Isabel Castro Entrevista MancheteSérgio Godinho, músico e escritor: “Voltar é mesmo uma alegria” [vc_row][vc_column][vc_column_text] Regressar a cidades onde já se esteve é ter a sensação de que o mundo não é só a nossa casa. Sérgio Godinho está a caminho de Macau, desta vez como romancista, para participar no festival Rota das Letras. Ainda em Lisboa, contou ao HM como nasceu o primeiro romance, que relação é esta com um novo tipo de escrita, e falou do disco novo que sai depois do Verão. Um álbum com uma cinematográfica ligação ao território [dropcap]C[/dropcap]Como é que aparece este “Coração Mais que Perfeito”? Aparece um pouco na sequência, ao nível do ofício da escrita, do livro de contos que saiu há dois anos, “VidaDupla”. São nove contos nos quais descobri uma vontade de escrever e também uma linguagem própria, uma voz própria. Surgiu um pouco por acaso, porque me pediram um conto – que está no “VidaDupla” – e depois apeteceu-me continuar. Quando acabei, senti que tinha de me abalançar, no sentido de ter vontade e de ter esse ímpeto criativo, a algo de mais fôlego, mais extenso, em que estivesse mais tempo com as personagens, onde as criasse e elas convivessem comigo e crescessem, fossem aparecendo outras. O romance não tem muitas personagens: tem duas principais. Tem uma mulher, que é a personagem principal, e um homem que é muito importante para a acção. Depois, tem mais algumas – poucas – personagens. Mas foi esse fôlego mais longo no qual me abalancei durante ano e meio. Não sou pessoa que escreva muito por dia, mas todos os dias tenho vontade de escrever. Não me obrigo. E por isso foi um grande prazer. Como é que se passa da escrita da canção para o poema, que tem outra estrutura, para o conto e, de repente, para o romance, que implica um envolvimento muito maior com as personagens e com a construção da narrativa? Foi uma aventura nova para mim porque nunca tinha tido uma coisa de continuidade assim, com todo esse tempo de maturação da história, das personagens, dos novos acontecimentos que vou descobrindo à medida que vou escrevendo. Não tinha uma estrutura fixa à partida. Tinha uma ideia de condução do fio da narrativa mas, depois, muitas coisas aconteceram, felizmente. Não tinha o esquema todo feito. Agora, como é que se passa? Não se passa. Embora nas canções, muitas vezes, haja personagens e narrativas, são actos completamente diferentes. A escrita de canções, desde logo, joga duas formas de expressão – a música e as palavras, as frases. A música tem códigos muito estritos, tem harmonias, tem progressões harmónicas, tem estribilhos, geralmente, tem regras muito fixas, dentro das quais há uma grande liberdade. As palavras têm uma métrica muito própria, que tem de ser musical, e não é por acaso que começo geralmente pela música. As palavras, quando aparecem, estão já a espraiar-se numa determinada frase musical. E têm rimas, quase sempre, é raro não ter uma canção com rimas, até porque gosto delas. Depois, há a conjugação dessas duas formas de expressão, para que pareça uma coisa única. A grande vitória de uma canção é nós sentirmos que aquela letra e aquela música sempre conviveram, e não podiam existir uma sem a outra. É evidente que também tenho versões instrumentais e já publiquei textos das minhas canções, mas é sempre uma parte de um todo. O todo é a canção, é o objecto canção. Portanto, são abordagens completamente diferentes. A escrita de ficção é uma escrita que vai acontecendo continuamente e que se vai estruturando. Uma canção é uma peça de joalharia. Ou de relojoaria. “Coração Mais que Perfeito” é uma história de amor – e eu diria que não poderia ser de outra maneira. Eugénia é uma mulher que nos é apresentada através de um acontecimento trágico. Depois vamos voltar atrás mas, de facto, há um suicídio, embora não seja completamente expresso, de um grande amor – e foi um amor mútuo. O amor não se degradou, simplesmente o homem, o Artur, começou a ter um processo de decadência psíquica em que vai perdendo o pé e ninguém o pode agarrar. E quem é esta Eugénia? “Fala de ti própria, Eugénia”, lê-se no primeiro capítulo. Eugénia é uma mulher forte – é uma sobrevivente –, embora os seus valores não sejam sempre os mais recomendáveis. Ela não é um exemplo, mas também não é um livro pedagógico, não tem de ser uma personagem exemplar. É uma mulher cheia de defeitos, os valores dela são fortes mas, por vezes, também são um pouco voláteis. Não tem muitas referências: a mãe não é referência para nada, o pai desaparece muito cedo, e ela vai vogando na vida sem grande rumo. Os trabalhos dela não têm um fito profissional, ela vai vivendo as coisas. Mas vai vivendo com intensidade. Há uma altura em que resolve prostituir-se, durante pouco tempo, porque sim, porque uma amiga o faz e ela tem uma certa atracção por isso, por experimentar – mas, a certa altura, aquilo corre mal. É o contrário dele: ele é um actor, que esteve na escola de teatro, que sempre teve um fito na vida. Quando comecei a construir as personagens, não descobri logo o que é que ele faria, qual seria a sua profissão, porque achei que deveria ter uma profissão que o interessasse. A personagem do actor sempre me interessou porque eu estou a criar personagens – no fim de contas, estou a ser um dramaturgo. E o actor, à sua maneira, está a criar personagens – já existem, mas está a dar-lhes o seu corpo, a sua intenção, a sua voz estilística. E esse sim, é mais próximo de mim, porque também já fiz trabalho de actor e achei que esse desdobramento de uma vida noutras vidas era interessante. Como se verá, é também por essa outra vida que tem que ver com o teatro que ele começa a perder o pé psiquicamente. Depois fica mesmo psicótico, mas é um processo longo, que ocupa a segunda parte do romance. Esse desdobramento de uma vida noutras vidas acontece também no segundo romance, que já está escrito? Não. É outra coisa, é um assunto completamente diferente. Está escrito. Daqui a um ano, espero, falaremos outra vez, mas não. É um assunto diferente, um romance mais concentrado, no sentido em que tem quase exclusivamente duas personagens e, a dois terços do livro, aparece uma terceira. É mesmo outro assunto. Este assunto passa-se ao longo de vários anos, num período extenso de tempo, e o outro não. O terceiro [livro] está parado porque estou a canções. Este ano sairá ainda um novo álbum, lá para Setembro. Sobre esse novo disco, o que é que já está pensado? O disco vai ter várias parcerias musicais. Já aconteceu, nalgumas canções, outros compositores fazerem as músicas e eu fazer as letras todas – desde as colaborações brasileiras aos Clã, com “O Sopro do Coração”, que tem música do Hélder Gonçalves e letra minha. Aqui, quis levar um pouco mais longe isso e, portanto, há canções que vão estar neste disco em que a música não é minha, mas em que estou a fazer também esses casamentos. Há duas canções – e essas são letra e música minha – que são originalmente do filme do Ivo Ferreira que está a ser rodado aí em Macau, e que são cantadas no filme pela Margarida Vila-Nova. O filme tem três canções minhas – duas delas, vou cantar à minha maneira no álbum. Há quase seis anos, quando falámos a propósito dos 40 anos de carreira, dizia que tinha vontade de voltar a Macau. Na altura, não era algo que estivesse em perspectiva. Depois disso, já houve dois convites e uma participação num filme que está a ser rodado aqui. Macau está a entranhar-se cada vez mais. É a sexta vez que vou a Macau. A primeira vez que fui, Macau era muito diferente, como é evidente. Foi em 1990. A Fundação Oriente convidou-me e fiz aí um concerto, depois também fomos a Goa e a Pangim, fui para a abertura oficial da delegação. Na altura, o Lisboa era o grande casino e depois havia os casinos flutuantes. Depois, há quase 12 anos, estive no Festival de Artes de Macau, mas entretanto tinha voltado lá. Estive no 10 de Junho há dois anos e agora regresso. Macau está a tornar-se cada vez mais familiar, porque vou conhecendo gente, outras pessoas com quem me cruzo. Estou muito curioso em relação ao festival Rota das Letras. Há dois anos, tinha estado com o Hélder Beja e o Ricardo Pinto, que tinham manifestado a vontade de ir ao festival e o aparecimento do romance propiciou isso. É mesmo com alegria que volto a Macau. Gosto muito de voltar aos lugares que vou conhecendo, ver o que está intacto, o que mudou, passear por ruas que já me foram familiares. Gosto muito de descobrir lugares, mas também gosto muito de voltar. Estive no início do ano no Rio de Janeiro, um lugar onde tenho onde ficar, em casa de amigos, que é uma cidade extremamente familiar e é muito bom tornar a calcorrear aquelas ruas. É a sensação de que o mundo também nos pertence. Sou um observador do que está à volta – observador em todos os aspectos, até no criativo – e voltar a Macau é mesmo uma alegria.[/vc_column_text][vc_cta h2=”Palavras e música no Rota das Letras” h2_font_container=”font_size:40px” h2_google_fonts=”font_family:Oswald%3A300%2Cregular%2C700|font_style:300%20light%20regular%3A300%3Anormal” h2_css_animation=”none” shape=”square” style=”flat” color=”chino” use_custom_fonts_h2=”true” css=”.vc_custom_1488974315816{margin-bottom: 0px !important;border-top-width: 1px !important;border-right-width: 1px !important;border-bottom-width: 1px !important;border-left-width: 1px !important;padding-top: 20px !important;padding-right: 20px !important;padding-bottom: 20px !important;padding-left: 30px !important;border-radius: 1px !important;}”]A primeira intervenção de Sérgio Godinho no festival literário de Macau está marcada para o próximo domingo, dia 12. Às 19h, no edifício do antigo tribunal, é apresentado o livro “Coração Mais que Perfeito”. No dia seguinte, no local que serve de sede ao Rota as Letras, pelas 18h, participa numa sessão com o autor guineense Abdulai Silá, em que vai estar em discussão o papel do escritor na construção da identidade nacional. Sérgio Godinho vai ainda participar nas sessões destinadas aos mais novos: na segunda-feira, está na Escola Portuguesa e, no dia seguinte, na Escola Luso-Chinesa Luís Gonzaga Gomes. Na quarta-feira, o escritor de canções sobe ao palco do teatro do Venetian, para um concerto que começa às 20h30. O músico vem acompanhado pelo pianista Filipe Raposo.[/vc_cta][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][/vc_column][/vc_row]
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteRaquel Ochoa, autora da biografia de Manuel Vicente: “O seu génio era, por natureza, caótico” No meio dos esquissos pragmáticos fazia poesia e filosofia, buscava eternamente um desconhecido para o conhecer e criar uma outra coisa. A paixão pela arquitectura durou até ao fim, tal como o lado pop que marcou um génio “irrepetível”. O livro “Manuel Vicente: A Desmontagem do Desconhecido” é hoje apresentado no edifício do antigo tribunal, no âmbito do festival Rota das Letras [dropcap]C[/dropcap]omo é que chegou a Manuel Vicente e à possibilidade de escrever a sua biografia? É uma aventura com muitos anos, porque escrever sobre Manuel Vicente é tudo menos fácil. Não é uma pessoa com um carácter e um percurso linear. Nenhum ser humano é, mas o Manuel Vicente destaca-se. O seu génio era, por natureza, caótico. Ele costumava dizer que a maneira de se ordenar era utilizando aquelas grelhas que ele usava muito na sua arquitectura. Quanto ao resto não seguia um padrão, não tinha uma forma de querer agradar a um qualquer parâmetro. Começámos este trabalho com o apoio do Centro Cultural e Científico de Macau. Um amigo que foi aluno dele, o Sérgio Xavier, disse-me: ‘Tu que escreves biografias vais adorar o meu professor, que é um homem que eu adoraria que alguém que não tem nada que ver com a arquitectura tentasse capturar a sua personalidade’. Fui um pouco sem saber ao que ia, mas fiquei imediatamente convencida. Comecei então a entrevistar Manuel Vicente, a conhecer alguns dos seus amigos. Isto durou dois anos e nunca pensámos que iria demorar tanto tempo a ser publicado o livro. O que levou a isso? Ele adoeceu e, antes disso, estava com trabalho e menos tempo. Por causa da doença afastámo-nos, ele afastou-se de toda a gente. Após a morte dele demorei a encontrar a finalização do projecto. Porquê? Este trabalho não é uma biografia, chamo-lhe ensaio biográfico. Se estava pensado para ser uma biografia, não pôde ser no final devido à sua partida. Houve histórias que ficaram por contar. O meu trabalho não ficou completo e tinha de assumir um risco. Ou finalizava a biografia com um método que não é o meu ou tinha de chamar-lhe outra coisa, e torná-lo num documento interessante e importante para entender a vida de Manuel Vicente. Aí foi essencial a aproximação e interesse de Rui Leão, que foi seu colega e que o conheceu muito bem. Deu-me algum apoio e a sua equipa direccionou-me onde estava perdida. Depois fiz várias entrevistas e pude completar esta biografia. Tive acesso a um trabalho do Bruno Alves, que fez uma tese de mestrado sobre o arquitecto. Que Manuel Vicente podemos ter no livro? Vamos ter o homem caótico ou o arquitecto que gosta de pop art? É uma pergunta à qual é difícil responder. Sempre quis mostrar o Manuel Vicente íntimo, que não era nada fácil. O meu foco não é, de todo, a arquitectura. Esta aparece porque é a linguagem dele, é a maneira como ele se projecta na sua construção como pessoa. Percebo pouco ou nada de arquitectura e, aliás, a feitura deste livro muda-me completamente a visão que tenho sobre ela, sobre as cidades. As conversas com ele alteraram também a minha maneira de olhar o mundo. Há uma alteração entre a Raquel que não conhece o Manuel Vicente e a Raquel que passa a conhecê-lo. Fascina-me o carácter, o pensamento filosófico. O que me interessou partilhar foi: porque é que este homem consegue pensar desta maneira. Ele próprio era uma pessoa do mundo. Muitos consideram-no um arquitecto de Macau, mas ele não gostava muito dessa designação. Não posso com toda a certeza dizer que não gostava, mas posso dizer que ele se via como um arquitecto do mundo. E com muito mundo. Essa é uma das facetas que tento ao máximo apresentar de uma forma muito simples, contando episódios passados em várias partes do mundo e as pessoas que o influenciaram. Uma das coisas que mais gosto de fazer na vida é viajar e identifiquei-me muito com o Manuel Vicente viajante. Há episódios incríveis na vida dele. Há um episódio em que ele tem a oportunidade de dar quase a volta ao mundo durante seis ou sete meses. A primeira mulher está grávida e, por um acidente de percurso ele perde um transporte, e quando chega à maternidade a mulher já tinha tido o filho. Obviamente ela não gostou, ele conta isto com imensa pena, mas este episódio revela bem o viajante que Manuel Vicente era e também o que é viajar: faz-nos também perder muitas coisas. Até ao fim da vida, lidou com as consequências de ser um viajante e de não ser um homem que assentou só num sítio. Falo nomeadamente da dificuldade que é estudar a obra arquitectónica dele, que é uma obra dispersa. Que pessoa foi o Manuel Vicente que não está espelhada nos edifícios que desenhou? Há outro lado? Sem dúvida. Qualquer pessoa que tenha tido a oportunidade de privar com ele entende essa espontaneidade com que ele falava e se incorporava nas coisas. Ele tinha uma forma de ver esta planta que aqui está numa rua, numa cidade, num projecto. Tinha uma maneira de emergir nas coisas. Incorporava-se nas coisas com um mergulho completamente louco, de uma maneira incansável. São épicas as histórias dos seus ateliers, em que todos viviam praticamente neles. Ele impunha esse ritmo, mas aquilo era uma festa, não era nada imposto. Esta é talvez a faceta mais conhecida dele, a maneira fogosa com que ele vivia as coisas. Para mim, o mais interessante foi captar tudo isso em discurso directo. É ouvir a maneira como ele sussurrava as coisas. Em pormenores tentei ao máximo trazer essa voz dele, dos tempos que precisava para começar a falar das coisas. Não o vejo ou nunca o vi como arquitecto, como os outros olham para ele e têm um enorme respeito pela sua arquitectura. Entendo esse respeito, mas o que me fascinou foi o pensador Manuel Vicente. A maneira como ele pensa sobre a construção de uma identidade, de um povo. Quando pensamos na arquitectura pensamos em algo estático, com números, linhas, e ele ia além disso. Ia além desse pensamento pragmático. Sim. Ele tinha uma objectividade que é clara nas suas obras, mas era dentro dessas linhas que ele criava poesia. Eu também o via como poeta. Estava sempre a fazer grandes anotações de frases que ele dizia e que eram autêntica poesia. Confesso que vi o meu trabalho inacabado, mas chegámos a um produto final que vale a pena. Não é por acaso que não existem milhares de biografias sobre ele. É muito difícil encontrar um fio condutor para a história da vida dele. Era um homem de uma errância em relação ao pensamento e espaço físico onde viveu, e à própria arte que praticava. Ele recebeu influências de arquitectos também eles completamente erráticos e fora do sistema, e tudo isso é difícil de compilar e colocar numa obra biográfica. Nessas conversas como surgia Macau? Surgia de forma espontânea, era um território que lhe dizia muito? Macau surgiu nas nossas conversas constantemente. Não houve uma conversa em que Macau não surgisse. Era muito giro, porque ele tinha várias Macau na sua vida. Tinha a Macau que guardava de forma cinematográfica na sua cabeça, do período em que chegou [ao território], daquilo que foi a primeira grande paragem em termos profissionais. Depois tem a fase de Macau de grande trabalho e intervenção na cidade. Depois há uma terceira Macau, de fazer o seu trabalho olhando para as condições políticas que aqui existiam. [Desse período] também tem bastantes histórias para contar, mas sempre reservado. Muitas das informações nem surgem em discurso directo, mas sim com base em jornais. Há depois uma última Macau, quando ele tem cá o atelier, mas está baseado em Lisboa. É a Macau em que tudo o que ele é e sente vem daqui mas, ao mesmo tempo, com algumas amarguras, nomeadamente a história do Fai Chi Kei. Quando demoliram o complexo de habitação pública. Ele tem um episódio que acho curial. Quando lhe perguntei o que achava desta demolição, conta que, durante os primeiros anos de Macau, houve alguém que tentou alterar a fachada de um edifício que ele tinha feito e que aquilo o transtornou por completo. Aí era o Manuel Vicente ainda jovem. Ele disse-me isso de uma maneira muito gira: ‘A minha tensão arterial foi para um nível que nunca mais saiu de lá. Percebi nesse momento que as minhas obras são as minhas obras, e eu sou eu’. Então, em relação ao Fai Chi Kei, ele dizia que era uma pena, mas que as cidades evoluem. Que lhe custava, mas que não ia pensar muito nisso. Que outras mágoas levou de Macau? Ele não era um homem de muitas mágoas. Esta é a resposta politicamente correcta, mas é verdadeira. Ele era um homem que respirava a projectar e dizia que a vida dele era fazer arquitectura. A única mágoa dele foi talvez não lhe terem dado mais trabalho. Acredito que o projecto da Expo 98 que foi demolido também tenha sido uma mágoa para ele, por ser a obra lindíssima que era. Teria outras, mas estas eram as mais evidentes. Ele era uma pessoa que explodia quando tinha de explodir, eu ainda tive uma quota-parte disso, mas não se compara a outras situações que aconteceram. O Manuel Vicente que conheci, nos últimos anos, é alguém completamente resolvido, à excepção de não se conformar com o facto de ter menos trabalho. A arquitectura esteve à frente da vida pessoal? Não sei se tenho estatuto para responder a isso. Sei que pôs a arquitectura à frente de tudo e mais alguma coisa, muitas vezes. Não sei se fazia isso de forma sistemática. A arquitectura era a sua grande paixão, mas adorava os filhos. Sempre que podia falava da segunda mulher, Teresa, falava com imenso respeito da primeira mulher, e a legião de amigos era muito referida. Era um homem de afectos, terá tido muitas loucuras e, nessa busca pela arquitectura, terá feito alguns atropelos. O livro chama-se “A Desmontagem do Desconhecido”. É o desconhecido para além do que foi edificado? É enigmático, foi difícil pensar um título à altura. A desmontagem vem da maneira que ele tinha de ver as coisas, de as desmontar. O desconhecido surgiu porque tudo o que era novo, o que ele não conhecia, era o que o animava. Percebi isso nele: ele queria ir em busca do desconhecido para depois desmontar e montar de novo à maneira dele. Há muitas histórias da infância neste livro, sobre a deficiência que ele tinha numa anca. Teve uma infância demolidora, passou 12 anos numa cama. Talvez venha daí a vontade de ir à aventura. Sim. Quando entendemos a infância que ele teve e de como a família o apoiou, que ele talvez não contasse no escritório, é interessante percebermos isso. É como a aventura na Índia, que o marca enquanto jovem. Ele tem também uma aventura em Karachi, no Paquistão, e o regresso da Índia é uma viagem que dá um livro. São coisas que se narram de forma breve e consistente neste livro, e que nos fazem aproximar de novo desta pessoa, que é muito saudosa para Macau e Portugal, para o mundo da arquitectura e dos pensantes que gostam de falar com alegria, a sorrir. Ele era essa pessoa. Que legado deixa ele? Há muita gente que, a partir do momento em que entra em contacto com ele e com a sua obra, percebe que Manuel Vicente é irrepetível. Tem este lado pop, uma linguagem apelativa para um jovem que goste do lado disruptivo da arquitectura. Acho que as pessoas que se interessam por este mundo não consensual da arquitectura o vão procurar e estudar.
Sofia Margarida Mota Entrevista MancheteMargarida Saraiva: “É necessário avançar com coragem” Margarida Saraiva dedica a vida e o tempo à arte. A fazer curadoria no Museu de Arte de Macau, tem a carreira marcada pela dedicação à investigação e à educação. Há três anos fundou a Babel, associação que se dedica à arte contemporânea numa vertente pedagógica, sem esquecer questões ambientais [dropcap]O[/dropcap] seu nome tem estado, ultimamente, associado à curadoria. Como é que apareceu esta vertente no seu trabalho? Estudei História de Arte e depois Museologia. Trabalhei muito tempo como investigadora, mas era um trabalho que acabou por ser tornar aborrecido por sentir que tinha pouco contacto com as pessoas. Foi então que comecei a trabalhar voluntariamente em educação e a fazer cursos de artes para crianças. A minha função dentro do Museu de Arte de Macau (MAM) passou a estar mais ligada à educação do que à investigação. Entretanto, decidi criar a Babel para fazer mais coisas e a curadoria acabou por se lhe seguir. Sou curadora das pinturas históricas e contemporâneas do MAM e, em Abril, vai ser inaugurada a primeira exposição com esta função. O que podemos esperar desta exposição? É um trabalho centrado na mulher. A exposição divide-se em dois momentos: um baseado em pinturas, aguarelas e gravuras históricas que vão até meados do séc. XX com agenda para Abril e, perto do final do ano, tem lugar um segundo momento que inclui obras feitas apenas por artistas mulheres de Macau. O primeiro momento dá uma visão do papel da mulher na sociedade e a forma como ela é apresentada ao mundo da história da arte. A história da arte reforça o papel que a mulher deve ter. Temos obras sobre os dez trabalhos da mulher na sociedade chinesa, o casamento, a mulher na publicidade e o seu papel na família. Temos também retratos a óleo de mulheres proeminentes na sociedade local. É uma visão alargada daquilo que existe na colecção do museu. Vamos incluir também cerâmicas e tentar que a exposição não se feche, tentei uma abordagem interdisciplinar. A colecção do Museu de Arte de Macau situa-se, de um certo ponto de vista, na con uência de duas tradições artísticas muito diferentes. Temos obras que são maioritariamente de tradição chinesa e outras de tradição ocidental. Juntar as duas coisas na mesma exposição não é fácil, mas penso que consegui encontrar o fio à meada. Porquê o tema? Uma forma de intervenção? É absolutamente evidente que o papel da mulher continua a ser subvalorizado na sociedade contemporânea local. Nessa perspectiva, vale a pena pensar acerca desse assunto, até para estimular a criação artística entre as mulheres. Como é que vê o panorama dos museus e espaços de exposições em Macau? Macau tem espaços óptimos. A ideia de que não os há é uma falsa questão. A arte, hoje em dia, não precisa de galerias da mesma forma que as instituições não precisam de ter um lugar físico. O que é necessário é criar conteúdos porque há muitas instituições com espaços sem nada e que estão cheias de equipamentos sem ser utilizados. O que realmente interessa é criar conteúdo de qualidade e, quem for capaz de o fazer, tem as portas abertas em todas as instituições. Há também a cidade inteira que pode ser uma galeria gigante e que é um espaço fantástico a precisar de arte em todo o lado. “É absolutamente evidente que o papel da mulher continua a ser subvalorizado na sociedade contemporânea local.” Onde estão os artistas para esses espaços? Nenhuma cidade do mundo trabalha apenas com os artistas locais. É preciso criar sinergias e, nesse particular, os curadores podem dar uma ajuda: pôr as pessoas a trabalhar em conjunto. Colocar pessoas que sabem mais a comunicar com aquelas que possam ter menos oportunidades, os que têm mais conhecimento e menos capacidade económica com o inverso. É preciso fazer um caleidoscópio para que as coisas brilhem. Mas, para isso, é preciso fazer e querer. É necessário avançar com coragem, que é uma coisa que, por vezes, falta. Falta capacidade de visão, falta coragem na realização e falta capacidade de criar esse tal caleidoscópio. É aí que se insere a Babel? Gostava de trabalhar de uma forma interdisciplinar nas vertentes da arte contemporânea, da arquitectura e do ambiente com uma missão educativa, ou seja, com o objectivo de gerar oportunidades de aprendizagem reais, concretas, eficazes e, de alguma forma, inesquecíveis para jovens de Macau. O primeiro projecto que fizemos foi o “Influxos”. É uma ideia que envolve pessoas de Pequim, Macau e Portugal. É um projecto em movimento em que cada edição tem início em lugares diferentes. Juntamos estudantes da área do cinema e da arte contemporânea num processo criativo comum. Apresentamos aos alunos a forma como os artistas contemporâneos têm introduzido o cinema nas suas obras. Por exemplo, um filme pode ser concebido para ser projectado numa bola de gelo gigante que está permanentemente a derreter e, neste caso, a forma como vemos o filme, como o pensamos ou o escrevemos é diferente do que se aprende numa escola de cinema – e também não se aprende numa escola de artes onde as disciplinas ainda estão muito divididas. Com o “Influxos” queremos criar uma oportunidade que seja inesquecível, não só pelo facto de permitir aos alunos de várias partes do mundo trabalharem num projecto comum, mas também por promover uma abordagem mais experimental do que a que propõem, hoje em dia, as universidades. Foi um projecto muito bem-vindo pela parte do Instituto Cultural e, como tal, não tivemos dificuldade para que fosse financiado, porque vai ao encontro de toda uma política de promoção das indústrias culturais. Como é que tem sido a adesão, especialmente dos estudantes do território? Os alunos são, até agora, escolhidos pelas universidades e cabe às instituições decidirem o método de selecção. Estamos agora a pensar abrir, nas próximas edições, candidaturas independentes. Mantemos o modelo em que há uma participação fechada e, ao mesmo tempo, abrimos espaço a alunos que mostrem o portfólio para poderem ser seleccionados. O novo modelo tem a vantagem de abrir o leque de participações. O sucesso do projecto regista-se quando alunos de Macau descobrem que sabem pouco e que vale a pena investir em estudos em Pequim ou em Portugal. O confronto com a necessidade de mais conhecimento é muito importante para os alunos que nunca saíram do território. O “New Visions” é outro projecto da Babel, mas com foco na divulgação. As exposições em Macau são sempre colectivas. É evidente que, numa mostra colectiva, não se consegue ver a qualidade da obra de um artista. As exposições colectivas são muito boas porque mostram muita gente. Isto é óptimo para pôr nos relatórios que as instituições têm de fazer umas para as outras, para justificar gastos e preencher formulários. Dá muito jeito dizer que uma exposição teve 30 artistas, mas o que é que realmente as pessoas viram do trabalho de um criador ou o que é que o artista bene cia com a participação? Quisemos deliberadamente criar uma oportunidade dirigida a jovens artistas locais e trazer a este espaço pessoas que nunca tivessem tido oportunidade de fazer uma exposição individual. “Há a cidade inteira que pode ser uma galeria gigante e que é um espaço fantástico a precisar de arte em todo o lado.” Como é que se processa? Não se trata apenas de uma exposição. Cobrimos todos os gastos de produção da exposição, o que também é uma coisa rara em Macau. As instituições normalmente têm espaços, gastam todo o dinheiro na sua manutenção e acabam por não ter meios para apoiar os artistas. O resultado é que os artistas que quiserem expor têm onde fazê-lo, mas têm de pagar do seu bolso toda a produção da obra. Isto não acontece em mais nenhuma profissão. O objectivo, aqui, é ainda produzir um livro. Aqui não há produção de um discurso crítico sobre a arte e, como tal, as exposições são apenas acerca de pôr obras na parede. Não há o pensamento do porquê de estarem expostas, de como estabelecem um diálogo entre si, como se ligam ao que é produzido na China e como se articulam com o que se faz no mundo. A qualidade das obras depende de uma malha de referências em relação às quais se situam e que lhes permite produzir discurso crítico visual a um nível mais alargado. Foi neste sentido que quisemos fazer um catálogo que produza esse discurso crítico. É um livro com muito texto que nos permite, a longo prazo, escrever a história da arte contemporânea de Macau. As preocupações da Babel associam a arte ao ambiente. Como é que se concretiza esta vertente? Relativamente ao ambiente, acabámos de participar na produção do livro “Árvores e Grandes Arbustos de Macau”, de António Paula Saraiva. O lançamento está previsto para este mês. Trata-se de um livro técnico e é a mais completa compilação sobre as árvores de Macau, numa edição trilingue e com ilustração de artistas portuguesas. Os desenhos são feitos a lápis e aguarela. Originalmente, a intenção era a produção de 256 gravuras mas não houve orçamento para tanto. Já zemos uma exposição no Instituto Internacional, e os desenhos vão ser digitalizados e impressos em tela de modo a circularem pelas escolas de Macau. O objectivo é dar a conhecer os principais arbustos da cidade à população mais jovem. É uma forma de sensibilização para as questões ambientais. Macau é muito densamente povoado e construído, mas não conseguimos ver as árvores. Quando andávamos a fazer o livro era impossível fotografar as árvores inteiras. Há sempre muito ruído e as plantas estão cobertas de pó. Este foi o trabalho que abriu as hostes na área do ambiente. “Não quero cá trazer um artista que depois se vá embora sem deixar rasto. É fundamental que os jovens locais possam trabalhar em conjunto com artistas que vêm de fora.” Este ano tencionam criar uma instalação num espaço público em grande escala que conta com a participação de um arquitecto japonês. O que é que vai acontecer? Na área da arquitectura temos o “Macau Arquitecture Promenade” (MAP) em que intervimos em espaços da cidade. É um projecto que não é tão linear quanto os anteriores. Enquanto o “Influxus” e o “New Visions” vão de encontro às linhas de acção governativa, o MAP vai mais à frente. Não é de nível. A edição de 2017 não está garantida. Temos o programa nalizado, mas ainda não temos orçamento suficiente para avançar. Contamos com a vinda de um artista japonês que resulta de uma parceria que a Babel tem com o Departamento de Arquitectura da Universidade de São José. Surgiu, desta forma, a possibilidade de trazer um arquitecto que trabalha com questões modulares no espaço público. Chama-se Kengo Kuma. Temos o arquitecto satisfeito com a ideia de cá estar e queremos também trabalhar com os alunos da universidade no desenvolvimento do design final da instalação. Não quero cá trazer um artista que depois se vá embora sem deixar rasto. É fundamental que os jovens locais possam trabalhar em conjunto com artistas que vêm de fora.
