Vera Lúcia Raposo, jurista e docente: “IA propaga-se hoje como um vírus”

Vera Lúcia Raposo apresentou na quarta-feira na Universidade de Macau o novo quadro regulatório da União Europeia para Inteligência Artificial, numa sessão promovida pelo Instituto de Estudos Europeus de Macau. A ex-docente da Universidade de Macau defende que a China está a ganhar a corrida numa área que nunca esteve tão presente nas nossas vidas

 

 

Falou na quarta-feira do “AI Act” aprovado pela União Europeia (UE). Concretamente, quais são os principais pontos deste documento?

Trata-se do regulamento de Inteligência Artificial (IA) publicado no ano passado no jornal oficial da UE. É uma lei europeia, mas é também, até ao momento, o mais detalhado regime legal sobre os produtos que envolvem a IA.

É difícil legislar sobre a IA nesta fase tão preliminar?

Se calhar nunca vamos deixar de estar nesta fase. Repare, a IA não surgiu com o ChatGPT nem nada que se pareça. Desde meados do século passado, e ainda antes, mas sobretudo desde o ‘paper’ de Alan Turing que a IA existe, primeiro em laboratório, cingida a um grupo de investigadores. Depois começou a ser lançada no mundo e a fazer parte das nossas vidas, mas nunca como agora. Actualmente, estamos numa espécie de outra pandemia, em que a IA se propaga na nossa existência como um vírus, mas não um vírus mau, pois entendo que, muitas vezes, a IA se propaga com efeitos positivos. Claro que, apesar de não ser uma coisa completamente nova, é uma realidade ainda muito misteriosa para nós juristas. O problema começa pelo facto de nem sequer conseguirmos obter uma definição maioritariamente aceite pelos especialistas do que é a IA. Desde logo, não sabemos o que é, porque é uma entidade em movimento, que muda constantemente. O que achávamos que há dez anos era IA, hoje já será um algoritmo.

Nas áreas da defesa da vida privada, ou dados pessoais, por exemplo, ou ainda direitos de autor, o que nos diz a legislação europeia em termos concretos?

O regulamento de IA [da UE] insere-se no que chamamos “data package” [pacote de dados], insere-se no grupo de regulamentos que dizem respeito à segurança do produto. Mas isso é entendido em termos muito abrangentes, não é apenas a segurança como estamos habituados a pensá-la, como algo que põe em causa a integridade física, mas abrange questões ambientais, o respeito pelos valores fundamentais e direitos de tecnologia e protecção de dados. É verdade que o regulamento tem essas aspirações e concretizações práticas em algumas normas, mas a ideia é que se desenvolva com outros regulamentos já existentes em matéria de protecção de dados e propriedade intelectual, e que não entre em conflito com eles.

Temos, actualmente, o ChatGPT do lado americano, e o DeepSeek do lado chinês. Acha que a China se posiciona como líder na área da IA?

Constata-se que a China é um colosso no mundo digital. A forma como o mundo tem vindo a evoluir tem diferenciado. Há 100 anos atrás tínhamos conflitos bélicos, e hoje temos guerras onde se continua a matar pessoas, mas temos também guerras comerciais e estas guerras tecnológicas. E digo que mais do que uma guerra, é uma corrida para chegar à nova invenção. Os velhos blocos de países têm estratégias diferentes. Por exemplo, no caso dos Estados Unidos da América (EUA), essa estratégia mudou muito com a Presidência de Trump, mas sempre foi mais liberal e “laissez-faire”. Essa também tem sido a forma de actuação dos EUA, mas com Trump está mais na linha do “vale tudo”, do que importa é chegar em primeiro lugar. Há um grande fomento das companhias tecnológicas, como se vê com o grande apoio que elas deram à campanha presidencial de Trump. Depois temos a China, com uma política estatal, que não está tanto nas mãos dos privados. Há um foco muito grande no avanço tecnológico, mas é visível que o país está já numa posição que, dificilmente, será alcançada pelos outros. A Europa não está propriamente bem posicionada.

Porquê?

A Europa tomou a decisão de que a melhor forma de desenvolver o progresso tecnológico e fomentar a inovação é pela via da hiper-regulação. Não há um centímetro que não esteja regulado ou que não venha a ser regulado pela UE. Claro que pode ter algumas vantagens, e as aspirações é que possamos estar perante um desenvolvimento controlado e sustentável, e que respeite os nossos direitos fundamentais e o Estado de Direito. Mas tenho algumas dúvidas. Primeiro, de que isto seja conseguido, porque a protecção dos direitos fundamentais também não passa por esta hiper-regulamentação. Depois parece-me que estamos a fazer isto à custa de um valor que me parece primordial, que é a inovação. Essa ideia vem, aliás, no relatório de Mário Draghi, que alertou a UE para a possibilidade de hipotecar as gerações futuras porque estamos a deixar a inovação para trás. Não vejo que nenhum destes três modelos tecnológicos [EUA, China e UE] seja particularmente frutífero, porque têm benefícios e desvantagens. Temos um modelo interessante, que é o britânico.

Em que sentido?

O Reino Unido mantém o quadro jurídico que herdou da UE, e ainda não o alterou. O Reino Unido não vai adoptar o regulamento da IA [Europe’s AI Act], porque já não faz parte da UE, parece que também não vai criar um quadro regulatório semelhante a esse, mas têm uma abordagem que é ter um quadro muito genérico que fixa os pontos principais e limites, mas depois haverá uma regulamentação sectorial. Esta regulamentação, que ainda está a ser criada, é para estabelecer as ‘guidelines’ para cada área de actividade, para que haja autonomia em cada sector e sempre no respeito das particularidades de cada um. Em teoria, é mais interessante, mas está tudo no início e ainda não vi casos aplicados na prática.

Como comenta o uso da IA na área jurídica e judicial?

Utilizar fontes que não são desejáveis para fazer o nosso trabalho não foi algo que chegou com o ChatGPT. Falando de algo que conheço bem, como teses académicas ou ‘papers’ científicos, não é inaudito que alguns autores menos escrupulosos citem fontes nas quais nunca puseram os olhos, e depois citam de forma errada, ou citam fontes que não existem. Há situações em que se citam fontes pouco credíveis, como blogues, ou ‘papers’ que não foram sujeitos ao sistema de revisão por pares. Isso não é novo. Termos o ChatGPT ao lado ajuda muito e a tentação é grande. Não acho que seja o fim do mundo. A literacia IA é fundamental para a academia e qualquer cidadão. Todos temos de compreender quais os benefícios da IA generativa e riscos também. Uma pesquisa nas páginas da Wikipedia também pode gerar erros. É impossível dizer aos alunos para não usarem o ChatGPT, porque essa proibição seria oca. Não posso saber como as pessoas fazem o seu trabalho. Pode haver situações de desonestidade científica e situações em que a informação não é verdadeira, mas se alguém me disser que escreveu algo com apoio do ChatGPT, não tenho problema com isso. Tenho se a pessoa se considerar na totalidade a autora do trabalho. O ChatGPT funciona muito como uma pesquisa no Google, não é algo completamente novo. Mas tenho de perceber que a informação que o ChatGPT me dá tem de ser muito analisada e novamente investigada. O ChatGPT só me pode dar pistas para onde posso ir, e aí pode ser útil e fazer-nos pensar. É uma fonte como outra qualquer, mas que não tem muito credibilidade. O ChatGPT nunca trata das coisas em detalhe, por exemplo.

21 Mar 2025

Ruby Hui, presidente da Associação de Autismo de Macau: “Autismo difere de pessoa para pessoa”

Criada em 2012, a Associação de Autismo de Macau continua a lutar por mais cuidados destinados a crianças e jovens com esta perturbação de desenvolvimento. Mas a presidente da associação, Ruby Hui, alerta para a necessidade de políticas mais incisivas para adolescentes e as suas necessidades específicas, sobretudo no acesso ao emprego

 

 

Que balanço faz do trabalho realizado pela associação nos últimos anos?

O meu trabalho é sobretudo estabelecer uma ligação com todas as entidades e recursos disponibilizados pelo Governo e também com a indústria do jogo, pois as autoridades passaram a pedir [no contexto dos novos contratos de concessão de jogo] que desenvolvam mais actividades de apoio social. Portanto, reunimos todos esses recursos para que sejam organizadas actividades recreativas para crianças e jovens. Além disso, organizamos sessões de terapia para os nossos membros. Habitualmente, pedimos apoios financeiros a empresas privadas e ao Governo, cobrindo 30 a 50 por cento dessas despesas.

O apoio do sector do jogo é, portanto, bastante importante.

Sim, mas na verdade não tem sido um apoio muito grande. Por exemplo, o Governo cobre parte das nossas despesas mensais, cerca de 40 mil patacas. Mas esse montante chega apenas para contratar dois funcionários a tempo inteiro e um funcionário a tempo parcial. São eles que organizam todas as actividades, tratam da parte burocrática, onde se inclui a apresentação de muitos relatórios ao Governo, porque pedimos subsídios para quase metade das nossas despesas.

Assim sendo, considera que são precisos mais apoios do Executivo para poder contratar mais profissionais?

Sim, seria o ideal. Associações como a nossa estão a ficar maiores e as crianças a que damos apoio estão a crescer. Diria que 60 por cento dos nossos membros têm 11 ou mais anos, e cerca de 20 por cento são ainda maiores, com mais de 14 anos. Temos de pensar no futuro deles e das necessidades em termos de terapia e tratamento para adolescentes, pois não são só os miúdos pequenos que precisam de terapias, como terapia da fala ou ocupacional. São jovens que ainda estão no liceu e precisam de adquirir diferentes tipos de competências sociais, os rapazes precisam de saber lidar com raparigas e vice-versa. Depois, quando se tornam adultos, precisam de saber lidar com os chefes, no emprego. Há muitas valências a explorar e sim, neste momento diria que os apoios não são suficientes.

As escolas ainda não estão preparadas para receber estes alunos, por exemplo?

O autismo pode ser diferente de pessoa para pessoa. Os alunos com autismo, mas que têm melhores capacidades de aprendizagem, estão em escolas normais. Mas os pais dizem-me que não há professores suficientes com determinadas competências para lidar e ensinar estas crianças. Há professores que têm ainda uma mentalidade muito tradicional para tratar deste tipo de jovens, que muitas vezes têm de lidar sozinhas com situações de bullying, por exemplo. Diria que existem muitas crianças e jovens com autismo com problemas psicológicos por causa da escola.

Quando fala da mentalidade tradicional, o que significa isso em concreto?

No caso do meu filho, por exemplo, ele é obrigado a estar sempre sentado na escola, mas muitas vezes gosta de se mexer e levantar da cadeira. Do ponto de vista dos pais que têm filhos com este problema, não haveria problema, desde que não incomodasse os outros, mas para os professores não pode ser, e queixam-se. Dizem coisas do género: “Ele vai bater na mesa, vai mexer no quadro, faz muito barulho”. Todos os dias recebo queixas dos pais na ligação com a escola, e por situações pequenas como esta.

Quais são as principais dificuldades ou desafios que as famílias de Macau enfrentam quando lidam com um filho autista?

No meu caso, a minha família é de classe média, e financeiramente estamos bem. Mas quando o meu filho era mais novo precisou de fazer terapia e ficou muito caro. Agora essas terapias custam ainda mais. No tempo em que o meu filho andava no ensino primário, pagava-se 600 a 700 patacas por cada sessão de terapia, mas há dias um pai disse-me que as sessões custam agora cerca de 1000 patacas por aula, o que é muito caro. Famílias de classes sociais mais baixas não conseguem pagar. Portanto, esse apoio é um dos grandes objectivos da nossa associação, angariar dinheiro para podermos fornecer explicações, sessões de terapia ou outro tipo de apoio. Tudo para que os nossos membros possam frequentar as aulas com 50 por cento de desconto, em que a associação paga metade do valor.

Quando a associação foi criada, quais eram os seus principais objectivos?

Em 2012 o autismo não era um tema muito falado. Por isso, juntámo-nos [alguns pais e famílias] e começámos a pedir apoio ao Governo e a tentar chamar a atenção para o assunto. Conseguimos algumas coisas, porque o Governo agora dá mais apoio a estes jovens, pelo menos para os que têm menos de 12 anos. O problema que sentimos é que esses jovens estão a crescer e para os adolescentes são necessários outros tipos de apoios, que não existem.

O que é preciso mudar nas mentalidades e na sociedade em relação ao autismo?

Em Macau não há muitas empresas dispostas a contratar jovens com autismo. Situação que não se verifica em Hong Kong, onde existem vários programas de contratação com empresas de cariz social. Macau precisa seguir esse caminho.

Um dia no rio

O Dia Mundial da Consciencialização do Autismo celebra-se a 2 de Abril e, nesse contexto, a Associação de Autismo de Macau juntou-se à Sands China para uma série de actividades com crianças e pais, que decorreu no passado dia 10 de Março. Através do Programa “Sands Cares”, a operadora de jogo proporcionou uma visita à exposição “Coastal Fantasia”, com a figura do “Rei Lagosta”, uma criação do artista Philip Colbert, e um passeio de barco pelo Delta do Rio das Pérolas.

No total, participaram 70 pessoas. Citada por um comunicado da operadora de jogo, Ruby Hoi disse que o passeio “permitiu às crianças desfrutarem ao máximo da viagem”. “Agradeço por todo o apoio prestado às pessoas com autismo em Macau, e espero que todos os sectores da sociedade possam continuar a apoiar o desenvolvimento destas pessoas e a promover a sua inclusão na sociedade”, referiu.

Para a operadora de jogo, este tipo de eventos pode ajudar a “reforçar a coesão das famílias que lidam com o autismo, mas também promover a sensibilização da sociedade e o apoio à comunidade de pessoas com autismo fomentando um ambiente social mais inclusivo e solidário”.

19 Mar 2025

Paul French, escritor: À procura de Wallis Simpson na China

O Festival Literário Rota das Letras, que começa na sexta-feira, vai contar com a presença do escritor Paul French, que lançou no ano passado um novo livro biográfico, “Her Lotus Year”, que descreve a vivência de Wallis Simpson na China, antes de ser duquesa de Windsor. O autor britânico irá também falar sobre “Destination Macau”, um relato nostálgico e quase cinematográfico da história da cidade

 

Como chegou à história da experiência de vida de Wallis Simpson na China?

Vivi em Xangai durante muitos anos e muitos visitantes sabiam que Wallis Simpson tinha passado um tempo na cidade. Corriam rumores sobre o que tinha feito, e os visitantes queriam sempre saber se os boatos eram verdadeiros, como a ideia de que ela tinha aprendido técnicas sexuais esotéricas ou se tinha posado nua para fotografias. Também se falava que tinha pertencido a um grupo de contrabando de ópio, ou a um grupo de apostas que combinava corridas de cavalos. Para mim, como autor e especialista nas experiências de estrangeiros em Xangai na primeira metade do século XX, nada disto fazia sentido. Então pensei que esta era a altura ideal para descobrir realmente o que Wallis tinha feito na China. O facto de ela ter estado no país em 1924 e 1925, dois dos anos mais fascinantes da história da China moderna, ajudou bastante.

Como descreve a vida da duquesa no país durante aquele período político específico?

A China estava num caos total quando ela lá esteve, pois Puyi, o último imperador, tinha sido expulso da Cidade Proibida e ocorreram as maiores greves de sempre na história de Hong Kong. Além disso, registaram-se fracções políticas em Guangzhou, senhores da guerra a lutar em Xangai e no Norte da China. Esses foram também os anos mais húmidos de que há registo na China, com quebras de produção nas colheitas e a ocorrência de surtos de febre tifoide e cólera. Disparou o número de bandidos e piratas. Depois, em Março de 1925, morreu Sun Yat-sen, líder da revolução republicana de 1911, sem que tenha deixado um sucessor óbvio. Wallis deparou-se com tudo isto, pois ficou retida na ilha de Shamian, em Guangzhou, enquanto a cidade se debatia; em Xangai, viu cadáveres a serem trazidos para a cidade, vindos das batalhas dos senhores da guerra; viu vítimas de tifo e cólera em Tianjin; e tropas dos senhores da guerra a ameaçarem Pequim. Mas também se encontrava, em grande parte, numa bolha protectora estrangeira que a protegia dos soldados estrangeiros e da sua pele branca. Podia deleitar-se com a cultura e a estética da China, enquanto à sua volta o país inteiro ameaçava explodir.

Como era a personalidade de Wallis Simpson, figura controversa no contexto do casamento com o duque de Windsor?

É muito importante não confundir a Wallis de 1924 com a Wallis posterior, dos longos anos de exílio e controvérsia como Duquesa de Windsor. Em 1924, Wallis tinha apenas 28 anos, fugia de um marido fisicamente abusivo (o seu primeiro marido, Win Spencer, um comandante da marinha americana) e ainda não era particularmente sofisticada ou cosmopolita. Estas eram caraterísticas que aprenderia na China, misturando-se nas “colónias” [concessões] estrangeiras internacionais e boémias de Xangai e Pequim. De facto, foi em Pequim que se misturou pela primeira vez com embaixadores, políticos chineses de alto nível, oficiais militares de alta patente e estetas, e com eles aprendeu tudo, desde jogar bridge e apreciar jade até como se comportar na alta sociedade. Obviamente, isso foi útil uma década mais tarde, quando conheceu o Príncipe de Gales em Inglaterra. É certo que a Wallis posterior, a duquesa, é uma figura mais difícil de gostar. Talvez ela e o duque tenham tomado algumas más decisões políticas e feito algumas amizades, talvez Wallis se tenha tornado um pouco amarga por não ter sido aceite pela família real britânica. Mas o certo é que em 1924 era jovem, livre de um mau marido e estava num dos países mais fascinantes do mundo.

O que podem os leitores percepcionar desta figura e sobre a China daquele tempo, com “Her Lotus Year”?

A China em 1925 estava à beira de uma potencial explosão, pois todo o país poderia ter caído no caos total, dividindo-se em territórios do tamanho de Portugal geridos por senhores da guerra com exércitos privados, ou uma dinastia Qing ressurgente apoiada pelo Japão no Norte [da China], os republicanos no Sul e, claro, as potências estrangeiras – Inglaterra, América, França e Japão – que detinham terras chinesas como colónias. Em última análise, isso não aconteceu, mas ninguém sabia disso em 1925. A própria Wallis oscilou entre sentir-se incrivelmente confortável e feliz naquele que foi o seu “Ano de Lótus”, como a própria o descreveu, citando os soporíferos náufragos de Homero que nunca querem regressar a casa; e sentir-se aterrorizada com a violência dos senhores da guerra ou daqueles que eram contra estrangeiros.

Quais os maiores desafios, como escritor, no processo de investigação da história de Wallis?

Wallis tornou-se provavelmente a mulher mais fotografada e falada da história, mais do que Marilyn Monroe, mais do que até a Rainha Isabel II. Mas em 1924 ela não era famosa de todo. Por isso, deixou um rasto muito difícil de seguir. Escreveu as suas memórias, mas estas foram “desinfectadas”. Um grande problema foram também os rumores que o Governo britânico e os serviços secretos fizeram circular em 1936, numa tentativa de destruir a ideia de um casamento entre o Rei Eduardo VIII e Wallis. A tentativa falhou, pois ele abdicou do trono e eles casaram, mas esses rumores e insinuações sexuais, muitos deles racistas e misóginos, mantiveram-se até hoje, além de que continuam a ser regularmente reciclados na imprensa tabloide britânica e americana. Achei a verdadeira Wallis uma personagem muito mais simpática do que esperava, e espero que os leitores também sintam isso.

É convidado de mais uma edição do Rota das Letras. Como se sente por fazer parte do festival?

Adoro fazer parte do Festival Literário de Macau. Embora já tenha falado antes em Macau, nomeadamente na Livraria Portuguesa e outros locais, nunca tinha participado no festival. Estou ansioso por poder falar sobre Wallis Simpson e também sobre a minha nova colecção de ensaios sobre Macau, intitulada “Destination Macau”. Algumas histórias de Macau que me têm agradado ao longo dos anos, algumas delas apresentadas com um olhar mais inglês, por assim dizer, poderão interessar e serão uma novidade para o público local.

Livro | “Destination Macau”, a cidade entre “o imaginário e o real”

Paul French acaba de lançar o terceiro volume da colecção “Destination”, que teve edições sobre Xangai ou Pequim, e que agora se dedica a contar histórias da Macau antiga, um “lugar tão imaginário como real”, como descreve a sinopse da obra. A obra do autor britânico apresenta “a Macau dos artistas George Chinnery e George Smirnoff, dos escritores Deolinda da Conceição e Maurice Dekobra, até às fantasias da ‘Pulp Fiction’ e sonhos febris cinematográficos de Josef von Sternberg e Jean Delannoy”.

Não faltam ainda, escritas pela pena de Paul French, histórias em torno de figuras históricas como Pedro José Lobo e Ian Fleming, autor e criador de James Bond. É descrita a Macau do tempo da II Guerra Mundial, dos que “vieram para Macau em busca de ouro e os que procuravam refúgio da guerra”, sem esquecer “os combatentes que procuravam uma passagem secreta através da ‘neutra’ Macau”.

Paul French desvenda mistérios ou conta histórias esquecidas para muitos, como a ideia de que o Japão terá tentado comprar Macau em 1934 ou a pessoa que navegou com a rainha dos piratas de Macau, Lai Choi San. São, ao todo, 18 histórias “verdadeiras de pessoas fascinantes que viveram ou visitaram Macau nos séculos XIX e XX”.

17 Mar 2025

Augusto Nogueira, presidente da ARTM: “Macau está à frente de Hong Kong”

A Associação de Reabilitação dos Toxicodependentes de Macau faz 25 anos este ano. Augusto Nogueira faz um balanço positivo do quarto de século que começou com uma pequena comunidade terapêutica e atingiu o reconhecimento internacional. O presidente da associação defende que, em prevenção, Macau está à frente de Hong Kong e que o consumo de drogas sintéticas ainda não é problemático no território

 

 

Que balanço faz do trabalho desenvolvido pela ARTM nestes 25 anos?

Fazemos o balanço bastante positivo, pois começámos com uma pequena área e uma pequena comunidade terapêutica. Hoje em dia temos uma comunidade com capacidade para 60 pessoas, muito mais do que as 15 que tínhamos na altura. Desenvolvemos vários programas, nomeadamente o da distribuição de seringas, que é um sucesso, porque levou a uma redução e quase supressão do contágio de VIH por parte de pessoas que injectam drogas. Há nove anos que existe o programa e temos zero casos de infecção. Desenvolvemos apoio à integração social e acompanhamento após o tratamento, com o “After Care”. Fazemos trabalho preventivo nas escolas com o programa “Be Cool”. Temos o projecto “Hold on To Hope”, com aposta na educação vocacional, através do café e da galeria de arte. É um projecto que está bem conseguido e que acaba por ser algo virado para o turismo. Temos visitas de entidades internacionais e diversas organizações não-governamentais, e das próprias Nações Unidas. O mais positivo para nós é sabermos a quantidade de pessoas que estão recuperadas e que hoje estão bem. Infelizmente, não conseguimos recuperar todas as pessoas, mas em cada recaída há sempre a possibilidade da pessoa vir novamente para fazer tratamento.

Tem ideia de quantas pessoas recuperaram em 25 anos?

Não conseguimos ter essa noção. Mantemos contacto com muitas pessoas, mas outras já deixaram Macau, seguiram a sua vida. Temos alguns contactos nos dois primeiros anos após o tratamento, mas depois a vida segue. As pessoas também querem seguir uma vida sem ter ligação à ARTM, às vezes casam e os novos companheiros não sabem da sua vida anterior e querem manter algum sigilo. Mas às vezes encontramo-nos. No outro dia pagaram-me uma água sem eu saber (risos). São pequenos gestos que nos dão satisfação para continuar e que nos fazem acreditar que a recuperação é sempre possível.

Quais os grandes desafios actuais para manter o projecto da ARTM, em termos de espaço e financiamento?

Em termos de espaço e locais para tratamento estamos bem. As instalações têm dez anos, há problemas de manutenção, mas isso está mais relacionado com o panorama das construções em Macau. Necessitamos de um espaço para o “After Care”, pois o que temos actualmente é arrendado e está deteriorado. Estamos em conversações com o Instituto de Acção Social (IAS) para termos um espaço novo. No tocante aos fundos, todos os nossos departamentos têm financiamento, mas obviamente procuramos apoios para as nossas actividades de outra forma.

Relativamente à postura das autoridades quanto ao consumo e tratamento, entende que é ainda conservadora em relação a outros países e regiões?

Essa pergunta é um pouco ambígua. Em termos de tratamento e estratégia no combate ao consumo, penso que Macau está muito à frente em relação a Hong Kong, por exemplo. Em Macau, temos comunidade terapêutica, trabalhamos na prevenção e no tratamento, além do nosso programa de distribuição de seringas e metadona. Temos um leque de tratamentos disponíveis para quem necessita. Na área da prevenção, o Governo tem dado muito apoio. O IAS tem sido bastante aberto nas estratégias de combate ao consumo e prevenção. Em Hong Kong, por exemplo, não existe um programa de distribuição de seringas. Macau é das poucas regiões do Sudeste Asiático que tem um programa de distribuição de seringas apoiado pelo Governo. Mas poderia haver outra interpretação diferente da lei, com uma diferenciação entre o que é tráfico e consumo próprio. Por exemplo, neste momento se a pessoa tiver na sua posse uma quantidade superior ao estipulado é logo considerado tráfico, sem que seja necessária prova. Pensamos que, neste caso, deveria haver uma diferenciação. Cabe depois à polícia investigar se as quantidades encontradas são para consumo ou tráfico. Deveria haver uma abertura para dar às pessoas mais oportunidades para serem encaminhadas para tratamento ao invés de irem para a prisão. Mas, ultimamente, não têm havido tantos casos quanto isso.

