem falar comigo. Por outro lado, eu também não sigo as regras standard da sociedade. Gosto de as quebrar.

Como assim?
KCL – Se seguisse as regras, e sendo invisual, teria que aprender por exemplo a fazer massagens ou tocar música clássica, mas escolhi estudar em escolas normais, aprender música mas não clássica. Toco guitarra, baixo e bateria e gosto de rock. Gosto também de ensinar as pessoas a usar a tecnologia porque é um meio que me é muito útil para comunicar.

Não nasceu invisual. Recorda o que já viu?
KCL – Quando era pequeno não via imagens claras, mas lembro-me de ver algumas cores e algumas sombras. Gostava muito de ver o pôr-do-sol da janela. Era uma altura do dia muito bonita, com todos aqueles laranjas que me traziam sentimentos especiais. Da minha infância e do tempo em que via, guardo essencialmente o pôr-do-sol. Também era um momento familiar em que a família se juntava. Lembro-me também de estar muito perto da televisão para tentar perceber as caras das pessoas.

ERIC_3_SOFIAMOTAComo é que constrói a sua imaginação e concepção do mundo?
KCL – A imaginação é uma coisa muito visual. Normalmente é baseada no que se viu antes. Aquilo em que toco, por exemplo, nas últimas duas décadas, posso pensar que cor teriam. Para mim o cor-de-rosa é o sentimento das pessoas a irem para casa, o vermelho é o tempo à tarde, azul depende, se for escuro é um pouco deprimente e próximo do preto, se for claro é o céu.

ACF – Quando apresentei este projecto o título era precisamente “A imaginação de um invisual”, foi assim que apresentei a proposta.

Como é ser agora um actor?
KCL – Foi muito fácil porque me estava a representar a mim. Não tinha experiência mas como era para me divertir também, e usufruir, não foi nada difícil. Mas não penso que no futuro possa ser um bom actor.

Como sente Macau?
KCL – Macau é como um quarto muito pequeno onde se põe tudo dentro. Não sei se um dia não irá explodir. As pessoas que aqui vivem têm ideias muito diferentes. Precisamos de ser uma cidade internacional, mas internamente isso não acontece. Por outro lado, e para nó invisuais, como não assinamos não podemos usar uma série de coisas que nos ajudariam a viver. Por exemplo, não podemos usar paypal, nem levantar dinheiro porque não consideram que possamos ter cartão multibanco. Falta ainda a Macau tomar mais iniciativas nomeadamente na área tecnológica de forma a que possamos ter uma vida quotidiana mais independente. Não se promove a independência dos invisuais, muito pelo contrário. Por outro lado até nós poderíamos ser mais úteis, com o avanço tecnológico, e ajudar as outras pessoas a lidar com as novas tecnologias nomeadamente as aplicadas aos invisuais.

Como é para si não ver o seu filme?
KCL – Acho que preciso de me basear no que aconteceu a fazer o filme. Mas noutros filmes, existe este dispositivo, chamado áudio-descrição. Já é utilizado nos Estados Unidos e outros lugares e deveria existir aqui também. É uma tecnologia que acompanha o filme com descrições para os invisuais. Nós também gostaríamos de o ter aqui. O cinema é para todos.

6 Mai 2016

Tracy Choi, Realizadora: “Os meus tópicos são as mulheres”

Tracy é uma das principais vozes do cinema local. Porta estandarte de uma nova geração, terminou há pouco a rodagem do seu primeiro filme, “Sisterhood”, que conta com Gigi Leung no principal papel. Nesta conversa ficamos a saber as suas motivações, o processo que a trouxe aqui e até como a cultura portuguesa influencia a história

[dropcap]C[/dropcap]omo começou este projecto?
Há muito, muito tempo. Começou quando escrevi o guião, num projecto de curso, estava ainda a estudar em Taiwan. Depois voltei para Macau para trabalhar na TDM quase um ano, como apresentadora, e depois fui para Hong Kong onde fiz o mestrado em cinema. E foi aí que conheci ai o meu produtor (Ding Yuin Shan) que era também o meu orientador. O guião foi o meu projecto de curso e desenvolvi a história. Depois surgiu o concurso do Instituto de Cultural e tive sorte e consegui o milhão e meio para iniciar o projecto.

Sorte, ou o projecto era mesmo bom?
(risos) Sorte porque o concurso foi anunciado à pressa e não nos deu muito tempo de preparação. Mas eu já tinha o trabalho feito… por isso consegui concorrer. Com esse dinheiro fui ter com o meu professor para ver se ele conseguia o resto. Ainda esperámos mais ou menos um ano pelas respostas de produtoras de Hong Kong porque os meus produtores queriam que o filme pudesse ser visto lá mas também na Ásia. Daí que seria melhor para mim ter uma empresa de Hong Kong a investir. Foi aí que surgiu a One Cool Film a dizer que sim.

Quanto mais dinheiro foi necessário?
Cerca de cinco ou seis milhões. Ao princípio pensava que mais um ou dois milhões chegavam mas como temos uma equipa completamente profissional, mais viagens e estadias, não era possível.

A história passa-se em Macau mas parte das filmagens foram feitas em Taiwan. Porquê?
Porque vivi lá quatro anos para estudar mas principalmente porque se parece muito com a Macau antiga. É mais lento, as pessoas são muito simpáticas umas com as outras…

Então quer dizer que Macau hoje não é lento nem agradável…
Está a mudar (risos). Também aconteceu porque a personagem principal do filme, apesar de ser de Macau, casou-se com um taiwanês e mudou-se para Taiwan após 1999. Ela não tinha voltado a Macau desde então e quando regressa encontra uma cidade completamente diferente que mal consegue reconhecer.

Tracy ChoiO que pretende dizer com este filme?
O título em inglês agora é “Sisterhood” e é uma história de amor entre duas raparigas mas também uma reflexão sobre as mudanças ocorridas em Macau. Como sinto a cidade hoje e como a sentia antes. Acho que antes Macau era mais romântica, as pessoas estavam mais juntas. Na realidade, o filme não fala de casinos mas a sua existência tornou a cidade mais frenética, as pessoas distanciaram-se mais. Espero que o filme consiga mostrar isso.

Acha que é um caminho sem regresso?
Acho que sim. Mas, tal como o final do filme, apesar de Macau ter mudado a personagem acaba por ficar porque é a terra dela, o que é um sentimento meu também pois em Macau sinto-me em casa.

O que a motiva a fazer filmes?
Tenho um monte de sentimentos que pretendo expressar mas ou não sou muito faladora ou de fácil aproximação às pessoas. Mas através dos filmes, ou dos documentários, consigo comunicar de uma forma mais fácil.

Tem um tema principal?
Mulheres (risos).

Porquê?
Mulheres e questões relacionadas com género. Acho mesmo que o meu maior interesse são as mulheres. O ano passado também fiz um documentário sobre três autoras de Macau que têm uns 60 anos. Os meus tópicos são mulheres, género…

O que se passa com o género?
Tenho um documentário sobre lésbicas em Macau. É uma história sobre mim e a minha amiga e as famílias. Como elas reagem, especialmente as mães, ao facto das filhas serem homossexuais. E, de uma forma geral, também me interessa saber a reacção dos pais a este assunto.

Acha que Macau é uma cidade que aceita bem a homossexualidade?
Macau é uma cidade muito interessante. As pessoas não objectam muito em relação ao assunto mas também não falam disso. Porque quando queremos levantar questões relacionadas com os direitos das pessoas gay ninguém se mostra muito interessado em debater.

Acha que é por uma questão de vergonha?
Não acho que seja isso. É um bocado como algumas questões políticas. As pessoas de Macau normalmente não gostam de falar do assunto. Talvez seja o mesmo com a homossexualidade.

Talvez porque toda a gente conhece toda gente?…

Isso! Acho que é mesmo por aí. Alguns amigos meus dizem-me que não se assumem por essa razão. Uma vez que um amigo sabe, toda a gente sabe. Por isso as pessoas retraem-se.

tracy choiCom vê o panorama das indústrias culturais, especialmente no que respeita ao cinema ?
É um bocado difícil para Macau construir uma indústria porque não temos audiência que chegue, mas talvez possa apostar mais em co-produções. Não apenas com Hong Kong mas também com a China, a Europa… porque Macau é muito diverso culturalmente, talvez seja esse o caminho.

Que papel o governo deveria assumir no apoio aos cineastas locais?
Não apenas disponibilizar um fundo mas tentar estimular ligação com produtores. Uma série de amigos meus têm boas histórias, projectos, mas não conseguem encontrar produtores nem fundos de co-produção e isso limita. Claro que podemos fazer filmes independentes, mas quando as ideias requerem mais meios, ou pretendemos tentar algo novo, isso não é possível. Ligar os nossos cineastas a outros países, produtores e fundos seria o ideal.

Acerca deste seu filme, que pode dizer em relação ao elenco? A escolha final foi sua ou nem por isso?
Tive escolha mas também porque é uma produtora comercial não podia usar apenas actores desconhecidos. A Gigi Leung, por exemplo, surge pois é reconhecida em Hong Kong e foi sugerida pela produtora. O que também reconheço ter sido bom para mim.

Como realizadora pela primeira vez de uma longa metragem, como se sentiu a trabalhar com uma estrela como Gigi?
Ela é muito simpática. Além disso não trabalhava há algum tempo porque foi mãe recentemente e este filme marca o seu regresso. Estava muito bem preparada e disponível para o papel e foi mais fácil lidar com ela do que pensava. Claro que é uma estrela e, comparada com os outros actores desconhecidos, precisa de mais apoio da produção. Mas, no fundo, é muito fixe.

Até agora, qual foi a melhor parte neste processo de construção do filme?
A possibilidade de trabalhar nesta escala. Como estava a habituada a fazer filmes praticamente sozinha onde tinha de fazer quase tudo, trabalhar assim é uma grande diferença. Além disso, dispor de uma equipa profissional com designer de produção, produtores, etc. permitiu-me concentrar mais em dirigir os actores e no diálogo com a directora de fotografia. Deu-me mais tempo, mais possibilidades de me concentrar, facilitou-me a vida.

Em que fase está o filme agora?
Estamos a montar. Aliás, quem está a montar é a Teng Teng (Harriet Wong). Esperamos ter a primeira montagem no final de Abril. Depois temos de decidir onde vai ser feita o resto da pós-produção. A correcção de cor e o som. Se aqui, se em Taiwan ou em Hong Kong.

E quando espera ter tudo pronto?
Lá para Setembro ou Outubro.

Se tivesse de aconselhar as pessoas a verem este seu filme que diria?
Traz um ponto de vista diferente sobre Macau porque somos locais, tanto eu como a Directora de Fotografia (Simmy Cheong). Crescemos ambas aqui, por isso conseguimos aperceber-nos bem das mudanças e do dia a dia da vida em Macau.

Acha que existe algo da influência portuguesa no seu conceito, na abordagem ao filme ou nem se nota?
Existe um pouco porque um dos personagens é macaense e surge na parte de 1999. Mas é uma cena muito curta. Para além disso, o próprio estilo de vida penso que vem daí. A forma mais relaxada de viver. Essa óptima forma de viver…

Um dia, um homem chinês disse-me que a forma de vida dos portugueses é vista como “gaa fe man faa” (咖啡文化), a cultura do café. No sentido de que arranjamos sempre um pretexto para interromper o trabalho e ir tomar um café…
(risos) Pode ser. Na realidade, repare como recentemente a geração mais nova está a voltar a esse padrão. Por isso têm aberto tantos cafés. É uma forma de resistência à velocidade de Hong Kong porque queremos ter uma vida, não apenas trabalho e dinheiro. Mas por causa dos casinos e todo esse mundo à volta começa a ser difícil relaxar em Macau.

31 Mar 2016

Marco Mueller, director do Festival Internacional de Cinema de Macau

Frequenta a China desde os 16 anos e já dirigiu os Festivais de Veneza e de Roma, criou o de Pesaro e colaborou com o Rota da Seda e o de Pequim. Já tentou organizar festivais aqui sem nunca ter sido possível. Mais de 20 depois este chega finalmente. Um festival que promete ter “apostas imprevisíveis” e que Marco Mueller espera ser uma missão histórica para Macau

[dropcap style=’circle’]É[/dropcap]um poliglota. Aprendeu em pequeno, mas como?
(risos) Fui criado em Roma, a minha mãe era brasileira e parte da família grega. Saíram com o início do fundamentalismo muçulmano. A família do meu pai tem origens na Lorena e quando a região passou para a Prússia mudaram-se para a Suíça por ser multicultural. Daí falar Francês, Alemão, Português e Italiano. No primeiro ano do liceu decidi acabar com as línguas da casa e fui estudar Chinês.

Por que razão alguém pretende estudar Chinês nessa época?
Nunca fui marxista leninista, mas fui marxista “desleninista”. Era o tempo dos movimentos estudantis e das filosofias orientais. Lia Mao Tse Tung e os sutras budistas em Chinês, no original.

Mao Tse Tung aparecia como um herói para um jovem como o Marco?

Claro. Mas também os bodhisattvas e os mestres do desenho chinês.

E veio para a China com 16 anos.
Como estudante de Chinês, mais tarde ou mais cedo isso iria acontecer. Ainda por cima a Itália foi dos primeiros países ocidentais a estabelecer relações diplomáticas com a China. Fui para Pequim no primeiro grupo de estudantes bolseiros.

Com a Revolução Cultural em curso, como foi o impacto?
Não havia nada. Os estrangeiros não podiam entrar nas bibliotecas e 90% dos livros eram proibidos para nós. Então comecei a ver dois filmes por dia.

Dos que podia arranjar…
Sim, claro. Policiais romenos, melodramas da Coreia do Norte, grandes espectáculos históricos albaneses… Não tinha alternativa.

Ficou desiludido?
Sim. Tinha-me formado em Antropologia, especialidade em Musicologia, e pensava que ia fazer a pós-graduação no Instituto de Ciências Sociais. Era um ninho de demónios feudais, disseram-me, e deram-me a possibilidade de estudar literatura de massas na Manchúria. E fui. Só havia um professor, mas era óptimo. Ensinava estética tradicional, uma disciplina perigosa, de vanguarda, e foi que ele quem me explicou como a estética da poesia tradicional pode entrar no cinema. Em Janeiro de 77 comecei a poder ver cinema de género dos anos 50 e 60. Incrível. Foi como descobrir um continente submerso e decidi continuar.

Como aconteceu isso?

Quando terminei o doutoramento houve um princípio de abertura no regime e distribuíram mais de cem filmes.

Casou-se também na China.
É verdade, em Julho de 76. Sui generis. Frente a um comité revolucionário. Os estrangeiros apenas podiam casar-se no Comité do Bairro de Chaoyang. Corria a campanha contra a liberalização burguesa, por isso não havia táxis, apenas autocarro, e a cerimónia foi só a assinatura. Nem fotos eram autorizadas e festa nem pensar. Fizemos uma clandestina, claro. Comprámos umas coisas em segredo, como uma garrafa de champanhe soviético.

TA02Quando saiu da China?
Em 77. Mas voltei em 78 e desde então tenho voltado regularmente. O programa universitário obrigava-me a escolher outro país mas recusei, saí da universidade e organizei o meu primeiro festival de Cinema, o de Pesaro, um dos grandes festivais do cinema novo e a primeira vez que um lote de filmes chineses foi mostrado na Europa. Como a selecção era demasiado diplomática decidi desenvolver uma retrospectiva do cinema chinês. Pequim não enviava cópias, então fui à procura. Em Havana descobri uma sala, na Chinatown, chamada Aguila de Ouro, onde tinham uns 30 filmes dos anos 30. Depois, no teatro chinês de São Francisco, o World Cinema Theatre que aparece no final do filme do Orson Wells “A Dama de Xangai”, encontrei mais uma enorme colecção.

Que descobriu nesse espólio?
Uma mescla entre o cinema social e Hollywood. Sempre foi assim. O cinema de Xangai nos anos 30 era isso: a Hollywood do Oriente.

Acha que está tentar voltar a ser?
Sim. Estão a tentar mas o meu primeiro amigo entre os cineastas chineses, Xie Jin, falecido há quatro anos (suspira), e uma pessoa com uma cultura completa de cinema, tinha um sonho: juntar o cinema soviético com o de Hollywood.

Porquê?
Porque adorava o cinema de género e entendia que o cinema devia ser popular, entretenimento antes de ser outra coisa qualquer.

É a sua visão também?

Sim, gosto da ideia de que não devemos dar muitos passos à frente do público. Devemos deixá-lo acompanhar. Andar um ou dois passos à frente, tudo bem. Muito mais não.

Esteve como consultor do Beijing International Film Festival (BJIFF) mas deixou. O que correu mal?
O sistema das quotas. Era muito difícil obter qualquer tipo de resposta. Não entendo a razão e isso não funciona. Mas gostei da experiência e foi, com certeza, uma oportunidade de perceber os hábitos do público chinês.

Anos antes do BJIFF dizia que este se podia transformar num hub comercial. Não é possível…
Não é. A grande diferença entre Pequim, Xangai, o Rota da Seda e o Festival de Macau é aqui podermos ter uma relação normal com os distribuidores. Se ele quiser mesmo o filme vai discutir por uma quota. Em Pequim era muito difícil porque a decisão não era nossa, era política.

Também fala de Macau como plataforma para o mercado chinês. Todavia, o sistema de quotas ainda lá está. Que muda, como vai funcionar essa plataforma?
Os distribuidores não tinham ligação com os eventos e com a distribuição comercial mundial. Então a excitação em relação aos nossos planos aqui é podermos convidar os grandes distribuidores de filmes chineses da China e da região. É o local ideal para organizar uma mostra menos previsível do que aquilo a que estão habituados.

Para quem viu a China nesses idos anos 70, nomeadamente as restrições da Revolução Cultural, e a vê agora acha que existe alguma recuperação desse passado neste momento?
O ano passado em Pequim não foi muito difícil. Existiam três níveis de censura e conseguimos aprovar 90% dos filmes seleccionados. Não senti grandes dificuldades, mas claro que estou a par das notícias.

Como veio parar a Macau?
A primeira vez em 94, era Luís Mergulhão então presidente do ICA (Instituto do Cinema e do Audiovisual). Convidou o Paulo Branco e depois a mim por conhecer o meu trabalho sobre o cinema português. Viemos a Macau com a ideia de inventar um festival de cinema. Nunca aconteceu pois na altura ou havia aeroporto ou havia festival. Voltei com o Peter Lam, estava já no Festival de Veneza. Ele queria uma relação entre o Festival e o Venetian mas, para mim, isso era diplomaticamente muito difícil. A terceira vez foi quando Pansy Ho me convidou para organizar um evento de cinema na Torre de Macau. Depois a ideia não continuou.

Qual a visão para este festival?
Um ponto focal. A política da China precisa de uma diferenciação com pólos distintos. Macau tem uma herança cultural que se coaduna com os objectivos. Um exemplo: os suíços-italianos. Vejo-os como mediadores entre culturas que não se relacionavam. As pessoas de Macau são isso também: mediadores.

Acha que este festival pode vir a ser mais importante do que o de HK, Pequim ou Xangai?
Não quero saber disso. Estou mais preocupado em colaborar. O Golden Horse (Taiwan), por exemplo, está a fazer um excelente trabalho com o workshop de projectos e também queremos fazer um semelhante. Por isso propusemos que o nosso seja um sumário de todos os workshops feitos na área. Decididamente, quero alguém do festival de Hong Kong no comité de selecção. Vamos ter programações diferentes e pretendemos colaborar com todos estes festivais.

Que tipo de programação podemos esperar para Macau?
Cinema de género, filmes populares, mas originais. Bastante vanguardistas, cutting edge.

Que legado o festival deixará para a cidade?
Tentar juntar os diferentes grupos de espectadores da cidade com uma oferta menos previsível. Oferecer filmes que não aparecem no circuito comercial da região. Por isso vamos ter uma retrospectiva onde dez dos melhores realizadores asiáticos de género vão seleccionar um filme que não seja nem americano nem da Ásia Oriental. Há dias falava com dirigentes do Centro Nacional do Filme Francês e diziam-me que nos anos 80 e 90 existiam filmes franceses em Hong Kong e mesmo na China, mas nos últimos anos não vendem nem um. Temos de mudar isso.

Diversidade cultural?
Sim, mas no universo do cinema popular. Vai ser uma oportunidade única nesta cidade tão especial, tão vocacionada para servir como plataforma de trocas e contactos em todas as direcções. Um festival que funciona tem de ter como lema “em frente a todo o gás mas em todas as direcções”. Se quisermos sentir profundamente o que se passa à nossa volta temos de agir assim.

Vai ser a tempo inteiro?
Vou dedicar a maior parte do meu tempo ao festival, sim, mas há algo que nunca deixarei de fazer: dar aulas. É a única forma dialogar com os mais jovens, de perceber o que eles vêem, se vão ao cinema ou não, ou quando decidem ir. O mês passado levei a minha turma de 75 à fronteira entre a Itália e a Suíça onde temos a melhor sala do país para vermos o último do Tarantino (“Hateful Eight”), uma produção em 70mm. Aí eles perceberam a diferença que é ir ao cinema. Perguntava-lhes quantos pagavam 12 francos para irem ao cinema. E daquele grupo praticamente nenhum ia. Depois de verem o “Hateful Eight” no grande ecrã perceberam a diferença para os ecrãs pequenos.

Não existe uma indústria em Macau. Para os que aqui fazem filmes que tipo de relação devem esperar com este festival?
Muito próxima. Quando falo nos workshops que vão sumarizar tudo que foi feito durante o ano na região também temos de abordar a experiência local. A Tracy (Choi), por exemplo, está a filmar, não sei quem acabará primeiro se ela, se a Emily [Chan] ou o Ivo [Ferreira]. Mas facto de existir mais do que um filme, alguns já filmados, e vários grandes documentários tranquiliza-me porque senão seria um suicídio tentar organizar uma operação num lugar que fosse desprovido de cineastas, de cinema. O filme da Tracy, por exemplo, junta profissionais de primeira categoria, de Taiwan, Hong Kong… Ela própria estudou em ambos os lados mas não deixa de ser uma história de Macau. Por isso, a ideia que de todos estes talentos se vão religar em Macau é um sinal muito positivo.

A razão pela qual os cineastas locais devem ficar satisfeitos com este festival é essa possibilidade de contacto?

Sem dúvida. O facto dos Asian Film Awards terem vindo a ser apresentados em Macau é mais um sinal para a indústria que Macau não serve apenas para jogar. Na condição, claro, que se acredite na possibilidade de fazer remixes num lugar como este.

Que terá de acontecer no final do festival para dizer que correu bem?
Três coisas: os cinemas estiveram cheios, caso contrário não faz sentido e é uma das razões pelas quais quero assumir este desafio. A noção que vários filmes entraram no caminho certo para o reconhecimento num mercado mais vasto e sermos capazes de aumentar o interesse em Macau de forma a que cumpra o seu papel histórico de atingir mercados como os do Japão, Coreia, Índia e Sudoeste Asiático.

Daqui a cinco ou seis anos quando as pessoas se referirem ao festival de Macau que gostaria que dissessem?
Hoje todos dizem que Cannes é o festival a não perder na Europa. O mesmo acontece com Toronto, nas Américas. Macau pode vir a ser o lugar onde se vem para resumir o ano. Um festival em Dezembro não significa apenas que acontece após as grandes convenções do sector na Ásia mas também que podemos anunciar coisas para o novo ano.

Que significará para um cineasta receber um prémio aqui?
Que o filme teve um reconhecimento mais vasto em termos de mercado e de audiência. Mesmo os prémios de Cannes às vezes são escondidos pelos distribuidores porque têm medo que passe a ideia de ser um filme difícil, mais um arthouse… É por isso que estamos a construir um escritório da indústria aqui.

Como tentou fazer em Roma?

Sim, é uma coincidência mas fiquei contente em saber que a Lionsgate, os produtores dos “The Hunger Games”, está a preparar algo para Macau nos próximos dois anos. Mas, disseram-me eles, a melhor experiência num festival foi comigo, em Roma, quando lhes arranjámos sete mil fãs para a estreia do “Catching Fire”.