João Luz Entrevista MancheteJoão Palla, arquitecto: “Macau inspira brutalmente” É inaugurada amanhã a exposição “Tracing * Liners”, de João Palla, na Casa Garden. Falámos com o arquitecto e multifacetado artista sobre a beleza de linhas pintadas no alcatrão, acerca de mosaicos urbanísticos, assim como da paradoxal relação entre os mimetismos e a autenticidade de Macau [dropcap]D[/dropcap]e onde vem o nome desta exposição? A exposição intitula-se “Tracing * Liners”. Baseia-se no ‘tracing’, que é o acto de delinear, o delineamento. São feitos pelos ‘liners’, os homens que fazem os traços nas estradas. De certa maneira, a exposição também é uma homenagem, um tributo, aos homens que fazem esse trabalho, que são bastante invisíveis na sociedade. Acabei por trabalhar com eles num sentido evolutivo, tudo começou com a observação da realidade das linhas que nos rodeiam. Uma pessoa todos os dias conduz e vê os traços contínuos, linhas amarelas, linhas brancas, por aí fora. Também no passeio há sinais que, ao mesmo tempo que nos guiam, também nos baralham. Uma pessoa vai ao aeroporto e também é bombardeado com sinalética, linhas no chão, não pode passar aqui, nem ali. Nos museus a mesma coisa, não se podem pisar as linhas porque se não fica-se demasiado próximo das pinturas. Alguém pensa nessas linhas, alguém as faz, comecei, simplesmente, a olhar para elas e achar que tinham qualidades gráficas e pictóricas muito especiais. Porque elas variam, se uma pessoa estiver na China elas são feitas de uma maneira, com um código próprio, mas se estiver em Macau elas são feitas com outra forma. Em Taiwan as linhas de proibição são desenhadas a vermelho, aqui são a amarelo. A tinta, em si, também tem muito que se lhe diga, precisa de ser aquecida a 300 graus para ser aplicada, tem cristais reflectores. Essas qualidades da tinta, e de quem a faz, interessaram-me muito e essa é a base da exposição. Que suportes usou nesta exposição? Uso a fotografia para registo, uso instalação na rua que, como não pôde ser transferida para a galeria, foi novamente fotografada. A fotografia volta com um sentido diferente, uma coisa é a observação do que lá está, outra coisa é o sentido de registo daquilo que foi feito. Depois há o trabalho que foi feito com os próprios homens que desenham as linhas, que se traduz em pintura e vídeo. São estes quatro veículos que foram usados para exprimir o conceito exposto, uns que ajudam à observação e outros que são de dispersão. Enquanto arquitecto, como vê a evolução de Macau? Vivo cá há quatro anos e meio, estive cá nos anos 1980 e 1990. Sou, mais ou menos, daqui. Sou também, mais ou menos, dali. Em termos arquitectónicos e urbanísticos, não sendo demasiado saudosista, acho que muito do bom património arquitectónico de Macau acabou por ficar sucumbido. Aquilo que restou é uma arquitectura de cariz religioso, ou fortalezas, coisas mais institucionais. Da arquitectura civil pouco, ou nada, restou. Com a avalanche e o advento do betão dos anos 1970/1980, que ainda aconteceu nos anos 1990, a parte do património que era muito interessante, a escala da cidade, transformou-se por completo. Lamento, porque havia uma escala humana que hoje em dia não me parece tão sustentável e que tem implicações ao nível do clima e temperatura, dos ventos que acabam por não correr. Mas nem tudo é mau. Não, por outro lado Macau viu um desenvolvimento brutal que também tem lados positivos, que trouxe uma certa internacionalização ao território com pessoas com know-how. Pessoas que vêm de todo o mundo e que, neste momento, coexistem nesta terra, valorizam-na e têm iniciativas. Nesse sentido, acho que Macau melhorou. Mas se formos para os lados dos casinos, acho aquilo um absurdo. Não tanto a escala, mas a arquitectura que se fez, o mimetismo de coisas que já existiam, pastiches. Na minha escola de arquitectura nunca aprendemos a apreciar este tipo de atitude de projecto arquitectónico. Como arquitecto europeu no Oriente, como é que coabita com as réplicas da Torre Eiffel ou, por exemplo, com a Doca dos Pescadores? Não convivo muito bem, mas uma pessoa aprende a conviver. Mas, à partida, não é uma coisa com que esteja de acordo. Há aqui arquitectos e designers com criatividade suficiente que podiam ter tornado Macau numa cidade única, que já era, e não num sítio de repetições. Esse mimetismo, essa redundância é a tal ponto que julgo que os próprios chineses preferem ir aos sítios originais. Eles já têm poder de compra para ir às cidades originais, em vez de virem para aqui. Antes havia uma certa fantasia desses lugares, isso justificava-se, hoje em dia não se justifica de todo. Os chineses que podem não vão ao Venetian, vão a Veneza. Penso que as repetições são sítios que se vão esgotar e terão de ser reinventados mais tarde. Talvez tenham servido um propósito durante algum tempo. Acha que Macau corre o risco de perder autenticidade, no meio desta mutação constante, ou isso é a sua própria identidade? Uma das coisas que tem caracterizado Macau nas últimas décadas é a sua transformação rápida. A sua identidade depende disso, mas também das pessoas que cá moram. O que vemos hoje em dia é que Macau está a perder essa identidade também pelas pessoas que a habitam, não são só pessoas de cá. Há um factor transitório na cidade. Costuma-se dizer que Macau é um ‘melting pot’ de culturas. De facto, foi durante estes 500 anos, mas era a mistura da cultura portuguesa e da cultura chinesa, assim como de poucas outras que não tinham expressão. Hoje em dia há mais pessoas de várias nacionalidades que vivem em Macau. Mais tarde, ou mais cedo, também será interessante ver como as coisas se vão modificar, o poder de Macau se metamorfosear noutra coisa. Desse ponto de vista nada está perdido. Tudo se transforma, uma espécie de Lei de Lasoivier urbanística. O que está feito hoje não quer dizer que fique. Interessa-me muito ainda a questão do património vernacular, ou seja, tudo aquilo que as pessoas normais fazem pela sua própria cultura. Isso inclui os vendedores de rua, as farmácias antigas, as mercearias, a ourivesaria antiga já não existe, assim como o homem que fazia as sedas, o alfaiate. Este património pode ser engolido pelo fenómeno globalizante que está a acontecer um pouco por todo o mundo como, por exemplo, em Lisboa. Considero esse património a base da identificação e da autenticidade, esse valor diferente que Macau tem sente-se quando uma pessoa anda na rua e vê as pessoas que vendem maçãs. Esse aspecto está-se a perder, não está a ser cuidado, ninguém toma conta disso e isso é lamentável. Depois há as técnicas de construção tradicionais, algumas ainda se mantêm, como a construção em bambu que é um aspecto a valorizar, como é valorizado o fado. No fundo é um conhecimento empírico que vai de geração em geração. Se essas pessoas que sabem fazer hoje não passarem esse conhecimento, essa arte, também vai morrer. Trabalhei muito em bambu com os mestres carpinteiros, a fazer cenários para peças de teatro e instalações. Interessam-me estas artes antigas de como se fazem as coisas. Esta exposição, de alguma maneira, também está relacionada com isto. Qualquer dia também já não existem os homens que pintam as ruas, são substituídos por máquinas. Eles fazem aquilo manualmente, quase à unha, pintam delicadamente. No meio disto tudo, Macau ainda é uma cidade que o inspira? Inspira brutalmente, porque Macau é uma cidade onde há muitas actividades de rua, pessoas de passagem, onde ainda há muita tradição, muitas sobreposições. Além disso, é uma cidade muito fotogénica. Há sempre motivos para uma pessoa se inspirar aqui. Não preciso de ir a lado algum. Macau é uma terra suficientemente rica de sinais para extrair qualquer coisa, é uma cidade que inspirou, desde há muito tempo, artistas e acho que vai continuar a inspirar. Macau sempre teve muita diversidade. Vais à Praia Grande, que era a cidade onde viviam os portugueses, passas da cidade cristã para a cidade chinesa, onde é hoje em dia o Bazar e a Nossa Senhora do Amparo. Ainda hoje se consegue perceber pela textura da cidade, pelo desenho urbano, se vires o tamanho dos quarteirões, as ruazinhas em contraponto com as avenidas mais largas, isso é reflexo daquilo que já estava desenhado há muito tempo. Esse urbanismo é muito interessante, assim como o crescimento sempre evolutivo da cidade com os sucessivos aterros desde o século XVI até hoje, sempre em mosaico.
João Luz Entrevista MancheteEntrevista | Pedro Mexia, crítico literário e cronista Pedro Mexia é o homem dos sete ofícios literários. Publicou poesia, faz crítica literária, crónicas, comentário político e é um dos membros do Governo Sombra, programa da TSF que passa na TVI 24. Pedro Mexia estará no festival literário Rota das Letras no próximo mês [dropcap]C[/dropcap]omecemos pela política portuguesa. Que balanço faz do Governo liderado por António Costa? É uma novidade, nunca tinha sido tentado e conseguido uma aliança de esquerda no parlamento, assim como nunca tinha acontecido ser o segundo partido mais votado a liderar um Governo. Isso causou alguma perplexidade e acusações, acho eu, despropositadas de ilegitimidade. O que acho que tem acontecido é que estão todos a fazer um esforço bastante grande para que o Governo consiga superar as divergências, muito grandes, que os partidos têm em certas áreas. Nomeadamente nas áreas das questões europeias ou na renegociação da dívida e, eventualmente, em outras que não vieram à baila, como a NATO. Tem havido um certo esforço para maximizar as áreas de concordância, tais como desfazer o que foi feito no Governo anterior nas áreas do trabalho, do rendimento. Também se tem tentado arranjar pontos comuns que permitam cumprir a legislatura. Parece-me que, neste momento, nenhum dos eleitorados dos partidos que apoiam o Governo do PS veria com bons olhos que se tirasse o tapete ao Governo. Está a ser uma legislatura em esforço dado o facto de esta solução ser melindrosa mas, globalmente, do ponto de vista do Governo, parece estar a correr bem. Parece existir uma espécie de extensão político-social que acho que tem beneficiado muito a percepção pública do trabalho do Governo. E como tem visto a actuação da oposição? O PSD tem tido uma atitude um pouco insólita que é, simplesmente, esperar que o Governo falhe nos seus propósitos e que, depois, o eleitorado reconduza o PSD nas próximas eleições. A oposição no Parlamento tem sido pouco construtiva e, nalguns casos, votando contra medidas que, no passado, defenderam, embora, em contextos diferentes. Acho que o PSD ficou muito atordoado com o facto de não ter governado na sequência das eleições que ganhou, é normal que tenha ficado. Mas não se percebe muito bem qual é o horizonte estratégico que tem, a não ser esperar. Isso parece-me que é pouco. O CDS, como já fazia quando estava no Governo, tenta sempre colocar-se um pouco à margem. Tenta passar uma mensagem mais positiva e menos agastada, mas está muito dependente do sucesso da sua líder na corrida a Lisboa. “O PSD tem tido uma atitude um pouco insólita que é, simplesmente, esperar que o Governo falhe nos seus propósitos e que, depois, o eleitorado reconduza o PSD nas próximas eleições.” Que ideia tem de Macau? Tenho alguma ideia do que vou lendo e do que me dizem algumas pessoas que conheço que aí estiveram e que aí vivem. Não é uma ideia muito substantiva. Há duas coisas que sobressaem, digamos assim, nos testemunhos que vou tendo. Uma tem que ver com o facto de a presença portuguesa ser relativamente incipiente, por exemplo, em termos da utilização da língua e do ponto de vista arquitectónico. Mas, por outro lado, parece haver uma comunidade portuguesa hiper-consistente, no sentido, por exemplo, da multiplicação de jornais. Parece haver uma compensação da diluição da presença portuguesa no que é hoje um território chinês. Como contraposição a isso uma comunidade que tem algum… não sei se dinamismo é a melhor palavra. Atrai-lhe a ideia da queda de impérios? Vê nisso algum romantismo? Claro que sim. Há uma cena muito boa na versão longa do Apocalipse Now, onde aparece uma plantação de uns franceses no meio da Indochina francesa. Aquilo tem imensa força porque é, realmente, o fim do mundo e isso tem um certo frisson literário. Por falar em apocalipse, como racionaliza o fenómeno Donald Trump? Não é muito difícil de racionalizar em termos do significado de um eleitorado descontente que queria, no fundo, alguém que partisse a loiça e que fosse completamente diferente. Alguém que tivesse um discurso, atitude e actuação completamente diferentes daquelas que os políticos mais conservadores, ou mais liberais tinham tido. Mas essa explicação racional, para mim, não chega para apagar certos paradoxos. Nomeadamente uma certa passividade do establishment republicano, que acordou tão tarde para o perigo real desta candidatura. Houve uma cisão muito grande dos opinion makers conservadores e dos políticos conservadores. Os primeiros, em geral muito críticos, e os segundos, no mínimo, conformados em relação ao Trump. Nem os paradoxos, evidentemente intrínsecos, dos descamisados e desempregados escolherem um milionário para protagonizar as suas queixas e os seus agravos. Além do mais, há algo que acho muito importante, as ideias dele são apenas uma parte daquilo que ele é. São ideias flutuantes ao longo do tempo, muitas vezes parecem improvisadas. O que acho realmente preocupante é a personalidade de Donald Trump. É uma personalidade infantil, de uma volatilidade, de uma fúria que amua, que seriam simplesmente risíveis num adulto, mas que dão bastante inquietude tendo em conta como ele vai reagir a assuntos sérios. Ele perde tempo a discutir quantas pessoas estavam na tomada de posse, a Casa Branca dedica-se a falar da marca de roupa da Ivanka. Esse lado é caricatural, mas há assuntos em que os Estados Unidos são protagonistas destacados que não são assuntos cómicos e, portanto, isso preocupa-me. “Donald Trump tem uma personalidade infantil, de uma volatilidade, de uma fúria que amua, que seriam simplesmente risíveis num adulto, mas que dão bastante inquietude tendo em conta como ele vai reagir a assuntos sérios.” O mundo aguenta uns Estados Unidos assim tão destabilizados? Não sei se isto vai durar a legislatura toda, há duas ou três hipóteses diferentes. Uma é a legislatura toda e, de facto, se a situação se degradar cada vez mais, não sei o que será daqui a um ou dois anos, se continuarmos a este ritmo. A segunda é isto continuar a esta ritmo e tornar-se uma espécie de novo normal e as pessoas habituarem-se, o que seria o resultado mais catastrófico de todos, achar que não tem mal o Presidente dos Estados Unidos dizer as coisas que diz e fazê-las, atacar a imprensa, juízes, etc. O terceiro, que seria o melhor dos resultados, seria os americanos afastarem este Presidente antes do fim do mandato. Porque, francamente, é um embaraço para a América e para o mundo. Como vê a ascensão de focos de populismo na Europa, nomeadamente de extrema-direita? Nalguns casos a deriva para o populismo não é propriamente de direita. Também tem havido movimentos importantes de populismo à esquerda. No caso da Grécia em que o Syriza varreu, praticamente, o PASOK. Na Espanha assistimos à emergência de um partido que acaba com o bipartidarismo, o Podemos. Temos também o fenómeno italiano do 5 Estrelas, difícil de classificar como sendo de esquerda ou de direita. Não é só a direita. Mas, claro que há uma espécie de Internacional Nacionalista muito activa, aliás, aparecem juntos em comícios. Houve as eleições da Áustria, o caso francês e o holandês. Na maioria dos casos talvez seja à direita, que está mais em ascensão, pela simples razão de, entre os principais temas, estarem a segurança e as migrações. São temas tradicionalmente mais caros ao eleitorado de direita. Portanto, é normal se há atentados, se há problemas com as vagas de emigrantes e refugiados, que a direita e a extrema-direita estejam particularmente activas. Li que a discografia dos The Smiths era algo de fundamental para si. Tem alguma música que destaque? Isso é complicado porque não são duas, nem três. Entre muitas há uma canção que acho particularmente curiosa, porque tem que ver com o facto de o Morrissey não ter grande receio de exprimir aquilo a que se pode chamar de maus sentimentos. É uma canção chamada “Death of a Disco Dancer” que, no fundo, é sobre um certo cepticismo face à ideia de que “nos vamos todos dar bem uns com os outros”. “All very nice, very nice…” “Maybe in the next world.” Há toda uma tradição “feel good” numa parte da música pop que ele rejeita claramente. Nem sei se é uma das melhores canções dos The Smiths, mas é muito exemplificativa de uma certa crueza com que o Morrissey trata os assuntos, de uma forma que não tínhamos visto antes. Essa canção, não sendo das minhas preferidas musicalmente, é muito exemplificativa da sensação que tive quando conheci a banda e percebi que era completamente diferente do que tinha ouvido antes. “Na maioria dos casos talvez seja à direita, que está mais em ascensão, pela simples razão de, entre os principais temas, estarem a segurança e as migrações. São temas tradicionalmente mais caros ao eleitorado de direita.” Costuma estar atento às novidades do panorama musical? Estou mais ou menos atento. Não sou, claramente, uma pessoa do hip hop nem da electrónica. Tenho um gosto um bocadinho delimitado na música pop que é, basicamente, as bandas de guitarras. Dentro desse nicho estou bastante atento, ainda por cima agora tenho um programa na Rádio Radar. Temos sempre um disco novo todas as semanas, estou mais atento por obrigação, mas não com o lado mais exaustivo que tenho com o cinema e com as estreias de cinema. Embora com o spotify, que sou subscritor, é mais fácil chamarem-nos à atenção e estar a par das novidades do que a picar a Internet aqui e ali, ou a comprar discos. Porque nunca se aventurou, em termos de escrita, no romance? O romance é uma obra de imaginação, pelo menos como eu o entendo. Simplesmente estar a contar uma história real mudando os nomes, que era o que eu faria se escrevesse um romance, parece-me desinteressante. Como não sou capaz de inventar coisas que não aconteceram, não sou capaz de escrever um romance. Como resolve o conflito entre a introversão e o papel público que desempenha? Não há nenhum conflito porque, para já, a maior parte do que eu faço é escrever e isso não se opõe à introversão, pelo contrário, até se casa bastante bem com ela. Outro tipo de actividades, ou compromissos, que eu tenha são obrigações em que procuro fazer o melhor. Está-se a trabalhar, a desempenhar um papel e, portanto, o facto de ser introspectivo, ou introvertido, não é contraditório com isso. As pessoas têm de fazer a sua vida, são-nos pedidas certas coisas e eu faço na medida do que posso e sei. Se eu tivesse de ser DJ, ou coisa do género, é que seria mais complicado.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteDireito | Ex-juiz diz que lei de contratações públicas “é permissiva” João Valente Torrão lança esta quinta-feira um livro que põe o dedo na ferida quanto à desactualização do regime de bens e serviços em vigor. A obra, intitulada “Regime jurídico da contratação pública da RAEM”, expõe as falhas de um diploma “desactualizado” e “permissivo”. O antigo juiz e formador de magistrados defende mais do que duas formas de contratação, com implementação do sistema online [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á muito que a adjudicação de bens e serviços por parte da Administração é o calcanhar de Aquiles de um Executivo que afirma governar em prol da transparência. Numa altura em que o ex-procurador da RAEM responde em tribunal por ter autorizado demasiadas adjudicações directas de bens e serviços para o Ministério Público, sempre às mesmas empresas, alegadamente de familiares, e sem concurso público, é lançado um livro que espelha os problemas do actual regime. João Valente Torrão, antigo presidente do colectivo de tribunais em Macau nos anos 90, formador de vários magistrados do território, lança esta quinta-feira a obra “Regime jurídico da contratação pública da RAEM”, na Fundação Rui Cunha (FRC). O livro será apresentado por Vasco Fong, ex-comissário contra a corrupção, actual director do Gabinete de Protecção dos Dados Pessoais. Em entrevista ao HM, João Valente Torrão defende a revisão do regime das despesas com obras e aquisição de bens e serviços, em vigor desde 1984. “A lei de Macau é uma lei que, em Portugal, já foi alterada várias vezes. A aquisição de bens e serviços é um diploma de 1985, o de Obras Públicas é de 1999. Mesmo o de 1999 não é um diploma muito vanguardista, digamos assim”, começa por apontar. Quais são, então, as maiores falhas? “Em primeiro lugar, a lei actual não obedece às regras internacionais, como a consagração de princípios como a transparência, imparcialidade, publicidade. Como digo no livro, o tribunal pode superar, e a Administração tem superado, através do Código do Procedimento Administrativo [a falta de uma lei actualizada]. O Código do Procedimento Administrativo é uma lei válida, que para mim tem o mesmo valor da Lei Básica. É possível ultrapassar essas questões.” João Valente Torrão defende ainda a criação de um sistema electrónico para as adjudicações feitas no seio da Função Pública. “Há o aspecto do uso electrónico da contratação. Em Portugal, e para que se tenha noção da importância disto, registaram-se em 2013 175 mil procedimentos electrónicos. Em Macau, entre 2000 e 2013, a contratação pública subiu de dois mil milhões para onze mil milhões de patacas. Em termos monetários, é muito importante.” João Valente Torrão defende ainda a criação de mais formas de contratação. “Há um atraso nos procedimentos, há apenas o concurso público e o ajuste directo. Em Portugal, na União Europeia e em toda a parte já existem vários procedimentos para a contratação pública.” Para além disso, a obra lançada pela FRC defende que a nova lei terá de apontar “as garantias dos interessados” no processo de contratação. “O principio da audiência prévia, antes da adjudicação, não está na actual lei mas está no Código do Procedimento Administrativo. A indemnização seria uma das garantias necessárias. “No caso da contratação pública, tem alguma gravidade, porque apenas se pode recorrer para o tribunal depois de estar adjudicado o serviço ou adquirido o bem. Em Portugal temos um serviço de contencioso que permite ir a tribunal logo enquanto o processo decorre. Tem alguns riscos, mas em Portugal está claramente identificada a possibilidade de indemnização. No livro também defendo que é possível uma indemnização.” China à nossa frente O antigo juiz, já retirado dos tribunais, não encontra uma explicação para a ausência de uma lei, quando a China já tem legislação avançada. “Essa importância é dada através das organizações internacionais, como a Organização Mundial do Comércio. A China já tem uma legislação mais avançada sobre esta matéria face a Macau.” “Se a própria China já tem esta legislação, não vejo porque é que aqui há-de continuar assim. Não garantem os direitos dos adjudicatários, porque não se conhecem melhor certos aspectos, e adoptar a contratação por via electrónica. Tudo isso é bom para garantir a imparcialidade, para diminuir as possibilidades de corrupção”, defendeu. Em Macau, muitas das adjudicações de bens e serviços acabam por ser feitas sem a realização de um concurso público. Não é ilegal, alerta o autor do livro, mas não está certo. “A lei é muito permissiva. A lei diz que se o concurso público não tiver êxito, vai-se para o ajuste directo. O ajuste directo exige a consulta de três entidades, mas isso pode ser dispensado ‘em caso de’. É provável que às vezes haja um abuso do ajuste directo.” A ausência de análise Para João Valente Torrão, o facto de só agora o Governo estar a elaborar um novo regime de aquisição de bens e serviços pode advir do facto de haver pouco debate sobre o assunto. “Este diploma é de 1985, já poderia ter sido actualizado pelo menos em 2000, no início da RAEM. Como não se levantam muitas questões, talvez seja por isso que o Governo não está pressionado a fazer alterações.” No geral, aponta, há falta de estudos na área do Direito. “A questão também não é levantada em tribunal. Sobre esta matéria encontrei apenas meia dúzia de artigos. Aqui não se estuda muita coisa porque as pessoas não têm o espírito de litigância [de levar casos a tribunal]. Como não aparecem muitos casos, os advogados não estudam e os tribunais não decidem.” O facto do Governo ter começado a reagir tarde a diversos relatórios do Comissariado da Auditoria e Comissariado contra a Corrupção não é, para o antigo juiz, uma forma de descredibilização destas entidades. “ O Governo tem as suas prioridades. O facto de responder tardiamente não significa menos respeito por essas entidades. Até vejo os órgãos do Governo dizerem que aceitam as conclusões. Talvez seja uma forma de actuação do Governo.” Caso Ho Chio Meng “denegriu a justiça” Convidado a comentar a detenção do ex-procurador do Ministério Público, João Valente Torrão assume que nem era preciso ir tão longe para denegrir a justiça. “Nem era preciso ser um antigo procurador, bastava ser um juiz ou alguém de categoria inferior. Basta isso para denegrir um pouco a justiça. Sei que ele está acusado de uma série de crimes, 1500, o que me impressiona um pouco, mas não sei quem fez a acusação. Claro que é uma mancha na justiça. Tudo depende do que se provar em tribunal.” Questionado sobre o facto de continuar a ser prática do MP a adjudicação directa de serviços, prática de que está acusado Ho Chio Meng, João Valente Torrão avisa que “não vê qualquer ilegalidade”, mas que, em “nome da transparência, para que não haja suspeitas de corrupção, talvez fosse bom não abusar muito dessa forma”. “Magistrados não escrevem em português” João Valente Torrão alerta para o facto de muitos dos magistrados em funções não utilizarem muita a língua portuguesa nos processos. “Todos esses magistrados [formados na década de 90] falavam e escreviam português. Mas agora o que se diz, e sei por experiência própria, é que nem se dão ao trabalho de escrever em português, e há apenas um mero despacho em chinês.” Sobre a falta de magistrados, João Valente Torrão não dá muitas sugestões. “Não tenho processos neste momento e os advogados estarão em melhores condições para avaliar a situação. Posso dizer que fui formador, juntamente com alguns colegas, e todos nós nessa altura demos o nosso melhor para formar magistrados e a ideia geral é que, todos aqueles que formámos, eram magistrados muito bons. Temos de saber se é possível formar cá magistrados. Sei que há um curso a decorrer agora, mas não tenho mais informações.” Sobre os actuais atrasos na Justiça, o antigo juiz prefere recordar o seu tempo. “Não sei detalhes, sei que o número de processos terá aumentado muito. Quando cá estive éramos quatro juízes portugueses e fazíamos todos os serviços atempadamente. Mas, não tenhamos ilusões, eram menos processos, e talvez menos complexos.” “Em Macau não interpretam a lei” O antigo presidente do colectivo de tribunais de Macau prefere não dramatizar em relação ao gradual desaparecimento do Direito de Macau. “O Direito é o mesmo em todo o lado. Há a tendência para os princípios serem gerais. O que noto em Macau é que, muitas vezes, não interpretam a lei, mas isso não é por ser português ou chinês, é porque não sabem as bases da interpretação. Uma lei interpreta-se pelo seu espírito e a sua história.” “Talvez o problema não esteja no Direito, porque o Direito é igual em toda a parte. Na China, em 1999, o sistema chinês tinha mais tendência para se aproximar do ocidental do que do inglês. Quando me dizem que isto pode acabar, penso que não acaba”, adiantou. Sobre a má qualidade dos cursos de Direito no território, João Valente Torrão prefere lembrar que “talvez os estudantes não aprendam bem os princípios do Direito, que são iguais em toda a parte”. Código do Procedimento Tributário “desactualizado” Especialista em legislação na área dos impostos, João Valente Torrão lança mais um alerta face à desactualização do Código do Procedimento Tributário. “Há uns anos que está para ser reformulado e ainda não foi, e esse é um dos casos em que há uma profunda desactualização. Não apenas ao nível dos impostos, porque a Lei Básica diz que se trata de um regime altamente favorável. É o procedimento. Dou um exemplo: caso se queira impugnar uma decisão da pessoa que liquida os impostos, a lei não é clara. Ainda temos as leis de há muitos anos, a execução fiscal data de 1951. Uma modernização não fazia mal, e que indicasse claramente os direitos dos contribuintes e dos adjudicatários.”