Como descreve o perfil do consumidor actual em Macau?

Existe uma grande redução do consumo de heroína, e as poucas pessoas que o faziam consomem hoje lorazepam, ou dormicum. Neste momento o maior consumo é de metanfetaminas, canábis e alguns resíduos de ketamina. Quanto às novas drogas sintéticas, tem havido alguns registos, mas até ao momento nada de alarmante. Mas claro que temos de estar atentos, temos de continuar a fazer um bom trabalho de prevenção, para que as pessoas tenham conhecimento dos problemas ligados ao consumo de drogas. Em relação ao tráfico, sabemos que antes da pandemia havia muito tráfico de cocaína para Macau, e após a covid-19 essa situação quase deixou de acontecer. Tem sido feito um bom trabalho de dissuasão e tem de continuar a ser feito para que cada vez haja menos tráfico a passar por Macau. Não quer dizer que não haja algumas situações actualmente, mas não estamos numa situação assim tão caótica quanto isso.

Falando das drogas sintéticas e do seu consumo, que segundo o último relatório das Nações Unidas atingiu uma situação preocupante em todo o mundo. Qual o seu comentário ao cenário descrito no relatório anual do International Narcotics Control Board?

É evidente que o consumo desse tipo de drogas tem vindo a aumentar ao longo dos anos. As drogas sintéticas são um verdadeiro problema nos Estados Unidos da América, por exemplo, com o consumo de Fentanil, e na Ásia em alguns países. É um problema global, pois o consumo e produção são fáceis. Algumas destas drogas são feitas com outros químicos e muitos outros produtos de que não se conhece bem a origem e que podem causar muitas overdoses. A ONU sugere o combate à produção dos ingredientes que são usados para produzir estas drogas, continuarmos a reforçar a investigação para apanhar os traficantes. Mas há pontos deste relatório que é necessário seguir, para muitos países, que é a luta entre ideologias.

Em que sentido?

Existe uma luta entre aqueles que defendem que a redução de danos é suficiente para combater todos estes problemas que estão a surgir, e que é a solução para tudo. Depois temos aqueles que acham que a redução de danos não faz falta. Na ARTM consideramos que tem de haver um equilíbrio, pois a prevenção é algo importante que não pode parar. O que aconteceu em Portugal, por exemplo, quando liberalizaram a droga e deixaram de fazer prevenção e apoiar o tratamento, [não foi bom], e hoje em dia Portugal está novamente numa situação um pouco caótica a nível do consumo e tráfico. Isso quer dizer que a prevenção não pode nunca deixar de existir. Devem haver tratamentos de qualidade, com supervisão de entidades. A rapidez de acesso ao tratamento tem de existir, e não pode ser como em alguns países em que as pessoas estão vários meses à espera de vaga ou autorização para entrar, pois as organizações não governamentais não deixam a pessoa entrar enquanto não recebem o subsídio para cada cama e paciente. Nesses meses muita coisa pode acontecer. A redução de danos deve ser vista como uma continuidade para recuperação, com salas para consumo com apoio médico e técnico, ou programas de gestão de seringas. Há outro problema, sobretudo na Europa, que é os consumidores de heroína, quando chegam a uma idade mais avançada, já têm muitos problemas de saúde e necessitam de sítios para estar, de uma certa dignidade. Está-se a perder muito tempo com estas guerras ideológicas, sendo que algumas delas existem por uma questão de poder, para se influenciar a liberalização das drogas, e isso é bastante prejudicial. Os direitos das pessoas acabam quando se começa a prejudicar os direitos de todas as outras pessoas, deve haver um equilíbrio. Como diz também o relatório, há falta de medicamentos para alguns países em África.


Celebrar com arte

Para comemorar os 25 anos, a ARTM inaugurou na sexta-feira a “Exposição do 25º Aniversário da ARTM”, que fica patente na Galeria Hold On To Hope até ao dia 23 deste mês. No espaço cultural na Vila de Nossa Senhora em Ká-Hó, que faz parte do programa de terapia ocupacional para os utentes da ARTM, pode ver-se uma mostra de arte feita por estes, com 45 obras de cerâmica, pintura e trabalhos de madeira. Segundo uma nota de imprensa da associação, a exposição “celebra a resiliência, a criatividade e a cura”. “Ao longo do último quarto de século, a ARTM tem sido um símbolo de esperança para indivíduos na sua jornada de recuperação da dependência. Esta exposição apresenta as extraordinárias obras de arte criadas pelos nossos residentes”, lê-se ainda.

11 Mar 2025

Debbie Lai, directora do Centro do Bom Pastor | “Vítimas precisam de mais protecção”

A propósito do Dia Internacional da Mulher, que se celebrou em todo o mundo no sábado, o HM conversou com Debbie Lai, directora do Centro do Bom Pastor, uma das entidades que acolhe vítimas de violência doméstica no território. A responsável defende celeridade nas investigações de casos de violência doméstica e mais dias de licença de maternidade

 

 

No que respeita à violência doméstica, a lei continua a não ser revista, com muitos casos em que não se consegue acusar ou condenar o agressor. O que precisa ser alterado na legislação actual?

Deve-se acelerar o tempo gasto na investigação do caso, bem como fazer uma simples promoção da lei, para deixar as pessoas compreender o que vão enfrentar caso denunciem a situação à polícia. Continua a haver medo da denúncia à polícia, então o que acontece é que o agressor, perante uma denúncia, fica com raiva, volta novamente a cometer violência e a família fica partida.

Quantas mulheres estão actualmente no Centro do Bom Pastor?

De acordo com a licença de serviço concedida pelo Instituto de Acção Social (IAS), podemos acolher 14 pessoas, incluindo os filhos. Actualmente, temos 11 pessoas, seis mulheres, três crianças e duas raparigas a viver no nosso centro. Algumas destas mulheres têm problemas devido aos conflitos emocionais, e, apesar de já terem alguma estabilidade a esse nível, continuam a ter dificuldades financeiras. Muitas dessas mulheres não são residentes permanentes e, por isso, não têm condições para se candidatarem a habitação social do Governo, além de que precisam de mais tempo para poupar dinheiro para poderem pagar uma renda em Macau, que não é barata. No caso de existirem crianças pequenas, é mais difícil para elas encontrarem um emprego a tempo inteiro, pelo que estas mulheres não se conseguem mudar num curto espaço de tempo para uma casa, chegando a ficar um ano no nosso centro. E nesta situação, o centro não consegue ter mais quartos vazios para ajudar outras mulheres em crise.

Considera que são necessários mais centros de acolhimento para vítimas de violência em Macau, ou mais recursos para garantir a segurança da vítima, dado que o território é tão pequeno?

Penso que os recursos são suficientes, mas o processo de investigação é demorado. As vítimas precisam de mais protecção, pois há sempre o risco de o agressor continuar a ameaçá-las.

O que é necessário fazer para aumentar a taxa de natalidade e garantir que as mulheres continuem a ter acesso à igualdade de oportunidades económicas e de emprego?

A promoção precisa de ser contínua, e devem aumentar os dias de licença de maternidade, pois noutros países existem mais dias de licença de maternidade. Também se poderia diminuir o valor mensal das creches. Poderia ponderar-se também a atribuição de um subsídio por cada criança caso a família tenha problemas financeiros.

Há falta de apoio às famílias monoparentais, onde as mulheres ficam sozinhas com crianças dependentes, ou onde as mulheres são cuidadoras? Em termos concretos, o que precisa ser melhorado?

Penso que sim. Penso que algumas delas não sabem que existem recursos na sociedade para as ajudar, ou talvez não tenham motivação para procurar ajuda. Muitas destas mulheres também não querem confiar no Governo, nem mesmo nas associações ou organizações não governamentais que prestam serviços à família. Mas estas mulheres podem sempre candidatar-se ao subsídio atribuído pelo Instituto de Acção Social, que lhes dá algum dinheiro e permite ficar em casa a tomar conta dos filhos.

Como descreve as mulheres em Macau actualmente, especialmente a comunidade chinesa? Estão mais emancipadas e iguais aos homens no que respeita aos seus direitos?

Hoje em dia a capacidade das mulheres mudou muito, pois têm igualdade de oportunidades e direito de se desenvolverem. Muitas empresas locais já são presididas por mulheres, por exemplo. Além de terem força física, podem escolher o emprego que desejam, frequentar o ensino superior, casar e ter a capacidade para assumir posições de liderança. Porém, há muitas mulheres que vêm para Macau e se casam com residentes e que têm uma posição social mais baixa, sofrendo com vários problemas familiares. Falo do machismo que ainda existe, do vício do jogo, situações de toxicodependência ou falta de comunicação. Há homens que controlam tudo, criando um clima em que a mulher tem de ouvir o marido e fica desprovida de auto-estima para sair dessa situação. Nesses casos, é muito fácil haver discussões, conflitos e até casos de violência entre o casal. Trata-se de situações que, obviamente, também afectam os filhos.

Dia Internacional da Mulher celebrado em Macau

O Dia Internacional da Mulher foi celebrado em Macau de formas muito diversas. No caso da Sands China, foram oferecidas flores às trabalhadoras da operadora de jogo, como forma de expressar “o apreço pelas contribuições indispensáveis que as mulheres fazem no local de trabalho, na família e na sociedade”, pode ler-se num comunicado da empresa. Foi também organizado um debate que focou as questões em torno da mulher, organizado pela equipa voluntária da “Sands EmpowHER”, uma “iniciativa global de diversidade e inclusão liderada por mulheres, que tem como objectivo ligar os membros femininos da equipa para criar oportunidades de trabalho em rede”. Este evento foi transmitido em directo nas diversas plataformas digitais da Sands China.

O “Sands EmpowHER” dedica-se, sobretudo, na organização de acções de formação e mentoria para que as mulheres se possam desenvolver em termos profissionais e de carreira.

Na mesma nota, refere-se que a empresa “está empenhada em construir e manter um local de trabalho com respeito e igualdade”, defendendo e garantindo os direitos das mulheres. No tocante ao assédio sexual, a Sands afirma que tem levado a cabo uma campanha de prevenção da ocorrência de casos desde Julho de 2018, bem como acções que reduzam casos de discriminação contra mulheres.

Esta foi “a primeira em Macau”, tendo-se realizado ainda uma “acção de formação com todos os membros da equipa” sobre essas temáticas. Relativamente aos apoios à maternidade, “a empresa também disponibiliza salas de amamentação para mães e realiza uma grande variedade de actividades para pais e filhos para promover a harmonia familiar”.

Na Escola Portuguesa de Macau, o Dia Internacional da Mulher celebrou-se na sexta-feira com o projecto DAC – “Mulheres que Inspiram”, uma iniciativa organizada pelos docentes das disciplinas de Português, Filosofia e Matemática, entre outras. Os alunos do 10º ano desenvolveram vários trabalhos sobre mulheres inspiradoras nas mais diversas áreas. Uma delas foi a poetisa Maria Teresa Horta, recentemente falecida.

10 Mar 2025

Bernardo Mendia, Câmara de Comércio e Indústria Portugal – Hong Kong: “Portugal deve estender a mão”

Chega hoje a Lisboa o secretário para a Inovação, Tecnologia e Indústria de Hong Kong, Sun Dong, acompanhado por empresários das áreas digitais, comércio online e tecnologia. Bernardo Mendia, presidente da Câmara de Comércio e Indústria Portugal – Hong Kong, destaca a importância da visita para as empresas portuguesas e da RAEHK enquanto complemento de contactos portugueses em Macau

 

 

No ano passado, Portugal recebeu a visita de Christopher Hui Ching-yu, secretário dos Assuntos Financeiros e do Tesouro de Hong Kong, e agora outro governante de Hong Kong passar por Portugal. É uma visita com significado acrescido?

Como Câmara de Comércio e Indústria Portugal – Hong Kong consideramos de extrema importância esta visita, valorizando muito a atenção que está a ser dada a Portugal. É importante, sobretudo, por se tratar de uma área tão específica como a inovação. Esta é uma área em que Hong Kong aposta muito e que tem sido uma prioridade para as autoridades da região, e isso é algo que existe em comum com Portugal, que também tem apostado na área tecnológica e de desenvolvimento científico. O que Portugal deve fazer é aproveitar esta oportunidade, estender a mão ao secretário e trabalhar em parceria. O desenvolvimento tecnológico e económico só se faz com parcerias internacionais, com a abertura de mercados e com colaborações. É também isso que promovemos como Câmara de Comércio. Temos estado envolvidos na organização desta viagem, algo que começou há meses. Vamos levar empresas portuguesas a identificar potenciais sinergias com as entidades que vêm cá, para que se conheçam e façam, depois, o seu trabalho.

Hong Kong tem estado presente em todas as edições da Websummit em Lisboa. Esta visita dá a ideia de que a região pretende expandir-se e firmar parcerias mais concretas com Portugal?

Sim, sem dúvida. Isso tem-se evidenciado nos discursos oficiais dos mais importantes membros do Governo de Hong Kong, incluindo do próprio Chefe do Executivo. Essa é a estratégia da região neste momento, ser uma ponte para o resto do mundo poder entrar na Ásia. Aí o território compete com outras plataformas, pois Hong Kong, Singapura e Tóquio são, talvez, os três territórios com maior expressão nesta área [tecnológica], na Ásia. Mas Hong Kong apresenta as melhores condições, não apenas pelo apoio que dá [às empresas], mas também por fazer parte da China, apesar de ter um sistema legal diferente e uma moeda diferente. Há um sistema completamente aberto ao nível da circulação de capitais e acesso à Internet. Acho que Hong Kong se posiciona melhor nesse campo, mas essa é uma competição que o território tem de fazer, tal como Portugal quando vai apresentar-se na Ásia, competindo com a Espanha e outros países europeus na atracção de investimento directo estrangeiro.

Macau é, por norma, a principal ligação a Portugal, por questões históricas e da presença da língua portuguesa. Hong Kong pode ser também um território de ligação entre as empresas portuguesas e a Ásia?

Macau e Hong Kong são muito complementares nesse aspecto. Macau tem essa ligação histórica com Portugal e tem empresas muito importantes sediadas no território, algumas delas há mais de 100 anos, nomeadamente o Banco Nacional Ultramarino. Essa experiência, e o facto de a língua portuguesa ainda ser oficial, é, sem dúvida, uma vantagem para as empresas portuguesas. Se for necessário entrar no mercado de capitais, as empresas portuguesas vão optar por uma série de serviços disponibilizados por Hong Kong. Mas Macau tem as suas vantagens próprias e considero que são dois mercados bastante complementares. A proximidade geográfica de Macau e Hong Kong também funciona como um ponto atractivo.

Durante a visita de Christopher Hui Ching-yu, no ano passado, foi abordado o posicionamento de Hong Kong como paraíso fiscal. Como olha para essa questão?

Esta visita é organizada pelo Hong Kong Economic and Trade Office e as questões fiscais ficarão, agora, postas de parte. Mas a nossa posição, como Câmara de Comércio, é que não faz sentido Hong Kong estar na lista de paraísos fiscais, e não faz sentido nem do ponto de vista legal, nem político. Nenhum dos mercados com quem concorremos coloca Hong Kong como um paraíso fiscal, nem a própria União Europeia. Só temos a perder com isso, porque criamos barreiras às trocas comerciais e investimento directo estrangeiro em Portugal, e também ao investimento que é feito pelas empresas portuguesas em Macau, que acabam por ser afectadas por isso. Não faz sentido essa designação do ponto de vista legal, porque Hong Kong não reúne as condições para fazer parte da lista dos paraísos fiscais, e do ponto de vista político porque nenhum outro país europeu coloca o território nessa categoria.

A China está presente no mercado português através de diversos investimentos. Hong Kong está a tentar criar o seu próprio caminho?

Não nesses termos. A esmagadora maioria do investimento chinês que é feito em Portugal é-o através de Hong Kong. Aí, nesse aspecto, Hong Kong e China trabalham de forma bastante complementar. Hong Kong funciona como um “porta-aviões” da China em termos do investimento externo, e não há propriamente uma concorrência entre os dois, trabalhando, sim, em conjunto.

Encontros em Oeiras | Taguspark acolhe hoje sessões de intercâmbio e seminários

Dong Sun faz-se acompanhar a Portugal pelas empresas e entidades mais importantes de Hong Kong nas áreas da inovação, tecnologia e meios digitais, quer a nível governamental, com o “Hong Kong Science and Technology Park” e o “Cyberport”, parque tecnológico com escritórios com projectos orçamentados em dois mil milhões de dólares de Hong Kong; quer a nível académico e de investigação, com a presença na comitiva do “Hong Kong Applied Science and Technology Research Institute” e “Hong Kong Microelectronics Research and Development Institute”.

As sessões de intercâmbio e seminários acontecem hoje a partir das 16h, no Taguspark, em Oeiras, onde está localizada a Oeiras Valley Investment Agency, cujos representantes já estiveram, aliás, presentes em Macau para contactos comerciais.

Na parte da tarde haverá oportunidade de diálogo entre o próprio secretário de Hong Kong, representantes da Câmara de Comércio e Indústria Portugal – Hong Kong e dirigentes dos parques tecnológicos e institutos da RAEHK, sendo que no total estão representadas 24 empresas.

Na via catalã

Num comunicado divulgado pelo Executivo de Hong Kong, lê-se que o programa inclui “reuniões e intercâmbios com líderes dos sectores político, empresarial e de inovação e tecnologia locais”, bem como visitas a infra-estruturas, parques tecnológicos, institutos de investigação e empresas.

O objectivo é “reforçar os laços e a cooperação” com Portugal neste sector, “promovendo as vantagens da inovação e tecnologia de Hong Kong e explorando oportunidades de negócio no estrangeiro”, segundo o comunicado.

Antes de passar por Lisboa, a delegação esteve em Barcelona, para participar no “Mobile World Congress”, considerado um dos eventos tecnológicos mais influentes a nível mundial.

Esta é a segunda visita a Portugal de um membro do Governo de Hong Kong no espaço de um ano, depois de o secretário para os Serviços Financeiros e Tesouro ter passado por Lisboa em Junho. Na altura, Christopher Hui Ching-yu pediu a Portugal para retirar Hong Kong da lista de paraísos fiscais e defendeu que já cumpre os padrões da União Europeia para combater a evasão fiscal.

6 Mar 2025

Cristina Rocha Leiria, autora do projecto do Centro Ecuménico Kun Iam: “A obra que mais me preencheu”

Até 13 de Março pode ser vista, no Centro Ecuménico Kun Iam, a mostra “Moments of Light with Kun Iam”, uma exposição de Cristina Rocha Leiria, arquitecta, escultora e autora do projecto do centro. Ao HM, Cristina Rocha Leiria fala de um espaço criado para todos, incluindo ateus, e lamenta a falta de divulgação da exposição

Imagem: Fundação Rui Cunha

 

Fale-me de “Moments of Light”, a exposição patente no Centro Ecuménico Kun Iam.

O centro foi criado para o silêncio, porque tudo é feito para as maiorias, mas temos de pensar nas minorias, que têm direito de existir. Pode existir uma minoria que precisa de silêncio. Podem ser vistos cristais levados de Portugal e adquiridos também na China, escolhidos por mim, e pedras energéticas. Incluem-se ainda 25 peças feitas pela Atlantis [empresa portuguesa do grupo Vista Alegre] em cristal, além de um bazar com outros materiais.

O centro ecuménico foi inaugurado em 1999, passaram-se 25 anos. Como olha hoje para o projecto? Sente que está devidamente aproveitado?

É a obra que mais me preencheu. Trabalhei nele ao nível da arquitectura, porque é essa a minha área de formação, e trabalhei também com a escultura porque é o que faço, embora não tenha tirado qualquer curso. Faço escultura como terapia. Trabalhei ao nível da música com Rão Kyao e outro maestro, que perceberam o que eu queria e fizeram uma composição de tal ordem que toca o dia todo [no Centro] e as pessoas nunca se cansam. Tratei, na altura, de tudo o resto, da decoração e do que lá se vendia. As coisas foram-se esgotando e acabou por não haver quase nada para vender, à excepção de uns livros e postais. Criámos muita coisa que se vendia, os turistas iam lá, não faziam barulho porque percebiam que era um sítio de silêncio, compravam e esse espaço tinha um certo rendimento. Deve-se divulgar este centro ecuménico, que se tornou um ex-líbris de Macau, junto dos turistas como algo que Macau tem e que não existe em mais nenhum outro lugar urbano no mundo. Portanto, o centro funciona neste momento com uma exposição minha e um bazar que tem produtos que se vendem noutros locais e que não têm nada a ver com o centro ecuménico, mas que são um chamariz.

Como foi o arranque da construção deste projecto? Já tinha feito alguma coisa com tanta ligação ao mundo espiritual?

Vivi em Moçambique até ir para Lisboa estudar arquitectura. Desde criança que conheço a deusa Kun Iam, porque a minha mãe tinha uma estátua branca de Kun Iam em casa, e era a coisa que eu mais gostava naquela casa. Mal sabia eu que um dia viria a fazer um centro dedicado a esta deusa. Quando vim para Macau trabalhar no Leal Senado, como assessora do presidente, com o primeiro dinheiro que ganhei fui a Hong Kong comprar um abat-jour branco com a figura de Kun Iam, que ainda hoje tenho. Em relação à parte espiritual, esta vem de criança, sempre gostei do silêncio. Quando faço arquitectura ou escultura é sempre em completo silêncio. Estou só eu ligada ao trabalho e a um mundo que, como não é tangível, muitas pessoas nem se apercebem dele, nem acreditam nele. Eu acredito porque sinto que quando trabalho duas noites sem dormir, ou três dias seguidos, em qualquer projecto, em silêncio, acordo de manhã e penso nas ideias que tive, surpreendo-me até com elas. Então a parte espiritual está reflectida na escultura que faço. Especializei-me em habitação e a espiritualidade também se reflecte nos projectos que fiz em Macau na área da habitação social. A espiritualidade é uma parte de mim, e o centro ecuménico é orientado para isso. Nestas visitas guiadas que tenho feito tento puxar pelos mais jovens para que percebam que podemos ser muito ajudados por energias que não vemos. Não dou nomes às coisas e digo para não se importarem com isso, porque o importante é tomar consciência que há mais do que aquilo que vemos. O mundo material não é o único que nos interessa, há mais para tomarmos contacto e agradecermos.

Macau é um território pautado pelo consumo, o jogo, os excessos. Ter um centro desta natureza nesta sociedade tem um maior significado?

Este centro é ecuménico, mas nada tem a ver com a Igreja, remetendo sim para algo abrangente. O centro foi feito para ateus, agnósticos, religiosos e não religiosos, para todos aqueles que precisem de silêncio. E no mundo de Macau, ou em grandes meios urbanos, há sempre poluição auditiva. Esse centro foi feito numa ilha que pedi de propósito ao Governador de então, o general Vasco Rocha Vieira, que foi uma pessoa muito aberta a esta proposta. Essa ilha foi criada porque, na altura, não havia espaço em Macau para colocar um monumento de 20 metros de altura. O centro tornou-se um símbolo, muitos vão lá rezar, mas não foi feito para isso. Devo dizer que acredito que a essência do divino está em cada um de nós, mas nem todos têm consciência disso. Outros estão abertos para essa essência.

Voltando à exposição. O que podem as pessoas aprender com ela?

Estou agora em Macau por um período de seis meses, mas tenho tratado também de vários assuntos relacionados com projectos que fiz em Portugal há muitos anos e que estou a tentar que sejam recuperados. A exposição, por si, está lá e não é um atractivo. É bom saber-se que a reabertura do centro ecuménico não teve a divulgação que deveria ter. Ninguém sabe que o centro ecuménico foi aberto, e quem aparece lá são as pessoas que deixam os filhos nos parques, observam o espaço, e vão lá com as crianças. É interessante porque os mais pequenos dirigem-se, precisamente, para os pontos de energia identificados por mim. Aparecem pessoas que andam a passear, entram, mas não vão de propósito ver a minha exposição. Depois, como vêem a porta de saída que dá para o rio, saem logo e a exposição passa despercebida.

Mas lamenta que não se tenha feito mais divulgação.

Não se fez, não. Agora é que estou a fazer esse trabalho e a divulgar junto de pessoas amigas. Estou a acabar uma exposição sem que, de facto, as pessoas tenham usufruído, quando tenho esculturas com mensagens. Demoro cerca de um mês a fazer uma escultura, e vou escrevendo, pensando, fazendo poesia, então tenho muito a transmitir às pessoas sobre cada escultura. Muitas pessoas dizem que saem de lá mais ricas. Vou pedir que a exposição seja prolongada além do dia 13 de Março e era bom que isso acontecesse, porque têm aparecido grupos de pessoas, inclusivamente algumas que marcam hora comigo e eu vou fazer a visita guiada.

Como surgiu a sua ligação à cultura chinesa?

Essa ligação vem de infância. Depois aprofundei muito essa ligação porque tive de estudar sobre a deusa Kun Iam. Tive de ver muitas figuras de Kun Iam para pensar como iria fazer uma que estivesse ali suspensa, ao ar livre sujeita aos tufões e ventos fortes, bem como altas temperaturas. A parte espiritual foi mais fácil para mim, porque desde criança que me interesso por filosofias orientais. Essa parte da espiritualidade [na construção do centro ecuménico] foi, para mim, mais fácil, embora tenha tido muitas dificuldades. Dei tudo de mim, livros para a biblioteca, e até contribuí a nível financeiro para este centro, para que muitos jovens pudessem usufruir dele.