Vai voltar a fazer um filme?
Não me parece.

Nem como actor?
Isso pode acontecer amanhã (risos). Como figurante, talvez (mais risos). Voltar a produzir não. Tiro muito mais gozo com os potenciais efeitos multiplicadores que um festival pode criar do que tiraria a fazer filmes.

29 Mar 2016

Luís Patraquim, escritor : “A sede de conhecimento em Moçambique é grande”

Luís Patraquim é de conversa fácil, mas não de conversa mole. Preocupado com o estado de insegurança no país, deseja paz, mais compreensão para a importância da cultura e traz-nos novas de um povo com uma enorme ânsia de aprender. O convidado do Rota das Letras rejeita paternalismos, desconfia dos tolerantes e não percebe por que os cidadãos ainda não circulam livremente pela CPLP

[dropcap]O[/dropcap] que o motiva a estar vivo?
Aconteceu-me estar vivo, portanto tenho de fazer o melhor possível. O Reinaldo Ferreira (poeta moçambicano) tem um verso que dizia “ai de mim que não pedi para nascer e sou forçado a viver”, mas ele era pessimista. Não chego a esse ponto, sei que isto é tudo um absurdo, mas também tem coisas com piada pelo meio. O projecto dele era “Um voo cego a nada”. Um belíssimo poeta que morreu demasiado novo, filho do famoso Repórter X, da I República.

E na sua obra? O que o motiva a investigar, a escrever, a pensar?
Julgo ser a curiosidade das coisas. A necessidade interior de dizer coisas que já foram ditas. Mas cada um diz à sua maneira. Porque não sou pretensioso, direi que existe algo de maravilhamento no mundo, apesar das tragédias pessoais e colectivas que sabemos. Há esse maravilhamento a que nos compete ficar atentos.

Como por exemplo…
Uma criança que corre a rir pela rua fora.

Dizer o que já foi dito. Vivemos num incessante círculo vicioso?
Tem dias (risos). Mas passa por aí. Daí o mito do labirinto. A descoberta, aquele desafio do desconhecido para depois resgatar algo que, no fundo, é algo dentro de nós, que não conhecemos, para depois produzir um sentido qualquer. Os sentidos inventamos nós a cada momento, não é? A linguagem e a música são os primeiros dessa invenção de sentidos que fomos inventando ao longo da histórias em várias culturas e sociedades.

Será possível formular uma pergunta que nunca lhe tenha sido feita? Algo que você desejasse falar e nunca tenha tido oportunidade?
Por exemplo, com quantas gajas é que andou? (gargalhadas) Mas, como sou cavalheiro, não digo.

Os brasileiros têm a expressão “abaixo do equador não existe pecado”. Em Moçambique também é válida?
Isso são aquelas frases meio folclóricas mas, num certo sentido, é verdade. O pecado é da ordem do religioso. A ética é da ordem da filosofia. Eu não me revejo em nada que tenha a ver com pecado, mas sim em tudo o que tenha a ver com ética.

Como é a vida em Moçambique?
Não é fácil. Tem ilhas de tranquilidade de um viver ainda tradicional e antigo e a emergência deste conflito que está no começo mas que pode vir a ser perigoso. Tem cidades, como Maputo, que começam a ser uma grande confusão. Alta velocidade, interesses, o dinheiro, o dinheiro, o dinheiro… Mas tem outros espaços absolutamente aprazíveis onde se pode viver sem stress como, por exemplo, a cidade de Inhambane.

Em Maputo descobrem-se muitos sinais de Portugal, da culinária a símbolos como o dos clubes… Existe uma nostalgia?
Já passaram 40 anos. Os moçambicanos já fizeram muitas coisas, boas e más. Há isso sim, uma espécie de reconciliação com aquele pai que foi preciso matar, no sentido freudiano, e agora há uma percepção de que o mundo é vasto, algumas heranças ficam e as sociedades aproveitam o que acham melhor de cada cultura seja ao nível que for. Não será bem nostalgia. É talvez uma forma de trazer à memória afectiva ou “desafectiva”, se calhar mais “desafectiva”, uma presença que esteve lá de forma colonial mas também com muitas outras facetas, sem o conflito e essa necessidade de afirmação que existia antes de voltar a conviver com uma série de heranças.

Há sempre uma ideia em Portugal que fomos sempre tolerantes, amigos dos povos nativos…
Ah… isso é tudo uma mitologia desgraçada.

Agora vemos a presidência portuguesa da CPLP contestada por vários países, Moçambique incluído…
É os resultado de anti-colonialismos primários. Coisa que para o Brasil então não faz sentido nenhum. Angola e Moçambique ainda vá, porque a descolonização [foi recente]. Seria absurdo, mas podíamos tentar perceber. Para mim é uma questão política de hegemonia. Se calhar o Brasil quer tomar o comando. Se bem que o Brasil se esteja a marimbar para o tal mundo da lusofonia – eu não gosto deste termo mas ainda não se descobriu outro -, quer ter uma influência maior ou então não dá para perceber. Mas a própria CPLP foi mal construída, a partir do vértice da pirâmide e está a custar muito a descer à base.

Melhor explicado…
Os chefes de estado resolveram criar aquilo com uma noção um bocado corporativa. Conferências Ministeriais, reuniões de Associações de Advogados, de empresários, de associações disto e daquilo, mas nada chega cá abaixo, ao povão. Na prática dos povos o que interessa é o dia a dia, o chão das coisas. Uma política fácil de vistos entre estes países, por exemplo.

Faria sentido uma comunidade de livre trânsito?

Fazia mas Portugal está amarrado a Schengen. Cabo Verde propôs há muito, mas nenhum dos outros países aceitou: era uma espécie de cidadania lusófona. Uma forma diplomática, consular, que permitisse às pessoas circularem. Não apenas as corporações mas também o Zé dos Anzóis, as famílias (o resultado destas ligações que ficaram) poderem viajar sem estes entraves todos.

Há dias, Luiz Ruffato dizia ao HM que “o português de Portugal vai acabar por ser um dialecto do Brasileiro”.
Tenho de discordar. Em termos linguísticos não há dialectos. São línguas. Falava-se em dialecto quando o poder colonial se referia às línguas dos países africanos. Moçambique tem 11 grupos linguísticos, todos de raiz banta, Angola tem outros tantos. Falar em dialectos é uma espécie de menorização dos estatutos linguísticos. Hoje a linguística não vê a questão assim. Não se trata de dialecto absolutamente nenhum. O que vai acontecer são variantes da Língua Portuguesa, aliás já classificadas assim. A variante europeia não é única, porque naquele território tão pequeno, o léxico, alguma sintaxe e até a pronúncia sofrem tantas mutações… vai haver um português de Moçambique, os linguistas já fazem estudos nesse sentido, em Angola idem… O que o Luiz, se calhar, queria dizer é que pela dimensão geográfica e demográfica, o Brasil é o gigante que é.

Neste contexto, que sentido faz um acordo ortográfico?
Não faz muito. O problema da língua não está aí mas na sintaxe. O léxico não é problema porque as línguas são organismos vivos que se inventam a si próprios, depois a literatura gera uma espécie de padrão, a gramática analisa e cria um conjunto de regras que, logo a seguir, podem ser mudadas e são. Não há um proprietário da língua e qualquer Estado que julgue poder legislar a esse nível está absolutamente equivocado.

O que falta a Moçambique para que as pessoas se entendam?
As elites não se esquecerem do melhor do discurso de libertação – salvo algumas arrogâncias, a matriz não começou bem – que sejam menos arrogantes e menos ambiciosas. Estou a dizer o óbvio, mas pronto… que coloquem o interesse nacional acima dos interesses partidários.

O interesse nacional é um conceito vago…
É definido pelas classes hegemónicas que chegam ao poder, é assim em todo o lado. No caso moçambicano, é o de que se não existir juízo a própria unidade do território pode estar em causa. O país precisa de uma política que tenha em conta a distribuição da riqueza, capaz de criar condições para mais riqueza a partir da agricultura e distribuí-la pela população. Isso não está a acontecer. Vive-se de galinhas dos ovos de ouro – daí a emergência do novo conflito-, do gás natural, um ouro que está ali a luzir e a perturbar as cabeças de alguns.

Há meia dúzia de anos vi em Maputo a capa de um jornal com a fotografia de uma figura pública e a manchete “O regresso do grande pateta”, arrojado em muita democracias. Tendo em conta o momento actual, como está a liberdade de imprensa em Moçambique?
Nesse aspecto existe, de facto. De uma forma geral, a liberdade de imprensa mantém-se mas tem dias. Às vezes não é bem utilizada mas por uma questão puramente técnica. Há jornais e jornais, só por isso. A liberdade de imprensa é um dos pilares do jogo democrático, é saudável pela capacidade crítica, de criação de massa crítica, pela formação de opinião e a necessária difusão de informação que todas as sociedades precisam.

Em Macau a discussão da independência do poder judicial está na ordem do dia. Qual a situação em Moçambique?
Isso é da definição básica da coisa pública. (risos) Teoricamente existe. Praticada por um ou outro juiz mais consciencioso, também existe. Mas como sistema não existe, infelizmente, porque a teia dos interesses, dos favores, das pequenas ou grandes corrupções é de tal ordem que, de uma maneira ou de outra, as coisas estão instrumentalizadas. Às vezes aparece uma pérola caída não sei de onde como o caso do professor Castelo Branco. A consciência, a tal ética, não é?

Aconteceu-me entre Inhambane e Maputo: numa venda de estrada um grupo de crianças pedia-me livros. Existe outra utilidade para os livros ou aquelas crianças tinham mesmo necessidades de leitura?

Há uma grande curiosidade. As pessoas sacrificam-se muito para estudarem. Há uma sede de conhecimento muito grande, isso é verdade. O sistema de ensino é que tem muitas falhas. E, nessa zona, a necessidade ainda é maior porque a escassez de oferta é grande.

Que se poderia fazer para resolver essa necessidade?

Precisamos de uma rede de bibliotecas, de meios para distribuir livros pelo país. Mas a situação volta a estar difícil neste momento.

A tensão é assim tão grande?

Começamos a viver uma situação de insegurança. Já há colunas militares a acompanhar os carros pela estrada número um… Já começa a ser parecido com há uns anos atrás.

E a sociedade civil moçambicana ainda não tem força para se opor a esse “estado de sítio”?
Manifesta-se muito, faz muitas coisas, comunicados mas, no limite dos limites, não tem ainda o poder para se opor com veemência ao que está a acontecer.

Como está vida cultural em Moçambique?
Está viva. O teatro, até o cinema, mais caro, produzem. Na literatura edita-se muito, com maior ou menor qualidade. E a cultura é um sector olhado com prestígio, o que não é mau. Não existem ainda é políticas governamentais que entendam que a cultura (para além de fortalecer a moçambicanidade plural, a unidades e os chavões que se quiserem) também pode acrescentar valor ao PIB.

Hoje fala-se é de diplomacia económica.
E só se fala em diplomacia económica. A cultura é sempre vista como algo menor. O poder político tem de perceber que a cultura não são apenas umas festas para consolidar a implantação do partido nesta ou naquela região, como é o caso do famoso Festival Nacional de Canto e Dança, ou do Cultural Nacional. É preciso criar dinâmicas: uma verdadeira associação de autores, subsídios para o teatro e para o cinema, que não há. Formas de investimento para atrair públicos, gerar massa crítica e educar o gosto. Edições subsidiadas pelo governo, dos grandes mestres como se está a fazer em Itália. Mas em Moçambique, de uma forma geral, só se pensa no luxo, no papel couché e coisas dessas.

Nestes últimos anos tem-se assistido à entrada de muitas empresas chinesas em Moçambique. Como tem sido a relação com os locais?
Há um problema de comunicação. Uma coisa são os chineses e macaenses que estão lá há mais de cem anos, a outra são estas empresas, na maioria estatais, que chegam agora. Contratam os locais para lugares menores, querem tudo na velocidade chinesa e o moçambicano não é assim. Não quer dizer que seja preguiçoso, mas tem outro ritmo. E se pagassem decentemente, também ajudaria.

E de um ponto de vista mais geral? Há benefícios claros para a população?
Hoje começa é a questionar-se o modelo de cooperação chinesa com África. Há benefícios claros porque se abriu a estrada ‘x’ ou ‘y’ mas depois não há interacção. A empresa chega, monta o estaleiro, propicia um trabalho sazonal não muito bem pago, não há grandes convívios, a obra acaba, vão-se embora. Um ou outro escapa e fica mas são casos pontuais. É um esquema de cooperação um bocado disfuncional.

Fala-se muito da responsabilidade do mapa cor-rosa por parte dos problemas de África. Que ideia tem sobre isso?
É o ultimo argumento de um novo olhar europeísta sobre África, que seria o mais perigoso. Querer isso para África agora seria a desgraça total e completa. Aquando da conferência de criação da Organização da Unidade Africana, em 1963, foi acordado deixar tudo como está. Quando há conflitos graves, há estudos sobre isso, as causas, normalmente, não são étnicas mas derivadas da injustiça na distribuição da riqueza, da falta de criação de oportunidades, de poderes políticos nepotistas.

Tenho a ideia que, para si, a palavra ‘tolerância’ não tem a conotação de bondade que normalmente lhe atribuímos. É mesmo assim?
Lá para trás foi boa quando o John Locke escreveu o “Ensaio sobre a Tolerância”, quando existiam as guerras religiosas na Europa. Fazia todo o sentido e continua a fazer um certo sentido, claro. Mas uma pessoa que se diz tolerante é um bocado arrogante. Que categoria tenho eu para ser tolerante ou deixar de ser tolerante? Ou tenho opiniões ou não tenho. A minha posição deve ser a do discurso, da discussão com o outro, para ver se chegamos a acordo, ou não, mas cada um com as suas ideias ou cultura. Não é preciso guerra por isso.

Um dia foi exilado…

(interrompendo) Exilado é uma palavra muito fina para mim porque fui um refractário. Exilados são os políticos. (risos)

Como aconteceu?
Não queria participar na Guerra Colonial e queria ir para a luta de libertação. É tão simples como isso.

Porquê a Suécia?
Por contactos. Porque havia lá uma base dos três movimentos de libertação: Frelimo, PAIGC e MPLA com base na CONCP (Conferência da Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas) criada em Rabat logo a seguir ao início da guerra em Angola.

O que gostava que um dia fosse o seu legado? A recordação do seu trabalho como jornalista, escritor, activista?
Não gostava de nada porque nessa altura já cá não estou. (risos). Mas sim, gostava que recordassem um trabalho sério e rigoroso.

Que trabalho será esse?
Algumas propostas para o maravilhamento do mundo.

Um desejo para Moçambique
Paz.

23 Mar 2016

Marta Bucho, Coordenadora do Centro Feminino da ARTM: “Mulheres escondem até ao limite”

Um trabalho que acontece 24 horas sem que notemos. Um reaprender a ser. Marta Bucho fala de um novo método, mais aberto e ocidental, para tratar de adictos. Há ainda muito trabalho no campo feminino, sendo a abertura e aceitação da população uma delas. Uma dos objectivos é ainda trazer os alcoólicos e narcóticos anónimos para Macau


Falamos muito no Centro de Tratamentos Masculino da Associação de Reabilitação de Toxicodependentes de Macau e pouco do Feminino. Desde quando é que existe este espaço?

Abrimos em 2010 e funciona um bocadinho à semelhança do centro para os homens. Pensámos que seria muito importante ter uma parte feminina. Queremos funcionar como uma comunidade terapêutica para mulheres com problemas de toxicodependência e alcoolismo também. Apesar de já termos registados casos de jogadoras, mulheres viciadas em jogo.

Mas esta comunidade é mais pequena do que a masculina?

Sim, são menos mulheres do que homens. Em termos de números, em cada cinco homens que entram no Centro Masculino, entra uma mulher neste Centro. O nosso número máximo de vagas é de oito mulheres, sendo que agora estamos com três mulheres e um bebé. Estamos também a acompanhar duas mulheres, uma que está presa, fora das instalações do Centro.

Também recebem as crianças?
Sim, filhos das nossas pacientes. Aceitamos senhoras com crianças, não é o primeiro caso.

Fala-nos um pouco do processo. Como é estas mulheres chegam até ao Centro?

A maior parte delas entrava pela programa da troca de seringas, agora isto já não acontece com tanta frequência porque as consumidoras já não são tanto de heroína, é mais o ice. Também podem entrar através de algum serviço da comunidade, seja o hospital, serviços que trabalham com famílias, associações, através do tribunal e também por famílias que sabem do nosso serviço e nos pedem ajuda.

Depois de entrar, como se processa? Ainda estão a consumir?

Não, a não ser metadona. Algumas, só. O nosso objectivo é que haja uma processo de re-socialização, ou seja, aprender um conjunto de valores, regras e até de rotinas que lá fora não conseguem ter com os consumos. Aqui, as mulheres quando entram já não consomem. A não ser, claro, como disse, a metadona.

Os membros da direcção da ARTM chegaram há pouco tempo de uma formação na Austrália. Novos modelos de tratamento?
Foi uma formação muito, muito boa. A nossa ideia é utilizar a metodologia que eles usam e aplicá-la aqui em Macau. Se é possível ou não? Acho que sim. Funcionará como uma comunidade terapêutica.

A ser aplicada já no novo Centro em Ká Hó? Quando é que abre?

Sim, sim. Em Julho. E aí já queremos ter o nosso staff todo preparado e formado com esta nova metodologia.

É difícil encontrar pessoas para trabalhar nesta área? Quantas pessoas tem o Centro?

Sim, é. É difícil arranjar pessoas que gostem desta área e que tenham alguma capacidade de perceber. É que não é uma área tão comum como se possa imaginar. Quando falamos de uma comunidade terapêutica, estamos a falar de uma sociedade pequena, em que existem diferentes responsabilidades, diferentes hierarquias, mas tudo funciona com os pacientes.

Voltemos então ao método. O que se pretende?
A nossa ideia é criar o novo Centro numa grande comunidade terapêutica. Porque aqui é mais difícil, neste Centro. A começar pelo número de pessoas, que são poucas. E para criar uma comunidade, em princípio deverá existir um maior número. O nosso objectivo passa também por fazer mais promoção em termos de divulgação do nosso serviço, no tribunal, nos hospitais, na comunidade, para que haja mais mulheres e homens, também, para tratamento.

O paciente trata-se a si próprio?
Os pacientes tratam-se a eles próprios, o papel deles é ajudarem os outros para se ajudarem a eles próprios. E tudo funciona de uma maneira muito suave, muito gira. Este método tem efectivamente resultados positivos e as pessoas acabam por mudar os seus comportamentos. Através do exemplo de alguém mais velho, conseguem perceber o que devem ou não devem fazer. Por exemplo, a honestidade. Tentamos muito que as nossas mulheres aqui do Centro sejam honestas e digam sempre a verdade. Na comunidade o facto de observarem alguém que “é como eles” a, por exemplo, ser chamado à atenção mas a aceitar e a mudar o seu comportamento, assumem o ensinamento.

Por exemplo?
Por exemplo, na Austrália, existem duas comunidades – uma para os homens e outra para as mulheres. Entre si, eles podem falar, mas não criam relações. Não pode existir intimidade, seja ela sexual ou não. Se alguém o faz de forma imediata é conversado isso em grupo. A pessoa tal envolveu-se ou falou de tal forma para a outra pessoa, por exemplo. Há uma repreensão. E as pessoas compreendem porque percebem que estão a focar a reabilitação para outro ponto. Vejamos, as mulheres, pelos exemplos que temos, é muito fácil envolverem-se com os homens, porque procuram sentirem-se bonitas, [vestirem] uma roupa bonita. Isto, neste tratamento, não é bom. O que se pretende é que as mulheres consigam que, na vida delas, lá fora, não precisem de ninguém, sejam independentes, que encontrem nelas uma confiança e auto-estima que vem da própria e não de fora. Nas sessões [na Austrália], eles discutiam os assuntos de uma maneira que os utentes percebem [e que os fazia] perceber que o facto de se focarem noutras coisas está a prejudicar o seu processo de recuperação.

Acha que é um método que será bem aceite?
É difícil. É preciso fazer com que o nosso staff perceba a dinâmica do que é uma comunidade terapêutica, é difícil passar para quem já passou por um processo de recuperação e não uma comunidade terapêutica. É difícil também fazer o staff perceber que esta dinâmica é muito específica e tem mesmo de funcionar com a estrutura que vamos criar porque se não é pior do que não se fazer nada.

Quando é que vão implementar este método?
Esperamos que em Junho, com a mudança para as novas instalações em Ká Hó… tem de estar já a funcionar. Mesmo nos homens. São precisas mudanças. Existirão vagas para 50 homens, 20 mulheres e mais dez para cuidados continuados, para pessoas com HIV.

Quantos trabalhadores estão neste Centro?
Para as mulheres somos nove, nos homens somos 14. É muita gente. É um serviço que trabalha 24 horas, à noite tem sempre de estar alguém. Somos duas assistentes sociais, depois quatro psicólogas e duas monitoras.

O número baixo de utentes que o Centro recebe não é representativo da realidade de Macau?
De todo. Não é, de todo. Sabemos que há muitos mais casos do que aqueles que nos aparecem, muitos mais. Mas não estamos a conseguir chegar a essas pessoas.

Porquê? Como é que se chega lá?
É difícil à comunidade. Mas neste caso, neste Centro das Mulheres, talvez porque elas têm um papel diferente na sociedade. Por exemplo, a família esconde muito mais os casos de mulheres do que se fosse um homem. A mulher também acaba por arrastar o seu tratamento, por exemplo com a questão dos filhos. Estão a seu cargo e elas não querem deixar os filhos para vir para tratamento. E nem sempre é possível aceitar crianças, até por causa das sessões ou reuniões de grupo, é difícil estarem crianças, aliás é impossível.

E a própria mulher? Acha que é mais difícil ela aceitar e perceber que tem um problema? Mais do que os homens?
Acaba por ser, sim. Porque quando as mulheres chegam aqui já estão num estado tão avançado de problemas de saúde, psicológicos, com doenças, que é mais difícil. As mulheres preferem esconder e arrastam. Chegamos a ter mulheres que ganham problemas mentais… suicídios. As mulheres escondem até ao limite. Até as famílias o fazem. E nesses casos, é transmitido ao Centro pelo hospital.

Tem esperança que essa tendência mude?

Acho que as pessoas têm de perceber primeiro o que é que é um centro de tratamento. As pessoas acham que isto é uma pequena prisão e não é. Isto é uma pequena sociedade, uma pequena família em que as pessoas reaprendem a viver. Não é de todo uma prisão. Não é.

Mas existem programas…
Sim, o nosso programa é de um ano. Ao final desse tempo tentamos que a pessoa consiga arranjar um trabalho. Normalmente ficam seis meses, porque é o tempo em que as mulheres já se sentem melhor, o corpo já se readaptou.

Ao sair, as dificuldades para as mulheres são evidentes?
Muito, muito mesmo. As mais velhas é impossível arranjarem um trabalho. As que conseguem é em cafés ou casinos, em trabalho temporários. Os homens tem mais facilidade nisso. Na comunidade é também mais aceite que os homens sejam ex-consumidores do que as mulheres. Há um fenómeno: os homens ex-consumidores arranjam uma mulher que nunca foi consumidora, a mulher consumidora vai sempre ao encontro de um homem que já foi consumidor.

Porquê?
Porque elas acham que não merecem mais do que aquilo. É muito raro as mulheres arranjarem companheiro que não tenham um passado de toxicodependência. As famílias também aceitam mais os homens do que as mulheres. O estigma é tão grande que acaba por ser uma barreira.

A mulher é prisioneira não só da droga?

Em termos de problema, quando é avaliado a questão dos consumos, percebemos que é só uma pequena parte de um historial que apresentam.

Vítimas?
Sempre. Grande parte delas com um historial de maus tratos na infância terrível, negligência grave.

Está relacionado com o consumo?
Acabar por estar, sim. Muitas delas foram crescendo com um trauma em que durante o seu percurso as drogas acabaram por ser bem aceites. As pessoas ficam anestesiadas e não sentem o que aconteceu. As feridas ficam adormecidas.

