Gilberto Camacho e Mónica Tang, candidatos às eleições: “É importante que os deputados se envolvam”

Os nomes que vão ocupar a terceira e a quarta posições na lista Nova Esperança, encabeçada por José Pereira Coutinho, são novos na política e assumem querer fazer mais e melhor pelos cidadãos. Gilberto Camacho e Mónica Tang criticam a inércia de Chui Sai On e pedem mais transparência do hemiciclo

[dropcap]P[/dropcap]or que decidiram aceitar este desafio e integrar uma lista candidata às eleições deste ano?
Mónica Tang (M.T.) – José Pereira Coutinho e Leong Veng Chai são deputados a tempo inteiro, e Rita Santos também faz grandes contributos para a sociedade. Então decidi seguir esse exemplo. Ainda estou a aprender, mas quero contribuir para a sociedade.

Gilberto Camacho (G.C.) – É uma honra e um orgulho poder fazer parte da lista Nova Esperança. Tanto José Pereira Coutinho, como Leong Veng Chai são duas pessoas que têm lutado muito pela sociedade de Macau, por valores com os quais eu também me identifico, tal como mais transparência na Assembleia Legislativa (AL) e mais rigor. São valores democráticos e quero aprender com eles. É importante ter uma voz nova além da experiência que eles já têm. Não posso dizer que vou estar sempre dentro da política. Uma vez o Papa Francisco disse que a política deve ser um meio para mostrarmos o nosso altruísmo e não os nossos próprios interesses.

No caso do Gilberto, já teve uma curta experiência política, uma vez que esteve com um pé na Assembleia da República, graças à participação de Coutinho na candidatura do partido Nós! Cidadãos. Como surgiu a vossa ligação à Associação dos Trabalhadores da Função Pública de Macau (ATFPM)?
G.C. – Comecei a interessar-me por política quando fui para Portugal. Talvez devido aos media, por haver uma maior abertura, comecei a ler muitos jornais, não só nacionais, como também comecei a ler mais sobre política internacional. Aos poucos fui ganhando esse primeiro contacto. Regressei a Macau e quando trabalhei no aeroporto houve um caso relacionado com o ambiente, e sugeriram que viesse falar com José Pereira Coutinho. Gostei desse contacto e ele abriu-me a porta.

M.T. – No meu caso tive o meu primeiro contacto com a ATFPM há cinco anos, quando participei numa palestra. Participei em muitas actividades da ATFPM e comecei a interessar-me pelas questões relacionadas com os cidadãos. Sou empresária e estou ligada aos negócios da minha família.

Antes de o Gilberto ir para Portugal, como olhava para o meio político de Macau?
G.C. – Acompanhava pouco, porque em 1998 não sabíamos como seria a situação depois de 1999, era uma incógnita. Acompanhava algumas causas sociais, mas não tanto o meio político. Em Portugal achava interessante o trabalho e o funcionamento da Assembleia da República.

Tanto o Gilberto, como a Mónica são duas caras novas no meio político. Que expectativas colocam em relação à vossa participação?
G.C. – O nosso programa político ainda não está finalizado. Penso que as eleições vão ser semelhantes às anteriores, a não ser que exista uma mudança na mentalidade das pessoas.

Em que sentido?
G.C. – No sentido de apelo ao voto. As pessoas sabem que votar é um dever cívico, mas sabemos que as pessoas estão cada vez mais afastadas da política. Mas aqueles que não votam têm de ter consciência de que isso vai influenciar as listas que são sempre vencedoras. A abstenção é demasiado elevada.

Que razões aponta para isso?
G.C. – Em Portugal a abstenção acontece por protesto. Em Macau penso que não existe uma consciencialização política. Acredito que muitas pessoas nem sequer sabem que têm direito ao voto.

M.T. – O Governo tem falhado na promoção da educação dos mais jovens, para que tenham uma maior consciência do voto e da sua importância.

Tem havido algum debate sobre a implementação do sufrágio universal em Macau. Consideram que tal poderá vir a ser uma realidade?
G.C. – Não acredito que isso venha a acontecer.

Porquê? Poderá ter que ver com eventuais falhas dos movimentos pró-democratas?
G.C. – Não é uma falha desse campo. É impossível, porque as regras do jogo são adoptadas por Pequim. Se Hong Kong não conseguiu, Macau muito menos irá conseguir. Macau está demasiado próxima de Pequim, penso que isso não irá acontecer. 

A sociedade de Macau e os eleitores não estão atentos a essa questão?
G.C. – Muito poucos estarão atentos a isso. Como a Mónica disse, a educação cívica e a consciencialização da política não são promovidas nas escolas. As pessoas não sabem o que é política. O pouco que se sabe de política, em Macau e em Hong Kong, vem das antigas administrações portuguesa e britânica.

M.T.
– Apoio o sufrágio universal, mas não posso dizer se acredito ou não que isso irá mesmo acontecer. Acho bem que as pessoas se interessem mais pela política.

Há pouco o Gilberto falou da questão da transparência na AL. Que outros problemas apontam ao funcionamento da Assembleia Legislativa?
G.C. – Não vou falar individualmente deste ou daquele deputado. Mas penso que os deputados têm de pensar mais na população, ao nível da transparência e do rigor. Não acredito que a AL não saiba quais são os problemas da sociedade. É importante que os deputados consultem mais a população, que se envolvam: andem de autocarro, sintam o que é ter calor dentro do autocarro, que vão aos hospitais e sejam tratados como as outras pessoas. Os deputados têm uma vida mais ou menos luxuosa que os afasta desses problemas.

Considera que os membros do Governo, secretários e Chefe do Executivo, também têm esse distanciamento?
G.C. – A sensação que tenho é que, quanto maior o salário, melhor a vida. Vão a hospitais privados, e por aí. Para melhor exercerem os seus cargos, as pessoas têm de estar no meio da população.

Fala-se que deveria haver mais deputados eleitos pela via directa. Há demasiados deputados ligados ao meio empresarial?
G.C. – É preciso haver mais transparência, porque o povo está sempre desconfiado em relação ao que se passa. Olhe-se para o caso do metro ligeiro, com o aumento exorbitante de orçamento. O terminal marítimo da Taipa é outro exemplo. O Governo tem de trabalhar de uma maneira mais transparente, com mais rigor, porque o dinheiro pertence ao erário público.

M.T. – As reuniões das comissões permanentes da AL têm de ser mais transparentes, porque as pessoas precisam saber mais sobre as decisões que são tomadas. A promoção da eleição em Setembro é insuficiente, porque os jovens não sabem que as eleições vão acontecer.

O Gilberto é macaense e, caso consiga um assento na AL, vai representar também a comunidade macaense. Como vai ser o seu trabalho nesse sentido? Que problemas acha que precisam de ser resolvidos?
G.C. – Vou estar atento às opiniões das pessoas. Não vou apenas representar uma comunidade, é um peso muito grande. Gostaria que mais macaenses avançassem para a política e não apenas eu. Acho que é importante haver um representante da comunidade local, mas não sou o único. Gostaria de reforçar a identidade macaense. Quero que o legado dos portugueses a Oriente se mantenha por muitos anos. Farei propostas que reforcem a preservação da cultura.

O Governo tem feito o suficiente para preservar essa cultura e identidade?
G.C. – Em alguns aspectos sim, como ao nível arquitectónico, por exemplo. Mas ao nível linguístico, penso que o português poderia ser reforçado no que toca ao ensino. O Governo fala muito na diversificação económica, sabemos que a China é a segunda maior economia do mundo, e Macau tem um posicionamento privilegiado que pode aproveitar para fazer a ponte com os países lusófonos. Mas penso que esse potencial nunca foi aproveitado como deve ser.

A Mónica está mais ligada à comunidade chinesa. Quais são os maiores problemas sentidos pela maioria da população?
M.T. – O trânsito, a saúde, as creches e a habitação. Todas as tutelas do Governo têm problemas, e já enviamos várias cartas a apelar à resolução de várias questões, mas nunca recebemos respostas.

G.C. – Acho que o imobiliário é o maior problema. Não há princípios relativos à especulação. 

É cada vez mais difícil para as novas gerações viver em Macau?
G.C. – No meu caso é mais difícil. Nasci em Macau, mas não tenho casa própria. O salário não acompanha a inflação. Submeti a minha candidatura para ter uma habitação económica há dez anos e até agora não tenho resposta. Era jovem quando me candidatei, quando tiver a casa sou velho. É muito tempo. Esse é o maior problema. Os jovens casam cada vez mais tarde porque não têm o seu próprio lar.

M.T. – É difícil para as gerações mais novas viver em Macau, devido aos aumentos das rendas e à inflação. Há muitas pessoas a irem fazer compras em Zhuhai. Gostava que o Governo resolvesse esses problemas e conhecesse mais a vida real das pessoas.

Chui Sai On sai do Governo em 2019. Que balanço fazem do trabalho do Chefe do Executivo?
G.C. – Ele esteve presente? Não reparei. É uma pessoa que não critica, não condena, está de passagem.

Poderia ter sido mais interventivo?
G.C. – Mais interventivo, mais crítico, menos receoso de fazer as coisas.

M.T. – Não tenho muito a dizer, penso que o trabalho não foi suficiente.

8 Jun 2017

Ana Sofia Barros, especialista em Direito: “Não se percebe o que é que está a acontecer aos resíduos sólidos”

Ana Sofia Barros está em Macau para uma palestra, hoje, na Fundação Rui Cunha. Para a especialista em direito internacional público, atentar contra o ambiente pode constituir uma violação de direitos humanos. Cabe ao Direito gerir esta matéria

[dropcap]V[/dropcap]Vai estar hoje na Fundação Rui Cunha para falar sobre questões ligadas ao ambiente e aos direitos humanos. Em que é que que estas temáticas se ligam?
A conferência de hoje trata uma questão que considero muito importante. Trata-se do dano ambiental. Vamos abordar o modo como podemos tratar este tipo de problemática à luz do direito internacional público. Vou explicar a ideia de que há intercepção entre o direito internacional e o regime internacional de direitos humanos, e que podemos encontrar soluções que asseguram uma protecção eficaz de indivíduos de comunidades perante o dano ambiental. Outro aspecto importante é tentar associar esta matéria a casos com que as pessoas se identifiquem. Por exemplo, quando há exposição de indivíduos a gases tóxicos emitidos por fábricas ou expostos às consequências das alterações climáticas.

É a esse tipo de indústrias que chama “indústrias perigosas”?
Sim. É um conceito que define aquelas indústrias que podem ter efeitos nefastos ao nível ambiental. Normalmente, o conceito é utilizado no sector da exploração mineira e relacionado com a utilização de produtos tóxicos. Estão um pouco por todo o lado. Se falarmos de Macau, se calhar, não se aplica tanto porque não há indústrias. Mas há casos deste tipo em todo o lado e a situação é tanto mais grave quando falamos de países que estão em níveis de desenvolvimento mais conscienciosos ambientalmente. Estamos também a falar de consequências graves e que se reflectem, por exemplo, nas descargas que levam à intoxicação de rios e das pessoas que depois utilizam estas águas para viver. Coloca-se uma questão de perigosidade a todos os tipos de indústria cujos impactos não são salvaguardados e se tornam perigosos, tanto para o ambiente, como para as pessoas.

Onde entra o direito internacional?
É importante perceber que a questão ambiental teve início nos anos 90. É relativamente recente. Quando foram ratificados os primeiros tratados de direitos humanos, com muitas excepções, não era salvaguardado um direito a um ambiente ecologicamente são. Está salvaguardado na Carta Africana de Direitos do Homem, mas é uma excepção. Na Declaração Universal de Direitos do Homem e no Pacto Internacional de Direitos Civis, Políticos e Sociais não vemos nada. A verdade é que, quando pensamos na protecção de indivíduos e de comunidades, temos de pensar ao nível de direitos. Nos anos 70 e nos anos 90 assiste-se à assinatura de convenções entre Estados que determinam a horizontalidade de obrigações. Não conferem propriamente direitos às pessoas. Quando passamos ao regime de direitos humanos começamos a questionar como é que vamos conseguir adaptá-lo aos novos problemas que não tinham sido antecipados na altura em que as convenções tinham sido celebradas. O que começa a acontecer é um processo interessante de interpretação extensiva de direitos humanos, no sentido de afirmar que direitos ambientais e associados à qualidade do ambiente são implícitos, e podem ser derivados dos direitos reconhecidos nesses tratados. Como exemplo temos o direito à vida, ao acesso a comida, a água, à saúde, à protecção da vida privada e à autodeterminação dos povos. Há uma vasta jurisprudência que se regista muito ao nível europeu, mas também africano, e mesmo quando se fala no regime interno americano de direitos do Homem. Na Ásia, o Pacto de Direitos Económicos, Sociais e Culturais tem um protocolo associado que dá acesso ao indivíduo a fazer uma reclamação contra o Estado. Neste sentido, todos os países asiáticos que tiverem ratificado o pacto e o protocolo adicional poderão ser sujeitos a acções que, no entanto, não têm um sentido vinculativo.

Num dos seus artigos menciona a protecção das vítimas de abusos industriais. Como é que é feita?
A protecção das pessoas começa sempre ao nível nacional. O conceito que tem sido desenvolvido defende que o Estado tem obrigações positivas para proteger os indivíduos em relação à actividade privada. Tem também de regulamentar a actividade privada numa óptica de prevenção, de monitorização dessa actividade e de resposta, quando as coisas correm mal. Dentro desta óptica de deveres, existe a ideia de deveres procedimentais no que toca à imposição de estudos de impacto ambiental e de consultas aos cidadãos, sempre que for necessário tomar decisões de âmbito económico que têm impacto no ambiente e na vida das pessoas. As pessoas têm de ser informadas sobre os riscos que correm. Há uma série de procedimentos que, hoje em dia, se tornaram obrigatórios quando interpretamos o direito à vida ou à saúde. Muitos Estado já têm sido condenados por não satisfazerem este tipo de requisitos.

Está a dizer que são políticas e procedimentos que estão a ter efeitos efectivos?
O Tribunal Europeu de Direitos do Homem tem um número elevado de casos e a sensação que tenho é de que estão a restringir um pouco mais o acesso. O número de casos que são declarados inadmissíveis para consideração está a crescer. Os critérios também se estão a tornar mais restritos. Por exemplo, quando queremos combater questões como as alterações climáticas, é difícil provar a causalidade entre o facto e o dano, e temos de arguir em tribunal que somos vítimas directas e que temos um dano concreto. Mas há muitos casos que são mais de dano colectivo do que propriamente de um dano que possa ser individualizado. O tribunal tem dificuldade em lidar com este tipo de questão e acaba por não considerar certas pessoas como vítimas por não se conseguir provar que há um dano concreto que foi infligido devido, por exemplo, às operações de uma fábrica que emite gazes poluentes para a atmosfera. É esta ligação que existe entre o problema ambiental e o direito humano.

O que podia ser feito?
Tem tudo que ver com interpretações que se fazem destes conceitos. Há tribunais que têm mais abertura para estes casos do que outros. Mas estamos com o primeiro caso em que se faz uma associação entre as alterações climáticas e direitos humanos, decidido em 2015 pelo Tribunal de Primeira Instância holandês. O caso está agora em fase de recurso e é o primeiro em que se juntam o regime de direitos humanos e o direito civil para se alegar que o facto de um Estado não compactuar com os limites máximos de emissão de gases poluentes também se traduz numa violação dos direitos humanos. A partir deste caso já estão a ser estudadas as hipóteses de repetir este tipo de alegações na Bélgica e tenho a certeza que vai ter efeitos mais alargados.

Num sentido oposto, temos o recente caso de afastamento do Acordo de Paris por parte dos Estados Unidos. 
Temo um Trump a fechar portas mas também temos, nos Estados Unidos, tribunais e governadores que se estão a opor à medida. Penso que a arrogância e a falta de senso desta decisão podem facilmente ser traduzidas num estímulo junto da comunidade internacional para reforçar a sua luta. Gostei muito de ver as reacções ao nível interno. As próprias indústrias, governadores e os presidentes de várias câmaras já afirmaram que vão respeitar o limite máximo de emissões de gases.

Relativamente a Macau, como vê a evolução do direito ambiental no território? 
No meu dia-a-dia não acompanho de perto a realidade de Macau. Dentro daquilo a que tenho acesso está a legislação e a Lei Básica de Macau, que prescreve que o Governo tem o dever de proteger o ambiente. Não consagra o direito ao ambiente mas consagra o dever de o proteger. Temos também a Lei de Bases do Ambiente que é muito completa e interessante. Confere os tais direitos de participação do público a que já me referi, o dever de consulta e os direitos de acesso à justiça quando se trata de causas ambientais. No entanto, o que também se regista é que esta lei de bases padece de regulamentação: os conceitos estão lá, mas não estão a ser operacionalizados na prática. Falo com pessoas à minha volta com pouca informação acerca desta matéria e nós, enquanto cidadãos, temos o direito de o ser. Não se percebe, até agora, o que é que está a acontecer aos resíduos sólidos do território e que não são tratados na central de incineração. Portanto, os resíduos sólidos podem ser tóxicos e estão a ser colocados algures, num lugar que ninguém sabe onde é. Podemos neste momento estar a ser contaminados com isso. São estes casos que dão direitos à população e estes direitos não estão a ser operacionalizados. A qualidade do ar também é uma questão importante e que é necessário fiscalizar. É preciso saber se os veículos obedecem à emissão de determinados poluentes e, ao que parece, Macau importa veículos sem este tipo de cuidados. Quando se fala em construções, apenas os edifícios com uma determinada superfície são sujeitos a estudos de impacto ambiental. Não faz sentido porque um edifício com uma área reduzida de ocupação pode ter muito impacto nas vidas das pessoas. Em suma, Macau tem uma boa lei de bases, mas falta regulamentar.

Terminou recentemente o doutoramento em que aborda a responsabilização dos Estados membros de instituições financeiras internacionais quando são violados os direitos humanos. Porquê esta temática?
Há um problema grave no direito internacional público: gerir a ideia de que há novos actores na cena internacional além dos Estados. O direito é sempre concebido como sendo entre Estados, mas a verdade é que há novos actores extremamente influentes, tais como as organizações internacionais onde estão incluídas as multinacionais. O problema das organizações internacionais, e o que é mais debatido, tem muito que ver com operações militares em que há violação de direitos humanos. O apuramento das responsabilidades neste tipo de operações é da NATO ou dos Estados que contribuem com as suas tropas. O que não é discutido é a responsabilidade associada às operações de instituições financeiras internacionais, tal como o FMI ou o Banco Mundial. Quando o FMI ou quando os Estados membros do FMI decidem os cortes à Grécia ou a Portugal, por exemplo, e as coisas correm mal, não são salvaguardados os direitos ao emprego, à educação e à saúde porque implicam sempre cortes nas despesas. A minha tese explica qual é a responsabilidade da organização em si e qual é a quota-parte de responsabilidade que cabe a cada Estado membro. Os Estados têm o dever de assegurar que as organizações não violam os direitos humanos. Os Estados não podem exercer influência ao ponto de tornarem as organizações inoperacionais mas, dentro das suas competências na organização, podem assegurar medidas que respeitem estes direitos.

6 Jun 2017

Entrevista | João Vasconcelos, secretário de Estado da Indústria de Portugal

Uma China moderna e tecnológica. Foi o que a comitiva que acompanhou o secretário de Estado da Indústria de Portugal, João Vasconcelos, teve oportunidade de observar na visita dos últimos dias ao Continente. Em Macau, João Vasconcelos que ver fortalecidos os laços para a implementação de uma estrutura de acolhimento que facilite a chegada de empresários portugueses. O futuro passa pelo território e Portugal pode ter uma posição de relevo

[dropcap]A[/dropcap]ntes de visitar o território, esteve na China Continental, nomeadamente em Shenzhen e Zhuhai. O que trouxe desta visita?
Foi uma visita muito especial. Pela primeira vez pude trazer de Portugal um ecossistema empresarial ligado à ciência e à inovação, de modo a que os empresários pudessem conhecer esta China virada para a tecnologia e que ainda é muito desconhecida na Europa e em Portugal. Ainda não temos o hábito de associar a China a algumas das melhores empresas do mundo na área da tecnologia. Fomos a Shenzhen que hoje é a capital mundial da inovação. É uma cidade líder quando se fala, por exemplo, de hardware e de produção. Visitámos várias incubadoras de centros tecnológicos. Estivemos ainda com empresas portuguesas que já estão a funcionar em Shenzhen. É impressionante como esta capital está a apenas a uma hora de barco de Macau. Podemos fazer com facilidade o que fizemos nesta viagem. Fomos cerca de 20 pessoas comer um bife à “casa do Benfica” de Macau, o Santos, e a uma hora de distância temos a cidade líder da inovação. Macau é, há centenas de anos, uma porta de entrada para os portugueses na China. A sua proximidade a Shenzhen obriga-nos a ter mais ambições nesta relação.

Qual é concretamente o papel que Macau pode ter?
Macau continua a ser o melhor local para um empresário português se posicionar para que, a partir daqui, possam ser feitas parcerias e estabelecidas relações de compra e venda com a China. Temos feito um grande trabalho com o secretário para a Economia e Finanças, Lionel Leong, nesta aproximação. O objectivo é que Macau venha a ter todas as características e facilidades que um empresário português precisa para que possa utilizar o território como plataforma. Mas queremos ir mais além: queremos que as empresas chinesas façam o mesmo, ou seja, utilizem Macau para contactar com Portugal e com a Europa.

Já há essa abertura materializada em acções concretas?
Sim. Ainda este ano vamos ter um espaço em Lisboa que o secretário Lionel Leong já visitou. Também os serviços de Economia e Finanças de Macau estão a preparar um espaço na capital portuguesa para receber empresários do território e do Continente. A ideia é ainda que possamos ter também, em Macau, uma estrutura análoga capaz de acolher os nossos empreendedores. Queremos que os nossos empresários, na sua chegada ao território, tenham o chamado “soft landing”, ou seja, possam chegar e começar a trabalhar de imediato num escritório com um ambiente preparado para os receber: com as parcerias certas, com os advogados e contabilistas certos, com toda uma equipa de assessoria. O objectivo é tornar esta chegada muito mais fácil para a entrada neste grande mercado que é a China. Trata-se de um mercado exigente, com procedimentos, cultura e hábitos muito diferentes dos nossos, pelo que precisamos sempre de alguém que faça as respectivas traduções. Além da própria língua, precisamos deste tipo de tradução mais alargada. Este papel cabe a Macau. Por outro lado, penso também que o território quer continuar a ter esta função quando se fala em nova economia e em nova China. Não podemos esquecer a crescente abertura do Continente ao mundo e Macau tem de acompanhar a situação. São várias as medidas que já estamos a implementar e esta visita vai nesse sentido. A maior parte das pessoas que me estão a acompanhar nesta comitiva está pela primeira vez em Macau. Também temos de mostrar a esta nova geração de portugueses, que têm entre 20 e 30 anos, que o território não é tão distante quanto pensam. Temos de voltar a aproximar-nos e dar a conhecer ao mundo que aqui ao lado de Shenzhen, que já tem créditos dados, está uma região em que os portugueses se podem sentir em casa.

Na sua actividade política, o apoio às “startups” tem tido destaque. Porquê esta opção?
Penso que tenho tido um papel importante quando se fala de empreendedorismo em geral. O empreendedorismo é uma das principais fontes de novo emprego. Em Portugal, neste momento, quase metade do novo emprego é dado por empresas com menos de cinco anos. Outro factor interessante é que são estas novas empresas que, muitas vezes, pagam mais e são também as principais fontes de inovação em vários sectores. São aquelas que apresentam modelos de negócio mais ambiciosos e mais disruptivos. As novas empresas nasceram dentro de uma das mais profundas crises que Portugal teve nos últimos anos, e apresentam produtos e serviços globais. Um bom exemplo é o facto de, muitas vezes, começarem a exportar logo desde o primeiro ano. Neste momento, quase 30 por cento das nossas cotações são empresas com menos de dez anos. Um país que não tenha uma estratégia clara, forte e sólida para apoiar a criação de novas empresas está a desistir do futuro e da inovação. Isto é o que eu não quero que aconteça com Portugal. Outro aspecto importante é quando falamos de indústrias digitais. Num país dito periférico como o nosso – ou seja, não tem recursos naturais relevantes, tem um mercado interno pequeno, situa-se numa ponta da Europa –, as dificuldades são muitas se pensarmos em logística e transportes, por exemplo. Se pensarmos em termos digitais, a situação muda e podemos dizer que Portugal está no centro do mundo. Quem quiser ter uma empresa para vender para a Europa, para África e para a América, Portugal está na melhor posição possível. Quando falamos de digital, a posição de Portugal é óptima. Podemos estar a vender para todos os cantos do mundo a partir do nosso país. E é aí que Portugal tem de pretender sobressair. Não podemos querer ter uma posição relevante em indústrias pesadas porque não temos matérias-primas e estamos longe do cliente, pelo que a logística irá ter um custo muito grande. Podemos sim estar destacados quando se trata deste tipo de indústrias leves que são também as indústrias do conhecimento, da ciência e da tecnologia. É esse o nosso programa económico. Não são apenas as “startups”, são também empresas de software, hardware, empresas de ciência, farmacêuticas e ligadas à biotecnologia. São empresas como a Farfetch que vende centenas de milhões de euros na China e que, este ano, já tem 800 funcionários em Portugal, está a contratar mais 500 e o maior mercado que tem é precisamente a China. São estas iniciativas que a nova economia permite que queremos fomentar.

É a isso que chama “nova revolução industrial”?
Sim. O digital é a revolução que está neste momento a acontecer, mas em Portugal é uma revolução, como diz Marcelo Rebelo de Sousa, “silenciosa”. Está a alterar a maneira como produzimos, como fabricamos, como vendemos, como nos relacionamos, está a alterar tudo.

Neste momento esta zona do globo está sob alguma pressão devido às circunstâncias que envolvem a Coreia do Norte, os Estados Unidos e a China. Acha que esta situação pode influenciar o interesse, nomeadamente dos portugueses, em investir aqui?
Penso que não. A tensão com a Coreia do Norte, de certa forma, já existe há muito tempo. A nossa relação, pelo menos da Europa com a China, é muito mais intensa do que se pensa e estas circunstâncias não vão ter qualquer influência no interesse dos empresários, muito menos quando falamos de relações económicas.

Esteve envolvido, no ano passado, numa iniciativa civil, a Caravana Aylan Kurdi, que levou toneladas de bens essenciais aos refugiados Sírios que estavam na Hungria. Como é que vê a posição da Europa relativamente a este problema?
Continuamos com muitos desafios de integração e no que respeita a ter uma posição europeia integrada e coordenada em relação a vários problemas. Um deles é o dos refugiados. Penso que vários países fizeram o seu papel ao nível individual, mas era exigida uma posição europeia que nunca chegou a existir. Na situação dos refugiados, foi ainda notório que os líderes europeus muitas vezes anseiam por posições oficiais em assuntos que lhes interessam e noutros nunca exigem o mesmo. No caso dos refugiados faltou essa posição clara, porque se não é a Europa a assumir perante o mundo os valores que devem nortear quem ocupa uma função pública e uma sociedade no sentido de promover a tolerância e a igualdade, dificilmente haverá outras regiões a fazê-lo. No caso dos refugiados, alguns países comportaram-se bem, e em conformidade com a história do continente e do papel que a Europa tem no mundo, enquanto outros nem por isso. Daí também a intervenção que fizemos. Foi acima de tudo uma iniciativa da sociedade civil, com o apoio de milhares de portugueses, e em que atravessámos a Europa para prestar o auxílio que, naquela altura, nos era possível dar, num momento em que vários países estavam a fechar portas a quem estava a fugir à morte.

2 Jun 2017

Ella Lei, deputada: “Vou fazer o meu melhor”

Os Operários ainda não tomaram uma decisão final mas, se tudo correr como espera, Ella Lei será de novo candidata à Assembleia Legislativa. Resta saber se alinha na corrida pelo sufrágio directo ou se vai tentar assegurar um assento por via das eleições de base corporativa. A deputada acredita que pode fazer mais na garantia de habitação e na defesa dos direitos dos trabalhadores locais

[dropcap]P[/dropcap]orque é que decidiu ser deputada?
Foi um processo muito longo. Quando acabei a licenciatura, comecei a trabalhar no escritório dos deputados ligados à Federação das Associações dos Operários de Macau (FAOM), na altura em que Kwan Tsui Hang e Tong Chi Kin estavam na Assembleia Legislativa (AL). No início, fui responsável por alguns casos e, devido à natureza da FAOM, normalmente estavam relacionados com trabalhadores. Como era assistente de deputados, escrevia comunicados e dava-lhes assistência nalguns casos que tratámos. Comecei a ter a sensação de que este tipo de trabalho era muito significativo, e tinha contacto com áreas como a lei de trabalho e a segurança social. Depois, por recomendação da FAOM, tornei-me representante dos trabalhadores no Conselho Permanente de Concertação Social, e comecei a participar nas discussões relativas às políticas. Já não era só tratar de casos, também era necessário dar a minha opinião no âmbito da definição de políticas. Apresentei ideias sobre como poderiam ser alteradas as leis, incluindo as que estão em discussão há muito tempo, como o salário mínimo, a lei relativa aos acidentes de trabalho e o regime de previdência. Durante o processo, percebi que é muito importante a fiscalização do Governo e o trabalho de melhoria dos problemas sociais através de legislação. É isso que sinto em relação ao meu trabalho e foi assim que acabei por ser deputada. 