Disse-me que algumas obras que edificou necessitam de recuperação. É ingrato esse lado do artista, de ver os projectos a destruírem-se com o tempo, sem preservação?

Não lamento nada, tento, sim, entender. Mas também tento defender os propósitos que existiam no arranque de cada projecto. Tento entender a maneira de ser dos chineses que viveram tantos anos limitados e com muitas proibições. Gostaria de entender porque puseram um bazar na exposição a vender tantos produtos. O mesmo acontece em Portugal: tenho a obra “Vela ao Vento”, em Tavira, numa rotunda enorme que tinha um lago, foi algo que tentei fazer de forma poética, mas depois vejo que as pessoas menosprezam. Agora não há água no espaço e crescem ervas. Sinto que há uma falta de respeito pelo artista.

4 Mar 2025

Jimson Kin Wa Hoi, presidente da Orquestra Sinfónica Jovem de Macau: “Macau é um espaço de cultura”

O presidente da Orquestra Sinfónica Jovem de Macau, Jimson Kin Wa Hoi, defende o apoio à música clássica e formação dos jovens. À frente da orquestra há duas décadas, o responsável revela ao HM detalhes sobre os próximos concertos, incluindo uma passagem por Portugal e o “24º Concerto da Nova Geração de Músicos 2025”, marcado para este domingo no Centro Cultural de Macau

 

Imagem: António Sanmfaurl_MacauNews

Comecemos por falar do espectáculo no grande auditório do Centro Cultural de Macau (CCM) este domingo. É uma grande oportunidade para revelarem o vosso projecto ao público.

Sim. Na verdade, a Orquestra existe desde 1997, quase há 28 anos. Ao longo deste tempo realizámos cerca de 100 concertos, no que chamamos de espectáculos com assinatura de Macau. A nova geração de músicos locais está, de facto, bastante entusiasmada com o espectáculo que vamos ter no próximo domingo.

A realização de concertos e participação em festivais é a parte mais visível do vosso projecto. Mas quantos músicos estão actualmente na orquestra? Até que ponto a orquestra é importante para os jovens que querem ser músicos?

Somos de facto a única orquestra juvenil em Macau que providencia formação específica neste género musical. Nesta fase, os jovens músicos podem ter a oportunidade de mostrar o seu talento. Tentamos, de facto, construir uma nova geração de músicos. Este tipo de espectáculo encoraja-os a aprender e sair mais, a estudar música ao longo dos anos, então é algo mesmo muito importante para eles. No espectáculo de domingo os músicos terão a oportunidade de tocar em orquestra, e este ano organizámos duas audições para a escolha dos solistas. Estou feliz por termos este ano um total de 33 grupos de jovens que participaram nessas audições, de onde foram escolhidos nove solistas.

É o director da única orquestra juvenil em Macau. Como descreve o panorama de formação musical dos mais jovens? Onde é preciso melhorar?

Sim, claro. Comecei desde muito cedo a tocar na Orquestra de Macau, sou violinista. Posso dizer-lhe que, ao nível da formação, a maioria dos professores são de Hong Kong ou de Guangzhou, que todas as semanas se deslocam a Macau para treinar os nossos jovens. Macau é muito conhecida como a cidade do jogo, mas é também um espaço cultural. Consegue-se sentir o património que existe em Macau, graças, em parte, à anterior administração portuguesa, e temos de agradecer pela manutenção desta cultura portuguesa e de toda uma cultura ocidental misturada com a oriental. Macau é especial por isso mesmo. Penso que temos de promover esta cultura e saber desenvolvê-la. No caso da música clássica, começámos a ter uma orquestra em 1983, ainda durante o Governo da administração portuguesa, e aí organizámos também uma série de competições para os mais jovens. O Festival Internacional de Música de Macau também começou a ser organizado há várias décadas, bem como o Festival de Artes de Macau. Hoje, Macau tem mais iniciativas deste género e isso é bom para enriquecer a nossa cultura, sobretudo a música clássica que se faz no território.

Além do espectáculo de domingo, o que está na agenda da Orquestra da Juventude de Macau para este ano?

Posso dizer-lhe que vamos participar na edição deste ano do Festival de Música de Mafra “Filipe de Sousa”, agendado para Julho. Irei visitar Mafra e todos os locais onde iremos actuar, ter reuniões e organizar-me com a produção. Não será a primeira vez que estamos, como grupo, em Portugal, mas penso que para a maioria dos jovens músicos será a primeira vez. A nossa orquestra já actuou duas vezes em Portugal, a primeira vez foi em 2010.

Entende que o Governo de Macau deve dar mais apoios para a formação na área da música clássica?

Penso sempre que o Governo deveria dar mais apoio aos estudos de música clássica. Para isso não basta gastar dinheiro na organização de festivais, é preciso um maior foco na educação musical. Temos também de ensinar a população a apreciar música clássica, a ouvi-la e a consumi-la, para que possam conhecer o que ouvem e ir aos concertos. Macau é um território pequeno com cerca de 600 mil habitantes, e tem muito dinheiro por causa do jogo. Temos de usar esse dinheiro para construir uma cultura de Macau, onde se inclui a música clássica. Devemos criar uma cidade que mostra a sua cultura, e por isso encorajo sempre o Governo a dar apoio à formação musical. Não apenas para as orquestras profissionais, mas para as orquestras juvenis e associações de música.

Macau carece ainda de cursos superiores na área da música, tendo apenas o Conservatório. Essa é também uma lacuna?

Está certa. Existem várias universidades em Macau, mas há, de facto, falta de oferta formativa na área da música. O Conservatório não oferece essa formação a nível superior. Neste momento, os alunos que queiram estudar música de forma profissional têm de sair de Macau e ir para a Europa, Estados Unidos da América, Hong Kong ou até mesmo a China. Mas, por outro lado, a população de Macau é muito pequena e manter um Conservatório com outro tipo de oferta formativa iria custar muito dinheiro. Penso que o melhor que se pode fazer é o Governo apoiar financeiramente estes excelentes alunos para que sejam aceites em cursos fora de Macau.

As jovens estrelas que vão subir ao palco do Centro Cultural de Macau

Organizado pela Associação Orquestra Sinfónica Jovem de Macau, o espectáculo de domingo começa às 19h45 e tem como lema “Progressing Towards the Future” [Progredindo em Direcção ao Futuro]. O espectáculo será dirigido pelo maestro italiano Lorenzo Antonio Iosco, que também é clarinetista e tem trabalhado com a Orquestra Filarmónica de Hong Kong. Antes de se mudar para a Ásia, em 2015, estudou clarinete no Conservatório Luigi Cherubini, em Florença, e tocou em Espanha e Londres.

No que diz respeito aos jovens músicos de Macau que sobem ao palco no domingo, destaque para Zita Ho Nok Chon, nascida no território em 2009, e membro da Orquestra desde 2021. A jovem frequenta a Escola Secundária Pui Ching, estuda violino e já participou em diversos concursos com distinção. Tem tocado na Orquestra como primeira e segunda violinista.

Na harpa destaca-se Eugenia Wong Hei U, nascida em 2011 e estudante do Colégio Anglicano de Macau. Começou a tocar este instrumento com apenas quatro anos, começando a sua formação na Escola de Música do Conservatório, que lhe valeu o seu primeiro prémio quando tinha apenas cinco anos. Actualmente, tem aulas com Ann Huang, harpista principal da Sinfonietta de Hong Kong.

Ao HM Eugenia Wong Hei U confessou que se sente muito satisfeita pela oportunidade proporcionada pelo concerto no CCM. “Tem sido uma honra muito grande fazer parte desta orquestra, onde conheci muitos parceiros talentosos e ganho um grande conhecimento musical.”

Outro nome de Macau na jovem orquestra é Brian Mui On Ian, violinista, que também frequenta a Escola Secundária Pui Ching. Além do violino, começou a estudar piano em 2018. O jovem foi um dos solistas da edição do ano passado do concerto promovido pela Orquestra Sinfónica Jovem de Macau, o “23rd Macau Music New Generation Musicians Concert 2024”, onde tocou a composição “Bruch Double Concerto in E Minor”.

28 Fev 2025

Cristina Ferreira, jurista e docente da Universidade de Macau: “O FATF estava no lugar e momento certos”

Cristina Ferreira, especialista em Direito Internacional, investigou o estatuto jurídico do “Grupo de Acção Financeira Internacional”, que combate a lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo. No livro “The Legal Status of the Financial Action Task Force in the International Legal System”, a jurista discorre sobre o estatuto jurídico indefinido do organismo que obteve grande poder a nível mundial

 

Quais as principais razões para a criação do Financial Action Task Force (FATF)?

O FATF surge no âmbito do G7, em Julho de 1989, em grande parte por iniciativa dos Estados Unidos da América (EUA), para dar resposta ao crime de branqueamento de capitais com origem no tráfico de drogas e à Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas de 1988. Tratava-se de um grupo informal que visava a cooperação e troca de experiências na parte policial, a elaboração de directrizes comuns e a coordenação de medidas preventivas, especialmente no âmbito financeiro e cooperação internacional. Foram elaboradas 40 “Recomendações Internacionais Contra o Branqueamento de Capitais”. Hoje o FATF tem 40 membros, 38 jurisdições, a Comissão Europeia e o Conselho de Cooperação do Golfo. O último membro, a Indonésia, entrou em 2023. Estes membros representam países industrializados, grandes praças financeiras e economias emergentes.

Como avalia, ao longo dos anos, o desempenho do FATF?

Teve um papel importantíssimo de liderança após o 11 de Setembro de 2001. De repente, o combate ao financiamento ao terrorismo (FT) tornou-se uma obrigação internacional e prioridade na agenda de todos os países. No plano internacional, os Estados foram instados a fazer parte da Convenção Internacional para Supressão do Financiamento ao Terrorismo, bem como de acordos e acções regionais ou internacionais de combate ao terrorismo e ao seu financiamento. A nível interno, os países foram instados a criminalizar o FT, a adoptar medidas de congelamento de bens, medidas de prevenção e detecção do FT nas entidades financeiras, como bancos e seguradoras, e não-financeiras, como casinos, agências imobiliárias ou lojas de penhores. Adoptar novos instrumentos internacionais que harmonizam ou uniformizam as práticas dos diversos Estados, e chegar a acordo sobre o seu conteúdo, pode levar anos. Mas o FATF estava no lugar e momento certos. Dada a sua natureza informal e flexibilidade para ajustar o seu mandato em função das ameaças que pudessem existir no sistema financeiro e do seu ‘know-how’ técnico, o FATF incorporou no seu mandato o combate ao FT e produziu recomendações, numa altura em que este assunto era novo para a maioria das jurisdições. O FATF agiu com rapidez, de forma útil e eficiente para a comunidade internacional. Tinha peritos experientes na área financeira e capacidade para ajudar na aplicação [das recomendações] e supervisionar a sua execução. O mesmo sucedeu em 2009, a seguir à crise financeira de 2008 e ao pedido do G20 para reforçar medidas destinadas à transparência e de combate à corrupção. Portanto, tem sido um caminho positivo.

Defende que ocorreu no FATF uma “metamorfose institucional” neste organismo. Como?

O FATF foi criado como um grupo informal, de índole técnica e temporário, renovável a cada oito anos, mas ao longo de 30 anos tornou-se numa organização cada vez mais complexa, governando hoje 206 jurisdições. A extensão do mandato implicou igualmente a evolução dos seus poderes e responsabilidades, e hoje o FATF é mundialmente reconhecido como a autoridade internacional sobre esta matéria. É dotado de um poder público de governação mundial cujo reconhecimento está traduzido em diversas Resoluções do Conselho de Segurança da ONU.

O estudo vem clarificar o estatuto legal da FATF. Que estatuto é este e qual a conexão com outras entidades também ligadas ao combate ao FT e lavagem de dinheiro?

O FATF é a autoridade mundial responsável por fixar padrões, normas e políticas internacionais sobre estas matérias e não há uma duplicação de funções com outras organizações e entidades internacionais, incluindo Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e a União Europeia. Este estudo defende que a evolução gradual do mandato, da estrutura institucional e do ‘modus operandi’ do FATF no plano internacional alterou o seu ‘modus constituendi’. Ou seja, uma organização pode evoluir para uma organização internacional de pleno direito, independentemente da intenção inicial dos membros e de não ter sido criada por um tratado.

Como explica que, até à data, falte clarificação do estatuto legal da FATF?

Acho que nunca houve um verdadeiro interesse em analisar a fundo esta questão. Este tema foi abordado entre 2016 e 2018, durante as presidências Espanhola e Argentina do FATF, mas ficou a “marinar”, com o argumento de que haveria vantagem em manter uma entidade flexível para mais facilmente poder responder a desafios e riscos emergentes contra a segurança, transparência e integridade do sistema financeiro internacional. Mas o facto é que o FATF passou a deter e a exercer um enorme poder, pois avalia e identifica as jurisdições não cumpridoras, nomeando-as em listas (‘blacklisting’). Pode ainda instar a aplicação de medidas a membros e não membros, um poder detido por pouquíssimas organizações internacionais.

Até que ponto as suas recomendações têm impacto e são postas em prática?

As recomendações do FATF têm impacto porque os países são regularmente avaliados quanto à sua aplicação, chamada de “Technical Compliance”, e eficácia da sua aplicação prática, com a designação de “Immediate Outcomes”. Essa avaliação é feita segundo critérios rigorosos, sendo dada uma classificação. Se o resultado for deficiente, a jurisdição tem de assumir um compromisso político de alto nível de resolução dessas deficiências, passando a fazer parte da ‘Lista Cinzenta’, sujeita a um plano de acção e a um prazo [de cumprimento]. Na ausência do compromisso político ou na falta de progresso suficiente na execução do plano, a jurisdição pode ser nomeada para a ‘Lista Negra’, e o FATF pode apelar a todas as jurisdições da rede do FATF para que aconselhem as suas instituições financeiras a reforçarem as medidas de diligência relativamente aos riscos associados a tal jurisdição. É isso que está a acontecer com o Myanmar desde Outubro 2022. Se a jurisdição apresenta graves deficiências ou não cumpre com o plano de acção ou não é membro de um grupo regional, pode ser nomeado para a ‘Lista Negra’. Neste caso, o FATF pode apelar que se apliquem as medidas da ‘Recomendação 19’, que vão desde o reforço da diligência e comunicação sistemática das transacções e operações que envolvam a jurisdição até à limitação ou proibição de transacções financeiras com a jurisdição.

Há alguns exemplos concretos?

Isso acontece com o Irão e Coreia do Norte há duas décadas. A reputação internacional [desta medida para um país] é real, tem um custo político e económico. Um estudo do Fundo Monetário Internacional (FMI) de 2021 revela que os efeitos negativos estimados em 7,6 por cento do Produto Interno Bruto nos fluxos de capitais e uma redução significativa do investimento directo estrangeiro nas jurisdições que constam da ‘Lista Cinzenta’, podendo até ter consequências nas condições de empréstimos do FMI.

Levanta, no livro, a questão da importância do FATF no panorama institucional global. Que importância é essa?

O FATF serve de modelo institucional, operacional e de regime para outros organismos internacionais. Este estudo desenvolve um modelo teórico que pode ser utilizado em qualquer organização que actue na cena internacional, reúna os mesmos elementos objectivos e cujo estatuto jurídico seja pouco claro. No fundo, o FATF é um caso prático. O Direito internacional não é estático e tem de se analisar a realidade e ajustar os modelos, devendo estes reflectir a realidade objectiva da ordem jurídica internacional.

A China e Hong Kong são membros do FATF. Qual é a relação da RAEM e das políticas locais de combate ao FT e lavagem de dinheiro com esta entidade?

A RAEM é membro de um dos grupos regionais do FATF – o Grupo Ásia-PacÍfico para o Combate ao Branqueamento de Capitais (APG), e obedece às recomendações e mecanismos de supervisão do FATF, exercidas pelo APG. Macau tem tido um bom desempenho, cumprindo, obviamente, as suas recomendações. Isso aconteceu, por exemplo, com a adopção do Regime de execução de congelamento de bens e a lei do Controlo do transporte transfronteiriço de numerário e de instrumentos negociáveis ao portador. Aliás, a RAEM foi a primeira jurisdição do mundo a obter a melhor nota de cumprimento técnico em relação às 40 Recomendações do FATF quando foi avaliada em 2017.

Quais os principais desafios que o FATF enfrenta actualmente no combate a este tipo de crimes?

O uso de novas tecnologias, da moeda virtual e o acesso limitado aos serviços financeiros formais que conduzem ao uso de canais não regulamentados, aumentando os riscos de branqueamento de capitais e de FT. No livro falo ainda do fosso económico e de capacidade de resposta ou acção entre as jurisdições-membros do FATF em relação às jurisdições-membro dos grupos regionais. Muitas delas são economias frágeis ou de baixo rendimento, pelo que não surpreende que apresentem mais deficiências ou dificuldades em cumprir com os padrões internacionais FATF. No APG, a título de exemplo, o Afeganistão, Bangladesh, Camboja, Laos, Myanmar, Nepal, Timor-Leste e Tuvalu constam na lista do Banco Mundial de 2023 dos Países Menos Desenvolvidos, o que dificulta a aplicação uniforme e global das normas e políticas do FATF. Além disso, as normas, políticas, procedimentos de avaliação e recomendações ou planos de acção do FATF são pouco flexíveis ou ajustáveis à realidade local e aos condicionalismos internos e regionais das jurisdições não membro do FATF. Deveria ainda ser assegurada uma participação mais equitativa ou representação dessas jurisdições no processo final de tomada de decisões do FATF, a fim de aumentar a sua legitimidade e transparência.

27 Fev 2025

Entrevista | Shan Hai Jing, um museu e o apetite dos antigos

Uma entrevista com a dupla de autores da próxima publicação em língua inglesa Shan Hai Jing Code 《上古文明密码》, que o Hoje Macau já apresentou, mas que agora se transforma em museu. Michael Du & Julie Oyang, a dupla de autores está actualmente a organizar uma corrida textual sem fôlego através da peça mais importante da literatura chinesa e do tesouro mais pesado da cultura chinesa e… mais além. Julie Oyang é uma crítica de arte e cultura baseada na Europa, comentadora da cultura chinesa e filósofa visual. É professora convidada na Universidade de São José em Macau, China. Michael Du é um conhecedor da cultura antiga chinesa canadiana, detentor da maior coleção da civilização Hongshan do mundo. É o fundador da Haikou KiWen International Art & Culture Co. Ltd. (海口啓運國際文化藝術品有限公司) e Kiwen International Cultural Exchange (Yantai) Co.Ltd (国际文化交流(烟台)有限公司). Ambos os autores estão intimamente envolvidos na operação do Museu de Arte da China para Civilizações Pré-dinásticas (华夏上古文明艺术馆), que abrirá em breve em Yantai, China.

P: Na parte I da entrevista, falámos sobre o significado histórico do antigo manuscrito chinês Shan Hai Jing 《山海经》, também conhecido como o Livro das Montanhas e dos Mares, especialmente a sua universalidade. O que é que se segue?

Michael: Falámos sobre como um estudo mais aprofundado do Shan Hai Jing pode ajudar-nos a compreender a origem das primeiras civilizações humanas na Terra. Mas nós somos fazedores. Não nos ficamos pelas páginas escritas: queremos assegurar que o Shan Hai Jing é relevante e vivo e torná-lo parte da cultura actual. Com este objectivo, fundei uma nova empresa. A Kiwen International Cultural Exchange (Yantai) Co.Ltd (启运国际文化交流(烟台)有限公司) foi criada depois da Haikou KiWen International Art & Culture Co. Ltd. (海口啓運國際文化藝術品有限公司) é o local onde a investigação global terá lugar e o intercâmbio global de conhecimentos será incentivado e estimulado sob a forma de delegações internacionais e visitantes de alto nível. Sabemos tão pouco sobre os antigos, há tantas perguntas a fazer…

Julie: De facto, há tanto para fazer. Há tanto que podemos fazer. Em colaboração com o governo chinês, estamos ambos envolvidos na operação do Museu de Arte da China para as Civilizações Pré-dinásticas (华夏上古文明艺术馆), onde Michael faz a curadoria da sua própria coleção de artefactos, bem como de colecções privadas de renome de todo o mundo, incluindo todas as civilizações pré-dinásticas, como Hongshan, Liangzhu, Shanxingdui, Hongshuihe, Shijiahe, etc. Estes objectos de arte nunca foram expostos e nunca foram explicados pelos historiadores tradicionais. Compreendemos que é extremamente importante para nós proporcionar aos coleccionadores privados um local onde possam mostrar a sua viagem dedicada à procura de respostas a questões sobre a humanidade. Neste sentido, o Museu de Arte da China para as Civilizações Pré-Dinásticas (华夏上古文明艺术馆), que deverá abrir em Yantai em abril, é uma visão única e brilhante. Até temos a arquitetura para corresponder a esta visão. O nosso objectivo é educar o público global em geral, bem como estabelecer uma ligação com o público jovem de uma forma divertida e com elevados padrões de qualidade.

Para além da exposição, que mais vão fazer para tornar os misteriosos antigos “vivos e activos” para o público global?

Julie: Neste momento, o Michael e eu estamos a planear uma exposição paralela e um workshop em colaboração com o chef artista francês Gil Gonzalez-Foerster (nome chinês: 晓松). De certa forma, o museu em Yantai é uma cápsula do tempo onde está guardada uma memória antiga e desvanecida. E a cozinha de Gil lida com a memória, desta vez partindo destas civilizações pré-dinásticas, partindo de Shan Hai Jing. Sendo o guardião imaginativo da memória, o clássico chinês contém a memória mais antiga da China, ou mesmo do mundo. Shan Hai Jing regista memórias antigas sob a forma de meditações sobre mitologia e os factos mais interessantes sobre a flora e a fauna conhecidas pelo seu poder mágico e força poderosa que vivem de um extremo ao outro da Terra. Esta parece ser a reputação deste texto antigo e inesgotável. Mas Shan Hai Jing é também um extraordinário livro de receitas!

Mas porquê comida?

Michael: Tu és o que comes. A comida é uma parte essencial da vida humana quotidiana que nos pode dizer mais sobre o passado. Quando um prato deixa de ser recordado, parte de nós deixa de existir. A comida é talvez a memória mais íntima e sensual. Talvez esta seja uma das razões pelas quais Shan Hai Jing foi escrito: recordar através da comida? A nossa exposição com curadoria tornar-se-á mais completa, mais 3D, mais realista, explorando o paladar dos antigos!

Julie: Shan Hai Jing documenta experiências gastronómicas diversas, misturando história natural e conhecimentos alimentares. O seu enfoque humanista torna o Shan Hai Jing único no seu género. A palavra shi (食), “comer”, aparece mais de 160 vezes no livro, dos antigos. Há, no entanto, muitos casos sobre comida exótica que curam condições médicas bastante familiares aos homens modernos, mas Shan Hai Jing também oferece cura para condições como arrogância, confusão/falta de sabedoria, afastar perigos físicos. Esta é uma filosofia culinária única! A comida envolve a mente, não apenas o paladar. Para provocar o intelecto. Esta ideia profunda ainda está profundamente enraizada na comida chinesa moderna. Através da nossa exposição, compreendemos também porque é que Confúcio ensinou aos seus discípulos que a comida é uma dádiva virtuosa e porque é que os grandes poetas eruditos chineses eram famosos apreciadores de comida.

Actualmente, não sabemos quem foi o autor do misterioso clássico chinês cuja imaginação ultrapassa As Mil e Uma Noites…

Michael: Os antigos eram “homens de apetite”. O apetite pode explicar as paisagens históricas e económicas da humanidade com mais clareza do que o jargão académico.

Por falar em economia, como é gerida a economia do museu?

Michael: O museu é um organismo educativo. É também um negócio. Concentramo-nos em cinco volumes de negócios. A investigação envolve sobretudo a cooperação com várias instituições e programas de formação na China. Organizamos cursos, eventos e publicações. Esta parte irá gerar 7,6 milhões de RMB/ano. A venda de bilhetes irá gerar 7,2 milhões de RMB/ano. A certificação de autenticidade irá gerar 3,5 milhões de RMB/ano. Também iremos formar agentes de leilões de arte e antiguidades, cujo programa irá gerar 4,9 milhões de RMB/ano. Na primavera e no outono, realizar-se-á um leilão em grande escala, com uma estimativa conservadora de 50 milhões de RMB de volume de negócios por leilão. Este montante não inclui as receitas provenientes da comissão de 15% dos vendedores e compradores. Além disso, realizar-se-ão anualmente mais quatro jogos de leilões temáticos, com uma estimativa conservadora de 5 milhões de RMB de volume de negócios e 6 milhões de RMB de comissão por leilão.

24 Fev 2025

António Queirós, filósofo e académico: “A Ocidente há uma grande ignorância” sobre a China

Doutorado em Filosofia da Ciências, Ambiental e Éticas Ambientais, António Queirós, ligado à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, lamenta que o Ocidente continue a encarar a China de forma errada, sobretudo em questões ambientais. O HM conversou com António Queirós antes da palestra sobre o assunto que deu ontem no Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa

 

Irá falar do tema “A Crise ambiental e o projecto de Eco-civilização da China”. Que projecto é este?