Andreia Sofia Silva Entrevista EventosManuel Afonso Costa: “Uma parte da minha alma é oriental” “Memórias da Casa da China e de Outras Visitas” é o mais recente livro de poesia de Manuel Afonso Costa, lançado ontem pela editora portuguesa Assírio e Alvim. A obra não representa apenas um regresso do poeta às publicações, ao fim de dez anos. É também uma forma de assumir que o Oriente, a China, lhe entrou em casa, que é como quem diz, pela alma adentro [dropcap]Q[/dropcap]uando é que começou a pensar este livro, a escrevê-lo? Esse livro surge numa linha de continuidade, de uma poética que lhe é anterior. Não há um momento inaugural em que tenha decidido escrever poemas que obedecem a um determinado critério ou objectivo. Não há um thelos, no sentido de finalidade, de algo que esteja definido à priori. Isso acontece, talvez, no romance, em que a pessoa se senta para contar uma história. Para começar algo do zero. Sim. Com a poesia, a pessoa desde que começa a escrever, a determinada altura da vida, não deixa de o fazer e acaba por ir reunindo poemas suficientes para publicar. Não tem de existir uma ruptura, um ponto final e depois o começar de outra coisa. Dentro dessa linha de continuidade, tem de haver o aparecimento progressivo de alguma coisa diferente e nova. Mas deixe-me referir que vai haver um encontro de literatura e filosofia, em Macau e em Lisboa, promovido pelo Instituto Internacional de Macau, onde vão falar da minha poesia, com o tema “O aparecer da China na poesia de Manuel Afonso Costa”. Portanto há uma realidade que aparece, que é a China, sendo que não poderia aparecer apenas a partir dos livros. Aparece também a partir da sua vivência com a sociedade. Exacto. Já conhecia a China, teoricamente, já tinha visto gravuras, já tinha lido livros. Já tinha tido acesso à poesia chinesa, há muitos anos, mas nada tem que ver com o choque com a realidade. Este livro fala das memórias da casa na China. Claro que não é a casa onde eu vivi, é uma casa simbólica, é o lugar China, no sentido lato, onde vivi e tive o meu espaço próprio. A descrição do seu livro fala precisamente da casa enquanto símbolo. Metaforicamente falando, que tipo de casa é esta? É uma casa que alberga a sociedade chinesa? Em concreto, não. Diria que a minha poesia é muito fenomenológica, está sempre muito ligada às vivências. Foi muito importante vir para o Oriente e entrar em contacto com uma realidade. Esta desafia-nos. Existe a intencionalidade da nossa consciência, mas existe também a intencionalidade quase provocatória da realidade sobre nós. A realidade estimula-nos a reagir. Viver aqui, numa sociedade com um grafismo e arquitectura diferentes… Mas não me refiro só a Macau, embora seja o elemento predominante, porque foi o sítio onde passei os meus últimos anos de Oriente. Fui muitas vezes a Hong Kong nos anos 90 e vivi quase um ano em Zhuhai. Então é todo o conjunto que me estimula. Quando me refiro à casa, é uma casa simbólica. Não é essa casa, com a sua arquitectura própria. Ela é concreta porque está plantada num lugar diferente, um lugar cuja entourage [o que está à volta] é diferente. Refiro-me a uma parte do mundo onde vivi grande parte da minha vida, e a nossa vida é toda feita de casa em casa. De vivência em vivência. Vamos deixando nessas casas um bocado de nós enquanto lá vivemos. Ficam ligadas a elas todas as memórias. É em casa que escrevemos (eu pelo menos), amamos, cozinhamos, dormimos. A casa desempenha um papel extraordinariamente rico nas nossas memórias. A casa é opaca, está de alguma maneira fechada, uns afectos abrem-se, outros nem tanto. Ao mesmo tempo, a realidade exterior entra pelas paredes da casa. Se não, viveria aqui como se estivesse a viver em Lisboa ou em Paris. Estamos permanentemente em contacto com uma língua diferente e um grafismo diferente. Uma das coisas que mais me impressionou foi andar meio perdido por certas zonas de Macau, onde são ostensivos e quase histéricos os painéis publicitários mostrados ao exterior. Isso dá uma certa geometria estética, colorida, de luz e caracteres, algo extraordinariamente intenso. É essa realidade que entra em contacto com a casa, que entra dentro de nós. E quando escrevemos ou pintamos, enquanto artistas, damos conta dessa transmigração das realidades. Disse que este livro é o resultado do que tem vindo a publicar até aqui. A última obra intitula-se “Caligrafia Imperial e Dias Duvidosos”. Passou de uma referência à caligrafia, um elemento muito característico da cultura chinesa, para essa vivência da China. De que forma é que estas obras se interligam? Têm um ponto em comum. O livro “Caligrafia Imperial e Dias Duvidosos” tem cerca de 17 poemas que publiquei numa revista de cultura, sendo uma réplica literária minha do quadro dos tributários que está no museu em Taipé, uma obra de um imperador chinês do século XVIII. É uma obra chinesa, megalómana, e sensibilizou-me muito, tal como a Cidade Proibida e as Muralhas da China. Depois dou-lhe o nome de caligrafia [ao livro] porque um dos elementos do quadro dos tributários é a caligrafia: há uma gravura e há um texto. Com isso o imperador captou toda a realidade, que não conseguiu captar com os sentidos. Foi uma das primeiras formas de ligação à cultura e sociedade chinesa, e à grandeza da poesia e cultura chinesas. Há uma continuidade porque os primeiros poemas deste livro [Memórias da Casa da China e de Outras Visitas] também foram publicados na revista de cultura, na minha segunda passagem pela China. Estes novos poemas não abordam o quadro dos tributários, mas fazem referência a alguns poetas chineses e à literatura chinesa. O modo de dizer da poesia chinesa é sempre mais sentencioso do que o nosso e esse é um aspecto que me sempre atraiu. É uma poesia despojada, onde as coisas aparecem como se fossem sentenças, mas depois não são para ler à letra. Contém outra realidade e sou sensível a essa ironia muito bem disfarçada e austera da poesia chinesa. Chamei-lhe casa pela simples razão de que agora tenho o direito de me referir a uma casa na China. Ao fim de tantos anos… Já tenho uma parte da minha alma que é oriental. Eu já tenho uma casa na China. Acharia pretensioso se dissesse isso em 1994, tendo acabado de chegar a Macau. Passou muito tempo, com tantas experiências, e tendo uma parte da minha vida que ver com esta realidade, posso dizer que tenho uma morada no Oriente. O livro “Caligrafia Imperial e Dias Duvidosos” foi publicado em 2007, há exactamente dez anos. Porquê esse interregno? Muitas pessoas me perguntam isso. Creio até que este livro é melhor do que o anterior, e acredito que o próximo venha a ser melhor que este. Houve uma continuidade de escrita, fui apurando, em termos de savoir-faire, que é muito importante. Há uma maneira de fazer, com prática, experiência e continuidade. Não vou ser hipócrita: nunca deixei de ler e escrever. A escrita e a poesia são as maiores paixões da minha vida. Acontece que não paro muito em lado nenhum. Estive em Macau de 1993 a 2000, depois fui-me embora, estive em França, nos Estados Unidos, e desde 2011 vivo em Macau. Perco os contactos, as rotinas. Depois tive duas filhas, fiz o doutoramento, algo megalómano, e não tendo nunca deixado de escrever, fui pondo um pouco de lado as questões mais burocráticas. Isso porque é mais fácil escrever do que publicar. Os livros deveriam aparecer publicados por milagre. Gosto infinitamente mais de escrever e ainda mais de ler. É também crítico literário. É algo que falta em Macau? Sim, mas não é só em Macau. Temos de ser justos. Em Portugal a crise nesse domínio é avassaladora. E a poesia está, em larga medida, a desaparecer das livrarias por esse mundo fora. Em França escreve-se e publica-se muito pouca poesia. Como explica isso? Há uma tendência clara de uma crise das humanidades, está tudo interligado. O fim do latim e do grego para mim é catastrófico, e basta ler o George Stein [crítico literário] para se perceber porque é que é catastrófico. Há um desinvestimento nas áreas literárias, e os jornais são um espelho da sociedade. Fala-se da crise, dos números, das taxas. Houve um tempo em que todos os jornais, na sua maioria, tinham suplementos literários. Eu, que era uma pessoa com poucas posses, comprava sempre esses suplementos, que eram autênticos dossiers que tinha em casa. Os críticos eram verdadeiros profissionais, criticavam o que gostavam e o que não gostavam.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteMário Mesquita Borges: “A última Administração portuguesa cometeu muitos erros” [vc_row][vc_column][vc_column_text] Mário Mesquita Borges, docente da Universidade Católica e natural de Macau, olha para os últimos anos do Executivo de Rocha Vieira como um período em que prevaleceu a ideia de abandono e em que foram cometidos “muitos erros”. É essa a génese para a falta de preservação da cultura portuguesa que hoje existe, defende. O seu livro, intitulado “Macau, as Últimas Memórias de Portugal”, é lançado hoje [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] seu livro contém a ideia base de que a defesa da língua e cultura portuguesas estão entregues à comunidade macaense, mas que tem sido feito pouco por isso. Como resolver esta questão? Desde 1999 e previamente, nos últimos anos da Administração portuguesa, houve uma grande falta nesse sentido: garantir que existiam e ficavam cá os mecanismos e instituições para a promoção da língua portuguesa. Isso passa pela comunidade macaense porque é ela que, mais do que ninguém, compreende a confluência de culturas que sempre existiu. Ao nível oficial temos visto que, no que toca ao discurso político [sobre esse assunto), ele existe. É algo presente em quase todos os discursos, aliás. Sim, mas sabemos também que se fala muito no contexto da promoção da língua na relação económica com os países de língua portuguesa. Mas uma coisa é a vontade política e outra coisa é o fazer: ainda existe uma grande discrepância entre essas duas realidades. Portugal tem feito muito pouco para ajudar a promover a língua no território. Há o Instituto Português do Oriente, mas poderia ser feito mais. Sabemos das várias condicionantes que existem, mas o problema de base deve-se aos últimos anos da Administração portuguesa. A perspectiva sempre foi de abandono e não de permanência. Faria todo o sentido continuarmos aqui, de forma cooperante, para ajudarmos Portugal e também Macau. Não houve uma visão de longo prazo. Houve uma visão de curtíssimo prazo, e estou a ser simpático. A lógica era de debandada, não era de querer deixar uma marca que ficasse e continuasse para as gerações vindouras. E que evitasse, talvez, isto: há alguns anos a comunidade macaense encontrava muita identificação com aquilo que é português. Com a normal evolução populacional, as características portuguesas têm vindo a esbater-se, há uma tendência para a aproximação à cultura chinesa, mas isso é apenas normal. As associações locais deveriam ter um papel mais importante? Faltam apoios financeiros e a existência de uma maior estrutura em termos de associativismo? Era positivo se houvesse isso. Sei que são feitas algumas iniciativas por parte da Associação dos Macaenses e outras instituições. Mas deveria haver uma filosofia de conjunto mais firmada, sem tantas acções esporádicas. Esse tipo de acções poderiam ser feitas com apoios vindos de Portugal. Esse papel poderia ser desempenhado pelo Instituto Camões, por exemplo, ou pela Fundação Calouste Gulbenkian. Há um problema de liderança das associações locais, não há novos rostos e parece não haver gente interessada em dirigir estas entidades. Este também pode ser um entrave a esse trabalho de preservação? Como explica esta falta de interesse, numa altura em que a comunidade portuguesa até regista um crescimento? Isso é a volúpia da urbe e também falo disso no meu livro. Embora haja muita vontade, esse papel das gerações mais antigas é fundamental para a renovação. Contudo, e por muitas acções que sejam feitas, se não há uma vontade manifesta por parte das gerações mais novas, torna-se difícil impor. Tem de existir uma política de atracção e não de imposição. Só que voltamos ao que já disse: se não há um manifesto de interesse, se não há algo atractivo para as gerações mais novas, para encontrarem essa identificação com a cultura portuguesa… Li há uns dias que em 2016 se comemorou o centenário de Benjamim Videira Pires. Foi uma figura muito importante para a cultura do território. Ao nível de instituições locais, pelo que li, a data passou quase despercebida. Isso é um exemplo do que se passa. Verifica-se também um quase desaparecimento da comunidade macaense da vida política, dos órgãos de decisão. Seria importante também para garantir esta preservação da cultura? Esse é um problema de base. A identificação com a comunidade portuguesa já não é tão grande. Logo, aquela permanência da identidade macaense está quase em perigo de se desvanecer, infelizmente. A maioria das pessoas tem dificuldade em ver que os ganhos serão muito maiores se defendermos algo com características muito especiais de Macau, e esses ganhos seriam maiores para ganhar mais protagonismo, para se garantir que se conseguiriam depois cargos de maior decisão. O facto de termos consciência de que temos uma cultura enriquecida permite-nos ter uma mais-valia para alguém que tem só uma perspectiva. E Macau, como cidade intercultural, e mais cosmopolita, teria só a ganhar com isso. No seu livro diz que o problema da falta de preservação da língua e cultura reside no facto de as “entidades governativas optarem por um encaminhamento duplo das políticas actuais”. Em que sentido? Há um discurso oficial, mas depois não se faz o suficiente em relação ao que é dito, mas isso existe em qualquer parte do mundo. Infelizmente, Macau e a economia estão extremamente dependentes do jogo, e as autoridades teriam muito a ganhar se Macau fosse não só reconhecido pelos casinos. O facto de ser conhecido como um destino cultural, de turismo, e ser reconhecido por outras valências, seria muito positivo. Vemos o quão volátil isto pode ser, e isso percebe-se com a queda recente das receitas do jogo. Fala-se muito no aproveitamento do território para espaço de congressos e exposições, que também seria outro ponto essencial a desenvolver. Esta dependência dos casinos vai levar a uma cada vez maior descaracterização da cidade, devido à ocupação de espaços pela indústria. Faz uma referência à construção da Biblioteca Central no edifício do antigo tribunal. Deixa no ar a ideia de que esse projecto poderá levar ao desaparecimento de mais um símbolo português. Quando se deixou Macau, houve muitas questões que ficaram por resolver. Existem muitas questões na história de Macau que não foram bem explicadas. Isso porque sempre houve a perspectiva histórica portuguesa e a chinesa. Não há uma única história de Macau. Sim, e era importante fazer esse exercício, o de criar uma história de Macau que fosse feita por chineses e portugueses. Eventualmente iria permitir desvendar alguns mitos dessas questões que ficaram por esclarecer. Em relação ao edifício do antigo tribunal, é sempre um símbolo da presença portuguesa. Ao nível simbólico poderão existir algumas questões. Mas vamos aguardar com serenidade que o projecto avance. A que se deve a existência dessas questões pouco esclarecidas? A interesses, desconhecimento do que viria após 1999? Macau teve ao longo da sua história várias incidências que estão sempre envoltas em alguma falta de conhecimento. A maioria da população, incluindo as gerações mais novas, ou desconhece por completo ou não gosta de falar. Falo em particular do movimento “1,2,3”, muito importante para a história de Macau. Embora tenha havido um encontro de interesses entre aquilo que era a vontade chinesa e a portuguesa, também é importante lembrar que foi isso que nos permitiu ficar cá mais 40 anos. E a maioria das pessoas esquece-se disso ou não sabe. Sobre esse episódio são muito escassas as referências ao nível histórico. Mas a história foi mais sábia do que os políticos, e todos sabemos que Macau e a China tiveram a ganhar com a permanência dos portugueses durante mais este período, que permitiu uma transferência de poder pacífica. A maioria das pessoas tem uma grande dificuldade em ver a história e a sua continuidade, e da cultura, sem ter associada uma perspectiva política muito forte. Isso é o grande pecado da maioria das interpretações que são feitas. E a política varia muito, consoante os partidos que estão no poder. Isso acaba por prejudicar o que deveria ser contínuo, e o que vemos muitas vezes é que temos entendimentos da história que, depois, analisados à distância, temos a perfeita noção de que não correspondem à realidade, mas é isso que permanece e que é dado como verdade. Em Portugal, infelizmente, o que passa é que Macau foi um bom exemplo, em contraste com os manifestos erros que foram cometidos nas ex-colónias portuguesas. Mas a minha perspectiva não é essa: foram cometidos muitos erros durante a última Administração portuguesa e muito mais poderia ter sido feito. Ainda mais sabendo que Macau sempre foi uma terra com muitos recursos financeiros. Macau teria a ganhar se tivesse tido uma Administração mais afastada das forças partidárias portuguesas? Sim. Se houvesse um objectivo único, e uma definição clara e a longo prazo, mas esse continua a ser o problema de base muitas vezes. Já são raros os políticos com essa visão, há sempre visões a curto e médio prazo, e com interesses incluídos. Isso prejudica as coisas e a continuidade. Se isso existisse, independentemente de estar o partido A ou B no poder, tudo seria mantido. O livro aborda também a questão da Escola Portuguesa de Macau (EPM), que vai ficar onde está. A EPM tem feito o seu trabalho na dinamização da língua e cultura, incluindo a sua transformação numa escola internacional? A EPM tem um estatuto especial mas, por muito que a escola precise de sobreviver e captar mais alunos, essa necessidade de internacionalização poderá subjugar o outro papel mais importante que a EPM pode ter. Li que o número de alunos estrangeiros cresce cada vez mais, e agora ensinam o mandarim. E há a ideia de ensinarem o cantonês. Isso é fundamental, e essa foi uma questão que durante a Administração portuguesa não foi devidamente acautelada. Ter-se-ia ganho mais se houvesse uma política mais realista ao nível de educação em Macau antes da entrega do território, tanto na língua chinesa como na portuguesa. Há uma referência no livro ao monumento Portas do Entendimento, que está ao abandono. É uma metáfora da representação da cultura portuguesa, que gradualmente vai desaparecendo? É uma metáfora e um símbolo muito interessante relativamente à política de abandono que já referi. Seria mais importante, naquela altura, criar instrumentos e fazer com que as coisas acontecessem, num projecto a longo prazo, promovendo instituições e convidando instituições portuguesas a virem cá, para fazerem esse trabalho de continuidade, em vez de se deixar apenas uma matéria simbólica, porque estas valem o que valem. Embora seja importante o monumento em si, em termos simbólicos e estéticos nada me diz. Foi mais uma forma de abandonar as responsabilidades. A última Administração do território teve muito essa perspectiva. O intuito sempre foi fechar o ciclo e não promover uma continuidade.[/vc_column_text][vc_message message_box_style=”solid” style=”square” message_box_color=”chino” icon_fontawesome=”fa fa-book”] “Macau, as Últimas Memórias de Portugal” é apresentado hoje às 18h30 no auditório do Consulado Geral de Portugal em Macau. O autor, Mário Mesquita Borges, está presente na iniciativa. A obra, que vai ser apresentada por Luís Sá Cunha, é editada pela COD. [/vc_message][/vc_column][/vc_row]
João Luz Entrevista EventosHélder Beja, director de programação do Rota das Letras: “É a maior edição do festival” Já mexe a sexta edição do Festival Literário de Macau. Entre os principais convidados do Rota das Letras contam-se os finalistas de 2016 do Man Booker Prize Madeleine Thien e Graeme Burnet, assim como o escritor chinês Yu Hua. Sérgio Godinho apresenta o seu primeiro romance. Falámos com Hélder Beja, fundador e director de programação do festival. [dropcap]O[/dropcap] que podemos esperar desta edição do Rota das Letras? Esta é, de longe, mais uma vez, a maior edição de sempre do festival. Volta a crescer em relação ao ano passado, o que achávamos que não seria possível, mas que acabou por acontecer. Houve uma série de sinergias que levaram a que o festival pudesse crescer, assim como convidados que queríamos e que conseguimos trazer. Na literatura, que é o ‘core’ do festival, diria que o grande destaque de todos é a vinda de Yu Hua a Macau. Para mim, é um dos maiores autores chineses vivos. Do ponto de vista pessoal, é o que mais admiro dos autores da literatura chinesa contemporânea. É um excelente romancista, tem romances como “To Live” e “Brothers”, mas é também um grande ensaísta. O livro que mais gosto chama-se “China in Ten Words” e, ao que parece, vai ser editado em português brevemente. É, para mim, o grande destaque deste ano da programação, pelo menos em língua chinesa. E em português? Na língua portuguesa, conseguimos trazer, finalmente, o Pedro Mexia, que já estava para visitar o festival no ano passado. Não pôde, mas vem este ano. É um dos grandes intelectuais do seu tempo, um bom poeta e muito bom crítico literário. Será um prazer tê-lo por aqui, porque é um homem da renascença, pode falar um pouco de todas as coisas. Que outros autores salienta no cartaz deste ano? Na programação internacional, estamos muito contentes por termos assegurado a vinda de dois finalistas do Booker, são dois autores bastante interessantes. A Madeleine Thien tem um background relevante com relações familiares à Ásia. O seu último livro, que foi nomeado para o Booker – “Don’t Say We Have Nothing” – é a história de uma família chinesa que atravessa a Revolução Cultural. O livro é muito musical. É a história de um músico que, como outros artistas durante a Revolução Cultural, foi completamente desacreditado, perdeu um bocado o chão e foi tido como burguês. É uma narrativa muito interessante que atravessa três gerações. Depois temos Graeme Burnet, num estilo completamente diferente. O romance que o levou à final do Booker passa-se no século XIX, tem uma linguagem um bocadinho arcaica, mas uma voz narrativa incrível porque é a voz de um miúdo de 17 anos que cometeu um triplo homicídio. O que lemos são as memórias que ele teria escrito enquanto aguardava julgamento. São dois autores que saltaram para a ribalta este ano com as nomeações para a short-list de cinco livros do Booker e que, acho, nos próximos anos vão afirmar-se no panorama internacional. Estavam ambos a fazer festivais aqui na região e conseguimos trazê-los cá. O festival caminha para a profissionalização a passos largos. Acho que está à porta da rota dos grandes festivais literários, e este ano vamos dar vários passos nessa direcção. Em primeiro lugar, porque começámos a trabalhar numa rede de contactos com outros festivais. Por exemplo, este festival de Adelaide, onde conseguimos estes dois convidados para Macau, assim como a parceria que estabelecemos com o novo festival de Cabo Verde, o Morabeza, que está a nascer agora. Algo que também queremos fazer é desenvolver o festival dentro do espaço lusófono. O número de nacionalidades no festival também sobe, este ano temos autores de 20 países e regiões. Outro dos aspectos no caminho para a profissionalização é termos mais visitas de jornalistas de vários países como, por exemplo, os meios de comunicação dos países de origem dos convidados, não só aqui a imprensa da região. Acho que este ano estamos a conseguir que o festival se afirme, nos próximos dois/três anos o festival estará, seguramente, num roteiro de festivais que têm os principais nomes de literatura contemporânea. Por aí passará, obviamente, ter prémios Booker com regularidade, Pulitzers e, eventualmente, ter aqui um prémio Nobel. Não é o desígnio do festival mas gostaríamos de ter, pela qualidade dos autores e pela projecção. Este ano o festival aposta também na banda desenhada. Temos pensado para os próximos anos temas como humor e a ficção científica. O grafic novel e a BD faziam parte desse grupo e este ano, de repente, havia um grupo de dois ou três autores e a ideia começou a fazer sentido. O Filipe Melo vem cá, o que é para nós muito bom. Vem também o Philippe Graton, filho de Jean Graton, que tem a série Michel Vaillant. Neste caso tudo começou com a relação que ele tinha com Macau. Percebemos que o Philippe estaria disponível para vir e que poderia mostrar os originais do álbum “Rendez-vous à Macao”. Achámos maravilhoso poder fazer isso aqui. Depois começámos a montar um pequeno programa à volta disso. O Dick Ng vem de Shenzhen, mas vive em Hangzhou, conheci-o num pequeno festival em Cantão onde fui há uns meses. Fiquei muito impressionado com ele porque é um jovem chinês que fala muito bem inglês e que se dedica a fazer tiras de comics, acima de tudo, online, onde tem mais de 50 mil seguidores. A BD nunca tinha feito parte do festival de uma forma consistente, é uma novidade este ano. Tem sido mais fácil conseguir convidados de renome? Sim, é muito mais fácil porque quando fazes o convite a um autor, por exemplo, da dimensão do Yu Hua, ou da Madeleine Thien, o lastro do festival conta muito. O facto de termos tido no ano passado o Adam Johnson foi muito importante para conseguirmos este ano estes autores. Não estou a dizer que não viriam, mas claro que as pessoas informam-se, querem perceber que festival é este, e cada vez será mais fácil ter convidados com maior notoriedade. Uma das estrelas do cartaz será Sérgio Godinho. É uma coisa maravilhosa ter cá o Sérgio Godinho, que vem com o seu primeiro romance, editado pela Quetzal, uma editora amiga do festival. A vinda do Sérgio Godinho foi uma coincidência de timings, ele vai lançar o romance agora em Fevereiro, estará a apresentá-lo em Portugal, a dar entrevistas e depois segue logo para cá. Enfim, ele é um dos grandes cantautores da nossa língua. Obviamente, um bom poeta, não só nas letras, mas também no que tem publicado de poesia. Já tinha arriscado no conto e agora, já com a idade que tem, decide ainda arriscar no romance. Acho que é a prova de que é um artista tremendo. Vem apenas apresentar um livro? Não, vamos ter, também, um concerto dele. Temos dois actos musicais, ambos no Teatro do Venetian, um a 15 e outro a 16 de Março. O Sérgio Godinho com um companheiro de palco ao piano, num concerto mais intimista. Ele esteve cá há pouco tempo e houve a preocupação de fazer um concerto diferente. Depois a Christine Hsu, que é uma cantautora de Taiwan, com um repertório mais virado para as baladas, muito do agrado do público chinês. Este ano temos estes dois concertos, já houve edições em que tivemos mais música do que este ano, mas estamos muito contentes com os dois nomes que temos para esta edição. Como vê a evolução do festival desde a fundação? É um projecto difícil de qualificar, do ponto de vista pessoal porque, basicamente, abalroou os últimos seis anos da minha vida. Isso tem coisas muito positivas, e outras menos. Sempre acreditámos que o festival poderia crescer, mas talvez nunca tenhamos pensado que pudesse crescer tanto, em tão pouco tempo. Quando olho para o festival, não só em termos de dimensão, mas do impacto, projecção e qualidade, e vemos o que está à nossa zona em termos de festivais literários, acho que este trabalho é muito especial e muito bom. Começou muito pequenino, no Instituto Politécnico de Macau, com muito pouco know-how, a cometer erros naturais e evidentes quando se quer fazer uma coisa arriscada. No segundo e terceiro anos houve dores de crescimento e, a partir do quarto ano, a coisa começou a correr mesmo bem. O terceiro ano foi o da explosão em termos de impacto, porque o cartaz era incrível. De Portugal tivemos Ricardo Araújo Pereira, Valter Hugo Mãe, Dulce Maria Cardoso, José Eduardo Agualusa, etc. Um programa que nunca mais acabava. Mas para nós, organizadores, é no quarto ano que sentimos que o festival amadurece. No ano passado, o quinto, muito bem, e agora estamos na sexta edição. Diria que o balanço é muito positivo. Em 2016 dizíamos que não queríamos crescer muito mais, e não queremos. Em termos de sessões não cresce de certeza, no ano passado foram 104 sessões ao todo. Então, quais os desafios que o festival tem pela frente? O que queremos a partir de agora, e que já fazemos este ano, é alargar o festival com outros pequenos projectos. Estabelecer parcerias, uma delas com o festival Morabeza, em que a partir deste ano teremos um escritor de Cabo Verde a visitar o festival de Macau, e vice-versa. Acho que será importante para a literatura de Macau mostrar-se noutros países do espaço da lusofonia. Temos também uma parceria com a Universidade de Macau, que começa este ano, para uma residência literária, que arrancará com uma autora de Singapura. Desta vez a residência é curta, serão apenas duas semanas antes de a autora começar a participar no festival, mas queremos que seja mais longa e que desagúe no festival. Outra coisa que gostaríamos de fazer é criar no futuro, em parcerias com instituições de ensino, uma bolsa de tradução literária para um aluno interessado em desenvolver as suas capacidades na tradução português-chinês, chinês-português, de literatura, algo que não há. Há muitas opções em termos de cursos de tradução mas são todas elas, praticamente, só técnicas. Gostávamos de dar esse contributo. Outra coisa que começou no ano passado, e que queremos fazer mais em 2017, é que o festival tenha episodicamente pequenos eventos ao longo do ano. Haverá também lugar à actualidade. Sim, darem um pouco de atenção aos assuntos actuais, o festival também quer posicionar-se aí e discutir temas mais prementes, criar uma zona em que um tema da actualidade esteja presente. Isto começou com certos convidados que conseguimos confirmar e, depois, começámos a construir um programa à volta deles. A Clara Law, nascida cá, tem um documentário – “Letters to Ali” – sobre os refugiados afegãos na Austrália. Foi talvez o ponto de partida. De repente percebemos que havia a possibilidade de trazer o Henrique Raposo e o José Manuel Rosendo para falarem sobre o Médio Oriente, o terrorismo e as migrações. Depois temos também a Sanaz Fotouhi, que foi produtora de um documentário de mulheres afegãs refugiadas. Tudo isto começou a compor-se e a fazer sentido. Não digo que há seis meses este tema estivesse na nossa cabeça, mas acabou por aparecer e faz todo o sentido discutir isto neste momento.