Um dos assuntos que mais preocupa os cidadãos é o imobiliário. Que medidas é que devem ser adoptadas para travar os preços da habitação?
Temos de perceber para que serve o imobiliário numa região. É difícil ao Governo impor restrições aos preços no mercado privado, mas pode fazer outras coisas. Por exemplo, podem ser aumentados os encargos de quem usa a habitação como forma de investimento. Aqueles que têm mais do que uma casa devem pagar o mesmo de contribuição predial? É normal que uma família tenha uma ou duas casas para viver. O problema é que há pessoas com várias fracções residenciais e algumas não são aproveitadas. Esta ideia merece ser discutida. Não há terrenos suficientes, as casas que existem não servem para satisfazer as necessidades. Sentem-se dificuldades, nomeadamente, entre os jovens. Quer seja para comprar ou arrendar, o custo é muito elevado. Mas é claro que, mesmo que o Governo avance com políticas para aumentar fortemente os impostos no mercado imobiliário, se faltam terrenos não temos capacidade para resolver a questão. Sendo assim, só podemos atenuar a especulação. Não acredito que o Governo consiga diminuir facilmente os preços das casas. É importante que o Executivo aproveite as terras para responder às necessidades dos cidadãos. A habitação pública é muito importante. Na minha opinião, o Executivo deve aumentar o número de fracções públicas. Apesar dos projectos que há, a proporção da habitação pública representa uma percentagem pequena no total de fracções em Macau. As casas públicas totalizam apenas vinte e tal por cento das habitações totais. Por isso, além de precisarmos de políticas de controlo da especulação, precisamos de reservar terrenos para habitação pública. Isso também pode contribuir para combater o aumento dos preços das casas.

Qual é a melhor forma de melhorar a situação no acesso à habitação pública em Macau?
No último concurso que o Governo abriu houve mais de 40 mil pedidos, apesar de alguns não reunirem os requisitos necessários, de acordo com os serviços. No futuro, depois de concluídas as obras do aterro da zona A, teremos terrenos disponíveis para a construção da habitação pública. Assim sendo, o Governo deve abrir concursos de admissão de modo a conhecer as necessidades reais dos cidadãos, e planear a direcção da habitação pública no futuro.

O trânsito é outro problema de que a população se queixa. O que pode ser feito?
Em relação ao trânsito, perdemos uma oportunidade importante. No passado, era expectável que o metro ligeiro ligasse os principais pontos do território, tais como as fronteiras e linhas de acesso entre Macau e Coloane, de forma a atenuar a pressão sobre os serviços de autocarro. Mas perdemos essa oportunidade. O Governo declarou que o metro ligeiro entrará em funcionamento em 2019 só no segmento da Taipa, ou seja, não terá um impacto significativo, uma vez que exclui a península de Macau. Se chegasse à zona da Barra, ao menos ligaria Macau e a Taipa. Além disso, o Governo precisa de ter em conta os serviços de autocarro com base nos dados científicos. Sei que as companhias de autocarro estão equipadas com um sistema de avaliação da eficiência dos itinerários. Estes dados podem ser aproveitados para ajustar os percursos. Podem fazer-se rotas de uma forma mais “ponto a ponto”, sem muitas paragens, isso pode facilitar a deslocação dos residentes que vivem longe do centro como, por exemplo, quem mora em Seac Pai Van. Além disso, deve ser reforçada a frequência durante a época alta de turismo. Quero acrescentar ainda que a nova companhia de radiotáxis entrou em serviço há pouco tempo. Por outro lado, Macau é uma cidade boa para andar a pé. Se os transportes públicos não são capazes de resolver as necessidades dos cidadãos, o Governo deve promover a melhoria das instalações pedonais e ligar mais pontos entre diferentes zonas da cidade. Um bom exemplo disso foi a construção da via pedonal perto da Colina da Guia que liga a Zona de Aterros do Porto Exterior ao Tap Seac. Esta medida facilita a vida aos residentes e reduz a necessidade de autocarros. Os idosos também podem aceder a esta via pedonal com a ajuda de elevadores. Se o Governo apostar em medidas destas pode atenuar muito a pressão do trânsito. 

Macau tem uma taxa de desemprego muito baixa. Porque é que insiste na redução do número de trabalhadores não residentes (TNR)?
Actualmente, o número de TNR é de cerca de 180 mil. Na minha opinião, é necessário ajustar esse número através de políticas. Por exemplo, existe uma necessidade enorme de empregados domésticos, uma área com cerca de 20 mil TNR. Nestas áreas não existe grande polémica. Mas é necessário ajustar o número de TNR e dar prioridade aos locais. Para já, o Governo deve estudar a proporção de TNR e trabalhadores locais em cada área, saber onde os residentes locais podem desenvolver a sua carreira. Isso é importante. Não estamos a proibir plenamente a importação de TNR, mas achamos que deve ser uma acção regulamentada pelas leis do território, e que deve cumprir o princípio da primazia de trabalho aos residentes locais. Apesar da taxa de desemprego baixa em Macau, há situações que precisam de ser discutidas. Por exemplo, na construção civil. Há poucos dias falámos com o director dos Serviços para os Assuntos Laborais. Em comparação com o primeiro trimestre de 2015, a taxa de desemprego local no primeiro trimestre deste ano aumentou, bem como a taxa de subemprego. Isso deve-se às obras na zona do Cotai que existiam há uns anos. Naquela altura, os residentes locais conseguiam arranjar emprego. Mas com a diminuição de número de obras em curso, a situação de subemprego piorou. Ao mesmo tempo, o número de TNR da construção civil fixou-se em 30 mil e continua a aumentar. O Governo precisa de resolver a dificuldade da população local em arranjar emprego. É um facto que a taxa de desemprego em Macau está num nível muito baixo, mas existem outros problemas tais como violação de direitos de trabalhadores e dificuldades na progressão na carreira. O Governo diz sempre que “a taxa de desemprego do nosso território é muito baixa, e tal tal tal”, como se não houvesse qualquer problema na política de TNR. A taxa de desemprego é só um factor na análise. Somos contra actos de importação excessiva e desordenada de TNR, que violem os direitos e interesses dos residentes locais.

Com a chegada do fim da actual legislatura, que balanço faz do seu trabalho enquanto deputada?
Entrei na AL através de sufrágio indirecto. Em primeiro lugar, quanto aos assuntos laborais, acho que houve progressos positivos com algumas leis que foram aprovadas. Por exemplo, trabalhámos muito no regime do contrato de trabalho nos serviços públicos, que foi apreciado em 2015. O salário mínimo avançou um pouco e precisa de definição, mas é um assunto que tem de ser resolvido até 2019. Houve pequenos avanços na legislação no que diz respeito aos acidentes de trabalho, quanto à obrigatoriedade de haver seguro de saúde nos dias de tufão de nível 8. Noutras áreas houve maiores avanços. Mas há aspectos que precisamos de melhorar na próxima legislatura, por exemplo, na sobreposição e compensação de férias, e na licença de paternidade. Por outro lado, o Governo está ainda a trabalhar no regime de previdência central não obrigatório. É necessário pensar-se num próximo passo para aperfeiçoar o regime. Em relação à fiscalização ao Governo através de comissão de acompanhamento, consegui fazer com que o Executivo prestasse atenção a alguns assuntos sociais. Por exemplo, no futuro precisamos de fazer mais para melhorar a vida dos idosos em vez de termos só o fundo de segurança social. Depois, há preocupações sobre a forma como o Governo gasta dinheiro nas obras públicas, nomeadamente no que toca a derrapagens orçamentais, falta de fiscalização e obras em atraso. Quando saíram relatórios do Comissariado contra a Corrupção e Comissariado da Auditoria, a AL avançou logo com trabalhos para dar seguimento às situações verificadas. Penso que os cidadãos querem que fiscalizemos as despesas do Governo, de modo a prevenir que se repitam erros do passado. Não podemos gastar dinheiro sem razão justificada.

Quais os assuntos que gostaria de ver discutidos na próxima legislatura?
Quero avançar com trabalhos de alteração às políticas de habitação, a que toda a gente presta muita atenção. A revisão de regulamento do sector dos táxis, que por causa do fim da actual legislatura ficou ainda por fazer. A definição do salário mínimo será uma prioridade. Também acho que o Governo deve imprimir urgência às propostas de lei que têm o seu compromisso, e levá-las à AL para que sejam realizadas de modo mais rápido possível. Por vezes, o Governo entrega as propostas à AL com urgência, sem dar tempo suficiente para apreciarmos a proposta. Esses aspectos precisam de ser melhorados através da melhoria de regimes.

Pensa, portanto, em recandidatar-se à AL?
A nossa equipa ainda não submeteu a candidatura. Quanto a mim, vou fazer o meu melhor. Espero poder continuar a fazer este tipo de trabalho, mas a decisão final depende da nossa equipa.

Vai candidatar-se pelo sufrágio directo?
Vou preparar-me. Se a nossa equipa decidir que me candidato por sufrágio directo tenho de me preparar para isso. A decisão final será confirmada quando submetermos oficialmente a nossa candidatura, porque tem de ser tomada pela nossa equipa.

31 Mai 2017

Sílvia Patrício, artista plástica: “Prefiro ir buscar as imagens às palavras”

Está em Macau à procura de referências para o seu novo projecto. Sílvia Patrício criou as imagens oficiais da canonização de Jacinta e Francisco. A artista plástica falou ao HM do seu percurso, da sua independência e do que espera levar do território

[dropcap]C[/dropcap]omo é que começou a carreira na pintura?
Gostava de desenhar e fui estudar Artes Plásticas para as Caldas da Rainha. Naquela altura pensei no curso como uma forma de dar aulas de uma matéria de que gostava. De certa forma, era uma segurança. Quando terminei o curso já tinha uma loja de objectos produzidos por mim. Mas só comecei a pintar quando terminei o curso. A escola era mais virada para a produção de, por exemplo, instalações. Aliás, na altura até optei pela área da escultura, não tanto por ser das minhas favoritas, mas sim porque era uma oportunidade de ter acesso a máquinas de explorar técnicas que, de outra forma, seria mais difícil.

Deu aulas numa fase inicial da carreira. Acha que é possível ensinar aquilo a que se chama ‘talento’?
Sim. Acho que qualquer arte é primordial e deve ser ensinada desde muito cedo. Independentemente da forma de arte, é uma forma de desenvolver a criatividade. Há uma grande lacuna neste campo que se manifesta na desvalorização de um ensino real das artes desde criança. Infelizmente, as pessoas são educadas com a frase “não tem jeito para o desenho, não pode seguir uma carreira artística”. Mas, para mim, qualquer pessoa, desde que seja acompanhada, pode criar. Apesar de gostar de ter dado aulas, o que realmente gostava era de desenhar e de pintar. Acabei por deixar tudo, a loja e as aulas, e dedicar-me completamente à pintura.

Foi quando produziu as obras que integraram o projecto “Essa Paixão Proibida”, inspirado em “O Crime do Padre Amaro”?
Sim. O projecto ainda foi realizado a fazer outras coisas, mas com a sua venda percebi que a pintura podia ser sustentável.

Como é que apareceu a ideia de pegar neste romance de Eça de Queirós?
Estava a ler o livro e, como vivo em Leiria, ao passear pelas ruas, fui descobrindo que muitos dos edifícios por onde passava serviram de cenário ao romance. Fui-me vendo nos próprios espaços. Acabei por pedir autorização para visitar e fotografar. “Essa Paixão Proibida” passa pelo lado físico, que existe e que tem estes elementos reais do contexto do livro, e por um lado fantasioso em que está a minha visão do que leio e em que dou uma cara a personagens que existem de forma apenas escrita.

Como é recriar um romance nas telas? Estamos a falar de um escritor que também é muito descritivo. Funcionou como uma ajuda, de alguma forma?
Ajudou muito. É claro que temos de criar sobre o que lemos mas, por exemplo, um rosto se for descrito como sendo redondo, tendo lábios finos, etc., tento seguir esses traços.

Mas usa modelos reais?
Sim. Vou à procura de pessoas que façam parte da minha vida e que, de alguma forma, correspondam aos traços que idealizo. Também procuro pessoas desconhecidas, mas tento sempre ir ter com as que conheço porque gosto de as incluir no meu trabalho. Acho que é um processo interessante.

A instalação é agora o formato que caracteriza grande parte do que faz. Porquê?
Na altura de “Essa Paixão Proibida” fiz um quadro referente à tecedeira de anjos. Chamava-se assim à mulher que fazia desaparecer as crianças indesejadas. A personagem está a tecer num tear e do tapete saem crianças com asas. Acompanhei a tela com esculturas em que esses “anjos” são uma espécie de continuação tridimensional da própria pintura. Ao projecto juntei um trabalho de sonoplastia feito pelo António Cova. O público tinha desta forma um meio para ouvir um outro trabalho que continha os trechos que inspiraram cada tela. Acabei por conseguir ter algum sucesso e dar-me a conhecer. A colecção foi vendida na totalidade a um coleccionador privado, o que me permitiu continuar a trabalhar apenas na área da pintura e artes plásticas. Depois, acabei por perceber que a junção de vários meios e a sua conjugação completa os próprios trabalhos. Dá-lhes outras vidas.

FOTO: Ricardo Graça / Jornal de Leiria

É a autora das imagens oficiais da canonização dos pastorinhos que foram vistas no mundo inteiro. Como é que este trabalho apareceu e como está a ser encarado?
O convite surgiu na sequência de outro convite. O Museu de Leiria tinha-me convidado para fazer um quadro para a sua colecção e, numa das reuniões, conheci o director do Santuário, Marco Daniel. Ele teve acesso ao meu trabalho, mostrou-se interessado e disse que gostaria de ver como seriam os pastorinhos através do meu olhar. Tratava-se de um trabalho iconográfico e o que fiz foi tentar dar vida àqueles seres que conhecia apenas de fotografias. O meu objectivo não era só chegar a um retrato dos pastorinhos, era conseguir captar o que eles tinham por dentro. Queria também que quem os visse sentisse que as obras eram mais do que um retrato. Os rostos são carregados, são de vidas que não foram fáceis. Juntei depois alguns símbolos que me foram pedidos e para o efeito criei uma auréola. Fazia sentido tratando-se de uma canonização. Acabou por ser uma forma de me dar a conhecer a uma população mais vasta, visto as imagens terem corrido o mundo.

Não trabalha normalmente com galerias e muitas vezes são elas que projectam os artistas. Foi uma opção em que insiste. Porquê?
Acho que é importante termos liberdade. É fundamental poder escolher os temas em que vou trabalhar. O que tenho sentido é que, sem estar a generalizar, muitas galerias vêm o artista como uma espécie de operário. Se antigamente as galerias podiam ter uma paixão pelos trabalhos ou pelos artistas que escolhiam e davam uma ajuda, sinto que na actualidade uma obra é um mero objecto comercial que valoriza e desvaloriza conforme, muitas vezes, a corrente do momento. Posso vender menos e não ser tão conhecida mas, até agora, esta independência foi a situação que me pareceu melhor para o que quero fazer. Não consigo ter o mesmo acesso e projecção que um artista de uma galeria. Em termos de projectos, os meus também são muito morosos.

Antes deste projecto ligado à religião, produziu “Humanário”, em que também pegou na Bíblia. Alguma razão em particular?
Já tinha pensado em fazer um projecto baseado nesse livro. Não o escolhi por motivos religiosos, mas por ser um livro, acima de tudo, sobre os Homens. Comecei a trabalhar e, na mesma altura, a minha mãe adoeceu subitamente e acabou por morrer. Pus em causa se deveria continuar com o projecto. Acabei por continuar e o próprio trabalho talvez tenha acabado por mudar um pouco. Quando se sabe que alguém vai desaparecer da nossa vida, penso que, mesmo inconscientemente, tentamos criar uma ponte com a parte que vai embora e que não se vê.

Vai buscar inspiração aos livros, acabámos de falar de dois. Porquê?
Apesar de gostar muito de cinema, por exemplo, prefiro sempre ir buscar as minhas imagens às palavras. Os filmes acabam por condicionar o nosso imaginário, já nos dão uma imagem. É muito mais complicado estar a criar uma coisa visível sobre outra também visível. É muito interessante agarrar nas palavras e delas ir para outra coisa, para uma coisa física, seja uma pintura ou um objecto.

É a primeira vez na Ásia e está cá também para preparar novos trabalhos. Como está a correr este encontro?
Macau é um sítio muito particular. Ainda é cedo para falar porque estou cá há pouco tempo. Uma coisa que pode ser banal, mas que me impressionou: se olharmos para os edifícios, cada varanda tem a sua decoração. São todas diferentes. A estrutura é a mesma, mas umas são de vidro, outras de pedra, outras de metal e madeira. Nunca tinha imaginado um prédio com as varandas todas diferentes. Isto faz-me pensar que aqui as pessoas têm um universo único que se transmite, por exemplo, nestas coisas. Sinto também que anda tudo a olhar muito para dentro de si e quando olham para fora é para o telemóvel. Entretanto, espero levar daqui elementos para um projecto futuro em que pretendo juntar os mundos que conheço. Neste momento estou a pesquisar, a absorver, por exemplo, padrões e estruturas. Gostava que o resultado do que ando a ver e sentir pudesse cá vir em forma de projecto. Sem cair no lugar-comum, gostava de desenvolver uma ligação entre Portugal e China no geral.

O seu trabalho já foi várias vezes comparado com o de Paula Rego.
Já ouvi isso muitas vezes. De certa forma entendo o paralelismo. Trabalhamos um pouco acerca dos mesmos universos em que existe a pessoa associada a elementos fantasiosos. Por outro lado, a dimensão também é idêntica, é em escala real. A Paula Rego também trabalhou “O Crime do Padre Amaro”, mas de uma forma muito diferente. Ela debruçou-se sobre a temática do aborto e eu fui pelo lado da paixão proibida. De alguma forma, até foi uma honra ter tido essa comparação. No entanto, actualmente penso que, quem conhecer o meu trabalho, já não fará essa afirmação. A mudança tem sido natural e inconsciente. Aos poucos vou entrando noutros universos e vou descobrindo outras coisas.

29 Mai 2017

Alexandre Farto aka Vhils, artista: “Gosto de trabalhar com as forças do caos”

“Destroços” é a primeira exposição individual em Macau do artista português Alexandre Farto, conhecido como Vhils. A inauguração tem lugar no próximo dia 31 nas Oficinas Navais N.º1. Ao HM, Alexandre Farto falou do seu percurso entre artista marginal e referência internacional, e do que o move no seu trabalho

[dropcap]A[/dropcap] intervenção urbana passou de arte marginal a arte com reconhecimento internacional. Concorda? Na sua opinião, como é que foi feito este trajecto, e o que motivou o crescente interesse e reconhecimento?
Em certa medida, sim. Parte daquilo que começou como um movimento marginal, ilegal, evoluiu nos últimos anos para uma nova forma de arte pública, com reconhecimento institucional. Mas este é um fenómeno complexo e é preciso não desligar a coisa inteiramente do meio onde surgiu. Se, por um lado, temos esse crescente reconhecimento, ainda há muita gente a criar ilegalmente no espaço urbano, e essa vitalidade, que não podemos desligar da sua natureza marginal, é importante. Como qualquer outro fenómeno que nasceu das subculturas, seja em que área for, esta forma de arte surgiu das margens e, depois, a sua crescente popularidade fê-la ser absorvida pelo mainstream. O sistema sabe bem absorver aquilo que acha aproveitável, mesmo quando tem origem em movimentos anti-sistémicos. Este trajecto tem muito que ver com, por um lado, o amadurecimento desta geração dos últimos 20 ou 30 anos que cresceu com esta forma de arte, que gosta e segue o trabalho destes artistas e que, agora, começa a ter a oportunidade de os apoiar. Por outro lado, tem havido um reconhecimento institucional, sobretudo da parte das autarquias e governos locais que começam a vê-la como parte de uma solução, e não apenas como parte de um problema ligado à cidade e o modo como se vive a cidade. Há depois também todo um trabalho por parte de investigadores, curadores, galeristas e outros agentes ligados à dimensão institucional das artes que tem contribuído positivamente para este reconhecimento e valorização.

No seu caso, como é que o Vhils saiu da marginalidade? Como foi a evolução estética e técnica no seu trabalho?
Bom, o Vhils tem origem precisamente nesses tempos de marginalidade. Surgiu nesse meio, como produto desse mesmo meio. Primeiro no graffiti ilegal, uma prática que me permitiu expressar a rebeldia própria da adolescência e a liberdade de explorar a cidade e ocupar o meu lugar no espaço público, de mostrar que não era invisível como tantos outros. Teve muito que ver com a minha própria emancipação. No entanto, o graffiti funciona dentro de uma lógica de circulo fechado, sendo feito apenas para quem está dentro da comunidade. Apesar de não ter deixado de pintar, cheguei a uma certa altura em que comecei a reflectir sobre o que estava a fazer, o que queria fazer, e a consciencializar-me sobre o potencial de usar o mesmo espaço para comunicar com um público muito mais vasto. Comecei a explorar outras técnicas e a trabalhar com a cidade de outra forma. À medida que fui crescendo, comecei a desenvolver esta reflexão sobre a natureza da cidade contemporânea, o modo como vivemos neste espaço, o sistema que a sustém. A certa altura, entendi que as paredes que eu andava a pintar já tinham as suas histórias contidas nas suas camadas. Em Lisboa isto era visível, havia restos de murais da revolução que nos falavam dessa utopia, depois cartazes publicitários que nos falavam do boom do desenvolvimento e da integração no sistema capitalista, por cima disso veio o graffiti e depois as paredes foram sendo pintadas de novo pelas autarquias até levarem com mais graffiti, mais cartazes, e por aí adiante. O que entendi foi que as paredes vão ganhando camadas que captam todos esses registos, e que hoje em dia estas mudanças são tão velozes que parece difícil conseguirmos absorver tudo. Foi com base nessas observações que procurei começar a trabalhar com estas camadas que já lá estavam, em vez de estar a adicionar mais. Ao mesmo tempo fui-me juntando com outras pessoas com as quais partilhava o interesse de expor trabalho noutros ambientes, e começámos a organizar as nossas próprias exposições. A mais importante foi a Visual Street Performance (VSP) que teve uma edição anual entre 2005 e 2010. Comecei também a tentar mostrar trabalho em galerias. Da junção desses dois contextos conheci a galerista Vera Cortês que se interessou pelo meu trabalho e decidiu apoiar-me. Em 2006 tive a primeira exposição na sua galeria em Lisboa. Foi nessa altura que comecei a trabalhar com aglomerados de cartazes que retirava da rua e a explorar um processo de subtracção dos materiais. A ideia é anular parte destas camadas e expor a entranha, tornar visível aquilo que é invisível, expor a sua história através de processos destrutivos. Pouco depois comecei a fazer o mesmo com as paredes, e o trabalho que faço hoje partiu daí. Em 2007, mudei-me para Londres para estudar na universidade, o que acabou por ser uma fase muito importante para a internacionalização do meu trabalho. Em Londres fui convidado a trabalhar com a Lazarides Gallery e, depois disso, os convites foram-se sucedendo para desenvolver projectos em vários pontos do mundo. No entanto, não deixei de fazer coisas em Portugal, e depois de alguns anos senti que já não fazia sentido ver o país como periférico e podia perfeitamente trabalhar a partir de Lisboa para o mundo. Em 2012 voltei a Portugal, onde abri o meu estúdio. Entretanto tive um convite para fazer uma residência artística em Hong Kong e mudei-me para aqui em 2015. De forma a poder aproveitar o potencial da região abri um segundo estúdio e, desde então, tenho trabalhado entre Lisboa e Hong Kong.

FOTO: Paulo Spranger/Global Imagens

Em que é que o Vhils intervém e o que comunica com o público?
A ideia é criar um diálogo com alguns elementos da realidade material, mas também imaterial, da cidade, desenvolvendo uma reflexão sobre a natureza das sociedades urbanas contemporâneas através da fricção e justaposição. Gosto de trabalhar com as forças do caos presentes na cidade, de as incorporar na obra, de revelar a essência das coisas que, simbolicamente, se encontra soterrada nas camadas que as compõem. Daí o recurso a processo destrutivos que, por um lado, têm origem na noção de vandalismo estético presente no graffiti, e, por outro, também espelham os ciclos de destruição e criação através dos quais a cidade opera o seu crescimento. O meu trabalho deve muito ao espaço urbano, bebe muito daquilo que ele oferece e produz, procurando desenvolver uma reflexão sobre a sua natureza e as suas características, assim como a relação que tem com aqueles que nele habitam. Depois estabelece uma ligação com aquilo que lhe dá forma no presente, questionando o modelo de desenvolvimento globalizante e o modo como este afecta a identidade de indivíduos, comunidades e culturas a um nível local. Tenta, acima de tudo, tornar visível o invisível, seja ao nível de materiais ou ao nível de pessoas e comunidades. Faz uma leitura de contrastes entre estes temas, assim como o impacto das mudanças em curso, sobre a destruição que cria e a criação que destrói. Para mim a arte só faz sentido quando faz uso da capacidade de sensibilizar e ajudar a promover a discussão. Mas eu prefiro ver o meu trabalho mais como uma reflexão crítica sobre vários tópicos que considero importantes do que propriamente uma forma de acção política.

Que aspectos da actualidade merecem um alerta maior?
Acho que há vários aspectos que estão relacionados. Têm origem na mesma questão, num processo desencadeado por este modelo de desenvolvimento que seguimos de forma irreflectida. Um modelo que tem trazido coisas positivas e negativas mas que, em última instância, é absolutamente insustentável a longo prazo. Preocupa-me sobretudo a assimetria entre mundos (entre aqueles que têm cada vez mais e aqueles que têm cada vez menos), assim como a erosão das identidades locais através da imposição de padrões uniformizantes. Creio que a arte serve para levantar questões, para ajudar a reflectir, para ajudar a chamar a atenção para situações importantes e inquietantes. Não tenho a presunção de achar que tenho todas as respostas ou soluções para estas questões. Acho que é importante reflectirmos em conjunto, trabalharmos em conjunto. A questão é haver vontade para tal.

Num futuro, o que prevê que possam vir a ser os motes para o seu trabalho? Quais os “perigos” que devem ser reflectidos?
É difícil projectar no futuro, mas creio que, entre outros, a cidade, o modo como opera, a crescente uniformização que o presente modelo de desenvolvimento global impõe, a erosão das especificidades culturais e identitárias locais, a crescente tensão entre o espaço urbano e o espaço rural, são temas que irei continuar a explorar nos próximos tempos.

Porquê Vhils? Há alguma história por detrás do nome?
O nome Vhils vem da altura em que pintava graffiti ilegal. É um nome que segue a mesma lógica de um pseudónimo, mas escolhido para ser escrito, difundido e desenvolvido esteticamente. Não tem significado nenhum, a sua escolha deve-se apenas à sequência de letras que me agradava, e permitia escrevê-lo e pintá-lo de forma rápida e segura. Quando comecei a apresentar trabalho em exposições já era conhecido como Vhils e decidi manter o seu uso junto com o meu nome verdadeiro. 

Disse em entrevista que antes de ser convidado pela Fundação de Arte de Hong Kong já era sua intenção passar uns tempos no Oriente. Porquê? O que via deste lado do mundo para querer vir até cá?
Em 2012, fiz uma residência artística em Xangai e gostei muito da China. No ano seguinte vim a Hong Kong pela primeira vez trabalhar numa peça e numa exposição e também me senti bem aqui. Como disse, a natureza do meu trabalho é a realidade urbana. A escala da transformação, desenvolvimento e mudança que aqui está a acontecer não tem paralelo no presente, mesmo se a observarmos à volta do mundo. Por este motivo, é terreno fértil para me inspirar e reflectir.

Depois do mural de Camilo Pessanha para o Consulado, tem agora a primeira exposição individual em Macau. Tem um significado especial?
Sim, certamente. Macau é um entreposto de culturas, um território rico em encontros e desencontros com tudo o que isso trouxe de positivo e negativo ao longo dos séculos. É exactamente o tipo de sítio que eu gosto de explorar e trabalhar, com uma enorme riqueza de camadas que foi acumulando ao longo do tempo, e encontra-se também num processo de grande transformação e desenvolvimento. Tudo isto me fascina por vários e diferentes motivos. Obviamente que tem o acréscimo da ligação portuguesa que, caindo num lugar-comum, é aquele misto de familiaridade e exotismo que toca a quem vem do outro lado do mundo.

Projectos na calha?
Há muitos em curso. Entre aqueles que posso divulgar encontra-se outra exposição individual no CAFA Art Museum, em Pequim, que abre no final do mês de Junho.

22 Mai 2017

Miguel de Senna Fernandes: “Apoiar a cultura macaense é algo muito vago”

É dos momentos altos do Festival de Artes de Macau. O Centro Cultural enche-se para ver o teatro em patuá, o teatro que se ri da cidade e com a cidade. Miguel de Senna Fernandes, responsável pelo grupo, promete, para hoje e amanhã, a habitual boa disposição. À boleia do riso, os assuntos mais sérios: a falta de uma sede para os Dóci Papiaçám, o pouco apoio institucional e a inexistência de uma ideia oficial para a preservação da cultura macaense

[dropcap]O[/dropcap] que é que se conta este ano em “Sórti na Téra di Tufám” (Sorte em Terra de Tufão)? Qual é o vosso objectivo desta vez?
Não há objectivos especiais, a não ser fazer o público rir.