Este é o grande projecto da China para a Nova Era. Trata-se de um conceito que começou a ser elaborado a partir de 2013. Essa ideia começou a ser concretizada com distintos projectos. Desde o regime da “nova democracia”, que resultou da resistência chinesa à ocupação do Japão e o confronto geopolítico dos países do Eixo das diferentes democracias. Isto dá-se quando é proclamada a República Popular da China, como a proclamação da “nova democracia” e surge a tomada de consciência da crise ambiental à escala mundial por parte da China, com o regime a evoluir para o chamado “socialismo ecológico” a partir de 2003. Foi preciso o país experimentar um modelo de industrialização comum às primeiras experiências de socialismo, e sobretudo os países capitalistas. A tese fundamental da China é que todos os regimes podem colaborar na construção de uma nova civilização, mas isso implica profundas reformas democráticas que estão consignadas nas propostas de civilização global, da garantia de paz segundo o princípio da indivisibilidade da segurança. Mas gostaria de apontar o momento em que a Organização das Nações Unidas (ONU), representando todo o mundo, tomou consciência da existência de uma crise ambiental, a partir da Conferência de Estocolmo, que se realizou em 1972. Na China esse processo de consciencialização da parte dos órgãos do Estado socialista, dos cidadãos e partidos, começou em 2003. É estranho que questões como esta nunca sejam debatidas a Ocidente. O confronto ideológico que vem da Guerra Fria não cessou com os Acordos de Helsínquia, e, portanto, há temas que são desconhecidos a Ocidente por causa dessa tradição nefasta da Guerra Fria, que se prolongou, e porque os órgãos de comunicação social não têm abertura para discutir e apresentar as propostas que a China faz.

A China marca presença e é um actor importante em reuniões mundiais sobre ambiente e clima. Porque entende que não há discussão a Ocidente sobre o conceito de Eco-civilização?

Não se discute porque a Ocidente há uma grande ignorância sobre a China e a realidade do país. A única vantagem que tenho sobre a maior parte das pessoas que escrevem e falam sobre a China é que a minha relação com o país tem mais de 50 anos. Sei como a China era apresentada ao Ocidente há 50 anos. Vivíamos [em Portugal], um regime fascista onde a informação chegava às pessoas com muita dificuldade. Assisti ao longo destes anos a todo o tipo de visões sobre a China que careciam de informação concreta, até porque o país, até à Reforma e Abertura, era uma sociedade também fechada. Mas essa falta de informação era geral no Ocidente. Também tive visões que não eram a realidade e comecei a questionar-me se a experiência histórica da China é única, sem paralelo na história da sociedade, de democracia e socialismo, pelas suas características históricas, a hermenêutica, no sentido de método, a análise de conceitos e pontos de partida, que predomina a Ocidente, não serve. Mas vamos então à questão concreta, que é as responsabilidades que a China tem em matéria ambiental.

Que, concretamente, são…

Uma coisa é a contribuição que dão a China, Índia e outros países para o aquecimento global, porque são populações que representam a maior parte da humanidade. Existem tecnologias que são, elas próprias, poluidoras. Mas se olharmos para este ângulo acabamos por falsificar a realidade, porque os gases com efeitos de estufa que existem na atmosfera existem há 150 anos, pelo menos, devido à industrialização europeia e americana. Em termos de responsabilidade histórica, os EUA são os grandes responsáveis [pelo aquecimento global], e cito dados oficiais da União Europeia, por exemplo. Falo de toneladas de dióxido de carbono e gases com efeito de estufa emitidos para a atmosfera em todos esses anos.

Porque se industrializaram muito mais cedo do que a China.

Sim, e apresentaram uma indústria sem esse tipo de preocupações ambientais. Portanto, esconde-se essa realidade, que os gases com efeito de estufa começaram a poluir desde há 150 anos e que não é apenas os contributos de hoje [que são os grandes causadores do aquecimento global].

Acha, portanto, errada a ideia de que a China é o principal país poluidor.

Em termos actuais a China e Índia podem ser os mais poluidores. Mas não o são em termos “per capita” nem historicamente. O que tem de verdade [no discurso a Ocidente], é que eles contribuem actualmente [para o aquecimento global]. Mas depois temos de ver as tendências para onde vamos caminhar. Mas se aprofundarmos este tema chegamos a conclusões ainda menos favoráveis às políticas ocidentais. A história ambiental da China pode resumir-se a quatro períodos. O primeiro período é nos anos da Reforma e Abertura, a partir de 1978, e o quarto período é quando a China lança os projectos piloto de civilização ecológica. O processo é global. Ainda em relação às responsabilidades da China, na primeira fase o Ocidente e o Oriente industrializados transportaram para a China as indústrias mais poluentes, porque o apelo da China era industrializar-se e criar mais emprego. A resolução da ONU que acrescenta um artigo além dos 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, reconhece finalmente como direito inalienável do ser humano a um ambiente saudável. Essa declaração que está, a Ocidente, completamente truncada, reduzida a coisa nenhuma, tem um preâmbulo com 30 artigos em que a questão ambiental não é colocada. Como essa declaração já não se coaduna com a realidade política e social actual, tem vindo a ser escamoteada, mutilada e reduzida às liberdades formais. Ignorada também pelo conjunto de cidadãos que também não conhecem bem a sua origem. A China é co-fundadora da Declaração Universal dos Direitos do Homem, facto que também é escamoteado. Mas queria falar também da maior falácia da política ambiental do Ocidente.

Que é?

A ideia de que, a partir de agora, se vai proteger a natureza. Então o que se faz àquilo que foi destruído? Sobretudo nos países em desenvolvimento, porque foi para lá que enviámos esses resíduos das indústrias poluidoras e explorámos todos os recursos. Ninguém queria saber disso, e o que fez a China? Assumiu a liderança do processo e através da sua diplomacia de “agir sem agir”, o caminho de Tao, sem violentar a natureza, respeitando as leis e a dignidade das coisas, fazendo aprovar o Acordo de Kunming-Montreal [sobre biodiversidade]. Temos então um compromisso que, provavelmente, os EUA vão deitar para o caixote do lixo, para recuperar os biótipos que estão destruídos, porque grande parte do mundo está em crise ambiental e até aqui assobiava-se para o lado. A China tem uma visão gradualista, no sentido de que os factores de risco na crise ambiental tendem a diminuir com o esforço da China, tanto a nível nacional como internacional. Mas a questão mais notável na ideia da construção de um Estado com consciência ecológica no país foi o facto de, por iniciativa do Presidente Xi Jinping, tenham sido incluídos princípios da filosofia ambiental nos estatutos do Partido Comunista Chinês, facto inédito em outro partido comunista e até alguns ecologistas.

Reformulação global

Segundo o estudo “Ecological Civilization in the People’s Republic of China: Values, Action, and Future Needs”, de Arthur Hanson, publicado em 2019 pelo Asian Developmento Bank, o conceito de Civilização Ecológica “está a ser utilizado pela República Popular da China (RPC) para fornecer um quadro conceptual coerente para os ajustamentos ao desenvolvimento que responde aos desafios do século XXI.

Difere do desenvolvimento sustentável na ênfase colocada nos factores políticos e culturais, bem como na definição de novas relações entre as pessoas e a natureza que permitam viver bem e dentro dos limites eco-ambientais do planeta Terra”.

Além de reduzir a poluição e promover a economia circular, por exemplo, consideram-se ainda “domínios das finanças, do Direito, do reforço institucional e da inovação tecnológica”, tendo já sido definidas algumas ideias em Planos Quinquenais aprovados por Pequim, destacando-se ” necessidades a médio prazo, especialmente até 2035, quando se espera que a Civilização Ecológica, na sua forma básica, esteja totalmente implementada para a modernização da RPC”.

21 Fev 2025

Mark O’Neil lança obra biográfica sobre Liang Sicheng e contributo para a arquitectura chinesa

Mark O’Neill, jornalista e autor a residir em Hong Kong, publicou uma biografia de Liang Sicheng, responsável por documentar a arquitectura chinesa antiga, e que durante a Revolução Cultural foi alvo de perseguição política. O livro escrito pelo autor de origem inglesa, lançado pela editora Joint, intitula-se “Liang Sicheng: Guardião da História Arquitetónica da China”

 

Quando teve contacto com a figura de Liang Sicheng?

Quando vivi em Pequim interessei-me pela parte antiga da cidade, pois era como nenhuma outra no mundo. Liang Sicheng disse o seguinte sobre esta parte antiga de Pequim: “O traçado geral mostra o sistema tradicional das cidades históricas da China, sendo resultado da geografia, condições políticas e económicas das dinastias Yuan, Ming e Qing. Exprime também uma gestão artística que conduziu a um elevado nível de sucesso. Serviu bem a era feudal e serve também muito bem a vida na nova era. Pode ser a capital da nova era. Isto não impede de forma alguma um bom desenvolvimento. Toda esta criatividade ao longo de muito tempo deixa-nos orgulhosos”. Na década de 1950, Liang e um colaborador elaboraram uma proposta de 25.000 caracteres para a construção de um novo centro administrativo na parte ocidental da cidade, para albergar todos os ministérios e edifícios oficiais e deixar a cidade antiga como estava. Mas o novo Governo rejeitou esta proposta e demoliu a maior parte da cidade antiga. Construiu a sua nova capital no centro da cidade antiga. Isso partiu o coração de Liang e da sua esposa Lin Huiyin. Em Pequim, conheci a segunda esposa de Liang, Lin Zhu. Ela explicou-me todos estes acontecimentos dramáticos. Foi um estímulo para escrever o livro. Tanto ela como a sua filha, Liang Zaibing, escreveram excelentes livros que descrevem tudo isto. Foram um material de investigação fundamental para o livro.

O que considera mais fascinante na carreira de Liang Sicheng?

Admiro muito os valores estéticos de Liang e o seu trabalho meticuloso na documentação dos edifícios antigos da China, 2.738 no total. Em 1944, no meio dos piores horrores da guerra do Japão contra a China, que matou muitos dos seus amigos e familiares, escreveu uma carta ao representante militar dos Estados Unidos da América em Chongqing. Fez uma lista de locais históricos em Nara, Quioto e Osaka, e propôs que fossem poupados à destruição pelos bombardeiros americanos. Que generosidade e sentido de humanidade extraordinários. Em 2009, Nara ergueu uma estátua em sua honra. Viveu durante a guerra anti-japonesa e as terríveis campanhas do início do período comunista. Mas manteve o seu sentido de missão: preservar os tesouros da arquitectura chinesa e formar uma nova geração de arquitectos e a Universidade de Tsinghua.

Quais as principais correntes arquitectónicas, ou edifícios específicos, que Liang ajudou a preservar ou a chamar a atenção?

Ele e a sua mulher [Lin Huiyin] documentaram 2.738 edifícios antigos, com medições preciosas, em chinês e inglês, e chamaram a atenção nacional e internacional para eles. Sem isso, muitos poderiam ter sido destruídos ou deixados cair no processo de degradação. Definiu as caraterísticas da arquitectura tradicional chinesa e descreveu os arquitectos e artesãos que a construíram.

Pode dizer-se que, enquanto intelectual, Liang Sicheng sofreu perseguições durante a Revolução Cultural. Em termos concretos, como foi esse período para Liang?

No capítulo 10, descrevemos a Revolução Cultural como o calvário de Liang, tal como o foi para milhares de intelectuais e funcionários do partido [Partido Comunista Chinês]. Liang viveu e trabalhou no campus da Universidade de Tsinghua. O Governo entregou o controlo do campus a guardas vermelhos frívolos. Liang era um alvo óbvio para eles porque tinha estudado nos Estados Unidos, falava inglês e tinha muitos amigos estrangeiros. A perseguição que sofreu foi tão severa que acabou por o levar à morte. Em 1966, a sua saúde já era frágil; tinha 65 anos. Foi obrigado a escrever “auto-confissões” e a assistir a sessões de crítica em massa. Os guardas vermelhos saquearam o seu apartamento. Mas ele não cometeu nenhum crime, era simplesmente um arquitecto e professor. As críticas eram absurdas.

Após os anos do regime de Mao, duas das suas obras foram publicadas. O que nos dizem sobre a arquitectura do país?

Após a morte de Mao e o fim da Revolução Cultural, foi reabilitado e as suas obras foram publicadas em chinês e inglês. O seu maior legado é a explicação da história da arquitectura chinesa, a análise dos edifícios antigos e das técnicas utilizadas para os construir. Um dos mais famosos é o templo budista Fo Guang Si, situado nas montanhas Wutai, em Shanxi. Liang Sicheng chamou a atenção do mundo chinês e estrangeiro para este legado.

Liang Sicheng foi um dos poucos arquitectos da época com formação estrangeira. Quais foram as principais influências reveladas nos principais projectos arquitectónicos da época?

Liang e a sua mulher, bem como um pequeno número de colegas chineses formados no estrangeiro, trouxeram de volta à China a arquitectura moderna. Ensinou-a na Universidade do Nordeste, em Shenyang, de 1928 a 1931, e na Universidade de Tsinghua, de 1945 até à sua morte, sendo que, durante a Revolução Cultural, estas aulas tornaram-se impossíveis. Este é outro legado importante – as centenas de arquitectos que formou e os livros didácticos que escreveu para eles. Na memória global da arquitectura chinesa antiga, o seu trabalho foi fundamental. Lançou os alicerces para a mesma. Desde então, muitos seguiram o seu exemplo na investigação, tanto chineses como estrangeiros.

Liang Sicheng, uma “vida extraordinária” devota à arquitectura

Segundo uma nota oficial sobre a obra, divulgada pela editora Joint Publishing, Liang Sicheng teve “uma vida extraordinária”. Filho de Liang Qi-chao, um dos intelectuais mais famosos da China, Liang Sicheng cresceu no Japão. Educado na Universidade da Pensilvânia, Liang também estudou em Harvard e foi muito influenciado pelos arquitectos e pela arquitectura americana.

Um dos poucos chineses do seu tempo com conhecimento profundo sobre arquitectura moderna, Liang Sicheng regressou à China em 1928 e passou mais de 12 anos a investigar a arquitectura da China antiga, continuando o seu trabalho mesmo durante os anos da Segunda Guerra Mundial, quando a China foi parcialmente ocupada pelos japoneses.

Publicou as suas descobertas em jornais chineses e ingleses, revelando ao mundo, pela primeira vez, a história, os conhecimentos e a beleza da arquitectura chinesa. Após a Segunda Guerra Mundial, leccionou na Universidade de Yale e foi o representante da China na concepção da nova sede da Organização das Nações Unidas (ONU) em Nova Iorque.

A vida pós-1949

Depois de 1949, permaneceu em Pequim como chefe do departamento de arquitectura da Universidade de Tsinghua. Projectou os principais edifícios do novo regime comunista, mas não conseguiu persuadir o Presidente Mao Zedong a preservar a antiga cidade de Pequim. Na década de 50, e nos anos da Revolução Cultural, foi severamente criticado.

Em Janeiro de 1972 acabou por falecer na capital chinesa. Com o fim da Revolução Cultural, a sua figura e reputação foram reabilitados e a as suas foram publicadas a título póstumo. Em 1984, a sua “História Pictórica da Arquitectura Chinesa” foi publicada em inglês por Wilma Fairbank, amiga do arquitecto e da sua esposa, e casada com o o sinólogo John Fairbank.

20 Fev 2025

Ricardo Clara Couto, autor do documentário sobre Francisco de Pina | O peso da culpa que persiste

“Francisco de Pina – O português que escreveu o futuro do Vietname” conta a história do padre jesuíta, nascido na Guarda em 1586, que fez a romanização do alfabeto vietnamita. O documentário, da autoria de Ricardo Clara Couto foi financiado pela RTP2 e exibido no Centro Científico e Cultural de Macau

Como se deparou com esta personagem da história portuguesa no Oriente?

O meu irmão, que se chama Filipe Pires, viajou pelo Vietname durante algum tempo e quando chegou da viagem disse-me que tinha de conhecer a história incrível do jesuíta Francisco de Pina que tinha feito a romanização do alfabeto vietnamita, proporcionando liberdade e independência culturais tremendas. Fiquei um pouco céptico no início, pois achei estranho ninguém conhecer isto em Portugal, mas comecei a minha pesquisa sobre o tema e descobri um estudo universitário de uma professora franco-vietnamita que dá aulas na Madeira. Confirmei então que a ideia que o meu irmão tinha trazido do Vietname estava correcta. A partir daí, tentei descobrir a origem deste padre, o trabalho que tinha efectuado, e perceber porque havia tão pouco conhecimento sobre Francisco de Pina em Portugal.

Além de ter sido missionário jesuíta, pode destacar alguns pontos biográficos que ajudem a compreender o seu legado?

No documentário não tive o tempo para conseguir fazer uma abordagem biográfica mais exaustiva. Foquei-me meramente na parte em que ele chega ao Vietname. Falamos de um homem com uma cultura incrível e com uma vontade de aculturar e ser aculturado. Um homem que era músico e foi mais fácil, com isso, aprender o vietnamita, que é uma linguagem de seis tons. No fundo, apesar de ser um padre jesuíta, tinha como primeiro desígnio a cultura e não tanto a religião. Isso, para mim, é um motivo de enorme admiração. Para ele o objectivo essencial da evangelização era secundário, porque, para ele, se não conseguíssemos compreender a cultura do Vietname, não conseguiríamos ensinar o povo vietnamita. Era mais importante aprofundar a cultura e a língua locais, fazendo-se entender para poder, a partir daí, explorar a parte mais religiosa. Foi também um homem que teve muita dificuldade quando chegou ao Vietname.

Porquê?

Houve algumas guerras internas perante alguns senhores locais das regiões que não concordavam com a missão dos padres. Isso não está explorado no documentário, mas de facto Francisco de Pina chegou a fazer algumas diligências [para a missão jesuíta], pois os padres não eram totalmente aceites em todo o lugar. Acabou por se refugiar num bairro japonês e, a partir daí, construiu a sua base.

Francisco de Pina, à semelhança do que acontecia com muitos jesuítas na época, fez formação em Macau, no Colégio de S. Paulo. De que forma foi influenciado por esse período passado no território?

Não há muita informação sobre esse tempo. Sabe-se que se formou, de facto, nesse colégio, tal como acontecia com muitos padres jesuítas na época, mas depois foi para o Japão. Só depois vai para o Vietname. Até aí, não houve nada de grande relevo na vida de Francisco de Pina, que seguiu o caminho normal. O Japão já estava a expulsar os padres jesuítas e é nesse contexto que vai para o Vietname. A única coisa de maior relevo desse período é que os 14 navios que saíram de Portugal para chegar a Macau nesse ano restaram apenas três, e o navio onde ia Francisco de Pina foi um dos que sobreviveu à tempestade.

Considera que o seu grande legado terá sido a romanização do vietnamita? Quais os grandes contributos deste processo em termos linguísticos?

É um contributo gigante. Se pensarmos que até na romanização da língua, o Vietname estava muito dependente do alfabeto chinês, e não conseguia ter independência cultural, linguística e económica também. Depois da romanização do alfabeto foi possível ao Vietname crescer nesses domínios e ter a sua própria identidade. O país cresceu imenso até aos dias de hoje, pois sem a escrita uma língua passa apenas para as novas gerações de boca em boca, e o legado de Francisco de Pina também se mantém até hoje. O povo vietnamita é muito agradecido a isto, e a prova é que há dois anos uma delegação da Fundação Vietnammese Language Foundation veio a Portugal e ofereceu um monumento à Câmara Municipal da Guarda (ver caixa) em homenagem a Francisco de Pina. Porém, fiquei surpreendido pelo facto de os vietnamitas, e falamos de académicos catedráticos, conhecerem bem a história, a figura de Francisco de Pina, existindo no país várias referências. Mas em Portugal é uma figura pouco conhecida.

Como explica isso?

Penso que isso terá a ver com a necessidade que Portugal tem de fazer a sua catarse sobre esse período da história. Portugal foi um país completamente diferente de África para o Oriente, e completamente diferente de África para as Américas. Mas, no entanto, existe este peso da culpa. Portugal não consegue falar sobre esse período do tempo, apesar de ter uma história riquíssima entre África e o Oriente, mas essa época não é muito abordada porque o país ainda não assumiu o que aconteceu e, por isso, não pode falar desse período. Por isso, ainda tanta coisa da riquíssima história de Portugal é desconhecida pelos portugueses.

Como foi o processo de pesquisa para o documentário?

Rapidamente cheguei ao estudo da professora Minh Ha Nguyen Lo Cicero, da Universidade da Madeira, e com ela fomos às raízes da língua vietnamita. Quando a descobri foi incrível, porque ela faz parte do triângulo de romanização do alfabeto vietnamita, por ser franco-vietnamita. Até há pouco tempo, a versão oficial que existia era de que Alexandre de Rhodes, jesuíta francês, tinha romanizado o alfabeto, registando-o depois no Vaticano e dizendo que era um trabalho em homenagem ao seu mestre, Francisco de Pina. Porém, o nome de Francisco de Pina desapareceu. Passamos, a partir daqui, à narrativa oficial francesa, nacionalista, de que a romanização do alfabeto tinha sido feita por franceses pelo facto de o Vietname ter sido uma colónia francesa. Depois cheguei também ao professor António Morgado. Os restantes contactos foram feitos no Vietname, de linguistas, professores universitários e especialistas no idioma, sobretudo na escrita, que depois integraram o documentário.

Como descreveria o Vietname da época de Francisco de Pina?

Era muito fragmentado. Eles têm uma cultura muito própria que existia através de uma escrita com hieróglifos chineses, mas lida em vietnamita, o que levava a que apenas 1 a 3 por cento da população soubesse ler e escrever. Com a romanização essa percentagem aumentou exponencialmente, e com isso a cultura desenvolveu-se junto das populações, uniu-as mais em torno de uma escrita comum. Penso que isso tornou o Vietname mais moderno e preparado para se integrar no resto do mundo ao ter uma língua mais acessível.

Sente que vai ajudar a desvendar esta parte da história de Portugal, bem como a história da própria missão jesuíta?

Espero que sim. Portugal parece que tem um certo medo e pudor em falar desta época, e a prova disso é que este povo vietnamita veio à Guarda oferecer um monumento e praticamente não saíram notícias sobre o assunto. Além disso, os representantes da delegação do Vietname ficaram um pouco admirados por não serem recebidos a nível oficial, à excepção do presidente da Câmara Municipal da Guarda. Eu, que fui convidado por eles a estar presente, senti um bocado vergonha alheia, pelo facto de o Vietname ter vindo a Portugal oferecer um monumento e isso ser encarado como um evento secundário, que não é. Seria importante dar a conhecer este padre e este feito ao país e ao mundo, até porque Portugal e o Vietname têm uma história cultural muito próxima e rica, tal como com o Japão e a China. Mas esta é uma vertente pouco conhecida do povo português e [este documentário] pode ser uma boa oportunidade para o país fazer a sua catarse.

Escultura de artista vietnamita lembra Francisco de Pina na Guarda

Em Novembro de 2023, a Fundação da Língua Vietnamita ofereceu à cidade da Guarda a escultura “Nova Estela”, do artista vietnamita Nguyen Huy Anh. A obra pode ser vista no jardim da Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço. Segundo uma notícia da agência Ecclesia, o evento decorreu no âmbito das celebrações do 824.º aniversário da atribuição de foral pelo Rei D. Sancho I à cidade. “Trata-se de uma homenagem, a título póstumo, ao padre Francisco de Pina, um sacerdote jesuíta nascido na Guarda, em 1586, cujo percurso religioso passou por uma missão no Vietname, onde viveu nove anos de intensa actividade missionária, de linguística e de interculturalidade”, referiu a Diocese da Guarda, em comunicado.

Segundo a mesma nota, o missionário Francisco de Pina foi o responsável pela introdução do alfabeto latino e sinais diacríticos na transcrição dos sons e dos tons da língua vietnamita, que utilizava, na escrita, caracteres chineses.

O padre embarcou há mais de 400 anos na Nau de Nossa Senhora do Vencimento do Monte do Carmo, tendo completado a formação no Colégio de São Paulo em Macau e recebido a ordenação sacerdotal em Malaca. Foi depois chamado para a recém-criada Missão dos Jesuítas da Cochinchina, zona que corresponde à parte central do Vietname actual. “Nunca mais veio à cidade onde nascera e regressou agora num barco esculpido em bronze por artistas vietnamitas trazido por mar do longínquo Vietname. A partir de agora, o Padre Francisco de Pina ficará na memória histórica da Guarda e dos seus habitantes, materializado neste barco que o trouxe de regresso à sua cidade, deixando lá bem longe o nome da Guarda, escrito também ele em letras de bronze”, concluiu a Diocese.

5 Fev 2025

Francisco Leandro, autor e professor na Universidade de Macau: “Apoio do país reforça o papel de plataforma de Macau”

Entrevista de Gang Wen ao jornal China Daily

Francisco Leandro, professor associado da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Macau, afirma que o apoio da nação permitiu à RAEM servir de centro de comércio, investimento e interações culturais entre a China e as comunidades de língua portuguesa.

 

 

Como vê o desenvolvimento de Macau desde o seu regresso à Pátria? Entre as realizações da cidade, quais as que mais o impressionaram? E quanto ao seu sector, houve algum progresso importante nos últimos 25 anos?

O 25.º aniversário do regresso de Macau à Pátria e da criação da Região Administrativa Especial de Macau constitui um marco significativo na história da região, reflectindo um processo diplomático bem sucedido e demonstrando a sua atual estabilidade política e económica. Actualmente, a RAE de Macau goza de estabilidade política e está profundamente integrada nos planos de desenvolvimento nacionais. A governação da cidade ao abrigo do princípio “um país, dois sistemas” permitiu-lhe manter um elevado grau de autonomia, ao mesmo tempo que se alinhava com as políticas nacionais. Esta integração facilitou o crescimento económico de Macau, tornando-o uma parte vital da estratégia económica mais ampla do país.