No tratamento elas partilham?
Depois de abandonarem as drogas, depois de deixarem a Metadona, sim, elas começam a aceitar. E é aí que partilham o que lhes aconteceu. E nós, claro, tentamos atribuir-lhes o mais apoio psicológico e psiquiátrico possível. Mas é o tempo e a aceitação do problema que irá resolver. Não conseguimos apagar a memória, mas vamos fazer com que a pessoa aceite o que aconteceu na vida dela, perceber que não é por culpa dela. Aceitar que isto é só uma parte da história delas e não um todo.

Depois do tratamento acompanham o paciente?

Tentamos e uma das mudanças que queremos é mesmo essa. Queremos trazer os alcoólicos e narcóticos anónimos para Macau. Porque em termos de pós-tratamento é uma das formas para continuar a acompanhar os pacientes. Não sabemos quando é que conseguimos isto, porque temos de articular com Hong Kong, porque não temos ninguém que fale Chinês. Esta filosofia é muito famosa e funciona. Queremos muito implementar isto aqui.

Por ser uma cultura diferente, o modelo será de difícil implementação?
Em termos culturais, às vezes as pessoas dizem “ah os chineses não partilham”, sendo difícil implementar este modelo que queremos por ser mais ocidental e aberto. O que acho é que é uma aprendizagem. As pessoas aprendem a partilhar, a dar nome aos sentimentos que têm. Para nós [ocidentais], eu falo por mim, consigo ter um leque de sentimentos, bons ou maus para definir o que sinto. Para eles [chineses] é muito difícil dar nome ao que estão a sentir. Talvez porque não estão habituados a sentir e não estão habituados a expressar o que estão a sentir. Um dos pontos que focamos no tratamento é isso mesmo, olhar para nós próprios e conseguir definir o que é.

18 Mar 2016

Rui Zink, escritor : “Acho que Portugal é um país democrático a sério”

Findo o século da predominância da cultura americana, assistimos ao brotar da cultura e literatura chinesa. É assim que pensa Rui Zink, escritor português que regressou ao Rota das Letras e que pôde, por fim, descobrir Macau. Sobre o Portugal de hoje, Rui Zink fala de um país que pode ser um “farol de luz e bom senso” em relação à Europa

[dropcap style=’circle’]É[/dropcap]a segunda vez que está neste Festival e este ano teve a oportunidade de ajudar na escolha dos convidados.
O meu plano secreto é tomar o lugar do Hélder Beja e do Ricardo Pinto e daqui a dois anos ser eu a fazer o Festival. Mas foi uma grande honra e, pela primeira vez, estou a ver Macau e o Festival. Porque na primeira vez somos peixes de outro aquário. Já me sinto mais dentro e ficarei muito zangado se não me convidarem para uma terceira vez.

Macau, e sobretudo a comunidade portuguesa, está a aceitar mais o evento, a participar mais?
Não posso comparar as cinco edições, mas posso dar como exemplo o maior evento do género em Portugal, que é o Festival Correntes D’Escritas, que levou dez anos até se tornar no menino querido das gentes do norte e dos jornais. Um festival leva tempo a crescer e penso que este [Rota das Letras] tem elementos base para ser um grande festival. Tem escritores variados, participação com instituições locais e idas às escolas, que são fundamentais. Tive a oportunidade de ler muitos livros de autores que conheci aqui, como é o caso de “I love my mum”, de Chen Xiwo. Fiquei espantado com a sua franqueza. Tinha aquela ideia de que os chineses são delicados de mais e nós, portugueses, é que somos directos. Acho que nós portugueses é que somos pouco directos.

A literatura chinesa está a tomar as rédeas da literatura mundial e vai ser cada vez mais falada? Os escritores chineses estão a começar a ter essa garra para escrever sobre outros assuntos?
É natural que tenham. Há um mito muito simpático, que é o dizer que a arte está contra a política e a economia. É mentira. Se há coisa que a história prova é que esse bonito mito é uma fraude. O poder da arte acompanha o poder económico e político. Passámos metade do século XX a ver cinema americano, a ler literatura americana e a ouvir música americana. O século XX foi o século americano. A cultura resiste enquanto o dinheiro dura e isto é um facto. Agora falo do século chinês.

Que é este que está agora a começar.
Sim. Está a começar e não tem mal nenhum, porque já houve um século português. Temos é de ser sexy, seja quando estamos por cima ou por baixo. Há uma grande curiosidade, os [autores chineses] começam a ser traduzidos, a China é um gigante. Mas os escritores americanos do princípio do século liam literatura francesa e inglesa, os clássicos, e assimilaram. Neste momento o que vejo em muitos escritores traduzidos [é que] já escrevem usando os truques dos escritores que lêem. Tenho um livro que está aos poucos a ser traduzido pela Europa fora: “A instalação do medo”. E é interessante porque saiu agora na Alemanha e vai sair em França e cada país vê aquela história de forma diferente. Este livro foi traduzido porque diz algo ao gosto francês e alemão. Há livros meus que são muito inteligentes e que não podem ser traduzidos, porque em Alemão, por exemplo, os leitores não iriam compreender.

Os seus livros conseguem ser compreendidos em Chinês?
Sim. Tenho os elementos de humor e franqueza que o público chinês adoraria ler.

[quote_box_left]“Tinha aquela ideia de que os chineses são delicados de mais e nós, portugueses, é que somos directos. Acho que nós portugueses é que somos pouco directos”[/quote_box_left]

Falta humor na China, na literatura?
Não, pelo contrário. O que acho é que o humor é muito difícil de traduzir. É eminentemente cultural.

Escrever em Portugal é mais difícil nos dias de hoje?
Porque é que haveria de ser mais difícil?

Por questões económicas e sociais. Há uma censura escondida?

Não. Usar a censura como desculpa para não escrever é uma cobardia.

É como se o escritor desistisse?
Escrever é a única arte em que não dependemos dos poderes, é papel e caneta. Depois o que há é preguiça ou trabalho.

Mas a crise económica trouxe constrangimentos ao mercado editorial.
Há, e é natural, um maior fechamento do mercado editorial, quer a nível de livros e de distribuição, quer a nível de jornais. Houve jornalistas despedidos e há menos gente a ganhar dinheiro a escrever para jornais. Mas isso não tem a ver com censura. Se fosse jornalista sentia-me censurado e perseguido, por estarem a dar cabo do meu ganha-pão. Mas não sou jornalista, e como sou escritor, não posso usar o argumento da censura económica para escrever o que me apetece.

[quote_box_right]”Quando a porcaria da Europa tiver 200 anos seguidos de paz, nem que seja no seu território, então começa a ter autoridade moral. Acho muita presunção e pouca água benta a Europa como dadora de lições a este encantador adolescente chamado China”[/quote_box_right]

Sobre a questão de, em Portugal, mostrarmos aquilo que o turista quer… Em Lisboa vão fechar bares que fazem parte da sua geração, como o Jamaica e o Tóquio. Catarina Portas, empresária, fez há dias uma forte crítica sobre o fim de negócios tradicionais na cidade. A Lisboa que conheceu e que está no imaginário de muita gente está a desaparecer?
Não. Não gosto de muitas coisas que estão a acontecer. Mas havia mais coisas na minha infância que não gostava que estivessem a acontecer. Nasci no Bairro da Pena e aí as varinas andavam descalças. As pessoas atiravam urina para a rua. Lisboa cheirava a mijo e as pessoas escarravam na rua. Na casa onde morava não havia casa de banho, havia uma pia e um penico e tomávamos banho uma a duas vezes por semana. Não havia água quente. Vendo as coisas cruamente, a minha infância foi maravilhosa, mas foi em ditadura. A nostalgia é sempre perigosa. O Jamaica vai fechar, tenho pena, mas a verdade é que só já ia ao Jamaica uma vez por ano e era quando estava muito bêbedo. Gosto muito do Jamaica, há algumas memórias minhas que se vão perder, mas amigos meus morreram e isso é muito mais grave. A natureza da vida humana é desaparecermos um dia. Chateia-me os tuk tuk, mas chateavam-me mais as varinas irem para casa descalças, para sítios que não eram casas.

Participou numa palestra que tenta estabelecer uma comparação entre a Revolução Cultural na China e o 25 de Abril em Portugal. Que ligação é possível estabelecer aqui?
(Risos). Se há uma coisa que este debate prova é que uma palavra pode ser usada para dizer uma coisa e o seu contrário. Obviamente que a Revolução dos Cravos foi boa, talvez não tenha sido para muita gente, mas para mim foi maravilhosa. A verdade é que a minha imagem da revolução portuguesa é isto: é termos uma democracia que funciona e uma sociedade onde não damos tiros uns nos outros. Acho que somos um país democrático a sério, se calhar um dia seremos um farol de democracia e bom senso na Europa. Já estivemos mais longe. Neste momento somos um país menos estúpido do que a França, porque somos mais tolerantes com o casamento gay, por exemplo. Sabemos construir um Governo, coisa que os idiotas dos espanhóis não conseguem (risos). Em Portugal temos um Governo que funciona. Como é que se forma um Governo? É contar o número de deputados, só isso. Não nos tornámos um país fechado e perigoso como a Hungria. Neste momento Portugal é um farol de luz e bom senso na Europa e talvez no mundo.

E os portugueses têm essa percepção?
Está aqui um português que tem. A revolução portuguesa deu-nos um país normal. Tanto quanto sei, a Revolução Cultural na China foi uma experiência que correu mal, um acto de violência, que tem a ver também com o espírito do tempo. O importante aqui é não repetir os erros. A Alemanha é hoje um dos países menos racistas do mundo e, no entanto, há 70 anos fizeram umas chatices, houve uns desacatos e alguns exageros. Os países devem olhar de frente para os seus erros, para não os repetir tão cedo.

Talvez a China não os queira voltar a repetir.
Não sou um especialista em China e não venho aqui dar lições de moral. Vejo com muita atenção o que se passa na China e vejo contradições diferentes daquelas que se passam em Portugal. Mas claro, é um bicho diferente. Mas todos temos contradições e ninguém tem tantas como os agentes culturais. Nós europeus temos de ter muito cuidadinho quando damos lições de moral e quando dizemos aos outros: “porque não fazem a paz?”. Quando a porcaria da Europa tiver 200 anos seguidos de paz, nem que seja no seu território, então começa a ter autoridade moral. Acho muita presunção e pouca água benta a Europa como dadora de lições a este encantador adolescente chamado China.

16 Mar 2016

Rui Lourido, presidente do Observatório da China: “Hoje trabalha-se na Europa para se ser pobre”

Rui Lourido olha para a China de hoje como um país que tem muito a dar à Europa e sobretudo a Portugal, onde os investimentos chineses continuam a ter uma conotação negativa que, segundo o presidente do Observatório da China, é preciso combater. Rui Lourido diz que hoje há uma maior garantia dos direitos laborais na China, por oposição a muitos países europeus

Os ministros do anterior Governo português realizaram várias visitas oficiais a Macau. É um território que recebe hoje uma maior atenção de Portugal face aos anos anteriores?
Penso que estamos numa nova fase de Macau, graças ao desenvolvimento enorme trazido pelo Governo de Macau em vários níveis, e também da sua influência na China. A [RAEM] é uma cidade que tem também conseguido uma expansão da sua influência, por ter conseguido estabelecer aqui o Fórum Macau. A defesa do património tem sido coerente e tem permitido apresentar a recuperação de edifícios antigos. O governo português fez um óptimo trabalho também a esse nível, na feitura de museus e na recuperação do património religioso, mas o Governo chinês da RAEM tem sido exemplar a esse nível. Tem inclusivamente alargado a preservação da calçada portuguesa em ruas onde esta não existia anteriormente. O património e a influência de Macau foram áreas de grande sucesso e a integração de quadros que vêm da própria China permitem trazer para Macau uma outra influência. Esse diálogo entre o continente e as regiões administrativas é uma mais valia. Foi também um sinal de inteligência política ter conseguido transformar Macau numa cidade que é património mundial da humanidade e também a criação do Fórum Macau a continuar e a aumentar as relações com a lusofonia, nomeadamente com o Brasil.

Considera então que o Fórum Macau tem desempenhado bem o seu papel?

Não digo que tem desempenhado o que podia desempenhar. O que digo é que a existência do Fórum Macau é extremamente positiva, é uma mais valia para o território porque diz aos territórios da China que os chineses de Macau têm uma mais valia que as outras regiões chinesas não têm. Há uma ponte com a Europa, com África e a Lusofonia. Isso valeu no século XVI, é por isso que Macau existe, e sempre foi uma presença pacífica e por mútuo acordo, que foi continuada numa outra vertente pelo actual Governo da RAEM que, compreendendo esta peculiaridade de Macau, a apresenta na própria China como uma forma de ter um outro palco político e uma outra visibilidade. E aí também Macau pode desenvolver-se de forma mais intensa cultural e economicamente.

É necessário esse desenvolvimento, já que Macau é a cidade do Jogo por excelência?

Penso que não só e fundamental como é urgente. É urgente que Macau diversifique as áreas económicas, é uma preocupação do Governo e do próprio Governo Central e isso é importante para a sustentabilidade do desenvolvimento económico e urbano de Macau. O peso dos casinos é excessivo porque na realidade a grande parte da população trabalha [lá] e há que encontrar alternativas nas actividades das indústrias criativas. Em muitos países as actividades das indústrias criativas ocupam já uma parte importante do seu tecido económico. Áreas de edições, de turismo, que não tenham a ver com o Jogo. E a área cultural, porque Macau é uma sociedade multiétnica que é, em si própria, uma mais valia para o tecido urbano e económico da cidade. Talvez na área cultural o Fórum devesse ter um papel mais activo, na transmissão da cultura milenar chinesa e das características de Macau na lusofonia. O Fórum podia pensar não só pensar em iniciativas económicas e empresariais mas organizar também iniciativas que levassem uma ópera de Pequim, um grupo de teatro. Isso permitia combater a percepção que há na Europa de que “enfim, vêm aí os chineses que compram tudo”.

Em Portugal há uma ideia de que as empresas chinesas estão a investir em tudo e isso é encarado com um certo negativismo. É preciso combater esse sentimento?

Sim, é necessário combater no sentido em que é preciso ser realista. Na realidade os povos sempre circularam. Os europeus são indo-europeus, todos os povos que temos na Europa vieram de zonas euro-asiáticas e esquecemos essa origem multiétnica. A população portuguesa tem tido uma estabilidade que é agora questionada pelas novas populações e emigrantes e também homens de investimento. Vieram da Europa do Leste, da América Latina e agora temos o chinês. O Observatório da China rapidamente compreendeu que necessitava de ter um papel de divulgação cultural no sentido de ultrapassar essa visão do desconhecido da Europa e de Portugal sobre a China. É esse desconhecimento que leva à aversão, à recusa daquilo que é diferente de nós. São reacções naturais da população europeia, mas que não são aceitáveis. Rapidamente começamos a organizar vários projectos (ver texto secundário). A China hoje em dia tem um crescimento de 7%, mas mesmo que desça é um crescimento imenso que não tem outro país na Europa. A própria economia chinesa contribui para o desenvolvimento da economia do mundo.

Mas essa economia tem gerado questões sociais dentro da própria China, sobretudo com a questão da poluição. Podemos ver uma maior separação entre a sociedade e o sistema político?
Naturalmente que sim e todo o Ocidente andou desde a revolução de Mao Tse-Tung a exigir à China que se abrisse ao mundo e que se tornasse capitalista. E quando essa nova política se implantou e essa abertura se concretizou, claro que as diferenças entre ricos e pobres aumentaram, mas esse era um objectivo do Ocidente, para poder vender os seus produtos na China. Se todos tivessem o mesmo nível de desenvolvimento na China não era possível termos uma classe média com poder de compra. Não podemos ter dois pesos e duas medidas e sermos hipócritas e dizermos “vocês estão a ser demasiado capitalistas”. Naturalmente que as diferenças sociais têm-se ampliado, mas isso é uma coisa à qual os governos têm de ter atenção, porque para o desenvolvimento ser sustentável há que dar poder de compra às pessoas e aumentar os salários mais baixos. O que assisto na China é isso: há um salário mínimo estabelecido para o campo, outro maior para as cidades e existe um quadro jurídico que a pouco e pouco se vem desenvolvendo e que dá mais garantias aos cidadãos. Isso é uma coisa que no Ocidente vem regredindo. Na China há direitos de manifestação e salariais, em Portugal e noutros países da Europa tem-se degradado o grau de sindicalismo, de correspondência entre horários e o salário. Acha-se normal pagar às pessoas com recibos verdes ou salários abaixo do salário mínimo.

Há diferenças, portanto…
Hoje em dia trabalha-se na Europa para se ser pobre, passa-se fome em muitas famílias. Há que ter a noção da realidade: a China está a conseguir ampliar o nível das pessoas que acedem a um nível médio de riqueza, e a classe média está aí para mostrar isso. Cem milhões de pessoas na China saíram do limiar da pobreza. É preciso desenvolver a liberdade de expressão e com a presença dos intelectuais e de todos aqueles com espírito crítico para que haja uma renovação sustentável. Ao nível do ambiente, vem sendo degradado desde há 40 anos. O próprio Governo Central pôs o ambiente como um objectivo prioritário nos seus planos quinquenais. Numa sociedade evoluída há sempre contradições, mas o que é preciso é que a sociedade civil esteja atenta, com a sua massa crítica, e contribua para chamar a atenção.

Mas não deixa de ser interessante observar que nos últimos anos os chineses procuram sair do seu próprio país. Isso revela o desejo de conhecer o mundo, aliado ao desenvolvimento económico, ou é uma forma de mostrar descontentamento?
É uma tendência das classes médias de tentarem buscar para os seus filhos aquilo que concorrencialmente é o que dá mais instrumentos a uma ascendência social e a uma sociedade de elite. Os chineses regressam, como regressaram aqueles que hoje estão a ocupar cargos na área cultural e até da administração. Aqueles que trabalham nas áreas científicas, culturais e até na Administração são os chineses que estudaram na América e exterior e regressaram. Mas há na realidade uma sociedade civil mais atenta e isso é um factor positivo. À medida que vai surgindo um maior conhecimento, a cultura traz sempre a inquietação e um maior conhecimento de nós próprios. A saída de turistas chineses e de cidadãos chineses é um óptimo factor porque desenvolve o turismo europeu e as nossas economias e porque trazem ideias novas e também a sua cultura. A Europa tem de se adaptar à forma de vida na China. Na China nunca se viveu tão bem como agora, e dizemos que o mundo está em crise, mas está em crise o modelo ultra financeiro seguido no Ocidente…

Se calhar continua-se a pensar muito a Ocidente e muito pouco a Oriente.

Exacto.

Dez anos a aproximar culturas

A comemorar dez anos de existência, o Observatório da China transformou-se de uma plataforma de académicos para uma entidade que tenciona aproximar mais a China a Portugal.
“Recebemos o Governo de Cantão e de Jiangsu e ambas as regiões pretendem estreitar relações com Portugal e com o mundo lusófono. O Observatório da China tem esta vocação cultural e vai levar a ópera de Cantão a Portugal em Dezembro, para além de organizar o segundo Festival Internacional de Cinema Chinês e do Olhar Lusófono em Outubro. Também vai decorrer em Outubro uma conferência para discutir em que medida a Europa pode participar no projecto que a China apresentou “Uma faixa, uma rota”, disse ao HM Rui Lourido.
Outro projecto do Observatório da China, disponível online desde o ano passado, é a biblioteca digital de Macau, com obras digitalizadas e disponíveis de forma gratuita, correspondentes aos séculos XVI a XIX.
“Trata-se de um manancial tão diversificado que permite estudar a história de Macau nesse período e também os sítios por onde os portugueses navegaram até chegar aqui. Este projecto pretende aproximar Macau ao mundo”, disse Rui Lourido. A Fundação Macau apoiou financeiramente esta biblioteca.

11 Mar 2016

Giulio Acconci | O outro lado do músico surge a cores e tinta-da-china

Todos o conhecemos como uma estrela da Pop, mas ele tem outro lado. O de designer gráfico, cultivado há muitos anos em Itália, e o de quem sofreu uma transformação quando se apaixonou pelas aguarelas. Apanhámos Giulio Acconci a meio do processo de reflexão e soubemos que uma exposição pode estar aí ao virar da esquina. Pelas amostras a que tivemos acesso, tivemos de saber mais

[dropcap]C[/dropcap]omo começou a aventura das aguarelas?
Com um livro de um grande pintor macaense, o Luis Luciano Demée, mostrado pelo meu irmão (Dino). A intensidade da pincelada e a forma como as aguarelas se combinavam, criando outras formas, quase casuais… foi o rastilho. Depois uma conversa sobre caligrafia com a Maggie Chiang, algo que sempre me interessou. Ela é chef e brinca com cores e formas na sua cozinha e trocámos várias ideias. Como ela estava a produzir uns jantares especiais de São Valentim, pensei criar imagens com caligrafia, tinta e aguarelas. Desenvolvi uma série de histórias curtas para cada prato e produzi as imagens em computador – aguarelas digitais, se quiser. Aí pensei que se as fazia assim também teria de conseguir fazer com tinta e pincel.

Em que fase está o processo?
A chegar a uma ideia, a definir o que pretendo dizer. O meu treino de designer obriga-me a fazer esboços como treino. Mas nunca fiz uma composição completa de forma satisfatória e é nisso que estou a trabalhar.

Em termos mais concretos isso quer dizer que…

É um jogo mental. Interrogo-me: ‘vou pintar o que penso, o que sinto, ou as minhas observações do ambiente que me rodeia? Será abstracto, mais ou menos filosófico?…’ Há imensas formas de expressão e é nesse processo que estou. Pode ser sarcástico, político, divertido, fantasioso…

Como está a ser desenvolvido esse processo de pesquisa?
Para tornar as coisas mais simples, estou a transformar isto num trabalho. A tentar retirar-me do processo e, pegando na minha experiência como designer, do trabalho por encomenda. Estou a contratar-me para uma série sobre a Hill Road [em Hong Kong], a área onde vivo. Mas numa forma leve e contemporânea, nada clássica com vários tipos de composição. Associar pequenas histórias a cada imagem também pode ser uma possibilidade.

No que respeita a temas, já existe algo alinhavado?
Hong Kong, para já, é o tema porque é mais simples, é onde vivo. Como tenho dois cães é provável que eles surjam. Um é branco, o outro é preto, por isso dão um interessante conceito yin yang. (risos)

Que imagens sugerem Hong Kong?

Tenho curiosidade em perceber como as coisas se vão desenvolver. Pelo que vejo, as pessoas não andam muito felizes, independentemente do espectro político a que pertençam. Há uma sensação de incerteza no ar e, como em Hong Kong é tudo dinheiro, quando ele não abunda as pessoas não funcionam. De uma forma geral, claro.

giulio acconci Como vê a situação actual da cidade?
Vivemos um período de transição. Por isso, eu e os meus amigos tentamos manter-nos positivos porque tudo acabará por resolver-se. Oiço muita gente, do taxista ao jovem empresário, dizer que não faz tanto dinheiro como antes, que a vida não é tão fácil como antes… De uma forma geral, as pessoas comparam tudo ao ‘antes’. Acho isso negativo. Temos de preocupar-nos mais com o ‘agora’. Claro que existe gente mais pro-activa, cheia de energia e é nessa tendência que pretendo inserir a minha arte e a minha música. As coisas mudam, nunca ficam iguais.

Por falar em música, será de esperar que a próxima vez que ouvirmos falar de Giulio Acconci seja no escaparate de uma galeria e não no poster de um concerto?
É bem possível (muitos risos). Claro que continuo a fazer música mas estou a gostar muito da aventura do artista plástico, produzir pinturas, isso é verdade.

Para quando a “vernissage”?
Quem sabe? Talvez esteja aí mesmo ao virar da esquina.