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteJustin Cheong, activista de Macau nos EUA: “Ser deportado não era uma opção” Justin Cheong nasceu em Macau, mas cedo foi para os Estados Unidos estudar. A residir em Oakland, lidera a BAMN, uma organização sem fins lucrativos que defende os direitos dos imigrantes sem cidadania americana. Esteve preso e em risco de ser deportado, mas ganhou a batalha. No dia em que saiu em liberdade, falou com o HM [dropcap]A[/dropcap]cabou de sair do centro de detenção onde esteve preso. Como está a sua situação agora? Ontem [terça-feira] obtivemos uma vitória porque fomos a tribunal e tive muitas pessoas a apoiar-me, incluindo alguns estudantes. O juiz, que inicialmente me queria deportar, mudou de atitude e achou que não deveria expulsar-me do país. Então atribuiu-me uma fiança de 1500 dólares, o que é considerado um valor muito baixo. Paguei de imediato e fiquei livre. Penso que me poderei candidatar à cidadania americana e que o processo será aprovado em breve. É casado com uma americana. Porque é que é tão difícil obter a cidadania? Creio que não foi um processo legal, mas sim totalmente político. O juiz, desde o primeiro dia, sabia que eu era um activista político, que estava a desafiar as autoridades na luta pelos direitos dos imigrantes. Ele não concordava comigo e, há sete meses, decidiu não me atribuir uma fiança. Fiquei preso no centro de detenção, em risco de ser deportado. Mantivemos a luta e mantivemos contacto com a nossa coligação irmã, sediada no Reino Unido. Tivemos um grupo de imigrantes organizado dentro do centro de detenção e também um grupo de amigos cá fora a apoiar-nos. Tínhamos maiores possibilidades de sermos soltos e foi isso que aconteceu. Organizaram um grupo de apoiantes à minha volta e, graças a isso, o juiz e o próprio sistema legal sentiram que tinham de me deixar sair. Foi por ser quem sou, um activista político, que tive um mau momento. Tal também se deve à campanha de Donald Trump contra os imigrantes, que está a fazer com que cada vez mais imigrantes sejam deportados, sobretudo os chineses. Enquanto estava detido, Donald Trump venceu as eleições. Espera então um cenário ainda mais difícil para os imigrantes, especialmente os chineses? Sim. Penso que ele está preparado para uma campanha massiva e para reunir apoiantes que defendam a sua agenda neste sentido, para trazer cá para fora o ataque aos imigrantes. Ao mesmo tempo, há também uma oportunidade no meio disto tudo, porque as pessoas estão muito revoltadas e isso significa que a BAMN [Coligação para Defesa de Acções Afirmativas, Integração, Direitos dos Imigrantes e Luta pela Igualdade por Qualquer Meio Necessário] tem a oportunidade de liderar e organizar estas pessoas e vencer a luta dos direitos civis e dos imigrantes. O facto de eu ter vencido este caso, com o apoio de toda a coligação, claro, é um exemplo de que podemos lutar e ganhar, mesmo que Trump seja agora o Presidente dos Estados Unidos. A China deveria fazer algo nos casos de deportação dos imigrantes chineses? O Governo simplesmente não deveria cooperar com as deportações decretadas pelas autoridades norte-americanas. Definitivamente não deveriam perseguir essas pessoas quando elas regressam à China. Como foi a vida no centro de detenção? Foi vítima de racismo por parte das autoridades? Foi um período difícil. É como se estivéssemos mesmo numa prisão e retiram-nos todos os direitos. Mas o mais importante é que temos união entre todos nós, conheci pessoas de todo o mundo, e há casos impressionantes. Apoiámo-nos e mantivemos o espírito de luta. Os guardas e a instituição tentaram quebrar o nosso espírito de união, pois o ambiente é de constante tortura psicológica. Ficamos presos durante muito tempo sem qualquer razão aparente, mesmo que não tenhamos cometido qualquer crime. Há pessoas detidas que só lutam pela liberdade e pelos seus direitos, pela democracia, porque no centro vivem numa espécie de campo de concentração, são perseguidas e enviadas para os seus países. O maior desafio na vida da prisão é a pressão psicológica que temos de enfrentar diariamente. O sistema legal está constantemente contra nós, mas mantemos a união entre todos. Mantivemos uma verdadeira fraternidade no centro de detenção. Foi preso enquanto Barack Obama era ainda Presidente. Acredita que na era Obama a situação dos imigrantes em risco de deportação não era assim tão diferente em relação ao que poderá ser na era Trump? Tivemos muitas concessões e programas durante a Administração Obama por causa dos movimentos de defesa dos imigrantes. Quando ele foi eleito havia muitos jovens imigrantes, latinos, muçulmanos, negros, que votaram nele, em 2012 ele aprovou um programa intitulado DACA [Deferred Action for Childhood Arrivals]. As pessoas que atravessavam a fronteira com menos de 17 anos podiam ter um estatuto de trabalhador, uma carta de condução. Essa foi uma das maiores vitórias que o movimento dos imigrantes obteve durante a Administração Obama. Cerca de dois milhões de pessoas foram deportadas durante o seu Governo, um número bastante elevado, mas conseguiram ficar no país, graças ao DACA, 700 mil pessoas, que actualmente correm riscos. O Governo tem as informações destas pessoas, que não são ainda cidadãos americanos. Caso Donald Trump decida cancelar este programa, então estas pessoas estarão em risco de deportação. Após a eleição de Trump, várias pessoas, incluindo a nossa organização, pediram a Barack Obama para garantir a residência a essas 700 mil pessoas. Eles podem trabalhar e conduzir, mas não têm qualquer outro estatuto. Obama não fez isso e pensamos que o Partido Democrata tem falhado totalmente em relação a estas pessoas. A única hipótese que temos nesta fase é criar um movimento independente com vários grupos de pessoas, a BAMN está pronta para liderar esse processo e evitar a opressão das pessoas. Caso a deportação fosse decretada, poderia optar por regressar à China, a Macau, a sua terra natal, ou Portugal, por ser também portador de passaporte português. Qual seria a sua escolha? Não iria desistir do caso e ira recorrer dessa decisão até às últimas consequências. Especialmente nesta fase, o juiz tentou mostrar que cometi crimes só porque fiz uma marcha pública a favor dos direitos dos imigrantes. Para mim ser deportado não era uma opção, iria ficar nos Estados Unidos para continuar este movimento porque é influente, até em termos internacionais. O que podemos fazer aqui terá impacto em todo o lado, tal como a marcha das mulheres contra Donald Trump, que aconteceu também em Macau. Que relação mantém com Macau, território que deixou com 18 anos para estudar? Acompanha a situação política? É difícil seguir a situação política a esta distância, mas sei que a qualidade de vida diminuiu bastante. Sei que há muitos imigrantes do Continente que vão trabalhar e penso que têm sido explorados. Sei também que há uma campanha anticorrupção a ser levada a cabo pelo Governo chinês e que tem tido um grande impacto na economia e no ambiente político em Macau. Sei que há muitas questões que Macau está a enfrentar neste momento, que também são parte de uma crise global. Além dos imigrantes chineses há também imigrantes filipinos e indonésios com salários muito baixos. Há também um discurso político sobre a necessidade de saída dos trabalhadores não residentes e a manutenção do emprego para os locais. É a mesma táctica que Donald Trump está a adoptar para com os imigrantes, com ataques racistas. Expulsar os imigrantes devido a uma crise económica não faz qualquer sentido, porque é uma fase em que há uma exploração dos direitos dos trabalhadores, com baixos salários e mais horas de trabalho. Espero que haja mais serviços públicos, maior regulação e assistência para as suas necessidades do dia-a-dia. É necessário que seja concedida a residência a estes imigrantes pois, para a BAMN, as pessoas que vivem numa sociedade, que trabalham de forma justa e legal, que têm filhos nas escolas, por que não podem ter a cidadania do país onde vivem? Já são parte da sociedade, contribuem para ela. Condeno a discriminação que é feita contra esses trabalhadores, que penso terem tantos direitos como os locais. A sua família está em Macau? Como têm seguido a sua história? A minha família está em Macau, mas há seis anos que não visito o território. Eles apoiam o meu trabalho como activista, sobretudo a minha irmã. Penso que nem sempre os pais concordam com aquilo que os filhos fazem, mas aprendem a respeitar. Em Hong Kong está neste momento em curso um movimento pró-democracia. Acredita que algumas mudanças poderão acontecer num futuro próximo? Tem de haver uma liderança forte e independente do movimento de massas, e penso que isso pode mudar algo. Não tenho seguido a situação de perto, mas não deveríamos apenas lutar pela democracia. A política e a agenda de Hong Kong têm de ser decididas pela população, em prol de uma maior igualdade. Eles têm o direito de decidir o seu futuro. A história do filho de um taxista Em Novembro, a revista de domingo do South China Morning Post (SCMP) abordou a luta dos imigrantes chineses nos Estados Unidos pela igualdade de direitos. Lá contava-se a história de Justin Cheong, de 26 anos, na altura preso no centro de detenção Chippewa County Jail. A sua detenção havia ocorrido meses antes quando estava a caminho de Washington, para apresentar uma moção no congresso nacional da federação dos professores americanos, em que exigia igual acesso ao sistema público de educação por parte dos imigrantes. Casado com a americana Liana Mulholland, filho de um taxista de Macau e graduado na Universidade de Berkeley, Califórnia, Justin descobriu, aquando da sua detenção, que o seu casamento não tinha sido devidamente registado no departamento de segurança interna, escreveu o SCMP. Considerado “persona non grata” pelas autoridades americanas, devido ao seu activismo, Justin começou então uma batalha pela permanência no país, que parece ter agora chegado ao fim.
Isabel Castro Entrevista MancheteJosé Drummond, artista: “Não tenho problemas em olhar ao espelho” Fotografia, vídeo, instalações e também poesia. José Drummond apresenta hoje na Casa Garden “I’m too sad to tell you”, uma exposição que é um exercício de reflexão sobre o desencanto e a ausência do outro. Ao HM, o artista fala de influências, de pós-colonialismo e do que é isto de se viver numa terra a que não se pertence, correndo o risco de perder as raízes [dropcap]O[/dropcap] que é que podemos ver nesta exposição? A exposição chama-se “I’m too sad to tell you”, que é o título de um vídeo de um artista holandês, chamado Bas Jan Ade, dos anos 70. É um vídeo muito famoso na história da videoarte. Ele está permanentemente a chorar, em angústia. A arte interessa essencialmente à arte e, apesar de a arte estar cada vez mais próxima da sociedade em que é feita e de reflectir cada vez melhor os problemas que lhe estão à volta, o ponto de partida e o de chegada são sempre no domínio da arte. Todos os trabalhos que estão em exposição têm quer ver com o estado de desencanto, tristeza, ausência do outro. A exposição tem uma peça central – uma instalação vídeo –, três séries de fotografias que se estendem pelas restantes salas e há outros objectos pontuais que ajudam a criar aquilo que, de início, pensei para esta exposição. Tentei criar algo que não fosse só pendurar umas coisas na parede, mas que pudesse envolver a audiência de um modo diferente, obrigando-a a ter uma atitude quase participativa pela forma como poderá descobrir os trabalhos. A arte interessa essencialmente à arte, mas também lhe interessa, enquanto artista, chegar a um público. É o público que, no final, faz o trabalho. É só quando o artista decide que vai mostrar o que fez, e entretanto tem um público, que o trabalho se completa. Se não houver isso, o trabalho não passa de algo que aconteceu dentro do estúdio ou de uma ideia qualquer dentro de uma cabeça qualquer que não foi dita e que, depois, pode ser esquecida. Nesse sentido, é sempre o público que valida a arte e é isso que faz com que seja uma coisa tão importante, porque cada pessoa pode fazer a sua interpretação e podem criar-se narrativas muito mais para além do que a narrativa inicial do artista. Dizia também que a arte está mais próxima da realidade que a rodeia. Neste trabalho, em que foca a angústia, o desencanto, a solidão, há um reflexo da sociedade em que vive? De há uns anos para cá que o meu trabalho se alterou profundamente, no sentido em que comecei a fazer parte do meu trabalho. Especialmente nos trabalhos em filme ou em vídeo, passei a fazer de personagem dentro dos meus trabalhos. Nessas narrativas, existe quase uma tentação pós-colonialista, há sempre a imagem do ocidental seduzido pela Ásia e que quer fazer parte de um mundo que não é seu. Isso é muito evidente no vídeo da máscara chinesa, como era na série “O Intruso”, e é também evidente agora, embora as narrativas andem à volta do falhanço, da ausência do outro, e haja mais personagens. Deixou de ser de mim para mim, passou a ser de mim para qualquer desejo continuado de fazer parte dessa sociedade e a impossibilidade, ao mesmo tempo, de fazer parte dela. Embora não esteja objectivamente a apontar problemas sociais ou políticos, algumas coisas importantes da nossa sociedade estão subtilmente reveladas lá. Um exemplo? O feminismo. Digo isto muitas vezes: o feminismo é o ‘ismo’ mais importante dos últimos 50 anos e continuamos a ter esta enorme incapacidade de tentar um equilíbrio entre as mulheres e os homens. Continua a ser um mundo de homens e as mulheres continuam a não ter as mesmas oportunidades, sujeitas a condições de bonecas. Nestes últimos anos, houve um crescendo da ideia da mulher perfeita enquanto boneca nas capas das revistas, e a mulher real é cada vez mais sujeita a ter de se formatar a determinados modelos para poder existir dentro da sociedade. Esse problema existe nos meus trabalhos mais recentes, sendo que não digo ‘é isto’, correndo até o risco de ser mal compreendido, porque isso também é importante. Tento que a coisa seja ambígua: ‘Será que é a mulher que é o objecto ou é o sujeito?’. É uma das preocupações dos meus filmes: na realidade, o objecto sou eu e não as mulheres. Elas são o sujeito. Essa ambiguidade também me interessa. Tem uma forma crítica de olhar para o seu trabalho, no sentido em que o analisa para identificar uma presença numa sociedade na qual não é um elemento natural. E faz referência ao pós-colonialismo. Como é que acontece este exercício de desconstrução? Não tenho problemas em olhar ao espelho, aliás, os espelhos fazem parte do meu trabalho. Nesse sentido, também digo muitas vezes que os meus trabalhos são existencialistas, não exclusivamente por uma via do existencialismo tradicional do Sartre ou de Heidegger, mas um existencialismo beckettiano, kafkiano, onde a coisa é psicológica. Não tenho problemas em olhar ao espelho, da mesma forma em que não tenho problemas em autocriticar-me, sendo que isto não é forçosamente mau. O pós-colonialismo, no meu trabalho, é uma camada que quase poderíamos considerar que está virada ao contrário. Aquilo a que se chama pós-colonialismo resultou do facto de uma série de escritores e de artistas ter começado a virar os olhos para África, chamando a atenção para esse mundo e para os seus problemas. Ao utilizar a palavra, é porque estou a fazê-lo ao contrário. Não estou a chamar a atenção para os problemas da Ásia, até porque só agora é que se fala de Macau como colónia. No tempo da Administração portuguesa era proibido falar de Macau como se fosse uma colónia, escreveu-se sempre como sendo ‘o território’. Foi através da língua inglesa, no pós-transferência, que se começou a ver mais o termo ‘colónia’. Também a China não assume que tenha sido alguma vez colonizada, pelo que há aqui um problema que também acho interessante. Ao utilizar o termo, estou a forçar a nota de que houve aqui qualquer coisa. Estou a tentar baralhar as cartas e a tentar apresentar as coisas pelo outro lado. Neste factor, sou muito influenciado por vários autores e alguns têm coisas comuns – uma delas é o isolamento. Essa é também uma condição dos ocidentais que estão na China. Poderá não se sentir tanto em Macau porque a comunidade portuguesa é, ainda assim, bastante grande e entreajuda-se, mas quando se vai para dentro da China existe um isolamento maior, com a sua carga de solidão e com a questão do sentido da existência. Há um problema de existência, na medida em que não se sabe de onde se é e de se começar a perder as raízes por se querer fazer parte de qualquer coisa. Sente isso? Veio para Macau há já muitos anos. Começa a sentir as raízes distantes e, ao mesmo tempo, que não pertence aqui? Sinto essa batalha quase diariamente, com a agravante de ter feito a parte mais importante da minha educação em inglês, e de ler e escrever muito em inglês. É quase a minha língua diária. Enquanto pessoa e autor, torna-me ainda mais fragmentado. Um dos aspectos que os curadores em Berlim e Nova Iorque apontam no meu trabalho é precisamente esse nível de fragmentação e de os trabalhos serem um híbrido estranho, porque já não são ocidentais, mas também não são asiáticos. Esse estado de fragmentação acaba por ser uma ajuda à forma como se expressa do ponto de vista artístico, ainda que de modo inconsciente? Não sei. Há coisas que podemos escolher como é que as fazemos, mas há outras que não necessariamente, que nos acontecem e levam-nos a tomar decisões em função daquilo que nos aconteceu. Essa fragmentação não é uma coisa forçada, não penso muito nela, mas se olhar para determinadas coisas que me interessam ao nível das artes, na literatura e no cinema, os autores que mais me influenciam fazem parte de uma escola qualquer de fragmentação. Se calhar é natural, por ser o rio ou a corrente onde estou. E que influências são essas? Não quero saber muito daquilo que se passa na arte contemporânea, para não ser influenciado por ela, porque sinto que as minhas influências maiores vêm do cinema e da literatura. Quando estou muito chateado, enfio-me em casa e ponho-me a ver Fassbinders atrás de Fassbinders. Há pessoas que comem gelado, outras bebem whisky, eu vejo Fassbinders. E não me canso de ver sempre os mesmos, apesar de Fassbinder ter uma obra vasta. Há qualquer coisa que me atrai especialmente, e penso que as pessoas vão sentir isso na exposição, que é uma tentação de teatro. Fiz cenografia quando era muito novo, estudei cenografia e trabalhei no Teatro Aberto em duas ou três peças, e o teatro, nestes últimos dez anos, reapareceu no meu trabalho de uma forma que nunca imaginei que pudesse ter tanta importância. Não só as séries fotográficas são encenadas, como os vídeos são encenados. É tudo forçado e, nesse sentido, é um bocado como Fassbinder, que levava a tragédia e o drama de várias questões, mas fazia-o com uma classe e, ao mesmo tempo, com uma rudeza que me interessa muito. As pessoas, vulgarmente, apontam os filmes dele por outras razões completamente diferentes e dizem que é um autor político, mas o que me fascina mais é a forma como os seus personagens são sempre derrotados, falhados, e há em todos eles uma história de amor. Poder-se-á dizer que são clichés, mas são esses clichés que fazem com que a obra dele seja realmente imortal. São os mesmos clichés do Bergman, por exemplo. São os clichés das pessoas. São os clichés dos humanos. Nesse sentido, há outro fundamental para mim, que é Beckett. Sendo uma coisa ainda mais desconstruída do que Fassbinder, Beckett é quase como se fosse um bocadinho de Bergman e de Fassbinder, mas fá-lo pela ausência e pela repetição. A repetição é muito importante, porque a vida é feita de repetições e é nelas que vamos alterando e falhando. E, de repente, temos a morte, que é um ponto comum entre estes três autores que aqui temos. É o destino final, o que me leva filosoficamente a pensar se não será a morte a grande realização, sendo que nunca podemos falar sobre ela, porque é sempre demasiado tarde para falarmos sobre a nossa morte. Esta exposição é organizada pela Babel. Como é que está a ser esta parceria? A Babel é uma associação fantástica. Tem conseguido fazer coisas impressionantes para o mundo de Macau. É, talvez, a associação que tem a perspectiva mais contemporânea, ao tentar criar diálogos sobre arte contemporânea que são os mais importantes do momento. Todo o trabalho que tem feito também ligado à educação faz com que se esteja a tornar numa das associações mais importantes do território. A minha experiência está a ser óptima. Tanto a Margarida Saraiva, como o Tiago Quadros têm um conhecimento bastante vasto sobre arte contemporânea e acaba por ser mais fácil trabalhar com pessoas que sabem o que estás a dizer. Depois, é difícil recusar a oportunidade de poder expor na Casa Garden, de ter aquele espaço todo para fazer uma exposição. Estou a gostar imenso de trabalhar com a Margarida Saraiva enquanto curadora, porque dá bastante espaço ao artista para que ele se encontre. Vai sugerindo coisas mas tem uma capacidade de diálogo bastante interessante.
João Luz Entrevista MancheteManuel Porto, professor de Direito: “O mundo nunca esteve tão bem como agora” Vivemos tempos de mudança de paradigma, tanto em termos económicos, como políticos. O HM falou com Manuel Porto, especialista em assuntos europeus e antigo eurodeputado, sobre os principais desafios que se avizinham [dropcap]M[/dropcap]acau é tida como a ponte entre a China, o mundo lusófono e a Europa, através de Portugal. Acha que esta ponte é real, que é um papel assim tão importante ou mero protocolo? Realmente, não parece ser preciso, porque nada impede que haja mesmo uma relação entre Pequim e Lisboa. Mas é bom que haja uma entidade como Macau, com a História que tem. Vale a pena lembrar que os dois países do futuro vão ser a China e a Índia. Neste momento a China ainda está a crescer 6,7 por cento ao ano, enquanto a Índia cresce 7,7 por cento. Pouca gente presta atenção a isto, mas o último país da Europa a deixar de estar na China e na Índia, as duas grandes potências do futuro, foi Portugal. A Índia tornou-se independente da Inglaterra em 1947, mas Goa, Damão e Diu só foram integrados na Índia em 1961. O caso de Macau é um caso extraordinário. Quando se deu o 25 de Abril, a ideia proposta pelo MFA era imediatamente entregar a independência de Angola, Moçambique e todos os territórios ultramarinos. Na altura, o chefe de Estado da China era um senhor chamado Mao Zedong, muito conhecido cá no sítio. Na sequência da vontade expressa por Portugal, Mao mandou um recado para Lisboa a dizer que nós saíamos quando ele quisesse. Acabámos por ficar cá mais 25 anos. Vivemos tempos interessantes, de mudança de paradigmas. Considera que estamos numa era perigosa? Há uma tendência para achar que o mundo está pior, o mundo nunca esteve tão bem como agora. Hoje não morre ninguém de fome na Índia, por exemplo. Conheço muito bem a Índia, aliás, a minha mulher é indiana, a obra da Madre Teresa de Calcutá em Bombaim foi montada na paróquia de um tio meu, um irmão do meu sogro, o tio Paulo. Vou sempre passar uma semana, ou duas, à Índia nos últimos 30 anos, desde 1987, e posso-lhe dizer que não se pode comparar a pobreza de Bombaim há 30 anos e agora. A China também teve um progresso incrível. Sei que estes dois países não são o mundo inteiro, mas, o facto é que têm um terço da população mundial. Parece que o século XXI traz uma nova ordem mundial. Sim, dentro deste quadro global estamos a entrar num mundo diferente, há muitos poderes. O mundo do século XX era relativamente simples, era um mundo tripolar economicamente. Tínhamos os Estados Unidos, a Europa no seu conjunto e o Japão. Militarmente era bipolar, com os dois grandes blocos da União Soviética e dos Estados Unidos, a Europa não contava neste âmbito. Este mundo que se avizinha será multipolar, temos de ter noção disso, não haverá uma nação prevalecente, em vez disso teremos várias, seis ou sete. Agora, o problema que se põe é dentro dos países haver um certo sentimento de rejeição dos outros. Acho que o maior problema é a xenofobia e a falta de acolhimento. Por exemplo, com a crise dos refugiados na Europa, isso era algo que não era próprio da Europa, e é talvez aquilo que mais me preocupa. Como vê a inoperância europeia em relação à crise dos refugiados? Não é drama nenhum acolher aquela gente, eles podem, perfeitamente, ser integrados. Neste plano era de esperar maior abertura dos países da Europa. Se pensarmos no caso particular dos refugiados sírios, eles são pessoas que se integram com facilidade, não são assim tão diferentes de nós, assim como as pessoas provenientes dos países todos ali da zona. Acho que Europa aí não está a andar bem e está-se a criar uma tremenda má vontade contra os refugiados. Porque, apesar de tudo, somos um continente muito rico. Enfim, sempre temos as nossas limitações, o desemprego é grande, mas está na casa dos seis, sete por cento. Ainda assim, penso que temos todas as condições para assumir uma posição de abertura. Claro que a melhor solução seria resolver o problema na origem, evitar a existência de refugiados. A Europa até tem uma história recente de integração, por exemplo, um dos êxitos da política europeia foi a forma como lidou com a emigração dos países da periferia para o centro. Algo que, praticamente, deixou de haver, começando por Portugal e Espanha. Emigraram de Portugal, entre 1960 e 1976, 1,5 milhões de pessoas, grande parte para a Europa, e houve esse acolhimento. Aí, mais uma vez, Portugal deu ao mundo um belo exemplo, não sei se na história da Humanidade há algum caso como o português de 1975, quando vieram do Ultramar português 800 mil pessoas para uma população de nove milhões. Nessa altura não havia tanto emprego como isso e esse fluxo, quase dez por cento da população, foi integrado. Portugal tem muitos méritos na história, creio que este é um deles. Como vê o crescimento do populismo na Europa? A eleição de Donald Trump e o Brexit são sinais preocupantes. O eleitorado americano e britânico não votou em função dos candidatos, ou da pergunta do referendo. Em vez disso, exprimiram através do voto um sentimento de revolta, de angústia, de mal-estar. Nesse domínio é de salientar que há um país na Europa que não permite referendos, a Alemanha. A ilustre Alemanha, que dominou a cultura europeia no século XX, teve uma experiência desastrosa, a pior que há no século XX, nascida de um referendo. Isto é horrível de se dizer, em particular para um democrata convicto, mas uma pessoa começa a ter medo quando o povo vai todo votar desta forma. Votaram para se verem livres dos emigrantes, porque não querem acolher pessoas, com um profundo sentimento xenófobo. A eleição de Donald Trump foi a mesma coisa. Como é que ele ganhou aquilo? A senhora Clinton é uma pessoa sensata, com experiência dada, fez um bom lugar na administração Obama. É preocupante. Como chegámos a este estado? Olhe, eu vivia na Inglaterra quando foi o referendo de 1975 e, na altura, o voto foi de 67 por cento a favor da integração europeia, ou seja, mais de dois terços a favor. Na altura, um discurso de um antigo primeiro-ministro inglês, Macmillann, onde falou, celebremente, do “efeito de chuveiro frio”, motivou muita gente a votar pela integração na Europa. A ideia é que o isolamento faria o Reino Unido perder competitividade mundial, mesmo face à Alemanha e a França. Ou seja, a entrada na Europa seria preponderante para estimular a economia. O problema agora voltará a ser esse. Como é que a indústria inglesa compete? Neste momento, o Reino Unido tem o maior deficit na balança de pagamentos correntes de toda a Europa, 146 mil milhões. Apesar de ter superavit nos serviços bancários, os saldos das transacções de mercadorias são um desastre. Nesse aspecto interessa à Europa estudar o êxito orçamental alemão, que tem o maior superavit do mundo, acima do chinês. Isto apesar de ter uma mão-de-obra muito cara. Poderá o ambiente de instabilidade política ser consequência de grandes desigualdades económicas? É evidente que há muita desigualdade na China, por exemplo, até porque antigamente viviam sob o signo da grande igualdade. Fui educado a sofrer por ver pobres a morrer de fome, penso que estamos muito melhores hoje em dia. Quanto às desigualdades económicas, elas são naturais, mas depois do crescimento virá o equilíbrio. Basta ver quais são os países com maior igualdade do mundo, os nórdicos europeus, que são, actualmente, os melhores países do mundo em vários indicadores socioeconómicos. Por exemplo, há uma indicação das Nações Unidas para que seja afectado ao apoio ao desenvolvimento 0,7 por cento do PIB. Ora, os únicos países do mundo que cumprem esse desiderato são os países do Norte da Europa, Suécia, Noruega, etc. Com possibilidade de ganhar, Marine Le Pen já ameaça com um referendo à permanência de França na União Europeia. Como vê esta possibilidade? Isso seria o fim da União Europeia. A Europa tem, com os seus 500 milhões de habitantes, sete por cento da população mundial, com alguns países na casa dos 400 mil habitantes, como é o caso de Luxemburgo e Malta. Se não nos unirmos como é que podemos competir no mundo do futuro? Mas deixe-lhe contar uma estória interessante. Nunca conheci a Marine Le Pen, mas fui colega do seu pai, Jean-Marie Le Pen, no Parlamento Europeu, até tínhamos gabinete no mesmo andar. Um dia estava com o meu neto em Estrasburgo, e cruzámo-nos com o Le Pen, quando íamos a passar, ele fez uma festa na cabeça do meu neto e disse: “Il est mignon, Il est mignon”, ou seja, “ele é doce, ele é um doce”. Como vê as relações que se avizinham entre os Estados Unidos e a Rússia? Confesso que tenho dificuldade em prever algo nesse aspecto porque não consigo perceber a lógica das atitudes do Sr. Trump. É muito preocupante, porque os Estados Unidos são uma potência militar impressionante. Até há pouco tempo, agora não sei, a América tinha mais potência militar que todo o resto do mundo junto. Muitas vezes disse “oxalá que o país que tem mais de metade da potência militar continue a ser uma democracia”, porque existe uma ponderação institucional, as decisão têm de passar pelo Senado. Mesmo em caso de escalada bélica, nem consigo imaginar contra quem. Não sei quem são os inimigos do Sr. Trump. Depois existe todo aquele amor ao Putin. Ter o apoio do Sr. Putin é algo que não abona a favor de ninguém. Aquele homem perpetua-se no poder, vai ficar a vida toda. Como é que é possível criar estas situações? A Rússia, em termos de população, nem é um país assim tão grande quanto isso, tem 120 milhões de habitantes, menos que o Brasil. Mas, voltando ao Donald Trump, como é que é possível um homem destes chegar a Presidente dos Estados Unidos? Ainda por cima depois de um bom Presidente, que vai ficar na história, com actos políticos históricos como, por exemplo, a abertura com Cuba.