A estratégia de desenvolvimento socioeconómico de Macau está consagrada na política “um centro, uma plataforma, uma base”. Este quadro tem por objetivo posicionar a RAEM como um centro mundial de turismo e lazer, reforçando a sua atração como destino turístico global. Além disso, a RAEM funciona como uma plataforma de cooperação económica e comercial entre a China e os países de língua portuguesa, promovendo o comércio internacional e o intercâmbio cultural. A RAE de Macau está também a tornar-se uma base de intercâmbio e cooperação cultural, promovendo interações culturais e a conservação do património. Esta abordagem multifacetada apoia a integração de Macau nos planos de desenvolvimento nacionais e reforça a sua presença global. A posição única da RAEM como ponte entre a China, em particular a Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau, e os países de língua portuguesa sublinha a sua importância estratégica.

O conceito de “uma plataforma, três centros” realça o papel de Macau na promoção do intercâmbio económico e cultural. Esta plataforma permitiu à cidade servir de plataforma para o comércio, o investimento e as interações culturais, reforçando os laços entre a China e o mundo lusófono.

O desenvolvimento de Macau como um centro de turismo e lazer, juntamente com a promoção de quatro indústrias principais – convenções e exposições, indústrias culturais e criativas, medicina tradicional chinesa e serviços financeiros modernos – diversificou a sua economia. Estas iniciativas não só impulsionaram a actividade económica, como também reforçaram a atração global de Macau como destino turístico.

O governo central adoptou uma série de políticas para Macau. Existe alguma medida específica que tenha beneficiado o seu sector? Como?

O Interior da China e o Acordo de Parceria Económica Reforçada (CEPA) de Macau desempenham um papel crucial na Grande Baía e na promoção dos laços com os países de língua portuguesa. Ao promover a cooperação comercial e económica, o CEPA reforça a posição da RAEM como ponte entre a China e os países lusófonos. Este acordo facilita o acesso ao mercado, o investimento e o intercâmbio cultural, promovendo Macau como um centro de negócios internacional. Além disso, o CEPA apoia a integração de Macau na Área da Grande Baía, contribuindo para o desenvolvimento regional e a diversificação económica. Este papel estratégico sublinha a importância de Macau nas iniciativas económicas e diplomáticas mais amplas do país.

A promoção do ensino superior na RAE de Macau desempenhou igualmente um papel crucial no seu desenvolvimento. Ao investir na educação e na investigação, Macau contribuiu para os objectivos de desenvolvimento nacional e posicionou-se como um centro de excelência académica. Esta aposta na educação permitiu criar uma mão de obra qualificada, essencial para sustentar o crescimento económico e a inovação. A Universidade de Macau é altamente considerada nos rankings académicos globais. Foi classificada em 180º lugar no World University Rankings 2025 pela Times Higher Education, e em 245º lugar no QS World University Rankings 2025. Para além disso, a Universidade de Macau está classificada em 262º lugar nas Melhores Universidades Globais pelo US News & World Report. Estas classificações reflectem o compromisso da universidade com a excelência no ensino e na investigação, particularmente em áreas como a inteligência artificial, a engenharia e as ciências sociais. A forte colaboração internacional e a investigação inovadora da universidade contribuem significativamente para a sua estimada posição global.

Este ano assinala-se o terceiro aniversário da criação da Zona de Cooperação Aprofundada Guangdong-Macau em Hengqin. Na sua opinião, como é que Macau deve continuar a tirar partido das vantagens da zona para se desenvolver a si próprio e ao sector da educação?

A Zona de Cooperação de Hengqin é um dos principais objectivos dos esforços de modernização de Macau. Esta zona tem sido fundamental para impulsionar a inovação e a diversificação económica, proporcionando um espaço para novas indústrias e promovendo uma integração mais estreita com o continente. A zona exemplifica o empenhamento de Macau na modernização e o seu papel estratégico no desenvolvimento regional.

Macau é uma mistura única das culturas chinesa e portuguesa. Na sua opinião, como é que esta fusão pode ajudar a nação a reforçar a comunicação com a comunidade internacional e a contar as boas histórias da China?

Macau é uma mistura fascinante de culturas, onde o Oriente se encontra com o Ocidente de uma forma única e harmoniosa. A sua paisagem linguística é um testemunho da sua herança multicultural. O chinês é a língua oficial e a língua portuguesa pode ser utilizada para fins oficiais, reflectindo os laços históricos de Macau com Portugal e as suas raízes chinesas. O inglês é também amplamente falado, especialmente nos negócios e no turismo, o que faz de Macau uma sociedade verdadeiramente multilingue.

O sistema jurídico da RAEM é outro domínio em que esta mistura cultural é evidente. Baseado no sistema de direito civil português, foi adaptado ao contexto local no âmbito do princípio “um país, dois sistemas”. Este sistema jurídico duplo permite uma mistura única de tradições jurídicas chinesas e ocidentais, assegurando que o ambiente jurídico de Macau é familiar aos seus residentes e acessível às empresas internacionais.

A abordagem de Macau à resolução extrajudicial de conflitos comerciais realça ainda mais a sua política multicultural. A cidade oferece vários serviços de arbitragem e mediação que servem tanto as partes locais como as internacionais, promovendo a resolução eficiente e amigável de litígios. A política de cidade aberta e a atitude multicultural de Macau são a chave do seu sucesso como centro global. A cidade acolhe pessoas de todo o mundo, promovendo uma comunidade diversificada e inclusiva. Esta abertura reflecte-se nos seus festivais, na sua gastronomia e na sua vida quotidiana, onde diferentes culturas coexistem e se enriquecem mutuamente. Essencialmente, a mistura de línguas, sistemas jurídicos e atitudes multiculturais de Macau torna-a um lugar único e dinâmico, que estabelece pontes entre culturas e promove ligações globais.

Que realizações gostaria de ver concretizadas por Macau nos próximos 25 anos?

Em resumo, o futuro de Macau é brilhante, com uma maior integração com a China continental, o seu papel central no comércio internacional, um crescimento económico diversificado e uma forte presença global. Estes elementos assegurarão o êxito e o desenvolvimento contínuos de Macau na cena mundial. O 25.º aniversário do regresso de Macau à pátria celebra não só uma conquista diplomática bem sucedida, mas também as contribuições contínuas da região para o desenvolvimento nacional e mundial. As iniciativas estratégicas de Macau e a sua integração nos planos nacionais sublinham a sua importância como região dinâmica e virada para o futuro.

16 Dez 2024

António Antunes, cartoonista: “Às vezes considero-me um artista”

Chama-se António Antunes, mas assina os seus cartoons simplesmente como António. Há 50 anos que caracteriza a actualidade com recurso ao desenho e humor, grande parte deles no Expresso. Em entrevista, o cartoonista, que desenhou os tempos do pós-25 de Abril, lamenta que hoje os jovens cartoonistas não tenham tantas oportunidades de singrar na carreira

Já vai longa esta sua aventura de 50 anos dedicados ao cartoon. Alguma vez pensou que ia fazer isto durante tantos anos?

Não. As coisas foram acontecendo, e o resultado é este. Nem sequer havia perspectivas para haver um plano. Portugal não tem sido um país que favoreça muito este tipo de actividades.

Fez formação na Escola António Arroio ainda durante o período do Estado Novo. Como era aprender artes numa altura em que o país [Portugal] era tão cinzento, com limites à criatividade?

Aprendíamos sobretudo técnicas, de trabalho ou de composição. Agora a criatividade é outra coisa. Não só ela estava muito limitada, mas também não é algo que se venda. Não há cursos para fazer artistas, há cursos que nos dão noções sobre composição ou técnicas de pintura, ou cores. Mas só isso não chega. Depois é preciso que haja qualquer coisa além daquilo que é académico. Nas artes há sempre qualquer coisa que escapa mesmo que se aprenda tudo. A criatividade é uma coisa estranha, porque não há uma regra.

O António considera-se um artista?

(Hesita) Às vezes considero.

Já teve muitos cartoons polémicos, nomeadamente do Papa João Paulo II com o preservativo no nariz. Quais foram os cartoons que o obrigaram a fazer maior jogo de cintura ou a lidar com mais pressões?

Se calhar é uma felicidade minha, mas os meus problemas nunca são a priori, mas sim à posteriori. Até agora não tenho sido muito limitado naquilo que posso fazer no jornal [Expresso]. Agora, quando as coisas saem, às vezes têm consequências. Em Portugal foi a questão do preservativo no Papa, internacionalmente foram outras coisas. Esse cartoon continua a mexer.

Como foi lidar com toda essa polémica?

Esse cartoon [do Papa João Paulo II] foi polémico porque quiseram que assim fosse. Aquilo saiu muito bem e não gerou nenhuma algazarra. Depois houve um movimento conservador no seio da Igreja que quis fazer daquilo uma polémica, três semanas começaram a empolar aquilo, a fazer um abaixo-assinado. O homem que liderava as forças católicas disse esperar um milhão de assinaturas, mas, felizmente, conseguiu apenas 29 mil, e a diferença fez com que a montanha nem um rato parisse. Chegou a ser discutido na Assembleia [da República]. É uma polémica um bocado pífia, mais ainda, 30 anos depois, quando a própria Igreja está a mudar o seu ponto de vista sobre essa matéria, nomeadamente com este Papa [Francisco], felizmente. Perante o que me levou a fazer esse cartoon, voltava a fazê-lo. As declarações do Papa na altura foram públicas, não foram sequer ocultas, dentro de muros, e falou para todo o mundo, portanto, também para mim. Senti-me lesado, que aquilo não fazia sentido nenhum. Acho que a atitude do Papa, naquele momento, foi criminosa, no pico da Sida e, em África. Foi de uma insensibilidade e insensatez enormes.

O cartoon é uma arma de arremesso, uma forma de expressão?

Arma de arremesso é uma expressão dura de mais, mas o cartoon é, de facto, a forma de eu me expressar. Há colegas meus que fazem artigos, mas eu faço desenhos.

Que outros cartoons destaca, por aquilo que lhe trouxeram?

O primeiro que me sensibilizou foi aquele que me fez ganhar o maior Salão do mundo de cartoon na altura [Grande Prémio do XX Salon International de Cartoon, Montreal, 1983], a partir deste cantinho que é Portugal. Um Salão que tinha mais de mil participantes, e ter ganho foi muito bom. Fiquei mais seguro, confiante, porque a partir daí podiam continuar a fazer-se coisas. Esse primeiro cartoon também deu polémica, o “Gueto de Varsóvia em Shatila”, em que utilizo a fotografia conhecida do gueto, de um miúdo judeu de mãos levantadas, acossado por soldados nazis, e no cartoon o miúdo é palestiniano e os soldados israelitas. [A polémica deu-se] com todas as vozes dos judeus, que são peritos nisso, a fazer muito barulho, com um certo tom de vitimização, mesmo que sejam eles a atacar. Um director do Salão disse que tentou alterar a votação, tal é o peso do lobby judaico, mas não conseguiu.

Esse cartoon poderia ser hoje desenhado novamente.

Já o publiquei novamente. Infelizmente não está desactualizado.

Mas sente que muito do que desenhou, sobre a actualidade, se repete, num sinal de que a História é cíclica?

Há uma resistência à mudança. Um dos méritos do cartoonista é ser capaz de ver antes do tempo, ou em cima do tempo, se quiser. Tenho a invasão da Crimeia feita em 2014, e assumo aquela visão. Foi em cima, e outros fizeram mais tarde. Há outros exemplos.

Começa a fazer cartoon a seguir ao 25 de Abril de 1974, ali um pouco no rescaldo da Revolução. Sente que, de certa maneira, inaugurou a disciplina do cartoon político em Portugal?

Talvez. Mas não sou muito claro em relação a isso, porque antes de mim houve um grande desenhador, o João Abel Manta, um gráfico fantástico, que tinha uma diferença enorme em relação a nós, pois éramos miúdos e ele já tinha uma cultura que lhe permitia isso. Mas há um lado menos bom, pois ele fazia propaganda política. Era um homem do Partido Comunista Português (PCP), e fez essa propaganda até onde a Revolução o permitiu. Depois quando as coisas se estabilizaram, ele saiu e foi fazer outras coisas. Isso não lhe retira a qualidade, mas não é a minha noção de cartoon. Respondo aos vários estímulos dos acontecimentos de outra forma. O cartoon permite-me expressar as opiniões, mas ser capaz de o fazer em diferentes sentidos da vida, perspectivas, sem estar prisioneiro, como ele ficou prisioneiro do PCP, foi uma coisa que me ajudou muito.

Alguma vez sentiu alguma pressão da parte dos jornais onde colaborou?

(Hesita). Algumas coisas, mas não são importantes. Uma coisa que consegui, sem grande esforço, foi fazer com que as pessoas pensassem que eu tenho um mau feitio danado, e que era melhor não se meterem comigo. Isso ajudou, porque pensavam duas vezes antes de falar comigo. Uma vez no Expresso, um tipo do desporto encomendou-me uma capa, e começou a dar dicas de como eu devia fazer o desenho. Até que lhe perguntei se alguma vez eu lhe tinha dito como escrever uma notícia. Isso deve-lhe ter ficado na memória muitos anos, e deve ter repercutido essa conversa noutras pessoas. Não frequentava o Expresso, sempre estive no meu canto e não me desgastava com o dia-a-dia, com amizades e inimizades.

Costuma desenhar aqui, no atelier?

Aqui. Mas isso [a imagem de mau feitio] de facto ajudou-me. E há também a história de eu ter outra profissão. Costumo dizer que tive mesmo duas profissões, pois era cartoonista e designer gráfico, e aí tinha clientes meus que também o eram do Expresso, nomeadamente A Tabaqueira. Era amigo do director comercial, um tipo comodista, que me metia a negociar contratos com o jornal em nome de A Tabaqueira. Portanto, eu transmitia uma imagem efectiva de poder que, na verdade, não tinha. Se juntar um tipo que tem mau feitio a um tipo que, aparentemente, tem poder, é uma chatice (risos).

Quando lhe pergunto sobre as pressões, penso no período logo a seguir ao 25 de Abril, anos de 1974-1975, em que tudo era politizado. Aí eram maiores?

Consegui lidar com isso. Nesse período do PREC (Processo Revolucionário em Curso) tinha mesmo um cartoon sobre o PREC que durou dois anos. Foi uma espécie de fuga para a frente. Havia uma grande confusão, e, acho eu, isso interessava ao meu jornal [Expresso], embora isso nunca tenha sido dito. Dava uma ideia de frescura do jornal em relação a um período complexo, mas nunca me disseram isso. Tenho a ideia dessa utilidade do cartoon, era a forma de consolidar a independência do jornal em relação aos acontecimentos, mesmo quando às vezes não havia essa independência.

Estamos hoje numa era do politicamente correcto, em que tudo parece ofender?

Não sinto, porque não quero sentir. Cheguei a uma fase da minha vida em que se não me quiserem aturar, não aturem. É fácil. Tudo o que foi uma luta para impor um nome e um ponto de vista, uma carreira, já foi feito. Pode ser melhorado e consolidado, mas se não for, não é. Se me tornar muito inconveniente para o jornal onde trabalho, e quero acreditar que isso não acontece…

Mas em termos gerais, às notícias, comentários nas redes sociais, sente que há o politicamente correcto?

Claro que há. A minha situação é de excepção. Os mais novos, no mundo do cartoon, não têm oportunidades nenhumas. Têm menos do que quando comecei. Por vários acasos da vida tenho uma posição que se solidificou, mas isso não é exemplificativo do que se passa ao redor. Os novos cartoonistas estão cheios de problemas, não há espaço para eles, não há meios de pagamento. São empurrados para sair dos jornais, e não para entrar.

O cartoon não tem lugar nas redes sociais?

(Hesita) Pode aparecer, mas não me parece… diz-se que o jornalismo está a morrer e nós, cartoonistas, vamos primeiro. Acho que essa é a tendência. O jornalismo tem vindo a perder poder face às redes sociais, com a opinião anónima, que não se pode escrutinar, é muito mau e medíocre. E isso vai crescer.

E a Inteligência Artificial (IA)? Pode substituir o cartoonista.

Essa nem falo porque não conheço os limites, mas intuo que devem ser terríveis. Pode de facto substituir o cartoonista, mas aí subverte-se a criatividade.

Há alguma figura pública que goste particularmente de retratar em cartoon?

Outro dia disse que, em relação ao Trump, tinha dois sentimentos antagónicos: como cidadão, acho o homem detestável; mas como cartoonista é a minha matéria prima. O Putin também é bom. Todos os homens com muitas narrativas e muito poder são susceptíveis de dar boas coisas do ponto de vista da análise de um cartoonista. São políticos com um discurso muito claro sobre o que pretendem e o que querem, e isso pode ser bom para o cartoon.

Como se sente por ir a Macau novamente?

A exposição [no Clube Militar] vai ser diferente das outras, com 160 trabalhos. Ainda é muita coisa. É uma viagem por estes anos, pela política portuguesa e internacional também. Estou cheio de curiosidade, promover a mostra, ver o que me perguntam, mas isso faz parte do jogo.

A imprensa de Macau não tem uma grande presença do cartoon, à excepção do Rodrigo [Rodrigo de Matos].

Conheço-o, dou-me bem com ele. Mas devo dizer que o fenómeno é parecido com Portugal. O que é que temos aqui? Eu, no Expresso; a Cristina Sampaio no Público; o André Carrilho saiu do Diário de Notícias; o António Maia no Correio da Manhã e pouco mais. Essa é uma tendência geral. Às vezes, e acho que isso aconteceu comigo, há momentos em que um cartoonista pode representar uma mais valia para o jornal, mas são apenas alguns momentos em que isso pode acontecer. No meu período mais complicado no Expresso, no final da década de 70, um jornal de referência que, à época, estava num país em convulsão, com alguma “irresponsabilidade” pude ir à frente, e tenho a percepção que ajudei o jornal a desembaraçar-se dessas limitações. Mas tal acontece em períodos muito específicos. Nessa fase [do pós-25 de Abril], cheguei a fazer desenhos à noite que, de dia, estavam já desactualizados.

Tem mesmo mau feitio ou é só para disfarçar?

Sou tímido, mas ando a tratar-me. (risos) Nunca foi algo que me tivesse bloqueado, falo bem em público. Sou um tipo que não gosto de correr riscos estúpidos. Estou neste prédio há vários anos e conheço apenas a porteira porque tem de ser, e não quero ter o risco de ter uma pessoa antipática a quem dei confiança. Faço isso com a maior naturalidade.

Exposição no Clube Militar

Depois da palestra na Fundação Rui Cunha, esta quarta-feira, António estará hoje na Universidade de São José a falar com alunos no workshop “Desenho Cartoon: Criação de Ideias”. Segue-se esta sexta-feira a inauguração da exposição no Clube Militar, que ficará patente até 2 de Janeiro.

12 Dez 2024

Ben Lee, analista de jogo, sobre as novas concessões: “Precisamos de algo grandioso”

O analista de jogo e consultor Ben Lee acredita que é preciso fazer muito mais para diversificar a economia de Macau para lá do jogo, sobretudo tendo em conta o tipo de eventos organizados ao abrigo das novas concessões. O analista acha que Macau poderia olhar para dois resorts no Vietname como exemplos a seguir para atrair turistas internacionais

 

Que balanço faz dos dois anos de novas concessões de jogo?

Ainda há muito trabalho a fazer. Pelo que pudemos ver até agora, as concessionárias concentraram-se em projectos mais ligeiros, como galerias de arte locais, eventos culturais, a realização de concertos e pequenas reabilitações de bairros culturais. Os grandes projectos, como o parque de diversões de alta tecnologia, o Conservatório ou novos hotéis ainda não foram vistos. Uma vez que já passaram dois dos dez anos [de concessão], e tendo em conta que a construção de alguns destes projectos deverá demorar vários anos, parece que será necessário adiá-los. As receitas do segmento não-jogo, em percentagem de receita bruta obtida pelas concessionárias, parecem ser superiores às de 2019, mas diminuíram nos últimos dois anos. É possível que voltem nos próximos dois anos a situar-se entre os 10,5 e 11 por cento verificados em 2019.

Recentemente, Ho Iat Seng agradeceu às concessionárias o cumprimento dos contratos e a colaboração no desenvolvimento do segmento não-jogo, reiterando que conseguiram obter alguns lucros durante a pandemia. Acha que foi justo nas suas palavras?

Os casinos estão a fazer esforços para desenvolver o segmento não-jogo, mas, mais uma vez, a maior parte desses esforços estão focados em eventos mais ligeiros, de menor nível. Não vemos grandes ideias como a esfera de investimentos de 2,3 mil milhões de dólares que vemos em Las Vegas, por exemplo. Se tal acontecesse, iria enquadrar-se facilmente nos compromissos de 15 mil milhões de dólares prometidos pelas concessionárias [aquando da assinatura dos novos contratos]. Poderíamos falar também da ideia de fazer uma competição de Fórmula 1 na rua, como se viu em Singapura e recentemente também em Las Vegas.

Como analisa a recuperação das operadoras em termos de receitas do jogo nos últimos meses?

A recuperação do jogo em Macau tem sido extremamente boa, prevendo-se que o sector recupere para cerca de 78 ou 79 por cento dos níveis registados em 2019.

A Sociedade de Jogos de Macau (SJM), por exemplo, foi uma das operadoras de jogo com maiores dificuldades em termos de cash flow durante a pandemia. Considera que a sua recuperação, em comparação com os outros cinco, foi positiva?

A SJM teve dificuldades no início, mas parece estar, finalmente, a fazer alguns progressos. Mas ainda terão alguns desafios para reposicionar o seu “hardware” [instalações e demais empreendimentos] no futuro.

O que podemos esperar do novo Governo de Sam Hou Fai para a área do jogo?

O Chefe do Executivo eleito parece estar a tentar garantir que as operadoras honrem os seus compromissos. Os seus dois mandatos irão, provavelmente, cobrir os próximos oito anos das novas concessões. Penso que, em última análise, tudo se vai resumir a saber se ele consegue motivar os vários aparelhos governamentais a executar a sua visão e missão.

No âmbito dos novos contratos, como vê a evolução global do sector do jogo?

Em 2019, a percentagem das receitas do segmento não-jogo em comparação com as receitas do jogo atingiu 10,5 por cento. Essa percentagem subiu para 22 por cento durante a covid-19, e desde então tem caído gradualmente para 13,5 por cento, segundo dados do terceiro trimestre deste ano. Essa percentagem vai continuar a diminuir à medida que as receitas de jogo continuarem a crescer. Nos últimos tempos, temos visto os residentes de Macau e Hong Kong a dirigirem-se para o norte [China] para pouparem dinheiro. A questão que se coloca é porque é que os habitantes do continente iriam descer e fazer o inverso? A solução, tal como prevista pelas autoridades, é que Macau precisa de diversificar o mercado [de turistas e jogadores] que vem do continente. Isso faz todo o sentido em termos de lógica, mas a realidade é que os nossos esforços parecem estar a regredir. Os visitantes provenientes de fora da grande China representavam 7,8 por cento do total de visitantes de Macau, mas diminuíram para 6,5 por cento até final de Setembro deste ano. Isto remete para os eventos de cariz ligeiro que têm sido organizados que, de longe e em grande parte, são realmente orientados para os chineses que, afinal, constituem a maior parte da nossa fonte de receitas.

Como se pode dar a volta a esse panorama?

Voltando ao início, penso que precisamos realmente de algo grande, icónico, semelhante à esfera que se vê em Las Vegas ou até mesmo algo parecido com o projecto da “Ponte Dourada” em Da Nang, digna de aparecer no Instagram, ou a “Ponte do Beijo”, em Phu Quoc, ambos no Vietname. O facto de estes projectos terem sido construídos por um grupo local ligado ao sector hoteleiro, sem qualquer ligação aos lucros provenientes do jogo, demonstra criatividade e perspectiva de longo prazo em termos de planeamento.

Luta de classes

Ben Lee alertar para o perigo de mercado de massas “fugir” de Macau

A conversa com Ben Lee surge no contexto de uma palestra que protagonizou, recentemente, sobre os dois anos das novas concessões de jogo. Promovida pela Câmara de Comércio França-Macau, a sessão teve como nome “Macau New Gaming Landscape: Two years into concessions, what now?”, tendo o analista e sócio-gerente da IGamiX Management & Consulting defendido, segundo o portal Asian Gaming Brief (AGBrief), que o jogo VIP não terminou por completo, estando assim a ser alvo de uma nova classificação.

Segundo o AGBrief, citando palavras de Ben Lee, “o jogo de massas incorporou o mesmo escalão [de jogadores] que foi tão abertamente criticado pelo Governo”, mas que as operadoras “estão a mudar o seu foco para o acomodar”.

O analista realçou o “recente foco na transformação de quartos de hotel mais antigos e pequenos em opções de luxo, com todas as operadoras a compreender a necessidade de obter qualidade em vez de quantidade”.

Porém, defendeu que “o foco no segmento de luxo continua a criar um impasse”, pois “há muito que Macau se concentra em aumentar o número de visitantes para poder aumentar as receitas”, mas o modelo de negócio “vai contra a necessidade de aumentar as despesas por pessoa”.