Mas as peças prestam-se à sátira.
Sim, há uma preocupação temática. Este ano temos um tufão como pano de fundo e o que é ter sorte num dia de tempestade. Imagine-se um azarado a quem acontecem as coisas mais mirabolantes possíveis, aquilo que não é provável acontecer a outras pessoas. Imagine-se que, na empresa onde trabalha, todos tiveram aumentos, mas ele não só não teve esse aumento, como ainda foi despedido. E calha-lhe um bilhete de lotaria que foi rejeitado por todos os outros. São 90 milhões, mas não pode reclamar o prémio. Não pode fazê-lo porque, em Macau, seria ilegal e, em segundo lugar, não pode ir para Hong Kong por causa do tufão. Portanto, estamos nesta jigajoga. Tem de esperar que o tufão passe para poder, mais tarde e com relativa segurança, ir a Hong Kong reclamar o seu prémio. Neste compasso de espera, ninguém acredita que o azarado possa ter tanta sorte e cobiçam o bilhete. Temos um plot à volta destas coisas.

Há muitos azarados em Macau? Há muitas situações que se prestam à falta de sorte?
É tudo muito relativo. A sorte de uns é o azar de outros.

Mas vivemos numa cidade muito ditada pela sorte e pelo azar.
Acontece tudo. Macau é uma cidade pacata, mas de contradições: aquilo que é bom para uns pode não o ser para outros. Nestes últimos dez anos, os Dóci Papiaçám têm vindo a abordar assuntos do burgo, sempre através de uma história. Com essa história desenvolvemos a nossa faceta crítica em relação ao que acontece em Macau. Todos nos lembramos que um tufão, no ano passado, causou algumas confusões na cidade. Achei que podia ser hilariante falar sobre isto. Não iríamos, naturalmente, falar das pessoas, mas sim das situações. E as situações são cómicas.

À semelhança do que tem vindo a acontecer nos últimos anos, há actores improváveis? Há surpresas?
A improbabilidade existe sempre – até eu sou improvável pelas circunstâncias de realizar um vídeo. Mas em relação aos actores, ao contrário do que aconteceu nas edições anteriores em que tem havido sempre uma estreia, este ano não há. No entanto, temos um regresso: a Ângela, que já representou connosco, a última vez em 2001, antes de partir para estudar em Inglaterra. Voltou no final do ano passado, tive conhecimento da sua vinda e enderecei-lhe o convite. É uma espécie de estreia nuns Dóci Papiaçám bem diferentes do que quando ela nos deixou. Quanto a outros aspectos, não há grandes improbabilidades. Mas os imprevistos vão sempre surgindo, todos os anos há coisas pelas quais não esperávamos e somos, muitas vezes, empurrados a fazer. Este ano não tem sido excepção. Como disse, em face da ausência do Sérgio Perez – a pessoa que me deixava absolutamente descansado, era o homem do vídeo que veio dar uma dimensão nova ao espectáculo –, coloquei em prática o mínimo que aprendi com ele. É um trabalho de aprendiz. Mas desta vez pudemos contar com o António Faria, um profissional de mão cheia, temos o Miguel Andrade na sonoplastia, o Miguel Khan, o André Ritchie. Tivemos pessoal de apoio suficiente para podermos pôr o vídeo a funcionar. Temos algumas surpresas – e como são surpresas, não vou desvendá-las. Acho que o espectáculo tem todas as condições para oferecer boa disposição para o fim-de-semana.

Os Dóci Papiaçám continuam a debater-se com a falta de um espaço próprio.
Sim. É daquelas coisas que fazem atravancar a concretização de ideias. Há já vários anos que andamos à volta desta questão. Claro que a gente não morre por causa disso, mas ter um local é sempre melhor. Se não estou em erro, é o quinto ano que utilizamos o espaço da Escola Portuguesa para os nossos ensaios. Mas as actividades dos Dóci Papiaçám não se podem resumir a ensaios, até porque os ensaios servem para determinado fim. Os Dóci Papiaçám querem andar mais, querem ir mais longe. Precisamos de formação técnica. Os actores não têm qualquer tipo de formação, são todos autodidactas. Eu também não tenho, é a custa da experiência acumulada nestes 24 anos. Acredito que se tivesse formação técnica, teria nos horizontes outras soluções para o espectáculo. Não que me queixe, gosto de todos os espectáculos que a gente faz, mas seguramente que os Dóci Papiaçám ficariam apetrechados de outra qualidade técnica. O mesmo acontece com os actores, que são todos amadores, mesmo aqueles que são mais experientes. Os papéis não variam muito justamente porque os actores têm as suas limitações técnicas. Se pudéssemos fazer alguma coisa a este respeito, teríamos outro tipo de opções.

A cultura macaense não é a mais visível na cidade e os Dóci Papiaçám são das poucas manifestações regulares desta cultura. Compreende-se que num território onde o discurso político enaltece, com regularidade, a cultura macaense, o grupo não tenha uma sede?

Ora aí está. Há vários anos, falámos não só com o antigo Chefe do Executivo, como com o actual, acerca da necessidade de obtermos um espaço. Compreendo alguma dificuldade, mas não é assim tanta. Os Dóci Papiaçám não querem um apartamento – precisam, do mínimo, de um sítio onde possam organizar ensaios. Mas não precisamos de um espaço muito grande. Dou um exemplo: o átrio da Escola Portuguesa, numa primeira fase, funciona como local de ensaios. Só depois, numa fase posterior, é que passamos para o ginásio. Não precisamos assim de tanto espaço. Mas falámos com os dois Chefes do Executivo, com o Instituto Cultural, e a resposta que nos dão é sempre de não compromisso. Essa postura de não compromisso é o mais típico aqui da terra. A gente vai esperando. Não é por causa disto que deixamos de fazer espectáculos. As pessoas que me conhecem sabem que eu posso esperar, mas vou fazendo o trabalho. E é isso que tem sido feito – a postura dos Dóci Papiaçám é essa. É uma questão de atitude.

Esta postura de não compromisso do Governo detecta-se noutros aspectos que deveriam ser resolvidos de uma forma diferente?
É na área cultural que se sente mais. O discurso é sempre o de apoio à cultura macaense, mas apoiar a cultura macaense é algo muito vago. O que é se apoia? A palavra “cultura” refere-se a algo imaterial. Quando falamos de cultura, referimo-nos a manifestações e isso é que é fundamental. Era necessário dotar as instituições, aquelas que desenvolvem actividades nesta área, com os instrumentos fundamentais para que essa cultura seja efectivamente defendida. O Governo apoia os Dóci Papiaçám? Claro que apoia, todos os anos assegura o nosso lugar no Festival de Artes de Macau, do Instituto Cultural, o que agradecemos e temos vindo a agradecer há mais de 20 anos, na altura ainda na Administração portuguesa. Mas não basta, não é assim: “Eu dou-te o orçamento para fazeres um espetáculo e já te estou a apoiar”. Claro que se não fosse esse dinheiro os Dóci Papiaçám não podiam existir enquanto grupo. Só que quando falamos em defender a cultura macaense não é só pagar: é preciso meios para que estas actividades possam ser efectivadas. Chego a compreender que o Governo possa ter as mãos atadas, porque a comunidade macaense não é a única em Macau. Há muitas outras comunidades, até entre a comunidade chinesa, pelo que percebo o problema que se coloca em relação ao que é politicamente correcto, a questão de dar a umas e não dar a outras. Também não gostaria de sentir um favorecimento do Governo.

Mas a comunidade macaense, até do ponto de vista histórico, não é uma comunidade qualquer.
Lá está. É importante que o Governo considere a perspectiva histórica. Não quero ser injusto: obviamente que o apoio que se dá à comunidade macaense tem que ver com o seu background histórico, os macaenses estiveram sempre em Macau e, durante toda a existência do território, contribuíram para a identidade muito própria desta cidade. No entanto, muitas vezes, na prática, existem falhas. Temos associações que estão a fazer o seu trabalho, que querem desenvolvê-lo e não têm orçamento para mais do que o mínimo. Há dinheiro para o funcionamento e para algumas actividades, uns passeios e alguns convívios, mas não existem projectos como devia haver. Há sempre uma postura reservada em relação à Associação dos Macaenses e isso leva-nos a várias leituras. Não choramos por isto: claro que lamentamos não podermos concretizar demasiados projectos, mas não choramos, nem fazemos birras. Não gosto de choramingar, governamo-nos bem com aquilo que temos. É assim que acontece na Associação dos Macaenses e na Associação Promotora da Instrução dos Macaenses, onde sou dirigente, e foi sempre assim nos Dóci Papiaçám. Claro que gostaríamos de ter mais: quando vemos aquilo que a imprensa publicita sobre os valores que determinadas entidades obtêm, levamos as mãos à cabeça. Não vou obviamente julgar ninguém, as entidades a quem compete conceder e conferir esses subsídios melhor saberão das razões. Mas o certo é que as associações macaenses e todas as que estejam ligadas à língua portuguesa precisam de apoios. Voltando à questão inicial, àquilo que é defender a cultura macaense, devolvo a pergunta ao Governo. O que é ele quer? Como é que o Governo imagina o que é defender, ou pelo menos proteger, a cultura macaense? Gostaria que nos esclarecessem. Mas não vamos morrer, vamos fazendo o nosso trabalho e, no que toca aos Dóci Papiaçám, todos os anos vamos, pelo menos, fazer tudo para que o público ria.

19 Mai 2017

Jorge Neto Valente, empresário e candidato às legislativas: “A lei de não residentes é muito arcaica”

Jorge Neto Valente tem o mesmo nome do pai, mas seguiu um rumo diferente. Empresário ligado a várias associações, como a Associação dos Jovens Macaenses, Jorge Valente vai enveredar pela política como número dois da lista de Melinda Chan. Em entrevista, defende uma mudança profunda no sector empresarial e na contratação ao exterior, uma aposta no português e uma subida dos salários dos médicos

[dropcap]E[/dropcap]sta semana foi noticiado que vai integrar a lista candidata às eleições, encabeçada por Melinda Chan. Por que decidiu aceitar este desafio?
Há várias razões. Quem decidir candidatar-se à Assembleia Legislativa (AL) pode direccionar o rumo que entender melhor. Na AL, neste momento, há uma falha em termos de escolha e vou acrescentar um equilíbrio que não existe.

Refere-se ao número de deputados eleitos pela via directa?
Há uma falha na representatividade da população. No meu caso e no de Melinda Chan, falamos da eleição pela via directa. Tenho alguns pontos em comum com Melinda Chan, sobretudo na parte das Pequenas e Médias Empresas (PME) e da classe média. Trago alguns pontos que Melinda Chan já está a tratar, mas que posso abordar de uma maneira mais forte, que é a representação dos jovens, dos funcionários públicos, dos funcionários aposentados. Da parte macaense e portuguesa. Todas as associações das quais faço parte têm três pontos em comum: ou porque é a juventude, a ligação luso-chinesa, e isso engloba a plataforma de Macau e também a ligação a Portugal, e ainda as PME, onde engloba as startups. Tenho três empresas que são startups.

Além da questão da representatividade na Assembleia, que outras falhas pode apontar?
Há outra componente que é a forma de atingir os objectivos. Uma é através da representatividade, outra é termos um fim para chegar lá. Há diferentes deputados e diferentes maneiras de fazer a mesma coisa. Não falando de forma específica, neste momento na AL não há muita representatividade de jovens, dos deputados que defendem os interesses luso-chineses. Vê-se pela falha na educação, porque apenas ao fim de 15 anos, e é uma geração, se lembraram que, afinal, é importante o português. Mas recomeçar uma coisa é difícil, porque só daqui a 15 anos é vem outra geração que fala português e chinês. Ninguém se lembrou de defender essa componente de Macau, que é muito importante, não só para representar a parte macaense e portuguesa, mas há 500 anos de história que se esqueceram. Quem é bilingue tem vantagens competitivas para ir para os países de língua portuguesa. Se não fosse o primeiro-ministro chinês [Li Keqiang], que veio a Macau e que lembrou as pessoas que o português é importante, hoje em dia continuávamos na mesma. Tenho vindo a fazer esse trabalho, mas de um ponto de vista mais local, porque estou ligado a várias associações. Já tínhamos falado deste ponto com a Direcção dos Serviços de Educação e Juventude, há cerca de cinco anos.

A sua candidatura pretende responder a um vazio no hemiciclo, que é a representação da comunidade macaense. O que tem falhado para que uma comunidade tão importante não esteja mais representada?
Houve um esquecimento quando foi a transição. Ninguém se lembrou que era importante. Ainda bem que neste momento existem dois deputados, mas a verdade é que um deputado não pode apenas representar uma pequena comunidade. Ser macaense apenas faz que a pessoa tenha uma perspectiva diferente. Na parte que toca aos deputados macaenses e portugueses, é a forma de trabalho diferente. Sou mais novo e sou de outra geração. Daquilo que se vê na AL, acho que devemos ir sempre pela diplomacia e pela via do diálogo antes de começarmos a bater em todos e a criticar. No caso do secretário para os Transportes e Obras Públicas, não acho que se possa pedir logo que ele se demita. Há outras formas de trabalhar. Serei mais apto a encontrar compromissos através do diálogo.

Falemos da acção governativa. Que análise faz ao trabalho da tutela da Economia e Finanças?
O Governo tem muito dinheiro, é mais fácil governar quando se tem muito dinheiro. Mas também tem de ser bem gasto. Fala-se na diversificação económica há bastante tempo, os resultados não são satisfatórios, e é preciso haver mais diversificação, com resultados. Não chega incentivar jovens e empresários a começarem as suas empresas se depois eles falharem. Vemos muito os restaurantes a abrir e a fechar, e alguns com o subsídio do Governo acabam por fechar, porque não tinham um negócio sustentável. É preciso criar um ambiente onde as PME possam competir.

É preciso ir além da política do subsídio? Criar competitividade?
Sim. O que é que uma empresa precisa? Precisa de capital, pessoal e de uma ideia. Se os custos são altos, é preciso mais capital. Se a mão-de-obra não é qualificada, é preciso contratar mais pessoas para fazerem o mesmo trabalho, que são mais caras. Temos um ambiente que não favorece as PME e ninguém que não seja da área do jogo.

Tem sido muito debatida a questão dos trabalhadores não residentes. Defende uma flexibilização nessa área?
Defendo uma reforma. Temos uma lei de trabalhadores não residentes que é muito arcaica. Temos trabalhadores não residentes qualificados e não qualificados. A quota dos não qualificados claramente foi feita para a construção civil e os restaurantes. E depois as quotas para os qualificados não foram feitas para uma sociedade digital como é a do século XXI. Uma pessoa que seja boa no seu trabalho, e que venha de fora, arranja emprego em Macau. Em Macau precisamos de três a seis meses para ver aprovada a quota dessa pessoa e, em 20 dias, essa pessoa vai dizer que arranjou um emprego melhor, a ganhar mais. Quando voltei de Inglaterra, fiquei com a ideia de que as leis tinham parado nos anos 80. Não houve uma actualização.

O Governo não tem interesse em fazer isso? Ou é a classe empresarial que faz o seu lobby para que essa mudança não aconteça?
Não. O sector empresarial também não gosta do que tem agora. Quando se fala de flexibilidade, o problema é que temos talvez um sistema base que não está a funcionar. Mudando pequenas partes nada vai mudar. Tem de ser uma reforma quase total. Se calhar não houve ainda um plano que agrade a todos, além de que é preciso coragem para mudar em algo que toca a todos.

Acredita na diversificação económica? Que tecido económico teremos daqui a cinco ou dez anos?
Acredito, mas tendo como base a indústria dos casinos. Uma coisa não invalida a outra. Dá-nos jeito os casinos, porque não pagamos muitos impostos. Há muita coisa que se pode fazer. Podemos optar por negócios com países de língua portuguesa para a China, mas não só. A partir daí, quando essa plataforma estiver sólida, podemo-nos expandir para todos os países de “Uma Faixa, Uma Rota”.

Conseguimos ser competitivos para responder a isso?
Depende. Por que não? Há tantos territórios pequenos que conseguem fazer muito mais. Hong Kong é um caso, como centro financeiro é muito importante. Macau pode fazer muitos negócios com os países de língua portuguesa, numa primeira fase, e depois expandir. Acredito também nos locais, mas o que é preciso para criar um ambiente competitivo? Uma boa educação e isso passa não só pelo ensino das duas línguas, mais o inglês, mas também por investir mais na educação, começando pelo início. No ensino superior, poderiam ser criadas mais bolsas para cursos mais necessários, na área do comércio ou línguas. Ainda há muito por fazer: nos últimos 16 anos, muita coisa continuou como antes, embora quase tudo tenha mudado. A maneira de governar não mudou, as leis não mudaram. Por isso é que há muita coisa que fazemos no dia-a-dia em Macau que é incompatível com o resto do mundo.

O ensino superior de Macau poderia melhorar e desenvolver-se ainda mais?
Macau tem um bom ensino superior na área do Direito, mas depois nunca vai ter um curso para médicos.

Não concorda então com a criação de uma Faculdade de Medicina.
Não. Porque uma faculdade de Medicina precisa de ter um hospital universitário também. E não temos. Vamos criar turmas para médicos e, ao fim de poucos anos, Macau vai estar sobrelotado de médicos. O que vamos fazer com os restantes recém-formados? Temos de olhar para o tamanho de Macau. O que resta é saber como encaminhar os jovens para tirarem Medicina lá fora, e incentivá-los a voltar. Falta ainda outra componente: não temos doentes suficientes, casos raros para serem analisados. 

Além disso, não temos ainda o novo hospital concluído.
O actual secretário herdou essa batata quente. Mas tenho visto que os Serviços de Saúde (SS) melhoraram. Nos últimos três anos, talvez. Eu tinha um ramo de saúde nos negócios [foi sócio da Malo Clinic], de onde saí há um ano e meio. À medida que os SS melhoram, as pessoas vão menos para o privado. Mais pessoas são atendidas, melhorou a eficácia interna dos hospitais e centros de saúde. Da parte dos prestadores de saúde privados há a ideia de que o Governo não devia fazer mais, porque tira o negócio. Mas acho que o Governo deveria fazer mais, tem é de melhorar a qualidade. O Governo tem tentado abrir vagas para especialistas, mas acho que nem todas foram preenchidas, e por alguma razão é. Aí voltamos à questão da classificação dos médicos como funcionários públicos. O mundo lá fora evoluiu, e qualquer médico de fora olha para os salários de Macau e pensa “eu ganho melhor noutro sítio”. Aí também é precisa uma reforma do sistema. Quando estava na área da saúde, verificávamos que era difícil contratar médicos de fora.

O seu pai foi deputado há muitos anos. Isso influenciou a sua decisão? Sentiu que tinha de continuar algum legado?
Comparar-me com o meu pai é injusto porque ele já fez tanto, e de uma maneira tão boa, que se fosse um professor a dar nota, ele levava cem por cento. Eu se calhar só consigo 50 por cento, e já fico contente. O mundo mudou e gostaria de fazer tanto como ele. Aceitei juntar-me à Melinda, e quis fazê-lo porque estou a ver que Macau está a encaminhar-se para um rumo que, se calhar, não é o melhor. E nós podemos fazer a diferença. Vamos tentar.

18 Mai 2017

Kou Meng Pok, candidato às eleições legislativas: “O Pearl Horizon é uma armadilha”

Não fosse a confusão em torno do empreendimento da Polytec e Kou Meng Pok jamais pensaria em tentar ser deputado. O presidente da União dos Proprietários do Pearl Horizon candidata-se ao sufrágio de Setembro para defender os interesses das pessoas que ficaram sem as casas que compraram. Se o caso mudar de figura, poderá desistir

 

É candidato às eleições legislativas deste ano. Como é que surgiu esta possibilidade?

Os membros da nossa união já tinham começado a falar da possibilidade de eu me candidatar no ano passado. Na altura, não tínhamos um plano concreto sobre como lutar pelas fracções do Pearl Horizon. Já era o nosso objectivo, mas não sabíamos como concretizá-lo, além das manifestações e reuniões que organizámos, bem como a constituição de uma associação. Tínhamos várias ideias, entre elas a possibilidade de uma candidatura à Assembleia Legislativa (AL). Não tenho experiência nesta área. Se conseguir ser eleito, vou ter de dedicar muito tempo a esse trabalho.

Em que momento é que a decisão foi tomada?

A 31 de Março, caiu por terra a nossa esperança de que fosse explicada a intenção legislativa do Governo. No final do ano passado, surgiu a possibilidade de podermos ouvir [o ex-secretário para os Transportes e Obras Públicas] Lau Si Io, o que acabou por não acontecer. Estávamos à espera que dissesse que, com a entrada em vigor da nova Lei de Terras, caso surgissem problemas, podia abrir-se uma porta para se resolver o assunto. O período de apreciação e aprovação da lei foi muito curto. O Governo fez com que a lei fosse aprovada rapidamente, o que se calhar foi uma armadilha para que os deputados assinassem a proposta. É óbvio que quem está envolvido no assunto precisa de resolvê-lo. Com a implementação da lei, os proprietários foram afectados. Se a nova Lei de Terras tivesse entrado em vigor dois anos mais tarde, o edifício ficaria basicamente construído. Não estamos aqui a julgar se a implementação da nova lei de terras é incorrecta, mas tem impacto para nós. Pensávamos que, depois de uma explicação sobre a intenção legislativa, o Governo e a AL iriam avançar com uma solução para o caso do Pearl Horizon. Macau é uma cidade onde houve uma transferência de administração, está num período de transição, ou seja, as pessoas têm de ter em consideração o que vem do passado. A sociedade tem ignorado este aspecto. Os processos do retorno de Hong Kong e de Macau são casos únicos, é algo que nunca tinha acontecido. Como o Governo português esteve aqui tantos anos, a sociedade tem de prestar atenção à herança histórica e à questão dos terrenos antigos, como é o caso do Pearl Horizon. Em relação à minha candidatura, depois de termos perdido a esperança de ouvirmos uma explicação sobre a intenção legislativa, decidimos tentar entrar na AL, para lutarmos pelo que nos falta. Temos todos o mesmo objectivo e os membros da união querem que seja eu a candidatar-me. Não tenho um interesse pessoal mas, atendendo às solicitações dos membros, vou fazer o meu maior esforço. Vivo em Macau há mais de 30 anos. De facto, tenho muitas ideias em relação a esta sociedade. 

A lista para as eleições já está definida?

Ainda não temos uma lista confirmada.

Acredita que vai conseguir ser eleito?

Como disse na manifestação do 1.o de Maio, se nos unirmos, temos mais de três mil famílias e não será difícil conseguir um assento na AL. A questão mais importante é a união. Se tivermos só mil ou dois mil apoiantes, não podemos fazer nada. Se isso acontecer, demonstra que as pessoas não querem saber.

Além da questão do Pearl Horizon, que outros assuntos quer discutir na AL?

O direito à propriedade privada deve ser respeitado e protegido. Isto é importante, uma sociedade não é só composta por pessoas da classe baixa, mas também das classes média e alta. Não se deve ignorar a classe média. Há muitos funcionários públicos que também adquiriram fracções do Pearl Horizon, mas não têm coragem de falar. Não sei se é por causa do Governo ou se acham que estão numa posição delicada. Por isso, temos sido nós a lutar pelos seus direitos. Se não estivermos aqui, essas pessoas vão ter de enfrentar uma situação muito difícil, porque não podem dizer nada. Fui contactado por vários funcionários públicos que compraram casas no Pearl Horizon. Quem imaginaria que isto pudesse acontecer? O caso do Pearl Horizon é realmente uma armadilha. Não faço ideia se há um grupo das pessoas que decide do destino dos terrenos não aproveitados. Nós consideramos que esta sociedade é muito obscura, não sabemos o que podemos fazer. Em 2011, comprámos fracções de um edifício em construção e, em 2013, a nova Lei de Terras foi implementada. O Governo não deve tratar de todas as questões da mesma forma, sem ter em conta as situações especiais.

Por isso, se conseguir entrar na AL, quer discutir principalmente questões relacionadas com a propriedade…

A protecção do direito à propriedade privada e respeitar o que vem do passado. Digo sempre que a vida de uma pessoa tem muito que ver com a procura de um companheiro e de uma casa. Não há nada mais importante do que isto. Não estou a desvalorizar aqueles que acabam por se candidatar a uma habitação pública, mas todos nós temos uma cabeça, duas mãos e dois pés. Por que razão consigo comprar uma ou duas fracções, enquanto outros não conseguem? A sociedade não me oferece condições especiais, que me beneficiem. As pessoas precisam de rever o que fizeram.

Porque é que decidiu investir no Pearl Horizon?

Tinha confiança no grupo Polytec, que está em operações há mais de 30 anos e que construiu vários empreendimentos. O apartamento onde moro actualmente, no Villa de Mer, também foi da responsabilidade da Polytec. Também comprei esta fracção quando estava ainda em construção. Tenho quatro filhos. Sou da província de Fujian. Por uma questão de tradição, cuidamos do futuro dos nossos descendentes, ou seja, queremos deixar-lhes algo ou comprar-lhes uma casa. Por isso, decidi comprar um apartamento no Pearl Horizon. Posso dizer-lhe que muitos compradores do Pearl Horizon são chineses de Fujian. A casa em que investi é grande e fica numa excelente localização. Há pessoas que dizem que comprámos casas para especular, mas isto é um investimento. A lei permite que seja feito.

Sente que o caso do Pearl Horizon teve consequências ao nível psicológico?

Tenho o apoio da minha família. Sou o presidente da união. Todos acham que isto não é nada razoável, porque investimentos o nosso dinheiro, agimos de forma legal e cumprimos os procedimentos, mas não temos as nossas casas. É isso que causa o nosso descontentamento. O Governo precisa de assumir a responsabilidade, em vez de fazer contas aos custos e aos benefícios. Os compradores encontram-se numa situação muito complicada. Aqueles que têm de pagar uma prestação mensal sentem-se irritados porque não sabem se é adequado continuarem a fazer os pagamentos ao banco. A Lei de Terras teve consequências que são uma tragédia para a sociedade. 

Que análise faz ao desempenho do Governo nos últimos anos? O Governo representa as pessoas de Macau?

O Governo não fez os esclarecimentos que devia em torno da nova Lei de Terras. A maioria das pessoas de Macau não está muito atenta à política, o que é uma situação diferente da que se vive em Hong Kong. Quando se fala em reaver terrenos que estão nas mãos dos ricos, toda a gente concorda. Mas as pessoas não sabem o que é que realmente está a acontecer. E o Governo não fez os devidos esclarecimentos. Quando acontece algo desagradável, as pessoas começam logo a queixar-se. Antes das manifestações, já dizíamos que o Governo não desempenhava bem a sua função: além de não assumir responsabilidades, é tudo muito confuso.

Tem apoios financeiros para a sua candidatura à AL?

Vamos realizar em breve uma actividade de angariação junto dos proprietários. Não vamos usar os recursos financeiros da nossa união. Por isso, vamos pedir ajuda aos amigos e proprietários, que têm uma atitude muito positiva em relação à minha candidatura.

Defende a implementação do sufrágio universal para a eleição do Chefe do Executivo?

Compreendo que o território é um local onde se aplica o princípio “Um país, dois sistemas”. Acho que a noção “um país” deve servir como base e depois há aquilo que fazemos dentro do território. Como sou um cidadão de Macau, apoio a ideia. Mas, em primeiro lugar, não é adequado desafiar os poderes do Governo Central. Não tenho experiência de política, por isso falo à vontade. Temos de amar o país e o território, fazendo aumentar a qualidade de vida dos cidadãos e o seu grau de felicidade. As pessoas podem não ser felizes mesmo que ganhem 50 mil patacas por mês. Antigamente, quando ganhavam só três mil patacas, sentiam-se felizes, porque a vida era simples e confortável, sem grande stress e competição. Sobre o modo como elegemos os membros do Governo, a decisão deve representar a maioria das pessoas. Mas agora o território tem problemas ligados à habitação e aos transportes, o trânsito é muito mau e o metro ligeiro está ainda por desenvolver. Em termos de construção da habitação pública, o Governo precisa de ter um planeamento e garantir mais instalações para os residentes. O Governo precisa de analisar a situação de Macau, por exemplo, se são mesmo necessários tantos shuttle bus dos casinos.

No protesto do 1.o de Maio, falou-se da possibilidade de realizar uma conferência de imprensa em Taiwan e em Pequim sobre o caso Pearl Horizon.

É uma ideia de alguns membros da união e já existe há muito tempo. Entre os compradores muitos deles são de Taiwan, do interior da China, de Singapura e de Hong Kong. Mas não queria que fosse essa a política, embora o incidente passe a ser cada vez mais político. Tinha de controlar a situação e pensava que não precisávamos de ir nesse sentido para resolver o assunto.

E começa agora a sentir essa necessidade?

São as pessoas que pensam que existe essa necessidade, não sou eu que defendo a ideia. Mas não estou propriamente contra. Antigamente não concordava nada com essa possibilidade.

Uma conferência de imprensa no interior da China poderá ser então o caminho?