Como imagina essa exposição?
Gostava de algo simples, sem grandes alaridos. Mas tenho de pensar em muitas coisas, no que quero dizer. Se realmente sair cá para fora como artista, tem mesmo de ser algo para além de dizer que sei pintar. É uma oportunidade como indivíduo, como pessoa, como Giulio Acconci, não como [banda] Soler. Porque, como Soler, as pessoas pensam que sou eu mas não é verdade. É apenas uma personagem criada para aquele efeito. Como pintor torno-me protagonista. Aconteça ou não, o processo mental, a procura de ideias, a pesquisa, as técnicas… ouvir pessoas tem sido uma grande experiência, maravilhoso mesmo.

Telas grandes, pequenas… como vai ser?
Variado. Quando vou a uma exposição gosto de ver um pouco do percurso do artista. Às vezes exibem alguns esquiços, estudos. Eu quero fazer isso, uma pequena secção com esquiços simples. Desses até pinturas grandes.

image4Sabemos que existe um legado artístico na família. Qual a importância dessa influência?
É verdade. O meu pai [Oseo Acconci] foi escultor, estudou Belas Artes, o meu avô era pedreiro e fazia pedras tumulares, está a ver? (risos). Para além disso, o meu pai construía tudo em casa. Das cadeiras, à mesa onde estudava, à mobília de jantar, as nossas camas… vivíamos num prédio que ele construiu… Por isso, a primeira vez que tive de comprar mobília foi um processo estranho (risos). Era também muito vocal em relação a tudo. Sempre a apontar detalhes, a realçar coisas, razões, naquele engraçado sotaque italiano dele. Tanto ele como a minha mãe sempre nos encorajaram a desenhar. Tenho dezenas de blocos de desenho em casa. Um dia, ele levou-nos a uma exposição e perguntou-me se um dia gostava de ter a minha. Disse que sim e ele prometeu-me uma, um dia. Infelizmente faleceu antes do tempo, tinha eu 15 anos. Por isso, se a vier a fazer uma exposição, será dedicada a ele. Como se fosse ele a comissioná-la.

Onde irá acontecer? Em Hong Kong ou em Macau?
Não faço ideia. Apaixono-me por lugares. Gosto do mundo todo. Gosto muito de ir à China (vou muitas vezes a Chengdu), adoro Cantão, Londres e, claro, estarei sempre ligado a Macau. Pelo lado do sentimento terei de dizer Macau mas, se quiser ser prático, vai ser aqui. A verdade é que ainda não sei.

E a cena artística em Macau? Que percepção ressoa do que aqui se passa?
Ainda há pouco, numa conversa com o Fortes [Pakeong] fiquei com a impressão que existe um número de pensadores livres por aí com capacidade para se exprimirem artisticamente, o que me deixa entusiasmado. E noto que se fala muito mais em criatividade. Parece que quase todas as pessoas que encontro falam de ideias, isso faz-me muito feliz. Além disso, posso estar enganado, mas parece-me que estão a começar a aparecer patronos, o que seria muito importante para o desenvolvimento artístico.

E as artes de Hong Kong? Podemos dizer que estão moribundas?
Nada disso. A arte floresce na tristeza, na incerteza, no tumulto. Se andarmos pelos círculos artísticos, descobre-se muita gente discreta. Tenho encontrado muita qualidade, muitas pessoas interessantes. Há mesmo um certo orgulho entre eles e uma geração que se mantém fiel às convicções. É como o surf. Sem ondas não há. No mundo da arte, se estiver sempre tudo bem, vamos falar do quê? Existem, claro, os que produzem arte quando estão felizes, mas o que vejo na história é que as melhores obras nascem do tumulto.

image2Agora vai sobrar para esse lado. Que tumulto é esse que o motiva?
A minha vida toda (gargalhadas). Tem sido uma luta. A questão é se vemos um problema como um bloqueio ou como uma situação a ser resolvida. Nos anos mais recentes tenho tentado uma abordagem mais positiva, mas na maior parte do tempo pensava se estaria no meio de alguma profunda tragédia grega (ri-se mais).

Mas as pessoas olham para si e vêem uma estrela da Pop, vida de glamour, bom aspecto, festas sofisticadas… como pode falar de luta?
Como disse, o Giulio dos Soler é uma personagem, é entretenimento, é o nosso papel. Também é uma protecção, porque se criticarem os Soler não me atingem. Não ando no jogo duro do ‘show off’. A minha realidade é muito diferente. Sou muito “nerd”, gosto de estar em casa, de ver documentários. Estou sempre a tentar aprender, a absorver ideias. E tenho uma rotina saudável. Faço caminhadas regulares com o meu irmão, vamos buscar água à fonte numa zona perto daqui, corro com os cães. As pessoas pensam que passo a vida no ginásio mas não. Também não lhes quero estoirar a bolha. Se ficam contentes com isso, óptimo. Em relação ao glamour, quando alguém pretende entrar nesta indústria digo-lhes sempre a verdade: “No glamour. Nenhum”. (risos)

Mas a exposição vai colocá-lo a nu, ou vai surgir outra personagem?
Eu acredito em Shakespeare quando diz que a vida é um palco onde desempenhamos muitos papéis. Por isso, o mais provável, é sair outro personagem. O verdadeiro Giulio vai continuar muito elusivo e só talvez um dia o partilhe com a pessoa certa. Para já, acho que vai sair o meu lado pintor, outro personagem.

3 Mar 2016

John Ap, docente do IFT: “Serviço turístico é inconstante”

Com quase duas décadas de experiência na área do Turismo, o professor do Instituto de Formação Turística acredita que a detenção do antigo director do Hotel Lisboa teve pouco impacto no sector do turismo, mas contribuiu para limpar a imagem de Macau como um lugar de prostituição. John Ap pede mais formação para funcionários do sector e defende pacotes turísticos focados no património

[dropcap]D[/dropcap]epois de um ano muito difícil para o sector do Jogo, com grandes quebras nas receitas, que expectativas coloca para o desempenho dos casinos este ano?
Penso que vai continuar a ser um ano com desafios e temos de compreender que este negócio é feito de ciclos, especialmente se compararmos com os anos anteriores, em que existia um crescimento sólido, registado depois da quebra de 2009. Penso que é um bom grito de alerta para Macau, para não estar tão dependente das receitas do Jogo e para diversificar a economia o melhor possível. O sector tem sido dominado pelo mercado chinês e os turistas começaram a ir para outros destinos. Temos de optimizar e não ficar estáticos num só mercado, porque o panorama vai mudar. O Jogo cresceu muito depressa e tornou-se dominante, as pessoas não esperavam isso, comparando com outros países. Temos de pensar a curto e longo prazo e a longo prazo precisamos de pensar noutros mercados.

E a curto prazo?
É uma questão de fazermos ajustamentos em relação ao número de receitas e de visitantes. O que deve existir a curto prazo é uma melhoria dos serviços de turismo que são proporcionados, uma melhoria constante. Isso será melhor para Macau em vez de se limitar a receber mais turistas. Também temos de começar a pensar na forma como servimos os turistas, porque uma coisa que notei é que o serviço turístico é inconstante.

Como assim?
Os condutores de táxi, por exemplo, não ajudam os turistas com a bagagem, e até os podem expulsar do veículo. Depois há a questão dos autocarros públicos que estão sempre cheios ou os condutores simplesmente ignoram e fecham a porta. São pequenos pormenores que temos de melhorar para termos um melhor serviço. Macau é uma cidade muito chinesa e para quem não lê Chinês pode ser desafiante fazer turismo. Muitos restaurantes continuam a ter menus em Chinês. São pequenas coisas que devem ser feitas para facilitar a vida aos visitantes. Temos mercados emergentes como a Índia, Japão e Coreia e temos de pensar nestas coisas para tornar Macau num lugar mais atractivo e melhorar o ambiente.

A falta de atenção a estes pequenos detalhes pode piorar a imagem de Macau lá fora?
A imagem que Macau tem perante o mundo é de um lugar de Jogo. Isso está cimentado e aqui existem lugares históricos que tendem a ficar em segundo plano. Deveríamos promover o património através de pacotes turísticos específicos para esse fim, para um mercado muito específico. Acho que passear no meio de casas históricas e monumentos é bastante gratificante. Dá-nos a sensação de um lugar único, comparando com Hong Kong, por exemplo.

O Governo tentou promover o património com o programa “Sentir Macau passo a passo”, mas falhou por falta de adesão. Como é que o Executivo pode de facto promover mais esses lugares históricos?
Temos de ver o que falhou. E uma das razões para ter falhado tem a ver com a predominância do sector do Jogo. Agora que o sector está a decrescer, devemos fazer mais investigação na área do turismo para ajudar o Executivo a ver o que os potenciais turistas pensam. Temos de fazer uma investigação turística mais extensiva, para perceber porque é que os turistas vêm ou não vêm a Macau. Os acessos ao território sempre constituíram um problema, especialmente para o mercado internacional, porque o mercado chinês chega através das fronteiras.

É importante ter mais voos internacionais.
Sim. O Aeroporto Internacional de Macau é pequeno e tem um número limitado de voos e de companhias aéreas a operar. Depois há o sistema dos ferries que também precisa de ser melhorado. Macau tem de apostar na melhoria dos acessos, com serviços eficientes e melhores, com preços mais competitivos.

O fecho das salas VIP dos casinos deve também representar um grito de alerta junto do Executivo?
Sim. Mas isso está relacionado com as medidas anti-corrupção introduzidas por Pequim, que estão a ser positivas para a China, não tanto para Macau (risos). Essa questão sempre foi levantada, sobre qual seria a percentagem do dinheiro vindo da China que estaria envolvido em sistemas de lavagem de dinheiro. Esse deve ser um ajustamento feito a longo prazo e Macau terá de se ajustar a essa realidade.

Após a abertura de todos os empreendimentos de Jogo no Cotai vamos ter um mercado estável, mas com menos visitantes? Qual a sua previsão?
O sector do Jogo vai ajustar-se como fez em 2009 com a crise económica global. Se olharmos para as bases do mercado de Macau em termos de estadia é baixo, porque a maior parte dos visitantes fica no território apenas um dia, um dia e meio. Mas mesmo mantendo uma taxa de ocupação de 80% é bom, porque a média a nível mundial é de cerca de 60%. Na área hoteleira Macau está a ter um bom desempenho e com mais hotéis e quartos isso pode levar as pessoas a ficar mais tempo, porque quanto mais tempo ficarem, mais vão gastar, embora o mercado do Jogo fique estável.

Será difícil ter recursos humanos suficientes para responder à procura e às necessidades que o Cotai vai trazer?
Esse será outro desafio. Devemos estabelecer uma força de trabalho estável que tenha formação e as competências necessárias para dar resposta a um serviço de luxo que os turistas estão à espera. Parte do problema em Macau é que as pessoas que trabalham na indústria do turismo não olham para o serviço como algo que deva ser de luxo. Não basta sorrir para o cliente e muitas vezes notamos comportamentos que são semelhantes a robots e não se olha para as necessidades do cliente. Temos de dar formação também aos supervisores e funcionários da linha da frente. Isso é muito importante para manter os clientes.

Alan Ho, antigo director do Hotel Lisboa, está neste momento a ser julgado por alegadamente pertencer a um grupo organizado de incitamento à prostituição. Que impacto é que esse caso teve, se é que teve, junto do sector do Turismo?
O impacto é mais para a família do que para o sector. A prostituição é das profissões mais antigas do mundo e vai sempre existir nas suas diferentes formas. Tem algum impacto ao limpar um pouco a imagem internacional de Macau, que é um lugar conhecido por ter prostitutas e casas de massagens.

Esta semana um especialista disse que os confrontos em Mong Kok, Hong Kong, atraíram mais turistas para Macau na Semana Dourada. Acredita que os tumultos vividos na região vizinha podem trazer, de facto, mais turistas?
Esse confronto mostrou algum descontentamento da população e tem de haver diálogo. Durante o Occupy Central muitas pessoas pensaram tratar-se de algo violento, quando o mais violento que aconteceu foi o uso de gás pimenta, aquilo não passou de uma demonstração ou manifestação. Mas Hong Kong continua a ser um lugar seguro, tudo depende das zonas. Penso que a imagem internacional de Hong Kong não ficou afectada e penso que isso não vai ajudar assim tanto Macau. Olhando para o património, novamente apostaria na criação de pacotes turísticos em Macau, como algo para trazer pessoas do mercado de Hong Kong.

Centro de formação a funcionar este ano

Há poucos meses no IFT, John Ap tem estado a trabalhar no arranque do Centro Global de Formação e Educação no Turismo, anunciado em Outubro do ano passado no âmbito do Fórum de Economia Global. Ao HM, John Ap confirmou que este Centro visa criar programas de formação para membros dos governos de outros países. “Prevemos que vá entrar em funcionamento em Junho e vamos ter o primeiro grupo de formandos do Camboja e depois mais um programa de formação para formandos do Afeganistão”, apontou.

26 Fev 2016

Chang Kam Pui, director de associação ambiental: “Governo está desligado do sector da reciclagem”

A participação numa conferência da ONU sobre mudanças climáticas trouxe novas ideias a Chang Kam Pui de como promover a protecção ambiental em Macau. Mas o director da Associação de Protecção Ambiental e Gestão de Macau não tem dúvidas: o Governo não tem planeamento, tecnologia, nem consciência para resolver o problema e nem sequer ajuda o sector que ainda se vai dedicando à temática

A vossa Associação, juntamente com outra, participou na Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas em Paris no fim do ano passado. Como foi a experiência?  
Ganhámos muito. Quando acabou a conferência e voltámos para Macau, percebemos que Macau, é de facto, pequeno. Não só ao nível da área territorial, mas também ao nível da tecnologia para a protecção ambiental. Noutros países e regiões, as técnicas são desenvolvidas, os métodos e o planeamento utilizados são pioneiros, a educação cívica vai no caminho da sustentabilidade. Só assim se pode avançar para um desenvolvimento ao nível da protecção ambiental. No estrangeiro, é tudo muito avançado, não se faz apenas a promoção da protecção ambiental como em Macau, mas faz-se essa protecção, no âmbito da tecnologia, da economia e dos negócios.

Participou como representante de Macau? Como é que esse trabalho foi conseguido?
Participámos pela primeira vez. Fomos nós próprios a entregar documentos para ingressar na conferência e depois fomos convidados a participar, após uma avaliação. Macau foi uma das regiões que participou como organização observadora. 
 
Quais as principais diferenças que sente entre o que viu na conferência e Macau?

O que vi é que os trabalhos de protecção ambiental de Macau ficam muito atrás de outras organizações internacionais, tanto ao nível do pensamento, como na prática. Vamos a ver e o nosso território é definido como um Centro Mundial de Turismo e Lazer e uma cidade apropriada para viver. Mas será esta definição correcta? Não será demasiado? Sem contar com os países mais distantes, estamos em competição com outros países asiáticos como Taiwan e Japão. Macau não avança na protecção ambiental.

O que poderia fazer o Governo?

Os conhecimentos que adquiri [na conferência] versam sobretudo sobre o uso da energia solar, soluções para [acabar com] a poluição do ar, poluição visual e das águas. Mas a tecnologia utilizada ultrapassa a actual capacidade de Macau – isto a juntar à falta de terrenos, faz com que Macau não consiga avançar para essas resoluções, mesmo que haja profissionais estrangeiros e especialistas em protecção ambiental em Macau. Por exemplo, a energia solar precisa de grandes espaços para se colocarem os painéis solares, algo que não se coaduna com a realidade de Macau. Mas o que é mais de salientar é a educação cívica e a cooperação interdepartamental, porque na conferência observámos que todos os  departamentos dos governos estrangeiros estão bem coordenados: no Japão, por exemplo, as crianças aprendem como proteger o ambiente desde o jardim-de-infância. Um exemplo muito simples é o de colocar caixotes de reciclagem de lixo dentro das escolas, sobretudo nas cantinas, e os próprios professores ensinam directamente como se faz a separação do lixo. Outro exemplo é que os professores pedem aos alunos para trazerem os próprios sacos para festas escolares, para levarem as prendas. Assim, eleva-se a consciência da população, formando-se hábitos de protecção  ambiental.  Tem que se perceber que a protecção ambiental não é algo obrigatório, mas depende da auto-disciplina das pessoas. E é isso que o Governo de Macau precisa de ter como referência para melhorar o ambiente e os trabalhos com ele relacionados.

Como avalia o actual planeamento da protecção ambiental de Macau?

Foi publicado há pouco tempo o Relatório da Situação do Ambiente de 2014 e vi que, na parte sobre a gestão da protecção ambiental, o Governo defende que vai promover a educação, mas fala apenas nos números de actividades de promoção, de participantes… são meramente belas palavras. De forma geral, não existe um planeamento real e completo e é mesmo preciso avançar com esses detalhes no futuro. Como? Primeiro, a Direcção dos Serviços de Protecção Ambiental (DSPA) deve coordenar-se com a Direcção dos Serviços de Educação e Juventude (DSEJ) para incluir a disciplina de protecção ambiental nas escolas, porque até agora não existe nem nas escolas primárias, nem secundárias, nem sequer nas universidades. Quem quiser trabalhar na área de protecção ambiental tem de estudar em Hong Kong, Taiwan, Estados Unidos, Canadá ou Singapura, porque Macau não tem um curso específico. Posso dizer que não existe uma base [para a protecção ambiental] em Macau, o que faz com a promoção de protecção ambiental exista, mas sem dar a colher frutos.
 
Esse relatório mostra que a qualidade do ar tem uma tendência de melhoria, comparado com o de 2012 a 2013. A qualidade do ar melhorou realmente ou são, como diz, apenas números?
Os dados são apenas para referência, a melhoria da qualidade de ar depende do que sentimos como cidadãos. Acredito que a maioria da população considera que o ar em Macau é pior agora. A principal fonte de poluição são os gases dos automóveis e, se não se resolver esta questão, a qualidade do ar do território nunca vai melhorar. O Governo tem promovido o uso de carros electrónicos, o que é positivo, mas como existe o problema do trânsito, quanto mais carros pior a situação, porque quando há engarrafamento os gases emitidos pelos automóveis parados são mais poluentes. Neste âmbito, quais são as medidas urgentes da DSPA para resolver essa poluição? Queremos saber. Ao que sei, os gases de automóveis são mais poluentes quando os combustíveis são de má qualidade ou não são usados de forma apropriada. Será que o Governo pode regular melhor o uso de combustíveis, promovendo os de melhor qualidade, pelo menos para diminuir a poluição? É que isso depende da implementação de políticas do Governo.

No ano passado, o sector da reciclagem de Macau manifestou-se contra a falta de apoio do Governo. Qual é a sua opinião face a isto?

Quanto à indústria de protecção ambiental, actualmente em Macau existem apenas micro empresas que reciclam os materiais. Não existe Lei de Protecção Ambiental que as suporte e, mesmo que o Governo implemente instruções, regras ou decretos-lei, não adianta. Em Taiwan, por exemplo, a indústria é completa: a lei regula que as pessoas façam a separação do lixo em casa e depois coloquem nos caixotes de lixo públicos correspondentes, fazendo com que o lixo já esteja separado quando a empresa o vai recolher. As associações começaram a reciclar os papéis e garrafas plásticas para que sejam feitos produtos novamente. Olhando para Macau, as empresas não têm confiança para avançar com trabalhos, porque parece que não temos um verdadeiro sector de reciclagem. O Governo ainda não conseguiu criar um ambiente para a sobrevivência dessas micro empresas. Recentemente, começou a pensar em classificar o sector de protecção ambiental como uma indústria, o que é uma boa notícia, mas até ao momento não houve nenhuma mudança.

Como é que o Governo poderia apoiar esta indústria?

É preciso haver cooperação entre o sector e o Governo, que actualmente estão desligados [um do outro]. O Governo deve criar regras para o sector da reciclagem, compreender como as empresas reciclam materiais… é preciso comunicação. Além disso, poderia aproveitar-se terrenos na Ilha da Montanha, onde Macau arrenda dez quilómetros quadrados, para promover a diversificação desta indústria. Acredito que um a dois quilómetros quadrados especificamente para a protecção ambiental já é suficiente: poderia, por exemplo, haver uma base de formação onde os residentes de Macau poderiam ser formados como especialistas nesta área, onde se poderiam desenvolver produtos reciclados, que pudessem suportar o sector em Macau. Claro que é preciso aceitação e planeamento do Governo. Caso contrário, vai manter-se sempre na fase actual, sem espaço para avançar.

O Governo está a realizar agora uma consulta pública sobre o uso dos sacos de plástico e a proposta sugere o pagamento obrigatório de uma pataca por cada saco. Concorda?
A proposta é positiva, mas a eficácia é incerta. Essa medida foi implementada em Taiwan há muitos anos e falhou porque as lojas de lembranças continuavam a dar sacos gratuitos. Será que o dinheiro pode resolver o problema do lixo? Não me parece. Seja uma ou cinco patacas, os turistas não se importam de pagar quando compram muitas coisas, sobretudo nas lojas de marca e de luxo. Já para os cidadãos, prevejo que a eficácia seja maior entre os idosos, que se importam com poupar dinheiro. O que considero mais importante é o Governo mostrar que confia realmente na protecção ambiental, do que estar a propor esta medida. Sabemos quantos sacos de plástico os organismos públicos utilizaram? Porque é que não se mostra primeiro à população a meta de diminuição no uso de sacos de plástico na Função Pública e depois se sugere aos cidadãos seguirem a mesma medida? O pagamento é apenas um alerta, mas a mudança da situação depende da auto-disciplina de cada um.

12 Fev 2016

José Tavares, presidente do ID: “Não podemos manter a mentalidade de há 20 anos”

O Instituto do Desporto está a entrar numa nova fase. Herdou actividades e estruturas do IACM e a organização do Grande Prémio de Macau e está decidido na aposta na alta competição. Uma conversa onde o presidente do organismo, José Tavares, pede mais iniciativa aos privados, chama os casinos à responsabilidade e sonha com o desfile olímpico

Como está o desporto de Macau?
Completamente diferente. Estamos na terceira fase de desenvolvimento.

Que fases são essas?
A primeira foi o longo percurso desde a fundação em 1987 para internacionalizar as associações locais. A segunda, os jogos e o investimento na formação de pessoal e construção de instalações. A terceira é esta: o pós-jogos, o legado. Com a nova rede de instalações pudemos dar acesso ao público pela primeira vez e não apenas a associações como antes.

Como se consubstancia esta terceira fase?
Elevar o Desporto Para Todos, completamente esquecido na fase jogos e trabalhar a sério o desporto de alta competição. No fundo, encetámos uma política de desenvolvimento desportivo e de sensibilização do público para a prática desportiva e o prazer de assistir a provas. Algo que falhou no período dos jogos. No futuro, se quisermos ter sucesso em organizações desportivas, temos de ter público.

O Instituto adquiriu recentemente novas competências. Que significado têm?
Representam uma oportunidade para reestruturar, para evoluir. Tínhamos três departamentos: financeiro, desenvolvimento desportivo e instalações, hoje temos cinco. Adicionámos o Centro de Formação para atletas e o Departamento de Grandes Eventos que engloba o Grande Prémio e os outros eventos que já organizamos. De resto, herdámos do IACM várias piscinas e quintais desportivos, o Fórum de Macau e o desporto de lazer.

O que significa esta reestruturação?
O desenvolvimento de atletas de elite e maior atenção ao Desporto Para Todos que são desenvolvidos em paralelo para alargarmos a base de recrutamento.

E qual é o papel do departamento de desenvolvimento desportivo?
Passa a dar mais importância ao dia a dia das associações, aos campeonatos locais e ao desenvolvimento do Desporto Para Todos.

E o de alta competição?
Passa pela formação de atletas, que já está em operação, e o centro de estágio que será fundamental neste enquadramento.

Para quando podemos esperar esse centro?
(sorri) Vão ter de perguntar às Obras Públicas. A obra pode demorar uns três anos mas o projecto já está para aprovação na DSSOPT há outros três. Aguardamos…

Onde é que vai ficar localizado e como vai ser?
O centro vai ficar perto do Dome e terá acomodação para 350 atletas. Vai ter dormitórios, quartos privados para treinadores, cantina e o centro de medicina desportiva passará também para lá.