Ben Lee alertou também para o facto de muitos turistas poderem, de facto, começar a optar por outros destinos com preços mais em conta. O analista defendeu que os jogadores de massas “não podem ser ignorados”, pois continuam a ser “o principal motor” do sector. “Os preços exorbitantes dos quartos de hotel podem constituir uma ‘barragem’ para o aumento de visitantes”, pois, conforme sugeriu, “os apostadores podem ir para outros locais de férias, como a Tailândia, se o preço não for bom”. Este país asiático “está a crescer e espera-se que ultrapasse Singapura em termos de receitas brutas”, numa altura em que os tailandeses trabalham na nova legislação sobre o jogo.

“Esperam aprovar a sua lei do jogo em Maio do próximo ano. Partindo do princípio que isso acontece, há três a cinco anos para construir um resort integrado ou empreendimento. Poderão estar a funcionar consideravelmente antes da abertura do Japão”, indicou Ben Lee.

Ainda em relação ao mercado de jogo na Ásia, o analista destacou que os apostadores asiáticos irão concentrar-se nos futuros mercados de jogo da Tailândia e Japão “enquanto aproveitam as actuais ofertas em Macau, Singapura e Filipinas”, escreveu o AGBrief.

3 Dez 2024

Miguel Gomes, realizador: “O cinema não é um tribunal”

Molly e Edward têm casamento marcado, mas na hora de ir buscar a noiva ao comboio, Edward decide fugir, iniciando a “Grand Tour” pela Ásia. A película é um dos filmes de Miguel Gomes exibido no Festival de Cinema entre a China e os Países de Língua Portuguesa, que está a decorrer até 13 de Dezembro, dia em que é exibido “Grand Tour”

 

É um dos realizadores em foco neste festival de cinema que decorre em Macau. Como se sente pela oportunidade de mostrar o seu mais recente filme, “Grand Tour”, nesta região?

Poder mostrar o filme em qualquer sítio do mundo é sempre um objectivo para alguém que quer fazer filmes, pois estes só existem a partir do momento em que são vistos. O filme tem uma relação com a Ásia e a China. Foi comprado para Hong Kong, e não sei se será exibido comercialmente no território e quais são os planos dos distribuidores. Independentemente deste festival em Macau, o filme terá visibilidade nessa parte da China.

O filme é uma homenagem ao cinema antigo, pelo menos foi assim que o encarei.

Não. Acho que o cinema não precisa de ser homenageado, pelo facto de a história do cinema ser um património que homenageamos vendo-a. É muito importante que essa memória continue a fazer parte das nossas vidas e que os filmes possam ser exibidos. Em Lisboa temos a sorte de ter uma cinemateca muito competente e forte e que cumpre essa missão. O cinema de hoje está vivo, apesar de não ter um papel social tão forte como teve no século XX, e acho que não precisa de homenagens. O “Grand Tour” é um filme de hoje, mas digamos que tem a memória de outros filmes que foram feitos. Não pretendo homenagear o cinema, mas sim explorar o potencial que ele tem, fazendo duas coisas muito diferentes.

Quais são?

Uma delas terá a ver, de facto, com a história do cinema e do seu património histórico, que ligo ao trabalho em estúdio. Isso é uma coisa que o cinema fez muito, inventar mundos que não são o nosso mundo real. Por outro lado, quis captar a realidade, pois o cinema também tem esse potencial de colocar a câmara à frente de pessoas, filmar acontecimentos, lugares e poder registar isso.

Quando me refiro a essa homenagem ao cinema antigo refiro-me à presença de uma certa maneira de filmar que já esteve em voga. Queria misturar elementos cinematográficos antigos e contemporâneos?

Queria trabalhar com a Ásia fabricada, que nunca existiu, que o cinema criou.

Com a visão ocidental da Ásia.

A visão que os americanos e europeus criaram. Grande parte do cinema americano foi inventado por europeus, gente como [Josef von] Sternberg, que saiu da Alemanha e terá sido o expoente máximo de um autor de cinema que trabalhou com uma imagem da Ásia romantizada.

E filmou em Macau, inclusivamente. [O filme “Macao”, de 1952]

Exacto. Queria trabalhar com esse imaginário, tentando criar um diálogo em que pudéssemos sair para fora do estúdio e estar numa Ásia que correspondesse a um tempo colonial em muitos daqueles países, mas que depois, noutros momentos, pudéssemos estar num tempo presente. Esse tempo seria o futuro das personagens, já num outro tempo histórico pós-colonial.

“Grand Tour” era o nome dado ao percurso que então muitos ocidentais faziam para descobrir uma certa Ásia. Para fazer o filme presumo que tenha sido necessária alguma pesquisa histórica. Como foi esse processo?

Não lhe chamaria uma pesquisa muito profunda, porque não era esse o objectivo. [O “Grand Tour”] não é um filme de cariz sociológico, é uma fantasia de cinema. Está mais desse lado do que do lado sociopolítico, digamos assim. O ponto de partida foram duas páginas de um livro de viagens [o conto ‘Mabel’, de W. Somerset Maugham], que nos deram esse itinerário. A situação descrita [no conto] corresponde àquilo que vemos no filme, com um casal de noivos, com ele a viver na Birmânia e ela a regressar de Londres. Ele entra em pânico e foge no dia em que é suposto ir buscá-la ao cais de Rangum. O casal faz então esse itinerário, sendo que no livro ela consegue apanhar o noivo e casam-se, mas no filme é diferente.

Presumo que seja difícil comparar filmes. Mas entende que o “Grand Tour” marca uma viragem na sua carreira relativamente a produções anteriores?

Acho que não. É um filme pessoal, como todos aqueles que tive oportunidade de fazer. É pessoal no sentido em que não me foram impostas limitações ou qualquer caderno de encargos do produtor. Pude fazer exactamente o que queria. Vejo elementos comuns deste filme a outros que fiz. Acho que se insere numa continuidade do meu trabalho. Houve depois a questão da recepção do filme e do facto de ele ter ganho um prémio em Cannes [o de Melhor Realizador], o que obviamente me ajuda a continuar a trabalhar e ter uma receptividade mais favorável neste momento.

É um grande reconhecimento.

Antes de fazer este filme estava a tentar fazer outro no Brasil, uma adaptação do livro de Euclides da Cunha, “Os Sertões”, e é um projecto complicado, que envolve uma grande logística de produção. No período em que estava a tentar fazer o filme foi difícil [continuar] por várias razões, e uma delas chama-se Jair Bolsonaro [ex-Presidente do país]. Hoje estamos a retomar esse processo, de voltar ao filme. Houve uma altura de desânimo, em que pensei que tinha mesmo de abdicar do projecto, e hoje o processo de refinanciamento do filme está a avançar muito mais rapidamente. As perspectivas são mais animadoras.

Sente que o prémio ganho em Cannes é também do cinema português?

Espero que sim. Da minha parte, não tenho dúvidas de que aquilo que faço devo-o ao esforço de outros realizadores que filmaram antes de mim, e alguns deles continuam a fazê-lo. Eles tiveram de se confrontar com as características do nosso mercado e sociedade, conseguiram filmar num país onde não há indústria porque não há mercado para isso. Tiveram de lutar muito para poder filmar e fazer os filmes que fizeram. Reconheço uma experiência de identidade nesses filmes, revejo-me nisso, apesar dos filmes serem todos muito diferentes. Há, de facto, essa identidade na história do cinema português, talvez a partir dos anos 60, com o Cinema Novo, com produtores e realizadores que lutaram muito para poderem filmar. Fizeram filmes que, para mim, são muito importantes. Hoje em dia, com o sistema criado com a luta deles, é mais fácil para mim e para os meus colegas do que terá sido nos anos 60 e 70.

As condições políticas também eram outras, com menos investimento.

As condições políticas foram mudando ao longo do tempo, mas a vida deles também não foi fácil a seguir ao 25 de Abril de 1974. A forma como o cinema português se conseguiu impor e ganhar espaço para que existisse foi sendo travada em tempos históricos e interlocutores diferentes. E foi difícil.

Voltemos ao “Grand Tour”. Disse numa entrevista que a rodagem do filme foi “surrealista”. Que momentos que destaca dessa fase?

Quando disse isso referia-me a um momento específico da rodagem, na China, que foi muito surrealista. Esta ocorreu a milhares de quilómetros, estava em Lisboa porque não conseguia entrar no país por causa da covid-19. Depois de dois anos de espera para poder filmar, decidi que a única forma de fazer o filme seria ter uma equipa chinesa e eu estar em Lisboa e fazer a rodagem à distância. Estava num Airbnb no Areeiro, rodeado de monitores e a discutir aquilo que se deveria filmar com a equipa chinesa. Aí foi tudo muito surrealista, sim.

Alguma vez teve medo de não conseguir captar a essência do lugar, da cultura asiática, tendo em conta todas essas condicionantes?

Achava que a coisa não ia funcionar. Desconfio muito da técnica, sou bastante analógico, e achava que não ia funcionar. Para resultar tinha de ter a imagem em directo, dar um “acção” e um “corta” em tempo real, que pudesse ter a imagem geral, o que estava à volta no lugar além da imagem da câmara. Precisava de ter um sistema de comunicação que funcionasse com o director de fotografia e o responsável de câmara para lhe poder dar indicações na altura em que estávamos a filmar. Isso tudo foi possível, e fiquei espantado com isso. Por outro lado, a ideia de captar a essência do lugar, ou uma coisa mais profunda da cultura de um destes países, neste caso na China, parece-me um fardo demasiado pesado. Não era essa a minha intenção no filme, porque é algo impossível. Acredito que um filme é sempre o resultado de uma negociação entre alguém que olha e aquilo que existe para ser olhado. Há um lado subjectivo. Aquilo que nos interessa, que nos apela, que dialoga connosco e nos suscita o desejo de filmar pode existir na China, no Vietname, em África ou aqui na esplanada do café onde estamos. Parti para a Ásia como parti para a zona de Arganil para fazer um filme anterior, “Aquele Querido Mês de Agosto”.

Numa aldeia.

Sim, uma zona rural de Portugal, e não sei se olhava de maneira diferente numa situação ou outra. Há sempre qualquer coisa que acho bonito ou que me toca de maneiras diferentes. O que se passa em “Grand Tour” é uma série de desencontros, o do casal, mas parece-me que há também um desencontro entre aquelas personagens europeias na relação com o território. Parece que estão sempre desconectados do espaço onde habitam. Vivem um bocado numa bolha.

Mas o colonialismo também foi um pouco isso.

Sim. Concordo, acho que há pessoas que podem ver isso no filme, essa dissociação entre aquilo que as personagens estão a viver e aquilo que se passa em redor delas. Muitas vezes optámos por não traduzir o que se passava à frente deles para que o espectador ocidental possa estar tão intrigado e perdido como as próprias personagens. Também acho que, hoje em dia, há uma ideia, da qual discordo totalmente, que o cinema existe para corrigir a história e as injustiças todas do mundo. É também tarefa demasiado pesada para o cinema. Parece-me profundamente desajustado, porque o cinema não é um tribunal para julgar nem um espaço para punir espectadores e personagens, é outra coisa. Os filmes não têm de ser denúncias, prisioneiros de uma expectativa. Tentei fazer um filme onde a questão colonial pudesse ser tratada, mas sem ter de punir nem os espectadores, nem as personagens.

Qual era a sua relação com a Ásia ou a sua ideia de Orientalismo?

Quis trabalhar a ideia de que houve uma Ásia inventada e fabricada pelo olhar europeu, e tinha consciência que isso existiu e que tinha de trabalhar com isso no filme. O mundo da ficção, por outro lado, tem como uma das vertentes essa ideia de exotismo, independentemente da questão sociológica, de ter havido um olhar ocidental sobre o Oriente, quase como uma visão superficial desse mundo. Mas a ficção trabalha com estereótipos, e isso não é mau. É o cimento para depois fazer qualquer coisa com esses estereótipos.

Miguel Gomes na Cinemateca

Depois da primeira exibição ontem de “Aquele Querido Mês de Agosto”, a Cinemateca Paixão será o local para ver os filmes de Miguel Gomes seleccionados para a edição deste ano do Festival de Cinema entre a China e os Países de Língua Portuguesa. No próximo dia 8 é vez de “As Mil e Uma Noites – Volume 1, O Inquieto”, de 2015; seguindo-se “As Mil e Uma Noites – Volume 2: O Desolado” na terça-feira dia 10. Segue-se depois, na quarta-feira, 11 de Dezembro, o episódio da saga, com o nome ” As Mil e Uma Noites – Volume 3: O Encantado”. “Grand Tour” tem uma única exibição na sexta-feira, 13 de Dezembro.

29 Nov 2024

Vera Paz e Ricardo Moura, directores “D’As Entranhas”, sobre “Home Sweet Home”: “Mais ácido que doce”

A peça “Home Sweet Home”, uma produção da companhia d’As Entranhas, é apresentada hoje e sábado no Centro Cultural de Macau. Em entrevista ao HM, os directores artísticos Vera Paz e Ricardo Moura falam de um projecto sobre a mulher, a solidão, o espaço interior de cada um e os confrontos emocionais com que nos deparamos

 

Como surge o projecto “Home Sweet Home”, que tem uma grande ligação à literatura portuguesa, com textos de Adília Lopes, Maria do Rosário Pedreira ou Dulce Maria Cardoso?

Vera Paz (VP): Este espectáculo surgiu na pandemia, era para ter sido feito antes, a ideia surgiu quando estávamos todos confinados. Por várias razões o “Home Sweet Home” não foi executado na altura. É sobre uma mulher confinada em casa, que é uma casa prisão, um espaço íntimo e privado. Há uma transmutação desse universo [literário]. A escolha da Adília [Lopes] partiu sempre da obra dela, e depois temos a Dulce Maria Cardoso, que escreve sobre o lugar da mulher, com sentimentos e perdas, que é o que me interessa. [A peça] fecha um de três solos, que começa com o espectáculo “Medeia” [apresentado em 2020], depois “A Boda” [apresentado em 2021] e agora temos, em “Home Sweet Home” a completa solidão. A dramaturgia foi feita cozinhando os textos com estas obras, sendo uma ficção biográfica do meu universo como mulher e uma reconstrução das memórias da mulher na peça.

Ricardo Moura (RM): No meu caso fui confrontado com o texto quase no final. No processo de construção do texto, nas últimas semanas, temos transformado algumas coisas e feito algumas mudanças. Adorei o texto e gosto do universo das mulheres. É sempre um desafio tentar entrar na vossa cabeça e pensar como se podem fazer as coisas. Idealizei logo uma série de imagens que, na minha cabeça, faziam sentido.

VP: A mulher de “Home Sweet Home” é uma construção de várias. Mas mais do que uma peça sobre mulheres e o universo feminino, é uma peça sobre a configuração humana, o tempo, o que fica, o que vai e o que perdemos.

RM: Esta é uma mulher que está fechada numa casa, mas essa casa somos nós. É sobre o processo de mergulharmos em nós e perceber que, muitas vezes, o que acontece é que estamos fechados em nós próprios. Ainda é mais interessante porque desde 2020 temos vivido a solidão das pessoas, que tentam fugir para a frente, com recurso às redes sociais, do “wannabe”. Aqui, nesta peça, é o inverso, o tentar mergulhar na densidade de uma mulher e perceber como está fechada. Não queremos contar nenhuma história nem deixar uma mensagem, mas simplesmente contar um pedaço daquela pessoa. Esta peça é escrita por mulheres e feita por uma mulher, mas eu vejo esta questão de forma transversal, com homens e mulheres, pobres e ricos que passam por estas “prisões”. Às tantas, somos nós a nossa própria prisão.

Home sweet home antonio mil-homens

VP: Nunca sabemos o que se passa no espaço íntimo de uma casa, mas no caso deste espectáculo é um espaço-prisão, do qual ela nunca consegue sair.

RM: Mas o não sair dali não é uma coisa física. Não consegue sair das suas memórias, coisas, daquilo que gostaria de ter sido e feito, mas que não aconteceu.

Tendo em conta o adiamento da apresentação de “Home Sweet Home” ao público, como foi a evolução do projecto?

VP: Na pandemia tínhamos bastantes restrições, não conseguia ter os actores ou os encenadores em Macau. Mas o distanciamento [temporal] foi bom, porque na altura estávamos muito em cima do que estava a acontecer, e assim conseguimos ter uma certa respiração. O texto foi alterado, transmutado e foi sendo acrescentado, porque tinha uma certa dinâmica que agora já não fazia tanto sentido. Às tantas, a voz desta mulher é a mistura das vozes das mulheres [dos textos de Adília Lopes, Dulce Maria Cardoso e Maria do Rosário Pedreira], mas não se trata de um texto clássico com princípio, meio e fim. Não se percebe o que é da Adília Lopes ou da Maria do Rosário Pedreira, por exemplo.

RM: Nos ensaios, no dia-a-dia, vamos alterando coisas. É o nosso processo de construção. Nós, na nossa companhia, temos uma linha de espectáculo que queremos desenvolver, e que se baseia na ideia de que antes de começar já começou, e quando termina é como se continuasse. Poderíamos continuar numa espécie de espiral.

“d’As Entranhas” é a única companhia a fazer teatro de matriz portuguesa em Macau. Quais têm sido os maiores desafios?

VP: É difícil. Somos a única companhia, ou associação, que, em Macau, faz teatro em português. Não traduzimos as peças porque o espectáculo não é só o texto, mas também a música. Há uma parte plástica muito marcada, é uma obra viva que é muito visual. O facto de assumidamente não traduzirmos as peças faz com que às vezes não seja [fácil]. A comunidade portuguesa em Macau é cada vez mais pequena, mas queremos continuar e vou continuar a insistir. Para este espectáculo integrámos dois actores da companhia em Portugal. Não é fácil a distância, e as pessoas têm as suas vidas. O Ricardo desenvolve projectos pontuais em Portugal, e tentamos manter um intercâmbio. Em 2018 fizemos uma parceria, mas com a pandemia ficámos num hiato imenso. Para o ano iremos continuar com dois projectos, com actores de Macau e de Portugal, e queremos manter este fio condutor.

RM: Os nossos espectáculos vivem muito de um lado mais plástico, com imagens e emoções e daquilo que os actores provocam em nós. Se não existisse texto também seria possível fazer o espectáculo. Às vezes, as pessoas têm medo de arriscar e vir ao espectáculo por causa da barreira linguística. Nos anos em que não pude vir a Macau mantivemos a parceria e desenvolvi uma coisa que nos interessa, que é a junção de culturas. Os projectos que a Vera pensa desenvolver no futuro próximo giram muito em torno disso, em juntar actores de cá e lá. Agrada-me perceber como, face a um tema que queremos tratar, as várias culturas se juntam. Gostaria de trabalhar por Macau num futuro próximo. O próximo espectáculo vai ter bastantes pessoas.

Home sweet home

Como vai ser, em termos concretos?

VP: Programei, para o próximo ano, um dueto com dois actores de Portugal e um colectivo, e vai ser uma espécie de baile.

Como tem sido a ligação “d’As Entranhas” com os restantes grupos de teatro em Macau, de matriz chinesa?

VP: Não tenho forma de chegar aos grupos de teatro chineses. É difícil a barreira e estão fechados nas suas próprias coutadas. Não há associações profissionais, é tudo amador, não existe uma continuidade. Há cada vez mais grupos de teatro com experiência, mas não existem companhias profissionais em Macau. Temos a Comuna de Pedra, a única, creio, que se dedica inteiramente a projectos culturais. Depois temos o Conservatório, existem iniciativas, mas não há uma profissionalização do sector.

Este espectáculo terá algumas limitações em termos de idade. Alguma vez sentiram alguma pressão do Governo em relação aos conteúdos das peças que apresentam?

VP: Este ano, pela primeira vez, a Comissão de Classificação de Espectáculos [do Instituto Cultural] pediu-nos o texto e classificou a imagem do espectáculo, que está aconselhado a maiores de 18 anos e interdito a menores de 13. Mas isso tem mais a ver com a linguagem do que com a imagem. Não sinto pressão. O que sinto é que existe um maior cuidado da parte de quem financia para perceber o que de facto vai financiar.

Porquê o nome “Home Sweet Home”?

VP: Não é um lar nada agradável. O nome original do espectáculo era “Estar em Casa”, com referência à obra de Adília Lopes. Depois adaptei, mas na verdade é mais “Home Bitter Home”, mais ácido que doce. É um nome enganador, mas não tem de ser tudo explicativo e taxativo para as pessoas. Pensei na ideia de que, quando estamos sozinhos, só nós é que sabemos, e o nome remete para isso. Tem várias leituras, e nunca gostamos de dar uma só leitura, para permitir que as pessoas criem as suas próprias histórias.

RM: Para mim, o título surge como a ideia de “meu querido espaço”, o meu querido eu. O processo de isolamento das pessoas pode não ser mau e, às vezes, podemos perceber que temos uma fase boa em que somos nós próprios.

28 Nov 2024

António Branco, investigador da área da inteligência artificial: “Macau pode liderar”

Docente da Universidade de Lisboa, e cientista da área da inteligência artificial e processamento de linguagem natural, António Branco está em Macau para o 9º Encontro de Pontos de Rede de Ensino de Português como Língua Estrangeira na Ásia. O académico considera que Macau pode liderar no desenvolvimento de ferramentas de inteligência artificial

 

Quais os riscos e oportunidades do uso da Inteligência Artificial (IA) generativa no ensino de línguas?

É sobejamente conhecido que as novas tecnologias trazem benefícios que anteriores tecnologias não conseguiam assegurar, mas sabe-se também que a introdução de novas tecnologias tem o potencial de aprofundar a desigualdade entre os seus utilizadores se tal efeito não for mitigado com contramedidas. A tecnologia da IA, e em concreto na sua aplicação ao ensino da língua, não é excepção. Tem o potencial de fazer avançar mais rápida e eficazmente a aprendizagem da língua, mas estudos recentes vêm mostrar que pode também levar os alunos a uma desvantagem, que é o facto de não conseguirem ultrapassar essas suas desvantagens se não existir a devida mediação pedagógica na exploração destas tecnologias.

Desta forma, que medidas devem as escolas adoptar para melhor se adaptarem a este salto evolutivo?

Guardadas as devidas distâncias, ainda assim pode ajudar a analogia com o que aconteceu há cerca de duas décadas atrás, com o advento das novas tecnologias digitais e da internet. Nessa altura, e desde então, uma medida das mais importantes tem sido dar formação aos professores para que melhor possam tirar partido da tecnologia. Com o recente advento da IA, um novo impulso de formação dos professores é imperativo.

Além do trabalho como investigador, é também director-geral da PORTULAN CLARIN. De que se trata concretamente?

É uma Infraestrutura de Investigação para a Ciência e Tecnologia da Linguagem e pertence ao Roteiro Nacional de Infraestruturas de Investigação de Relevância Estratégica, sendo o nó nacional [em Portugal] da infra-estrutura internacional CLARIN ERIC. A sua missão é apoiar investigadores e inovadores, mas também professores e estudantes da língua cujas actividades dependem de resultados da Ciência e Tecnologia da Linguagem através da distribuição de recursos científicos, do fornecimento de apoio tecnológico, da prestação de consultoria e da disseminação científica. Os serviços de processamento da língua, por exemplo o conjugador ou os analisadores sintáticos, são disponibilizados gratuitamente e podem ser facilmente experimentados online na bancada da infraestrutura. Assim, fazem parte do portfólio de novos instrumentos de apoio ao ensino e aprendizagem da língua.

Está em Macau para participar num colóquio focado no ensino de português como língua estrangeira. Poderia o território tornar-se numa zona experimental para o desenvolvimento deste tipo de plataformas digitais?
Macau beneficia do efeito combinado da sua herança histórica que lhe confere a vantagem de ser um território que promove o multilinguismo, bem como da sua integração na área da Grande Baía, que o coloca no epicentro da inovação tecnológica. Mais do que uma zona experimental, Macau poderá liderar o desenvolvimento e a exploração da nova tecnologia de IA, e em muito particular a sua aplicação à tecnologia e processamento da linguagem natural.

Acredita que livros e manuais escolares como hoje os conhecemos poderão desaparecer e dar lugar a e-books e conteúdos feitos por IA? Ou haverá espaço para complementaridade?

O passado recente, de exposição a novas tecnologias disruptivas, ensina-nos que devemos ser prudentes a vaticinar a extinção de anteriores formas e práticas sociais e culturais. Por exemplo, o livro em papel foi declarado em extinção acelerada, mas afinal continua connosco com grande vitalidade, em complementaridade com outros tipos de suporte e canais de disseminação. Estou inclinado a pensar que o mesmo se vá passar relativamente aos benefícios da aplicação da IA no ensino. Acima de tudo, o que precisamos urgentemente neste momento é de desenvolver novas formas de mediação pedagógica que ajudem os alunos a tirar o melhor partido possível deste benefício. A IA, por si própria, tal como um navegador da web, não é uma ferramenta pedagógica, também em si mesmo uma chatbot não é um instrumento pedagógico, mas nas mãos e com a orientação dos professores pode certamente transformar-se num dos mais importantes meios de aprendizagem da língua.

Há possibilidade de uma maior conexão dos modelos “Albertina” e “Gervásio” de linguagem IA generativa, sistema por si coordenado em Portugal, com as instituições de Macau e o seu sistema de ensino?

A possibilidade de os modelos de linguagem de IA generativa desenvolvidos pelo nosso grupo de investigação, o “Albertina” e o “Gervásio”, poderem reflectir a realidade linguística e cultural de Macau encontra-se a ser trabalhada. Com o apoio de instituições de Macau, assim como do IILP – Instituto Internacional da Língua Portuguesa, há um corpus de texto de Macau que está a ser recolhido. Esse é um primeiro passo para se poder afinar os modelos. Muito gostaria que este encontro desta semana em Macau sobre o ensino da língua portuguesa na Ásia, possibilitasse encontrar mais parceiros para passos seguintes.