João Luz Entrevista MancheteAlexandre Marreiros, arquitecto e artista: “Macau é como uma tela de cinema” É hoje inaugurada no Centro de Indústrias Criativas a nova exposição de Alexandre Marreiros, Tropicalia Club. Começámos a falar de arte e acabámos por escalpelizar os vários aspectos de Macau, do paradoxo cultural e arquitectónico, ao carácter dinâmico de uma cidade que não pára [dropcap]O[/dropcap] que nos pode dizer acerca da exposição que inaugura hoje? Fecha um ciclo de exposições que fiz no último ano e meio. Fiquei numa espécie de um vazio, de ressaca, houve uma data de ideias que aconteceram e que consegui traduzir para desenho. Adoro o vazio, não envolve qualquer tipo de angústia. Dei por mim a vasculhar o arquivo à procura de coisas que estavam esquecidas. Para esta exposição imaginei um clube, ou grupo de indivíduos que se associam livremente, que têm ideias comuns, ou não, e que podem discutir coisas semelhantes. Mas isto passa-se no meu imaginário, já não posso falar com o Oscar Niemeyer, ou perguntar alguma coisa ao Ortega Y Gasset porque ele também não está vivo. Portanto, reúno estas personagens que existiram neste clube imaginário. Existem também coisas que são observações minhas desta cidade, traduzidas em desenho, isto porque sinto algum tropicalismo em Macau, que não consigo explicar. Com o que é que o público pode contar? Quando se expõe uma coisa, quando se traduzem ideias para música, para cinema, pintura, escultura, arquitectura também, isso é um dos maiores exercícios que podemos fazer, não só sensorial, mas também cerebral. Contar tudo aquilo que vou ter na exposição, para mim não faz tanto sentido, porque estou a desautorizar aquilo que exponho. Se explico já o que é, perde o propósito da exposição, que é lançar pistas, indicar caminhos, lançar dúvidas. Isso tem de ficar ao critério do observador, e não quero condicionar isso. Macau está carregada de paradoxos. Como é que os sente? Sempre me acostumei a ver as transformações de Macau, desde pequenino até agora. As cidades têm capacidades de contar histórias, tal como o cinema, ou qualquer outra vertente artística. Também existe pouca arquitectura que partilha territórios e domínios da arte. As coisas que sinto com música, com pintura e escultura, já senti também com edifícios. Mesmo quando a arquitectura é má, não competente, ela conta estórias, tem sempre coisas codificadas, ou que ajudam a descodificar estórias da tua cidade, e de quem a habita. Em Macau isto existe, sobretudo porque é uma cidade pequena, e eu consigo ainda ter alguma leitura, descodificar algumas histórias que esta cidade me vai contanto e que acho bonitas. Mesmo com as incongruências urbanistas? Se passearmos por Macau conseguimos ver as evidentes cicatrizes que marcam a cidade. Quando digo cicatriz pode ser estar num bairro com uma certa característica, olhar e ver um casino ao fundo, ou ter em muitos sítios a referência do Grand Lisboa. Tem muita informação por centímetro quadrado, não é por quilómetro quadrado. Portanto, às vezes é difícil sacudir o que é bom do que é mau, mas a verdade é que a cidade é sincera no sentido em que é desenhada. Não foi planeada durante muitos anos, mas conseguimos ver o que é o casco antigo da cidade. Mesmo o tempo pode revelar algo que não se via à partida. Por exemplo, o NAPE começou por ser considerado um desastre. O próprio Siza Vieira, que o desenhou, assume aquilo como algo fatal, mas eu gosto. É preciso deixar o tempo ser conservado na cidade, ele faz este afastamento com o casco antigo e com o emaranhado de Macau. Siza não quis ir atrás do que já existia, os tempos e as necessidades mudam, portanto, a cidade tem de acompanhar isso. Macau conta-te 500 anos de terra conquistada ao mar, e tu percebes o que é que é mar, aterro, ou casco antigo, o que é colina. E esta história é perfeitamente lida no desenho que a cidade tem, com todos os seus problemas, que são vários. O que acha do discurso da descaracterização e do progresso que atropela tudo? Macau depende inteiramente da indústria do jogo. A partir do momento que consigamos perceber que esta é a realidade, veremos que isto dita regras muito diferentes da maior parte das cidades do mundo. Ainda assim, o progresso deve ser planeado. Caracterizar é acrescentar uma qualidade, ou identidade, obviamente que há patologias, anomalias, não poderemos achar que isso é progresso. Aliás, ao passearmos no Porto Interior e no Porto Exterior há ali edifícios que gritam, berram, e descaracterizam o que já lá estava. Havia ali décadas, se não séculos, de um espaço que se mantinha com aquele desenho, com aquele ambiente, quase espremido pelas ruas apertadas. Acho que isso não é progresso. É necessário um cuidado planeamento urbano. O planeamento é importante. Se pensarmos que uma pessoa tem um lote e o regulamento permite ao lado de casas de cinco pisos a construção de um prédio de 34 andares, isto é o dinheiro a falar, e ele fala em todo o mundo. Mas isto acontece porque se permite, o erro aqui não é de quem quer fazer dinheiro, o que está mal é o regulamento permiti-lo. Hoje em dia não pensamos como pensávamos há 60 anos, o Homem já não é isso, nem a cidade, nem a família, assim como os turistas já não são meia dúzia. Há que actualizar e planear e, agora como arquitecto, vamos ver o que se faz com os novos aterros. Também apareceram projectos que melhoram a cidade. Uma coisa boa é este vazio que temos aqui nos Lagos Nam Van e Sai Van. Isto permite que não haja construção, houve este plano, a leitura certa de para onde Macau ia crescer, como ia crescer, e isto só podia ter sido feito por uma pessoa que entende bem a cidade, neste caso foi o arquitecto Manuel Vicente. Do ponto de vista arquitectónico houve projectos que vieram acrescentar zonas pedonais, o que é importante. Importa tirar os carros das principais artérias de Macau, e dar espaço. Isto traz qualidade de vida. Deixar respirar a cidade que já tem um ritmo acelerado. Sim, repare que esta cidade é como assistir a uma tela de cinema, é tudo em movimento. Não temos tempo para parar, e mesmo que pares, teremos 300 pessoas que nos vão atropelar. Não podemos querer que a cidade tenha outra leitura, quando vives numa cidade sempre em andamento. Nem sequer estou a falar em andar a pé, mesmo de carro. Passamos por várias imagens em sucessão, como no cinema, e sempre carregadas de informação. Macau já não é uma cidade em que o tempo de estar seja muito predominante, é tudo a correr. Depois, também não consegue descodificar, parar, olhar para alguma coisa que lhe chame a atenção, ou que o intrigue, não tem condições para o fazer. Acha que faltam espaços de reflexão na cidade? Se olharmos para as praças de Macau não reconhece o que deveria ser uma praça, mesmo as que não têm carros. A praça, como no conceito grego de ágora, são sítios de permanência, servem para ficarmos. Uma praça e um cruzamento são duas coisas diferentes e repare como as praças aqui também são descaracterizadas, não por questões de falta de qualidade arquitectónica, mas porque não existem instrumentos para tornar a praça o que ela é realmente: um sítio de permanência, onde se pode estar à sombra, onde se pode estar no Verão, no Inverno, permanecer, olhar, conversar. Macau está a perder a sua identidade? Existe o receio de perda de identidade, há probabilidades de, a longo prazo, aquilo a que se chama de cultura macaense se ir diluindo. Mas não creio que isso tenha de ser uma espécie de Adamastor, é muito importante haver identidade, preservarmos a nossa herança, mas acho que se faz algum esforço aqui para se tratar bem a memória. O facto de Macau ter sido classificado como património da UNESCO é uma maneira de proteger e preservar, portanto, os líderes, se quiserem que isto se mantenha, têm de seguir aqueles trâmites todos. Mas é importante a identidade não ficar estagnada, a identidade é um organismo, temos de aceitar isso. O que podemos fazer é encaminhar esse organismo da melhor maneira. Por exemplo, não faz sentido estarmos aqui com atitudes colonialistas, essa é uma identidade que felizmente já não existe. Não vejo razões para não haver abertura à transformação da identidade, isso seria condicionar a liberdade e a criatividade. Quais os seus lugares preferidos na cidade? Depende muito do estado de espírito com que estou, e aquilo que vou fazer. Mas gosto muito de passear e de me perder, e ainda consigo fazer isto em Macau, sobretudo no Porto Interior e Porto Exterior. Por lá ainda consigo descobrir coisas que não conhecia. Gosto do ambiente de doca, gosto de confusão, de estar entre as pessoas dos ofícios, os pedreiros, os pescadores, a senhora que frita e a senhora que lava. Porque, de alguma maneira, é aí que está conservada essa parte de Macau. Ao passear nestas partes, que também acho muito cinematográficas, que são muito intensas na maneira de estar, de ser, de viver a arquitectura, encontram-se muitos velhotes que falam português. Isso é uma coisa muito bonita. Gosta do burburinho. Mas também preciso de vazio, que só consigo se for para Coloane. Gosto de sentir esse isolamento, nem que seja por meia hora, mas também não é um sítio onde queira permanecer por muito tempo. Talvez por ser arquitecto, gosto da cidade, preciso de levar com este tipo de informação urbana. A rua onde eu moro é violentíssima, vivo no epicentro da confusão. Se me perguntares se preferia dormir noutro sítio, preferia. Mas gosto de habitar naquela confusão toda, apesar de preferir dormir num sítio onde nem passarinhos ouvia. É contraditório, mas não há nada a fazer.
João Luz Entrevista MancheteDavid Gonçalves, académico: “Macau tem níveis de desperdício muito grandes” Numa cidade que enfrenta múltiplas ameaças ambientais, as soluções políticas carecem da análise objectiva, fria, da ciência. Nesse sentido, o HM esteve à conversa com David Gonçalves, director do Instituto de Ciências e Ambiente, da Universidade de São José [dropcap]C[/dropcapomo apareceu a oportunidade de leccionar em Macau? Foi uma oportunidade que surgiu a convite do reitor da Universidade de São José, para trabalhar a área mais ligada às neurociências e ao comportamento. Na altura vim experimentar durante um ano, e depois decidi ficar. Isto foi há cinco anos e meio. E cá estou. Há dois anos e meio foi criado o instituto para desenvolver investigação e dar formação na área das ciências naturais, com foco no ambiente. Focando agora as questões ambientais. Macau parece virar as costas para a água. É verdade que algumas zonas foram fechadas por urbanizações, que antes estavam abertas para o mar, para o foz do rio. Isso traz uma série de problemas do ponto de vista ambiental, como impedir uma boa circulação de ar em alguns corredores da cidade. Talvez haja uma diferença cultural na maneira como olhamos para o mar. Nós, portugueses, sempre fomos um povo muito virado para o mar e com muita vontade de sair e ir por aí fora, ver o que havia do lado de lá. Não sei se aqui é tanto assim, pelo menos acho que não há tanto contacto com a natureza, e com o mar em particular, nomeadamente entre a população chinesa. Como vê o planeamento urbano da cidade? Acho que há uma falta de planeamento urbano, isso é algo que se vem discutindo na cidade. A lei é relativamente recente, creio que foi aprovada em 2013, mas falta haver a implementação efectiva, precisamos de planos directores que indiquem quais serão as zonas dedicadas a espaços verdes para o futuro, e quais as que são para urbanizar. Também se discute a possibilidade de explorar o turismo de navios. Para tal não existem infra-estruturas, teriam de ser criadas. Mas toda esta questão parece ter sido despoletada por agora termos estas águas territoriais para gerir, e essa é uma das opções que se pode equacionar. Que impacto poderá trazer em termos ambientais? O impacto depende muito da zona onde ficar localizado o terminal de passageiros turísticos. Há zonas onde o impacto não seria, provavelmente, grande na fauna e na flora. Há outras áreas que são mais sensíveis. Por exemplo, qualquer zona que fique mais perto dos mangais, portanto, aquela zona ali do Cotai que tem mangais que vão quase até Coloane. No fundo, toda a faixa de Coloane, que é uma zona sensível que deveria ser protegida. Coloane necessita, portanto, de uma atenção especial. As pessoas, provavelmente, não sabem disto porque olham para aquelas águas castanhas, mas não imaginam que têm uma biodiversidade relativamente interessante. Inclusive, temos espécies de mamíferos marinhos ameaçados, os chamados golfinhos cor-de-rosa, que habitam aqui nesta zona. São uma espécie muito estudada do lado de Hong Kong, mas relegadas para segundo plano do lado de Macau, mas aparecem por cá regularmente. Na zona de Hac Sa é frequente avistar-se indivíduos destas populações. Portanto, algo tão grande como um porto que permita receber navios de grande porte tem de ser equacionado com cuidado porque vai interferir com estas populações que já estão com uma grande pressão antropogénica sobre elas. Voltando às águas marítimas atribuídas a Macau. Que oportunidades trazem ao território? Não conheço bem os aspectos técnicos da legislação, mas acho que temos de articular com a China Continental o que vai ser desenvolvido nessas águas. Precisamos do sinal verde de Pequim. É uma oportunidade interessante, podemos fazer algo que falta em Macau, que é decidir quais as áreas que queremos protegidas para as gerações futuras. Nomeadamente, se olharmos para o território, talvez fizesse sentido ter uma zona integrada de protecção que incluísse não só a parte emersa, como a parte imersa, restringindo actividades potencialmente prejudiciais ao ambiente, como pesca, passagem de determinadas embarcações, etc. Creio que seria algo que todas as gerações futuras iriam agradecer se houver, de facto, a coragem de tomar essa decisão e legislar nessa matéria. O que acha da construção da ponte que ligará Hong Kong, Zhuhai e Macau? Obviamente que esse tipo de projectos tem sempre impactos significativos no ambiente. Do que sei, foram feitos estudos de impacto ambiental extremamente exaustivos no âmbito deste projecto. Tentou-se minimizar os impactos no meio marinho. Não quero estar a fazer juízos de valor, se foi bom, ou se foi mau, aprovar-se este projecto porque acho que cabe aos decisores políticos e às populações fazerem ouvir a sua voz, porem tudo nos pratos da balança e decidirem o que querem. Mas é possível ter um equilíbrio. Macau está a crescer, precisa de mais casas, mas é preciso equilibrar isto com a protecção de zonas protegidas onde não se pode construir. Pequim parece estar num momento de virar a página em termos ambientais. O desenvolvimento da China não tem sido assim tão diferente daquilo que aconteceu noutras partes do mundo. Há 50 ou 60 anos tivemos problemas semelhantes na Europa. Por exemplo, Londres tinha problemas gravíssimos de poluição atmosférica por causa da queima do carvão e pela emissão de poluentes por outro tipo de indústria, e tínhamos chuvas ácidas na Europa Central. Isto deu-se quando a Europa fez a transição de uma sociedade mais agrícola para a industrialização, que é precisamente o que estamos a observar na China, mas de uma forma muito acelerada, altamente industrializada e urbanizada. Está a haver um grande êxodo das pessoas dos campos para as cidades, isso leva a muita construção sustentada na indústria do aço e do cimento. É necessário alojar estas pessoas que estão a sair do campo. Mas os problemas não são apenas do sector da construção. Ao mesmo tempo, temos o aumento no consumo médio, o nível de vida melhorou, o que é bom. Há mais pessoas a ter telemóvel, carro, e a consumirem mais produtos, para tal é preciso produzi-los, e isso tem um efeito no ambiente. Portanto, a China tem um problema grave em termos de poluição atmosférica, essencialmente por causa da produção de energia, ainda muito garantida com base na queima do carvão altamente poluente. As emissões dos veículos são também muito elevadas. Mas estamos, certamente, num momento de virar de página. Assinaram o acordo do COP 21 para tentar travar as emissões e, mesmo que não tivessem assinado, há uma pressão muito forte da própria população para que as coisas mudem. Estão a investir muito em energias renováveis – solar, eólica, hídrica. Porém, a China está em crescimento em termos de consumo interno, o que levará a uma sobrecarga nas indústrias que ainda são poluentes. A transição está a ser feita, mas ainda vai demorar algum tempo para que os efeitos ambientais se verifiquem. A minha previsão é que nos próximos anos vamos continuar a assistir a alguma degradação dos parâmetros ambientais. O ajustamento desses valores, à semelhança do que aconteceu noutros lados, virá mais tarde. Como está o Delta do Rio das Pérolas? Tem havido uma pioria nalguns parâmetros, e melhoria noutros. Por exemplo, os metais pesados, aparentemente, têm diminuído as concentrações; outros poluentes, como os orgânicos, têm piorado as concentrações. Mas, sim, recebemos uma carga significativa de poluentes através do rio. É verdade que, estando aqui na foz, basta ir à praia de Hac S, para percebermos que aquilo está cheio de sacos de plástico e de outro tipo de detritos que vêm do Rio das Pérolas. Outro problema são as zonas de agricultura mais a montante. Há uma grande preocupação com os pesticidas utilizados, e com outro tipo de poluentes, e o seu impacto na segurança alimentar. Muitos produtos frescos que são consumidos em Macau vêm de regiões agrícolas que estão aqui à volta, onde a qualidade das águas e do ar não são as melhores, e isso influencia a qualidade dos produtos que comemos. E a nossa responsabilidade deste lado? Aqui em Macau achamos que não temos nada que ver com isso, porque é um problema que está na China, e temos muito a mania de nos queixarmos da poluição que vem de lá. Mas a verdade é que Macau tem níveis de desperdício energéticos muito grandes. Cada vez que estamos a sobrecarregar a rede eléctrica estamos a contribuir para essas emissões que são feitas do lado de lá da fronteira, e que depois recebemos. Uma estratégia que, a meu ver, poderia ser desenvolvida era tentar reduzir a poluição atmosférica, as emissões locais, nomeadamente através de adopção de veículos eléctricos. Macau podia ter ao mesmo tempo um papel mais activo no investimento em energias limpas. Provavelmente, no território não temos espaço para isso, mas podemos fazer parcerias com a China para a construção de parques eólicos, solares, e ir lá buscar a energia de que precisamos. Que mais podemos fazer? Toda esta região precisa de técnicos qualificados que possam intervir nestas várias áreas. Temos muitos outros problemas ambientais que afectam Macau e que precisam de profissionais qualificados. Desde a parte do tratamento dos resíduos sólidos à gestão das zonas verdes, passando pela água de consumo. A inovação nestes campos, mesmo do ponto de vista económico, é uma área interessante em que poderão surgir empresas que encontrem soluções para melhorar o ambiente, gerando na mesma receitas com isso.
Sofia Margarida Mota Entrevista EventosEntrevista | António Paula Saraiva, autor de “Árvores e Arbustos de Macau” “Árvores e Arbustos de Macau” é um livro que resulta de quatro anos de trabalho e descreve as mais de 200 espécies da flora local. Da autoria de António Paula Saraiva, a obra é a ilustração da natureza do território e serve de alerta para a necessidade de a conhecer. Está disponível em Janeiro [dropcap]P[/dropcap]orque é que sentiu necessidade de explorar as espécies de Macau? Considero que uma das falhas da nossa educação é o pouco caso que se faz da educação biológica. Tenho feito perguntas a várias pessoas acerca de aspectos que, para mim, são muito simples, e as respostas que tenho tido mostram um profundo desconhecimento dos factos mais simples da biologia ou mesmo do ambiente em geral. Tenho um amigo, por exemplo, uma pessoa informada, que ficou muito espantado quando lhe falei do nome das nuvens. Nem lhe passava pela cabeça que as nuvens pudessem ter nome. A maior parte das pessoas desconhece o nome das rochas e anda à procura de Pokémon, que são coisas que nem existem. Considera que há um desconhecimento da realidade natural à nossa volta? Sim. Hoje em dia as pessoas passam largos anos na escola e, no entanto, não sabem o nome das árvores que as rodeiam. Mas, por exemplo, sabem as marcas de automóveis. Se não existissem carros, o homem poderia viver, mas sem árvores, não. Há 200 ou 300 anos, havia um interesse e um conhecimento da botânica que não existe hoje. Penso que houve uma regressão. Não só estávamos numa fase de exploração activa do mundo, como havia o espanto da descoberta. A curiosidade acaba por se estender às plantas. Outro aspecto importante é que, antigamente, os remédios eram encontrados nas plantas e por isso muitos botânicos eram médicos. Dizia-se por brincadeira que as senhoras de um certo estrato social tinham de tocar piano e falar francês, mas houve épocas também em que o conhecimento da botânica era um apanágio do homem culto. É algo que hoje em dia desapareceu. O facto de actualmente existir uma maior consciência ecológica em nada contribui para um maior conhecimento da botânica? Isto é discutível, mas há muitas coisas que são fingidas e não correspondem à realidade. Toda a gente gosta de falar em ecologia, mas depois isso não se traduz em verdadeiras preocupações. Por exemplo, fala-se que é preciso gastar menos energia, mas as pessoas cada vez têm mais aparelhos de ar condicionado. É uma preocupação um pouco postiça. Neste estudo da flora local, que particularidades encontrou? Há um aspecto muito característico de Macau e ainda pouco estudado: a existência das raízes aéreas. Vemos as plantas crescerem contra a lógica porque há situações em que não há terra, nem água e as plantas continuam lá. Isso significa que se estão a alimentar através dessas raízes e sem suporte, mas ainda não se sabe como. Em Macau há uma maior quantidade desse tipo de plantas? Talvez, porque este tipo de plantas aparece mais em lugares com muita humidade. Como é que decorreu toda esta investigação? Não se pode dizer que seja uma exploração exaustiva, mas tentei que fosse completa. Há dois aspectos que contribuem para que não seja uma investigação exaustiva. Um deles é que estamos na era da globalização e, como tal, aparecem cada vez com mais frequência espécies de outras regiões. Por outro lado, e em relação às plantas espontâneas, há umas que apresentam características mais especiais e por isso saltam à vista, e outras que se confundem. Logo, é possível que aquelas que não apresentam aspectos muito característicos ou distintivos acabem por passar despercebidas e não constem no meu trabalho. Mencionou a globalização e o acréscimo de espécies com esse fenómeno. Macau é um lugar de misturas. Podemos aplicar a miscigenação à flora local? Posso responder de duas formas a esta questão. As pessoas quando vão para outros locais adaptam-se sempre, mas tentam também ter algo do seu mundo de origem. Um aspecto muito característico deste fenómeno verificou-se na Nova Zelândia em que os ingleses que foram para lá tentaram recriar a fauna do seu país. Em Macau verifica-se, por exemplo, que houve pessoas que trouxeram videiras. As videiras são características de climas mediterrânicos, mas infelizmente aqui já desapareceram quase todas com o avanço da urbanização. Mas ainda se encontram figueiras que, também sendo do mesmo tipo de clima, permanecem. As misturas culturais não se aplicam à botânica. Existe mesmo a noção de espécie invasora, ou seja, uma espécie que provém de uma outra localização geográfica, mas que se instala de tal forma que começa a acabar com a flora espontânea. Para dar um exemplo conhecido, em Portugal tem havido várias campanhas para acabar com as acácias que são da Austrália ou mesmo com o chorão das praias. Podemos dizer que este trabalho é o primeiro do género a ser publicado, visto ser uma compilação e estar em três línguas, português, inglês e chinês? Existe em Macau uma publicação acerca da flora local, mas só está publicada em chinês. É muito completa mas tem a limitação da língua. Nesse sentido, este livro tenta ser mais abrangente a chegar a pessoas que possam falar português ou inglês também. É um livro que tenta entrar por outros caminhos que ainda não foram explorados, nomeadamente o aspecto da reprodução das plantas que, para mim, tem uma importância fundamental: estamos numa época em que tudo é comprado, há viveiros onde se podem comprar as plantas, mas pode ser interessante as pessoas cultivarem as suas próprias espécies e, para isso, é necessário terem alguns conhecimentos. Os livros de botânica que existiam falavam apenas das plantas e não na sua cultura. Outro aspecto que também tentei abordar foi a história da introdução das plantas em Macau. Não havia praticamente fontes sobre a introdução de espécies no território. Encontrei apenas duas listas, uma de 1886 e outra de 1933 mas, entretanto, devido ao fenómeno da globalização e até do enriquecimento de Macau, foi possível trazer mais plantas para cá. Um número razoavelmente grande de espécies já entrou no território perante os meus olhos. É um dos capítulos mais insuficientes do livro e que gostaria de explorar mais, mas acabei por achar que era melhor pôr alguma coisa, e dar início a essa abordagem, do que não pôr nada. Quando introduzia espécies não tinha, por vezes, o cuidado de fazer uma descrição dessa introdução. Isso depois teve de ser feito a partir da memória. Com factores como o desenvolvimento do território e a poluição, a flora está em risco? Os chineses gostam mais de fazer as cidades em locais planos ao contrário dos europeus que preferem cidades em colinas. Aqui deitam por vezes montanhas abaixo para planar o terreno e é aí que fazem as suas cidades. No caso de Macau, toda aquela zona do Cotai é uma zona plana e isso leva a que as plantas localizadas nas montanhas estejam mais protegidas, enquanto aquelas que se situam nos locais mais baixos estão mais em risco ou já foram mais ou menos eliminadas. Não totalmente porque, sendo plantas de sítios húmidos, têm mais resistências do que as de sítios secos. Com certeza que a poluição causa danos; no entanto, como é que isso se traduz na evolução da população ou no desaparecimento de certas espécies, já é mais difícil de afirmar. Quais as maiores dificuldades que teve na concepção deste livro? Há espécies que não são de fácil identificação e, por isso, pedi ajuda a colegas para o fazer de uma forma mais precisa. Este é um livro acompanhado de ilustrações. Porque é que decidiu recorrer a este tipo de representação? O livro tem ilustrações técnicas na parte geral e depois tem a descrição das espécies acompanhadas por fotografias. A opção pelas 44 ilustrações que foram feitas pela Catarina França e pela Mafalda Paiva foi um retomar da tradição dos antigos botânicos que faziam, numa altura em que não havia fotografias, ilustrações e muitas delas muito bonitas. Quando se tira uma fotografia, a planta, que é constituída por uma série de planos, vai aparecer com aspectos focados e outros mais desfocados. Por outro lado, os desenhos têm ruído, ou seja, têm muitos aspectos secundários que dispersam a atenção. Nestas ilustrações todos os órgãos da planta aparecem ‘focados’ para que a sua leitura seja fácil. Há um ajeitar da natureza de forma a torná-la mais compreensiva. Mas foi sobretudo uma homenagem aos antigos botânicos. EXPOSIÇÃO https://www.facebook.com/events/1078674292241318/ Entre os dias 29 de Dezembro e 13 de Janeiro, os desenhos da flora de Macau que ilustram a obra de António Paula Saraiva serão objecto de uma exposição no auditório do Instituto Internacional de Macau. Para acompanhar o evento basta seguir a ligação em cima.