Tem-se falado numa petição dirigida a Pequim. Actualmente, em Pequim há uma entidade que recebe queixas de pessoas com dificuldades. Assim podemos pedir ajuda ao Governo Central, uma vez que não tivemos nenhuma solução do Governo de Macau.

Se não fosse o caso Pearl Horizon seria candidato à Assembleia?

Não. E não era capaz de imaginar que este incidente ia avançar até este ponto, ter estas consequências.

Vamos imaginar que, de repente, é encontrada uma solução para o problema. Continuará a ser candidato?

Tenho de fazer um esclarecimento: esta candidatura não partiu de uma ideia minha. São os membros da união que querem que eu me candidate. Tudo o que fazemos é decidido depois de realizadas reuniões e as decisões são tomadas com base nos votos da maioria das pessoas. Se o caso for resolvido em pouco tempo, é claro que será um resultado muito satisfatório. Sendo assim, se os membros entenderem que a candidatura não faz sentido, vou deixar de ser candidato. Se eles insistirem – para, por exemplo, fiscalizar os trabalhos das obras e gestão na zona no futuro –, continuarei a ser candidato.

Foi divulgado um vídeo nas redes sociais que mostra alegadamente pessoas a receberem dinheiro para participarem nas manifestações do 1.o de Maio. É verdade?

Não, não pagámos para ter mais participantes na manifestação. Em todas as manifestações que organizámos, nada é obrigatório. Por exemplo, se os participantes quiserem sair mais cedo, não há qualquer problema. Nunca pagámos aos participantes.

17 Mai 2017

Sophie Lei, presidente do International Ladies’ Club of Macau: “Em 35 anos sentimo-nos muito orgulhosas”

Sophie Lei é a presidente do International Ladies’ Club of Macau, uma entidade que se dedica sobretudo a ajudar os que mais precisam. Ao HM, a responsável falou da actividade do clube e da sua importância para a sociedade

Como é que entrou em contacto com o International Ladies’ Club of Macau (ILCM)?

Conheci o clube em 1989 quando fui convidada para um dos seus eventos. Foi a primeira vez que também me juntei a um evento promovido por uma entidade deste género. Foi muito interessante, foi um almoço no Jockey Club e toda a gente usava um chapéu, com um estilo muito ocidental com o qual nunca tinha estado em contacto. Mais tarde, em 2016, fui patrocinadora e acabei por ir ao baile de caridade anual que o clube promove. Achei que a forma de angariar fundos era interessante e que tinha um fim louvável: ajudar os mais necessitados.

O que é para si o ILCM?

É uma associação em que todas as mulheres interessadas se podem juntar, quer sejam estrangeiras ou locais. Temos membros de muitas nacionalidades. Qualquer pessoa que viva em Macau pode juntar-se a nós, partilhar da nossa amizade e, ao mesmo tempo, conhecer pessoas de diferentes sectores. Por outro lado, e não menos importante, é um espaço em que as pessoas podem ajudar quem precisa.

Trabalham com muitas instituições de ajuda social no território e dirigidas a vários públicos. Qual é a área que considera que mais precisa de ajuda?

O mais importante são as acções junto das crianças. Não só aquelas que vivem em orfanatos, mas também aquelas que sofrem de dificuldades de aprendizagem e que vêm de famílias desagregadas. Penso que precisam de mais apoio educativo porque também fazem parte do futuro do território. Temos de apostar em programas que lhes sejam dirigidos e, essencialmente, promover actividades educativas no período depois do horário escolar. Por outro lado, queremos, por exemplo, ter uma forma de dar formação a empregadas que cuidam de idosos. Uma empregada do Sudeste Asiático não saberá como cuidar de uma idosa chinesa. Neste sentido, pretendemos dar formação de como cozinhar e tratar de acordo com a cultura. Quando falamos de necessitados, muitas vezes não estamos a falar de pobreza. Muitas pessoas precisam de dinheiro, de facto, para comer e ter uma vida decente, mas muitas vezes as pessoas também precisam de companhia, de cuidados. É tudo uma questão de amor. Se, com os nossos recursos, pudermos colmatar as necessidades – financeiras, emocionais e sociais –, tanto melhor. Para isso, penso que precisamos de mais membros porque neste momento somos cerca de 200 e, em Macau, o número conta muito, principalmente para os possíveis patrocinadores.

O que têm feito neste sentido?

Temos dedicado muita da nossa ajuda às pessoas com deficiências. Trazemos, por exemplo, músico terapeutas de Hong Kong. Estamos também sempre prontos a ajudar as escolas que nos pedem apoio neste sentido. Uma outra faixa da população que é importante e que necessita de um apoio cada vez maior é a dos idosos. Há lares em Macau, mas os seus serviços não são suficientes. Basta também que levantem a mão a pedir ajuda para que os ajudemos. Nós não vamos ao encontro das instituições, mas estamos disponíveis para que venham pedir-nos apoio. Às vezes, as pessoas pensam que podem ajudar sozinhas, mas isso é complicado porque vão tentar fazê-lo em alturas em que pode não ser necessário. Meses depois, por exemplo, já o é, e é bom que exista uma estrutura como a nossa que está sempre de portas abertas. Tentamos gerir os fundos consoante as necessidades. Por exemplo, no Inverno, quando está frio, as pessoas vão precisar de mais agasalhos. Se temos para dar, guardamos para essa altura. Tratamos desta logística dedicada às necessidades do momento. Quando ajudamos na renda de espaços, não o fazemos de uma vez, mas sim faseadamente, porque assim temos também a certeza de que os donativos são utilizados devidamente.

Como é que conseguem os donativos e os patrocinadores?

A maior parte dos donativos que recebemos deriva do nosso maior evento anual que é o baile de caridade. Com a iniciativa angariamos mais de 70 por cento dos fundos anuais que conseguimos. Temos também eventos mais pequenos de angariação, como jantares e alguns projectos especiais. Mas o baile é a nossa maior tradição. Todos os anos tem lugar entre Abril e Maio, e é onde nos encontramos com os nossos parceiros corporativos e com os patrocinadores. Apelamos também a todos os membros que se juntem à iniciativa e que venham com amigos e família. As inscrições no baile acabam por cobrir o custo do evento, por isso acabamos por ganhar donativos noutras vertentes: através das ofertas dos patrocinadores, de doações de serviços e de bens, estes últimos que entram em leilões que depois organizamos, e fazemos também rifas com prémios.

Todo o dinheiro que angariam vai para programas de caridade?

Sim, 100 por cento das verbas são dirigidas ao apoio das instituições com as quais trabalhamos. Nestes 35 anos de existência, sentimo-nos muito orgulhosas. Nunca tivemos de pagar a funcionários porque todo o trabalho que fazemos no clube é voluntário. Não pagamos renda e pagamos as nossas despesas, quando nos encontramos, do nosso bolso. Depois temos também um bom contributo com as quotas que são de 500 patacas anuais, que podemos usar para as nossas actividades enquanto clube e que aplicamos em eventos nossos.

Qual foi a sua motivação para se tornar presidente do clube?

Foi muito natural. Recordo que o que mais gostei quando fui as primeiras vezes ao clube foi a forma como os membros se mostravam tão entusiasmadas com as actividades que faziam. Depois pensei, sou nascida em Macau, falo cantonês, inglês e percebo um pouco de português. Tenho amigos estrangeiros, chineses e portugueses. Foi quando me ofereci para ajudar. Depois foi natural, acabei por ser vice-presidente e, depois disso, presidente. Estou muito orgulhosa por ser a primeira mulher chinesa neste papel e gostava que mais locais se juntassem ao clube. Apesar de se chamar “International”, é em Macau; por isso, quem quer que esteja em Macau e possa comunicar em inglês é bem-vindo. Gostava de motivar mais mulheres locais a juntarem-se ao clube. Desta forma, penso, acabariam por fazer amigos provenientes de todo o mundo e, ao partilhar tempo com pessoas de vários lugares, podiam também percebê-las melhor, bem como às suas culturas. As pessoas pensam, muitas vezes, que é somente uma associação de caridade, mas é também amizade. Nasceu em 1982 e, nessa altura, não havia muitos estrangeiros em Macau. Quando a fundadora Brenda veio de Hong Kong para Macau, notou que quem cá estava, oriundo de fora, estava muito só. Começou a sair com umas amigas e, passado algum tempo, pensaram que podiam fazer mais. Começaram a visitar orfanatos e a população mais idosa e foi assim que o clube começou. Ajudar os outros apareceu como uma espécie de equilíbrio. Tinham uma vida boa, achavam que a deviam à sociedade e, de alguma forma, quiseram retribuir. É um clube social com um espírito comunitário. É um clube também sobre a amizade, principalmente para aquelas mulheres que vêm do estrangeiro. Chegam com o marido e com a família, sentem-se perdidas e precisam de se integrar. Esta também é uma boa plataforma para recomeçar uma vida em Macau sem se sentirem sozinhas.

Como é o convívio entre mulheres de tantas culturas tão diferentes?

Bem, por sermos mulheres, às vezes é um problema, mas acabamos sempre por resolver as situações. É a vida. O que interessa é que, no fim, todas saibamos que somos boas pessoas, com bom coração. As culturas acabam também por não ser um obstáculo. Por vezes, durante as nossas reuniões, temos discussões. Somos mulheres independentes, de várias culturas, mas estamos também sempre juntas pelas nossas causas e sabemos disso.

As pessoas olham muitas vezes para este tipo de clubes como estando longe da realidade e não têm noção do trabalho comunitário que fazem. O que acha disto?

Este é um clube aberto a todas as mulheres e é uma das três associações de mulheres mais antigas de Macau. Por vezes, o próprio nome gera alguma confissão ao remeter para o conceito de senhora. Mas o nome ‘senhora’ é só um nome bonito para mulheres. O termo mulher é mais prático e quando falamos de senhora parece que perde o valor. Todas estas mulheres que integram o clube já tiveram, por exemplo, uma vida como profissionais de alguma área. Muitas foram professoras, enfermeiras e mesmo engenheiras que sempre trabalharam até chegarem a Macau. Depois desistiram de tudo para acompanhar os maridos e a família. Com a vinda, precisavam de tempo para tomar conta das crianças. Não é só uma senhora, estamos a falar de mulheres trabalhadoras e úteis até virem para Macau. Uma vez no território, tiveram de ter outras prioridades, tiveram de se dedicar mais à família, especialmente aquelas com filhos pequenos. Se tinham possibilidade financeira, escolheram ficar com as crianças, principalmente num ambiente estranho e novo como é Macau quando se chega. No entanto, resolveram também ocupar o tempo com trabalho social. É pena que o termo “Ladies’ Club” seja tantas vezes mal-entendido, e que leve as pessoas a pensarem que este grupo de mulheres não faz nada e que só se quer divertir. Não é verdade.

16 Mai 2017

Maria de Deus Manso, investigadora: “A expansão [dos Descobrimentos] foi essencialmente cultural”

 

Os Descobrimentos levaram Portugal pelo mundo e o mundo de regresso a Portugal, mas também colocaram todas as culturas por onde fomos passando em contacto. O império levou Macau ao Brasil, Goa a Luanda, Lisboa a Hoi An. A professora Maria de Deus Manso faz-nos uma visita guiada pela confluência cultural que se originou na expansão lusa além-mar, em particular através da influência da Companhia de Jesus nos territórios ultramarinos

 

Qual a importância dos jesuítas na expansão do Império Português?

A Companhia de Jesus, desde a sua fundação, foi uma ordem fundamental para consolidar todo o processo de expansão e colonização portuguesa. Era uma instituição que trabalhava ao lado da Coroa. No século XVI, o Rei e a Igreja, principalmente a Companhia de Jesus, uniram-se para consolidar esse projecto. É uma ordem do período moderno, surge já com a preparação e os objectivos de partir para missão não só a nível ultramarino, como também na própria Europa. Mas no império ultramarino foi onde eles mais se destacaram. Uma das características da ordem é a mobilidade permanente, podem começar em Macau, mas partir daqui para outras áreas do império. Assim como de outras áreas para Macau. Eles não vêm, ficam e morrem aqui.

Tiveram muita importância na fixação de Portugal em Macau.

Foram fundamentais para a estruturação da colonização e a presença portuguesa no Oriente. Uma coisa era Macau e a sua presença aqui. Uma vez que a presença portuguesa era consentida, não tinham dificuldade em se instalarem. Outra coisa era irem até Pequim. Havia uma rejeição relativamente aos europeus, era extremamente difícil fixarem-se. A Companhia de Jesus tem a característica da adaptação; sabendo eles da dificuldade que tinham na conversão da China, optaram por se adaptarem. A missionação era extremamente difícil, passava sobretudo pelo ensino, pelos conhecimentos que tinham de matemática e astronomia. Perante isto, conseguem instalar-se na Corte, são aceites não só pelos conhecimentos, como também porque em termos visuais adaptam-se àquilo que eram os costumes e as tradições locais. Isto fez deles uma ordem com grande sucesso. Se pensarmos em termos de expansão, havia a questão do padroado português, ou seja, a Coroa portuguesa ao conquistar tinha como obrigação missionar esses mesmos espaços.

A adaptação parece uma boa cartada política por parte dos jesuítas.

Claro, é óbvio. Se as autoridades portuguesas ali estiverem eles tinham facilidade em impor tanto a língua, a doutrina, como até as tradições. Embora nunca haja uma pureza, digamos assim, daquilo que se pretende que seja as sociedades. Isto é, a cultura portuguesa irá alterar-se quando chega a qualquer local, irá absorver elementos de outras culturas. Aquilo a que hoje chamamos de mestiçagem, que não é apenas biológica, é também cultural, religiosa, etc.. Mas em regiões onde não há uma conquista com poder político instituído, não há quem proteja a Igreja, eles tinham de contar com as suas próprias capacidades. Isso passaria pela própria adaptação às culturas em que se inseriam.

Nas suas visitas frequentes a Macau, que vestígios vê da Companhia de Jesus pelas ruas?

A cultura que hoje vemos em Macau é a de uma sociedade mista, onde há confluência de muitas culturas e uma delas é a portuguesa. Não só a língua ainda permanece, mas também a religião. O catolicismo instalou-se aqui e isso dita, certamente, tradições e comportamentos que fazem com que se crie uma identidade que separa esses convertidos ao Cristianismo da restante população. Ainda que nas primeiras gerações não fossem convertidos de fé, isto é, não estavam suficientemente preparadas para o exercício do Cristianismo, à medida que vão aceitando e convivendo com locais da Companhia, vão aprendendo a língua e a doutrina também. Essa diferença vai separar. Vemos a separação e certamente a cultura em muitas componentes, desde a maneira de vestir, à culinária, à arrumação da casa.

Que exemplos destaca da adaptação dos jesuítas aos costumes locais?

A questão do vestuário. Se eles aparecessem vestidos de jesuítas, todos negros, eram facilmente identificados. Não é que estivesse na cabeça das pessoas a pertença a determinada ordem, mas aquela pessoa era alguém estranho às suas culturas, era um ocidental. Regra geral havia sempre a rejeição face ao outro, de ambas as partes. Se eles não fossem aceites, não fossem inseridos nas comunidades, como é que conseguiam estabelecer um diálogo, um contacto?

Era uma forma algo diplomática de agir.

A adaptação, neste sentido, é uma sobrevivência, a única forma que têm de ser aceites, algo que passa pelo vestuário e a alimentação, por exemplo. O choque cultural não era apenas pela fé, pela religião em si, mas pelas consequências que o Cristianismo e a conversão poderiam trazer às populações. Um cristão podia assumir uma identidade diferente, comportamentos diferentes e até afastar-se da sociedade onde estava inserido. As autoridades locais também não gostavam disso. Os cristãos assumiam alguma importância social porque, como sabemos, nalgumas sociedades a mobilidade praticamente não existia, como vemos por exemplo na Índia com o sistema de castas. Mas com o Cristianismo essa mobilidade poderia acontecer. Isso trouxe alguma desestruturação às sociedades onde as missões se estabeleceram. Houve uma reacção também à praxis do Cristianismo, isso torna-se notório se pensarmos numa sociedade poligâmica onde a religião se tenha instalado. Isso faz com que muitas das vezes tivesse havido perseguição e hostilidade face aos cristãos, em consequência dos comportamentos impostos às sociedades.

O que entende por circularidade cultural?

Durante muito tempo pensou-se que tudo isto estava separado, ou se ia para o Atlântico, ou se ia para o Índico; apesar de tudo ser navegável, entendia-se que as coisas estavam estanques. Isto é, não havia comunicação entre um império vastíssimo, uma rede. Temos, de facto, uma presença oficial, mas depois temos uma presença privada que se espalha, que ultrapassa em muito aquilo que entendemos como o dito império oficial. Há uma circulação. Os missionários não se fixam e vivem uma vida inteira numa única região. Eles circulam, assim como os mercadores, até os próprios escravos que transportam também uma cultura. Não só absorvem a cultura onde se vão inserir, como eles próprios transmitem a sua cultura. Fala-se pouco da escravatura asiática, que não teve a mesma dimensão da africana, mas houve também. Essa circulação transporta pessoas, mas transporta também uma cultura. Passa pelo saber, pela língua e religião, mas também plantas, sedas, materiais de decoração, como as lacas, por exemplo.

O que se sente de Macau, por exemplo, no Brasil?

Há dois locais no Estado da Bahia, afastados da capital Salvador, onde a influência também chegou. A 120 quilómetros de Salvador – hoje não é longe mas no século XVII era longínquo –, situa-se Cachoeira e o Seminário de Belém, que foi construído pelos jesuítas. Aí encontramos elementos orientais. Na chamada, agora, Igreja do Carmo em Cachoeira temos cinco Cristos chineses. Sabemos que o Porto de Salvador era importantíssimo, tinha uma grande ligação com Goa e Macau, daí não ser estranho encontrarmos os enormes cristos chineses, assim como um grande armário oriental. Como é que isto foi lá parar? Quem foram os artistas que fizeram estes Cristos e este armário? Também no Seminário de Belém o tecto da sacristia está todo decorado com motivos e flores orientais. Isto são dois elementos bem visíveis de como a arte e os artistas circulavam. Se os Cristos têm aspecto chinês não terão sido, certamente, cristãos europeus a terem feito estas peças. Também temos marfins orientais que circulavam por estas regiões. Temos também toda a fauna e flora que vai daqui para lá, que hoje é tida como brasileira. Por exemplo, o coqueiro veio da Índia. O chá veio do Oriente e ganhou muita importância. A expansão não foi só militar, não foi só económica e política, ela foi, essencialmente, cultural.

À luz dos seus estudos, o que encontra nestas ruas sempre que vem a Macau?

Encontro a História e Portugal. Gostaria de encontrar mais a língua portuguesa, de facto as ruas estão escritas em português, mas lamento muito que na Universidade de Macau o português não tenha sido opção. Acho que houve algum descuido relativamente à língua. Mas, nalgumas zonas de Macau, não digo nas zonas dos casinos, sinto que estou em ruas que são, efectivamente, portuguesas. Não só pelas igrejas, mas também pela calçada portuguesa, o azulejo, a Misericórdia, que era uma instituição portuguesa e que acompanhou todo o processo expansionista português.

O que tem de especial a portugalidade que deixa tantas marcas por onde foi passando?

As missões jesuítas não ficavam apenas onde estava a presença portuguesa. Levam a cultura e a língua a outras partes do globo. Se formos ao Vietname encontramos presença portuguesa, assim como Malaca, Timor e por aí fora. O projecto imperial teve uma faceta muito violenta porque impôs a cultura, que muitas vezes não foi aceite pacificamente, mas que resultou de uma conquista, ou de outros interesses económicos das autoridades locais. Se pensássemos apenas no projecto territorial, com conquista militar, com uma estrutura política similar à que tínhamos em Portugal, tudo com o objectivo apenas de fazer comércio, sem mais nenhuns contactos, não teria cá ficado o português, nem a religião, nem a arquitectura, etc.. Essa presença é, efectivamente visível em Macau.

15 Mai 2017

Kwan Tsui Hang, deputada: “As consultas não devem ser um espectáculo”

Está de partida da Assembleia Legislativa, depois de 21 anos de trabalho. Kwan Tsui Hang deixa o balanço da sua prestação para os outros, fala das diferenças entre o pré e o pós-99, da sociedade mais exigente que a transferência de administração trouxe. Sobre a Lei de Terras, concorda com a revisão, desde que haja muito consenso

 

É deputada desde 1996. Não se recandidata este ano. Porque é que sentiu que era o momento de se retirar?

A razão principal é a minha idade. Cheguei a uma altura em que preciso de me aposentar.

Em termos gerais, como é que avalia o seu trabalho na Assembleia Legislativa (AL)?

Não vou fazer uma avaliação do meu trabalho. Mas fiz o meu maior esforço na AL. Quem deve avaliar o meu trabalho é a sociedade.

Sente que a maioria dos cidadãos faz uma avaliação positiva?

É claro que existem cidadãos que concordam comigo e aqueles que não concordam. Existem sempre opiniões diferentes sobre determinado assunto.

Foi deputada antes da transferência de administração. Quais são as grandes diferenças no exercício do cargo antes e pós-99?

A mudança foi enorme. Até à transferência de administração de Macau, estive apenas três anos como deputada. Era um novo membro. Comecei do zero e não conhecia o que estava à volta. Por isso, esses três anos no início da minha carreira da AL foram de aprendizagem, e comecei a conhecer a situação da sociedade de Macau. Naquela altura, as exigências da AL não eram tantas quantas as de hoje em dia. Da transferência para cá, sinto que os requisitos são mais exigentes devido ao aumento da consciência e solicitações dos cidadãos. Os requisitos nos trabalhos da AL estão a ser alargados de forma constante.

Em que áreas?

Abrangem os trabalhos durante o processo de análise das leis, o grau de transparência dos trabalhos, bem como a acção de fiscalização do Governo e as respostas às solicitações dos cidadãos. Penso que, em comparação com os trabalhos antes do retorno de Macau, estas tarefas são muito diferentes. As exigências da sociedade são mais variadas. No processo de legislação, o Governo tem de ter em conta os benefícios de todos os sectores da sociedade, e aqui é que está a grande dificuldade. Não sei se percebe isso. A definição das leis, que é o nosso trabalho, é um princípio de regulamentação da sociedade porque, quando a lei é aprovada, todas as pessoas no território têm de a seguir. Caso determinado indivíduo seja afectado pela lei implementada, tem de fazer o que está previsto na lei. Existem leis que, por um lado, protegem determinados grupos, mas podem também causar restrições a outros. Alguns regimes sancionatórios – por exemplo, a infracção de regras rodoviárias –, provocam restrições a várias pessoas. No entanto, a sociedade precisa destas leis, mesmo que alguns cidadãos não estejam satisfeitos. O mais importante é saber como se alcança um equilíbrio. Quanto à criação das leis, não é o Governo que tem aumentado o grau de exigência, são os cidadãos que fazem exigências e pedem um aumento da transparência e participação no processo. Todos querem propor ideias. Hoje em dia tudo isso é obrigatório no processo de definição das leis. Como mencionei, no início da minha carreira na AL não conhecia bem as coisas. Além disso, existia outra dificuldade: a língua. Na altura, a língua principal de comunicação era o português, pelo que os deputados que não falavam português enfrentavam grandes dificuldades. Por isso, voltando à sua questão sobre a diferença da AL antes e pós-99, em comparação com os primeiros três anos de experiência como deputada e os restantes depois da transferência, há uma diferença muito grande.

Quais são os aspectos de Macau que deviam ter sido melhorados durante estes anos?

Com o desenvolvimento do território, penso que o Governo, bem como todos os cidadãos, precisam de fazer cada vez melhor. Quanto ao território que hoje temos, existem alguns aspectos com que estou satisfeita. Porque é que decidi entrar na AL? Porque tinha solicitações e expectativas. O meu objectivo era lutar pelos benefícios dos cidadãos e especialmente pelo sector de trabalhadores. Depois do estabelecimento da RAEM, os apoios relativos à área laboral e à aposentação passaram a estar garantidos em regimes do Governo. Mais especificamente, o conteúdo da lei das relações de trabalho cumpre os critérios internacionais. Vamos ver como será o regime de previdência. O regime de segurança social aperfeiçoado não só abrange garantias para os trabalhadores, mas também para todos os outros cidadãos de Macau. Neste aspecto, penso que se trata de um regime muito benéfico para a sociedade. Foi por causa do desenvolvimento do território que surgiram condições para se darem estes passos. Mas julgo que há aspectos que podem ser melhorados. Por exemplo, o Governo avançou com cincos mecanismos de longo prazo. Um deles diz respeito à protecção da terceira idade: o Fundo de Segurança Social garante pensões para idosos. De facto, as pensões podem ser melhoradas. De modo a que os idosos possam ter mais garantias em relação à sua qualidade da vida, deve caminhar-se para o estabelecimento do regime de previdência central. No entanto, para já, o Governo ainda está a aprovar o regime de previdência central não obrigatório. Acho que existe ainda espaço para avançar nesta área. Mas, em comparação com a situação anterior do território e de outras regiões, os benefícios para as pessoas aposentadas de Macau são muito bons. Por outro lado, as crianças e jovens de Macau podem aceder à escolaridade gratuita, que é de 15 anos. Nos dias que correm já não há quem não consiga estudar na universidade devido à falta de condições financeiras. Tal medida, além de aumentar a qualidade da educação dos cidadãos, garante condições e oportunidades para novas gerações.

Mas ainda em relação ao que poderia ter sido melhor…

Sobre os aspectos insatisfatórios, há duas áreas grandes a que a sociedade deve prestar atenção. Em primeiro lugar, por causa do desenvolvimento da sociedade e do aumento do número de veículos em circulação, existem problemas enormes no que diz respeito ao trânsito. As queixas dos cidadãos sobre este assunto têm aumentado. Espero que, no futuro, os transportes colectivos possam melhorar a situação. Em segundo lugar, devido também ao desenvolvimento de Macau, os preços do imobiliário ficaram fora de controlo. Esta situação acontece porque o Governo não tem um regime eficaz de habitação, de forma a controlar o desenvolvimento anormal do imobiliário privado, e por causa da insuficiência do fornecimento de habitação pública. Os cidadãos não têm capacidade para adquirir casas em Macau. Por isso, o assunto causa insatisfação e preocupação às novas gerações. Refiro-me só às novas gerações porque antigamente, mesmo que os residentes vivessem numa sociedade que era geralmente pobre, 70 a 80 por cento das pessoas tinham capacidade para comprar casa. No entanto, na sociedade de hoje, o aumento dos preços do imobiliário e sobretudo os actos de especulação fazem com que as pessoas das novas gerações não consigam aguentar os preços das casas. Por exemplo, as pessoas não conseguem comprar uma fracção residencial de oito milhões ou dez milhões de patacas, mesmo que ganhem entre 30 mil a 40 mil patacas de salário mensal. Por isso, espero que o Governo melhore o regime da habitação pública, de modo a controlar o funcionamento anormal do mercado do imobiliário. Mas faltam terrenos. Acredito, no entanto, que com a conclusão dos cinco aterros o problema será minimizado.

Que avaliação faz do desempenho do actual Governo?

Em primeiro lugar, o Governo deve tomar decisões que representem realmente as opiniões dos cidadãos. Quanto ao processo de tomada de decisões, penso que alguns funcionários públicos não têm contacto suficiente com as visões dos cidadãos e a situação real da sociedade. Por causa desse fenómeno, os funcionários só pensam nas políticas, sentando-se nos gabinetes e ouvindo apenas os relatórios das suas subunidades, e não conhecem pessoalmente o que está a acontecer. Por isso, algumas medidas não são muito flexíveis, porque não há sessões de esclarecimento. Nesse sentido, tivemos situações em que o Governo implementou medidas de modo demasiado rápido, e há casos em que efectuou subitamente os trabalhos que aguardavam resolução durante anos. Assim sendo, posso dizer que a sociedade não consegue adaptar-se às novas medidas num curto prazo. Aconteceu já várias vezes pouca gente respeitar as leis que entraram em vigor e depois o Governo investir, de repente, na execução das leis. A execução é necessária, mas o Governo deve garantir um período antes da implementação de novas medidas, porque o problema da fraca consciência jurídica existe há já muito tempo entre os funcionários públicos e os residentes. Por isso, de modo a aumentar a eficácia da gestão, devem-se normalizar as leis, bem como reforçar as promoções e a execução da legislação. Quanto à criação de políticas, é preciso fazer consultas de forma prática, não devem ser um espectáculo. Actualmente há várias consultas em curso, mas como é que os funcionários vão traduzir as opiniões recolhidas e mostrar os resultados à sociedade? De facto, nesta área não existe ainda um mecanismo eficaz, os serviços públicos agem cada um à sua maneira e isso causa uma reacção negativa dos cidadãos.

Como é que avalia a polémica em torno da Lei de Terras? Também ficou com a sensação de que o Governo iria analisar caso a caso antes da declaração da caducidade das concessões?