Os modelos “Albertina” e “Gervásio”

Se falarmos do desenvolvimento da IA em Portugal, o nome de António Branco surge nas últimas tendências e projectos. No caso da IA generativa, o cientista é coordenador dos modelos “Albertina” e “Gervásio” que integram o ecossistema dos grandes modelos de linguagem IA generativa. No caso dos modelos “Albertina”, que são codificadores de linguagem, foi acrescentado o modelo “Albertina 1.5B”; enquanto que aos modelos “Gervásio”, descodificadores de linguagem, foi acrescentado o modelo 7B.

Segundo o website da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, António Branco considera que este ecossistema de modelos de linguagem IA generativa “é crucial para a tecnologia da língua portuguesa e esta expansão representa um passo da maior importância na preparação da língua portuguesa para a era da IA”. O cientista acrescentou ainda que “estas classes de modelos estão na base de toda a gama de aplicações de IA generativa, incluindo as mais mediáticas, como os chatbots ou os tradutores automáticos, e sendo maiores, estes novos modelos têm melhor desempenho”.

Ainda segundo o mesmo portal, este ecossistema “é líder mundial em termos de grandes modelos de linguagem desenvolvidos especificamente para a língua portuguesa que são totalmente abertos e documentados”, sendo que o primeiro modelo Albertina foi disponibilizado em Maio do ano passado. Este foi “um marco histórico na preparação tecnológica da língua portuguesa para a era digital, ao ser o primeiro grande modelo de linguagem aberto desenvolvido especificamente para o português, para ambas as variantes”.

António Branco irá falar hoje, a partir das 10h, de todo este universo na sessão inaugural do 9º Encontro, promovido pelo Instituto Português do Oriente (IPOR), e que decorre até amanhã no Auditório Dr. Stanley Ho do Consulado-geral de Portugal em Macau e Hong Kong. O investigador irá partilhar o auditório com João Laurentino Neves, ex-director do IPOR e actual director-executivo do Instituto Internacional da Língua Portuguesa, que irá discorrer sobre “Tecnologias da língua e língua de tecnologias – O IILP na era dos conteúdos e dos dados”.

22 Nov 2024

Maria José de Freitas, arquitecta: “A nova identidade de Macau é um processo”

A arquitecta Maria José de Freitas é uma das convidadas do Fórum do Património Cultural da Zona da Grande Baía, que tem hoje início. Amanhã irá falar sobre o “património partilhado da Grande Baía”, que ao longo dos séculos recebeu muitas influências culturais. A arquitecta elogia a acção dialogante do Governo da RAEM e diz que a identidade de Macau está sempre em construção

 

O que se entende por património partilhado da Grande Baía?

O património partilhado é um grupo científico que existe no ICOMOS [International Council of Monuments and Sites] e que tem a ver com o património que, à época da sua construção, foi partilhado por diversas culturas. No caso de Macau, temos os portugueses que trouxeram na sua bagagem cultural gente de outros continentes, Tailândia, Japão e Índia, e que tinham um vocabulário arquitectónico e urbanístico que foi transmitido para o património edificado que hoje temos. Tudo isso continuou depois no período da Administração portuguesa. Podemos dizer que essa herança continua hoje quando são convidados arquitectos e urbanistas estrangeiros a fazer intervenções em Macau. Nesse aspecto, o território sempre teve um papel e ligação com um âmbito bastante vasto.

Temos ainda Hong Kong, que surge na altura dos grandes impérios [meados do século XIX], e que bebeu da influência cultural dos ingleses. Foi algo que se transmitiu numa arquitectura vitoriana também replicada em Macau e em toda a Ásia nessa altura.

E na China?

Em Cantão surgiu uma arquitectura neoclássica ocidental praticada por orientais, e que depois foi vivida por uma comunidade multicultural na sua génese. É uma arquitectura que, ao longo da sua existência, tem continuado a ser visitada e manteve uma narrativa que engloba a miscigenação cultural. É nesse sentido que falamos do património partilhado, sem que haja uma diferenciação de épocas. É assim que esse património é usufruído, dessa partilha, e é aí que entram os valores que levaram à classificação pela UNESCO do Centro Histórico de Macau. É importante frisar que algumas cidades mais recentes do Delta do Rio das Pérolas, como Zhuhai ou Shenzhen, também têm influências internacionais. As sociedades que pertencem à Grande Baía têm influências vincadas dessa multiculturalidade.

Que exemplos pode apontar?

Temos as Kaiping Towers [torres de vigia fortificadas, com vários andares, construídas em aldeias], que foram desenhadas por emigrantes por questões de defesa. Nas cidades, também mais recentes, de Zhongshan e Foshan, há uma influência ao nível urbanístico. Esta multiculturalidade, que é vivida e que é evidente, deve ser estudada e partilhada em termos de conhecimento e actuações. Existem pressões, até do ponto de vista das alterações climáticas e subida do nível da água do rio. Além dos sucessivos aterros construídos, que têm estrangulado as margens do rio, trazendo alguma poluição atmosférica. Todos esses factores afectam o património existente nas cidades portuárias e piscatórias, pelo que há situações comuns e que devem ser tratadas com uma visão regional e internacional. Há cidades portuárias em todo o mundo que sofrem estas vicissitudes e que tem centros históricos.

Como pode ser feita essa conexão?

Podem-se fazer estudos com resultados mais efectivos. Macau pode desempenhar um papel bastante dialogante dado o seu contexto histórico. Prova disso é fazermos este colóquio. O papel de plataforma de Macau sempre aconteceu desde o início da existência do território, porque sempre houve uma ponte entre a China e o mundo em redor. A China potencia Macau como locutor privilegiado com os países de língua portuguesa. O papel que Macau venha a desempenhar nas cidades da Grande Baía prende-se com esta ligação e abertura que o território sempre teve para acolher outras ideias e culturas.

A actual direcção do Instituto Cultural está alinhada com essa visão mais global em relação ao património?

Penso que sim, pela realização destas reuniões internacionais que me parecem bastante oportunas. Também pelo facto de a presidente [Delang Leong] ter ido a Portugal contactar universidades e com a Direcção-geral do Património, o que dá abertura e entrosamento entre o que está a ser feito em Macau e o conhecimento que se procura lá fora, e este é o caminho certo. Estou curiosa em relação ao contexto desta conferência internacional, para perceber o que os colegas de outras cidades vão dizer e o que têm para partilhar. Macau está a seguir o caminho de abertura, que é visível, e também com outras empresas, no que diz respeito à responsabilidade social corporativa, em que também está a ser feito um caminho faseado. Há novas áreas de conhecimento, culturais e de estudo. Não se pode fazer tudo a um tempo só e o IC está a fazer esse caminho.

No contexto da parceria com casinos para renovar algumas zonas da cidade há o caso da Rua da Felicidade e do Centro Comunitário Kam Pek. Acredita que o futuro do património não passa pela perda da história e memória colectiva.

Sim, isso está presente nas intervenções do IC, que tem tido essa situação bem presente em todos os diálogos que são feitos. Não penso que isso esteja em causa [uma possível perda da história e memória colectiva sobre os lugares]. Houve a questão do pavimento nas Casas-museu da Taipa, mas na altura não sabia o que estava a acontecer. Vi depois que houve uma intervenção em que foi criada uma faixa com granito que dá para percorrer com maior facilidade. Há que melhorar as situações para que sejam sentidas pela população da forma mais correcta possível. O IC tem de trabalhar em conjunto com as direcções de Serviço do Trânsito, Ambiente, Obras Públicas e com o Instituto para os Assuntos Municipais, porque está em causa a preservação da cidade. Há também a questão de existir um filtro em relação ao número de pessoas que visitam certos locais. Deve ser feita uma contagem do número de pessoas que visitam as Ruínas de São Paulo e aprovar medidas concretas sobre isso. Na Rua da Felicidade, algumas medidas implementadas foram revertidas [o fecho parcial da rua ao trânsito], foram apenas experiências. No princípio não se faz tudo bem ou mal, e vai-se balizando. É importante que, tanto o IC como a população, façam essa avaliação, incluindo os comerciantes que estão nos sítios, e os académicos. Toda esta metodologia pode depois ser partilhada com Hong Kong ou Shenzhen.

Defendeu há pouco a sua tese de doutoramento sobre o património de Macau. Conclui nesse trabalho que o território tem construído a sua identidade própria a nível patrimonial. Como tem sido feito esse caminho, e com que actores?

Concluí que Macau sempre teve em si uma identidade múltipla, com chineses, portugueses, macaenses, japoneses e todos os que aqui aportaram e encontraram a sua casa. Essa identidade múltipla era negociada entre portugueses e chineses, e também macaenses. As outras culturas que cá estavam também eram ouvidas.

De que forma isso se tem manifestado?

Com a protecção do Farol da Guia, por exemplo. São eles que elevam a voz e fazem interrogações. O Governo chinês classificou a culinária macaense e o teatro em patuá, há o conhecimento vasto de uma identidade abrangente, e sempre foi assim. Com a negociação dos novos contratos de jogo, após a transição, surgiram outras empresas de jogo que trouxeram outras culturas, com os americanos e neozelandeses que se interessam pela cultura do sítio. Com as novas licenças de jogo isso vai continuar, e Macau passou a ter um papel mais abrangente em termos de multiculturalidade do que tinha antes. Temos mais situações em confronto, mais manifestações culturais. A nova identidade de Macau é mais um processo do que propriamente uma definição, e está em permanente evolução.

Na tese apresenta algumas medidas para a defesa da herança cultural. Faltam técnicos no IC, arqueólogos, investimento público, para que se preserve mais a partir de novas investigações?

É importante que haja técnicos, e até de outros países. Não me parece importante que estejam sediados em Macau, pois podem trabalhar a partir de qualquer parte do mundo em regime de outsourcing. Importa é que o IC esteja ciente dessa situação e que haja uma abrangência cultural com conhecimentos vários vindos de diversas regiões do mundo. Cabe ao Governo fazer essa coordenação em conjunto com universidades de todo o mundo, porque este é um património também mundial.

No ensino superior local, à excepção talvez da Universidade de São José (USJ), não tem existido muito foco nas áreas da Arqueologia e História.

A Universidade Cidade de Macau e a USJ também promovem alguns encontros no âmbito da arquitectura, urbanismo e História, mas era importante que a própria Universidade de Macau (UM) tivesse mais cursos de doutoramento e pós-graduação relacionados com o património arquitectónico existente. Mas a UM está em expansão e pode abranger novos campos de intervenção, podendo existir mais parcerias com a Universidade de Coimbra, por exemplo.

Já existe um Plano de Salvaguarda do Centro Histórico. Entende que é necessário mais dinamismo por parte do IC, dado o atraso na sua publicação?

Os planos são revistos a cada cinco anos. O Plano demorou a aparecer e há algum desfasamento, pois alguns casos poderiam ter sido evitados se o Plano tivesse sido elaborado por altura da classificação do Centro Histórico, em 2005. Refiro-me à zona do Farol da Guia. Temo, porém, que quando os edifícios que estão a ser construídos na Zona A se perturbe a visualização do farol. Na Igreja da Penha a volumetria dos edifícios em volta veio a ser reduzida, o que mostra que a população está atenta, tal como o IC. Há também o caso de Lai Chi Vun e da preservação dos estaleiros. Elogio a visão do IC que tem dado voz a este incómodo sentido, e que depois vai respondendo de forma assertiva.

Falou da pressão das alterações climáticas. O que deve ser feito para lidar com a subida da água do rio?

Esse problema vem do século XIX, pois vários urbanistas vieram de Portugal para Macau e nunca conseguiram resolver o problema. O leito do rio foi sendo resolvido em virtude da construção dos aterros, e isso tem consequências. Devem ser feitos modelos conceptuais e diques de contenção. Mas esta situação engloba todo o delta, não é uma situação que deva ser pensada apenas em Macau.

Um Fórum, dois dias

O Fórum do Património Cultural da Zona da Grande Baía, organizado pelo Instituto Cultural, decorre hoje e amanhã. O tema principal dos debates será “Integração e partilha do património cultural na Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau”, tentando-se promover, com académicos e técnicos de várias cidades da região, um diálogo sobre o futuro da defesa do património. O evento terá lugar no Centro Cultural de Macau.

31 Out 2024

Rui Marcelo, novo conselheiro das comunidades portuguesas: “Quero ouvir as necessidades de todos”

Rui Marcelo é o homem que sucede a Rita Santos no Conselho das Comunidades Portuguesas depois da eleição em Lisboa, há cerca de duas semanas. O responsável promete ouvir os portugueses e trabalhar de perto com as autoridades locais. O mote da acção como conselheiro mantém-se: “fortalecer a ligação entre as comunidades no estrangeiro e Portugal”

 

Rita Santos deixou subitamente o cargo de conselheira que mantinha há muitos anos. Foi difícil aceitar o desafio de concorrer de forma repentina?

Substituir Rita Santos num cargo de grande responsabilidade, como é o de Presidente do Conselho Regional da Ásia e Oceânia, do Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP), é uma tarefa que exige não apenas dedicação, mas também um profundo compromisso com as comunidades que representamos. No entanto, este tem sido um trabalho conjunto que temos partilhado ao longo dos últimos dois anos e meio, altura em que fui convidado a incorporar um projecto que desse sequência ao excelente trabalho desenvolvido por José Pereira Coutinho, Rita Santos, e pelos meus ex-colegas conselheiros Gilberto Camacho e Armando de Jesus, no CCP nas últimas duas décadas. [Este trabalho] culminou com a minha integração na lista ao sufrágio do CCP do Círculo da China, cujo acto eleitoral decorreu no dia 26 de Novembro de 2023, onde fomos eleitos para um novo mandato de quatro anos. Tive o privilégio de organizar e participar em reuniões do Conselho Regional da Ásia e Oceânia na qualidade de assessor, e de acompanhar Rita Santos, em 2023, numa visita de trabalho a Portugal no âmbito da reunião anual do Conselho Permanente do CCP. Rita Santos manifestou-me, no início deste ano, o desejo de se preparar para concorrer às eleições para a Assembleia Legislativa de Macau, em 2025, um facto que foi também anunciado na altura pelo deputado José Pereira Coutinho. Comunicou-me em Agosto a sua decisão de suspender o mandato de conselheira para prosseguir o seu desígnio.

Que objectivos pretende cumprir na qualidade de conselheiro?

Além do cargo de presidente do Conselho Regional do CCP, fui nomeado para o cargo de Secretário do Conselho Permanente do CCP, que coordena a execução do plano global de acção do Conselho e emite pareceres sobre as políticas relativas às comunidades portuguesas, além de assegurarem a comunicação, enquanto órgão consultivo, com o Governo português para as políticas relativas à emigração e às comunidades portuguesas no estrangeiro. Estas nomeações não são apenas o reconhecimento do trabalho desenvolvido até aqui pelo CCP do Círculo da China, mas também uma grande responsabilidade. O meu objectivo principal será fortalecer os laços entre as comunidades portuguesas nas regiões que representamos, que incluem Macau, Hong Kong, o Interior da China, Timor-Leste, Austrália, Banguecoque, Tóquio, Seul e Singapura, e promover a cultura, a língua e os interesses dos portugueses que nelas residem. Acredito que, juntos, poderemos enfrentar os desafios com que nos iremos deparar e aproveitar as oportunidades para enriquecer a nossa comunidade e potenciar as nossas capacidades.

Que balanço faz da reunião em Lisboa? Que temas relacionados com a diáspora portuguesa foram abordados?

Nesse plenário reuniram-se 76 conselheiros eleitos a 26 de Novembro de 2023 e foram eleitos os representantes dos Conselhos Regionais e das Comissões Temáticas, além de ter sido nomeado o novo presidente do Conselho Permanente do CCP [Flávio Martins]. Foram três dias de trabalho muito intensos, dos quais saíram propostas e iniciativas a serem implementadas nos próximos anos, que culminaram na apresentação do programa de acção para o novo mandato. O Conselho Permanente do Conselho das Comunidades Portuguesas já anunciou, entretanto, o programa de acção global aprovado para o quadriénio 2023-2027 [ver texto secundário].

Acha que o CCP, pela sua importância, deveria merecer maior atenção por parte das autoridades portuguesas?

Como órgão consultivo junto do Estado português, compete-nos interpretar e exprimir, junto das autoridades portuguesas, os legítimos anseios e aspirações das comunidades de portugueses emigrados, para que estas possam corresponder às suas expectativas de uma forma mais eficaz. Os conselheiros, como seus representantes nos respectivos países de acolhimento, têm a responsabilidade de promover o diálogo entre os portugueses e lusodescendentes e as respectivas autoridades e instituições, facilitando uma integração harmoniosa e reconhecendo o valor da sua participação cívica. Considero, assim, que o CCP desempenha um papel fundamental na representação dos cidadãos portugueses no exterior, pelo que é fundamental o apoio das autoridades portuguesas para o fortalecimento da ligação entre as comunidades no estrangeiro e Portugal, promovendo uma maior participação cívica e cultural.

Que problemáticas denota nas comunidades portuguesas na Ásia, ao nível dos serviços consulares e questões culturais, por exemplo, que gostaria de ver resolvidas?

Nas atribuições e competências do Círculo da China e Conselho Regional da Ásia e Oceânia no CCP existem atribuições e competências que são um importante ponto de referência para a elaboração de uma série de questões reivindicativas, compreendendo a importância dos fenómenos avaliativos e evolutivos da integração local nas directivas do Conselho. Estes aspectos são essenciais para a resolução de diversos problemas das regiões que representamos, que envolvem uma extensa comunidade portuguesa, que possui uma importante actividade profissional, empreendedora e cultural. Esta desempenha um papel fundamental no desenvolvimento e na preservação de suas especificidades socioculturais, relativas ao património e simbólicas, devido ao longo processo histórico de presença portuguesa nestas regiões.

Nas minhas novas funções, estou comprometido a ouvir as necessidades e preocupações de todos e a trabalhar de forma cooperante com os membros do Conselho, com os Consulados e Embaixadas das várias regiões, e também com as autoridades locais. Espero que, através deste trabalho, possamos construir um futuro mais próspero e coeso para todas as comunidades Portuguesas que representamos.

Novo Plano de Acção do CCP com foco na cidadania e economia

São muitos os pontos a desenvolver pelo Conselho das Comunidades Portuguesas até 2027 no âmbito da promoção da cultura portuguesa, fomento da participação cívica e melhoramento do funcionamento das representações consulares.

Segundo o LusoJornal, um dos pontos do plano prende-se com a área “da cidadania e participações cívica e política”, pois “uma condição fundamental em qualquer sociedade democrática, respeitadora de princípios defensores do pluralismo, diversidade e igualdade é que os portugueses e lusodescendentes se sintam sujeitos activos nos processos decisórios a todos os níveis”.

Propõe-se, assim, “promover uma política de requalificação dos consulados, assegurando uma prestação de serviços que verdadeiramente funcione e seja um eficaz elo de ligação às comunidades”. São também desejadas mais “medidas que visem aumentar a participação cívica dos cidadãos não residentes em todos os actos eleitorais para os quais forem convocados a exercer esse seu direito”, bem como a “revisão da Lei Eleitoral”. Sugere-se ainda “o aumento de deputados pelos Círculos da Emigração” na Assembleia da República em Portugal.

Outro ponto no Plano de Acção diz respeito ao “ensino do português no estrangeiro, cultura, associativismo e comunicação social”. Desta forma, entende-se que “as políticas desenvolvidas no eixo da Língua e Cultura têm como principal destinatário a juventude lusodescendente”, sendo defendido um reforço “do movimento associativo das Comunidades portuguesas”.

O CCP promete trabalhar para melhorar as transmissões da RTP, a rádio e televisão públicas em Portugal, defendendo que esta “tem que apostar em novas formas de distribuição de conteúdos e de canais”.

Fica a promessa da concretização de acções que assegurem “a gratuitidade do ensino, com a revogação das propinas”, “apoiar a estruturação das escolas portuguesas e do ensino do português no estrangeiro” ou ainda “melhorar e ampliar os apoios ao associativismo”. Pretende-se também “apoiar a comunicação social de raiz portuguesa na diáspora”.

Economia e companhia

Finalmente, no terceiro e último eixo de acção, o foco faz-se nas “questões sociais, económicas e dos fluxos migratórios”. Para o CCP, “direitos e oportunidades são condições fundamentais para se chegar à igualdade de tratamento almejada pelas comunidades”. Assim, são propostas acções como a defesa “de um tratamento mais favorável ao regime do residente não habitual”, “propugnar um programa de atração e apoio aos jovens descendentes de emigrantes” ou ainda “aumentar o intercâmbio com as redes na Diáspora” nas áreas da cultura ou Câmaras de Comércio, sempre “na defesa dos fluxos sociais e económicos”.

Pretende-se também “reformular o programa ‘Regressar'”, destinado a emigrantes que regressem a Portugal, através da criação de “incentivos fiscais mais amplos e outras medidas de apoio”.

Defende-se também “a revogação da Portaria que alterou o direito de assistência à saúde gratuita em Portugal aos que vivem no estrangeiro”, e que veio retirar muitos utentes da base de dados do Serviço Nacional de Saúde.

29 Out 2024

Cláudia Ribeiro, autora: “A Europa parece um museu”

Autora do livro “No Dorso do Dragão”, Cláudia Ribeiro viveu na China nos anos 80, fez investigações independentes no país e algumas traduções de chinês para português. Ao HM, explica que, para perceber a China, é preciso ir além do taoísmo e confucionismo. Cláudia Ribeiro abordou estes temas na última quinta-feira no Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa

 

Como começou o interesse pelos estudos asiáticos, sobretudo pela China?

Começou na mais baixa infância. O fascínio com os caracteres chineses começou quando os vi pela primeira vez nos créditos de um filme de animação japonês, “O pequeno príncipe e o dragão das oito cabeças”, de 1963. Devia ter cerca de seis anos e fiquei colada à cadeira, extasiada, a olhar para os caracteres dos créditos. Pouco tempo depois li “O Loto Azul”, a aventura de Tintim na China e, de novo, fiquei fascinada com os caracteres e com a China e os chineses. Mas, já antes dos caracteres, lembro-me de uma arca chinesa lacada na casa de uma velha senhora. Os objectos criados pelos chineses atraíam-me. E japoneses. Quanto aos Estudos Asiáticos enquanto área de conhecimento, era algo totalmente fora do meu radar na época em que ingressei na faculdade. Essa opção, simplesmente, não existia em Portugal e não existiu durante as duas décadas seguintes. Havia um curso livre de chinês na Faculdade de Letras, leccionado por Alexandre Li Ching. Claro que me inscrevi e com uma alegria louca. Nos anos 1980, era o único local em todo o país onde era possível aprender chinês.

Quais as primeiras dificuldades que sentiu quando chegou à China?

As normais com que nos deparamos quando se vai viver para um país diferente pela primeira vez. Encontrava-me numa universidade e, portanto, tinha colegas ocidentais e japoneses que já lá estavam há mais tempo e que transmitiam informação aos novatos. Depois, foi adquirir novos hábitos, estoicos. O que me custou foi o frio, sou africana.

Foi desafiante o contacto com uma cultura e línguas tão diferentes?

Fui para lá precisamente em busca desse desafio. Queria contactar com aquela língua e aquela cultura diferente. Nasci e cresci nos anos finais da Angola colonial, no Lubango. Quando vim para Portugal, durante o processo de descolonização, tive de me adaptar a um país e a um povo muitíssimo diferentes de Angola e dos brancos nascidos na Angola colonial. Sentia uma falta tremenda de viver com outros povos e culturas. Felizmente, Portugal tem-se vindo a tornar num país multi-étnico e multi-cultural, o que é muito mais interessante.

No Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM) falou sobre a China como a conheceu, nos anos 80. Como era encarado o estrangeiro nessa época?

Estive na China como estudante de chinês interessada em “viver” o país. Era a era de Deng Xiaoping, uma China a dar os primeiros passos para sair de um nível de vida muito humilde e a pressentir já um futuro diferente, pelo qual os chineses, em especial os jovens, ansiavam com impaciência. Era, por isso, uma época de esperança. Havia maior liberdade de expressão e muitas mudanças a terem lugar a nível económico e cultural.

Como se denotava essa liberdade?

Havia uma abertura, cautelosa, a actuações de músicos pop, como os Wham!, e exposições de artistas contemporâneos ocidentais, como Robert Rauschenberg. Foi a década em que floresceu a arte contemporânea chinesa e em que resmas de livros de filósofos, historiadores e escritores ocidentais eram traduzidas, publicadas e lidas com sofreguidão. Era também uma China onde os chineses ainda não podiam viajar livremente. O seu contacto com ocidentais tinha sido muito limitado e a maioria da população olhava-os como se fossem extraterrestres. A curiosidade por eles era desmedida, sobretudo se fossem americanos. Os chineses gostam da riqueza material e julgavam que todos os americanos eram ricos, como tinham visto na série televisiva “Dallas”. Queriam muito saber se tínhamos carro, frigorífico, televisão e quanto tinham custado. O frigorífico era ainda um luxo e o carro particular um bem muitíssimo difícil de adquirir. Os chineses moviam-se a bicicleta e transportes públicos.

Publicou “No Dorso do Dragão” em 2001, que fala dessa experiência. Que diferenças destaca na China entre a data da publicação do livro e o período actual?