Isabel Castro Entrevista MancheteLuís Sá Cunha, investigador: “[Luís Gonzaga Gomes] trouxe o mundo para Macau” Luís Gonzaga Gomes é uma figura ainda por reconhecer, que deveria servir de inspiração para a cidade de hoje. Mais tolerante, mais transversal, mais pensada. Esta semana, Luís Sá Cunha recuperou o cenáculo que, no início da década de 90, criou para que o último grande sinólogo de Macau não fosse esquecido [dropcap]D[/dropcap] e onde vem o interesse por Luís Gonzaga Gomes? É uma coisa estranha, mágica, uma empatia. Vem desde miúdo: chegava a um sítio e, como o Papa João Paulo II, ajoelhava-me, beijava o chão, aquela era a minha terra. O facto de ser a minha terra significava que eu lhe pertencia e tinha de conhecer tudo. Quando cheguei a Macau, tive uma empatia com Luís Gonzaga Gomes. Comecei a ler. Em 1991, resolvi fundar o Cenáculo Luís Gonzaga Gomes, porque achava que era uma pessoa que encarnava no pensamento, nas obras, no comportamento, o mais essencial do espírito de Macau. É um lugar-comum, mas tem de se dizer: Macau foi um lugar de intercâmbios e sínteses culturais, de biótipos de todos os valores culturais. Luís Gonzaga Gomes é o último sinólogo de uma grande escola e de uma grande geração de sinólogos. Foi professor. Logo na escola, e depois onde esteve, começou a dizer que era preciso ensinar chinês nas escolas dos miúdos portugueses. Mas o que é que Luís Gonzaga Gomes teve de tão diferente de outros estudiosos e sinólogos daquela geração? A primeira diferença é que ele foi militante disto. Quando aqui cheguei, para compreender Macau e a cultura do Sul da China, e a China, lia os livros de Gonzaga Gomes – daí a minha empatia. Ele traduziu os clássicos, traduziu livros importantes para português. Também fez a tradução de livros portugueses para chinês. Sobretudo no ensino, procurou sempre impor nas escolas o ensino do chinês para os portugueses e vice-versa. Por onde ele passou, nos Correios e em outros lados, fez manuais para que se aprendesse cantonense. Foi uma vida inteira a escrever e a traduzir. O que é que tem de diferente? Tem de diferente que fez isso e os outros não fizeram. Tem 100 livros publicados, uma coisa enorme, esteve em todo o lado, fez parte de tudo. Também foi desportista, jogou ténis, tocava violino, na música era uma figura espectacular. Naquela altura, trouxe cá músicos famosos no mundo, pessoas que andavam no circuito internacional. Conhecia profundamente a música. Diz-se que tinha em casa um quarto inteiro forrado a corticite com uma discoteca enorme e o melhor que havia de aparelhagem. Era uma pessoa silenciosa, que andava como um gato, e que fugia dos sítios onde tinha de participar. Julgo que ia não só investigar, mas sobretudo ouvir muita música. Foi director da biblioteca, do arquivo histórico de Macau. Fez tudo. Abriu muito o conhecimento e a perspectiva sobre a China. Lia livros estrangeiros, tinha contacto com academias estrangeiras. Tirava cursos por correspondência, o que era muito normal naquela altura para gente que queria ter saber universitário, mas não tinha universidades. De certa maneira, procurou viver um próprio ideal universitário e de formação aqui. Ele respirou o mundo, ele trouxe o mundo para Macau. É uma figura que está longe de ter o reconhecimento público que devia. Acho inacreditável como é que Luís Gonzaga Gomes – considerado por toda a gente, e pelo Padre Manuel Teixeira o maior historiador de Macau de todos os tempos, com todo o trabalho que fez e publicou – não teve o devido reconhecimento e homenagem. Foi também uma das razões do Cenáculo, sobretudo por aquilo que ele representa e que eu desejava que se mantivesse nas gerações actuais, e nas gerações futuras. Há um pequeno reconhecimento na escola luso-chinesa. Há uma rua, mas isso, para mim, não é reconhecimento. É uma falha. Como é que é possível que se tenham editado obras completas de vários autores e não de Gonzaga Gomes – e não vou discutir o mérito deles. Como dizia o Padre Teixeira, “o pobre do Luís trabalhava até às duas da manhã”. Recolheu todos os artigos do Silva Mendes e publicou-os em quatro volumes. Mas ninguém fez o mesmo com a obra dele. Uma das coisas que o Cenáculo vai fazer, e que eu estou a fazer com o apoio nesta parte do Instituto Internacional de Macau (IIM), é juntar tudo o que escreveu nos jornais aqui. Depois tenho de ir a Portugal mas, agora, o mais importante está aqui, para haver um plano de edição das obras dele. Não digo a obra completa porque pode demorar muito tempo. Ele próprio organizou edições dos trabalhos dele. Depois, foram feitas edições sobre a obra, com selecções de artigos que são mais discutíveis, arbitrárias. Não são más, não é isso, mas não é aquilo a obra dele, há muita coisa para publicar, com rigor científico. Tem de se ir buscar prefácios, tem de se ver especialistas de antropologia, de etnografia de Macau, tem de ser feito um enquadramento histórico. Não é uma tarefa simples para um homem só. Já ando há dois anos a fazer isto, também a investigar, tenho toneladas de documentos para escrever a biografia dele para o Albergue da Santa Casa. Não tem uma biografia e acho que merece uma. Isto quanto a mim é a primeira base de um programa no plano cultural, que falta a Macau, e que é muito importante. E a importância de Luís Gonzaga Gomes para o que é hoje Macau? Ao ler esta semana uma newsletter no IIM encontrei uma nota para a revista em 2007 a dizer assim: Macau está-se a descaracterizar nas volumetrias da cidade. Na chegada massiva de turistas, na falta de conhecimento dos turistas que chegam aqui e disparam fotografias perante fachadas. Aquilo para eles é plástico, não existe, acham muita graça… Não há cá, no meu entendimento, um turismo cultural, mais profundo. Devia haver, porque Macau é uma coisa riquíssima nesse aspecto, e podiam-se chamar cá mais nacionalidades, se houvesse esses programas e se se fizessem esses itinerários. Dantes, quando vinha cá um Presidente da República, chamava-se o Padre Teixeira para ir explicar, porque ele sabia tudo. Hoje se vieram cá várias pessoas quem é que se vai chamar? O arquitecto Marreiros pode falar da cidade, também pode ser. Devia haver essa formação. Mas hoje não há visita guiada para que haja explicação. Mas há aí muitas coisas. Eu podia fazer um itinerário romântico de Macau, era interessante. É a mesma coisa que o Schliemann fez, quando andou a buscar a história da Guerra de Tróia, investigou o mito de Helena de Tróia. Mas encontrou pouco. Supõe tu que estava lá uma pedra e que havia uma prova qualquer que era ali o trono dela. Era o suficiente para atrair uma multidão de turistas, porque a lenda e a história à frente daquela pedra têm outra solicitação. E aqui há pequenas coisas, casas que davam para isso. Coisas muito interessantes, muito bonitas. Luís Sá Cunha Diz que Gonzaga Gomes incorpora uma essência de Macau que se está a perder. Há uma integração de 150 mil, 200 mil novos habitantes de Macau de repente, que não sabem nada disto. Estão aqui a viver, vão para os casinos e não sabem. Devia haver um museu. Os americanos têm de saber que Macau os ajudou, numa fase crucial para eles, para o desenvolvimento do comércio e de uma certa identidade cultural, porque as elites americanas vieram para aqui, para o comércio do Oriente. Foi com o auxílio de Macau que destruíram a Companhia Inglesa das Índias Orientais. Essas coisas não se sabem. Macau podia dizer assim ‘vocês agora estão com os casinos, vão outra vez ganhar dinheiro’, deviam fazer algum mecenato para obras culturais, revistas… Falta uma revista em Macau para certas áreas. E isso significa a descaracterização de Macau. As novas gerações não sabem nada, só de negócios. São cidadãos do mundo – não sei bem o que isso significa, para mim um cidadão do mundo é uma pessoa que pode andar em vários lugares, radica lá, mas ajoelha para beijar a terra. Tem de a conhecer, e tem de se dedicar também a ela quando está lá. Não podemos permitir essa descaracterização. Há gente nova que está aqui como se estivesse na Jugoslávia, no Sri Lanka ou noutro sítio qualquer. Refere-se a uma comunidade em particular? Estou a falar de todos. O novo Cenáculo vai ser diferente dos anteriores, porque o Cenáculo teve uma fundação em 1991 e foi interrompido em 1992, depois foi reanimado em 2007, e agora é reanimado outra vez. Vai ser diferente porque já foi convidada gente da nova geração de Macau, com uma grande participação de chineses bilingues. Isto é que é rigorosamente o espírito de Gonzaga Gomes. O bilinguismo, a multiculturalidade. Exacto. A edição, a tradução, a sinologia. Não só na língua, é também na gastronomia, na pintura e na música. Está aí o Simão Barreto que sabia todos os instrumentos, faz parte do conselho honorífico. Chamei mais de 30 pessoas [para o Cenáculo] e vou chamar mais.
João Luz Entrevista MancheteIvo M. Ferreira, realizador de cinema | O bom filho à casa torna Ainda a sentir réplicas de “Cartas da Guerra”, filme pré-seleccionado para os Óscares, e com destaque em tudo que é festival de cinema internacional, Ivo Ferreira volta a Macau para fazer um filme. O cineasta abriu as portas do seu escritório e recebeu o HM [dropcap]O[/dropcap] que pode dizer-nos acerca deste novo projecto? Comecei a escrevê-lo, precisamente, durante a paragem do “Cartas da Guerra”. É um filme que revisita uma Macau dos últimos cinquenta anos, ou dos próximos dez. É meio intemporal e assenta na ideia da erosão, da destruição física da cidade, como um catalisador que cria unidade e entidade. A ideia é um bocado romântica, louca, drástica e divertida, espero. E a narrativa? A narrativa gravita à volta de um hotel, que não é bem um hotel, é um prédio muito degradado onde os hóspedes acabam por ficar a viver, fazendo as suas casas dentro dos quartos. O dono é um português, que vive com a filha no topo do edifício, sem se preocupar com qualquer tipo de manutenção. Nisto, há um personagem que chega à cidade e que pretende deitar o edifício abaixo para construir um hotel novo. No fundo, é uma estória de resistência. De onde lhe surgiu a ideia para o filme? Vim para Macau em 1994, estive cá quase quatro anos e depois fui voltando. Filmei cá a minha primeira longa-metragem, “O Estrangeiro”. Apeteceu-me revisitar a cidade. Crio relações especiais com os lugares, algo que não tenho em mais nenhum lado do mundo, a não ser Lisboa. Quando regressei para rodar “O Estrangeiro” tentei revisitar esses primeiros dias de Macau, o hotel de prostitutas onde vivi, por exemplo. Os sítios que queria filmar tinham desaparecido e, pronto, fui filmar o vazio. Foi a minha tentativa inicial de somatizar a primeira experiência de Macau. Havia outro filme para fazer, eu sabia, e haverá outros. Pode ser que me saia o Euromilhões… Olha, gastava tudo mal gasto. Neste momento, vivo um estado compulsivo, estou a fazer este projecto, mas já estou a preparar um trabalho sobre os FP 25. Será um grande filme, muito caro e bastante explosivo. Como está a ser voltar a trabalhar num filme em Macau? Eu gosto muito disto, tenho uma relação muito especial com a cidade. Gosto imenso de Portugal, mas dá-me uma seca imensa passado um tempo, aborrece-me. As pessoas queixam-se muito, e pior, a maioria das vezes têm razão. Este sempre foi o meu plano, filmar dos dois lados. Mesmo sabendo que em Macau é muito, muito difícil. Mesmo apesar do passo enorme que o Instituto Cultural deu, espero que tenham consciência que o próximo passo tem de ser maior ainda, mas este primeiro já é de louvar. Sinceramente, é um desafio porque é muito difícil filmar cá. Posso dar-te um exemplo: uma coisa que há em Macau em abundância são quartos de hotel, mas estou há oito meses a pedir licença para filmar uma cena num quarto de hotel. Uma coisa completamente normal, ainda para mais com uma estrela de Taiwan, Rhydian Vaughan. Qualquer hotel no mundo até lhe pagaria o quarto. Aqui não, nada. Tudo é assustador, há uma espécie de medo que não sei explicar. A Sophia Coppola no Lost In Translation transformou o bar do hotel num destino turístico, as pessoas querem ficar lá por causa do filme. Estou há um ano para ter resposta do turismo, outro exemplo. As coisas avançam a um ritmo muito lento. É, absolutamente, desesperante, falta um bocadinho de frescura e dinâmica. O “Cartas da Guerra” tem corrido os festivais internacionais e foi pré-seleccionado para os Óscares… Devia estar em Washington agora, o filme está a passar lá. Para teres hipóteses nos Óscares precisas gastar pelo menos 300 mil euros. Primeiro, tens de anunciar nas revistas, depois vêm as sessões privadas. Mas ser pré-candidato é muito bom, é super sexy e cria buzz em torno do filme. É muito bom sair de um filme e entrar noutro, mas por outro lado é horrível. Este mês perdi alguns 15 festivais fantásticos. No entanto, a exposição dá muito jeito, por exemplo, para falar aqui com um co-produtor de Hong Kong. É óptimo, agradeço imenso a toda a gente que votou em mim e, se chegar lá é muito bom, principalmente na repercussão que trará às vendas. Tirando os benefícios práticos, como tem sido lidar com o protagonismo? O que me assusta mais é a conta bancária. Continuo teso, a ver vamos se isto alguma vez endireita. Agora, a sério. Fico muito contente, mas a verdade é que este filme, de certeza absoluta, não o teria montado financeiramente com esta velocidade se não fosse tudo isso. Pronto, se calhar lá terei de ir passear na red carpet, o que, sinceramente, não tem assim tanta graça, mas a Margarida adora vestidos e ainda arranjamos uns descontos. Mas dá muito trabalho, não tenho vida para isso. Voltando ao “Cartas da Guerra”. Quais foram as maiores dificuldades? A montagem foi um paraíso, agora, até lá foi tudo horrível. Primeiro concorremos e ganhámos o financiamento do ICA [Instituto do Cinema e do Audiovisual], o que é importante para depois pedir mais dinheiro lá fora. Estava tudo a correr bastante bem, mas depois Portugal foi à falência e não chegámos a receber o dinheiro. Depois, outros eventuais parceiros que existiam também saltaram fora. Começámos aí uma travessia do deserto. Assumimos que não iríamos ganhar dinheiro com o filme, porque se ia gastar tudo na rodagem. Era algo que estava assumido, e a única forma de poder filmar em Angola. Não iria esperar mais não sei quantos anos para tentar financiamento. Já tinham passados tantos, que era agora ou nunca, e se continuasse a arrastar, às tantas também já não queria fazer o filme. De repente, em três horas, o filme estava financiado. Houve uma viragem total. Não foi nenhuma sorte, foi o filme em si que fez isso. O filme que nos deu pesadelos, também nos deu a bonança e a felicidade. Finalmente, avançámos. Foi uma rodagem problemática. As rodagens em Angola foram horríveis, apesar do apoio local do exército angolano. Foi muito duro, também por questões inerentes à natureza do projecto. Quis filmar numa zona que se parecesse com o local onde se desenrolou a acção. O próprio sítio foi um dos maiores inimigos. Houve muitas doenças, paludismo, febre tifóide, foi muito chato. Era tudo tão duro e absurdo. Tivemos acidentes muito graves na equipa. Nessa altura, realmente, pensei: “Epá, nunca mais quero fazer filmes”. Depois chegava ao quarto e pensava “faz-se mais um dia”, e assim se foi andando. Agora, como já passou algum tempo, a memória selectiva leva-me para as coisas positivas, ficamos com uma imagem mais romântica à distância. Então e a montagem? A montagem foi super simpática. Temos uma casa no campo e montámos lá um estúdio. Essa parte foi fixe, podia estar com os putos. Como foi trabalhar com a Margarida Vila-Nova? Ninguém acreditava que eu ia pôr a voz da Margarida, nem que a ia filmar. Não sabia como é que havia de filmar, tinha vários décors em mente, como a Praia das Maçãs, que é muito referida no livro. Mas o décor foi na casa do pai do António Lobo Antunes, onde a Maria José e o António viveram, num segundo andar. Havia caixotes no chão, e eu fui lá ver o apartamento só por curiosidade. Decidi filmar tudo dentro da casa, porque não queria mais ninguém no plano, assim tudo aquilo poderia ser uma memória dela. Foi no último dia, estávamos todos estoirados, mas eu queria filmar planos que retratassem o encontro, desencontro, a perda, uma espécie de intangibilidade. Um ambiente que criasse intimidade. Avisei-a uns dias antes quanto à cena de amor. “Olha, se calhar vais ter de te masturbar na cena. “Ah, não, nem penses”. Não disse mais nada. Era uma cena de intimidade, e faltava-me os dois juntos, apesar de não se tocarem. Uma história de amor do caraças sem uma cena de cama, oh Ivo, que conceptual do caraças. Já tinha filmado a cena do Miguel, evidentemente, a pensar nisso. É um filme que suscita emoções. Tenho ouvido muito falar nisso. Foi muito importante para mim o contacto que tive com aqueles homens que me acolheram e que me puseram dentro da companhia. A ante-estreia em Lisboa foi no âmbito do IndieLisboa, no 25 de Abril, o filme estava por todo um mundo, era absurdo não passar por Portugal. Sabia que estavam lá os camaradas, até tinham farnel. Não os vi, procurei-os porque queria dedicar-lhes a sessão. Eles estavam lá ao fundo, na última fila da Culturgest, para não serem vistos. Assim podiam sair caso não gostassem do que estavam a ver. Nunca lhes mostrei nada. Claro, mostrei à Zé e à Joana. Depois, chegámos ao fim do filme e lá estavam com lágrimas nos olhos. Um dos antigos combatentes dizia para outro: “Conheço-te há 50 anos, estivemos num funeral de um grande amigo e nunca te vi chorar, o que é esta merda? E o outro diz “olha lá para ti”. Mesmo as mulheres deles ficaram muito emocionadas, porque os maridos nunca lhes haviam falado da guerra. Uma das esposas disse-me: “Ao longo de todos estes anos o meu marido nunca falou disto comigo, eu sabia que depois do filme ele ia ter pesadelos, e teve. Teve pesadelos, acordou e começou-me a falar de coisas de quais nunca me tinha falado em 40 anos”. As coisas também têm uma altura para acontecerem e os portugueses têm tendência para lidarem muito mal com as suas coisas, adiar eternamente. Procurei aquilo que me pareceu ser a essência daquela vivência, sobretudo o isolamento, a vida interrompida. Não sei bem porquê, chora-se muito à volta deste filme. É muito forte, mesmo para mim, não é só o filme, a forma, o que aconteceu, os camaradas que me ajudaram em todo o processo. Acho que agora já passou, mas eu e o Ribeiro tivemos alturas em que olhávamos um para o outro e ficávamos com lágrimas nos olhos sem razão alguma. E como foi a relação com o António Lobo Antunes? Toda a gente que achava que poderia correr mal, não houve um único problema entre nós ao longo destes anos todos. No momento que propus a ideia disseram-me que era louco, aquilo nem era para sair em livro, mas foi uma vontade expressa da Maria José antes de morrer. O António disse-me uma vez que nunca o tinha lido, apesar da personagem não estar só neste livro, está também nos “Cus de Judas”, e no “Memória de Elefante”. Sabia que historicamente teria de ser certeiro. Nunca tinha visto uma pistola na vida, nem fui à tropa. De repente, tenho uma estória intimíssima que duas amigas me estão a deixar adaptar, com detalhes da intimidade da sua mãe, e de não sei quantas pessoas. Também explora o lado biográfico de um grande escritor vivo, e uma personagem bastante particular. Desde o início, nós tivemos a relação que o António quis ter. Agora, olhando para trás, recordo as grandes conversas que tive com ele e, também, os grandes silêncios enquanto ele fumava sem parar. Em retrospectiva, tudo o que aconteceu foi o que eu queria que tivesse acontecido. O António tem problemas em ver o filme, porque não está ainda preparado, segundo ele. É algo muito pessoal, porque ela foi o grande amor da sua vida, são episódios muito importantes. Sei que já fez algumas tentativas, e haverá um tempo. Gostava que ele visse o filme, se ele o quiser ver, mas se lhe fizer aflição, não faz mal.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteOmar Camilo, artista plástico: “Já conheço Cuba, não preciso voltar atrás” É uma das virtudes de Cabo Verde: a pureza das coisas. Omar Camilo é um cubano que prefere não falar de Havana porque, diz, escolheu a Cidade da Praia e é sobre ela que pinta. “Alma” é uma exposição em que também há fotografia e é a razão que o trouxe a Macau [dropcap]O[/dropcap] que poderemos esperar de “Alma”, a sua exposição na Casa Garden? A sua pergunta inclui a resposta: a alma (risos). Há 15 anos que moro em Cabo Verde, que tem um magnetismo que fez com que ficasse lá. Conheço outros países, outros continentes, mas em Cabo Verde há um certo magnetismo, não sei se é do vulcão, das pedras. É um país tão simples, num século e tempo tão cheio de coisas, que acaba por ter essa simplicidade, do espaço, das suas gentes, dos seus percursos. Isso atrai-me e magnetiza. Escolhi ficar em Cabo Verde e apaixonei-me pela sua essência. Então a “Alma” é a apresentação da humanidade dessa raça cabo-verdiana, muito particular, que não é completamente africana, mas também não é completamente europeia. Cabo Verde é um arquipélago completamente fascinante pela sua múltipla identidade. Diria que são nove nações numa apenas. Há coisas que não se explicam, os sentimentos e as emoções não se explicam muito bem. Ou se gosta ou não se gosta. E sentiu logo essa paixão por Cabo Verde. Estava em Cuba, fui realizador, e já tinha ido a vários países. Já tinha ido a todo o mundo, Tóquio, Brasil, Chile. Tinha estado na Europa e regressei a Cuba. Houve uma delegação cabo-verdiana que foi a Cuba com o Presidente do país e mais ministros, e na agenda pediam um assessor de comunicação. Então estive um tempo em Cabo Verde, já com outro Governo. E fui. Apaixonei-me por Cabo Verde, por uma crioula, acabei a minha missão, fui a Cuba, fechei tudo, entreguei todos os documentos e voltei por minha conta. A primeira viagem foi em 2002, a segunda já foi em 2003. Cabo Verde mostrou-me outra faceta da minha arte, que eu não conhecia. Era realizador e poeta, e em Cabo Verde comecei a fazer fotos. Claro que o cinema tem uma componente de imagem, mas não me dedicava apenas a isso. Em Cabo Verde não havia e não há ainda um movimento de cinema, então parei. Pensei que já tinha feito cinema durante anos e que estava na altura de experimentar outra coisa. Fiz então fotojornalismo e fotografia artística. Trabalhei apenas para a Agência Lusa. Comecei a pintar, mas já pintava há 37 anos. Há seis anos isolei-me de tudo, parei de fotografar e dediquei-me apenas à pintura e à escrita. Às vezes escrevo livros de poesia ou pinto, ou então faço as duas coisas em simultâneo. Não coloco fronteiras entre uma arte e outra. Toda a arte é minha, sinto as coisas e faço. Aquele desenho [aponta para a parede], faz referência a um dos meus poetas preferidos… Jorge Luis Borges. Sim. Escrevo poemas meus sobre pintura e também escrevo e desenho sobre poetas que me tocam. Nomeadamente Fernando Pessoa, com o quadro que mostrou há pouco. Borges representa a minha anterior cultura e Pessoa representa a actual cultura. São dois elementos sólidos do meu conhecimento de letras. Conheço mais Borges, desde criança, e Pessoa só conheci há cinco ou seis anos. É fascinante. Nunca tinha lido antes? Sim, li o “Livro do Desassossego”. Mas uma coisa é ler e outra é sentir. Fui muitas vezes a Lisboa, Portugal, na Rua Augusta, Bairro Alto, e uma coisa é ler, outra é andar por onde o poeta andou. Sentir um pouco a fome que ele sentiu, os pés cansados. A essência é uma coisa que não se explica, e aí começamos a apaixonar-nos e a entender. Sentir é o último estágio do conhecimento. A exposição que vamos ver é então um pouco de tudo isso, dessas experiências desde que começou a pintar a tempo inteiro. Não reduziria isso a um tempo. O que vamos ver na exposição é uma experiência dos últimos 52 anos. Vamos guardando coisas em várias gavetas e depois sai. Tudo passa por mim, a minha leitura do universo. A mostra que trago hoje é, na fotografia, a essência cabo-verdiana. O que eu acho que é o ser-se crioulo. Na pintura sou mais aberto, mais livre. Na fotografia, capto o que escolho, ângulos, luz. Na pintura sou livre. Toda a minha obra, fotográfica e de pintura, é património cabo-verdiano. A minha obra cinematográfica é de Cuba. Artisticamente falando, porque não regressou a Cuba? O mundo é muito grande e já conheço Cuba. Senti Cuba e falta-me conhecer muita coisa. Sempre tive o ponto fixo de morar em Cabo Verde, mas ainda não conheço a Índia, a China. Preciso de conhecer coisas que só conhecia de ler em criança, sempre fui muito curioso. Mas preciso de sentir, de tocar. Já conheço Cuba, não preciso de voltar atrás. Ninguém me perguntou onde queria nascer. A minha nação por naturalidade é Cuba, mas por escolha é Cabo Verde. O que o fez sair de Havana? Sentia que artisticamente já tinha feito tudo? Nunca se faz tudo. É impossível. Quem acha que já fez tudo é porque está morto, como ser humano e artista. Fui em trabalho para Cabo Verde e apaixonei-me pelo país. Sentia-se realizado em Havana? Não vou entrar por aí (risos). Vamos falar de Cabo Verde. Mas se me pergunta o que sinto em relação à morte de Fidel, respondo o seguinte: qualquer ser humano que morre no mundo é um pedaço do universo que morre. Não fico feliz pela morte de nenhum ser humano. Para mim todos os seres humanos têm o mesmo direito à vida, seja Fidel, um xeque árabe ou um menino libanês, sírio, um idoso africano. E sobre o futuro de Cuba, que é também o seu país? Vamos falar de Cabo Verde, e sabe porquê? Esse tema é tão atractivo que se entro por aí vou desviar as atenções. Fui convidado pela associação para mostrar a minha obra sobre Cabo Verde. Vamos esquecer que nasci em Cuba. Quero falar do imenso esforço que a Associação de Divulgação da Cultura Cabo-verdiana fez, porque se não fossem eles não estaria aqui. Tenho uma inexplicável gratidão por esta associação, não se explica. Sei o esforço que foi feito por todos. Um artista sozinho não é nada, se não há um transporte, um elemento que coloque a tua obra no lugar certo, não és nada. Além de Borges e Pessoa, que outros escritores portugueses o fascinam? Conheço as peças de teatro de Luís de Camões. Não conheço muitos escritores portugueses, apenas Pessoa e Camões. Já conheço Pessoa desde adolescente. Pessoa representa toda a cultura portuguesa? Para mim sim. Mas ainda não conheço muito para poder falar muito. Se me perguntasse sobre a cultura latino-americana, foram muitos anos… Só comecei a ter mais contacto nos últimos anos quando me isolei de tudo e comecei a pintar, porque antes tinha uma vida muito agitada, fazia fotografia, campanhas presidenciais, dava aulas na universidade. Mas foi uma escolha cara e radical. Disse numa entrevista que paga caro por ser livre. Continua a pagar esse preço? Continuo. O artista que decide ser apenas isso tem de ser muito individualista, marcar um território muito específico no tempo e espaço, renunciar a muitas características da vida mais convencional. Muitas vezes temos de renunciar à família, para mergulhar numa coisa é preciso fazer o foco nessa coisa. Há seis afastei-me, não definitivamente, de tudo e de todos. Claro que preciso do afecto, do amor sentimental, da família. Dei um espaço bastante egocêntrico em relação ao trabalho da arte, em prol do isolamento. Pinto e escrevo quase todos os dias, partilho da ideia de Ernest Hemingway, que dizia que “A inspiração passa quando estamos a trabalhar”. Obrigo-me a trabalhar. O tema da inspiração é uma justificação dos preguiçosos intelectuais. Para tudo é preciso disciplina, acordo cedo, bebo chá, faço exercício e depois escrevo e pinto. Tenho essa disciplina mas por prazer, não por obrigação. Disse que não há indústria do cinema em Cabo Verde. Não poderia regressar ao cinema e dar esse pontapé de arranque? Para dar alguma coisa de mim, alguém tem de desejar isso. Acho que já respondi. Há um grupo de rapazes a começar a fazer coisas, com algum entusiasmo. Na vida há processos degrau a degrau. Já fiz cinema. Este artista, eu, é um inquieto, está sempre à procura, está sempre inconformado. O cinema faz parte do passado. Já senti o prazer de ser cineasta. Mas continuo a sê-lo, porque a minha obra é um conjunto. Tenho uma obra só, com diferentes ferramentas. Gosta muito da filosofia oriental. Fascina-me. Não sou um estudioso, mas fascina-me. É como amar uma mulher, não preciso de um catálogo: quando vejo fascina-me, emociona-me, o coração bate. Não conheço datas, não leio livros. Todo o meu corpo está tatuado com elementos orientais e não latinos. Só coloquei esta rosa para me lembrar que sou latino. Não fala do futuro e do presente de Cuba, falemos então do futuro de Cabo Verde. O que deseja para Cabo Verde? Desejo aquilo que os cabo-verdianos desejarem para si mesmos. Os povos têm o direito e a responsabilidade de escolherem e desejarem o seu futuro. Há uma coisa que me preocupa: em comparação com o país que conheci há 15 anos, e o de agora – sobretudo a Cidade da Praia –, está a hipertrofiar em coisas. É importante cultivar a filosofia de ser em vez de ter. O que amo em Cabo Verde é que ainda não há o vício de ter, ter. As pessoas vendem a sua alma para ter coisas, na relação com as coisas. Em Cabo Verde as coisas eram mais simples e humanas. Vamos ter o primeiro grande casino e isso vai mudar algumas coisas. É demasiado caro para Cabo Verde. Preocupa-me que se perca o mais importante de Cabo Verde. A exposição de Omar Camilo é uma iniciativa da Associação de Divulgação da Cultura Cabo-verdiana. A inauguração está marcada para hoje, às 18h30, na Casa Garden. Os trabalhos de fotografia e as pinturas do artista cubano estão expostos até ao próximo dia 11.