Qual foi a base de estudo para a sua concepção?

Foi entre o ID e a Universidade de Pequim, que é um dos grandes centros de treinos na China. Mas também fomos a Singapura e a Hong Kong recolher informações. Depois ajustámos à nossa dimensão.

Qual o principal objectivo do Centro?
Um dos objectivos fundamentais é a formação específica para atletas de elite com condições para chegarem ao topo das competições internacionais.

E que modalidades serão privilegiadas?

Numa primeira fase wushu, karaté e taekwondo pelos bons resultados. Depois as outras modalidades e quem pretender um programa de treino intensivo, além do treino das selecções e a oportunidade de trazer atletas de nível internacional para estagiar e assim aumentar o nosso nível.

Qual a necessidade de prover alojamento para os atletas locais?
Há muitos vícios. Não levam a prática a sério, não levam a vida que um atleta deve levar e nós queremos adaptá-los a um ambiente de treino sistemático, com alimentação regrada e hábitos de treino.

O Grande Prémio de Macau está agora nas vossas mãos. Sentem-se preparados?
Temos uma “pool” de recursos humanos do mais especializado que há; os que vieram do antigo gabinete do Grande Prémio e os que já cá estão e que beneficiaram do tal processo de formação que levou aos jogos. Tenho a certeza que o 63º Grande Prémio vai ser um grande sucesso.

E a imprensa? Há várias queixas do tratamento no Grande Prémio…
Já tomei nota. Vocês vão ver as diferenças. Eu sei que as instalações são insuficientes mas o tratamento vai ser diferente. De facto, o assunto estava maltratado. Logo a começar pela alimentação. Quem ali trabalha o dia todo precisa de outro de tipo de apoio. De resto, estamos receptivos a sugestões.

A integração no Comité Olímpico Internacional é um assunto encerrado?
Não. Tem de ser trabalhado constantemente mas em “low profile”. O antigo presidente fechou-nos a porta mas esperamos que este tenha outra visão das coisas. Parece mais aberto do que o anterior pelo que não devemos perder a esperança. Em que termos, vamos estudar. Membros efectivos ou não, é pouco importante. O que queremos é participar nas provas. Ainda acredito no dia em que vamos ver os nossos atletas na marcha Olímpica.

E quanto à organização de grandes provas internacionais como os Jogos de 2005? Há planos nesse sentido?
Tudo é possível. Mas não há planos. Como sabem, há menos eventos desse género. Os Jogos da Ásia Oriental desapareceram e depois que sobra? Para os Jogos Asiáticos não temos estrutura, nem vamos ter. Para fazer o mesmo não vale a pena. Tem de ser algo com mais impacto. Estamos atentos a eventos que Macau nunca tenha organizado.

De que tipo?

Provas de modalidade única. Um campeonato de atletismo, provas em recinto coberto como voleibol, basquetebol… temos tantos pavilhões.

Há planos?

Não há planos. Da nossa parte, claro que não há planos. As associações têm de desenvolver os processos de candidatura, não nós. O ID apoia mas as associações têm de ter a iniciativa. As pessoas ainda estão no processo do ID ter de fazer tudo… mas hoje em dia não é assim. Nós não nos podemos substituir às associações.

Há falta de iniciativa das associações?
Numas sim, noutras não. Mas temos de ser claros: qual é a associação de Macau com capacidade para organizar um mundial? Nenhuma, ou muito poucas.

De Futsal?…
Pode ser, já organizámos o asiático mas depois a associação não pegou mais no assunto. Também lancei a proposta ao Venetian, a ideia de organizar um Troféu Mundial por convites…

E o que aconteceu?

Ninguém acreditou no projecto. Podia ser a nossa versão do Rugby 7. Um evento destes no Venetian? Durante três dias?… Ia ser uma festa.

Porque não se faz no Dome?
Pode ser mas alguém tem de ter a iniciativa, não nós. As pessoas têm de mudar a cassete. O Instituto tem mais que fazer. Primeiro devemos salvaguardar os interesses locais: promover o desporto para todos e a saúde pública que antes não fazíamos. Não podemos manter a mentalidade de há 20 anos. Os tempos mudaram, a política mudou. Podemos incentivar a associação e já o fizemos. Falámos varias vezes com vários responsáveis do Venetian e ninguém quis saber… Isto é um evento caro e não pode ser sempre o Estado a pagar tudo.

Mas os casinos dizem que já pagam os impostos…
Não é bem assim. Está no contrato. Para além dos 40% eles sabem que têm de promover a diversificação do entretenimento. E vai ser um assunto a ter em conta para a renovação dos contratos. Por isso, no caso do Venetian, eles não param de fazer eventos. Mas depois sai boxe… Eu até percebo… tem impacto em Las Vegas mas para nós pouco diz. Eles têm de fazer um “branding” para Macau. Têm um pavilhão de 15 mil lugares… maior do que o Dome.

Por falar em Dome, podemos chamá-lo de elefante branco?
Não. Está a ser usado. Há muitas modalidades a treinar lá.

Mas não é uma instalação cara demais para treinos?
Quando se construiu pensou-se na festa, não no futuro. Bem pensado e tinha características de multiusos mas não foi o caso. Tivemos de o adaptar para treinos, temos bancadas que só atrapalham… mas é muito importante para Macau como para acolher as celebrações da passagem de soberania a cada cinco anos.

Quanto custa manter o Dome por mês?
Cerca de um milhão.

Não é dinheiro a mais para festas e treinos?
A manutenção de instalações é sempre cara. No caso, a festa de cerimónia de passagem de soberania necessita de um mês de preparação. Quanto custaria alugar o Venetian durante esse período? Macau precisa de um lugar para estes eventos sem pedir favores a ninguém. Além disso, não são apenas treinos, também é utilizado pelo público.

E a pista de gelo?
Está arrumada. Não serve. Foi uma má ideia. A humidade gerada ia dando cabo da estrutura e tivemos de parar. Para além disso, imagine, cá fora estão 40 graus e a pista tem de estar a menos cinco. Só para baixar a temperatura do espaço era um consumo de energia absolutamente incomportável.

Como avalia o legado de Manuel Silvério?
Foi um dos pioneiros na criação do ID e liderou o desenvolvimento desportivo até chegar a presidente. Trouxe os jogos da Ásia Oriental e preparou-nos. Deu um grande contributo até aos jogos. Mas depois as coisas seguiram noutro sentido por causa do vazio que referi na área do Desporto Para Todos.

Com o Grande Prémio surgem também a os subsídios dos pilotos locais. Existem queixas sobre a ponderação de resultados, argumentando que valorizar o GP em 60% por contrabalanço com as provas internacionais é demais. Qual a sua posição?
Primeiro ponto: os pilotos têm de perceber que a prova mais importante tem de ser a de Macau. O subsídio vem de Macau. A carreira internacional é uma actividade profissional…

Mas o piloto pode ter azar…
É um subsídio. Tem normas. Foi discutido pelas partes envolvidas na decisão. Os pilotos têm de demonstrar que são bons nesta prova. Nós somos o único governo no mundo a apoiar pilotos. Até acho que estamos a dar demais. Um piloto leva um milhão, dois… e os outros? Há atletas que suam todos os dias e não levam tanto. O desporto automóvel é um luxo e eles têm de perceber que não são a prioridade. Podemos discutir os 60% e passar a 50 mas uma coisa é certa: o GP de Macau vai ter de continuar a contar mais do que as outras provas.

Há cada vez mais interessada na prática de Skate. Onde estão as rampas dos Asiáticos Indoor?
Não sei. Nalgum armazém, mas também não teríamos um espaço para as montar. De facto, há para aí uma dúzia de pessoas que estão interessadas e vieram falar connosco. Dissemos-lhes para montarem uma associação mas nunca mais apareceram, não querem assumir. Têm de ser os privados a regulamentar a actividade, não somos nós. Estamos dispostos a apoiar mas tem de haver iniciativa.

E quanto à ginástica. A China tem das melhores atletas do mundo. Também se diz termos equipamento arrumado algures.
Não é bem assim. Foi adquirido para a inauguração do fórum e foi sendo utilizado em diversas ocasiões, mas hoje está desactualizado.

Há planos para desenvolver a ginástica ?
Há cerca de três anos, o deputado Si Ka Lon, que está à frente da Associação de Ginástica, veio falar connosco pois queria dar um grande impulso à modalidade. Achámos muito bem – mas atenção porque quem dá a formação básica, à ginástica infantil, somos nós – e dissemos que poderíamos continuar a assegurar a base mas o resto teriam de ser eles. Concordou. Nessa altura ainda tínhamos a esperança de contarmos com pavilhão de Mong Há – não veio a acontecer por razões que são públicas – e propusemos-lhes que arranjassem um espaço. Disse-nos que ia tentar um num edifício industrial e nunca mais apareceu.

E o ID apoiava o aluguer do espaço?
Claro que sim. Comprometemo-nos a pagar o aluguer.

Para que vai servir o Fórum?
Este ano herdámo-lo com alugueres já marcados até Novembro. Depois vai servir para dar condições mais dignas às competições de andebol, voleibol e basquetebol que têm falta de espaços.

Os clubes de futebol queixam-se de falta de condições, do mau estado dos campos, sugerem a substituição dos relvados por sintéticos. Qual a vossa posição?
Estamos a propor à Universidade de Macau a criação de um novo relvado sintético e a negociar o relvado que eles já detêm mas, no caso deste, parece-me que só nos vão dar durante algumas horas porque também precisam dele.

E substituir os relvados por sintéticos?
Não. Como dirigente desportivo não posso defender isso. Temos de os preservar. Se quisermos ter aqui um jogo a sério com equipas internacionais temos de ter relvados. Criar novos relvados artificiais, isso sim, estamos a tentar.

Há clubes que entendem não se justificar tantas divisões no futebol. Faz sentido reduzir?
Um certo sentido. Já houve redução há uns 15 anos atrás. Mas se cortarmos a 3ª divisão estamos a marginalizar a maioria dos jogadores. Se calhar até são os que vão ver os jogos.

Porque é que as equipas de futebol de 11 têm de participar na bolinha para acederem ao futebol de 11?
Isso vai ter de perguntar à associação.

E fará sentido integrar campeonatos de Macau nos da China?
Seria um erro político. Os nossos campeonatos são reconhecidos pelas organizações internacionais, portanto não faz sentido deixarmos os nossos campeonatos para participarmos nos dos outros.

Que legado gostava de deixar no desporto de Macau?
Estruturas de apoio aos atletas. O primeiro programa que lancei foi o de apoio aos atletas de elite e de formação para os profissionais reformados para que eles possam dedicar-se ao desporto com um plano de retirada. Neste, inclui-se formação académica integral com pagamento de propinas (100 mil patacas) para além da manutenção do subsídio mais alto como atleta profissional enquanto durar o período de formação académica.

Qual o seu desejo para o desporto de Macau ?

Que os nossos atletas tenham as mesmas condições que os lá de fora. O plano de apoio para os prémios, por exemplo, mudou. Foi elevado para o dobro, mudámos o escalonamento e equipáramos os prémios entre paralímpicos e os outros. Outra novidade é que os atletas medalhados podem nomear não apenas o seu treinador, que já recebia, mas também os da formação que os ajudaram na sua evolução.

As pessoas de Macau gostam de desporto?
Gostam mas há falta de espírito de sacrifício. Eu vejo os atletas de Hong Kong com sucesso porque dão tudo, porque se sacrificam, mas os nossos, às vezes, desistem a meio. É o ambiente da terra, o facilitismo.

4 Fev 2016

José Carlos Seabra Pereira | Professor universitário e crítico literário

Foi hoje apresentada no IPM a obra “O Delta Literário de Macau”, que analisa as letras portuguesas que por aqui têm sido produzidas. José Carlos Seabra Pereira, que recentemente recebeu o Prémio Jacinto Prado Coelho, é o autor de uma obra que relança o debate sobre a escrita local e o seu lugar na literatura lusófona

[dropcap]V[/dropcap]ai hoje lançar este tomo sobre a literatura de Macau. Mas (desculpe a brusquidão) existe uma literatura de Macau?
Existe claramente uma literatura em Macau. Quando dizemos “literatura de Macau” complicamos a questão porque se levanta uma perspectiva de identidade. Há uma literatura identitariamente macaense ou não? É um problema difícil de discutir e tem sido muitas vezes a desculpa para a ausência de uma análise mais desenvolvida da literatura que neste trabalho abordo. Eu não quis enredar-me excessivamente nessa questão.

No seu prefácio faz uma distinção entre a literatura que é inspirada, produzida e reconhecida em Macau mas que não é reconhecida em Portugal. No entanto, neste livro coloca autores que são, claramente, reconhecidos em Portugal.
Há sempre uma fronteira fluida. Existem autores em que é difícil estabelecer essa distinção mas noutros casos é fácil verificar que há autores do cânone da literatura portuguesa que, ou passaram por Macau ou porque estiveram cá durante algum tempo, escreveram em Macau ou introduziram elementos de Macau na sua ficção narrativa ou nos seus poemas líricos. Mas depois, para além desses textos, não têm nada a ver com a dinâmica do campo literário em Macau. Aqui introduzo o conceito de Pierre Bourdieu do “campo literário”. Procurei que fosse levados em devida conta os autores que estão perfeitamente integrados nessa dinâmica local, sem que isso implique, desde logo, um juízo de valor a priori. Uns não são mais valiosos do que outros. No fundo, neste volume trato aqueles que são filhos da terra ou radicados em Macau. Há escritores destes que mereceriam uma outra atenção da parte da literatura portuguesa e que acabam por não a ter. Poderiam alguns, contados pelos dedos de uma mão, claramente fazer parte dos manuais da literatura portuguesa e não fazem. Isso é injusto? Sim, mas é assim. Por outro lado, isso também se reflecte nas obras dos autores que aqui analiso como sendo de Macau, quer do ponto de vista temático, quer do ponto de vista formal. Não se trata de aqui ter nascido ou ser de origem macaense (outros vieram de Portugal e por aqui ficaram): o fundamental é ser aqui que eles se manifestam como escritores, aqui são reconhecidos como escritores; nalguns casos é aqui que eles próprios se reconhecem como escritores e é aqui que são objecto de edição, eventualmente de crítica, etc..

20012016-1Coloca, por assim dizer, autores muito diversos no mesmo saco.
Confesso francamente que para as pessoas de Macau lerem de uma forma aberta e compreensiva tudo aquilo que estariam prontas para ir procurar sobre autores contemporâneos locais, era preciso que antes não fossem como que afastadas por um gesto meu que tivesse erradicado certos autores que estariam à espera. Quem ler o livro verá a prudência de matizes que eu ponho quando abordo a obra de Camões no contexto de Macau ou como falo da questão do exótico em Wenceslau de Moraes ou da Maria Ondina Braga. Quero evitar uma reacção preconceituosa, motivada pela ausência de certos autores ou certos temas.

Peguemos no caso mais paradigmático de todos: Camilo Pessanha. Considera-o um autor de Macau? Faz parte da literatura de Macau?
O caso dele – como outro caso aqui no livro, com o século mais adiantado, que é o de Maria Ondina Braga – tem que ser considerado dos dois lados.

Mas não podemos considerar uma literatura portuguesa sem um topos determinado e localizado na Europa?
Podemos. Esta foi uma perspectiva que eu adoptei por me parecer interessante para Macau e por ser um trabalho sucessivamente adiado.

O seu trabalho parece-me importante por fixar Macau, no nosso tempo, como um local de produção e existência de uma literatura portuguesa.
E que vai evoluindo na sua relação com as outras literaturas, sobretudo euro-americanas. Houve alturas de maior desfasamento e retardamento, talvez pela distância e as dificuldades de comunicação, e outras alturas ao contrário, de perfeita sintonia e actualidade em relação ao que são os vectores fundamentais da cultura literária. É o caso do Camilo Pessanha que, ao mesmo tempo, consegue esta maravilha que é ter marcas especificamente decorrentes da sua vida aqui, no Extremo Oriente, em Macau, e ao mesmo tempo ser um maiores poetas simbolistas de todo o mundo, da literatura universal. Fechá-lo no cânone da literatura portuguesa seria empobrecê-lo.

Estamos aqui em Macau, numa situação de fronteira em relação à literatura portuguesa. Será uma fronteira limitada ou a literatura local poderá ter algum papel no contexto da lusofonia, que não está ainda bem previsto?
Situo-me nessa segunda hipótese. Hoje usamos muito o termo fronteira. Num plano rural, os extremos são o que separa uma propriedade da outra mas também é aquilo que liga. Isso também acontece no plano da cultura e em particular na evolução histórica da literatura. Hoje achamos que a existência de fronteiras é um bocado artificial…

Passámos do exotismo para a dissolução do autor. Ou seja, de um autor que mantém a sua identidade e descreve o exótico para um autor mais preocupado com as transformações que se operam em si mesmo.
E tudo aquilo que temos vindo a aprender, quer através de grandes pensadores, quer das circunstâncias da globalização, sobre identidade e alteridade, derrubaria qualquer tentativa de manter o conceito estanque de fronteira porque verificamos que estamos constantemente a encontrar, na experiência de cada um de nós e sobretudo na dos grande criadores artísticos, esse contacto do Eu com o Outro, mas mais: desde Pessoa e tantos outros, o Eu foi aprendendo a encontrar o Outro de Si mesmo. O século XXI veio acrescentar a isto que o Outro de Si mesmo se encontra na relação dialógica com a Alteridade.

Seria como dizer: “Sou mais estranho a mim próprio que um Chinês me é estranho”. Mas, afinal, o que tem a literatura de Macau de especial para oferecer diferente das outras literaturas lusófonas? O que encontrou que a pode distinguir?
Noutras épocas, em que havia um défice de poliglotismo cultural, perfeitamente explicável pelas circunstâncias, o que Macau trazia de interessante era uma espécie de tensão entre certas linhas de continuidade quase forçosamente tradicionalistas e, ao mesmo tempo, certos tropismos de diferença que a situação de tão longe da Europa e tão longe de Portugal e tão próximo da China obrigavam. Em segundo lugar, mais recentemente, em que existe mais facilidade de comunicação, por ser outro tipo de pessoas que renovam o substrato de onde saem os escritores de Macau, já oferece outras coisas, mas que podem ser também a assimilação de linhas fundamentais da cultura chinesa e também da sua poética mas num discurso literário em construção aberta com um substrato cosmopolita muito grande.

20012016-4É bom saber que não se trata apenas de uma literatura do exotismo…
De maneira nenhuma. Creio que não escondo que a literatura de Macau do século XX, durante algum tempo, apesar das qualidades inegáveis dalguns dos escritores, sofria de um certo arrastamento temático e formal, em relação ao que era uma evolução mais acelerada dos padrões literários na Europa e na América.

Falta de informação, de comunicação…
O contexto era muito diferente. No princípio do século XX, as notícias pregnantes sobre as correntes modernistas era quase nula. Arrastava-se uma literatura, que dentro do género era bem feita, mas de um neo-romantismo lusitanista, etc.. Depois, há um realismo que embora venha mais tarde do que na Europa, apesar de tudo já não está tão desfasada. A partir de Deolinda da Conceição nós temos uma vertente de realismo social que começa a acertar o passo com a qualidade de estar a reagir a condições de vida, histórico-sociais, particulares.

Deolinda da Conceição e Senna Fernandes…
Sim e também alguns aspectos da ficção narrativa de Rodrigo Leal de Carvalho. Senna Fernandes evolui e desdobra para outros aspectos que, não sendo menos locais, porque é também uma espécie de etnografismo literário, acaba por ter outras qualidades e outro alcance.

O etnografismo foi sempre uma grande tentação, sobretudo para o escritor que vem de fora.
Sim. Mas, a partir dos anos 80, há cada vez maior proximidade entre os motivos inspiradores e mesmo certos problemas do discurso literário. A literatura de Macau não está a copiar isso mas a reflecti-los e interpretá-los à sua maneira. Há uma transformação maior, com os inerentes riscos, também no plano do significante, quer nas estruturas de composição, quer no estilo, na linguagem e no gosto de uma certa experimentação formal, que nunca aqui se transforma num mero jogo formalista mas é a tentativa de renovar a criação de sentido através de novas formas. O estranhamento, a quebra das rotinas, algo que aparece muito bem nos poetas que se vêm destacando em Macau. Esta literatura torna-se cada vez menos previsível.

Nesse sentido, podemos falar de uma “literatura de Macau”, mas será difícil falarmos de um fundo comum aos autores que escrevem hoje. Tal como acontece em Nova Iorque ou Lisboa…
É verdade. No período que vai de Senna Fernandes a Rodrigo Leal de Carvalho, por contraste com outro período que poderíamos marcar com a emergência da Fernanda Dias, havia um fundo comum. Talvez fosse necessário, havia uma lacuna, um vazio a preencher. [quote_box_right]“Há escritores que conseguem, não fazendo doutrina, mas através da própria ficcionalidade da sua obra lírica ou narrativa, figurarem aspectos da condição humana. Grandes temas como o abandono, a solidão, a resiliência, etc., aparecem nos grandes narradores de Macau”[/quote_box_right]
Esses autores, mais na ficção do que poesia, encontraram formas de dar vida ficcional a realidades históricas e sociais peculiarmente de Macau. Tanto Henrique de Senna Fernandes, Leal de Carvalho e Maria Ondina Braga são criadores de grandes personagens. Podemos esquecer boa parte do enredo, mas há certas personagens que são fundamentais. Essa é a grande tradição do romance, antes do Nouveau Roman francês vir complicar as coisas: contar bem uma história e criar personagens que ficam indeléveis na memória literária. Pode-se ler o que distingue melhor o Senna Fernandes sobre a categoria da resiliência, por exemplo. Diz-se que são umas histórias de amor que acabam sempre com um final feliz. Mas, indo mais fundo, o que a gente vê é que há ali grandes fenómenos que mostram uma vertente social, comunitária, por um lado, mas ao mesmo tempo são muito individualizados, num constante processo de frustração, degradação, e depois de recuperação não por reconversão a padrões alheios, mas pela tal resiliência. De recuperação do que era o fundo próprio daquele ser. Incluindo o papel das energias amorosas. Se vamos para a Maria Ondina Braga é outro problema. São as vidas vencidas e a questão do tempo interior.

Está assim a dizer, de algum modo, que cada autor expurga os seus fantasmas no contexto de Macau… e não retrata propriamente Macau.

As duas coisas. Um bom autor faz as duas coisas. O Rodrigo Leal de Carvalho vai mais pelo lado do humor, de uma certa bonomia, uma certa tolerância. Retrata situações humanas, por vezes lancinantes, mas sempre com uma patine de humor que evita o patético.
Gostava ainda de falar do etnografismo lírico para o qual alguns poetas foram arrastados, o que se compreende. Há um valor de antropologia literária que ultrapassa isso. Há escritores que conseguem, não fazendo doutrina, mas através da própria ficcionalidade da sua obra lírica ou narrativa, figurarem aspectos da condição humana. Grandes temas como o abandono, a solidão, a resiliência, etc., aparecem nos grandes narradores de Macau. Há um património literário que não pode ficar contido nas fronteiras da comunidade de leitores de Macau.

Entende que a literatura de Macau pode ter um lugar fora desta cidade?
Claramente. Vai crescendo uma representação e figuração simbólica desta realidade, que hoje nos parece evidente, de Macau como espaço de multiculturalismo. Há muitas formas de estar instalado no multiculturalismo. Há um em que as comunidades diferentes têm que partilhar o mesmo espaço mas depressa buscam fora das obrigações do quotidiano redutos com fronteiras muito marcadas em que não há nenhuma fascinação profunda pelo Outro, nem um esforço por um diálogo e interacção. Até se passar depois para um multiculturalismo mais recente em que a própria evolução sócio-económica obriga a que a separação muito nítida (cidade cristã-cidade chinesa) se rompe e começa a haver espaços de interacção. Estamos, contudo, ainda longe de se passar do limiar da tolerância para uma política de reconhecimento. E de reconhecimento activo. Tarda a aparecer na literatura, tal como a diferença entre multiculturalismo, que pode ser estático, e interculturalidade, que é diferente.