Publiquei, entretanto, uma versão revista desse livro em 2023. “No Dorso do Dragão” foi escrito entre 1995 e 1998, e quando o estava a escrever a China já era diferente daquela em que eu tinha vivido. A China é sempre um mesmo-outro, desenvolve-se por camadas e, se raspamos um pouco, afloramos o seu passado. Há muitos aspectos em que permanece idêntica, e muitos outros em que se tornou diferente. É um país que retirou da pobreza 850 milhões de pessoas em quarenta anos, um feito absolutamente extraordinário e que nunca é demais frisar. Mas o germe da China de hoje, desse país vibrante, cheio de vida e de esperança, que caminha confiante rumo ao futuro, já estava presente nos anos oitenta. Nas cidades chinesas, basta sair para a rua e é palpável uma trepidação, um ímpeto avassalador. Por comparação com os chineses, os europeus parecem zombies, gente mole, refastelada, auto-complacente. E a Europa parece um museu que se exibe sem se renovar.

Até que ponto a filosofia, ou correntes como o taoísmo e o confucionismo, podem ajudar a compreender o sujeito chinês e a sua forma de pensar?

Para tentar compreender qualquer povo há que ter em conta os sistemas de crenças mais decisivos, religiosas e filosóficas, assim como outros factores, a geografia, a história política. É possível compreender os europeus sem compreender o cristianismo, o judaísmo e o islamismo? Não. No caso da China, não só o taoísmo e o confucionismo, como ainda o legalismo e a religião popular, que são autóctones; mas também sistemas de crenças estrangeiros, como o budismo, proveniente da Índia, e o marxismo, proveniente da Europa, e depois o maoísmo. Dominar tudo isso é uma tarefa ciclópica. A China é como um dodecaedro infinito de espelhos.

Portugal continua a não ter muitos sinólogos. Como explica essa questão?

Portugal não tem sinólogos. Um sinólogo é alguém capaz de ler e compreender fluentemente o chinês antigo, com um conhecimento muito profundo e alargado acerca da China clássica. Uma estirpe rara que possivelmente está em extinção no Ocidente. Na maioria das universidades adopta-se o termo Estudos Chineses ou Asiáticos, ou ainda da Ásia Oriental. A explicação pode vir da História, pois os sinólogos, como os cientistas ou os filósofos, não brotam da terra como os poetas populares, os pintores naïfs e os cantadores. Formam-se. A aprendizagem deve ser exigente, começar cedo e avançar sem interrupções. Mas Portugal tem sofrido de uma enorme instabilidade institucional e tudo quanto exige tempo e perseverança acaba por soçobrar. Portugal é um país que se tem esvaziado ciclicamente. Esvaziou-se de população com os Descobrimentos, tornando as instituições periclitantes durante um largo período de tempo. Esvaziou-se de população em Alcácer Quibir, esvaziou-se de população com a imigração e a ida para as colónias, esvaziou-se em extensão geográfica e, simbolicamente, com o desmoronar do império. Agora esvazia-se de jovens promissores. Esta ausência parece ter-se tornado endémica.

Mas há um contacto com a China desde há séculos. O que ficou?

Em matéria de obras científicas, o que resultou da era dos Descobrimentos foram uns poucos tratados dispersos e de cariz coleccionista, dependentes da observação: descrição de espécimes, história natural, botânica. Homens como Garcia da Orta, na área da botânica, Duarte Pacheco Pereira, na área da geografia, e D. João de Castro, na área do magnetismo terrestre, são excepções e não deixaram escola, embora tivessem deixado obra. Mas quem os leria? Só os estrangeiros e o punhado de portugueses que sabia ler. Certo é que o desamor pelos livros está profundamente arreigado nos portugueses. A ausência de livros nas casas dos nobres portugueses sempre chocou os forasteiros. Instalou-se uma desconfiança em relação ao saber teórico quando há problemas imediatos a ser resolvidos, por exemplo, de subsistência económica, como se fosse possível resolvê-los sem teoria. Há uma valorização da aplicação e das actividades práticas. Ora, a sinologia não se pode desenvolver sem um profundo amor pelos livros, desde logo porque os chineses são um povo da escrita e, portanto, da leitura e dos livros.

Isto reflecte-se no que sucede aos estudantes portugueses que se deslocam ao estrangeiro munidos de bolsas para assimilarem o conhecimento que lá fora se faz, coisa que se pratica desde a Idade Média.

Em que sentido?

Os estudantes acabam por ficar lá devido às condições de vida e de trabalho superiores ou, por mais brilhantes que sejam, não correspondem às expectativas quando regressam ao país. E isso porque não encontram estruturas de apoio nem uma sociedade capaz de apreciar aquilo que estudaram. Já os estrangeirados do séc. XIX se debatiam com este problema, com a impossibilidade de aumentar e difundir o conhecimento numa sociedade atavicamente inculta e pouco receptiva ao saber.

Também passou por isso quando voltou a Portugal?

Sim. Nos anos 1980 as pessoas tomavam a minha decisão de estudar chinês e de ir para a China como uma esquisitice incompreensível. E, quando regressei, no início dos anos 1990, deparei-me, é claro, com o mesmo deserto de que partira. Até prosseguir o estudo da língua chinesa era difícil. Só havia aulas de níveis inferiores ao meu. A curiosidade das pessoas pela China era igual a zero. Perguntavam-me “Então, gostaste, não foi?” e tratavam era de falar da vida delas. Quanto aos Estudos Chineses, a questão do estado larvar em que se encontram em Portugal tem muito a ver com tudo isto. Além disso, estiveram subjugados pelo peso do estudo dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa que é limitado a uma Ásia contemplada através dessa perspectiva.

Há cada vez mais estudos sobre a língua e cultura chinesas em Portugal, mas o que precisa verdadeiramente mudar?

Há que resolver uma série de problemas para que se consigam desenvolver plenamente. O investimento na aprendizagem e na formação tem de aumentar, assim como o acesso a fontes de origem asiática e a colaboração com investigadores asiáticos. Em princípio, seria possível agora construir instituições estáveis, um ensino capaz e maduro. Mas, para tanto, é preciso vontade colectiva e quebrar o círculo vicioso da ignorância para que o povo valorize a cultura.

21 Out 2024

José Drummond, curador de “Aqui e Agora” | Histórias de um “espaço intermédio”

Que arte se faz em Macau 25 anos depois da transição? Que mensagens os artistas passam? A exposição “Aqui e Agora”, patente até 20 de Dezembro em Lisboa na União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa, dá algumas respostas. José Drummond, um dos curadores da mostra, considera que o Governo da RAEM devia mudar o foco das políticas culturais e prestar apoio ao desenvolvimento de galerias de arte

 

Esta exposição celebra o aniversário da RAEM. Quais as grandes mensagens reveladas nesta mostra?

Até à data, que se saiba, é o único evento que fala sobre o 25º aniversário da RAEM em Portugal, o que é estranho, ou não, mas que demonstra o modo como os sucessivos Governos portugueses foram olhando para Macau antes e depois da transferência. “Aqui e Agora” é um título que remete para o estado deste momento, 25 anos depois. Graficamente temos 25 bolas [prateadas, colocadas na imagem oficial da exposição], em que cada uma corresponde a um artista, sendo que há a questão de funcionarem como espelhos.

Porquê estes elementos?

Remetem, no fundo, para a própria vivência em Macau, pois as pessoas, da comunidade chinesa e portuguesa, acabam sempre por viver num espaço intermédio. Nesse espaço as comunidades, apesar de relativamente separadas uma da outra, as coisas continuam a acontecer e a influência mútua de ambas as comunidades é muito intensa. A exposição, e os trabalhos que seleccionámos, falam um pouco sobre esse espaço híbrido que Macau é muito naturalmente, seja em termos arquitectónicos, com os monumentos, começando logo pelas Ruínas de São Paulo, que é um ícone da presença portuguesa, mas que continua a ser o ponto máximo do turismo da RAEM. Estes trabalhos que mostramos aqui falam, portanto, sobre identidade, esse potencial encontro entre duas culturas que, não diria opostas, acabam por se completar em Macau e têm uma presença muito particular, contribuindo em termos artísticos. Acho completamente notório que os artistas de Macau são completamente diferentes dos de Hong Kong, Taiwan ou Interior da China, exactamente pela existência dessas duas culturas e reflectirem sobre esse espaço onde vivem.

Fale-me um pouco dos artistas escolhidos para esta mostra.

Trata-se de 25 artistas que nunca expuseram em Portugal com a AFA – Art for All, que não é a primeira vez que expõe em Lisboa. Metade destes artistas pertencem à chamada nova geração, e, numa boa descrição do que é Macau, temos artistas chineses, que já nasceram no território, mas depois temos referências muito interessantes de artistas de Macau que deixaram o território para viver noutros lugares, como é o caso do Season Lao, que vive há muito tempo no Japão, ou o caso contrário, da MJ Lee, sul-coreana que passou por Macau e acabou por se tornar numa artista de Macau. Também o caso do Felix Vong, que tendo nascido em Portugal decidiu vir viver para cá estudar na ESBAL [Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa], depois de viver em Macau. Temos também o Rui Rasquinho, que é português, mas que vive em Macau há muitos anos, e Alexandre Marreiros que é macaense. Esta é a realidade de Macau, a variedade, um lugar de permanência e impermanência também.

Porquê tão poucos nomes portugueses, por exemplo?

São os artistas com obras mais recentes. No caso de Alexandre Marreiros foi uma referência quase imediata, no caso do Rui [Rasquinho] também, que tem estado bastante activo com várias exposições em Macau.

Como descreve o “Aqui e Agora” da área cultural, em Macau?

No fundo queremos perceber o que mudou ou não, e será que mudaram assim tantas coisas, e acentuar esse marco temporal, a ideia de que “25 anos depois é isto”. A cultura em Macau mudou superficialmente, com mais casinos ou coisas que os casinos estão a fazer, porque ao nível simbólico a cultura de Macau permanece muito própria. Continuamos a ter os temas essenciais da cultura de Macau, como a identidade, a construção, o passado, o futuro, as questões urbanas, e essas questões já existiam há 25 anos, apesar da cidade estar fisicamente diferente. É isso que vemos também nestes trabalhos. Mas sinto que os trabalhos destes artistas são obviamente diferentes dos trabalhos de pessoas da minha geração, dos anos 90.

Hoje há mais formação superior, também. Isso influenciou a nova geração na forma de fazer arte?

As opções continuam a ser mais ou menos as mesmas para estudar, como Paris, Portugal, Taiwan, Cantão ou Pequim. Mas a maior parte destes artistas fizeram formação em Pequim ou Taiwan. As coisas acabaram por ser relativamente mais fáceis do que poderiam ser há 25 anos, no sentido de potenciar estes talentos e poderem ambicionar estudar. Há 25 anos talvez a sociedade de Macau não estivesse tão preparada para aceitar que um filho quisesse estudar artes como hoje. Claro que isso também é fruto de uma série de associações que foram criadas nos últimos 25 anos, não foi apenas a AFA, e que acabaram por dinamizar a cultura e as artes plásticas dentro do território. Havendo mais estruturas, também mais jovens querem seguir esse caminho, e nesse sentido Macau está diferente. Não sei se o papel do Governo não será também importante aqui.

Em que sentido?

Há 25 anos o Governo operava de outra forma. No período da administração portuguesa, o Museu de Arte de Macau apareceu no último ano da administração [1999], pelo que não é apenas uma coisa da sociedade e das associações, até porque estas são largamente apoiadas por entidades governamentais.

Em 25 anos não surgiram mais mecenas nas artes, por exemplo, um verdadeiro sector cultural com um importante movimento de compradores?

O Governo tem tentado. Não sou completamente crítico nesse sentido, mas penso que é um erro pensar que as artes são uma indústria cultural, porque não podem ser. O que se faz a seguir, com os livros ou as t-shirts, isso é que são produtos. O objecto artístico em si não, a sua tendência natural é serem objectos únicos. Penso que é esse entendimento que falta ao Governo, perceber que a arte não pode ser tratada como um sector como é a área do design, por exemplo. Mas há meios que são criados em Macau que, em Portugal, os artistas adorariam ter, nomeadamente ao nível dos apoios. Apesar de ter havido mais interesse por parte das operadoras de jogo, como a MGM que faz exposições, e que apresentou obras de Joana Vasconcelos, continua a faltar entre aquilo que é promovido nos casinos e pelo Governo, um modelo económico que possa apoiar galerias comerciais. Aí sim poderíamos falar de uma indústria.

Que são muito importantes para mostrar os trabalhos artísticos.

A arte, em qualquer lado do mundo, vive dessa confluência de energias na qual as galerias comerciais são absolutamente necessárias porque são elas que irão dar independência ao artista, no sentido que ele não precisa de ter outro trabalho para viver ou comprar materiais. As galerias comerciais tornam mais fácil a existência de um artista que não está dependente dos subsídios, passando a depender do contrato com a galeria e as suas vendas. Aqui é que o Governo deveria realizar um estudo de viabilidade de apoios a galerias comerciais, que não são, forçosamente, indústrias culturais.

Qual a obra mais marcante desta nova geração que o público poderá ver?

Podemos falar do trabalho de Kay Zhang, que no fundo fala sobre as mulheres dos pescadores de Macau, que, quando os barcos desapareciam, guardavam os restos dos barcos. É um trabalho com uma grande carga emocional, muito directa sobre uma profissão que praticamente desapareceu em Macau. Podemos também falar do trabalho do Felix Vong, contrário ao da Kay, com mensagens mais directas, mas que falam essencialmente da solidão, de um certo voyeurismo, o querer fazer parte de qualquer coisa, continuando solitário, mas estando atento aos barulhos dos vizinhos, por exemplo. Temos o trabalho do Rui Rasquinho, muito abstracto, mas com uma clara inspiração na pintura tradicional chinesa. Passamos depois para o trabalho do Season Lao, que vive no Japão. Se no Rui Rasquinho há uma energia de Macau, num traço mais nervoso, no Season, que também tem a ver com a pintura tradicional chinesa, ele apresenta fotografias imprimidas por si que cola sobre papel de parede. É um processo mais trabalhoso que exige uma calma maior do que os livros do Rui, sendo que partem também de uma certa inspiração da pintura tradicional chinesa, com as montanhas e a paisagem.

No mesmo espaço apresenta-se ainda outra exposição, “Ensemble”, da qual também fez a curadoria. De que se trata?

É uma mostra que já esteve patente em Paris e Roma. Foi uma questão de oportunidade de mostrar a exposição em Lisboa, apresentando-se três artistas que, em teoria e visualmente, poderão não ter nada a ver uns com os outros. Daí nasceu a ideia de “Ensemble”, em que cada instrumento tem um som diferente, mas que juntos criam uma composição musical. A ideia da exposição passa por aí também, pois temos, por exemplo, os trabalhos do Eric Fok, com grande detalhe, extremamente figurativos, com uma alusão à memória, carregados de humor também.

Mais de duas décadas de arte

“Aqui e Agora” é uma exposição colectiva com artistas contemporâneos de Macau co-organizada pela Art for All Society (AFA) e com a curadoria de José Drummond e James Chu. O foco acabou por recair nos artistas da nova geração, que estudaram fora, que regressaram ou que partiram, com destaque para dois nomes portugueses. É o caso de Catherine Cheong, Rui Rasquinho e Alexandre Marreiros, e outros mais jovens, como Angel Chan, Chiang Wai Lan, Felix Vong, Ieon Man Hin, Karen Yun, Kuok Hou Tang, Kun Wan Tou, Lai Sut Weng, Lei Chek On, Lei Hio Lam, Kit Lei, Leon Chi-Mou, Leong Chon, Leong Fei In, Leong Man Teng, MJ Lee, Season Lao, Sisi Wong, Wong Hio-Chit, Xixia Wu, Yao Mou In e Kay Zhang. Na exposição “Ensemble”, que pode ser vista também na UCCLA, contam-se trabalhos de James Chu, Eric Fok e Kit Lee.

24 Set 2024

Duarte Drumond Braga, co-coordenador do projecto “PortAsia” | Uma porta para as letras

Lançado na quinta-feira, o livro “Literatura e Vida Intelectual em Língua Portuguesa na Ásia e no Índico” é um catálogo bibliográfico, editado pelo Centro Científico e Cultural de Macau em parceria com a Universidade de Macau, que vai além da ideia “nacionalista” dos escritos em português produzidos entre Goa, Macau e Moçambique. O académico Duarte Drumond Braga revela ao HM detalhes sobre o projecto “PortAsia”

 

Com o projecto “PortAsia”, de onde nasceu o livro “Literatura e Vida Intelectual em Língua Portuguesa na Ásia e no Índico”, são propostas ideias em torno de uma nova escrita asiática em língua portuguesa e de uma nova forma de literatura. Pretendem criar novos rumos nesta área?

O “PortAsia” começou em 2021, sendo coordenado por mim e por Marta Pacheco Pinto, ambos ligados ao Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. É um projecto exploratório financiado pela Fundação para as Ciências e Tecnologia e este livro é o resultado principal deste projecto, bem como um website. No que diz respeito à literatura em língua portuguesa, percebemos que sobre Portugal, Brasil e África já existem imensos estudos, ao contrário das escritas e literaturas da Ásia, que estão ainda pouco estudadas, nomeadamente Goa, Macau e Timor. Preferimos falar em escritas do que em literaturas, porque há muitos textos e obras manuscritas que não são propriamente literatura como romances, poesia ou contos. Não entrámos no mundo dos jornais, e analisámos apenas cinco bibliotecas. Destaco que incluímos também o Arquivo Histórico de Macau, o Arquivo Histórico de Moçambique, o que constitui uma novidade.

Porquê?

Trazemos Moçambique para este estudo, daí falarmos no Índico. África Oriental tem ligações com Goa, com todo o mundo índico, e pareceu-nos que Moçambique poderia constar nesta obra. Falamos [com este livro] de um catálogo, uma obra bastante árida, não é algo para ler, é uma obra de consulta. Temos aqui um conceito de literatura mais aberto, e por isso chamamos a este livro “Literatura e Vida Intelectual”, pois incluímos produção cultural em língua portuguesa na Ásia.

Falamos em estudos religiosos, crónicas, escritos etnográficos.

Sim.

São escritos que nascem, sobretudo, das rotas comerciais que existiam à época.

Sim. Estes escritos centram-se sobretudo entre os séculos XIX e XX, de 1820 a 1955, quando foi a Conferência de Bandung. Há uma série de publicações que surgem a partir de 1820, e até a própria imprensa se desenvolve. Por isso escolhemos esse período temporal. Tentámos incluir coisas que não sejam muito coloniais, por assim dizer. A ideia de escrita asiática tem a ver também com a escrita por asiáticos, não é apenas por representantes coloniais. Embora no caso de Macau isso seja bastante complexo.

Escolheram sobretudo autores portugueses, da então metrópole.

Sim, porque foi mesmo impossível não os escolher. No caso de Goa foi mais fácil, pois temos uma comunidade intelectual etnicamente indiana forte, e em Macau não temos praticamente uma comunidade chinesa a publicar em português. Nunca tivemos.

E o que se publicou da comunidade macaense é muito pouco.

Sim, sendo que muitas vezes é difícil distinguir, ou mesmo impossível. E falo dos jornais em que se assinava com pseudónimos, por exemplo, é difícil distinguir quem é e não é macaense.

É referido no livro que a Conferência de Bandung lançou a Ásia “como um sujeito de pleno direito”. Discute-se a descolonização, emergiram novos escritos e figuras?

A questão é que não há propriamente uma questão comum para Macau, Goa e Timor relativamente ao fim do império colonial na Ásia. Temos 1975, uma data que claramente não servem, porque é mais para as antigas colónias portuguesas em África, e depois na Ásia temos 1961 para Goa, Damão e Diu, 1974-1975 para Timor e depois 20 de Dezembro de 1999 para Macau. E assumo aqui que há uma história colonial em Macau. Muitos autores afirmam que Macau nunca foi uma colónia, mas tenho muitas dúvidas sobre isso.

Pelo menos até 1972 [data da retirada de Macau da lista dos territórios colonizados na ONU] foi.

Pois. Ou até mesmo até 1974. Há um período colonial da história de Macau, mas o que me parece é que há muitas pessoas que falam com a negociação com a comunidade chinesa para justificar que Macau não fosse uma colónia, mas negociações com as comunidades locais há em todo o lado, até em Angola. Parece-me um argumento fraco, mas que salta à vista em muitos textos sobre o assunto.

Estamos então perante um catálogo com referências bibliográficas para apoiar investigadores e académicos.

É também um teste, porque, para já, são apenas cinco bibliotecas que pesquisámos. As bibliotecas em Lisboa talvez nem sejam as mais significativas em termos do número de obras [com referências asiáticas], teríamos de ter ido para a Biblioteca Nacional, que não consta aqui. Trata-se de um projecto de pequeno porte e é uma espécie de ensaio para ver se esta ideia funciona. É um projecto que pode continuar, se existir financiamento.

Que autores constam neste catálogo com referências a Macau?

Fizemos uma separação por locais de publicação, pois entendemos que era significativo. Em relação aos livros publicados em Macau, importa perceber quais são os livros que estão em determinadas bibliotecas e porquê, e quais são. É uma investigação que ainda se pode fazer. Temos, por exemplo, o Joaquim Bastos, que é um macaense interessante do século XIX; há o padre Manuel Teixeira, um autor português metropolitano, mas entendemos que deveria constar nesta lista; temos o Jack Braga. Há muitos macaenses nesta selecção e que acabam por suprir essa falta, porque, de certa forma, os macaenses são aqueles que melhor correspondem à comunidade dos chamados “naturais”, isto é, da comunidade macaense a escrever em português. Não há um grande avanço em relação a Macau, mas esse avanço dá-se no conjunto, criando-se uma visão ampla. Mas há muitas obras sobre Macau que nunca foram trabalhadas. A surpresa existe, precisamente, na comparação com Goa e Timor e com Moçambique, com referência ao Índico.

Muitos destes textos foram transferidos para outros locais ao longo dos anos. Temos o exemplo de uma obra de 1912 de L. O. Shirley que foi publicada em Macau, mas que acabou por ir parar ao Arquivo Histórico de Moçambique.

É algo importante e uma investigação que pode ser feita a partir deste livro. Quem levou as obras para os locais de destino, e porque foram publicadas em determinados sítios. Há esta migração de intelectuais dentro do império que importa ainda estudar. O livro chama a atenção para isso e constitui um instrumento para futuras investigações.

A vossa equipa tratou também três espólios, além das obras dispersas em arquivos e bibliotecas, de personalidades como Moniz Barreto, Sebastião Rodolfo Dalgado e do padre António da Silva Rêgo. Porquê inclui-los?

Analisámos estas bibliotecas sem saber que existiam estes espólios. Percebemos que havia bibliotecas dentro das bibliotecas, por exemplo na Academia das Ciências foi a professora Marta Pinto que trabalhou a biblioteca, já identificada, de Pedro Dalgado, um importante intelectual goês. Entendemos que deveria ser tratada à parte por constituir uma doação e um legado do próprio Dalgado que nunca foi integrado na restante biblioteca. É um legado muito interessante porque ele era linguista, estudioso do sânscrito, estudava os crioulos de base portuguesa da Ásia e deixou uma biblioteca muito actualizada na altura em que foi doada, no início do século XX. Isto vai contra aquela ideia que aparece em muitos lados que os estudos orientais e orientalistas em Portugal sempre foram fracos, insipientes. Se fosse feita mais investigação não se diria tanto isso. Não quero parecer arrogante, mas é algo que tenho de dizer. Descobrimos vários exemplos de que isso não é tanto assim.

Assumem também que este livro contradiz a “ideia nacionalista da língua”. Em que sentido?

Essa é a parte mais complexa do livro, pois a área das literaturas em língua portuguesa está muito ligada ao modelo “Nação”, de uma literatura nacional. Só havia literatura portuguesa, brasileira e ultramarina, era assim que se chamava a tudo o resto. Quando as literaturas africanas aparecem a partir da independência [das antigas colónias], continuam a estar ligadas ao modelo nacional. O modelo de literatura nacional, que vem desde o Romantismo, a Filologia, a ideia de que há um génio pátrio que depois se manifesta na história e literatura, como manifestações de uma espécie de génio nacional. Na Ásia não se pode colocar dessa forma. Macau e Goa são regiões que sempre foram de outros países, o modelo nacional aí não cai bem. Os estudos portugueses, focados nas literaturas de língua portuguesa, não sabem lidar com as literaturas não nacionais.

Nesta lista surgem, por exemplo, obras em inglês e até outras línguas.

No caso do Jack Braga [macaense], escrevia muitas obras em inglês. Porque só se podem incluir os escritos dele em português? A cegueira linguística não favorece um projecto como este. Textos em outras línguas também têm de ser incluídos.

Andreia Sofia Silva

Pernas para andar

O “PortAsia – Asian Writing in Portuguese: Mapping Literary and Intelectual Archives in Lisbon and Macau (1820-1955)” tem o objectivo de “criar um arquivo dentro dos arquivos”, por se tratarem de “livros e documentos que são marcadamente marginais, quer no contexto dos arquivos portugueses, quer no da Ásia, quer ainda no do império português”. Assim, a ideia é criar um catálogo, apoiado por um website, que possa servir “como importante ferramenta de trabalho bem como bibliografia fundamental dessa produção, permitindo a análise comparada”. Este catálogo e website irão constituir “uma recolha coerente de referências, congregando a localização material de espólios de modo a permitir o estudo em conjunto destes materiais dispersos”, descreve-se no portal da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. O livro “Literatura e Vida Intelectual em Língua Portuguesa na Ásia e no Índico”, talvez o primeiro passo deste projecto com grande amplitude, foi lançado na quinta-feira no Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa.

15 Set 2024