Isso é apenas uma opinião individual. Esta lei obteve todos os votos a favor e foi aprovada na AL. A lei mostra a posição geral da Assembleia. Se as pessoas pensam que há problemas relativos à questão do período de 25 anos, a lei mais antiga, dos anos 80, também dizia isso. O período de 25 anos não é uma novidade na lei agora em vigor. As pessoas têm comentado muito. Porque é que o Governo não esclarece a questão? Ao fim de 25 anos, quando a concessão é provisória, o Governo não vai prolongá-la caso os concessionários não tenham conseguido terminar as obras dentro do prazo. É algo que está previsto nas duas leis. Há pessoas cujos terrenos foram recuperados pela Administração que dizem que a responsabilidade de não terem concluído o desenvolvimento dos lotes não foi delas. Se tal for verdade, acho que têm razão. Mas quer a lei antiga, quer a nova, não menciona este tipo de situação. A lei não explica como é que se apura se a responsabilidade foi ou não do concessionário. Alguns deputados tiveram dúvidas em relação a esta situação e a resposta foi que os casos isolados deviam ser tratados de forma isolada. As leis não definem situações isoladas, servem o âmbito geral. Quando a lei de terras entrou em vigor, não se enfrentava o problema da recuperação de terrenos. Agora começaram a surgir problemas. Porque é que os concessionários não conseguiram concluir as obras em 25 anos? O que é que se passou durante os primeiros dez anos? E o que é que aconteceu nos últimos dez anos e tal? Isso depende realmente de caso para caso. Sobre a resolução para o problema, deve discutir-se se existe necessidade de alterar a lei. Do meu ponto de vista, se se pensa que há uma lacuna, qualquer que seja a legislação em vigor, e se se encontra consenso na sociedade e no Governo, todas as leis podem ser alteradas.

Quais são as suas perspectivas em relação às próximas eleições?

Não tenho qualquer expectativa especial. Espero que as eleições decorram de forma justa e aberta, para que os cidadãos possam votar em quem pode realmente representá-los e dar o seu contributo para o futuro da sociedade de Macau.

O que pretende fazer quando terminar o seu mandato na AL? Vai continuar a ter uma intervenção cívica?

Depois da minha saída da AL, quando for a altura certa, vou deixar de fazer o meu trabalho. Há vários jovens capazes de continuarem o trabalho que desenvolvi. Mas caso esteja em Macau e ainda tenha energia, quando houver uma situação em que pense que é necessário dizer alguma coisa, por ser uma cidadã e residente de Macau, tenho esse direito. Não há quem perca o direito de se queixar porque é velho ou aposentado. Por isso, quando surgir uma questão em que valha a pena dizer alguma coisa, vou fazê-lo.

9 Mai 2017

Chan Iek Lap, médico e deputado: “Não somos Deus”

Admite que os médicos ainda têm um caminho a percorrer, mas pede a compreensão da população. Chen Iek Lap, médico, deputado à Assembleia Legislativa eleito pela via indirecta, deixa um diagnóstico das necessidades do sector da saúde, que se depara com falta de especialistas. É preciso subir salários e alterar as carreiras, a pensar já no novo hospital das ilhas. Quanto à participação política, recusa fazer uma auto-avaliação e não diz se é candidato em Setembro

 

É deputado eleito pela via indirecta desde 2013. Está quase a chegar ao final do seu primeiro mandato. Que balanço faz do trabalho desenvolvido na Assembleia Legislativa (AL)?

Sou novo na AL. É a primeira vez que desempenho um papel na área política. Por isso, no início, devido à falta de experiência, cometi alguns erros. Dependia da ajuda dos meus colegas. É difícil fazer um balanço em apenas algumas palavras. Só posso dizer que senti progressos de ano para ano. Os deputados são porta-vozes dos cidadãos. Sou deputado eleito por sufrágio indirecto e represento o sector médico. Felizmente, tenho a oportunidade de fazer parte do Conselho para os Assuntos Médicos, que tem carácter consultivo, através do qual consigo obter mais informações e opiniões sobre esta área, que posso ter como referência para usar na AL. Quando são expostos assuntos na AL, também posso levá-los ao conselho para que se encontre uma solução. Por outro lado, por ser um canal de comunicação com o Governo, faz parte do meu trabalho mostrar as opiniões do sector e tentar fazer com que o Executivo preste atenção aos assuntos. Por exemplo, nos últimos anos tenho mencionado questões ligadas aos médicos do sector privado. É um facto que o Governo dá assistência à sociedade mas, nalgumas áreas, precisa de reforçar esse apoio. Dou como exemplo os vales de saúde. A inflação cresce entre três a cinco por cento por ano. Nos oitos anos de vigência desta medida, houve um aumento de 500 para 600 patacas. O montante não é ajustado há cinco anos. No entanto, o número de médicos cresceu e surgiram mais clínicas novas. Por que é que o Governo não teve em consideração esta situação? Os vales de saúde são muito importantes, mas basta a medida, sem que seja feito qualquer ajustamento? Mas, voltando ao trabalho na AL, errei nalguns aspectos, sobretudo aquando da discussão sobre a lei de controlo do tabagismo. Se calhar, fiz demasiados comentários. Houve alguns mal-entendidos. Preciso de aprender com a lição. Pedi desculpa em directo na TDM.

Sente que conseguiu representar o sector dos profissionais de saúde?

Não me pode perguntar se estou satisfeito com o trabalho feito. Deve entrevistar o sector da saúde e perguntar aos profissionais desta área se estão satisfeitos comigo. Não faz qualquer sentido dizer se estou satisfeito com o meu trabalho. No entanto, devo agradecer os apoios do sector. Sinto que muitos dos profissionais da área de saúde me apoiam, dizendo que os representei e que consegui mais benefícios para o sector. É claro que, do ponto de vista dos cidadãos, falei de mais e lutei por demasiados benefícios. Mas, na verdade, cada representante tem a sua posição e espero que todos compreendam isso. Nalguns incidentes que envolvem o bem-estar da população, como a gripe das aves, considero que tenho de apoiar a proposta do Governo, para que não haja contacto humano. As aves congeladas são menos saborosas, mas precisamos de fazer isto. No caso do edifício de doenças transmissíveis, há pessoas que acham que é possível que afecte os residentes próximos do local. Mas o Governo garantiu padrões de qualidade para o edifício. Não é preciso haver preocupações em torno deste assunto. Em contrapartida, os equipamentos para prevenção de doenças contagiosas do Centro Hospitalar Conde de São Januário vão apenas ao encontro de padrões mínimos, têm muito menor qualidade do que aqueles que são usados na China. Por isso, quero que o edifício de doenças transmissíveis seja construído o mais rapidamente possível e com qualidade. Não quero que aconteça o que ocorreu em Hong Kong com a pneumonia atípica, em que morreu pessoal dos serviços médicos por causa do vírus. No entanto, os cidadãos não compreendem o meu ponto de vista. Analisei a situação com base no meu conhecimento profissional. Não sou o tipo de pessoa que está apenas ao lado do Governo.

Ficou satisfeito com as soluções encontradas na Lei do Erro Médico ou entende que poderia ter sido feito mais e melhor?

A Lei do Erro Médico foi abordada no Conselho para os Assuntos Médicos durante vários anos. Participei nas discussões sobre a lei desde a comissão preparatória. Considero que é preciso um período de um ou dois anos para observar a eficácia da lei. Apesar disso, ouvi algumas pessoas dizerem que a legislação é injusta, mesmo tendo entrado em vigor há poucos meses. Não sei o que é que estas pessoas querem realmente. Para que serve o nosso trabalho, feito durante anos? A Lei do Erro Médico preenche uma lacuna jurídica. Antigamente, se as pessoas queriam processar médicos, em primeiro lugar tinham de pedir ajuda a um advogado, gastar 50 mil patacas, e esperar por uma data nos tribunais. O processo podia demorar três ou até cinco anos. Mesmo assim, não tinham garantias do resultado da justiça. Por isso, não havia muita gente a acusar médicos, porque o processo era muito complicado e aborrecido. E nem toda a gente tinha capacidade para pagar 50 mil patacas. Com a entrada em vigor da Lei do Erro Médico, através da Comissão de Perícia Médica, são necessários apenas três meses ou meio ano para que se saiba se o médico envolvido cometeu algum erro, e quem reclama tem de pagar apenas quatro mil patacas. Não acha que é uma boa medida para os cidadãos? Mas os médicos não gostam disso, porque sentem que os cidadãos têm agora mais facilidade de os acusar. Tive tanto stress por causa disso. Os cidadãos também acham a lei injusta. Para já, não há ainda qualquer caso em que se tenha recorrido à Lei do Erro Médico. Não é possível sabermos da verdadeira eficácia da lei sem que seja colocada em prática.

Acredita que o novo hospital, o Centro Hospitalar das Ilhas, terá capacidade para resolver os principais problemas da área da saúde? Será fácil garantir o número suficiente de trabalhadores?

O Governo é capaz de contratar mais profissionais. Pode contratar médicos privados, apoio fortemente esta proposta, que permite garantir o número necessário de profissionais. Macau tem mais de 1500 médicos de medicina ocidental, o número é suficiente. Segundo um estudo feito por mim há alguns anos, em Macau só era necessário um médico por cada 450 doentes. Hoje em dia, há vários médicos que não podem trabalhar no Governo. Têm vidas muito duras porque precisam de garantir o funcionamento das suas clínicas e a falta de doentes. A Administração pode contratar todos esses médicos. No entanto, faltam médicos especialistas, pelo que devem ser abertas mais vagas. Por outro lado, o Executivo deve fazer um balanço entre os serviços médicos públicos e o mercado privado, sobretudo em relação aos serviços mais caros. Imagine que são disponibilizados escritórios públicos de advogados, de contabilidade e de arquitectura em cada freguesia de Macau, e os cidadãos podem recorrer aos serviços desses escritórios gratuitamente. Apoio a ideia se o Governo puder realizar esta proposta. Mas a sociedade actual não é justa. Por que é que só os serviços médicos podem ser gratuitos? Isso afecta as nossas receitas.

Como disse, Macau tem falta de médicos especialistas. É preciso aumentar os salários para atrair mais médicos especialistas de fora?

Apoio a ideia. Os professores universitários de Hong Kong recebem cerca de 300 mil dólares de Hong Kong por mês, sem contar com outros subsídios. Recentemente, Macau tem querido contratar professores de Hong Kong. Mas quando se percebe que a função pública oferece menos de 100 mil patacas a um director de serviços, como é que se contratam profissionais com estas condições? Se o Governo quer aumentar a qualidade dos serviços médicos, pode contratar profissionais para virem cá transmitir conhecimentos. Mas o mais importante é oferecer condições para atrair profissionais. Antigamente, era mais fácil contratar um médico da China Continental. Hoje em dia, não há muitos médicos que queiram vir. Em primeiro lugar, o nível salarial de Macau é semelhante ao do Continente. Em segundo, os médicos de fora ficam longe da sua terra e da família. Por último, os médicos mais novos que são de cá ultrapassam a posição que eles ocupam. É claro que se devem aumentar os salários e os benefícios, deve também ser alterado o regime de carreiras, para que seja possível contratar mais profissionais. Com o novo hospital não é preciso fazer trabalho de preparação e actualizar as leis? É difícil contratar médicos com menos de 100 mil patacas por mês.

Quais são as prioridades que define, neste momento, para a melhoria do sector da saúde?

Não há mais aspectos para serem melhorados. Já temos muito stress dos Serviços de Saúde de Macau (SSM), nem consigo respirar. Os SSM fiscalizam de forma muito exigente. Se conseguirmos satisfazer os requisitos dos SSM, já ficamos satisfeitos. Acredito que a maioria dos profissionais de saúde de Macau trabalha com todo o esforço e serve os cidadãos com os conhecimentos que tem. Espero que nesta ou na próxima geração possa aumentar a qualidade dos serviços médicos de Macau. No entanto, queremos também a compreensão dos cidadãos, uma vez que a medicina não é uma ciência exacta. Por vezes, talvez não consigamos corresponder às expectativas dos cidadãos e, se calhar, alguns médicos também têm aspectos para serem melhorados. No entanto, esperamos que, através da criação de um regime de formação e a autodisciplina do sector, os cidadãos fiquem satisfeitos. Queremos que os cidadãos compreendam a nossa situação. Não somos Deus. Não conseguimos conhecer todos os vírus e doenças. É possível que haja mais doentes a serem sacrificados. Por isso, queremos a compreensão de toda a gente e acredito que vamos conseguir um serviço melhor.

Está interessado em continuar na Assembleia Legislativa? Já começou a trabalhar no sentido de ser reeleito?

O meu desejo é continuar a servir os cidadãos e o sector da saúde. Mas ainda não consigo dar-lhe uma resposta.

26 Abr 2017

José Pereira Coutinho, deputado: “Estas eleições serão sempre injustas”

José Pereira Coutinho vai manter a composição da lista Nova Esperança para as eleições de Setembro, com uma novidade: Gilberto Camacho. Rita Santos será mandatária da candidatura. O deputado acredita que Sónia Chan será um nome apontado para o cargo de Chefe do Executivo por influência de O Lam, chefe de gabinete de Chui Sai On, mas diz que Ho Iat Seng é o que mais se destaca na corrida

Ho Iat Seng disse que o trabalho de fiscalização levado a cabo por parte da Assembleia Legislativa (AL) melhorou. Concorda com estas declarações?

Não concordo pela simples razão de que se está a passar uma ideia de que a AL tem melhorado nos seus trabalhos. O facto dos dois pedidos de debate sobre questões de interesse público terem obtido votos suficientes [não é suficiente], porque nunca teriam obtido pernas para andar se fossem submetidos há um ou dois anos atrás. Há ainda o facto de ninguém ter pedido a palavra quando o meu colega [Leong Veng Chai] apresentou o pedido de debate. A AL é bastante conivente com o Governo. Fiquei contente que cerca de 20 deputados tenham apoiado a minha proposta relativa ao Pearl Horizon e, pela primeira vez, houve um consenso, porque estamos às portas das eleições. Gostaria que houvesse eleições todos os anos para a AL, porque assim os problemas de Macau seriam resolvidos e fiscalizados. Não há margem de dúvidas de que o Governo é o porta-aviões e a AL faz parte dos navios de abastecimento que o acompanham. Temos estado a pedir mais transparência ao Governo quando a própria AL é pouco transparente.

Como é que esse aspecto poderia ser ultrapassado?

Deveria perguntar-se ao presidente da AL porque é que esta é tão opaca. Estou bastante desiludido pelo facto das seis comissões de trabalho serem à porta fechada e os meios de comunicação social não terem acesso. Com que legitimidade temos nós, AL, o descaramento de pedir ao Governo mais transparência, quando nós somos tão fechados e opacos. Somos os primeiros a criar problemas à sociedade. Quando o Governo mete um diploma proibindo fumo em todos os casinos, o diploma é aprovado por uma grande maioria dos deputados, chega à comissão permanente na especialidade, os deputados mudam de posição e o diploma, na sua estrutura, a base da nota justificativa, muda.

Foi tudo alterado.

A meu ver, esse diploma deveria ser retirado pelo Governo e nunca teria sido permitido que o mesmo pudesse ser analisado na especialidade. Desvirtuou-se por completo o ponto de partida, que era a proibição de fumo em todos os casinos. Sou contra esta forma de actuação da própria AL. Violaram-se todas as normas procedimentais da AL.

Há uma falta de consciência ou de responsabilização relativamente ao acto de votar no hemiciclo? Vota-se porque sim e não se pensa nas consequências?

Vota-se por votar. E há pouca divulgação e sensibilidade, por parte da população, em relação ao sentido de voto dos deputados. É preciso educar e sensibilizar a população em relação ao sentido de votação dos deputados. É preciso responsabilizar os deputados pelo acto da escolha, quer seja contra ou a favor, e também nas abstenções. Os deputados têm de ser responsabilizados pelos meios de comunicação social, têm de encontrar justificações da sua conduta dentro da AL. Não existe um eficiente sistema de verificação para que a AL consiga executar a sua missão nobre de fiscalizar a actividade governativa. Pagamos um elevado preço com os escândalos que vão aparecendo.

A Lei de Terras é um exemplo.

O primeiro escândalo foi o ex-secretário para os Transportes e Obras Públicas (Ao Man Long). E o segundo está neste momento a decorrer, que é o julgamento de Ho Chio Meng, e não me cabe a mim pronunciar-me muito para não interferir no julgamento. Mas pelo que se lê nos media dá para perceber que a RAEM não aprendeu a lição. Fico espantado com casos como o que li hoje nos jornais, em que o Governo recuperou um terreno na Taipa, junto ao quartel dos bombeiros. Mas não se pergunta porque é que não se incrimina o ocupante ilegal do terreno, durante 20 anos, não se pede o arrendamento, e não se divulga quem ocupou o terreno? Isso é de bradar aos céus. O Governo desocupa e não pede responsabilidades. Se não são negociatas, não sei o que é que será. 

O antigo secretário Lau Si Io deveria ter tido a iniciativa de vir a público falar sobre os alegados erros do passado?

Acercar responsabilidades sobre o caso da Lei de Terras a Lau Si Io não será justo, porque a Lei de Terras passou pelo Conselho Executivo, e estão lá representantes de todos os quadrantes da sociedade. Não é por acaso que na AL temos deputados que têm uma perna no Conselho Executivo. Devemos acercar responsabilidades às instituições em si e ao dirigente máximo da RAEM. Ser o dirigente da RAEM e falar a quatro ventos da predominância do Executivo não deve ser só nos momentos de festa. Deve ser dito nos momentos mais difíceis, em que tem de tomar responsabilidades e tomar decisões.

Em relação à responsabilização, ou à falta dela, têm vindo a público muitos relatórios do CCAC e CA. Nunca se verificam grandes mudanças após a sua publicação. Considera que já era tempo de Macau voltar a ter um tribunal de contas, como teve durante a Administração portuguesa?

Concordo, e fui daqueles que sugeri a alteração da lei orgânica do Comissariado de Auditoria (CA) para, de facto, haver mecanismos preventivos e de assumpção das responsabilidades por parte das entidades antes de elaborarem os orçamentos ou de utilizarem as verbas avultadas, que são acções que merecem uma ponderação e supervisão mais adequada, feita por órgãos independentes, tal como um tribunal de contas. Mas não me parece que isto convenha… hoje em dia cada vez menos pessoas têm interesse em ler os relatórios onde se denunciam irregularidades e ilegalidades e depois misturam-se esses dois conceitos. Isto é muito mau, porque afecta o primado da lei e estamos a tratar as pessoas de forma desigual. Não podemos pintar as irregularidades, chamando-as de ilegalidades. Se formos por este caminho estamos a destruir toda a matriz do Direito de Macau.

Quando diz que não convém criar um tribunal de contas, refere-se ao Governo.

Exacto. Não convém porque assim facilita as manobras de bastidores. Se houvesse o tribunal de contas haveria um travão ao despesismo.

Como explica que no seio da Função Pública existam muitos trabalhadores que desconhecem as leis com as quais têm de trabalhar?

Não concordo com isso. Os trabalhadores, na sua maioria, são sujeitos a exames rigorosos para entrar na Função Pública, embora muitos entrem pela porta do cavalo, como se vê pela denúncia do ex-procurador da RAEM que recebeu 14 telefonemas. Está por apurar quem foram as outras pessoas que lhe telefonaram para entrar pela porta do cavalo. Desde o estabelecimento da RAEM, e até 2007, ano em que se instituiu o regime de previdência, criou-se uma grande mordaça no seio dos trabalhadores da Função Pública. Trabalham com medo de represálias e dos seus superiores e cumprem porque têm de sustentar a família. É nesse sentido que se compreende que os mega-escândalos que estão a acontecer e que vão acontecendo no seio da Função Pública não sejam denunciados. Há que criar mecanismos de protecção aos que denunciam ilegalidades dentro da Função Pública, porque sem isso nada feito. Temos muitos casos de pessoas que até têm medo de falar comigo.

Nunca lhe tinha acontecido antes.

Nunca aconteceu e cada vez mais têm medo, de mostrar que estão comigo em eventos sociais, porque se o superior os vê, passam a ter a vida negra [no emprego]. Já disse que o sistema de queixas que se quer criar será inútil. Como é que se pode ganhar a confiança das pessoas para que estas se queixem, quando, no momento a seguir, podem ser demitidas através da não renovação do contrato, ou então são chamadas para pedir a resignação dos cargos? Parece-nos que a secretária para a Administração e Justiça é uma forte candidata ao cargo de Chefe do Executivo, com a bênção da actual chefe de gabinete do Chefe do Executivo.

O Lam?

O Lam. E com isso não estou a ver que haja mudanças na Administração pública. É por isso que se compreende que a maioria dos funcionários públicos se querem aposentar o mais depressa possível, mesmo com dez ou quinze anos de actividade.

Falam-se de vários nomes para ocupar o cargo de Chefe do Executivo a partir de 2019. Por quê Sónia Chan?

Penso que o presidente da AL [Ho Iat Seng] continua a ser a escolha do Governo Central para o cargo.

Quais as razões?

Tem menos ligação com o sector empresarial e, embora faça parte, não é da ala estabelecida em Macau desde o primeiro dia da RAEM. Depois é o mais bem posicionado, em termos políticos, em Pequim, porque é vice-presidente do comité permanente da Assembleia Popular Nacional (APN). Lionel Leong (secretário para a Economia e Finanças) está a perder muita da sua influência, porque faz parte do grupo instituído que já mudou politicamente junto do Governo Central, porque estamos na era de Xi Jinping e não na era de Jiang Zemin. É o protegido do ex-Chefe do Executivo (Edmundo Ho), mas é evidente que o actual Chefe do Executivo (Chui Sai On) tende a seguir mais a sua chefe de gabinete, que é a pessoa mais chegada a ele para tomar decisões governativas. O Lam tem a afilhada que é a secretária para a Administração e Justiça (Sónia Chan), e não estranho que esteja a ocupar este cargo com a bênção da chefe de gabinete e do próprio Chefe do Executivo.

De onde vem essa ligação?

O Lam vem de uma família tradicional, ligada à Nam Kwong. O tio de O Lam teve uma grande influência no desenvolvimento económico de Macau. (Sónia Chan) será indicada ao Governo Central para ser a próxima Chefe do Executivo, está bem posicionada. É evidente que não nos podemos esquecer do bom trabalho do secretário para a Segurança (Wong Sio Chak), que será sempre um cavalo a não esquecer.

Ainda assim nenhum desses nomes pertence a outra das famílias tradicionais de Macau, nomeadamente a família Ma, que já tem um deputado nomeado na AL (Ma Chi Seng). Esperava-se um nome daí?

Penso que não, porque há um consenso de que já beneficiaram muito ao nível dos maiores projectos, concursos públicos e terrenos, para compensar o défice na área política. São compensados com outras coisas.

Estamos em ano de eleições. Questionou, numa sessão de esclarecimento, a questão da liberdade de imprensa. É algo que o preocupa, a possibilidade da Comissão dos Assuntos Eleitorais da AL (CAEAL) vir a controlar o que se notícia?

Preocupa-me as difamações que aparecem na internet e que alguns media aproveitam para fazer noticias, como já aconteceu no passado. Mas os jornais chineses pertencem todos a determinados sectores da sociedade, que são muito influentes e com representatividade na AL. Veja-se o jornal Si Man, que pertence a Angela Leong. O jornal Si Si pertence ao deputado Chan Meng Kam. O jornal Va Kio e o jornal Ou Mun Iat Po são conotados com o Governo. E todos os outros jornais estão conotados com outras pessoas, e em todos os actos eleitorais há uma tendência desses jornais de publicarem notícias dos candidatos preferidos. Se queremos eleições justas, a CAEAL tem obrigação de falar nos casos em que uma pessoa tem dupla função, enquanto representante de uma associação e candidata às eleições, e depois sai em primeira página uma actividade associativa no Ou Mun Iat Po. Em Hong Kong mete-se na notícia do jornal de que há outros candidatos para além do visado. Mas nunca conseguiremos contornar a escolha das grandes fotos na primeira página do jornal Ou Mun, que tem um grande impacto na sociedade. Mas não tenhamos ilusões: estas eleições serão sempre injustas.

Por quê?

Vão continuar a existir autocarros, porque já está tudo reservado. Ainda ontem liguei para algumas empresas para tentar perceber o ponto de situação da reserva de autocarros, e já está tudo reservado. Muitas das empresas de turismo estão conotadas com deputados da AL. Os trabalhadores dos casinos vão ser coagidos a entrar nos autocarros dos casinos para irem votar, como aconteceu no passado.

A CAEAL sabe disso?

A CAEAL sabe disso e não quer emitir instruções. A CAEAL tem de emitir instruções aos casinos para que sejam impedidos de ajudar certas listas cuja publicidade chega aos cacifos e refeitórios dos casinos. É injusto para com as outras listas que não têm esse acesso.

E esse trabalho já está a ser feito.

Está a ser feito! Inclusivamente nas salas VIP já foram designadas pessoas para atrair o pessoal, com instruções de que têm de votar em determinados candidatos. O grupo SunCity vai participar nas eleições, e eles têm muitas salas VIP. A CAEAL tem de actuar. Tem de se dar instruções às escolas, para que os meninos de três ou quatro anos sejam educados de uma forma honesta, e não se deve enfiar panfletos dos Moradores (União Geral das Associações de Moradores de Macau, ou kaifong) e dos Operários (Federação das Associações dos Operários de Macau) nas mochilas. Isso foi o que aconteceu nas últimas eleições, estive à porta das escolas e assisti a isso. O que sinto é que a CAEAL não tem vontade de intervir e enfrentar esses problemas. Talvez porque não queiram afrontar o poder estabelecido.

Uma das questões trazidas pela lei eleitoral foi a obrigatoriedade dos candidatos assinarem uma declaração de fidelidade a Macau e à China. Contudo, aquando da votação, ninguém interveio e a proposta acabou por ser aprovada.

O Governo continua a ser o porta-aviões. Veja-se a actual composição da AL. Pagamos um preço elevado pelo facto de não haver mais deputados eleitos pela via directa. Isto prejudica Macau em termos gerais. O que me pergunta é a consequência de tudo isto, e enquanto não alterarmos o sistema, vamos continuar a pagar caro. Esta cidade está a ser comida pelo jogo, e não tenho fé e confiança na implementação do Plano de Desenvolvimento Quinquenal. É impossível ir contra a maré. Macau vai continuar a ser uma cidade casineira, com alguns satélites à volta, dependentes dessa actividade, como os hotéis e os táxis. E os próprio salários dos funcionários públicos e o orçamento da RAEM. O Governo acomoda-se.

Sobre a sua lista. Rita Santos já disse que não vai ser candidata…

Ela vai ser mandatária e eu vou concorrer com o meu colega, Leong Veng Chai. Logo a seguir estará o meu colega Gilberto Camacho, estamos a acertar para que seja o número três ou quatro da lista. É uma pessoa jovem, de Macau, que estamos a tentar formar para assumir [esse lugar]. Embora não seja fácil encontrar pessoas que nos possam substituir na lista Nova Esperança. Já é bastante tempo, são 12 anos.

Está cansado de ser deputado?

(Risos). Não. Dá-me muita satisfação pessoal poder ajudar as pessoas, e sinto-me realizado todos os dias, quando os cidadãos, por sua iniciativa, nos solicitam apoio. O exercício do cargo de deputado tem de ser em regime de exclusividade, e todos devem fazer uma declaração de interesses. Isso faz muita falta.

24 Abr 2017

Paulo Cardinal, constitucionalista: “A Declaração Conjunta mantém-se em vigor”

O tratado internacional que Portugal e Macau assinaram há 30 anos continua a valer, apesar de ter sido arquivado precocemente pela mentalidade colectiva. Por isso, é importante que quem cá está contribua para que o pacto continue vivo e de boa saúde. Paulo Cardinal apresenta hoje a obra “Direito, Transição e Continuidade”. Assessor da Assembleia Legislativa desde 1992, o constitucionalista entende que, em termos gerais, têm sido respeitados os princípios definidos para o pós-99, mas há sinais que o deixam preocupado. Algumas das posições tomadas pela Comissão de Assuntos Eleitorais da Assembleia Legislativa são um exemplo. O jurista espera que não passem de um equívoco

 

Apresenta hoje um livro que reúne uma série de textos. Como é que surge esta publicação?

É uma colectânea de textos que foram sendo escritos ao longo dos últimos 25 anos. Alguns deles foram publicados, sendo que, dentro deste grupo, alguns foram publicados fora de Macau – em Portugal, no México… Há também alguns textos que foram escritos há uns anos e que, por motivos vários, não foram publicados, pelo que aproveitei para os incluir. Tem ainda uma componente de uns textos que foram elaborados especificamente para suporte às minhas aulas na universidade. Dentro deste fio condutor de estudos de direito público que não direitos fundamentais, fiz esta selecção. São estudos jurídicos, tratam a maior parte deles a questão da transição de Macau sob o exercício da Administração portuguesa para a Região Administrativa Especial de Macau mas, depois na tónica da continuidade, que é o que impõe a Declaração Conjunta Luso-Chinesa – que ainda agora fez 30 anos. A continuidade da maneira de viver, do sistema jurídico e dos direitos fundamentais, entre outras continuidades. São estes os eixos essenciais deste livro.

Começando pela transição. Macau e Hong Kong têm um sistema constitucional que é único no mundo. Faz-se no livro uma reflexão sobre esta solução constitucional que se encontrou para as duas regiões administrativas especiais.