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteEntrevista | Documentário “Trilho dos Naturalistas” chega a Macau e a Timor-Leste Ainda Portugal era uma monarquia quando a Corte decidiu enviar naturalistas da Universidade de Coimbra até às colónias para recolher a ilustrar exemplares de plantas. Estes percursos estão registados nos quatro documentários do projecto “Trilho dos Naturalistas”, coordenado por António Gouveia, que já pensa num novo plano que retrate a botânica do império português a Oriente [dropcap]A[/dropcap]presentam amanhã o documentário do “Trilho dos Naturalistas” sobre Angola na Casa Garden. Como surgiu a oportunidade de trazer este projecto a Macau? Foi um convite do This Is My City para que viéssemos falar deste projecto e escolhemos um dos documentários. Sou director do Jardim Botânico da Universidade de Coimbra e tudo isto começou com a iniciativa da Ciência Viva, que abriu um concurso para colmatar a falta da ciência nos media. Pediram propostas às universidades com conteúdos científicos e nós apoiamos, com parcerias dos media. Tínhamos uma quantidade de material histórico interessante sobre uma série de expedições que a UC fez ao longo dos séculos. De repente tínhamos material que falava das expedições botânicas para literacia económica e para investigação científica, entre o século XVIII até ao século XX, do que foram as colónias portuguesas. Foi uma iniciativa da coroa portuguesa que mandou vários naturalistas para o Brasil, Angola, Cabo Verde e Moçambique. Em 1783 fizeram-se então as primeiras expedições realizadas de forma mais científica. Decidimos pegar nesse material e ir conhecer os países, pois o material ainda tem importância científica. Muita informação da botânica de países como Angola, São Tomé e Príncipe ou Cabo Verde, recolhida ao longo dos séculos, ainda está em Portugal, em armários. É preciso levar a informação para os países de origem? Após a independência esses países passaram por períodos bastante complicados, com a guerra colonial e a guerra civil, e não tiveram tempo para olhar para os seus recursos biológicos. É uma informação de base importante, ainda com algumas lacunas, mas que é necessária para o avanço do conhecimento desses países. Está a ser feito um trabalho de digitalização e a informatização de bases de dados, para fazer com que haja essa transferência de conhecimento. É como se, nessa área, Portugal ainda fosse a metrópole. Historicamente sim, há uma manancial de informação em Lisboa e também em Coimbra, onde se foi acumulando informação por diversas entidades. Em Angola a própria definição actual de parques naturais ainda reflecte o que eram os parques naturais do tempo colonial. Este olhar histórico permite pensar como se fazia ciência e como eram as práticas botânicas no século XIX, em que havia uma série de cientistas a trabalhar nesses territórios e a comunicarem entre si. Temos material de Angola que foi parar a Berlim, Inglaterra, e material a circular. Ao mesmo tempo, com a ida aos países para a realização dos documentários, fomos confrontados com os ecossistemas e as pessoas que vivem nas zonas. Em todo o lado há áreas que estão a ser ameaçadas. Que ecossistemas das antigas colónias estão mais em risco? É muito diferente de país para país. Os ecossistemas costeiros, como o mangal da Taipa, são dos mais frágeis. Moçambique tem uma costa gigante, com mangais, uma zona muito rica onde as pessoas extraem muita madeira, onde há a pesca…em Portugal também há problemas e há que encontrar um equilíbrio para uma utilização sustentável dos recursos entre as populações. Em Angola, com a guerra, há muitas zonas que ficaram abandonadas e com um crescimento quase natural de vegetação, até de recuperação. Os problemas são variados e é preciso exaltar o que é importante. No documentário de Angola conseguimos ir de florestas tropicais de chuva até ao deserto. Foi um processo incrível e tentamos fazer estes quatro filmes misturando a informação histórica, mas depois confrontámo-nos com a realidade actual, e isso ganhou preponderância. O naturalista Joaquim José da Silva esteve em Goa, mas nunca veio até Macau. Não. Nessa altura Macau e Timor estavam sempre um pouco afastados destes percursos. Fizemos estes quatro documentários mas decidimos focar-nos nos países do continente africano, porque tínhamos mais material sobre eles. Macau surge sempre como um interposto para o que nos interessa em Timor. Havia um grande desconhecimento na altura sobre esta zona do mundo? Sim, e ainda há, de certa maneira. Relativamente a Timor ainda há um grande desconhecimento. O grande recurso que interessava economicamente a Timor era o sândalo, e foi bastante explorado. A nossa ideia é vir, séculos depois, trabalhar nesta parte do mundo. Estamos neste momento no processo de pesquisa de mais uma série documental, que inclui Cabo Verde, Macau, Timor, Guiné Bissau e os “arquipélagos do conhecimento” que incluem Goa e o antigo Ceilão (actual Sri Lanka), em que havia essa troca de informações e por onde passaram portugueses. Uma coisa que me interessa muito pegar é no Garcia de Horta, com os colóquios que fez em Goa. De que forma é que surgirá Macau neste novo documentário? No século XIX, até 1896, Timor estava na província de Macau, e todas as ligações passavam por aqui. Em 1880, o jardim botânico da UC e o museu tiveram um director durante 40 anos, Júlio Henriques, que fez essa rede com as antigas colónias. Construiu uma sociedade de naturalistas para a troca de plantas. Em 1879 ele escreve para o Governo de Macau a pedir uma colecção de produtos feitos a partir de plantas. Nessa altura havia o conceito de botânica económica, e de certa forma ainda continua a existir. Tudo tinha um sentido ou uma utilização económica. Sim, no sentido de os produtos vegetais serem transformados e comercializados. Existia na UC a secção de botânica económica, com resinas, placas que mostram como era usada a borracha, fibras de linho. E o que foi enviado de Macau? O Governador na altura deu essa tarefa ao secretário geral do Governo, chamado José Alberto Corte-Real, que reúne essa colecção. Há uma listagem publicada no boletim da província de Macau e de Timor bastante detalhada. Eram quase 600 objectos, e logo na primeira carta ele avisou de que a maioria eram produtos feitos com bambu. Enviou cestos, peneiras, um pequeno cesto para criação de pássaros, balanças para pesar o ópio. Há também muito chá, vários tipos de arroz, tabaco. Envia plantas e alguns animais. Mais tarde, em 1882, decidem ir a Timor. Perceberam que, se não sabiam bem o que havia em Macau, então Timor era um completo desconhecimento. Então José Alberto Corte-Real incumbe outra pessoa de fazer uma recolha e essa informação foi toda para Portugal. É uma colecção muito rica em termos etnográficos, porque todos os objectos têm a ver com a cultura e mostram quais eram os interesses e conhecimentos na altura. Quando vão começar a fazer esses documentários? Neste momento só temos orçamento para a pesquisa. Têm ponderadas parcerias com entidades de Macau? Esperemos que sim, estamos a trabalhar nisso. Vamos passar o documentário na Casa Garden, e penso que para a Fundação Oriente fará sentido (apoiar o projecto). Mas ainda temos de confirmar isso. Estamos no processo de estabelecer ligações. Numa altura em que a China e Macau têm relações mais próximas com Portugal, é importante ter este conhecimento do que existe aqui em termos de botânica. Sim. Macau não nos interessa propriamente do ponto de vista biológico mas também sabemos que já teve vegetação natural. É um tipo de informação histórica que também importa olhar e repensar. O pouco que resta da botânica em Macau está em perigo? É preciso ser estudado? Conheço muito pouco, mas imagino que seja necessário, por ser uma zona com uma grande densidade populacional e com uma grande pressão imobiliária. Tudo o que aqui existe deve ser pouco e deverá ser conhecido. Ainda há um desconhecimento da realidade local e da costa litoral, até da China. antoniogouveia5_hm Há registos históricos de passagens pela China, uma vez que houve vários jesuítas a viajarem para este lado do mundo? Sim. O Manuel Galvão da Silva esteve em Goa, em 1783, até 1787. Mas antes houve um padre jesuíta, João de Loureiro, que foi o primeiro europeu a fazer uma flora, a flora da Cochinchina, actual Vietname, e fez algumas recolhas já no território chinês. Publicou informações, que ainda hoje são uma referência, sobre uma série de plantas do oriente. É a primeira flora do oriente na Europa. Quando partiu, em 1781, parou depois na ilha de Moçambique, onde fez também recolhas botânicas, as primeiras da costa oriental africana, que publica em conjunto com a flora da Cochinchina. Publicou isso na Academia das Ciências, em Lisboa. Durante as invasões francesas em Portugal o General Junot enviou um naturalista, o director do Museu de História Natural de Paris, a dar uma volta pelas colecções portuguesas e a levar o que conseguisse. Então nesse momento essa colecção está em França. A colecção do padre João de Loureiro está toda no Museu de História Natural de Paris. Digitalizaram tudo e todas as plantas recolhidas podem ser vistas online. Portugal despertou tarde para o estudo da botânica do império? Portugal começou a ter essa dinâmica mas nunca foi uma coisa feita de forma sistematizada. A seguir a esse período do século XIX começam as invasões francesas e as guerras liberais. E muito material se perdeu por aí. Sim, e as preocupações não eram científicas. A botânica e o conhecimento botânico das ex-colónias só começaram a ser pensadas a partir de 1870 porque havia de novo alguma estabilidade. Entre o pai da botânica portuguesa, o Avelar Brotero, até ao Júlio Henriques, não há nenhum botânico português que se destaque. Falamos de um interregno de quase 60 anos.
Andreia Sofia Silva Entrevista EventosArmando Teixeira, vocalista dos Balla: “Sou muito inspirado pela música oriental” Já os Balla existiam há seis anos quando Armando Teixeira percebeu a paixão de tocar ao vivo. Músico e produtor em vários projectos, o vocalista dos Balla actua hoje no Largo do Pagode do Bazar ao lado de Rui Reininho, no âmbito do festival This is My City. Armando Teixeira fala da liberdade criativa que a banda lhe traz e da inspiração que Macau lhe dá [dropcap]O[/dropcap] que é que os Balla vêm mostrar a Macau? No último disco [Arqueologia] já tínhamos participações de músicos de Hong Kong, Japão e Filipinas. Esta aproximação ao Oriente já vem do último disco e era algo que queríamos muito, perceber como é a cultura de Macau e a ligação de Portugal à China, conhecer o ambiente. Depois desta participação de músicos do Oriente, fazia todo o sentido vir cá tocar. Tenho pena que eles não possam estar presentes também [músicos de Hong Kong]. Temos essa vontade de mostrar o nosso trabalho a um sítio que nos deu tanto no último trabalho e que nos inspirou bastante. Queríamos perceber também porque é que Macau inspira tanto os músicos portugueses. Os Heróis do Mar têm um disco chamado Macau, os GNR fizeram 35 anos e nas memórias está presente a vinda deles a Macau, em 1990. Há sempre um grande fascínio pelo Oriente: desde Camilo Pessanha até agora, tem vindo a inspirar os artistas portugueses. É isso que queremos perceber, o que é que muda nos músicos portugueses quando vêm cá e porque é que se inspiram em Macau. Macau é hoje mais chinês do que português. É uma inspiração que continua, mesmo para os músicos portugueses contemporâneos, os novos grupos? Falo por mim. Sou muito inspirado pela música oriental e um sítio onde a cultura portuguesa coexiste com a cultura chinesa vai sempre necessariamente inspirar-me para fazermos música. Quando se chega a Macau ainda se sente a presença de Portugal, ainda que de maneira discreta. Ficamos com uma ideia de como terá sido a presença portuguesa e fica-se com a vontade de se conhecer mais. Acho que vai inspirar sempre porque é o Oriente que nos faz sentido, que nos diz respeito. Os Balla começaram em 2000. Que balanço faz destes 16 anos, depois da participação em diferentes projectos? Os Balla nunca foi uma coisa que levasse a sério, pelo menos com a periodicidade que eu queria. Sempre tive muitas produções, muitos outros projectos, as coisas nunca foram tão rápidas como aquilo que gostaria. Os Balla têm seis álbuns em 16 anos, não é uma média extraordinária. Poderiam ter mais. Sim, fiz muitas coisas pelo meio. Lembro-me que desde 2006 só consegui fazer um disco em 2010, tive muitas coisas para fazer e não consegui fazer um disco. Agora tenho dado mais atenção à banda e as coisas são mais periódicas. Tive muitos projectos, os Bizarra Locomotiva e os Da Waesel, os mais visíveis, mas procurava um projecto com o qual pudesse evoluir, mudar e envelhecer também. E os Balla foram isso: é o projecto que procurei e que quis sempre que pudesse evoluir conforme me apetecia. Poderia ir mudando, para mais electrónico ou mais acústico. Os Balla não têm limites, nem eu sei como será o próximo álbum, e é uma coisa que me agrada bastante. Não é um grupo que se encaixe apenas na electrónica ou na pop. A pop tem canções e quero que os Balla continuem a fazer canções. Vai sempre situar-se na pop por ter uma estrutura de canção. Há muita experimentação também e quero que continue a existir. É nos Balla que desenvolvo mais a minha veia de composição de canções. Nos outros projectos que tenho são coisas mais experimentais, com mais electrónica, que continuo a gostar bastante. Não me imaginava com os Da Weasel com 50 anos. Não dava para mudar, para ser outra coisa que não aquilo. Com os Bizarra Locomotiva também não podia crescer. Os Balla são uma banda que posso ir alterando e mesmo os músicos vão mudando. É um projecto que lhe dá flexibilidade enquanto músico. Completamente. É um projecto onde faço o que quero e que vai evoluindo como quero. Apesar do começo em 2000, o arranque a sério fez-se em 2006, com o lançamento de um single na Antena 3. Aí foi o terceiro álbum. Em seis anos foi o terceiro álbum que fiz. Nessa altura lançava dois a três álbuns por ano, com as outras coisas que fazia. De facto, em 2006 é que tivemos mais visibilidade e foi na altura em que tive mais vontade de cantar ao vivo. Até aí não tínhamos feito muitos concertos e eu não fazia questão de tocar ao vivo. Porquê? Gostava mais da parte do estúdio. Nessa altura foi quando descobri o prazer de tocar ao vivo, uma coisa que ainda não tinha percebido. Já gravaram com Rui Reininho. Como foi essa experiência? A primeira vez que gravei com ele foi há 12 anos e também participei num espectáculo que fez, quando fez 50 anos, chamado “Ecoponto”. Cruzámo-nos mas sempre tive uma admiração muito grande pelo trabalho do Rui, e ele também teve pelo meu trabalho. Foi uma coisa importante na altura e daí para cá já fizemos dois discos. Produzi e compus alguns temas para um disco dele a solo. Somos amigos e vamos continuar a fazer sempre coisas em conjunto. O que é que os Balla trouxeram de novo à música portuguesa? Os Balla trazem à música portuguesa a liberdade de fazer canções e o modo diferente de fazer canções. Se, no início, eram canções feitas com samples, uma coisa que não existia, quis criar canções com estruturas clássicas. Isso foi mudando, o sample perdeu algum interesse para mim como compositor, comecei a fazer o que sempre fiz, ligado à electrónica, e procurei incorporar cada vez mais elementos de música electrónica. Foi isso que me motivou no meu último disco e que me motiva para fazer canções. Não faz mesmo ideia do que vai gravar a seguir? A seguir vou fazer um disco da filarmónica do sítio onde vivo, os Olivais. Existe uma colectividade que tem uma banda filarmónica muito completa e sempre gostei muito dos metais. Dá para perceber pela música que faço. É uma ideia, mas acho que as coisas vão acontecer. Fará mais sentido ir buscar as minhas canções e que se enquadram mais nesse tipo de linguagem. As sonoridades da música chinesa clássica poderiam inspirá-lo? Inspiram-me bastante, talvez para um projecto que tenho com um contrabaixista, onde temos alguma liberdade. Tanto da minha parte, como da dele há a influência da música oriental, da ópera chinesa, que inspira bastante a música experimental.
João Luz Entrevista Eventos MancheteRui Reininho, músico: “Vim para Macau afinar o meu diapasão a Oriente” Há muitos anos, da última vez que cá esteve, o território deu-lhe uma música para construir. Agora, a convite dos Balla, regressa para um concerto no Bazar, ao final da tarde de hoje. Espera levar daqui outras perspectivas, porque o Oriente lhe faz bem. Rui Reininho está aqui [dropcap]A[/dropcap] última vez que o Rui esteve em Macau para um concerto foi em 1990. Eu tenho isso bem fresco porque temos uma página na biografia dos GNR, a que chamamos as impressões orientais, onde estão as fotos de Macau, indesmentível. Estava escrito no palco “Rock Macau – 90”, e encontrei uma t-shirt que levei de recuerdo que diz, precisamente, GNR Rock Macau 90. Portanto, 26 anos depois regresso a convite do “homem Balla”. Vim numa bala. Qual é a sensação de regressar a Macau passado tanto tempo? É preciso coragem, especialmente na circunstância em que estava. A viagem é longa, custa um bocadinho, mas vale a pena quando se chega e se vêem aqui coisas tão interessantes. Há indícios de Portugal em todo o lado, os autocarros dizem “seja cordial”, é muito interessante ver o registo linguístico de Portugal. Depois começam as estórias todas, parece que estão a querer limpar todos os símbolos do colonialismo português, mas depois esquecem-se de outras coisas como a esfera armilar que ainda está ali. É bonito, de uma certa maneira, há uma certa violência num sítio que foi ganho aqui ao mar. Em 1990 não havia sequer aeroporto. Mas há coisas que são impressionantes. Nós ontem viemos no jetfoil e passámos sob aquela ponte enorme. Pronto, são cidades que apostam muito na engenharia, na construção. Isto devia ser um paraíso para a Mota Engil e para a Soares da Costa. Para mim, é só um espanto. Qual a sensação de estar prestes a voltar pisar o palco em Macau? Macau é daqueles sítios que nos ficam, sem prejuízo para o Bombarral e Trancoso, terras que eu guardo com saudade. Mas, de facto, os espectáculos aqui foram tão marcantes quanto aqueles que as pessoas nos atribuem como emblemáticos, por exemplo o do Estádio de Alvalade. Há uma história de cumplicidade com o Armando Teixeira. Tornou-se numa grande amizade. Contactamos há muitos anos, a partir de um projecto pequenino a convite da Fnac para fazer uma versão do “Once in a lifetime” dos Talking Heads. Depois surgiu o convite da Sony para fazer um disco a solo, e eu convidei o Armando para produtor. Para mim, ele é o produtor mais brilhante da música pop nacional, mas ecléctico, sem comparação com mais ninguém. O Armando é completo. Além de dar muito atenção ao som, corta e cose muito bem, é um mestre em editing. Tem uma visão muito global e específica. Ainda por cima, trabalhar com um amigo é extraordinário, e tem ascendência sobre mim, sim. É aquela pessoa que me ralha. Mesmo em termos de comportamento, ele é muito mais disciplinado. Eu tenho aquele lado infantilópide que mantive e o Armando disciplina e diz “não, tens de fazer outro take”, é daquelas pessoas que vai buscar o melhor de mim e conhece-me bem. Vocês fizeram uma colaboração num livro com música, o “Chá, café e etc”… Sim, nós vamos começar o espectáculo com um intro de quatro chás seguidos. É um início difícil, espero que as pessoas não pensem que o espectáculo é só isso. Depois temos os Balla. Aí vem a minha parte como artista convidado, vamos tocar também o “Vídeo Maria” dos GNR. Como é ver outros artistas pegarem nos temas dos GNR? Nós, os grandes, como a dona Amália, não gostamos muito de ver os outros a fazer interpretações dos nossos temas. Estou a brincar (risos). Por acaso, não é coisa que me agrade muito, aquelas versões televisivas ou em concursos. Não é pensar que tenho mais mérito, mas acho estranho, esquisito. Espero que me poupem nas exéquias, porque eu, como na música “Valsa dos detectives”, dou uma volta no caixão. Não darei porque uma das minhas vontades é ser “cromado” (risos) ali na Rua da Torrinha numa cromagem de pára-choques (risos). Curiosamente, gostei da chamada homenagem no disco “Revistados” porque era outra geração com gente ligada ao R&B e Hip Hop, e acho que tem ali versões muito engraçadas. O que é que o público de Macau pode esperar hoje? Será surpreendente e acho muito interessante que este festival aconteça numa zona da cidade que é de grande incidência da cultura chinesa. Recordando o concerto de 1990, a reacção foi um bocado fria, até porque as pessoas não conheciam as músicas. Também havia os sorridentes mas eles, na altura, estavam mais interessados numa banda pop rock de Hong Kong. Chegou há pouco tempo a Macau, como têm sido estes primeiros tempos? Ainda não aterrámos, mas estamos num sítio maravilhoso, a Casa Garden, a cinco minutos do Jardim Camões. É uma casa colonial, tropical, com bambus. Acredito muito nas vibrações dos sítios, portanto, é um sítio com uma portugalidade muito intensa e antiga, mercantil. É interessante este toque colonial, gosto muito da decadência dos impérios e de os visitar. Aliás, um dos próximos países que hei-de visitar são os Estados Unidos da América do Norte. Acho que nos próximos anos vamos ter ali surpresas. Os GNR celebraram agora 35 anos… Estamos sempre a celebrar porque nunca parámos. Foi um ano cheio de espectáculos e vamos fazer um prolongamento. Para o ano sou eu a fazer 35 anos de GNR – como entrei um ano a seguir, temos mais uma desculpa. Vamos também fazer um espectáculo no Porto. O Porto fica sempre assim com aquela pedra no sapato, “foram a Guimarães e não vieram aqui?”, parece o Porto a rosnar. Começamos por Coimbra, na passagem de ano. Voltar a estúdio está nos vossos planos? O estúdio é nosso, o selo é nosso. Mesmo agora, quando fizemos a biografia, eu e o Toli juntámo-nos e acabou por nascer o “Arranca coração”, que é o chocolatinho no café. Há sempre a necessidade e o prazer de estar a funcionar e a trabalhar, porque temos de investir em nós próprios. A música em Portugal, infelizmente, não é uma indústria, o que tem para oferecer agora é pouquinho, exige mais do que dá. Voltando ao DVD… Quando já não se usam DVDs vamos fazer um objecto obsoleto, vintage, porque temos aqueles fãs teimosos que perguntavam, sem parar, “para quando um DVD dos GNR”. Foi um problema que tivemos com as editoras, nunca nos fizeram um DVD. Agora é o máximo de liberdade. Este DVD foi baseado no concerto do Campo Pequeno, está agora a ser editado e deve sair em Fevereiro. Fez anotações numa edição do “Alice no país das maravilhas” do Lewis Carrol, e as letras dos GNR sempre tiveram algo de poético e surreal. Alguma vez pensou em experimentar a literatura? Não posso disparar em todas as direcções, se não mandam-me internar (risos). As “Dunas” deixo para o povo. Às vezes digo, por graça, que apesar da pretensão de ser um liricista, ou poeta, vou ficar mais conhecido na minha pequena história como o homem que inventou o “paptchiuariauá”. É quase o meu “obladiobladá” dos Beatles. Tenho um esboço de romance, e alguns convites, mas acho que já vou um bocado tarde. Mas da última vez que estive em Macau surgiu-me a “Ana Lee”, e ali ao lado saiu o “Tóquio Joe”. O que é que o Rui gostava de fazer no futuro? O libretto que estou a fazer, maior que estes edifícios em termos de gigantismo, será o meu Godzilla. Tenho o sítio, referências e as pessoas indicadas para o projecto. Neste domínio é muito bom viajar, ter recuo. Para mim, a maior felicidade era que me despoletasse assim uma coisa, um livro de sonetos por aí fora, à Byron. Que música é que o Rui ouve em casa? Muito pouca, tenho ouvido o “Substance” dos Joy Division, mas também posso ir ao “Out of the blue”, do Miles Davis, ou a um Mahlerzinho. Infelizmente, já não tenho aquelas incidências vínicas que me permitam beber uma taça de espumoso. (ouve-se, em plano de fundo, um piano a ser afinado) Ele toca o “tim tim tim”, o afinar de um piano, é um momento perturbante. Digamos que vim aqui a Macau afinar pelo diapasão oriental. Vai ser bom para perspectivar, e de certeza que esta semaninha vai trazer mudança na minha vida. Vou afinar as minhas frequências com o Oriente, há aqui outro comprimento de onda.