Macau é constituído por camadas que pouco se tocam.
Eis uma modalidade pobre de multiculturalismo. A interculturalidade é mais exigente. Em “A Trança Feiticeira” encontramos uma experiência de interculturalidade, com todas as dificuldades que isso levanta aos protagonistas.

Bem, uma experiência muito sui generis. Não a mais comum…
Talvez a partir de Fernanda Dias as coisas se ponham de maneira diferente.

A perspectiva feminina é bastante interessante desse ponto de vista. A perspectiva masculina é, fundamentalmente, colonialista, na medida em que se baseia na perspectiva do macho ocidental, com dinheiro e uma sexualidade facilitada no Oriente. Isso está na literatura, se bem que escondido atrás de alguns pruridos… Fernanda Dias dá-nos outra perspectiva.
Quando havia alguma miscigenação, era sempre de homem caucasiano com mulher chinesa. Em Fernanda Dias, já aparece, de forma relativamente velada, simbolizada, mas insofismável, a relação de desejo entre a mulher de matriz europeia com o homem chinês. Isso altera as coisas e perturba o status quo até então estabelecido. Há um estádio da miscigenação que podia ficar como uma nova forma de exotismo. A literatura de Macau acrescenta a mestiçagem no sentido cultural. Uma das coisas que me atrai é não só essa mestiçagem cultural mas uma certa crioulização da língua. Vejo isso em termos de cultura e em termos de língua. A língua literária do Senna Fernandes, por exemplo: há certos passos que nos espantam. Do pitoresco isso passou para uma coerência orgânica.[quote_box_left]“O caldo de culturas de Macau é muito rico o que dá maior responsabilidade aos autores e aos editores”[/quote_box_left]

Vale a pena que esta literatura seja lida e divulgada em Portugal e nos países lusófonos?
Claro que sim. Falemos da literatura de Macau em língua portuguesa. Começaria por responder através de uma contra-prova. A Maria Ondina Braga, embora não tanto como ela merecia, acaba por encontrar um público de bons leitores e atenção de ensaístas e universitários. A literatura de Macau, quer a que está a produzir agora, quer antes na segunda metade do século XX, merece encontrar uma ressonância quer em Portugal quer noutros países. Era importante uma política de tradução. Provavelmente, em Portugal, nos círculos onde se trata da literatura, a literatura de Macau talvez seja prejudicada pela evidenciação das literaturas africanas para não falar da literatura do Brasil. Há factores político-económicos. Acontece o mesmo com a literatura de Goa ou Timor. O caldo de culturas de Macau é muito rico o que dá maior responsabilidade aos autores e aos editores.

29 Jan 2016

Roy Choi, membro da Novo Macau e fundador da Macau Concealers

[dropcap style=’circle’]T[/dropcap]em estado envolvido numa série de actividades de promoção de um regime democrático em Macau. O que mais o marcou desde o início dessa luta?
A manifestação contra o Regime de Garantias de 2014, sem dúvida. Foi um dos eventos que mais influenciou esta minha procura de conhecimento e de informação. Outra iniciativa foi o movimento do ‘referendo civil’ que não organizei, mas que apoiei. Eu e o jornalista Leung Ka Wai fomos detidos por usar o símbolo da PJ numa publicação. Esse foi também um momento marcante, pelas circunstâncias em que teve lugar.

Olhando para trás, como vê a sua detenção?
Acho natural que o Governo e as autoridades tenham querido combater a realização do ‘referendo’, mas as pessoas assistiram a tudo com muita atenção, não só em Macau como em Hong Kong. Foram dois sítios onde o movimento teve muito eco. A minha detenção foi feita numa altura essencial do movimento, mesmo no fim, antes dos resultados serem conhecidos. Acredito que a detenção já estava prevista, mas na verdade, apenas veio trazer mais expressão aos resultados porque as pessoas viram que as autoridades estavam a reprimir a acção. O caso não chegou sequer a ser retirado do Ministério Público, ainda que a investigação já não esteja a decorrer há um ano. Além de mim, vários outros membros da ANM também foram considerados suspeitos neste caso e em vários outros que dizem respeito a acções de crítica ao Governo. Já fui detido, considerado suspeito, mas nada me aconteceu. Acho estranho que o caso não tenha ainda sido encerrado, mas também que ainda nada me tenha acontecido – a condenação ou algo do género. Isto é perseguição política e intensificou-se bastante com o ‘referendo’. TA03

Como é que analisa a perspectiva social sobre este caso?
O mais importante é um dia conseguir sentir a aceitação da população, ganhar essa aceitação. Sinto que correspondo às necessidades da sociedade, porque quero promover os ideais e regimes da democracia. No entanto, entendo que a sociedade local está a dar mais atenção aos problemas sociais, a assunto relacionados com as próprias pessoas. No que respeita a assuntos políticos e à democracia, não vejo as pessoas muito atentas. Têm conhecimentos muito básicos. Além disso, o nível de conhecimento dos direitos e deveres das pessoas também é extremamente reduzido. Tendo isto em conta, às vezes é difícil promover este tipo de ideias porque as pessoas sentem que não são assuntos que lhes digam respeito. Poucas pessoas entendem ou aceitam as nossas ideias, é esta a maior dificuldade com que me deparo.

Como é possível aumentar esse grau de aceitação das pessoas?
Um bom exemplo é usar o meio digital para chamar a atenção, como plataformas de Facebook da Macau Concealers e da Associação Novo Macau. Aqui e nos websites não falamos apenas sobre democracia e seus benefícios, mas também sobre os problemas da sociedade. Inicialmente, o nosso foco era criticar determinadas figuras através do Facebook, satirizando discursos, fotografias, letras de músicas, aproximando assim a política da população. Em Macau, este método funciona porque promove conhecimento sobre assuntos sérios de formas mais relaxada, engraçada. Daí foi apenas um passo para aquilo que agora fazemos: notícias realmente verdadeiras, com sentido. E as pessoas estão efectivamente mais atentas ao que fazemos. Antigamente, este modelo não ia fazer sentido, porque as pessoas preferiam ler notícias em jornais de Hong Kong. Através do que fazemos hoje, tentamos mostrar às pessoas as causas para as injustiças que têm lugar no território. Os valores e o pensamento geral da população ainda não estão ao nível que desejávamos, de aceitação de ideias de maior liberdade e igualdade.

Faz em Agosto dois anos desde o ‘referendo civil’, no qual as pessoas afirmaram que não confiavam em Chui Sai On. Acredita que esta tendência continua a ter expressão?
De uma forma geral, não creio que a população tenha muita confiança no poder de liderança e gestão de Chui Sai On. Recentemente com mais ênfase, com o suceder de vários acontecimentos. Chui é um Chefe do Executivo invisível porque não vemos qualquer trabalho efectivo com a sua assinatura, apenas os cargos abaixo dele fazem algo. Exemplo disso são os Secretários. Chui Sai On existe para cumprir funções protocolares. Um estudo recente feito em Hong Kong aponta para o crescimento, ainda que mínimo, da confiança das pessoas no líder da RAEM, mas não acredito que isto seja representativo de melhorias no seu desempenho. Significa apenas que Chui Sai On não se viu envolvido em problemas, o seu nome não surgiu na ribalta. TA13

E porque acha que Chui Sai On está a ter menos expressão enquanto líder?
Chui Sai On já não tem de se preocupar com um próximo mandato porque este é, à luz da lei, o último possível. É a recta final.

Já pensou em alguém que poderá ser o próximo líder do Governo?
Prefiro não fazer previsões.

Que balanço faz do desempenho dos Secretários?
Cada um tem o seu nível, mas de forma geral, acho que estão a fazer um melhor trabalho do que os anteriores. Quando se fala de desempenho, penso que são mais activos. Alexis Tam é teimoso porque só faz aquilo que quer. O Secretário quer apresentar demasiados resultados e ser considerado extraordinário, mas acaba por realmente não usar a opinião da população, simplesmente mostra que a pede. Quanto a Raimundo: inicialmente, duvidámos do seu eventual controlo pelo sector comercial, porque alterou uma série de dirigentes de pastas e departamentos, incluindo o director da DSSOPT. No entanto, com o tempo, fomos percebendo que não era bem assim, já que mostrou – por exemplo no caso do Pearl Horizon – ter pulso firme e uma posição determinada. Por outro lado, também desiludiu em algumas matérias, como a dos passes mensais dos parques, em que disse que ia acabar com eles, mas depois manteve [os já emitidos]. Lionel Leong é um governante discreto e por isso não creio ter muito a acrescentar sobre a sua performance. Já Wong Sio Chak é claramente íntimo do Governo Central: nasceu na China e tem boas relações com o Governo chinês. Isso faz-me ficar preocupado com a preservação dos direitos humanos na RAEM. No entanto, devo dizer que tenho notado um maior combate ao crime. No que respeita a Sónia Chan, devo dizer que é bastante diferente da Secretária anterior, ainda que também seja, como Wong, próxima do Governo Central. Está a retirar uma série de pessoal efectivo dos cargos da sua tutela, de pessoas que estavam na Administração desde os portugueses.

A Revolução dos Guarda-chuva teve um grande impacto em Hong Kong e até mesmo a nível internacional. Acha que se vai repetir?
Não, pelo menos não num futuro próximo. Foi, no fundo, uma derrota da parte dos organizadores e participantes. Já que prejudicou quem luta pela democracia e pela votação por sufrágio. É preciso ponderar os prós e contras deste tipo de iniciativas, perceber se isto realmente funciona. Acho que antes das próximas eleições para a Assembleia Legislativa da RAEHK nada do género se vai repetir.

Mas não foi positivo enquanto movimento de reivindicação?
Este movimento escalou de forma negativa muito rapidamente. Inicialmente, era uma iniciativa com sentido e bem estruturada. No final, deixou de ser uma coisa que fizesse sentido. Os manifestantes passaram de activos para passivos. A ideia de lutar pelo sufrágio universal transformou-se numa coisa negativa. Até os candidatos a deputados da AL deixaram de promover o sufrágio, como fizeram no início do movimento.

Discorda do que motivou as manifestações – o Governo Central escolher os candidatos antes da população poder votar num deles?
Discordo, como é óbvio.

E se essa proposta fosse feita em Macau?
Acho que, a ser oferecida uma proposta pelo Governo Central, terá a mesma natureza e modelo. Isto é aquilo que a China entende como sendo democracia. Deve ser mais fácil promover isto em Macau do que em Hong Kong, porque aqui as pessoas não são tão contra a China, mas continuo a não considerar que seja um modelo perfeito. Um dos dois deputados da ANM mostrou-se aberto a esta ideia, mas afirma que é preciso melhorá-la no futuro. Em princípio, não concordo, mas porque a minha prioridade é que a população se eduque mais em termos de política. É que mesmo que o Governo Central promova este modelo aqui, as pessoas não vão ter conhecimentos suficientes para saber o que fazer. Na verdade, este modelo não traz qualquer forma de sufrágio, porque a população pode exercer o direito de voto, mas continua a não ter poder de escolha.

Relativamente à questão dos livreiros alegadamente desaparecidos: que razões podem estar por trás disto?
O que eu entendo é que a livraria também funciona como editora de livros sobre escândalos de governantes do continente e os seus segredos. De facto, o Governo Central não fica satisfeito com a publicação deste tipo de matérias. A livraria em questão já existe há vários anos. Isto é claramente uma ameaça para impedir que sejam publicados mais livros deste teor. Isto assemelha-se a situações que já aconteceram na China, de pessoas que criticaram o Governo e “desapareceram”. O maior problema nisto tudo é que este livreiro encontra-se fora das fronteiras e por isso devia ter mais liberdade de expressão, mas não. Isto mostra que a censura já ultrapassa fronteiras, violando o princípio de Um País, Dois Sistemas. As autoridades da China supostamente levaram o livreiro para lá, mas esta não é a única forma de coagir alguém. TA10

Isto pode acontecer em Macau?
Até agora ninguém faz a edição e publicação de obras deste teor em Macau. Ainda assim, há um certo nível de risco porque a nova geração de pró-democratas é diferente da anterior. Hoje em dia há um maior grau de crítica aos governos, não só mais forte, mas mais directa e isso antigamente não acontecia. Em casos em que achamos que os direitos humanos estão a ser violados, nós – geração mais nova – somos mais abertos.

Já sofreu na pele alguma perseguição do Governo Central?
Muitos de nós, incluindo Jason Chao, fomos contactados por inspectores do departamento de Segurança Nacional da China. Parte destes agentes falaram connosco enquanto autoridades, mas outros estavam à paisana, ainda que nos tenhamos apercebido. Há quem tenha mesmo fingido ser jornalista, professor ou investigador. O departamento marcou uma reunião individual com cada membro da ANM para saber as actividades que temos desenvolvido. A resposta que demos é que todas as informações da Associação estão disponíveis a título público. As visitas destes agentes aconteceram com muito mais frequência na altura da Revolução dos Guarda-Chuva.

Quando foi a última visita?
No ano passado, na altura da votação para a Assembleia Legislativa de Hong Kong.

15 Jan 2016

K’ang-Hsi, imperador da China, revela segredo do sucesso da sua governação

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]hegou ao poder muito novo e há quem diga que existiram vários sinais que previam a sua coroação e reinado. Quer dizer aos leitores de Macau algo sobre isto?
O meu nascimento foi tudo menos miraculoso – nada de extraordinário aconteceu enquanto cresci. Cheguei ao trono com oito anos. Nunca permiti que se falasse de influências sobrenaturais do género das que se encontram registadas nas Histórias: estrelas da sorte, nuvens auspiciosas, unicórnios e fénixes, a erva chih e outras bênçãos, ou queimar pérolas e jade em frente do palácio, ou livros celestes enviados para manifestar a vontade do Céu. Tudo isto não passam de palavras vãs e não posso ir tão longe nas minha presunção. Limito-me a viver cada dia de uma forma normal concentrando-me em governar bem.

É fácil, durante toda a vida, exercer constantemente o poder?
Dar e tirar a vida. São esses os poderes do imperador. Ele sabe que os erros dos funcionários administrativos em departamentos do governo podem ser rectificados mas que um criminoso que foi executado não pode ser ressuscitado. Assim como uma corda cortada não pode de novo ser unida. Sabe, também, que por vezes as pessoas têm de ser chamadas à moralidade através do exemplo de uma execução. Em 1683, depois da captura de Taiwan, discuti com os sábios da corte a imagem do 56º hexagrama do Livro das Mutações, “Fogo na Montanha”. A calma da montanha significa o cuidado que se deve por na imposição de penas; o fogo move-se rapidamente, queimando a erva, tal como os processos, que devem ser resolvidos com celeridade. A minha leitura é que um regente necessita ao mesmo tempo de clarividência e cuidado no castigar. A sua intenção deverá ser castigar de forma a evitar a necessidade de mais castigo.

Kangxi_Emperor2No seu tempo a corrupção era um problema. Quer falar-nos de alguns casos mais relevantes?
Hu Chien-ching era um subdirector do Tribunal de Adoração Sacrificial cuja família aterrorizava a sua região natal em Kiangsu, apoderando-se de terras, mulheres e filhas alheias e assassinando pessoas depois de as acusar falsamente de roubo. Quando finalmente um cidadão vulgar conseguiu demonstrar a sua culpa, o Governador considerou o caso longamente e o Conselho de Castigos recomendou que Hu fosse demitido e exilado por três anos. Eu, por outro lado, ordenei a sua execução, com o resto da família, na sua terra natal para que todos pudessem observar a minha visão de tal comportamento. O cabo Yambu foi condenado à morte por alta corrupção nos estaleiros navais; não só concordei com a pena como enviei o oficial da guarda Uge para supervisionar a decapitação, ordenando que todo o pessoal dos estaleiros, dos generais ao mais baixo soldado, se ajoelhasse em armadura completa e ouvisse o meu aviso de que o seu destino seria a execução se não pusessem fim à sua perfídia.

Mas a pena de morte… Hoje em dia há quem seja contra…
Em tempo de guerra deve haver execuções para castigar a cobardia ou a desobediência. A penal capital da morte lenta deve ser aplicada em casos de traição, tal como o Código Legal determina.

Está então à vontade quando envia um homem para a morte?
De entre as coisas que considero desagradáveis, nenhuma outra é pior do que dar o veredicto final sobre as sentenças de morte que me são enviadas para ratificação depois das sessões de Outono. Os relatórios de julgamento devem ser todos verificados pelos Secretários Superiores, no entanto, encontram-se ainda erros de caligrafia, ou mesmo passagens inteiras incorrectamente escritas. Isto é indesculpável quando se lida com a vida e a morte. Apesar de, naturalmente, me ser impossível examinar cada caso em pormenor, tenho, ainda assim, o hábito de ler as listas no palácio todos os anos, verificando o nome, registo e estatuto de cada homem condenado à morte e a razão por que lhe foi aplicada tal pena. Depois, verifico de novo a lista na sala de audiências com os Secretários Superiores e o seu pessoal, decidindo quais podem ser poupados.

Quando julga alguém, que princípios aplica?
É um bom princípio procurar sempre os aspectos bons de uma pessoa ignorando os maus. Quando se suspeita constantemente das pessoas estas acabam por suspeitar de nós.

Mesmo quando se trata de Chineses (han)?
Tentei ser imparcial entre Manchu e Chineses, não os separando nos julgamentos.

Mas confiava plenamente nos seus oficiais chineses?
Avisaram-me para não nomear o Almirante Shih Lang para liderar a campanha contra Taiwan por ter servido antes a Dinastia Ming e tambémo rebelde Coxinga e, logo, poder revoltar-se se lhe desse navios e tropas. Mas uma vez que os restantes almirantes Chineses asseguravam que Taiwan nunca seria tomada, chamei Shih Lang para uma audiência e disse-lhe pessoalmente: “Na corte dizem que te revoltarás quando chegares a Taiwan. É minha opinião que enquanto não fores enviado a Taiwan a ilha não será pacificada. Não te revoltarás, garanto-te.” Shih Lang capturou Taiwan num ápice e provou ser um oficial leal. Apesar de arrogante e desprovido de instrução, compensou esses defeitos pela prontidão e ferocidade das suas capacidades militares. Os seus dois filhos têm-me servido com distinção.

Qual a sua visão sobre a queda da dinastia Ming?
Passaram-se coisas absurdas durante os Ming: quando, no fim da dinastia, o Imperador Ch’ung-chen aprendeu a montar tinha dois homens para segurarem o freio, dois para os estribos e dois para o arreio de garupa – mesmo assim caiu mandando aplicar quarenta chicotadas ao cavalo e enviando-o para trabalhos forçados num posto militar. Do mesmo modo, quando uma pedra para ser usada na construção do palácio não passava na Porta Wu-men, Ch’ung-chen mandava aplicar-lhe sessenta chicotadas.

Alguma loucura… mas os seus ritos imperiais também exageram…
O imperador tem de suportar o elogio com que o cobrem e que enche os seus ouvidos e que não lhe é de melhor uso do que a chamada “medicina-restaurativa”. Essas banalidades evasivas asseguram o mesmo sustento que a pastelaria fina e rapidamente se tornam enjoativas.

A balofice, pelos vistos, não funciona consigo. E exageros intelectuais também não.
Se desejar, conhecer algo tem de o observar ou experimentar em pessoa. Se afirma conhecer algo com base em ouvir dizer, ou por o descobrir num livro, será motivo de riso para aqueles que realmente conhecem. Demasiadas pessoas afirmam conhecer as coisas quando, na verdade, nada sabem acerca delas. Desde a minha infância tenho procurado descobrir as coisas por mim mesmo em vez de fingir possuir conhecimento quando ignorante. Sempre que me encontrava com pessoas mais velhas inquiria acerca das suas experiências e recordava o que me diziam. Mantenha uma mente aberta e aprenderá coisas. Perderá as boas qualidades dos outros se apenas se concentrar nas suas próprias capacidades.

Para si, a experiência parece ser fundamental.
A nossa ideia de princípio deriva mais da experiência do que do estudo, embora devamos dedicar a mesma atenção a ambos. Afinal, muitas pessoas chamam antiguidades a velhos recipientes de porcelana mas se pensarmos em recipientes do ponto de vista do princípio sabemos que foram a dada altura feitos para ser usados. Apenas no presente nos parecem gastos e impróprios para deles bebermos e, por fim, acabamos por colocá-los nas nossas secretárias ou prateleiras, contemplando-os de quando em vez. Por outro lado, podemos alterar a função de um objecto e, portanto, alterar a sua natureza. Como fiz ao converter uma espada inoxidável que os Holandeses certa vez me ofereceram numa régua que mantinha sobre a minha secretária. Tal como o Jesuíta António Tomás observou, tratou-se de converter algo que transmitia medo em algo que proporcionava prazer. O raro pode tornar-se comum, como acontece com os leões e animais que os embaixadores estrangeiros gostam de nos oferecer e a que os meus filhos se acostumaram. Na guerra é a experiência da acção que conta. Os chamados Sete Clássicos Militares estão recheados de disparates sobre água e fogo, presságios e conselhos sobre o tempo, todos aleatórios e em contradição. Disse uma vez aos meus oficiais que quem seguisse estes livros nunca ganharia uma batalha.

Kangxi_EmperorFalou de um jesuíta. Vários frequentaram a sua corte. Aprendeu muito com eles, sobretudo na Matemática e Astronomia?
Apesar dos métodos Ocidentais serem diferentes dos nossos, podendo mesmo ser vistos como um seu melhoramento, há neles pouco de inovador. Os princípios da Matemática derivam todos do Livro das Mutações e os métodos Ocidentais são de origem Chinesa: a Álgebra – “A-erh-chu-pa-erh”– nasce de uma palavra Oriental.

Claro, tudo tem origem na China… Mas esses jesuítas tentavam conhecer a cultura chinesa.
Nenhum dos Ocidentais está realmente à vontade com a literatura chinesa – à excepção talvez do Jesuíta Bouvet, que leu muito e desenvolveu a capacidade de conduzir um estudo sério do Livro das Mutações. Muitas vezes não conseguimos impedir sorrir quando eles iniciam uma discussão. Como podem falar acerca “dos grandes princípios da China”? Por vezes, agem erroneamente por não estarem acostumados aos nossos hábitos, outras vezes são induzidos em erro por Chineses ignorantes – o enviado papal, de Tournon, usava caracteres mal escritos nos seus memorandos, empregava frases impróprias e assim em diante.

Estou a ver que ainda não esqueceu a Questão dos Ritos, na qual discordou com o Cardeal de Tournon.
Sobre a questão dos Ritos Chineses que podiam ser praticados pelos missionários Ocidentais, de Tournon recusou-se a falar, embora lhe tivesse enviado mensagens repetidamente. Concordei com a fórmula que os padres de Pequim estabeleceram em 1700: que Confúcio era honrado pelos Chineses como um mestre mas que o seu nome não era invocado em oração com o propósito de obter felicidade, promoções ou riqueza; que o culto dos antepassados era uma expressão de amor e recordação filial, cuja intenção não era obter protecção para o autor do culto e de que não havia a ideia de que ao erguer uma tábua ao antepassado a sua alma nela residia. Quando eram oferecidos sacrifícios aos Céus estes não eram endereçados ao céu azul, mas sim ao senhor e criador de todas as coisas. Se de Tournon não respondeu, o Bispo Maigrot fê-lo dizendo-me que o Céu é uma coisa material e não devia ser adorada e que se devia apenas invocar o nome de “Senhor do Céu” para mostrar a reverência apropriada. Maigrot não era somente ignorante da literatura Chinesa: não conseguia sequer reconhecer os mais simples caracteres chineses. No entanto, decidiu discutir a falsidade do sistema moral Chinês.