É uma questão absolutamente essencial e incontornável para quem quiser estudar e perceber do ponto de vista jurídico – e não apenas, mas eu trato de questões jurídicas – este especialíssimo estatuto de Macau e Hong Kong. São situações muito particulares, quer na história do direito constitucional e no direito constitucional comparado, quer também na perspectiva do direito internacional público. A solução ‘Um País, Dois Sistemas’ permite um grande pragmatismo na resolução de questões que foram legadas pela história e permite, sobretudo, dentro da unidade de um país, a manutenção e a garantia da manutenção da diversidade – da diversidade da maneira de viver, da preservação do sistema jurídico, do conjunto de valores que moldam a sociedade de Macau e Hong Kong, etc.. Portanto, este é um tema obviamente obrigatório para quem quiser estudar matérias de direito constitucional em Macau. Como disse, este livro não trata de direitos fundamentais – os estudos sobre essa matéria foram objecto de uma publicação anterior. Aqui lidamos com direito constitucional numa perspectiva mais institucional: a organização da autonomia, a transição pactuada entre Portugal e a República Popular da China, matérias como o sistema político e a fiscalização judicial da constitucionalidade das leis. É nesses tópicos que este livro se movimenta.

A especificidade de Macau em termos constitucionais, as soluções que foram sendo encontradas e que permitiram que Macau seja aquilo que é hoje, pelo menos em termos formais, estão devidamente estudadas? Continua a haver essa necessidade, que já foi apontada no passado?

Continua a haver essa necessidade mas devo dizer, em nome da justiça, que não é específica neste campo. Contrariamente ao que se passa em Hong Kong – que tem uma comunidade académica relevante e altamente produtiva –, Macau, desde logo pela sua dimensão muito reduzida, mas não apenas, tem um grande défice de produção doutrinária no direito. É um défice que é visível em virtualmente todas as áreas do direito – mais numas do que em outras, mas é um défice que existe. Nesta questão do direito constitucional e do estudo deste especial estatuto, da Declaração Conjunta, dos direitos fundamentais, do sistema político – porventura pela sua natureza mais sensível ou capaz de suscitar algumas apreensões não jurídicas –, esse défice de produção doutrinária é ainda mais acentuado. Por exemplo, faz falta a Macau – à sua comunidade jurídica e à população em geral – haver Leis Básicas anotadas. Em Hong Kong, há várias publicações, quer em língua inglesa, quer em língua chinesa. Seria importante haver em Macau esse tipo de publicação, de reflexão. Não temos necessariamente de concordar com essas reflexões, como é óbvio: faz parte do pensamento jurídico um debate, uma adesão ou uma recusa a determinadas ideias. Mas o que é importante é reflectirmos sobre estas normas, sobre estes princípios, e trazer a público as nossas reflexões.

Um maior conhecimento sobre aquilo que é a especificidade do território poderia acabar com alguns receios que existem em termos políticos e sociais? Seria possível acabar com algum melindre que existe se houvesse uma certa simplificação deste tipo de questões?

É importante a divulgação. Ao divulgarmos, ao debatermos e ao reflectirmos, as questões saem necessariamente simplificadas. Se me pergunta por simplificação no sentido de uma hipersimplificação, de reduzir questões jurídicas quase a histórias infantis, aí não concordo, porque uma hipersimplificação poderá levar a resultados enganadores e a explicações que não serão compreensíveis. Agora, uma divulgação, uma ponderação e um debate, isso sim, sou completamente a favor, quer em Macau, quer em qualquer outro sistema jurídico. Com o debate e com essa divulgação, as pessoas perceberiam melhor quais as nossas normas jurídicas, nomeadamente no patamar constitucional e direito internacional. Estariam também mais habilitadas a defender melhor os seus direitos e a compreender melhor este sistema que só tem paralelo no caso de Hong Kong. Mas também é um paralelo limitado, desde logo pelo facto de a matriz em vigor ser a Common Law e aqui ser um sistema de matriz romano-germânico, muito influenciado pelo direito português. Macau precisava de ter mais estudos, uma academia mais actuante, mais divulgação do direito.

A continuidade que se pensou na transição está a ser garantida? Em termos jurídicos, há um esforço para que essa continuidade se mantenha, ou seja, para que seja respeitada a Declaração Conjunta?

Não é um processo perfeito. Obviamente, poderemos sempre detectar situações de alguma descontinuidade. Relativamente à Declaração Conjunta, lamento que tenha entrado numa espécie de arquivamento precoce na mentalidade colectiva. Quase que se apresenta a Declaração Conjunta como uma relíquia do passado, algo que foi um acordo importante, mas que entrou já para a história, não está em vigor, não tem interesse. É falso – a Declaração Conjunta mantém-se em vigor, é um verdadeiro tratado internacional, depositado na Organização das Nações Unidas quer por Portugal, quer pela República Popular da China. Tenho pena de não ver mais referências à Declaração Conjunta, de não ver reedições da publicação da Declaração Conjunta, como vemos da Lei Básica e de uma série de outra legislação. Quanto à questão da continuidade, no essencial, tem estado garantida. Não assistimos à eliminação de determinados direitos fundamentais que já vinham de antes de 1999. As leis têm sido mantidas respeitando os seus princípios essenciais, a sua estruturação, as suas razões fundacionais. Pode haver – e haverá com certeza – alguns casos em que essa continuidade de valores pode estar a ser algo afectada.

Ainda em relação à continuidade, temos assistido a tomadas de posição da Comissão de Assuntos Eleitorais da Assembleia Legislativa (CAEAL) diferentes do que tem sido a prática nos actos eleitorais dos últimos anos. Há aqui alguma descontinuidade naquilo que se está a desenhar para as próximas eleições?

Ainda é relativamente cedo, mas devo confessar que começo a ficar com algum desconforto relativamente a opiniões veiculadas pela comissão eleitoral. Não sei se já foram tomadas algumas decisões formais e definitivas mas, pelo que tem sido veiculado pela comunicação social, fico preocupado porque me parece que há claramente aqui uma quebra, uma descontinuidade, e alguma confusão, nomeadamente quando parece que em Macau não vigora um documento chamado Lei Básica. Ora, a Lei Básica é a lei suprema de Macau e tem de ser observada por todas as leis, por todos os agentes administrativos e por todas as outras normas ou quase normas, que é o caso das chamadas instruções vinculativas da CAEAL. Quando a comunicação social veicula que, por exemplo, a CAEAL se reservará o direito, através de uma instrução, de retirar conteúdos de plataformas de sítios na Internet, só posso ficar preocupado e esperar que seja uma má reprodução dessa ideia, porque isso seria uma violação de direitos fundamentais, da Lei Básica e do ‘due process’. Espero que haja apenas uma mera confusão e não já uma decisão tomada que, como digo, estaria em desconformidade com a Lei Básica, com direitos fundamentais e com a própria Lei Eleitoral da Assembleia Legislativa e com a Lei de Imprensa. Aliás, há pelo menos dois pareceres da Assembleia Legislativa que chamam precisamente a atenção para esta questão das instruções, que não poderão vincular terceiros – são instruções que deverão apenas vincular os membros da CAEAL e os funcionários públicos que para ela trabalham, mas não vincularão candidatos e mandatários, e muito menos a comunicação social. Depois, há mais uma ou duas situações que também me deixam apreensivo. Uma delas é a questão do ruído: as manifestações existem para fazer ruído e o próprio Tribunal de Última Instância já afirmou isso. Dizem que vão limitar o ruído – como e em nome de quê? Da Lei de Prevenção do Ruído Ambiental? Essa lei não se aplica às reuniões e manifestações em geral, e às reuniões e manifestações eleitorais. Creio que a CAEAL estará porventura a dar os primeiros passos, algo confusa talvez, mas seria bom acertar rapidamente isto e sobretudo olhar para estas questões não de uma forma isolada, mas do sistema jurídico – não esquecendo a Lei Básica, a Declaração Conjunta, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, não esquecendo leis e direitos fundamentais como o direito de reunião e manifestação, a Lei de Imprensa, etc.. É importante para Macau ter uma comissão eleitoral que se saiba pautar pelo escrupuloso cumprimento do princípio da legalidade. E também que não entre em considerandos que fogem da área da legalidade e entram mais na área de uma espécie de moralismo ou de moralidade. Não é essa a função da comissão eleitoral.

Portugal, enquanto um dos signatários da Declaração Conjunta, tem estado atento ao que é a obrigação da China no respeito pela continuidade que ficou acordada em 1987?

Não sei o que possa dizer – se Portugal tem agido, não se sabe. Pode eventualmente ter outro tipo de contactos ao nível não público. Se a pergunta é se Portugal tem ou não legitimidade para averiguar e analisar o efectivo cumprimento da Declaração Conjunta, tem. Há pouco tempo foi afirmado, relativamente a Hong Kong, que era uma questão meramente interna e que o Reino Unido não poderia tecer considerações e emitir opiniões – isso não é verdadeiro. A legitimidade de Portugal advém do facto de ser uma das duas partes signatárias deste acordo internacional que é a Declaração Conjunta. Portugal não pode, obviamente, interferir no dia-a-dia da administração de Macau – seria uma atitude quase neocolonialista –, mas deverá estar atento e terá legitimidade, caso considere que há uma violação a determinada norma e garantia da Declaração Conjunta.

Há intenção de continuar a escrever sobre este conjunto de questões?

Tenho escrito com regularidade nos últimos 25 anos, não tenho planos para deixar de escrever sobre estas matérias. À medida que este segundo período de transição vai avançando em direcção a 2049, creio que é ainda mais importante escrever, porque a memória vai-se apagando, o referencial Declaração Conjunta vai ficando, nalguns sectores, um bocado obnubilado, para não dizer quase esmagado ou mesmo estigmatizado. É cada vez mais importante escrevermos sobre estas matérias e mantermos viva esta ideia sublime de ‘Um País, Dois Sistemas’. Com isso, estamos a defender não apenas a Declaração Conjunta, mas também a Lei Básica – isto é, estamos a defender as vontades soberanas de Portugal e da República Popular da China expressas na Declaração Conjunta e, a meu ver, aquilo que a República Popular da China inscreveu na Lei Básica. Por vezes, quando alguém defende a Lei Básica contra determinado regulamento administrativo, determinada legislação ou determinado comportamento que estará desconforme com a Lei Básica, parece que, com isso, está a atacar a Lei Básica. Bem pelo contrário – a Lei Básica funciona como uma lei constitucional de Macau. Devemos manter-nos alerta e, como juristas e académicos, temos mesmo o dever de chamar a atenção quando determinado acto normativo ou acção administrativa está em desconformidade com a Lei Básica e/ou com a Declaração Conjunta.

 

 

 

 

Bacelar Gouveia no lançamento

O lançamento da obra “Direito, Transição e Continuidade” está marcado para o final da tarde de hoje, pelas 18h30, e insere-se no programa de comemorações do quinto aniversário da Fundação Rui Cunha. Para a apresentação do livro vem de Portugal Jorge Bacelar Gouveia, que é o autor do prefácio da obra de Paulo Cardinal. Bacelar Gouveia é professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade Autónoma de Lisboa. É presidente do Instituto do Direito de Língua Portuguesa e dos juristas portugueses que mais estudou e escreveu sobre o Direito de Macau.

21 Abr 2017

Isabel Capeloa Gil, reitora da Universidade Católica Portuguesa: “USJ precisa de muito para crescer”

A reitora da Universidade Católica Portuguesa está de visita a Macau para estreitar laços com o Governo e com a Universidade de São José. Na calha está a criação de pós-graduações em Direito, bem como um mestrado em Ensino de Português Língua Estrangeira. Isabel Capeloa Gil destaca a boa gestão da instituição levada a cabo por Peter Stilwell, mas assume que o caminho ainda está a ser construído

[dropcap]V[/dropcap]eio a Macau para ter encontros com o Governo e também para acompanhar o progresso da Universidade de São José (USJ). Que planos concretos traz na bagagem?
Temos uma relação forte com a USJ, que foi criada há 20 anos através de uma participação entre a Universidade Católica Portuguesa (UCP) e a Diocese de Macau. É importante para nós acompanharmos o desenvolvimento dos cursos e também desenvolvermos novas iniciativas. Estamos num momento em que a universidade já tem o seu rumo autónomo, e interessa estudar possibilidades de ligação em áreas específicas entre aquilo que se faz em Macau e as iniciativas que se fazem em Portugal. É isso que estamos a estudar em algumas áreas em particular, como o Direito e a Economia.

A USJ pode ter uma licenciatura em Direito?
Não está nada explorado, nem discutido. Neste momento estamos sobretudo a trabalhar na área das pós-graduações, em articulação com a escola de Direito da UCP no Porto. Depois há outras áreas, como o ensino do português, e outras que ainda estão a ser estudadas. Há uma cooperação muito forte com a Faculdade de Indústrias Criativas [da USJ].

Em Macau, a qualidade dos cursos de Direito tem sido questionada. Seria importante para a UCP, através da USJ, marcar uma posição nesse sentido?
Se houver interesse da parte do território e das autoridades locais, estamos disponíveis. Queremos que essa necessidade surja da parte das autoridades locais. A UCP tem vindo a inovar no ensino do Direito em Portugal. Criámos, há dez anos, a Global School of Law, que internacionalizou o ensino do Direito. A Católica mudou o paradigma em Portugal, mas não só. Tem vindo a ser considerada pelo Finantial Times como uma das dez universidades mais inovadoras no ensino do Direito em todo o mundo. Temos interesse em estudar parcerias na área do Direito Internacional e se houver de facto uma abertura…

Para que haja licenciatura em Direito, além das pós-graduações.
Para já, o que está estudado com a USJ são apenas pós-graduações.

Quando podem arrancar?
Creio que para o ano poderão ser oferecidas.

Que outras iniciativas, em termos de cooperação, estão a ser pensadas?
Estamos a estudar também possibilidades em áreas alvo, como é o caso da área das ciências, no sentido de termos parcerias ao nível da investigação com um dos centros que temos no Porto, na área da biotecnologia. Posso dizer também que uma das iniciativas que estamos a desenvolver em Macau, e que é uma das áreas prioritárias, é o lançamento de um novo curso de mestrado do Ensino de Português Língua Estrangeira, entre a UCP e a USJ. Os alunos de Macau que estão em Portugal a estudar português na UCP vão ter um ano curricular em Portugal e, depois, o acompanhamento do estágio será feito em Macau. É um projecto-piloto, com dupla titulação, e no fundo vai testar possibilidades de termos outras licenciaturas e mestrados com dupla titulação.

A UCP vem também à procura de uma maior internacionalização, à procura do que tem sido feito por outras universidades portuguesas?
Pretendemos ter contactos com outras universidades locais porque a UCP tem um plano de desenvolvimento estratégico muito ligado à internacionalização. É feito através da captação de alunos e da possibilidade de intercâmbio dos nossos alunos para fora. Já temos várias iniciativas com a USJ e também com a Universidade de Macau. Temos estado cada vez mais a desenvolver parcerias de investigação com Macau, Hong Kong e a China. A UCP vai ter um Instituto Confúcio, porque a China é uma área muito importante para o desenvolvimento da universidade. Já o era no passado, neste momento também é, pois temos muitos parceiros aqui em Macau.

Sobre o Instituto Confúcio. É importante para a UCP uma aproximação à China, uma tendência que se tem verificado no ensino superior em Portugal?
A UCP tem uma aproximação à China desde a sua fundação. Essa aproximação foi feita, inicialmente, através de Macau, sendo que as primeiras parcerias com universidades chinesas remontam ao final dos anos 90. Entretanto, essas parcerias têm sido alargadas e posso falar de uma cooperação muito forte na área do Direito, com a Universidade Tsinghua e com a Communications University, onde somos parceiros estratégicos. Estamos presentes em feiras na China, temos um contingente bastante razoável de estudantes chineses, e também alunos nossos que vão para a China. Com a criação do Instituto Confúcio vamos alargar ainda mais as possibilidades ao nível das cooperações. A China é um grande potentado, não só na área da economia, mas também tem um enorme potencial na área do ensino superior.

O que é que o Instituto Confúcio da UCP pode trazer de novo em termos do ensino do chinês e de investigação nessa área?
Estamos ainda a desenvolver o plano de actividades do instituto, que vai estar sediado no Porto. Será importante para a universidade, que já tem um Instituto de Estudos Orientais e um mestrado de Estudos Asiáticos de grande sucesso. Com a presença do Instituto Confúcio vamos ter uma maior capacidade de desenvolver iniciativas ao nível do estudo das relações entre Portugal e a China, mas também um conhecimento muito maior da cultura chinesa e o desenvolvimento político nos últimos anos. O instituto não se vai confinar só à língua.

Falando da USJ. A universidade passou por um grande processo de reestruturação em 2009, mudou de reitor, fechou cursos, despediu professores. Era fundamental esse processo?
A vinda do professor Peter Stilwell ocorreu muito tempo antes de me tornar reitora. Mas devo dizer que o trabalho do padre Peter Stilwell tem sido importante. As universidades são instituições aprendentes, moldáveis. À medida que o tempo evolui, elas vão-se transformando e adequando às necessidades. Esse trabalho mostra que a universidade está viva. Muitas vezes é necessário fazer um ajustamento para que haja um desenvolvimento. Foi isso que o reitor da USJ fez e agora a universidade passa por uma nova fase de desenvolvimento.

Uma fase que inclui a construção de um novo campus, que tem vindo a sofrer alguns atrasos no projecto. Isso tem sido um entrave?
O novo campus é certamente muitíssimo importante para a afirmação da universidade. Todos nós precisamos de uma casa para viver. E a USJ vai finalmente ter uma casa sua. Temos acompanhado à distância todas estas vicissitudes, mas estamos com grande interesse em ver o novo campus e vai ser muito importante para o futuro desenvolvimento da universidade. Encaro os atrasos como sendo normais, isso acontece com todos os projectos de construção.

A que se refere concretamente quando fala de um novo desenvolvimento da USJ?
Creio que as unidades [educativas], depois deste trabalho que o professor Peter Stilwell fez, terão novas iniciativas. A unidade que conheço melhor é a Faculdade de Indústrias Criativas, que está com uma enorme pujança. Há uma vontade de desenvolver iniciativas na área da criatividade, que é muito importante. Foi sinalizada pelas autoridades chinesas como uma das áreas de aposta no último Plano Quinquenal. No mundo inteiro, a área das indústrias criativas é muitíssimo importante para o Produto Interno Bruto (PIB) dos países. Em Portugal acordámos para esta questão há cerca de quatro anos e o discurso político começou a dar enorme importância a esse sector. Há uma mudança de ‘mindset’ e a Ásia é uma zona do globo absolutamente pujante ao nível do financiamento das indústrias criativas. Olhamos para Hong Kong, Singapura e o Japão, e Macau tem tudo a ganhar com a aposta nesta área de desenvolvimento.

A USJ, ao contrário de outras universidades locais, não pode receber alunos vindos da China. É outro constrangimento?
Acredito que o reitor da universidade tem desenvolvido uma série de iniciativas para tentar desbloquear esta questão. Certamente que receber alunos da China trará maiores possibilidades de desenvolvimento à universidade, como em todas as universidades de Macau. O mercado da China Continental é enorme, o diálogo tem vindo a ser desenvolvido e vai continuar. É uma questão que tem sido acompanhada com grande cuidado, mas estou confiante de que a universidade vai conseguir desbloquear este desafio.

Um desafio que tem implicado uma grande ginástica financeira por parte da USJ.
Sobretudo ao nível de finanças sustentáveis. O importante é sermos responsáveis pelo financiamento que se recebe, com as propinas dos alunos, e a actual gestão tem sabido fazer isso com grande coerência. É uma situação semelhante à que se vive em Portugal: a UCP não recebe fundos públicos e tem feito uma gestão eficiente enquanto instituição pública não estatal. Exige uma enorme responsabilidade de gestão. Acho que há bastante semelhança no modelo de gestão.

Mas se a UCP não recebe fundos públicos, a USJ, sendo uma universidade privada, tem apoios do Governo e da Fundação Macau. Sem essa ajuda financeira teria sido mais difícil erguer este projecto?
Se calhar, sim. Esta é uma questão a colocar ao reitor, mas asseguro que sim. [A USJ] é uma instituição pequena que ainda precisa de muito para crescer e para se desenvolver, mas o percurso das universidades é mesmo assim.

20 Abr 2017

Isabel Machado e a escrita histórica: “Há em Macau uma constância surpreendente”

Isabel Machado não é uma estranha a Macau. Muito pelo contrário, aqui trabalhou na TDM entre 1989 e 2000, tendo sido igualmente professora de português no ensino secundário e de português como língua estrangeira, em Lisboa Regressou a Portugal no final de 2000. Depois de oito anos a trabalhar no Canal Parlamento, na Assembleia da República, em 2012 lançou o seu primeiro romance histórico “ISABEL I DE INGLATERRA E O SEU MÉDICO PORTUGUÊS”. Seguiu-se “VITÓRIA DE INGLATERRA, A RAINHA QUE AMOU E AMEAÇOU PORTUGAL”. Sempre na mesma editora, Isabel lançou o seu terceiro romance histórico, “CONSTANÇA, A PRINCESA TRAÍDA POR PEDRO E INÊS”, em 2015 e, recentemente, a sua última obra, “A RAINHA SANTA”. Pelas redes sociais pude aperceber-me do primeiro, depois segui o percurso do segundo e, finalmente, comprei o terceiro cujo conteúdo saboreei. Na sua breve visita à RAEM, foi possível conversarmos sobre alguns aspectos do seu percurso como autora de romances históricos.

[dropcap]Q[/dropcap]uais as suas impressões de Macau depois de 10 anos de ausência?
As minhas impressões de Macau são sempre, em primeiro lugar, emotivas. Desta vez não foi diferente. A estranheza pelo excesso de construção, de gente nas ruas ou de ruído foi muito rapidamente subjugada pelo encanto de voltar a casa, é sempre um voltar a casa, do odor característico e de que sempre gostei, da textura. Macau é, para mim, uma sensação física de textura, que é boa porque é familiar, mesmo que não goste nada da humidade… Sobrepõem-se muito rapidamente as sensações boas, as recordações maravilhosas prolongadas no presente porque tudo mudou mas há em Macau uma constância surpreendente também, pelo menos no mundo português de Macau. E há os amigos que são o melhor de tudo. É por eles que voltarei sempre. São as pessoas e o que vivemos com elas que fazem os sítios e as memórias e o mais emocionante do regresso é senti-los aqui, no mesmo sítio onde estavam há 10 anos, isto é, sem que o tempo beliscasse a nossa intimidade, a cumplicidade que vivemos juntos num tempo muito marcante.

A Isabel Machado começou por chamar a atenção de quase todos os telespectadores da TDM pela sua beleza física. Porém o tempo deu a conhecer uma mulher sensível, delicada e inteligente. Sente que a beleza física pode ser um anátema?
Pode. Porque há uma pré-avaliação que, idealmente, nunca deveria ser feita sobre os outros. E essa avaliação imediata, que se sobrepõe a qualquer critério racional sobre a pessoa em causa, é, muitas vezes, injusta e preconceituosa. Quem é, num primeiro momento, avaliado pela aparência tem sempre de provar mais do que os outros. Mas, claro que não é tudo mau. A beleza também pode abrir portas.

Como é lidar com o êxito, com os sucessivos lançamentos? Já estão na calha outros romances?
Não sei se posso chamar êxito. É muito importante para mim que o que escrevo chegue às pessoas, nunca me esqueço que estou a contar uma história e isso é que é uma sensação extraordinária: saber que vamos partilhar muitas horas de muitas vidas de que não sabemos nada, mas a quem podemos levar encanto, conhecimento, desfrute, alheamento dos problemas ou das tragédias que as afligem. Os leitores escrevem-me coisas muito bonitas. Eu gosto de críticas construtivas também, mas de tudo o que já me disseram o que mais me emocionou foi uma carta escrita à mão, enviada por uma jovem, aluna de Mestrado de Literatura, que me disse: os seus livros curam. Isto abalou-me profundamente. Esta jovem tinha estado com um problema grave, internada durante muito tempo e, por acaso, foi um dos meus livros que a acompanhou na fase mais crítica. Saber que aquela história lhe levou esperança ou a fez afastar-se da gravidade da sua situação durante umas semanas foi uma coisa que nunca esquecerei. Sim, já comecei a trabalhar num novo livro, não necessariamente um romance, desta vez…

Como surgiu na sua escrita o romance histórico e quanto de investigação cabe em cada obra e quanto de criação nela se incorpora?
Surgiu por acaso, como quase tudo tem acontecido na minha vida. Através de um amigo de há muitos anos, recebi um desafio de uma editora, A Esfera dos Livros, para fazer um romance histórico sobre um tema da minha escola. Disse logo que sim. Sempre gostei de escrever, a minha área de formação é a literatura não o jornalismo, ao contrário do que muitas pessoas pensam, sempre adorei História também e achei imediatamente que me sentiria bem naquele registo. Mas foi brutal. Chegava a acordar sobressaltada a meio da noite a pensar na loucura em que em tinha metido e isto só passou a partir do terceiro romance!

A investigação é fundamental e é sempre a primeira parte do trabalho, embora nunca a abandone totalmente, mesmo quando já estou em pleno na escrita. Passo meses inteiros a estudar, a pesquisar documentos, cartas, se as houver, livros, testamentos, tudo é importante. Para ser credível, a ficção histórica tem de estar assente numa boa pesquisa e não estou a falar apenas dos factos. Falo de tudo. Dos costumes, da alimentação, do vestuário, do mobiliário, da linguagem… A partir daí, construo a ficção, seguindo a estrutura que estabeleci, o fio condutor que quero dar ao romance. No fundo, segundo a minha história dentro da História. Romance, em português, significa ficção e o romance histórico deve ser, acima de tudo, ficção. Por isso, o espaço para a criação é imenso, inesgotável, sem freio, o que é maravilhoso. No entanto, gosto de respeitar a História e tenho imenso cuidado com isso.

É notório que nos seus livros existe uma decidida preferência por personagens femininas. Esta escolha pode significar também o que se vem designando como escrita no feminino?
Nunca tenho uma resposta convicta para essa pergunta. Não sei se a escolha pode significar exactamente isso, é certo que o mundo feminino é-me, naturalmente, menos enigmático…Tenho optado por personagens femininas mas isso não quer dizer que rejeite a ideia de ter uma personagem principal masculina, aliás já tive. No meu primeiro romance, a minha escolha recaiu numa mulher que eu sempre admirei, Isabel I Inglaterra, e nas suas ligações com Portugal na época na perda da independência, mas tinha como segunda figura, uma segunda figura muito importante, um homem, um médico judeu português fugido à Inquisição e que acabou na corte de Isabel I, como médico e espião. Esta pessoa existiu, não há quase nada sobre ele, teve uma vida fascinante e trágica, e quase metade do livro é na pele deste português praticamente desconhecido em Portugal, Rodrigo Lopes. Há quem diga que o meu romance mais feminino é Constança… Não sei, prefiro deixar essa avaliação para os leitores.

Macau poderá ser cenário para um próximo romance? Haverá alguém aqui nascido ou radicado que a possa motivar a criar um personagem?
Claro que pode, mas não é ainda o próximo! Há muitos aspectos da História de Macau que me seduziriam para escrever um romance. E pessoas aqui nascidas também.

18 Abr 2017

Au Kam San, deputado: “As pessoas dizem ‘façam vocês por nós’”

A população de Macau percebe a importância da democracia, mas não se mexe para que o contexto político mude. É por isso que, justifica Au Kam San, não é fácil chegar a bom porto na causa que abraçou há várias décadas. Candidato às próximas legislativas, sabe apenas que vai concorrer ao lado de Ng Kuok Cheong, sem qualquer associação na retaguarda. Quanto à Novo Macau, já era. O deputado garante que não saiu em ruptura com Jason Chao. Mas não se habituou ao novo modelo de funcionamento da associação que fundou

 

Que balanço faz do trabalho desenvolvido na Associação do Desenvolvimento Comunitário de Macau (ADCM)?

A Associação do Desenvolvimento Comunitário de Macau não é uma associação política. Está focada nos trabalhos sobre o desenvolvimento comunitário. No entanto, é um facto que esses trabalhos requerem um alto grau de profissionalismo e vários participantes. A ADCM foi criada em 2015 mas, até agora, ainda não desempenha bem o seu papel, por ter falta do que é necessário. O conceito do desenvolvimento comunitário é prestar auxílio aos cidadãos em áreas diferentes e juntar pessoas para expressar as queixas. Acreditamos que o Governo vai compreender as necessidades e as expectativas dos cidadãos através da interacção; dessa forma pode reforçar a justiça e a transparência. Isso é uma das direcções da associação. Apesar disso, para atingir esses objectivos, é necessário profissionais de qualidade. Para já, temos falta de recursos humanos e, por isso, estamos numa fase de formação de mais talentos na área de desenvolvimento comunitário, através da organização de cursos. A ADCM já entrou em funcionamento há mais de um ano, mas não vejo ainda o fruto do nosso trabalho. Mas não estamos ansiosos, uma vez que achamos que os trabalhos na área do desenvolvimento comunitário não podem ser feitos em pouco tempo.

É com esta associação que se candidata às eleições este ano?

Não, não vou candidatar-me com esta associação. Esta associação não é uma associação política, algo que ficou bem definido no início. A associação só está focada no desenvolvimento comunitário. Quanto às eleições, eu e Ng Kuok Cheong vamos participar nas legislativas. Trabalhamos em conjunto há muitos anos e acreditamos que não precisamos de uma associação que nos lidere nas eleições. Na altura certa, vamos recolher assinaturas dos cidadãos e constituiremos uma comissão de candidatura, através da qual entregaremos uma lista para nos candidatarmos à Assembleia Legislativa (AL).