Isabel Castro Entrevista MancheteJosé Sales Marques, presidente reeleito do CCM: “Há muito trabalho pela frente” São mais três anos a liderar o Conselho Permanente do Conselho das Comunidades Macaenses, um mandato renovado esta semana. José Luís Sales Marques defende que é preciso as Casas de Macau têm de começar a pensar no futuro. É ainda necessária uma nova abordagem às estruturas da diáspora, para que possam ser projectos sustentados [dropcap]T[/dropcap]em mais um mandato pela frente, depois das eleições desta semana que aconteceram durante o Encontro das Comunidades Macaenses. O que poderão ser os próximos três anos à frente do Conselho Permanente do Conselho das Comunidades Macaenses? Espero que os próximos três anos sejam de algum avanço relativamente ao que estamos a fazer, e de alguma consolidação também do Conselho das Comunidades Macaenses e do trabalho que tem vindo a ser desenvolvido pelas Casas de Macau. É claro que, quando falo em consolidação, não quero com isto dizer uma paragem no tempo porque, de facto, para mim consolidar significa andar para a frente. Todos nós temos muito trabalho pela frente. Ainda somos organizações com alguma fragilidade, que resultam de realidades que temos de enfrentar. O grupo tradicional que constitui as casas de Macau é um grupo com uma idade avançada. Por exemplo, este ano, a Casa de Macau em Lisboa celebrou 50 anos. O Club Lusitano de Hong Kong vai celebrar 150 anos de existência a 17 de Dezembro deste ano. É preciso que haja então uma renovação dos membros. A renovação dos membros é fundamental e é importante também uma certa abertura. Por exemplo, em relação ao Club Lusitano de Hong Kong, tive oportunidade de ouvir a história pela parte dos seus dirigentes: tem vindo a renovar-se, o que é muito importante. Renova-se a partir de uma maior abertura e flexibilidade naquilo que os dirigentes consideram ser os possíveis sócios do Club Lusitano. Algumas casas optam por critérios que passam por uma relação talvez um pouco restrita no que diz respeito a Macau, outras têm associado a isso a questão da nacionalidade portuguesa. Há várias situações, todas elas diferentes, há vários critérios, mas penso que, fundamentalmente, a questão mais importante é a autenticidade na ligação a Macau. Agora, essa ligação não tem de ser necessariamente de passaporte ou apenas de família – pode ser, na minha opinião, uma ligação afectiva. Com isto quero dizer que, provavelmente, se formos explorar os diversos caminhos da renovação há outras possibilidades não só de atrair mais gente jovem, como de ser um projecto sustentado. As casas – e o próprio Conselho das Comunidades Macaenses – vivem sempre com uma certa penúria de fundos. O Conselho das Comunidades funciona sem quota dos seus associados, obviamente, porque os associados são organizações que, depois, têm de viver com os seus próprios fundos. Se houver um maior número de sócios, haverá formas de procurar melhorar a situação operacional das casas – para isso é preciso algum dinheiro, são necessárias outras condições, é preciso também muitas ideias. Há aqui muito trabalho a fazer, é preciso olhar para o futuro, procurar os meios para garantir a sustentabilidade destas organizações. Em que outros aspectos é que poderá haver renovação? A renovação tem de ser física, desde já, com elementos mais jovens. Isso já está a acontecer nalgumas casas, no que diz respeito a novos sócios, mas terá de ser feito também ao nível das próprias direcções. As equipas dirigentes vão ter de procurar integrar elementos jovens. Haverá um período de transição, mas isso será sempre inevitável. Corre-se o risco de algumas casas de Macau poderem conhecer, em breve, um vazio ao nível das direcções? Não necessariamente. Mas todos nós temos de nos preparar para o futuro. Ninguém é eterno. Deve ser uma questão de projecto: as casas devem ter como objectivo a sua própria renovação, que é fundamental. Em Macau, temos visto a Associação de Jovens Macaenses, que é uma coisa boa; outras casas terão outros esquemas de integração de jovens. Fundamentalmente, os programas é que precisam de ser capazes de atrair a participação de gente mais jovem. Muitas vezes, são programas muito tradicionais, ligados aos aspectos mais óbvios da cultura macaense – a gastronomia, algumas celebrações e tradições. Deve haver uma variedade de programas quer ao nível cultural – que é onde as casas se sentem mais à vontade e que seria a sua vocação inicial –, quer noutros programas que podem até vir a ter alguma componente económica. As casas são uma rede de nódulos, cada casa é um nódulo, e as casas são constituídas por pessoas, nalguns sítios particularmente, com muito boas ligações com a sociedade. Se calhar, há oportunidades que podem ser criadas. Dou um exemplo: uma casa do Canadá, que costuma vir à Feira Internacional de Macau (MIF, na sigla inglesa), sugeriu que se pensasse na possibilidade de mais casas participarem na MIF ou noutros eventos do género aqui no território. No fundo, é a vontade de alargar o âmbito de actividade para as questões económicas. Em que medida é que o Conselho Permanente pode ajudar a desenvolver novos programas? O Conselho tem de ter um papel mais activo na coordenação e na troca de informações. É uma necessidade e espero poder cumprir isso. Este mandato vem com uma mensagem clara: é necessário melhorar a intercomunicação entre as casas e o conselho terá esse papel, até para a partilha de experiências e a identificação de oportunidades para projectos unificadores, em que a maior parte das casas possam estar envolvidas. Não é necessário que sejam todas mas, pelo menos, uma parte delas. É um pouco aquela ideia da União Europeia, da cooperação reforçada. Não é preciso que toda a gente ande no mesmo caminho, mas se houver um grupo com interesse para o fazer, deve ser apoiado. Esse é um papel do Conselho das Comunidades. Outro é procurar servir de elo de ligação com as autoridades de Macau, particularmente com a Fundação Macau (FM). Em várias oportunidades, tivemos conversas com a FM que se mostra disponível, mas quer também alguma segurança de que efectivamente aquilo que está a apoiar tem que ver com os objectivos e com os projectos do Conselho das Comunidades. Portanto, o Conselho pode e deve ter esse papel de facilitação junto das autoridades locais – quem diz a FM, que é o parceiro mais óbvio, poderia dizer outros departamentos, como o Instituto Cultural e o Turismo. Falou-se muito – e já não é a primeira vez que acontece – que as casas de Macau poderiam ser úteis para a divulgação do turismo do território, por razões várias. Muitas delas têm sedes em edifícios que podem ser usados para exposições e apresentações. Seria uma sinergia interessante. A Casa de Macau em Lisboa, por exemplo, tem umas boas instalações; o mesmo acontece em São Paulo. Estamos na semana do Encontro das Comunidades Macaenses. Como é que está a correr a edição deste ano? Tem corrido muito bem. Obviamente, há sempre surpresas, umas mais agradáveis, outras menos, porque as pessoas estão habituadas a uma certa ideia de Macau e a cidade que hoje se apresenta é diferente. Essa é a primeira reacção – uma reacção de uma certa estranheza mas, como se diz, primeiro estranha-se e depois entranha-se. No essencial, está a correr bem. O que queremos é que, independentemente daquilo que seria a sua percepção anterior à chegada, com esta vinda seja proporcionada às pessoas uma oportunidade para conhecerem melhor a Macau do presente e do futuro próximo. Há pessoas que não vinham cá há muitos anos. Algumas sim. Há pessoas que não vinham cá há 40 anos – é muito tempo. Outras têm vindo com mais frequência, mas basta não vir a Macau um ano ou seis meses para parecer diferente.
Isabel Castro Entrevista MancheteJorge Forjaz, autor da II edição da obra “Famílias Macaenses”: “É a família que dá braços” Há 20 anos, publicou um trabalho que julgava ter dado por concluído. Mas duas décadas depois do “Famílias Macaenses”, Jorge Forjaz apresentou uma reedição, que só a Internet tornou possível. São mais 80 capítulos de um livro onde cabem os filhos da terra que quiseram fazer parte dele [dropcap]N[/dropcap]a sequência de uma iniciativa do Albergue SCM, surgiu a oportunidade de fazer uma nova edição, revista e aumentada, de uma obra que já era considerável. Como foi fazer este trabalho? Vim cá, por iniciativa do Albergue, fazer uma conferência sobre os 15 anos da publicação das “Famílias Macaenses” – uma reflexão sobre o efeito do projecto, o impacto que tinha tido nas comunidades macaenses. A sala esteve cheia, trocaram-se opiniões e, a certa altura, Carlos Marreiros perguntou-me se eu nunca tinha pensado em fazer uma segunda edição. É uma obra que, do ponto de vista gráfico e editorial, não é fácil, não se arranja um editor com facilidade. Além disso, tinha encerrado o meu capítulo de Macau, estava já dedicado a outro tipo de investigações, e tinha oferecido toda a documentação a uma universidade em Los Angeles, ao arquivo “Old China Hands”, que tem como objectivo a preservação da memória ocidental na China. Também não se justificava actualizar a obra – que são três grossos volumes – só para acrescentar uns casamentos e uns nascimentos. Tinha de haver realmente uma alteração muito substancial para justificar a reedição. A minha primeira reacção foi dizer que não seria possível. Era preciso que houvesse nova documentação, novas fontes para explorar que permitissem alterar substancialmente o texto original. Que alteração foi essa que justificou a reedição? Houve um aspecto nestes últimos 20 anos que alterou tudo, sobretudo para uma pessoa que faz uma obra como a minha, sobre uma comunidade que está espalhada pelo mundo inteiro. Conheço muitos genealogistas em Portugal que fazem trabalhos sobre Évora, Estremoz, eu fiz sobre Angra do Heroísmo e sobre a Terceira – é um trabalho sobre pessoas que vivem todas na Terceira. É mais complicado fazer um estudo sobre uma comunidade cuja origem é este pequeno território, mas o palco em que se movimenta é o mundo inteiro. Há 20 anos, o contacto com todas essas pessoas foi feito como se fazia no séc. XIX: através de centenas ou até mesmo de milhares de cartas para aqui e para ali, com os encargos e, acima de tudo, com a demora que isto implica. Escreve-se uma carta, está-se três meses à espera da resposta, que não é satisfatória, escreve-se outra e, com isto, passou meio ano. Nestes 20 anos, aconteceram a Internet e o email. A Internet permitiu o acesso aos arquivos. Usando o exemplo de uma família de Macau: sabia que o primeiro [elemento da família] tinha nascido em Lisboa. Tomava nota de todas essas coisinhas, como vivo nos Açores tinha de ir a Lisboa, estava lá 15 dias, ia aos arquivos de Lisboa; depois apanhava um comboio e estava dois dias no Porto, mas havia algo em Guimarães. Alugava um automóvel e ainda ia lá a ver o arquivo. Hoje não preciso de nada disso: estou nos Açores, em minha casa, abro a Internet e encontro a documentação toda online. Faço quase tudo em casa. Foi possível descobrir então mais informação sobre as famílias macaenses. Fez uma diferença enorme, porque permitiu-me o acesso a uma documentação que nunca tinha visto, porque não era possível ver. Quando se vive longe, como é o meu caso, não posso andar de um lado para o outro constantemente – teria custos astronómicos e era fisicamente impossível. Para aquilo que era possível fazer entre 1990 e 1996, hoje, olhando para trás, parece-me impossível ter conseguido fazer este trabalho. Viajei pelo mundo inteiro antes da publicação: fui à Austrália, ao Brasil, à América do Norte – sobretudo Califórnia, Toronto e Vancouver –, a Singapura. Percorri tudo isto à procura do rasto de toda esta gente. Não tinha sequer um computador portátil, só tinha um em casa nos Açores, o que significa que, quando vinha para Macau para trabalhar, tinha de imprimir tudo e andar com os papéis atrás de mim. Lembro-me de me perguntarem na Califórnia quantas pessoas tinha a minha equipa. E eu fiz assim [abriu as mãos]. Disseram-me: ‘Só 10 pessoas?’. E eu respondi: ‘Não, dez dedos”. Realmente estávamos na Idade da Pedra comparando com o que acontece hoje. O acesso à nova documentação permitiu-lhe encontrar que tipo de informação? Permitiu perceber quem foi a primeira pessoa [da família] a vir para Macau – aconteceu em muitos casos. É algo que as pessoas gostam muito de saber – quem são os seus antepassados, de onde é que vieram. Nenhuma das pessoas que vieram para cá teve a consciência de que estava a contribuir para a construção de uma comunidade. E para a globalização. Vinham para cá para o serviço militar – acabava e regressavam a Portugal, como aconteceu com a maioria – ou vinham como juízes, vinham fazer uma comissão de serviço. Chegavam cá e acabavam por ficar. Nunca ninguém veio de Portugal para ficar em Macau o resto da vida, para casar aqui e dar início a uma nova família. Foi sempre o produto do acaso. Casavam e ficavam, até porque quando chegavam cá solteiros ficavam imediatamente debaixo de olho dos pais das meninas solteiras que cá viviam, porque não havia muitos candidatos. Os que eram militares de carreira faziam comissões bem maiores do que era costume, mas depois acabavam por regressar a Portugal. Por exemplo, a família Senna Fernandes tem dois ou três casamentos com pessoas de Portugal que fizeram aqui as suas comissões, e acabaram por ir todos para Portugal. Mas os que vinham em serviço militar, os militares que não eram profissionais, quando passavam à disponibilidade saíam da tropa e estabeleciam-se. Já tinham arranjado uma namorada, casavam com uma chinesa ou com uma macaense e nunca mais regressavam. A maior parte dessa gente nunca mais voltou a Portugal – quer do séc. XVII, do séc. XVIII, do séc. XIX e mesmo do séc. XX. Isso é que é interessante: uma comunidade que vinha e não regressava, mas mantinha sempre acesa a chama portuguesa. Há aqui pessoas que falam português, têm nomes portugueses, são católicas, cantam o hino nacional, e o antepassado deles que veio para cá nasceu em 1720 ou em 1770. A genealogia anda à procura de datas e traçam-se percursos a partir daí, mas é possível ir mais longe e construir uma história. Claro. Fala-se muito em história – na história económica, na história da arquitectura… Mas por trás de tudo isto tem de haver a história das pessoas, porque sem elas não há economia ou arquitectura, não há nada, e tudo se faz para as pessoas. Quem é essa gente? Como é que essa gente vivia aqui? Que tipo de vida é que fazia? Quantos filhos é que tinham? Casavam ou não? Os filhos morriam muito. Penso muitas vezes no aspecto da mortalidade infantil: hoje, temos um filho ou dois; antigamente as pessoas tinham 10 e 15 filhos, mas morriam oito, nove ou 10. Quem é que hoje poderia tolerar um desgosto desses? É necessário que não se sofresse na altura o mesmo que hoje, que é um desgosto para a vida inteira. Aquelas famílias todas tinham muitos filhos que morriam, mas a sociedade não vivia toda em luto permanente. Tinha de haver um sistema de autodefesa – um antropólogo poderá estudar isso melhor – para enfrentar a morte das crianças. Voltando à Internet. Além da consulta dos arquivos, permitiu-lhe evitar o trabalho de envio de centenas de cartas. Quando decidi fazer a nova edição, mandei uma mensagem para as casas de Macau do mundo inteiro, pelo que em cinco minutos ficaram a saber que havia este projecto. Desafiei-as para que comunicassem aos associados que este trabalho ia ser feito para que, sabendo da primeira edição, do que lá faltava e do que não chegou a ser publicado, da família que não chegou a ser incluída ou das datas que entretanto aconteceram, me mandassem as informações. Podia ter funcionado melhor, porque há sempre pessoas que deixam para amanhã e acabam por não enviar. Há muita gente que vai ficar com pena agora quando vir o livro, que podia ser maior, sendo que é enorme quando comparando com o primeiro. Na primeira edição aconteceu o mesmo: escreveram-me cartas no dia a seguir à publicação, a dizerem-me que quando houvesse uma reedição tinha ali novos dados, que eu já tinha pedido mas que nunca tinham mandado, talvez por não acreditarem que o livro iria ser publicado ou não saberem quem era o autor. Agora todos sabem quem sou e acreditam no projecto. O outro aspecto importante foi a organização do Arquivo Histórico de Macau que, nestes últimos 20 anos, recebeu imensa documentação nova, está muitíssimo bem organizado e permitiu-me trabalhar lá, coisa que praticamente não fiz há 20 anos. No contacto que tem com os membros das famílias, e atendendo que a história social de Macau é muitas vezes marcada por alguma ilegitimidade – filhos de vários casamentos em simultâneo, por exemplo – sentiu dificuldades no contacto com os descendentes? Mostram-se disponíveis para falar da história familiar? Raramente as pessoas têm informações muito precisas sobre os antepassados – sabem os pais e os avós, naturalmente, mas se falarmos do quarto, quinto ou sexto avô, de quem é que veio para Macau, não sabem. Esta era a realidade antes da publicação do “Famílias Macaenses”, porque agora sabem. Mas raramente peço informação sobre os antepassados, porque as pessoas – com a melhor boa vontade e com uma enorme boa-fé – dão informações erradas. Por norma, só falo com as pessoas sobre os antepassados depois de já saber mais do que é suposto elas saberem. Normalmente o que peço são dados sobre os vivos; os mortos é negócio meu. Quanto às ilegitimidades e aos vários casamentos, em Macau há uma situação muito original: os casamentos segundo os ritos católicos e os casamentos segundo os ritos chineses. O português, que é um especialista em intercomunicação à escala universal, aproveitou com grande vantagem para ele os ritos chineses. Então, tinha um casamento português e mais três ou quatro chineses. Quando as pessoas sabem e as coisas são muito claras, não há problema; às vezes, há uma certa surpresa quando lhes digo que o avô e a avó não eram casados. Hoje em dia, é banal, mas antigamente não era. As pessoas reagem pelo espírito da época e não pelo espírito de hoje. Mas isso nunca foi um problema: se virmos bem, praticamente todas as famílias foram marcadas por isso. O que é excepção passa a ser quase a regra e, sendo a regra, faz parte das características do ser macaense. Neste trabalho sobre Macau, há alguma história que o tenha marcado de forma especial? São tantas. A obra tem mais de 380 capítulos. Como se sabe, o nome Silva é dos mais comuns em Portugal. Três pessoas que se chamam Silva não são necessariamente parentes. Em Macau, há 40 famílias Silva que não têm nada que ver umas com as outras. Só o capítulo Silva são quase 400 páginas – é um livro. Isto serve para dar ideia da dimensão. Quanto às histórias, quando cheguei cá, para mim Macau era só isto. Tinha uma vaga ideia de que havia uns macaenses em Hong Kong e mais nada. Para mim, Macau eram três ou quatro famílias de que ouvia falar em Portugal: os Senna Fernandes, os Nolasco e pouco mais. Mas, como noutros sítios, aqui havia a alta sociedade, a média sociedade, a baixa sociedade – não faço juízos de quem é quem. A mim interessa-me se responde àquilo que é a minha definição de macaense. Lembro-me de ter falado com uma pessoa a quem disse que estava a pensar fazer um trabalho sobre as famílias macaenses, que me disse: ‘Não é preciso, isso já está feito. O Padre Manuel Teixeira já fez isso. Somos só seis ou sete famílias’. Deste número passaram a 15, depois a 20, a 30 e acabou com 280 ou 300 – já nem sei quantas são. Depois é que tomei consciência de que, para perceber Macau, é preciso perceber Cantão, Hong Kong e Xangai. São os quatro pontos essenciais da comunidade macaense. O que é interessante verificar é como todas estas pessoas, dispersas desta maneira, mantiveram sempre uma ligação fortíssima com Portugal. Uma das histórias mais engraçadas tem que ver com a revolução republicana de 1910: logo a seguir à proclamação da república houve uma festa no Clube Lusitano de Xangai em que já lá estava a bandeira verde e vermelha. E mais: houve uma família de lá que baptizou o filho com o nome ‘Bernardino Machado’, o nome do primeiro ministro dos Negócios Estrangeiros da república. As pessoas imediatamente assumiram a nova situação portuguesa, pessoas que eram bisnetas e trinetas de portugueses, e que nunca foram a Portugal. Até que ponto pode ser importante o conhecimento da história pessoal? O que se pode retirar hoje de se saber de onde se vem? Um dos países da Europa onde há mais estudos genealógicos é a Polónia. Porquê? É o país europeu mais sacrificado nas suas fronteiras: a Rússia retirou-lhe um bocado, a Alemanha outro, deixou de ser independente, depois avança a fronteira, depois recua a fronteira. Mas as pessoas vivem sempre na mesma cidade: um dia eram alemãs, noutro dia eram russas, o nome tinha de ser mudado, depois emigram para a América e já nem sabem bem o que é que são. Vivem obcecadas pelas suas origens. Com fronteiras definidas há mil anos, não temos essa noção. As pessoas podem não saber a sua genealogia, mas têm a perfeita consciência da sua origem. O polaco tem imensas angústias existenciais. A genealogia é a primeira explicação para saber quem sou. Há umas pessoas que me dizem que não querem saber, que tanto lhes faz. Mas se lhes disser que a família é uma cambada de bandidos, dizem-me logo que não me autorizam que fale mal dela – afinal, a família tem um valor, que é um sentimento de pertença a uma comunidade, a uma terra, a uma tradição, a uma religião, a uma gastronomia, a uma língua. É a família que dá braços para prender tudo isto. A maior parte das pessoas tem uma pequena memória familiar, mas tem sempre grande curiosidade em ir um pouco mais longe. A genealogia dá resposta à pergunta que cada um faz a si próprio: quem sou eu? Nestas famílias macaenses, só houve um ou dois casos de pessoas que não queriam saber, que me disseram que não me respondiam.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteManuel Gouveia, candidato à associação de pais da EPM: “Stanley Ho podia dar o nome à escola” Opacidade da Fundação da Escola Portuguesa de Macau, ausência de publicitação das contratações de docentes, carga horária lectiva excessiva. Há muitos aspectos que Manuel Gouveia, líder de uma das duas listas candidatas à associação de pais, gostaria de mudar. Para resolver o problema das instalações, só mesmo se Stanley Ho fosse o patrono da instituição [dropcap]E[/dropcap]ste ano há duas listas candidatas à Associação de Pais da Escola Portuguesa (APEP). É um sinal positivo? Penso que sim. Nos últimos dez anos, as listas têm sido feitas um pouco com base na reciclagem das direcções anteriores. É positivo que haja novas ideias, porque ao fim de dez anos é natural que surjam cumplicidades entre quem está na direcção da APEP e os próprios membros da direcção da escola. Os consensos geram harmonia mas, da nossa parte, somos mais favoráveis ao progresso e à inovação, a sair de um certo marasmo em que a escola caiu. Não há sinal nem notícia de grande inovação. Em que sentido é que nota esse marasmo? A escola está esgotada em termos físicos. As salas estão ocupadas a cem por cento e, no primeiro ciclo, já há uma turma do segundo ano que teve de ir para a ala do segundo ciclo, porque não há salas suficientes. Isso dita que não houve previsão ou não houve decisão política de quem de direito. Temos notícia de que a escola perdeu quase cem alunos desde 2004 até 2014, e agora surgem mais turmas. É preciso mobilizar a comunidade de língua portuguesa para que as entidades de Portugal e o Governo da RAEM tomem as medidas que são necessárias. Não queremos uma mega escola, estamos bem com uma dimensão média, mas há potencial de crescimento. Quem é o principal culpado desse marasmo? O Ministério da Educação em Portugal, a Fundação da EPM ou a direcção da escola? A fundação é o primeiro equívoco. Não tem património suficiente para atingir o fim social de que está incumbida. Está dependente de subvenções anuais por parte de Portugal e de Macau. Uma coisa é clara: não se conhecem planos ou relatórios de actividade, e muito menos se conhecem orçamentos. Como isso não é reportado junto do público, no portal da escola, a sociedade não sabe e haverá algumas razões para que os decisores políticos não forcem para que se saiba. A Fundação Oriente saiu e houve uma continuidade de apoios, mas é preciso que se saiba onde estamos e para onde queremos ir. Informação gera confiança e também responsabilidade. O que se pretende são condições de aprendizagem para os alunos, professores e para os encarregados de educação não serem sobrecarregados com outro tipo de danos colaterais. A EPM é uma escola dita de excelência, e isso é quase um mantra. Mas em termos práticos é excelente porquê? Porque tem resultados de fim de ciclo e acesso à universidade em Portugal acima da média? Mas a verdade é que temos uma realidade socioeconómica acima da média. Não estamos sobrecarregados de impostos, temos um rendimento superior e podemos proporcionar aos nossos filhos acesso a livros e a informação. Quando os miúdos não têm o resultado esperado, os pais arranjam professores particulares que não têm os créditos que acabam por reverter para a EPM. Há que ter a frontalidade de assumir isso: a EPM precisa de dar um apoio maior em quantidade e qualidade. Sobre a fundação, há ainda a polémica doação da SJM que nunca foi clarificada. Mais grave do que esse mistério é não haver transparência. É a assembleia da comunidade educativa reunir e a própria APEP não ter acesso às actas. Quando não há uma memória escrita daquilo que foi discutido, para que serve essa assembleia? Quanto à fundação, não há informações para a comunicação social ou para os pais sobre que tipo de pensamento ou projecto é que têm. A fundação resultará mais num encargo, porque tem membros que não se sabe quanto ganham. Num país na situação em que se encontra [Portugal], não nos podemos dar ao luxo de desperdícios. Há a fundação e a direcção da escola, e é preciso apurar quanto é que isso custa. Tem que se ponderar se este será o melhor modelo organizativo. A extinção da fundação e a adopção de outro modelo de gestão seria uma melhor possibilidade? Falou-se num parecer da Procuradoria-Geral da República que referia que um instituto público seria desejável, até para um controlo mais directo por parte da tutela. O Ministério da Educação pode nomear o presidente e um administrador, a APIM tem outro e as coisas correm não se sabe muito bem como, porque é uma instituição absolutamente opaca. A direcção da escola também tem um presidente, um vice-presidente, e depois tem um séquito de assessores e de apoio e ninguém sabe quanto custam. Não se sabe se são professores no topo da carreira, se dão ou não aulas… Uma gestão profissional, com um director que fosse gestor, sairia mais barato e até mais eficiente. É preciso fazer a contabilidade da EPM. Ultimamente parece que se equilibraram as contas, o Governo da RAEM provavelmente estará a injectar os milhões que são necessários. A Fundação Macau anunciou a continuação do apoio, aliás. Ficamos satisfeitos com isso, mas precisamos de mais apoio para o Português e a Matemática, e precisamos de um observatório educativo, que nos dê aos pais e à comunidade informações que digam como é que as coisas andam, ano a ano, turma a turma, teste a teste. As melhores escolas em Portugal têm nos seus portais observatórios em que dão essas informações em tempo real. É um indicador que gera transparência e naturalmente que, se há essa transparência, é uma escola que toma as medidas necessárias para corrigir eventuais problemas. Outra das coisas que está dentro do sistema e que me parece aberrante é que agora, por imposição de Portugal, as aulas são de 90 minutos. Isso dá uma multiplicação de gasto de tempo lectivo que me sugere que estamos demasiado fixos na avaliação e pouco preocupados com a aprendizagem efectiva. Em que sentido é necessário maior apoio no Português? Como tenho um filho no sexto ano, apercebi-me da enormidade da extensão e complexidade dos programas, mas não apenas no Português, em todas as disciplinas. A carga horária é excessiva. Há dificuldades porque a língua portuguesa, além de ser difícil em ambiente multilingue, é ensinada num ambiente em que os alunos funcionam muito com o inglês. O ensino do mandarim tem sido alvo de críticas. Também é preciso fazer essa contabilidade. Quantos alunos é que se inscrevem e quantos desistem? Ao fim de cada ciclo era preciso fazer uma avaliação externa e apurar se, de facto, os alunos estão a ter o aproveitamento esperado. As estatísticas são uma coisa que fica para consumo interno da direcção, mas penso que os miúdos a partir do sexto ano do mandarim começam a não gostar do idioma. Depois, é dado apenas um terço dos manuais anualmente, não ficam com as bases. As propinas são aumentadas anualmente. Obtiveram explicações nesse sentido? Há quem tenha a perspectiva (não é o meu caso) de que se o Governo de Portugal contribuir com 50 por cento e Macau contribuir com o resto, que não há motivo aparente para haver propinas. Mas prefiro pagar mais propinas se me for assegurado um ensino e um apoio aos alunos que tiverem mais necessidades. Desde os alunos com apoio e também com necessidades educativas especiais. Mesmo os que têm apoios têm de ter apoios fora para conseguirem evoluir à medida das necessidades. Acham que há falta de docentes de ensino especial? A direcção diz que não. Mas não bastam docentes, precisamos de terapeutas da fala, uma partilha de recursos com os Serviços de Saúde e a DSEJ, e gera-se essa dificuldade. Queremos os meios que sejam necessários para o sucesso da aprendizagem. Alguns dos elementos que compõem a Lista B, uma das duas candidatas à associação de pais da EPM Que diferenças apresentam em relação à lista A? Temos o maior respeito por quem tem desempenhado o cargo, mas temos uma perspectiva diferente. Há uma cumplicidade e uma não pertença aos pais, mas a uma gestão ou solidariedade para com essa gestão. Tenho o maior respeito e há duas medidas que foram bem tomadas, como a reciclagem de livros e de uniformes, e algumas actividades. Nota-se que a equipa da lista A, que foi bastante renovada, tem vindo a perder força. Pedi os orçamentos e contas e nota-se que há devolução de verbas de apoios que obtiveram porque não conseguiram realizar essas actividades. Disseram, aliás, que não se iam candidatar caso aparecesse outra lista. Mudaram de opinião, legitimamente. Portugal e os sucessivos ministros da Educação estão alheados do projecto da EPM? As passagens por Macau são demasiado rápidas para se aperceberem da realidade. Por outro lado, também é compreensível, mas não é positivo que o façam, que pensem: “Estamos em Portugal com dificuldades, esta comunidade tem rendimentos superiores e nós vamos dar o que entendemos, e eles que complementem”. Devia haver uma visão estratégica e a EPM devia ser um modelo de escola. Devia albergar uma biblioteca de referência e um espaço multiusos. Mas isso não cabe na opção que foi feita inicialmente pelas instalações da escola Pedro Nolasco. Ao terem aberto mão do liceu de Macau perdemos uma mais-valia estratégica. Tinha todo o potencial que hoje tem o IPM e não aquele constrangimento que hoje temos. Essa falta de visão só poderá ser corrigida se Stanley Ho, que ainda é vivo, der o seu nome à EPM e a patrocinar de forma a dar a dimensão que merecemos. Pela simbiose que houve com Stanley Ho e os portugueses, seria possível resolver o imbróglio em que estas instalações se tornaram. Que outros problemas pode apontar ao actual funcionamento? Não temos o balanço social da escola. Era preciso saber, além das categorias, a idade média das pessoas, os funcionários deveriam estar categorizados. A EPM, dirigida por professores, não os valoriza, caso contrário teria na sua página quem são e que formação têm. Porque é que a escola não pode ter os rostos e a formação pedagógica dos docentes? Outra questão é as admissões de professores: se há concursos os avisos não são publicitados, nem são publicitados os critérios de selecção. Isso faz com que a confiança fique diminuída. Apesar de se dizer uma escola privada, deveria ter boas práticas porque é financiada com fundos públicos. A cantina também tem gerado críticas junto dos pais. É preciso perguntar a quem está adjudicada a cantina. E a quem está? Eu não sei. Se calhar isso explica. Serve ou não serve? Se não serve, anula-se o contrato e promove-se um concurso com um caderno de encargos. No D. José da Costa Nunes a associação de pais, presidida por acaso por um elemento da nossa lista, conseguiu uma cantina com um bom fornecimento. Na EPM o que noto é que na direcção cessante é tudo muito difícil, muito impossível. Há um baixar de braços. É esta a escola que esperava 16 anos depois da transição? A EPM precisa de se renovar e há pessoas que precisam de dar espaço a que outras surjam. Está a referir-se à direcção? Sim. São pessoas que têm poucos horizontes, estão em Macau há 30 anos e a visão que têm é a da Baía da Praia Grande.