O Papa queria impor-lhe um representante, não é verdade?
Não compreendo o que quereis dizer com ‘um homem da confiança do Papa’. Na China, ao escolhermos pessoas não fazemos tais distinções. Alguns estão próximos do meu trono, outros a meia distância e outros mais longe. Mas a qual deles poderia confiar qualquer incumbência se houvesse a mais pequena falha da devida lealdade? Quem de entre vós se atreveria a enganar o Papa? A vossa religião proíbe-vos de mentir, aquele que mente ofende a Deus. O enviado respondeu: “Os missionários que aqui habitam são homens honestos, mas falta-lhes o conhecimento interno da Corte Papal. Muitos enviados de outros países convergem para Roma, sendo experientes em negociações e, por isso, preferíveis aos que aqui se encontram.” Então disse-lhe: “Se o Papa mandasse um homem de conduta impecável e dons espirituais tão excelentes quanto os dos Ocidentais que aqui estão agora, um homem que não interferisse com os outros ou os tentasse dominar, ele seria recebido com a mesma hospitalidade que os outros. Mas se dermos a um tal homem poder sobre os outros, como haveis solicitado, haverão muitas e sérias dificuldades. Encontrastes aqui Ocidentais que passaram quarenta anos connosco e, se mesmo esses ainda não têm um conhecimento perfeito dos assuntos imperiais, como poderia alguém tão recentemente transplantado do Ocidente fazer melhor? Ser-me-ia impossível dar-me com ele como me dou com estes. Precisaria de um intérprete, o que implica desconfiança e embaraço. Um tal homem nunca estaria livre de erro e, se fosse nomeado líder de todos, teria de suportar qualquer culpa incorrida pelos restantes e pagar o preço de acordo com os nossos costumes.”

A verdade é que Vossa Excelência nunca foi convertido ao catolicismo.
As suas palavras não eram diferentes dos mais tresloucados ou impróprios ensinamentos de Budistas e Taoístas, porque deveriam ser tratados de forma diferente?

Então se não acredita no Deus cristão, pelo menos acredita no destino?
O destino surge das nossas mentes e a nossa felicidade é procurada em nós mesmos. Daí serem feitas previsões a partir do curso dos planetas acerca do casamento e da fortuna, descendentes, carreira e o passar dos anos – no entanto, estas previsões não chegam muitas vezes a realizar-se na experiência posterior. E isto porque se não desempenharmos o nosso papel humano não poderemos compreender o caminho do Céu. Se o astrólogo diz que serás bem sucedido, poderás então dizer: “Estou destinado a sair-me bem e posso dispensar os estudos?” Se aquele afirma que enriquecerás, poderás sentar-te e aguardar a riqueza? Se te oferece uma vida livre de desgraça, poderás ser temerário? Ou ser debochado sem risco apenas por que diz que viverás muito e em saúde?

il_570xN.758050173_12idComo encara o seu reinado?
Estou a aproximar-me dos setenta e os meus filhos, netos e bisnetos são mais de 150. O país está relativamente em paz e o mundo está em paz. Mesmo que não tenhamos melhorado todas as maneiras e costumes e tornado toda a gente próspera e feliz, trabalhei com incessante diligência e intensa vigilância, nunca descansando, nunca ocioso. Durante décadas exauri todas as minhas forças, dia após dia. Como poderia tudo isso ser resumido numa frase de duas palavras como “trabalho árduo”?

Deixa uma extraordinária herança. Qual foi o seu segredo?
Todos os Antigos costumavam dizer que o Imperador se devia preocupar com princípios gerais mas que não devia lidar com pormenores. Não posso concordar com isto. O tratamento descuidado de um assunto pode trazer consequências nefastas ao mundo inteiro, um momento de distracção pode causar danos a todas as gerações futuras. A falta de atenção aos pormenores acabará por colocar em risco as nossas maiores virtudes. Por isso dedico sempre a maior atenção aos pormenores. Por exemplo, se negligenciar alguns assuntos hoje e os deixar por resolver, amanhã existirão mais assuntos para resolver.

Está portanto satisfeito com o seu desempenho?
Desfrutei a veneração do meu país e as riquezas do mundo. Não há objecto que não possua, nada que não tenha experimentado. Mas agora que atingi a velhice não consigo parar nem um momento. Por isso, considero o país como um sandália usada e todas as riquezas como lama e areia. Se morrer sem que tenha havido uma erupção de distúrbios, os meus desejos terão sido satisfeitos. Desejo que todos vós oficiais se recordem que fui o Filho do Céu portador da paz por mais de 50 anos e o que vos repeti, vez após vez, foi realmente sincero. Então, isso terá completado um fim digno da minha vida. Nada mais direi.

Na próxima segunda-feira, a Livros do Meio lança “Imperador da China – Autobiografia de K’ang-Hsi”, na Fundação Rui Cunha, pelas 18h30. A apresentação da obra será feita por Carlos Morais José.

15 Jan 2016

Christiana Ieong, presidente do Zonta do Club de Macau

O convite foi lançado por Pansy Ho. Depois de abandonar a posição que tinha no Governo, Christiana Ieong assumiu um papel diferente na vida – a de agente social. A filantropa defende a reeducação da sociedade, os casinos como entidades activas e reforça a necessidade de cooperação entre homens e mulheres


Foi coordenadora do Gabinete para a Participação de Macau na Expo 2010 Xangai e, após esse papel, decidiu deixar a sua posição no Governo. Por quê esta decisão?

Queria ver o mundo como ele realmente é. Sim, é exactamente isso. Estava no topo da carreira, mas o Governo funciona como uma espécie de caixa e a minha cabeça já batia no tecto. Portanto não tinha por onde evoluir, tinha levado a cabo projectos muito interessantes e a Expo foi um absoluto sucesso. Uma surpresa para muitos, confesso, que achavam que eu e a minha equipa não iríamos atingir o objectivo proposto. Tal não aconteceu e é na altura do sucesso que nos devemos afastar, certo? Foi o que aconteceu.

Disse que quis ver o mundo como realmente é, não conseguiu até então?
Quando estamos em cargos elevados, por vezes, é-nos difícil ter acesso a outras realidades. Não que a minha vida não fosse útil, sempre acreditei nos projectos e no meu trabalho. Mas senti que precisava de ver mais, ver outras coisas, outras áreas. E sim, senti que devia virar-me para a área social, perceber como acontecem as coisas, o que realmente se passa. Ver com os meus olhos, ouvir as histórias na primeira pessoa. Queria ver o mundo real, estava longe da realidade.

Foi aí que surgiu o convite para presidir e criar a delegação em Macau do Zonta Club?
Não, não foi logo ali. Depois de deixar o Governo decidi ir visitar um orfanato no interior da China, para fazer esse reconhecimento da realidade. O que vi assustou-me. Foi um choque emocional e foi aí que conheci aquela que viria ser a minha filha adoptiva. Toda essa história foi muito comentada. Muitas pessoas vinham ter comigo para dar a opinião, umas de incentivo, outras nem por isso. Pessoas do Governo. Cheguei a receber a opinião de alguém, uma mulher, que me tentou dissuadir da ideia de adopção por ser uma mulher solteira, por questões culturais. Eu pensei: Meu Deus, ainda temos este pensamento? Como é que pessoas que supostamente têm formação e conhecem o mundo têm estas ideias? Christiana Ieong

Mas a Christiana seguiu com adopção…
Não, cheguei a desistir. Coloquei muitas vezes dúvidas à minha pessoa, não sabia se conseguia ser capaz de criar uma criança. Não sabia o que era ser mãe. Nada. Pensei que não era capaz. Um dia voltei àquele orfanato, eles estavam com problemas e o meu cunho com eles fez com que me pedissem ajuda. Fui lá com a minha irmã e com o meu sobrinho, de 14 anos, que ficou sem mãe muito novo. Percebemos os problemas pelos quais as instalações passavam e eu vi aquela bebé de novo. Ela não tinha expressão, pensei que fosse deficiente mental, não sorria, não chorava, nada. Vim embora com o coração nas mãos, mas convicta que não podia levar aquela criança comigo, não me achava capaz. Ao sairmos o meu sobrinho olhou para mim e perguntou-me: “Tia, não vais levar a bebé? Não a vais adoptar?”. Eu disse-lhe que não, ele apontou-me o dedo e disse: “ela precisa de uma mãe, se não fores tu ela morre aqui. É vida ou morte”. Fiquei impressionada com o meu sobrinho, com aquilo que ouvia, e depois pensei que era de facto uma questão de vida ou de morte. Não hesitei e avancei, dei uma quantia de dinheiro – para assegurar que voltava com a menina para tratar de tudo e aí eles devolviam-me o dinheiro – e ela veio nesse dia comigo. Foram três horas de viagem, um percurso que não parecia terminar, sem leite. Tinha nas mãos uma criança, uma toalha enrolada ao seu corpo e uma garrafa de água.

Quando é que Pansy Ho a convidou?
Nos dois primeiros anos da minha filha quis manter tudo muito em família. Alexis Tam [Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura] foi um grande amigo na altura, continua a ser, e deu-me muito apoio. Muita gente do Governo, que claro eram meus amigos, achou que tinha sido muito impulsiva mas apoiou-me em tudo o que necessitei. Algum tempo depois, Hong Kong, que tem a sua delegação do grupo Zonta Club há muitos anos, falou com a Pansy [Ho] com a sugestão de se fazer um Zonta aqui e ela lembrou-se de mim. Isso é bom. É bom sabermos que as pessoas nos guardam em boa memória. Gostou do trabalho que tinha realizado com a Expo, sabia das minha preocupações e capacidades. Ela falou comigo e ainda hesitei, mas depois pensei que era Deus a dar-me outra prova, outra oportunidade.

O Zonta mostrou-se muito activo na igualdade de género. É a base da sua existência?
Não, falou-se efectivamente nisso porque houve numa entrevista em que falei [disso], mas não é sobre isso. Estamos activos nos assuntos das mulheres e das crianças, em todos os aspectos, seja na violência doméstica, seja na educação. É preciso salientar que o Zonta não é, de forma alguma, um grupo feminista. Não somos contra os homens, de todo. Queremos apenas que eles nos vejam como parte integrante da sociedade, da nossa comunidade e que contem connosco, não atrás deles, mas ao seu lado. Só a trabalhar juntos é que seremos melhores, é isso que queremos. Não nos queremos destacar perante os homens, nada disso. Somos iguais, conseguimos o mesmo, temos os mesmos direitos.

Alexis Tam criou uma Comissão para os Assuntos das Mulheres e das Crianças. Acha um bom passo para essa mudança?
As intenções de Alexis Tam são boas, ele é de facto boa pessoa e tem avançado com muitos projectos para melhorar Macau e a sua sociedade, assim como o presidente do Instituto de Acção Social (IAS), Iong Kong Io. Neste caso não concordo porque acho que estes dois grupos deveriam estar separados. Duas comissões. As razões são claras: os assuntos, as problemáticas, são completamente diferentes. Deveriam existir profissionais especializados para o grupo das mulheres e outros para as crianças. Por exemplo, há pouco tempo tivemos o caso de uma criança que era maltratada pela mãe. Fugiu de casa e foi colocada num asilo para jovens. Depois de se acompanhar o caso a criança foi entregue ao pai. Poucos meses depois, voltou a fugir porque estava a ser abusada pelo pai. Como é que se resolve esta situação se não existir uma equipa especializada para só acompanhar este tipo de situações com as crianças? Neste caso, a único coisa que conseguimos fazer é ajudar a criança a viver com a questão e dar-lhe tecto. E os pais? O que aconteceu aos pais? Estão aí, sem que nada lhes aconteça.

Isso leva-nos à Lei da Adopção criticada muitas vezes por proteger os progenitores. Concorda, como agente social e como mãe adoptiva?
Pois, é um grande problema aqui. Há muita coisa a melhorar. É preciso reconhecer os problemas reais da sociedade e destas crianças. É isso que o Zonta quer, criar as mudanças, fazer chegar estes casos e estas problemáticas reais a este lado, a um lado de agentes hierarquicamente superiores que muitas vezes, não por sua culpa, não têm acesso.

É esse o trabalho do grupo Zonta? Fazer ouvir a voz das associações que trabalham diariamente com estas questões?
Sim. Neste momento trabalhamos com 22 associações. Ajudamos nos trabalhos de promoção, fazemos chegar as questões a outros patamares e a várias sectores. A nossa lista de membros é muito diversificada em termos de áreas profissionais e até de nacionalidades. Ninguém é melhor do que o outro, temos formações diferentes e canalizamos isso da forma mais eficaz para atingir o objectivo.

[quote_box_left]“As mulheres precisam desta lei [violência doméstica] como crime público, para terem a certeza, por exemplo, que mesmo que não denunciem o agressor alguém o poderá fazer e nunca partirá delas. Alguém está com elas, elas não estão sozinhas”[/quote_box_left]

Voltando às mulheres e às suas causas. Há pouco tempo, durante o encontro de associações sociais, falou-se na necessidade de apoio às crianças que assistem a situações de violência doméstica. Algo que falha em Macau?
Muito, falha muito. É um problema, lá está outra vez a questão de comissões separadas, não se fala da mesma forma com mulheres e crianças sobre este assunto. É preciso focarmo-nos nuns e noutros. A violência doméstica é um problema muito delicado, que precisa de soluções, várias.

Concorda com a definição de crime público na lei da violência doméstica?
Claro que sim, por várias razões. Tenho uma amiga, que ocupa um cargo de responsabilidade, que foi vítima de violência doméstica há uns dez ou 15 anos e nunca o disse, nem nunca o fará para proteger os seus filhos e por vergonha. Sim, por vergonha. Isto acontece. As mulheres precisam desta lei como crime público, para terem a certeza, por exemplo, que mesmo que não denunciem o agressor alguém o poderá fazer e nunca partirá delas. Alguém está com elas, elas não estão sozinhas.

O Zonta manifestou-se sobre este tema depois das declarações de Fong Chi Keong, na Assembleia Legislativa, onde o deputado defendeu ser normal este tipo de comportamento.
Ainda bem que o fez. É que, sem perceber, o deputado conseguiu que toda a sociedade de Macau olhasse para o problema e viesse para a rua. Com essas declarações as pessoas saíram à rua numa marcha e estavam lá muitos homens, eu vi. Isso mostrou-nos que nem todos pensam como ele. O que é preciso entender é que não há violência grave ou menos grave, há violência e uma chapada na cara não é uma brincadeira, é violência. [Perceber] isso terá de partir de nós. Somos nós que devemos assumir isso.

Fong Chi Keong é o reflexo de uma cultura pouco desenvolvida?
Não, como disse, havia muitos homens naquela marcha. A violência doméstica não é um problema de Macau ou da China, é um problema mundial. Brasil, Estados Unidos e até Portugal também a têm, também existem muitos casos escondidos, as mulheres também têm vergonha. Esta é uma questão mundial.

Mas em Macau a lei parece esquecida numa gaveta…
Não importa se existe a lei, se está pronta ou não, a mudança de comportamento passa pela educação. É isso que o Zonta defende, educar as nossas crianças de forma a que assumam que a violência é negativa, a violência é errada. Fazê-las perceber o que é e porque é que é errado.

A Christiana é Conselheira da presidência e co-presidência do MGM, que ganhou um prémio de Responsabilidade Social. Há um interesse real nesta responsabilidade?
Claro. O MGM, não só em Macau, tem-se destacado por esta sensibilidade social. É necessário um esclarecimento. A nossa terra teve um crescimento económico muito grande, ao contrário da evolução social, que não caminhou em paralelo com este desenvolvimento. Os problemas sociais são evidentes. O Jogo é muita vezes apontado negativamente. É preciso entender que, se os casinos trabalharem em conjunto com a sociedade, todos ganham. O MGM assume esse papel que tem para a sociedade e preocupa-se. Se a cidade ganhar, os casinos vão ganhar, isso é claro. Portanto também os casinos terão de assumir esta responsabilidade. O nosso presidente, Jimmy Murren, tem feito um grande trabalho, é de facto uma pessoa sensível e isso reflecte-se na forma como são organizadas as coisas. E eu tenho toda a liberdade de trabalho, são apresentados os objectivos e a forma como é percorrido o caminho até lá é livre de minha escolha, não podia estar mais satisfeita.

14 Dez 2015

António Félix Pontes: “Lobbying das associações patronais é muito forte”

A desempenhar funções na presidência do Instituto de Formação Financeira, depois de 35 anos na AMCM, que deixou este ano, António Félix Pontes considera que Macau já deveria ter um sistema de segurança social obrigatório para o sector privado com a inclusão dos não-residentes. Algo que, acusa, o patronato tem impedido

Disse em declarações recentes que o seu percurso profissional ficou marcado por dificuldades internas e externas. Pode exemplificar?
Em qualquer percurso profissional ocorrem situações de maior ou menor dificuldades e o meu caso não constituiu excepção. Foram mais de 35 anos em que desempenhei funções de direcção ou de administração na Autoridade Monetária e Cambial de Macau (AMCM) e, em cargos de responsabilidade, em que se têm de tomar decisões, é normal surgirem “forças” apoiantes ou, pelo contrário, de bloqueio ou de “lobbying”. A trabalhar numa instituição pública, como decisor, coloquei sempre o interesse público e o primado da lei acima dessas “movimentações”, nunca tendo ficado preocupado com os “contestatários” de quaisquer acções que tenha tomado.

Que análise faz à evolução do sistema financeiro de Macau, sobretudo em relação às “ferramentas” de fiscalização?
O sector bancário registou uma grande modernização, consubstanciada numa melhor, mais célere e mais extensa prestação de serviços, tendo aumentado, de forma exponencial, a sua capacidade financeira. No capítulo da supervisão dos operadores financeiros, a evolução é muito positiva, tendo a mesma sido reforçada e, hoje, não temos as perturbações surgidas nas décadas de 80 e 90 (Banco do Pacífico, Deak Perera e BCCI, entre outros), o que, por si só, constitui prova inequívoca de uma melhor eficiência da supervisão da AMCM na área bancária. Factor determinante dessa evolução foi o trabalho contínuo em termos de supervisão prudencial e comportamental prosseguidas pela AMCM. Emitiram-se orientações em matérias nucleares e efectuaram-se inspecções aos estabelecimentos bancários enquadradas em planos anual e plurianual, umas e outras que conduziram a um melhor funcionamento das entidades visadas.

Mas há ainda melhorias que podem ser feitas?
Na supervisão bancária, claro que há. Nada é perfeito e temos de continuar a aperfeiçoar os instrumentos de supervisão de que já dispomos para que não surjam situações indesejáveis no futuro. A revisão do quadro legal do sistema financeiro (que data de 1993) e a aprovação de um regime jurídico específico para a intermediação financeira devem constituir iniciativas legislativas a inscrever no leque de projectos importantes para o sistema financeiro de Macau. Penso, também, que a nossa lei “offshore” deve ser objecto de revisão global, pois não atingiu minimamente os objectivos para que foi promulgada. É imprescindível e urgente elaborar-se um estudo incidente sobre os factores que, de uma forma decisiva, contribuíram para o sucesso dos mais importantes centros financeiros “offshore” nas áreas do “leasing” de aeronaves e navios, das seguradoras cativas e dos “trusts”. 111215P2T1

Conheceu muitos Secretários da Economia e muitas políticas. O rumo de Macau foi traçado da melhor forma nas últimas décadas?
Tive a oportunidade e a honra de conhecer e trabalhar com oito Secretários para as áreas da Economia e Finanças. Por vezes as nossas visões nem sempre foram coincidentes, ou melhor e, com toda a franqueza, até colidiam, mas houve sempre respeito mútuo e cada um fez o melhor que sabia e podia, no âmbito das suas competências. No passado, havia determinados constrangimentos de ordem política e económica que a alteração do estatuto político-administrativo de Macau permitiu resolver de uma forma natural. Em termos globais, considero adequado o rumo económico delineado para Macau, sendo indiscutível o progresso registado. No entanto, deveria ter havido outras preocupações, por exemplo, de natureza social, mas não só. Já deveríamos ter implementado em Macau um sistema de segurança social obrigatório para a população activa do sector privado, quando a economia local tinha crescimento de dois dígitos. Infelizmente, o “lobbying” das associações patronais foi – e é – muito forte e continua a impedir a concretização desse projecto, mantendo-se, desta forma, a discriminação social dos trabalhadores do sector privado com os funcionários públicos. Claro que, com a situação actual e futura da economia de Macau, os obstáculos serão acrescidos no estabelecimento de qualquer sistema obrigatório para a segurança social.

Mas o actual sistema de segurança social tem capacidade para se tornar sustentável, além das injecções de fundos por parte do Executivo?
Não. Tem de haver uma plena responsabilização das entidades patronais e dos trabalhadores, não na forma actual das contribuições mensais de 15 e 30 patacas, pagas trimestralmente, mas sim em termos de uma percentagem sobre os salários. Em Hong Kong, por exemplo, essa percentagem é de 5% para cada uma das duas partes. Devia esperar-se que, no século XXI, houvesse uma maior responsabilidade social dos empresários locais e das suas organizações corporativas. Macau, bem como Hong Kong, regista das mais altas esperanças de vida em todo o Mundo, facto este que, associado à baixa taxa de natalidade, determina que a percentagem de idosos com mais de 65 anos vai elevar-se, implicando que teremos cada vez menos trabalhadores a contribuírem para a segurança social. Esta tendência só será revertida se, entretanto, a população aumentar, sendo positiva a entrada em Macau de trabalhadores não-residentes que, a serem integrados no sistema de segurança social, constituirão, com as suas contribuições e as das suas entidades patronais, uma nova fonte de receitas.

Assim sendo, os trabalhadores não-residentes já deveriam estar abrangidos por algum modelo de segurança social na RAEM.
Sou contra qualquer tipo de discriminação que seja feita em relação a esses trabalhadores. Não compreendo a racionalidade, se é que existe, dos mesmos estarem excluídos do sistema de segurança social de Macau. Se são absolutamente necessários para desempenharem certas funções, dando o seu contributo para a economia local, deve-se sanar a omissão da sua exclusão do sistema de segurança social, até porque, as empresas, por sua própria iniciativa, têm inscrito os mesmos nos fundos privados de pensões, sendo o seu número já bastante razoável (cerca de 25 mil).

Muitos deputados têm vindo a criticar a forma como o Governo tem investido a sua reserva financeira no exterior, considerando que existem baixas taxas de retorno. O Executivo poderia pensar em alternativas?
Criticar, como sempre, é fácil, mas apresentar alternativas credíveis e exequíveis já é mais difícil. Está em causa a gestão de dinheiros públicos e não se pode ser imprudente. A perfilhar-se essas críticas poderá haver a tentação em se efectuarem aplicações que, em princípio, podem proporcionar taxas de rendimento mais elevadas mas, em contrapartida, o risco é muito maior. A estratégia de investimento prosseguida para a reserva financeira, e que foi explicada recentemente pelo Governo na AL, está correcta, pois assenta em análises técnicas aprofundadas de diversas opções [onde] a relação “risco-retorno” esteve sempre presente.

Ao nível do sector segurador e sua supervisão, qual o seu desenvolvimento global?
No sector segurador registou-se um bom desenvolvimento quantitativo (em 1982, o total de prémios era de cerca de dois milhões de patacas, enquanto que, no final de Setembro deste ano, o sector segurador auferiu quase 11 mil milhões de patacas) e qualitativo (em termos de modernização, prestação de serviços e capacidade financeira). O seu contributo é gigantesco, mas, muitas vezes, este aspecto é esquecido de forma leviana. As seguradoras autorizadas a exercer actividade em Macau têm desempenhado bem o seu papel e, no campo da respectiva supervisão, têm demonstrado a sua eficácia, sendo sintomático que nenhuma seguradora a operar em Macau tenha entrado em falência até ao momento.

Há uma evolução a fazer?
Quanto desenvolvimento do sector segurador local estou muito optimista. Quanto aos ramos gerais ou não-vida, por um lado, estão em curso grandes projectos de investimento público (novo hospital e o metro ligeiro) ou privado (hotéis inseridos em projectos de Jogo) e teremos alguns nichos de mercado derivados de novos seguros obrigatórios que poderão até atrair o interesse de seguradoras internacionais de topo que ainda não operam em Macau. Por sua vez, para o ramo vida, os cidadãos do continente continuam a revelar o seu “apetite” em adquirirem esses seguros em Macau, onde a oferta e sofisticação dos produtos de seguros é muito maior, havendo um grande potencial para uma evolução positiva consolidada.