Que expectativas deposita nas eleições deste ano? A AL vai ter rostos novos?

É difícil prever se vai haver rostos novos na AL porque isso depende de escolha dos eleitores. Mas, pelo menos, do nosso ponto de vista, existem alguns factores novos nas eleições que aí vêm. Este ano, há mais 30 mil eleitores, metade dos quais são jovens com idade inferior a 25 anos. Nesse sentido, é possível que seja a primeira vez que essas pessoas vão votar. Caso haja novas formas de pensar entre esses jovens, a decisão deles pode influenciar muito o resultado das eleições. Esperamos que esses jovens tenham ideias e objectivos novos, e que fomentem a participação nas eleições, quer sejam eleitores ou candidatos. Nas últimas eleições, tivemos um resultado não muito satisfatório. Não estou a dizer que tivemos menos votos. Normalmente, os assentos dos deputados eleitos por via directa são divididos por três grupos políticos. A ala mais próxima de Pequim – a Federação das Associações dos Operários de Macau (FAOM) e os Kaifong –, ocupa basicamente cerca de um terço dos lugares na AL. O segundo grupo é mais independente e aberto, incluindo as associações sindicais independentes, bem como o grupo democrático. O outro é dos empresários, que geralmente têm relações com os casinos. Começaram a participar nas eleições em 1996 e, como investiram muitos recursos, conseguiram alguns assentos na AL. Digo que o resultado nas últimas eleições não foi satisfatório porque os empresários garantiram sete assentos na AL, de entre um total de 14. Conquistaram metade. Por isso, a proporção na AL tornou-se anormal. Este resultado também está ligado ao que se passava na altura, com a indústria de jogo a ganhar lucros significativos. As operadoras queriam também “jogar” as eleições. Este grupo tem uma característica: quanto mais investem, mais assentos obtêm. Nesse contexto, em 2013, para mim o resultado não foi satisfatório. Por isso, espero que este ano a proporção de grupos políticos na AL possa voltar ao normal, uma vez que, com a diminuição de receitas nos casinos, a situação é agora diferente. Acredito que as operadoras de jogo não vão investir tanto dinheiro como em 2013. É um facto que, actualmente, existem vários empresários na AL, quer entre os deputados eleitos por via indirecta, quer nos nomeados pelo Chefe do Executivo. Caso a maioria de deputados eleitos por sufrágio directo seja proveniente do empresariado, a AL vai estar sempre do lado dos capitalistas, o que não é bom, nem permite garantir um equilíbrio. Mesmo que eu não consiga continuar a ser deputado, espero que a AL tenha uma situação equilibrada entre as várias alas.

Jason Chao foi a principal razão por que saiu da Associação Novo Macau (ANM)?

A minha saída não teve nada que ver com uma pessoa em particular. Sou um dos fundadores da associação, conheço muito bem os princípios e objectivos da criação da ANM. Tentámos reunir o maior número possível de pessoas de associações independentes e oferecíamos-lhes apoio, de modo a alargar o poder do grupo independente. No entanto, depois houve uma mudança nessa tradição. Além disso, surgiu uma nova regra no jogo, à qual não me consegui habituar, e não quis continuar com esse ambiente. Por isso, acabei por sair da associação. Eu e Ng Kuok Cheong insistimos na ideia de que era preciso dar uma oportunidade aos jovens para que crescessem e conseguissem substituir-nos. Somos dos anos 50. Na ANM, existia um problema: havia poucas pessoas dos anos 70 e dos anos 80. Em 2009, apareceram jovens que queriam e tinham coragem para assumir essa grande responsabilidade, pelo que lhes demos a plataforma para que pudessem subir. A associação passou a ser liderada por esses jovens e nós já não estávamos na direcção. Quando os jovens assumiram a responsabilidade de liderar a ANM, é óbvio que o fizeram com a sua ideologia. Ou seja, em Macau, também há gente que critica Ng Kuok Cheong e Au Kam San porque, apesar de terem lutado pela democracia durante tantos anos, nada conseguiram. É verdade que isso depende do contexto político. Quanto à democracia em Macau, não temos apoios fortes para avançar nesse sentido. Mas tentámos criar cada vez mais condições para que fosse possível lutar pela democracia. Quando surgiu uma nova maneira e uma nova ideologia na ANM, achámos que isso seria bom, pelo que lhes demos uma oportunidade para que tentassem. No entanto, a ANM passou a estar contra as outras associações independentes. Não consegui habituar-me a essa nova regra e saí do jogo. Por isso, a minha saída não teve nada que ver com uma pessoa em particular. Além disso, como senti que já havia alguém capaz de assumir as minhas responsabilidades, achei que era a altura adequada para sair.

Carrie Lam foi eleita Chefe do Executivo em Hong Kong. Acredita que o processo democrático e as eleições por sufrágio universal na região vizinha vão ser mais difíceis?

Não é de agora. As eleições por sufrágio universal têm sido difíceis por duas razões. Em primeiro lugar, há muitos países e vários grupos de pessoas que escolhem Hong Kong como destino para “combater” à China. O Governo Central gosta de Hong Kong por ser uma cidade internacional, mas também entende que isso pode ser uma ameaça ao Governo Central. Na minha opinião, não causa qualquer ameaça à China. Nasci numa família de esquerda e fui membro de uma subunidade da FAOM, pelo que tenho bastantes conhecimentos sobre a ideologia da República Popular da China. Por isso, sei que quando a democracia em Hong Kong avança um pouco, a China vai monitorizar a situação e limitar o desenvolvimento da democracia. Esta é uma das razões. Depois, antigamente, o povo de Hong Kong pensava que bastava ter liberdade, não se preocupava com a democracia. Depois da transferência da soberania, o Reino Unido afastou-se do território e as pessoas começaram a lutar pela democracia. Em Macau, a maioria dos cidadãos compreende a importância de democracia mas, no que toca à luta, as pessoas dizem “façam vocês por nós”. Em Hong Kong, o povo tem poder: basta olhar para o Occupy Central que levou mais de 100 mil pessoas para a rua. No Conselho Legislativo de Hong Kong, a ala pró-democrática ocupa 60 por cento dos assentos e o grupo próximo do Governo Central tem 40 por cento. Caso o sufrágio universal seja uma realidade em Hong Kong, é possível que seja eleito um Chefe do Executivo sem proximidade política a Pequim. Aos olhos da China, seria um grande desastre. Por isso, é difícil haver democracia em Hong Kong. Quanto à eleição de Carrie Lam, é simples: vai consolidar o fruto do trabalho de C.Y. Leung. Porque é que C.Y. Leung foi nomeado vice-presidente da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês? Porque teve uma relação muito má com a sociedade, não pôde continuar a ser Chefe do Executivo. Mas, do ponto de vista da China, C.Y. Leung fez um bom trabalho, porque nos últimos cinco anos conseguiu destruir vários regimes em Hong Kong. Carrie Lam teve todo o apoio porque vai continuar o caminho de C.Y. Leung.

Acha que a subida ao poder de Carrie Lam pode trazer algum impacto na luta pelo sufrágio universal em Macau?

Não vejo qualquer impacto. Macau é um caso completamente diferente de Hong Kong. O Gabinete de Ligação do Governo Central não precisa de agir em Macau da mesma maneira. Na RAEM, há 400 membros da Comissão Eleitoral, sendo que 125 são do sector comercial, industrial e financeiro. E só me refiro a este sector. Como é que estes membros são eleitos? A Associação Comercial de Macau fecha a porta e faz uma reunião para determinar a lista. Tenho experiência de mais de 30 anos como professor. A Comissão Eleitoral tem cerca de 20 membros do sector da educação. Como é que essa gente foi eleita? Não sei. Quem são eles? Também não faço ideia. Mesmo que haja uma eleição, será feita dentro desse grupo de gente. Sendo assim, a Associação Comercial de Macau manda os membros da Comissão Eleitoral votar em determinado sentido. Por isso, a tomada de posse de Carrie Lam como Chefe do Executivo não vai ter qualquer influência em Macau.

11 Abr 2017

Jason Chao, activista: “Os jovens de Macau são muito mimados”

Entra em funcionamento no domingo o projecto Just Macau, a plataforma de Jason Chao para monitorizar as eleições deste ano. Em entrevista ao HM, o ex-presidente da Associação Novo Macau explica por que é mais activista do que político, conta o que esteve na origem da ruptura com Au Kam San e deixa críticas a Ng Kuok Cheong, que é candidato às legislativas, mas não pela organização liderada por Scott Chiang. Faz ainda um retrato da comunidade local, uma sociedade que gostaria que fosse diferente

Deixou a Associação Novo Macau (ANM) na semana passada. Depois de 11 anos, qual é a sensação que fica?

Não posso negar que a ANM foi uma parte importante da minha vida. Gostei muito do período em que trabalhei para a associação. Mas, depois de uma cautelosa ponderação sobre as necessidades de Macau, percebi que, se continuasse a ser um dos líderes da ANM, iria sentir alguns constrangimentos. A ANM é uma organização política e vai ter membros a concorrer às eleições legislativas. A sociedade de Macau é muito rica, precisa de diversidade e de mais pessoas a desempenharem diferentes papéis. As legislativas são este ano e vou desempenhar um papel na monitorização destas eleições. Em actos eleitorais anteriores, ninguém desempenhou este papel.

Várias pessoas ficaram surpreendidas com a sua saída.

Alguns académicos e analistas tiveram dificuldade em acreditar na minha decisão, ficaram, de algum modo, surpreendidos. Sei que muitas pessoas foram apanhadas de surpresa. Mas isso também me surpreende: fiquei surpreendido com o facto de as pessoas terem ficado surpreendidas. A razão tem que ver com o modo como se vê o mundo. Quanto maior é o horizonte, maior é a capacidade de perceber as opções. As pessoas de Macau terão, talvez, horizontes pequenos, ao pensarem que se se luta por algo e se se entregam petições, é porque o objectivo é ser eleito deputado ou ter outro tipo de envolvimento no sistema político. É uma forma de pensar muito conservadora. A sociedade local deve começar a ter uma visão mais global. Em Hong Kong, em tantos outros sítios, uma democracia que funciona bem precisa de muitos sectores a trabalharem em conjunto. Os políticos são uma parte do sistema; precisamos de representantes eleitos, mas também precisamos de uma sociedade civil com grupos que possam monitorizar o Governo e os políticos.

A surpresa com que a notícia foi recebida terá que ver com o facto de as pessoas pensarem que é um político. Podemos dizer que é, acima de tudo, um activista?

Noutras situações, defini-me como activista. É difícil encontrar uma definição concisa para o termo ‘político’, em cantonês a palavra carrega uma conotação negativa. Mas sempre me posicionei como activista. Há quatro anos, quando me candidatei à Assembleia Legislativa (AL), disse nas entrevistas aos media que mantinha a minha posição. O modo como me candidatei teve como objectivo apresentar aos cidadãos a minha plataforma. Se os cidadãos entendessem que eu merecia um assento na AL para implementar o meu programa político, deveriam então eleger-me.

O que não aconteceu.

Não aconteceu. Essa lógica, essa ideia, não funcionou em Macau. O eleitorado de Macau é mais conservador, continua a valorizar a imagem dos candidatos e as relações interpessoais. Sei que há pessoas mais capazes na ANM que devem candidatar-se às legislativas. Eu devo usar as minhas forças e não as minhas fraquezas no meu compromisso com a coisa pública. Embora alguns possam lamentar a minha saída, e acharem que estou a desistir de tudo, isso não é verdade. O único objectivo da minha participação nas actividades da ANM foi fazer de Macau um local melhor, um local mais em consonância com as práticas internacionais. Continuo no mesmo caminho. Ser eleito ou não nunca foi a principal meta, mas sim um meio. Tivemos muitas discussões na ANM por causa desta questão. Havia uma confusão entre objectivos e meios. O objectivo dos activistas ou dos membros da ANM deve ser propor ideias políticas; tentar um assento na AL é apenas um meio e não um fim. Não devemos confundir isto. Até académicos ficaram surpreendidos com a minha decisão – diria que seguiram a forma de pensar dos cidadãos comuns de Macau. Mas eu não sou um residente de Macau comum, sou marginalizado, não estou no ‘mainstream’. Se assumem que o meu objectivo no envolvimento com os assuntos públicos é conquistar um assento na AL, terão provavelmente feito assunções erradas acerca do meu carácter.

Tem muitos anos de trabalho na ANM e contribuiu, de forma significativa, para mudanças profundas na associação. Até aparecer, Au Kam San e Ng Kuok Cheong eram a Novo Macau. Chegou com novas ideias e uma forma de estar diferente. O que é que aconteceu com Au Kam San?

É uma questão muito interessante. Em termos gerais, posso dizer que quanto mais se trabalha em conjunto, mais diferenças se descobrem. As diferenças atingiram um ponto em que já não havia forma de construir uma ponte entre o fosso. Decidiu deixar a associação porque não tinha qualquer influência na direcção da ANM. Houve vários pontos de viragem desde que assumi a presidência. Acho que o primeiro momento teve que ver com a proposta para a chamada reforma política, o “+2+2+100” [em 2012]. Naquela altura, os líderes mais jovens da ANM entendiam que era preciso criticar também o campo tradicional – as organizações que iriam beneficiar com a proposta. Já Au Kam San e Ng Kuok Cheong insistiram que se devia criticar apenas o Governo por não estar a fazer uma consulta pública imparcial. Mas nós sabíamos que, nesse aspecto, havia uma cooperação entre o campo tradicional e o Executivo. Era inútil criticar apenas o Governo e não incluir também aqueles que fazem a opinião pública. Foi então que começámos a ficar divididos. O segundo ponto de viragem teve que ver com os direitos LGTB. Ng Kuok Cheong e Au Kam San têm tendência para serem muito conservadores. Mas, para minha surpresa, apesar de Ng Kuok Cheong ser católico, Au Kam San é ainda mais conservador. Não havia forma de contornar esta diferença. A divisão começou a aumentar de tal modo que não havia forma de a resolver. Não foi minha intenção – a minha função era lançar acções externas à ANM, lutar por direitos na sociedade. Criar conflitos internos não é a minha forma de trabalhar, mas aconteceu. Quando há pessoas que nos atacam dentro das estruturas, tem de se dar resposta. No início, não respondi bem mas, quando Sulu Sou foi eleito, tentaram tirar-me dos cargos que ocupava. Os membros mais novos tiveram de dar as mãos para se defenderem dos ataques irrazoáveis. Defendemos não só as nossas posições, mas também as nossas ideias e o modo como fazemos as coisas.

E Ng Kuok Cheong? Não abandonou a Novo Macau, mas já não é tão próximo quanto era.

Sim. É uma pessoa muito interessante. Numa fase inicial, disse-nos que queria manter uma boa relação com Au Kam San, pelo que iria ter o seu gabinete de deputado juntamente com ele, mas continuaria a participar nas reuniões da ANM e responder à direcção da associação. No entanto, na semana passada, mesmo antes de deixar a ANM, recebi uma mensagem oficial da direcção. Ng Kuok Cheong tinha dito aos jornalistas que a sua candidatura este ano estava dependente do seu estado de saúde, disse que ia ver “como Deus decidia”. Duas semanas antes, contou a um dos membros da associação que o médico lhe tinha dito que estava bem, dando a entender que iria recandidatar-se. Os líderes da ANM abordaram-no e perguntaram-lhe se se juntava à Novo Macau. Disse que não, que queria candidatar-se em conjunto com Au Kam San.

Ng Kuok Cheong e Au Kam San são parceiros políticos há muitos anos.

O argumento que usou não tem qualquer lógica. Disse que, de modo a poder usar o mesmo gabinete de Au Kam San, não iria utilizar os recursos da Novo Macau para tentar a reeleição.

Mas não é compreensível, atendendo à relação que ambos mantêm?

Do ponto de vista político, percebemos o que estava a acontecer. Na minha perspectiva, foi um argumento tonto. Será que não poderia ter arranjado uma desculpa melhor?

Para esta falta de entendimento entre os mais velhos e os mais novos, não poderá ter contribuído o facto de haver um choque geracional? Não houve uma geração pelo meio para fazer a ponte.

Concordo plenamente. É interessante a justificação para este fenómeno. Há várias explicações para esta falha de 20 anos. Uma delas é a absorção, pela Função Pública, de intelectuais e das elites na década de 1990. Quando a ANM começou, atraiu intelectuais e profissionais de diferentes áreas para se tornarem membros. Mas, mais cedo ou mais tarde, essas pessoas deixaram de ter uma participação nas actividades da associação. Gradualmente, passaram a fazer parte da Administração. Au Kam San e Ng Kuok Cheong eram as duas pessoas que representavam a ANM nas eleições e no Leal Senado. Compreendo perfeitamente que a sociedade civil seja fraca. Não existem programas de formação política para fazer com que os membros jovens das associações possam suceder aos mais velhos. Numa associação fraca como a ANM, somos nós que levamos o nosso conhecimento e capacidades para contribuirmos para a organização e para a sociedade, em vez de aderirmos e recebermos formação. Depende da nossa motivação para nos envolvermos com assuntos públicos e do quão preparados estamos. Quando lidamos com questões jurídicas, somos nós que vamos ver as leis. Claro que também temos consultores, mas a dependência em relação a estes apoios é reduzida pela nossa preparação. Mas estamos a mudar: antes de sair da ANM, fizemos workshops e seminários para os nossos voluntários.

Onze anos depois, a sociedade de Macau é diferente.

A sociedade de Macau transformou-se, mas se vai ou não na direcção certa já é outra questão. Vemos que as pessoas da nossa idade tiveram esta experiência do boom económico e muitas oportunidades relacionadas com a economia. A maioria dos meus colegas de liceu casou e comprou um apartamento, algo com que não sonham sequer pessoas desta geração que vivem noutras regiões. Os jovens da nossa geração são como os de Hong Kong no início dos anos 1980. Estamos a beneficiar do boom económico e, de forma bastante tradicional, os jovens de Macau têm tendência para prestar mais atenção às obrigações familiares: casarem, criarem os filhos, organizarem uma família. A ideia de que as pessoas de Macau adoram estabilidade está bastante entranhada no ADN dos residentes. A maioria dos pais encoraja os filhos a arranjar um emprego na Administração. Em Hong Kong, o ambiente encoraja a competição, o autodesenvolvimento, negócios que permitam ganhar muito dinheiro. É esta a mentalidade de Hong Kong, que não me parece que se aplique em Macau. Os jovens daqui querem encontrar um emprego que seja suficiente estável e que dure toda a vida.

Os jovens de Macau têm medo da competição?

Não digo apenas medo – não são capazes de competir. Os jovens de Macau são muito mimados! Temos oportunidades em demasia.

É por isso que temos este ambiente de discriminação em relação às pessoas que vêm de fora e que se vê até na AL, com deputadas jovens como Song Pek Kei e Ella Lei?

Diria que é apenas um dos factores. A residência de Macau é um sistema muito fechado. Não é aberto à migração, como em Hong Kong. Os detentores de ‘bluecard’, mesmo que trabalhem aqui durante muitos anos, não são considerados cidadãos de Macau. Além disso, a sociedade de Macau é muito conservadora.

Há imigrantes do Sudeste Asiático que estão cá há mais de 20 anos, sem qualquer apoio social. O acesso à saúde custa o dobro do preço para os residentes, a escola para os filhos também. Isto é uma sociedade justa?

Estamos a tocar no ponto essencial. A justiça e o primado da lei não são os valores principais da sociedade de Macau. São defendidos por uma mão cheia de intelectuais e jornalistas, não é algo que seja uma preocupação da maioria da população de etnia chinesa. É um facto. Publiquei uma análise sobre esta situação e diria que o único valor real das pessoas de Macau é o interesse colectivo. Os políticos têm de trabalhar para esse interesse colectivo para serem reconhecidos.

Que tipo de interesse colectivo?

Dou um exemplo: as oportunidades de emprego ou o proteccionismo na obtenção de trabalho. É um interesse colectivo.

O que espera, em termos gerais, das eleições deste ano?

É difícil dizer. Há um aumento do eleitorado jovem, mas vamos ver se aparecem para votar. Como estou à frente de um sistema de monitorização e como pretendo geri-lo de forma imparcial, não devo pronunciar-me sobre candidatos. Mas o resultado da eleição directa será uma representação da sabedoria colectiva dos residentes de Macau. Se virmos serem eleitas pessoas de quem não gostamos ou que achamos que não merecem estar na AL, não devemos culpar os candidatos, mas sim quem votou neles. Vamos ver o que vai acontecer.

Tem uma equipa?

Vou ser director deste projecto. Vou liderar uma mão cheia de voluntários que vão ajudar-me a recolher informação. Para ser imparcial, tenho de manter distância em relação a outros grupos.

Não é uma tarefa fácil manter essa imparcialidade quando em causa está a ANM.

Sei que há especulações em torno disso, mas vamos ver. É difícil convencer quem quer que seja fazendo apenas promessas, mas o meu trabalho vai demonstrar a minha imparcialidade.

5 Abr 2017

Celina Veiga de Oliveira, historiadora: “Aqui ainda se respira um aroma português”

Viveu quase 20 anos em Macau e, quando regressou a Portugal, Celina Veiga de Oliveira levou o Oriente consigo. A historiadora guiou o HM por três séculos do “ténue equilíbrio” das relações sino-portuguesas, que culminam nos dias de hoje. Traz na bagagem um livro sobre uma figura histórica de Macau, intitulado “Carlos D’Assumpção – Um Homem de Valor”, que apresenta no Albergue SCM no próximo sábado

[dropcap]P[/dropcap]rivou de perto com Carlos D’Assumpção. Descobriu alguma coisa nova sobre o homem durante a pesquisa para o livro?
Esta pesquisa já foi feita há muito tempo. Conheci muito bem o Dr. Assumpção, ele morreu em 1992, eu cheguei cá em 1980 e nesse período de 12 anos ele era, sem dúvida alguma, a figura mais prestigiada de Macau. Era presidente da Assembleia Legislativa. Era um senhor, ao estilo daqueles conservadores britânicos, sempre muito bem vestido. Uma pessoa muito elegante fisicamente e também de cabeça. Era um cavalheiro. Quando cá cheguei, fui professora de liceu e dei aulas ao João, o seu filho, uma pessoa pela qual tenho um afecto especial. A Dr.ª Nini Assumpção, a sua mulher, foi médica das minhas filhas desde pequeninas, isso também nos aproximou um bocado. Conheci o Dr. com alguma proximidade, frequentava a casa dele, fui a muitos jantares. Ele, normalmente, jantava tarde e gostava muito de estar rodeado de amigos. Era um grande conversador, com muito sentido de humor, apesar de ser uma figura muito respeitada. Como todos lhe tinham muito respeito, nem toda a gente pôde aperceber-se dessa faceta bem-humorada que tinha. Era uma característica da sua personalidade e uma prova da sua inteligência.

Como é que Carlos Assumpção, um político conservador, viveu a década de 60 com a revolução cultural em plena ebulição aqui tão perto?
Os anos 60 em Macau foram de grande turbulência. Quando foi o 1,2,3, o Dr. Assumpção ainda era novo e foi um terramoto político muito grande. Os ecos da Revolução Cultural chinesa sentiram-se cá. O Governador Nobre de Carvalho, coitado, tinha acabado de chegar, e quando uma pessoa chega a Macau é muito difícil apreender logo toda esta diversidade de ideias. O Dr. Assumpção participou nas negociações mas teve de as abandonar, porque tinha uma posição de firmeza e, provavelmente, devem ter considerado essa postura perigosa. Era necessário uma pessoa mais consensual. No entanto, o consenso, que é uma característica da personalidade do Dr. Assumpção, depois veio a manifestar-se toda a vida, até ao fim. Ele foi uma pessoa que serviu sempre de mediador entre as duas comunidades.

Como explica não ter havido nessa altura, e noutras, derrame de sangue?
Isto nunca foi uma colónia, a situação de Macau e Hong Kong têm um processo histórico diferente. Há uma frase, que talvez não consiga citar bem, de Franco Nogueira que diz que isto é uma espécie de condomínio. Macau sempre foi uma coisa especial, desde a altura em que cá chegámos, no século XVI. Nunca tivemos plena soberania, era sempre partilhada, houve sempre um equilíbrio ténue com alguma capacidade diplomática. O século XVIII talvez tivesse sido o período mais frágil do poder político português. Isto porque a China atravessou um período forte, com os três grandes imperadores chineses do século XVIII. Aqui havia dois pontos de poder. O poder dos mandarins de Cantão e o poder imperial, e muitas vezes esses poderes não eram, propriamente, coincidentes.

Mas houve forma de ir equilibrando os pratos da balança.
Tivemos sempre uns diplomatas fantásticos, os jesuítas. Muitas vezes quando Macau tinha proximidade mais directa com Pequim, isso não era muito bem visto pelos mandarins. Esta proximidade de Pequim em relação a Macau, por vezes, entrava em conflito com os interesses de Cantão. Ao contrário, se tínhamos ligações mais estreitas com Cantão, esvaziava-se um bocadinho a nossa proximidade ao Império. O século XVIII foi difícil porque sentiu-se muito o poder mandarínico, através de legislação e restrição do comércio. O porto de Macau só podia ter um contingente de 25 barcos, se algum de estragasse e fosse necessário um novo, tinha de ficar com o registo do antigo. Era tudo muito controlado.

Entretanto, o cenário muda de figura.
O século XIX foi diferente. Por razões conjunturais, que não têm propriamente que ver com Macau, os portugueses puderam assumir um certo controlo. Houve a Guerra do Ópio, que acabou com a derrota humilhante da China e que culminou com a cessão de Hong Kong aos britânicos. Certo é que os portugueses aqui de Macau, por estarem perto de uma ilha ocupada por europeus, sentiram algum conforto. Em caso de necessidade podiam pedir protecção. Nessa conjuntura, era preciso que Macau ficasse munido de certas condições que Hong Kong tinha, para não desaparecer completamente. Então, D. Maria II implantou o porto franco de Macau, à semelhança do porto franco de Hong Kong, e as mercadorias podiam circular. Hong Kong sugou muita da energia económica de Macau, tivemos de mudar alguma coisa. Depois veio para cá o Governador Ferreira do Amaral que resolveu aplicar o domínio, a soberania portuguesa aqui em Macau, e pagou caro por isso, tendo sido assassinado. Isso fez, outra vez, tremer a posição de Macau. Mas continuámos cá, a presença portuguesa nunca teve interrupções. Este ano é o aniversário do primeiro Tratado entre Portugal e a China sobre a situação de Macau, que legitimava uma soberania limitada. O Tratado de 1887 trouxe uma alteração do estatuto político, que nos deu um bocadinho de alívio, apesar de continuarem os problemas quanto delimitações de Macau.

Entretanto, chega o século XX, a turbulência política e as guerras.
O século XX foi a afirmação do Partido Comunista Chinês, mas houve sempre aqui na parte sul, sobretudo em Cantão, uma afirmação nacionalista. Os próprios jornais de Cantão falavam sempre que os estrangeiros de Macau deviam sair, que isto era território chinês. Apesar do Tratado, Macau ficou sempre a ser um foco de conflito e reivindicação.

Como é possível, em plena Revolução Cultural, a China permitir um território ocupado por um país com um regime fascista?
Para já porque não lhes interessava, na altura, criar outro foco de conflito. Eles são muito pragmáticos. Mas havia algo sempre latente, subliminar. Mas o pragmatismo chinês também vem de uma noção de tempo diferente. Nós, ocidentais, temos a noção de tempo diferente de um chinês, somos muito impacientes. A questão de Macau teria de ser resolvida de acordo com o tempo e o modo que eles definissem. A Revolução Cultural, claro, tinha de ter ondas de choque aqui. Nessa altura, isto tremeu de facto. Mas depois, com alguma cedência da parte do poder português, a coisa, de certa forma, apaziguou-se. Mas as pessoas lúcidas daquela altura tinham a certeza de que a isto teria de ter um estatuto diferente num futuro próximo. Era inevitável e seria irreversível.

Em 1999 regressa a Portugal. Presumo que se lembre bem do momento da partida?
Lembro-me perfeitamente. Trabalhei tanto naqueles últimos tempos que tinha alguma vontade de regressar a Portugal, estava um bocadinho cansada de tanto trabalho. Mas em termos emocionais foi terrível. Tive de pensar: “Tens de pôr em prática alguma lucidez oriental, vive o dia de hoje, não penses muito no que vai ser amanhã, não penses muito que tens de te ir embora e procura esconder a emoção, procura amuralhar a emoção”. Preparei-me durante meses para que nos últimos momentos a minha emoção, o meu coração, estivesse preservado de emoções, porque tinha receio da minha reacção. Preparei-me psicologicamente para esse momento. Procurei vivê-lo, sempre muito desperta, mas sem interferência emocional, que depois veio em Portugal. Lembro-me de dizer, há muitos anos, que nunca mais poderia ser só de um sítio. O nosso coração fica dividido e tem de dar afecto a Macau, mesmo depois de regressar a Portugal.