Há décadas que o Executivo tenta criar medidas para a diversificação económica. É possível atingir tal objectivo? Como é que as empresas podem responder a isso?
Temos falhado na diversificação económica. Embora não tenha quaisquer dúvidas que o sector do Jogo continuará a ser preponderante na economia local, deveria ter sido feito um esforço muito maior e mais eficiente no estabelecimento de um plano estratégico de médio e longo prazo, em que a diversificação económica, nas suas diversas vertentes, deveria ter sido definida como objectivo primordial. Na realidade, quando se analisa o tema da diversificação económica, não devemos circunscrever o mesmo à predominância do sector do jogo – que existe e continuará -, mas alargar aquela à concentração nos mercados exportadores e importadores, em que também é desejável uma menor dependência. Que sectores económicos podemos desenvolver de uma forma pragmática e não platónica? Não há hipóteses de se exportar para novos mercados? Qual a visão que se pretende para a nossa economia?

Quais são esses sectores?
Deixo a ideia de se apostar no turismo de saúde, através de unidades de saúde privadas ou públicas com médicos e outros profissionais da área da saúde qualificados. Em Macau temos 30 milhões de turistas por ano, não havendo necessidade de efectuar grande esforço orçamental em marketing para trazer mais turistas, parte deles potenciais clientes do turismo de saúde. Este novo segmento de turismo iria, por outro lado, acarretar novas receitas para os hospitais público e privados, que, face à concorrência, teriam, entretanto, de melhorar a qualidade na prestação de serviços. A curto-prazo considero que é imprescindível o estabelecimento de um regime de seguro de créditos para a importação, exportação e trânsito. Consciente desse facto, o Governo inscreveu, nas LAG para 2015 e 2016 o estudo e o lançamento do mecanismo do seguro de crédito. Não tenho dúvidas que a iniciativa, a concretizar-se em tempo útil, irá criar condições propícias para as Pequenas e Médias Empresas (PME) orientadas para a exportação se direccionarem para novos mercados e, para as empresas com outros objectivos comerciais, ampliarem a sua gama de produtos. Em paralelo, não só para os riscos comerciais mas também para os riscos de natureza política (para os quais é indispensável a RAEM prestar uma garantia financeira, através da AL), podia conceder-se linhas de crédito para determinados mercados. Caso isso aconteça, constituirá uma oportunidade excelente para os empresários locais, ao beneficiarem de condições excepcionais, em termos de cobertura e de juros, de chegarem a novos mercados.

Depois de anos de crescimento económico, as receitas do Jogo estão em queda há um ano. A economia atingiu um ponto sem retorno? Terá obrigatoriamente de se reinventar?
Recentemente numa entrevista afirmei que, em relação às receitas do Jogo, estava moderadamente pessimista. Há uma tendência de decréscimo dessas receitas e o mês de Novembro evidencia essa evolução. Temos de ser realistas: a campanha anti-corrupção desencadeada na China vai continuar, há uma migração crescente de jogadores VIP para outras paragens e o segmento de massas não tem tido e muito dificilmente terá o efeito compensador que se desejava, além de que as receitas dos novos projectos das empresas dos casinos são frustrantes. Estamos, portanto, num ciclo económico de contracção e os factos têm vindo a consolidar cada vez mais a minha tese de que esta evolução recessiva vai continuar, pelo menos durante o próximo ano.

O que deve, então, ser feito?
É nestas fases menos favoráveis do desempenho da economia que devemos actuar rapidamente na tomada de medidas efectivas que sejam conducentes à criação de condições propícias ao seu relançamento. Se é certo que, para determinadas matérias, há necessidade de se elaborarem análises técnicas, neste momento deve-se privilegiar a acção em detrimento da multiplicidade dos estudos infindáveis.

Macau irá conhecer um novo Chefe do Executivo em 2019. Até lá que mudanças sócio-económicas poderemos esperar?
O ano de 2016 constituirá, de facto, o primeiro ano para a actuação do novo Governo e, nas respectivas LAG, consta um vasto leque de medidas de impacto relevante, as quais, a serem objecto de efectiva realização, traduzirão um bom desempenho. Quanto aos restantes anos até 2019, é difícil pronunciar-me sobre as mudanças, mas prefiro enunciar o que desejo para Macau: a continuação de uma cidade segura e menos poluída, mais centros e actividades para idosos, um sistema obrigatório e universal de segurança social com a integração dos TNR e uma rede de transportes públicos eficiente. Desejo ainda hospitais de qualidade superior e turismo de saúde, estabelecimentos de ensino de excelência, áreas recreativas e de diversão desenvolvidas pelas empresas do Jogo para as famílias, uma população com maiores conhecimentos em educação financeira e uma menor concentração em termos de sectores económicos e de mercados (exportadores e importadores).

11 Dez 2015

Andy Chan: “É preciso dar atenção aos problemas emocionais dos funcionários públicos”

Psicólogo e investigador, Andy Chan defende que há necessidade de melhorar a prevenção das doenças mentais em Macau, sobretudo a depressão, principal origem dos suicídios registados. Andy Chan deseja lançar um programa de apoio aos funcionários públicos e diz que os profissionais estão “limitados” pela ausência de um regime de credenciação

Quais são os trabalhos principais desenvolvidos pela Sociedade de Pesquisa de Psicologia de Macau?
Queremos aumentar os conhecimentos de psicologia dos trabalhadores de várias áreas, bem como proporcionar terapia para pais e filhos. Realizamos estudos e fóruns para aumentar a qualidade dos profissionais. Só não oferecemos aconselhamento psicológico porque temos de aguardar pelo Regime de Credenciação dos Profissionais de Saúde.

Dados dos Serviços de Saúde (SS) mostram que, nos primeiros nove meses do ano, o número de consultas de saúde mental no São Januário e centros de saúde aumentaram 3,2% e 26,6% face a 2014. Quais as razões para estes números?
Olho para esses número com dois pontos de vista. Primeiro, o aumento de consultas só prova que mais pessoas procuram este serviço. Mas será que isso mostra que o número de doentes mentais aumentou? É preciso outros estudos para analisar isso. Olhando pelo lado económico, não se exclui a possibilidade da queda das receitas do Jogo afectar a saúde mental dos cidadãos. Para além dos dados dos SS, de facto o número de consultas aumentou recentemente, não só sobre saúde mental mas também sobre questões como autismo, depressão ou temas ligados às crianças.

Os profissionais da área são suficientes?
Existem poucas pessoas que têm licenças profissionais para exercerem a profissão de terapeutas e psicólogos, por isso o número não é suficiente para os serviços em Macau. A maioria dos nossos membros não tem trabalho na área de Psicologia a tempo inteiro, apesar de serem diplomados. Em Macau poucas pessoas formadas em Psicologia trabalham na área por causa da questão da credenciação e muitas são excluídas pelas suas qualificações, pelo que não podem apresentar o diploma. Excepto os que trabalham no Governo ou nas instituições de serviços sociais.

Os serviços comunitários conseguem integrar de forma adequada os serviços de saúde mental?
Penso que sim, mas podem não ser suficientes para satisfazer as necessidades. As instituições comunitárias oferecem aconselhamento psicológico mas há muitos pedidos de consultas e, quando se atinge o limite, não aceitam mais pedidos. Assim como é que as pessoas podem pedir ajuda?

Disse ao jornal Ou Mun que é necessário dar mais atenção aos problemas emocionais que podem dar origem ao suicídio, no âmbito da morte de Lai Man Wa (ex-directora dos Serviços de Alfândega). É preciso dar mais atenção aos problemas emocionais dos funcionários públicos?
Sim. Estamos a pensar cooperar com a Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais (DSAL) para apresentar o “Programa de Assistência aos Funcionários”. Esse projecto já existe em Taiwan desde a década de 80 e o Governo promove-o activamente junto de todos os funcionários públicos. O programa visa conhecer os problemas mentais do trabalhador e as suas relações pessoais e familiares e ver o que pode afectar o seu trabalho. A DSAL disse que apoiava o programa, mas apenas nos pediu para disponibilizarmos uns cursos e que os serviços de terapia só poderiam ser criados de forma gradual, devido à diferença de culturas entre Macau e Taiwan e os recursos existentes. Se este programa for para a frente, acredito que irá disponibilizar mais meios para que os funcionários públicos possam resolver os seus problemas.

O programa poderia, de facto, prevenir o suicídio ou os problemas mentais dos funcionários públicos?
Para além do programa, acho que é necessário consolidar a promoção. Actualmente apenas as grandes associações fazem a promoção da prevenção do suicídio, como a Cáritas de Macau, a Associação Geral das Mulheres ou os SS. Mas os efeitos dessa promoção não se fazem sentir e penso que as formas de promover a questão devem ser alteradas. Segundo as estatísticas da Organização Mundial de Saúde (OMS), a maioria dos casos de suicídio tem origem na depressão e podemos começar aí a promoção. Também acho viável a realização de testes de depressão online para que os cidadãos reconheçam a sua importância e possam ir a consultas quando suspeitam que sofrem desta doença. Mas não existem muitos serviços em Macau.

Há motivação dos cidadãos para procurarem esse tipo de serviços?
Tem sido maior nos últimos anos, porque foram realizadas mais actividades. Antes a promoção da saúde mental era pouca. Mas agora vejo que umas operadoras de Jogo estrangeiras dão mais atenção a esta questão e recrutam terapeutas para dar tratamento aos seus funcionários. Outras empresas poderiam aprender com isso. Para além da realização de seminários, seria bom lançar revistas mensais sobre o tema e promover a comunicação entre colegas e famílias.

A OMS prevê que até 2020 a depressão poderá tornar-se a segunda maior doença do mundo, depois das doenças cardíacas. Macau está a fazer trabalhos suficientes para prevenir este problema? Os recursos são suficientes?
Acredito que há margem de melhoria, há muitos trabalhos de prevenção que poderiam ser feitos. Não só os pacientes podem descobrir melhor que sofrem de depressão, como, através da educação, as pessoas à sua volta podem detectar os sintomas mais cedo. Existem poucos casos de depressão em que são os pacientes que pedem ajuda directamente, sobretudo os casos mais graves. Mas a família, amigos ou colegas podem ajudar a descobrir os sintomas. Em relação às instalações, acredito que os SS vão contratar mais mão-de-obra e apostar nas instituições dos serviços sociais. Acredito que a implementação do Regime de Credenciação pode fazer com que mais pessoas trabalhem na área da Psicologia.

Os licenciados actuais acabam por enveredar por outras áreas.
É verdade que é difícil encontrar um trabalho depois da licenciatura em Psicologia. Muitos podem optar por um trabalho na área comercial ou de publicidade, bem como na área dos recursos humanos, onde podem aplicar um pouco do que aprenderam em Psicologia. Posso dar o exemplo de um membro da nossa Sociedade, que fez um mestrado em Psicologia e tirou a licenciatura numa outra área e que já não conseguiu candidatar-se à Função Pública, nem ter a qualificação de terapeuta reconhecida pelo Governo. Isso faz com que não consiga encontrar trabalho. Na psicologia é mais importante ter experiência, não bastam as teorias, mesmo que se aprendam muitas. Como agora não existe desenvolvimento na área, menos estudantes optam por estudar Psicologia.

Em relação ao Regime de Qualificação, ainda não há uma proposta final. Tem algumas opiniões sobre o conteúdo?
Há mais de um ano que essa proposta não é discutida e já sofreu várias alterações. Parece-me um bom progresso o facto do regime permitir aos estudantes que fazem o curso fora de Macau e que querem a credenciação realizar o estágio não apenas no hospital público. Isso faz com que sejam formados mais profissionais.

O Secretário para a Segurança, Wong Sio Chak, admitiu no debate das Linhas de Acção Governativa que o Governo publicou demasiados pormenores sobre casos de assédio sexual. Concorda com isso? Isso poderá ter afectado as vítimas?
Concordo. É preciso proteger melhor as vítimas, porque quando voltarem a ler notícias, podem sofrer de stress pós-traumático. Mas prefiro dar mais atenção aos criminosos que poderão voltar a cometer o mesmo crime.

O que é que a sociedade pode fazer mais para promover a saúde mental?
Nas escolas primárias e secundárias podem ser disponibilizados maiores conhecimentos sobre a saúde mental e as relações familiares, e também ao nível da educação sexual. Tudo para que os alunos possam saber pedir ajuda e prevenir problemas, e também pode ajudar a que os estudantes fiquem mais interessados por psicologia. Podem também promover-se mais seminários para que os pais transmitam mais conhecimentos de psicologia aos seus filhos. Acredito que uma boa comunicação entre familiares é fundamental para o bom crescimento das crianças.

4 Dez 2015

Paulino Comandante: “Se alguém quer tirar o curso a sério, ou tira na UM ou vai para Portugal”

Os advogados querem retomar o protocolo com Portugal, mas Paulino Comandante admite que existirão mais condicionalismos do que antes: limitação do número e gente mais experiente. A relação patrono/estagiário e a a mediação e arbitragem como alternativas aos tribunais são alguns dos pontos fulcrais referidos pelo advogado e secretário-geral da AAM, para quem só a UM ensina o verdadeiro Direito de Macau

A falta de magistrados é sempre um dos pontos de enfoque no ano judiciário. É verdade que continua a existir falta de magistrados?
Em termos quantitativos, o que acho é que, ao longo dos anos, tem-se notado um aumento. Naturalmente esta equipa [de magistrados] é composta por bons elementos, de níveis de habilitações académicas elevadas. Mas, como podemos notar, são jovens, precisam de mais experiência da vida. Apesar de dominarem a língua chinesa e portuguesa, é preciso experiência para resolver os problemas que temos nos tribunais. Para isso é preciso tempo. Os magistrados que temos, este grupo, são jovens. Não quero dizer que não têm experiência, mas precisam de mais e isso só se ganha com o tempo.

Portanto Macau precisa de magistrados mais experientes.
Sim, defendo isso, que Macau precisa desses magistrados, experientes, maduros. Sendo Portugal a única via a que, neste momento, podemos recorrer. É preciso recorrer a Portugal para resolver os casos que neste momento temos pendentes nos tribunais. Estes magistrados, oriundos de Portugal, carecem da realidade de Macau. Por mais experiência que tenham, se não conhecerem a realidade do território, não são adequados para nos dar essa ajuda. É preciso mais magistrados experientes mas que conheçam esta realidade. Portanto sim, há falta de magistrados.

Um dos motivos que justifica a suspensão do protocolo com Portugal é a chegada incessante de advogados ao território. Mesmo sem protocolo, a verdade é que eles continuam a chegar…
Não há um impedimento da movimentação de advogados, mas o que actualmente é exigido, e na altura não era, é que essa movimentação seja feita através de um mecanismo. Ou seja, para quem venha de Portugal, mesmo que seja um advogado, tem de ser sujeito ao nosso exame de acesso, é sujeito a todo o processo de inscrição. É igual para todos. A suspensão do protocolo não é uma barreira para impedir que os advogados de vir para Macau. Antes, com o protocolo, o reconhecimento profissional era directo, agora têm de cumprir o processo. Durante este tempo de suspensão houve contacto com o presidente da Associação dos Advogados de Macau (AAM), Neto Valente, e a Ordem dos Advogados de Portugal.

Existirá um futuro protocolo?
Daquilo que me lembro, houve duas assembleias dos nossos associados para discutir esta possibilidade. A opinião da maioria é a de não acabar de vez com o protocolo, mas sim mantê-lo. Mas não será um regime com o modelo do passado, não. Será diferente, existirá algum condicionalismo, tal como a limitação do número de advogados vindos de Portugal, por exemplo. Também não serão bem-vindos advogados muito jovens, aqueles que acabaram há pouco tempo o estágio. Naturalmente vamos exigir profissionais com alguma experiência, que sejam três anos dela, talvez, ainda não sabemos. É preciso um maior controlo, uma maior fiscalização às actividades.

Voltando ao caso do curso da Direito orientado pela Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau (MUST). A AAM aceita os recém-formados, mas continua a colocar em causa a sua formação.
Pois, a AAM aceitou o acórdão da decisão do tribunal, embora no estado de Direito nós não concordemos com esse entendimento. Naturalmente, o que acho, é que da parte do Governo poderia ter sido feito alguma política no sentido de coordenar os diversos cursos de Direito de Macau. Actualmente há em Macau mais do que uma universidade a leccionar Direito. Mas é claro que a Universidade de Macau (UM) é a instituição que quase exclusivamente lecciona o verdadeiro Direito de Macau. Na MUST – não é segredo – o seu curso [de Direito] não é composto por disciplinas maioritariamente do Direito de Macau.

A Universidade Cidade de Macau vai também lançar o curso de Direito. Têm acompanhado?
Sim, a AAM está a par disso, fomos consultados. O problema é que os meios são escassos para se poder leccionar um curso de qualidade. Há também a questão do mercado, em termos de alunos interessados. Não é grande. Para mim é claro, se alguém quiser tirar o curso de Direito a sério ou tira na UM ou vai para Portugal.

Como avalia o estágio obrigatório para os recém-licenciados? Não o acha longo? E com tantas exigências, como o exame e as matérias, não estará a AAM a descredibilizar as próprias instituições de ensino?
Não acho, também não acho que seja um estágio difícil. Aqui em Macau, para se entrar na nossa profissão é preciso fazer um exame de acesso, algo que não é exigido, por exemplo, em Hong Kong. São processos diferentes. Em Macau só acompanhamos o curso da UM. A MUST avançou o curso sem qualquer opinião. É preciso perceber que neste curso, da MUST, a maioria das cadeiras incide sobre o Direito Chinês e este é um problema que justifica a necessidade do nosso curso e do exame. Por outro lado, temos notado que os cursos de Língua Portuguesa e chinesa de UM estão diferentes.

Mas houve uma altura que os licenciados da UM não eram sujeitos ao exame.
Sim, e foi aí que decidimos sujeitar todos os candidatos à nossa profissão ao estágio e ao exame de acesso. Para quem tem uma formação sólida, segura, durante quatro anos na faculdade não é nada difícil, é até bastante acessível. A taxa de reprovação, em alguns exames, é elevada, mas isto acontece por causa do tipo de matéria. Há candidatos que no seu curso não tiveram determinadas cadeiras e talvez seja mais difícil. Se não aprenderam o Direito de Macau, aí é mais difícil. Notámos também uma coisa, que muitas vezes o patrono não acompanha devidamente o estagiário.

A AAM não devia tomar uma acção?
E vamos. Posso garantir que a direcção actual, e até a anterior, está atenta a esta questão e iniciámos um estudo para que no futuro possamos eventualmente atribuir alguma responsabilidade ao patrono em causa. Por exemplo, estamos a falar, apesar de nada estar definido, em aplicar uma penalização de proibição de voltar a ter estagiários, num determinado tempo, caso se note, ou se confirme esta situação do não acompanhamento correcto por parte do patrono.

As oficiosas são uma grande questão em Macau, ou pela remuneração ou pela nomeação. Nos processos cíveis há uma Comissão, da qual faz parte, que seleciona o advogado, nos processos crimes é o juiz que o nomeia. Não considera que esta escolha dá azo a favoritismos?
O modelo actual nos processos crimes já vem do passado, a escolha é na base do Código do Processo Penal. A AAM envia uma escala [de advogados], agora se o juiz segue essa escala ou não, não sei. Este ano ainda não temos os dados estatísticos, mas temos notado que houve situações em que determinado advogado ou advogado estagiário, sobretudo estes, foi nomeado, durante esse ano, muitas vezes. Nós conseguimos detectar isto só a olhar para os honorários recebidos. Temos advogados que chegam até às 200 mil [patacas] e outros sem nada. Isto, claro, pode estar relacionado com o domínio da língua. Pode haver situações em que um advogado estagiário que domine só o Português opte por não querer aquele caso, mesmo por causa da língua. Pouco a pouco, naturalmente, os juízes que querem despachar e facilitar o processo escolhem quem domine a língua, é mais fácil. Não se deve assumir que se faz de forma consciente. A escolha do advogado pode também passar por este ou aquele ser menos controverso, talvez. Depende, depende…

Falando da remuneração das oficiosas, de que muitos profissionais se têm queixado. Considera ser um pagamento, tanto na quantia como forma, justo?
Houve duas situações complicadas. Uma delas foi o Governo ter diminuído os montantes para os processos crime. Isto é um problema, sim. Já tivemos oportunidade para conversar com a Secretária para Administração e Justiça, Sónia Chan, e referimos esta situação. Os valores não deviam ter baixado. Um segundo problema, que me parece estar resolvido, dizia respeito à forma de pagamento. No passado, embora não houvesse uma referência expressa na lei, os honorários dos defensores oficiosos eram adiantados pelo cofre do gabinete do Tribunal de Última Instância, depois a dada altura deixaram de fazer isto, ou seja, o defensor é arbitrado pelo tribunal e pode nunca mais receber. Actualmente, depois de um acórdão que deu razão ao profissionais, parece-me que já estão de novo a pagar antecipadamente. Pelo menos a AAM nunca mais recebeu nenhuma queixa.

Os atrasos dos juízes são uma constante. Como é que se resolve?
Sim, é um problema. Mas a AAM já explicou esta questão. Acho que só com o aumento de magistrados não se vai resolver esta situação. Como já defendi é preciso pensar noutros meios, meios alternativos, de solução de litígio. A mediação é um meio para isso e a arbitragem também. O Governo deve apostar mais neste último meio, a arbitragem. A AAM já começou essa preparação e temos organizado, com uma entidade de Hong Kong, cursos de formação de arbitragem. Acaba para a próxima semana a primeira turma. Esta pode ser uma solução.

Porque é que não existem sociedades de advogados em Macau? Dizemos muitas vezes escritório, mas nem escritórios são, são empresas. O que fez a AAM para mudar isso?
Deviam existir, sim. Macau não tem um diploma que regulamente isso. Esta é uma questão que já vem do passado, com a Administração portuguesa. Já apresentámos um projecto de lei para regular as sociedades de advogados, mas ficou lá, esquecida. Com a administração da RAEM também apresentámos. Naturalmente vamos continuar a insistir neste pedido.

Considera a justiça lenta?
Sim, é lenta. É uma questão complexa. Há vários problemas. Por um lado a sociedade de Macau evoluiu tão rápido e bastante que passámos de um espaço pequeno e agora falamos de nós como uma cidade internacional. Há muitos mais problemas, sejam sociais ou comercias, e, embora os tribunais de Macau tenham aumentado a sua velocidade – temos de ser justos, eles tentaram com mais magistrados –, não é suficiente. Temos necessidade de magistrados experientes, que conheçam a realidade de Macau, para facilitar. Por outro lado, não nos podemos esquecer que o processo judicial é sempre um processo lento, existem fases que não podem ser eliminadas, pois não queremos comprometer os direitos fundamentais dos cidadãos. Podemos simplificar, mas isso pode não querer dizer que seja o melhor. Não podemos aumentar a velocidade sem proteger os direitos fundamentais. Isso não. É altura de pensarmos nos meios alternativos, a mediação e a arbitragem.

Qual será o futuro do Direito de Macau, com um pai gigante como o Direito Português e uma cada vez maior influência do Chinês?
O Direito faz parte da cultura de uma sociedade e essa cultura vai evoluindo, não fica parada. Para o Direito de Macau o que me parece é que, tendo uma relação muito estreita com o Direito Português, irá continuar com esta relação mas haverá transformações. O próprio Direito de Macau irá evoluir, tal como o Direito de Portugal se transformou depois de integrado na União Europeia. Podemos olhar para os Direitos que tiveram um contacto íntimo com o português, por exemplo, o Direito do Brasil, ou de países lusófonos. Cada vez mais se afastam do que eram, mas é um fenómeno natural. No futuro, o Direito de Macau será sui generis, ou seja, terá uma identidade muito própria com elementos do Direito de Portugal e, pouco a pouco, elementos do Direito da China continental e até da Ilha Formosa.

Prevalecerá depois de 2049?
Não sei. Mas acredito que este Direito não será afectado, nos seus princípios basilares. Embora oriundo do Direito de Portugal, este nosso Direito faz parte da nossa história e do sistema jurídico da Europa. Esta estrutura de base não deve ser mexida, não deve ser alterada.

29 Nov 2015