Por que regressou a Portugal?
Tinha lá as minhas filhas e alguns problemas familiares para resolver. Não sei se foi boa opção. Estou em Portugal mas, sem querer exagerar ou ser piegas, não há um dia que não pense em Macau. Sou membro da Sociedade de Geografia de Macau, que está dividida em comissões, e eu sou vice-presidente da comissão asiática. Estou sempre com o pezinho no Oriente, sempre. Durante 13 anos, tive uma editora, a Tágide, e os temas fulcrais, a linha editorial que prevaleceu, era sempre o Oriente.

No sentido inverso, como é regressar a Macau?
Regressar é sempre uma emoção. Chego e aqui e fico espantada com as coisas novas que apareceram. Havia ali na Doca dos Pescadores uma espécie de um vulcão, até achava aquilo um bocado feio. Já lá não está. Noto que aquela parte junto ao mar está em completa e em contínua actividade, com mais terrenos conquistados ao mar. A primeira vez que regressei a Macau foi em 2000, poucos meses depois ter partido. Nessa altura, senti um ambiente um bocadinho estranho, embora os meus amigos chineses me tivessem acolhido muito bem. Mas, por exemplo, ao ver a fachada do Leal Senado fiquei triste por não ver o escudo português, mas temos de compreender. O que é que podemos fazer? Não podemos estar a chorar sobre as pedras da calçada, porque isto era natural.

Sente que a mudança foi assim tão grande?
Houve muita coisa que a RAEM preservou. Apesar de ter mudado a ordem da toponímia mantiveram os mesmos nomes, assim como a calçada portuguesa. Aqui ainda se respira um certo aroma português. No entanto, estamos a aproximar-nos de 2049. De acordo com a Lei Básica, a língua portuguesa é uma das línguas oficiais. Neste capítulo, a realidade não é assim tão forte como aquilo que está no papel. Esperemos que o bom senso prevaleça. O povo chinês e o poder político que vem de Pequim têm mostrado bom senso e respeito. É complicado o português sobreviver, mas vamos ver, enquanto estiverem cá portugueses, jovens que queiram cá ficar, isso é muito bom. É uma maneira de se continuar a falar a língua de Camões em Macau. Isso é que é bom, gente nova!

Aproveitou para matar saudades de Macau?
Tive oportunidade de ir passear com amigos, alguns que nunca tinham cá estado, pela Macau que eu gosto. Sem nostalgia, também gosto de movimento. Mas aquela Macau romântica, em que ainda há partes da velha muralha que dividia a cidade cristã. Fartei-me de andar e foi uma tarde muito boa. Andámos pelos becos e ruínas dessa Macau, que ainda é a do nosso tempo. Está cá e tem um lugar muito privilegiado no coração dos portugueses.

3 Abr 2017

Carlos Martins, secretário de Estado do Ambiente: “O empenho da China é a melhor memória que levo”

O secretário de Estado do Ambiente, Carlos Martins, marcou ontem presença no Fórum e Exposição Internacional de Cooperação Ambiental de Macau. A visita incluiu uma reunião com Raimundo do Rosário e ficou a possibilidade de colaboração futura. Ao HM, Carlos Martins falou das necessidades locais, do ambiente em Portugal e do empenho chinês na matéria

 

Do que constou a reunião que teve com o secretário para os Transportes e Obras Públicas, Raimundo do Rosário? Vai existir colaboração na área do ambiente entre Macau e Portugal?

Ficou no ar a possibilidade de virmos a estudar um protocolo que permita, naquilo que são as autoridades do ambiente nacionais, cooperar na área da educação ambiental, na capacitação de recursos humanos e na cooperação com empresas portuguesas. Foram identificados ainda os pontos fortes da região e as áreas em que pode necessitar, a curto prazo, de mais colaboração. Estiveram também presentes representantes das empresas que trabalham no sector e que, com certeza, tomaram boa nota do que pode vir a constituir uma oportunidade para o futuro. De relevante, ficou uma vontade recíproca de podermos vir a fazer um memorando que leve a um reforço da colaboração.

Que áreas foram identificadas como estando a precisar de uma intervenção mais rápida?

As questões relacionadas com transportes, a área dos resíduos e a qualidade do ar.

O que é que se pode fazer, em colaboração, na melhoria da qualidade do ar?

As fontes que influenciam a poluição do ar podem estar no próprio território e, como tal, a solução vem de dentro. Mas, como sabemos, a qualidade do ar está associada a um meio que recebe inputs que, muitas vezes, estão além das fronteiras físicas e territoriais e, desse ponto de vista, o controlo da qualidade torna-se mais difícil. Uma das questões que me pareceram mais problemáticas e consensuais está relacionada com a situação crítica associada ao excesso de veículos. É necessário um melhor controlo das emissões produzidas. Em Portugal também estamos nesse processo, sobretudo nos veículos de duas rodas, e já temos um histórico alargado. Do ponto de vista da indústria, não estamos num território que a tenha e, se esse risco acontecer, vem de fora. Temos experiência na monitorização da qualidade do ar, pelo que poderíamos vir a cooperar e a acompanhar a situação, bem como dar algumas competências na matéria. 

Esteve sempre associado à área da água. Como é que vê a situação de tratamento de águas em Macau?

Temos duas dimensões na água do território. Uma pareceu-me estar relativamente bem resolvida e está relacionada com os serviços públicos de abastecimento de água. Entra na esfera de manutenção e gestão de uma rede que já existe, e que agora terá mais procura do que teve no passado, fruto da maior densidade populacional que se tem vindo a registar, mas que parece ter uma tendência para a estabilidade. Neste domínio, em que Portugal também tem competências, não antecipo uma grande oportunidade porque estará a funcionar num quadro normal de estabilidade. No que respeita às águas residuais, temos experiência e know-how. Em Macau, a população tem aumentado, mas as estações de tratamento de águas residuais já têm alguns anos de operação, o que pode vir a determinar a sua modernização a médio ou curto prazo. É um território que, dado o desenvolvimento urbano que tem registado, deve ter maiores exigências com instalações deste tipo e ter uma especial atenção a questões de cheiros, à eficiência do tratamento da parte líquida e das próprias lamas que decorrem no processo. Temos muitas bandeiras azuis que resultam do mérito de gerirmos bem estas infra-estruturas. Há também casos em Portugal em que tivemos de modernizar estações importantes de tratamento de água com elas em funcionamento. São obras de uma grande complexidade no planeamento, às vezes mais do que fazer uma obra de raiz. Também neste sentido podemos dar o nosso contributo. Há uma outra dimensão da água que diz respeito aos recursos hídricos. Temos algumas situações que são referências internacionais, como o programa de despoluição do estuário do Tejo e a despoluição do rio Trancão, que era considerado o mais sujo da Europa. Em Macau, não haverá situações tão dramáticas quanto aquelas que tivemos de enfrentar com a limpeza do rio Trancão. De qualquer maneira, podemos partilhar as nossas metodologias. Neste momento, temos monitorização quer das massas de água, quer dos fundos do estuário, que fazemos em colaboração com as universidades e podemos pôr ao serviço da região, se for entendido que pode ser útil.

Há abertura por parte do território?

Fiquei com a ideia de que há uma grande abertura e interesse em podermos vir a concretizar o memorando e, à medida que as questões apareçam e sejam interessantes para as partes, podermos avançar.

Portugal está no sétimo lugar do ranking dos países no bom caminho na implementação de medidas coniventes com o Acordo de Paris. É uma boa posição?

Mais do que bom, é muito bom. Em termos internacionais, Portugal representa uma percentagem muito reduzida, mas é bom saber que estamos a fazer bem aquilo que são as nossas responsabilidades no âmbito do Acordo de Paris. O facto de termos feito uma grande aposta dentro do uso das energias renováveis também nos coloca no patamar da excelência. Em 2016, tivemos quatro dias e meio em que Portugal foi auto-suficiente à custa de energias renováveis. A aposta para os próximos anos está muito focada no melhor aproveitamento de um bem que temos: o sol. Temos muito sol, muitos dias por ano. Estamos a apostar na energia solar combinada com a renovação urbana. O Governo determinou que, para reanimar alguns sectores de actividade económica e melhorar a eficiência energética nos edifícios, é necessário um investimento muito grande em termos de reabilitação urbana recuperando o centro das grandes cidades, que tem estado muito abandonado. Na emissão de gases, estamos a investir nos transportes públicos através da renovação da frota, aumentando a oferta e, ao mesmo tempo, a dar valor ao uso individual de transportes com a criação de condições para que possam existir mais veículos eléctricos. Tudo isso combinado acaba por resultar naquilo que hoje é a nossa maior aposta: renovar o paradigma de consumo energético em Portugal. A ideia é ter a energia solar nos edifícios para produzir electricidade para as águas quentes e o calor. O projecto “casa eficiente” tem como objectivo tornar os edifícios mais ecoeficientes, sendo que temos uma má tradição: as construções não foram pensadas com qualquer preocupação energética. Tudo isto associado aos transportes, que ainda é a área que reúne as medidas com menos sucesso, Portugal pode ficar muito acima do sétimo lugar.

O que é que tem sido feito, concretamente, nos transportes eléctricos?

Estamos a testar autocarros eléctricos completamente produzidos em Portugal. Há dois autocarros na frota da Carris que integram estes testes.

O Governo não deveria dar o exemplo através da utilização deste tipo de veículos?

Lançámos recentemente um grande desafio nesse sentido aos municípios e tivemos 119 que se candidataram, e vão ter as frotas dos serviços ambientais todas elas eléctricas. Aproveitámos essa circunstância para colocar postos de carregamento e, assim, aumentar a rede de abastecimento que tem sido sempre uma limitação, dado o problema de autonomia dos veículos. Entre o Porto e o Algarve criámos uma rede de postos de carregamento rápido em que as pessoas, em dez minutos, podem carregar 80 por cento da bateria. As candidaturas também estão abertas às autoridades e o Ministério do Ambiente já tem por tradição o uso de veículos eléctricos. Estamos também a lançar o desafio a algumas empresas públicas, como as Águas de Portugal, para que possam vir a ter frotas eléctricas em grade parte dos seus serviços.

Já foram cancelados dois contratos relativos à prospecção e exploração de petróleo na costa portuguesa, e estão ainda dois em andamento. Porquê o cancelamento e que consequências têm estas iniciativas?

Os processos que foram cancelados tinham lugar na plataforma continental. Para já estão interrompidos e não irão prosseguir. Entravam em rota de colisão com aquilo que são os interesses e estratégias regionais que apostam no turismo. A associação dos municípios e os agentes económicos tinham muito receio que uma intervenção nesse sector pudesse fazer perigar aquilo que têm sido as estratégias de sucesso. Os processos ainda em curso não têm ilegalidades na concessão e ocorrem a muitos quilómetros de distância da costa. Estão ligados a procedimentos de outra natureza e que são, sobretudo, prospectivos. Servem essencialmente para fazer uma avaliação, mais do que para exploração, e devem continuar a seguir os procedimentos de licenciamento normais.

Como vê esta edição do Fórum e Exposição Internacional de Cooperação Ambiental de Macau?

Pareceu-me importante a área expositiva que temos presente e o nível das empresas que cá estão. A nossa presença está na linha do que podemos considerar uma oportunidade, tendo em conta uma cultura e uma história que nos ligou a este território e, espero, continue a ligar. É do interesse da China esta colaboração, dado o nosso papel enquanto ponte com as economias dos países de expressão portuguesa. Fiquei surpreendido com o grande número de presenças que já será pouco frequente na Europa, mas que demonstra um outro potencial. A minha maior satisfação é ver que um país que tem um importante papel para o Acordo de Paris, como a China, tem um discurso assertivo e orientado para as questões do ambiente. O empenho da China é a melhor memória que levo. Já tinha observado, em Paris, que as autoridades chinesas estavam muito focadas nas questões ecológicas e agrada-me saber que esta é uma linha estratégica do país. Tendo em conta a sua quota de emissões no contexto mundial, é uma boa notícia. Com a participação da China na protecção ambiental podemos ter um contributo, à escala planetária, contra o aquecimento global. 

A posição de Donald Trump, pelo contrário, parece não ter em consideração a questão do aquecimento global. Representa, de algum modo, algum impasse?

Julgo que políticas como as do ambiente acabam por estar acima dos actores políticos momentâneos. São iniciativas feitas para durar gerações, pelo que as acções e posições das pessoas acabam por ser mais relevantes. Creio que as grandes empresas americanas, independentemente de um abrandamento da pressão de natureza governativa, não vão querer ser tidas como entidades menos empenhadas na matéria ambiental quando todos somos mais exigentes enquanto consumidores à escala global. Independentemente da flexibilidade que venha a ser dada pelas autoridades, estou convicto de que se imporá, ao tecido empresarial americano, um papel de responsabilidade e terão de ser agentes comprometidos com o ambiente.

31 Mar 2017

Melinda Chan, deputada: “Nós, as mulheres, temos as mesmas capacidades”

A deputada Melinda Chan ainda não dá certezas quanto à sua candidatura nas próximas eleições para a Assembleia Legislativa. Ao HM, falou do caminho que percorreu e das suas prioridades. E apontou ideias pelas quais quer continuar a lutar

 

É candidata às próximas eleições legislativas?

Ainda estou a pensar. Tenho de reunir uma equipa e depois tenho de verificar o mais importante: saber se as pessoas também querem que eu continue. Não sou só eu que tenho de querer, o mais importante é sentir que sou apoiada.

Passou a ser deputada quando o seu marido, David Chow, deixou a Assembleia Legislativa (AL). Sente que foi um legado que herdou?

Candidatei-me pela primeira vez em 2009. O meu marido tinha sido deputado desde 1996, ainda antes da transferência de Administração. Eu já estava, desde 2002, à frente da associação de beneficência Sin Meng. Em 2009, existiram duas razões para que me sentisse motivada a candidatar-me à AL. Por um lado, David Chow reformou-se da função de deputado. Com a sua saída, as pessoas que ele representava ficariam sem um porta-voz que protegesse as suas opiniões. Era minha responsabilidade continuar o trabalho, até porque muitos dos problemas da altura ainda estavam sem solução. Por outro, ao lidar com os membros da associação que representam diferentes classes da população com necessidades também diferentes, senti que tinha a responsabilidade de trabalhar com eles.

Na altura, que necessidades exigiam uma intervenção mais urgente?

A segurança social, especialmente no que dizia respeito às pensões dos idosos. O montante era então de 1700 patacas e, na minha opinião, tinham de ser aumentadas para, pelo menos, três mil patacas. Ouvi dizer que seria uma missão impossível por ser um aumento muito grande. Mas certo é que consegui. Os cuidados hospitalares também eram urgentes. A população idosa tinha de esperar muito tempo para ser atendida. A lei do erro médico, recentemente aprovada, também foi uma luta. Outra causa que sempre tive foi a legislação contra a violência doméstica. O início da discussão na AL foi muito difícil e o mais importante era fazer entender aos deputados o que estava em causa.

Tem lidado com portadores de deficiência na sua associação.

As necessidades com os deficientes também são muitas. A ideia de aumentar os seus rendimentos ou os apoios financeiros do Governo não é suficiente. O cuidado para com esta população deve ser tido desde que nascem e começa no rastreio. É necessário formar equipas médicas capazes de os acompanhar e ajudar a obter ferramentas para que um dia possam ser o mais autónomos possível. O sistema educativo deve acompanhar estes cuidados e fornecer meios para acolher portadores de deficiência. Deve existir um ensino especial munido de profissionais e especialistas. Também acho que temos feito muitos progressos, mas o Governo deveria investir mais recursos financeiros na criação de toda uma estrutura capaz de ajudar esta população. Deveria ser dada em dois sentidos: cuidados médicos e educação especial. A percentagem de fundos dirigida a esta população em Macau ainda é muito reduzida.

Em 2013, dizia que uma das suas prioridades era a reforma de Administração Pública. Como correu este trabalho?

O problema da Administração Pública de Macau é, acima de tudo, a lentidão. Tudo o que se pretenda fazer implica demasiada burocracia. Precisamos de mudanças no sentido de diminuir o número de procedimentos. As decisões têm de ser mais rápidas na base. Por exemplo, a ponte Hong Kong-Macau- Zhuhai, irá abrir, em princípio, no final deste ano, mas, dadas as complexidades burocráticas, temo que o troço de Macau não possa estar aberto ao mesmo tempo que os outros. Macau vai ficar mais tempo isolado e gostava que isto não acontecesse. Já vivo aqui há cerca de 50 anos, já é a minha terra e gostava de ver o seu desenvolvimento mais fluido porque Macau é um bom sítio. Outra questão que não me agradava, por exemplo, há 30 anos, era a comparação de Macau a Hong Kong como se o território vizinho fosse a cidade grande e Macau um pequeno lugar. Mas penso que isso está a mudar. No entanto, tem de ser uma mudança apoiada e com consciência por parte de todo um Governo e de políticas que o permitam.

Como é que vê Macau enquanto “plataforma”?

Macau é muito especial porque temos vários contrastes que dificilmente se encontram noutros lugares. Temos a cultura chinesa e a ocidental dentro de uma cidade pequena. Temos património mundial a conviver com os casinos e hotéis de cinco estrelas. As pessoas podem ter contacto com coisas muito diferentes num pequeno espaço. Faz parte da identidade de Macau e até o Governo Central dá ao território uma denominação especial enquanto plataforma. Não nos podemos também esquecer que, aqui, convivemos com a língua portuguesa, pelo que temos uma situação privilegiada e que devemos usá-la da melhor maneira.

Como?

Podemos pensar em formas de melhorar o conceito de plataforma, tendo em mente a utilização da língua portuguesa. Na China Continental, mesmo em Cantão, há muitas fábricas que exportam os seus produtos. Macau podia ser o local de excelência a considerar na exportação dos produtos entre o Continente e os países de língua portuguesa enquanto plataforma logística. Hong Kong, por exemplo, tem um porto marítimo conhecido historicamente pelas trocas comerciais. Macau tem uma grande vantagem linguística e como tal podia investir no desenvolvimento de estruturas logísticas. Isto é só um exemplo de como podemos tirar o maior partido da “plataforma”. O território pode ter o mesmo papel que Hong Kong, mas enquanto o território vizinho leva muita coisa para o Continente, nós podíamos fazer o inverso: levar para os países de língua portuguesa. Posteriormente, poderíamos aproveitar os mercados em desenvolvimento e que estão muito perto de nós, como o Camboja e o Laos. Além de um porto para o efeito, podemos ainda usar a ponte que está a ser construída, desde que salvaguardemos a liderança nos processos logísticos. Também existe o problema do aeroporto. É muito pequeno e já não se adequa nem às necessidades turísticas enquanto centro de turismo mundial, nem às necessidades para transporte de cargas. Macau deveria ser uma plataforma comercial e logística.

A lei sindical não tem chegado a consensos. A sua opinião também não tem sido clara. Como é que vê uma futura implementação do diploma no território?

Sou a favor da criação da lei sindical, mas temos de resolver outro tipo de problemas antes para que seja viável. Macau é diferentes de outras regiões porque tem muitas associações de trabalhadores. No mesmo tipo de emprego, há várias associações. Este é um dos problemas. Há cerca de 700 associações neste momento, não seria fácil ter uma entidade de defesa, como um sindicato que agradasse a todas elas porque têm ideias e interesses diferentes. Por exemplo, só para os enfermeiros há várias e a questão é: quem é que os passaria a representar? Outra questão tem que ver com os financiamentos. Noutras regiões, os sindicatos não são subsidiados pelo Governo e têm de ir buscar os fundos aos associados. O que é que se pode fazer em Macau neste sentido, sendo que as associações são financiadas pelo Executivo? Em terceiro lugar, também gostaria de ver claro um outro assunto: se existirem associações sindicais e estas terminem a actividade, para onde vai o dinheiro que lhes pertence? Vai ser dividido pelos seus membros? Seria justo dividir o património pelos seus membros. Isto tem de estar definido por lei. Quando estas questões estiverem devidamente clarificadas, votarei a favor do diploma. Não sou em nada contra os princípios sindicais, mas tem de existir um limite nas associações sindicais e não sei como isso iria acontecer em Macau. Se vamos ter uma nova lei, deve ser justa para ambas as partes.

Se se candidatar nas próximas eleições, quais serão as suas prioridades?

Em primeiro lugar, estarei sempre junto daqueles que têm mais dificuldades em expressar-se. Por isso, estarei, mais uma vez, a lutar pela inserção da população portadora de deficiência. Esta população não tem capacidades para lutar pelos seus direitos. Penso também que Macau precisa de algumas mudanças e continuarei a reivindicar mais rapidez na administração pública. Quero, se possível, trabalhar na área dos negócios, essencialmente na variedade de emprego. Este objectivo está associado a um bom funcionamento da segurança social. Para termos um bom sistema, temos de garantir uma economia viva e diversificada. O Governo já disse que não podemos estar apenas dependentes dos casinos e que temos de ser diversificados. Eu quero pegar nesta ideia e promovê-la. Lido com muitos jovens que, depois de irem para a faculdade, regressam a Macau e não têm trabalho nas suas áreas porque não existem. Acho que é muito importante alargar os sectores de empregabilidade além do jogo e do turismo. É preciso promover mais escolhas e mais tipos de negócios.

Considera que a imigração rouba empregos aos locais numa sociedade em que o desemprego é residual?

A mão-de-obra estrangeira é importante para o desenvolvimento de Macau No que respeita a quadros especializados, o território precisa de chamar peritos de fora para trabalhar e, ao mesmo tempo, formar os nossos residentes. Precisamos de tempo para desenvolver as nossas capacidades. As pessoas saem da universidade sem experiência, é necessário que a adquiram com pessoas que a tenham, e ter peritos de fora a dar formação ajuda muito. Por outro lado, no que respeita a trabalho ligado ao serviço na hotelaria e construção, Macau precisa de importar mão-de-obra porque não temos pessoas para esse tipo de serviço.

No domingo passado, Carrie Lam venceu as eleições em Hong Kong. Que comentário faz?

Fiquei muito contente. Penso que é uma mulher muito trabalhadora e boa para as pessoas. Tendo em conta o seu trabalho nos últimos anos, tem mostrado que é responsável. Muitos países começam a ter mulheres como líderes. Penso que é muito positivo que a tendência esteja a acontecer em Hong Kong. Nós, mulheres, temos a mesma educação e as mesmas capacidades, pelo que espero que esta igualdade se comece a sentir na política. Também penso que as mulheres têm sensibilidade para coisas que os homens não têm.

O que acha da possibilidade de existir em Macau a eleição do Chefe do Executivo através de sufrágio universal?

Macau irá ter o sistema de voto universal, só não sabemos quando.

30 Mar 2017

José Basto da Silva, presidente da AAAEC: “Somos nós, macaenses, que fazemos a diferença”

Deixou a direcção da Associação dos Macaenses para se dedicar de corpo e alma à Associação dos Antigos Alunos da Escola Comercial Pedro Nolasco. A crescer aos poucos, a entidade quer promover cursos de patuá e de gastronomia. José Basto da Silva defende o voto para os residentes que vivem na diáspora e alerta para a falta de interesse na política local

[dropcap]F[/dropcap]Foi noticiado que a Associação dos Antigos Alunos da Escola Comercial Pedro Nolasco (AAAEC) poderá fazer parte do Conselho das Comunidades Macaenses (CCM). Até que ponto este passo é importante?
É uma ideia ainda muito verde e ainda vamos discutir no seio da direcção da associação se faz ou não sentido. À partida, a proposta é interessante. Este ano, no Encontro das Comunidades Macaenses, fizemos uma exposição de fotografia. O convite até partiu do próprio CCM, porque muitos dos macaenses que vieram a Macau foram alunos da escola e fazia sentido fazer a exposição nessa altura. Ainda propusemos organizar um encontro maior, mas acabámos por ficar um pouco à parte dos principais eventos, o que foi uma pena. Podíamos ter feito contactos com muitos dos antigos alunos da Escola Comercial e isso não aconteceu. Mas compreendemos, porque ainda não somos parte do CCM, e não tínhamos esse papel mais interventivo. Achamos que, se calhar, podemos ponderar se faz sentido entrar ou não. Esperamos vir a ter mais sócios em Macau, em Hong Kong e até fora deste círculo, e por que não a associação constituir mais um canal para alcançar um maior número de macaenses que estejam a viver na diáspora?

Essa candidatura traria uma maior credibilização à própria associação?
Também.

A associação quer constituir-se como mais um elo de ligação à diáspora, no sentido de ajudar a resolver alguns problemas sentidos?
Sim. Não conheço muito bem os problemas sentidos pela comunidade macaense na diáspora, mas sem dúvida que seria uma forma de dar visibilidade e fazer crescer a nossa associação. Queremos ser uma associação mais interventiva e ter uma maior acção nas áreas culturais. Não queremos ter só festas e jantares, que são importantes também. Sobretudo a nossa comunidade macaense, e portuguesa também, tem de ter alguns eventos culturais, para enriquecer a sociedade. Não temos tido financiamento e grande visibilidade, e é difícil obter apoios sendo uma associação pequena e com pessoas jovens. Voltei em 2012 para Macau, depois de estar cerca de 20 anos fora, e percebi que já existem muitas associações que são muito conhecidas, e tudo o que seja novo tem dificuldade em obter visibilidade.

As coisas novas não são aceites?
Não é que sejam recusadas. São sempre as mesmas pessoas a fazer as mesmas coisas. Mas depois ouvem-se críticas de que os mais novos não trabalham, não se envolvem. Quando os mais novos se envolvem, querem mostrar trabalho e querem financiamento, são um bocado esquecidos. A minha intenção é fazer crescer a associação, ganhar sócios e representatividade, e mostrar trabalho, com cursos de culinária e patuá. Temos os Serões com História, feitos com o apoio da Fundação Rui Cunha. Depois então poderemos pedir financiamento e fazer ainda mais.

Falta contar a verdadeira história dos macaenses?
Penso que já foi pior. Há que reconhecer o trabalho da Associação dos Macaenses e de outras associações, bem como do grupo de teatro em patuá. É complicado, porque somos poucos. Pese embora o facto de o discurso dizer sempre que é importante, na prática existem alguns bloqueios.

Refere-se a bloqueios institucionais ou vindos do próprio Executivo, que não dá a devida atenção a essas questões?
O Executivo podia fazer mais. O discurso é sempre muito interessante, mas as acções ficam aquém do que é dito. É pena, porque somos nós que fazemos a diferença em Macau. Se não fossem os macaenses, Macau era desinteressante. Macau, Zhuhai ou outra cidade chinesa seriam exactamente iguais. Acho que o Governo Central percebe isso. O que questiono é se o Governo da RAEM está interessado em fortalecer isso e em dar maior importância. Começam a ver-se alguns passos, mas ainda está muito aquém do que pode e deve ser feito.

Quais as áreas ou os aspectos mais concretos onde gostaria de ver um maior apoio ou investimento?
A língua, o respeito pelo português. Essa é uma das coisas que me choca. Ao nível dos serviços públicos não se percebem algumas coisas. Se um amigo meu, e isso já aconteceu, tem um acidente e vem um polícia falar com ele que não fala uma palavra de português, não se compreende. O que a Lei Básica diz é que o português é língua oficial, e entendo que tudo depende da vontade política. O português é muito maltratado.

Voltando à diáspora macaense. Quais os problemas de quem vive lá fora de que tem conhecimento?
Sei que quem está lá fora olha muito para Macau. Tenho visto que a comunidade macaense que está fora aponta imensos problemas em Macau. Problemas ao nível da língua, esse é o caso mais evidente. Fala-se também no excesso de turismo, que está a destruir a qualidade de vida das pessoas. Houve um boom económico, mas houve uma grande perda de qualidade de vida. Ganha-se mais, mas paga-se mais.

Os residentes de Macau que vivem na diáspora não podem votar à distância para as eleições legislativas. Considera que é uma grande falha do sistema político local?
Se são residentes deviam ter esse poder. Não ter um mecanismo de voto à distância é uma falha grave, porque, pelo menos, poderiam ter o poder de votar por carta. Está-se a eliminar um direito.

A participação desses residentes poderia trazer mais dinâmica ao sistema político local?
Não me parece que fizesse grande diferença. As pessoas não têm a consciência política de Hong Kong. As pessoas em Hong Kong têm maior consciência cívica; aqui há um certo laxismo, que vem de algumas gerações. Nota-se algum desinteresse e até alguma desinformação. Os deputados eleitos, salvo raras excepções, acabam por ser sempre os mesmos, e não é com base nos programas políticos que são eleitos. Vão buscar votos porque são dos Kaifong [União Geral das Associações de Moradores] ou de Fujian. Quem se lembra dos últimos debates também vê que aquilo é pobrezinho. Não há ideias novas, não há um debate profundo sobre as coisas. Depois há aquelas histórias que são conhecidas, e sobre as quais as pessoas não gostam de falar muito, que são os almoços e os jantares. Por outro lado, vê-se o que se passa na Assembleia, com reuniões à porta fechada. Depois passam a vida a discutir coisas sem grande importância, e o que discutem pouco ou nada vai influenciar as decisões do Governo. Às vezes questiono-me: o que é que estão lá a fazer os deputados? Gostava que eles legislassem. Pelo menos é esse o nome. Quem olha para isto chega à conclusão que não vale a pena interferir muito no sistema, é deixar andar e fazer as coisas conforme o nosso alcance. Por exemplo: ninguém me pediu para pegar na associação, ela estava morta e enterrada. Mas juntei um grupo de amigos e decidi pegar nisto.

Que projectos é que a associação pretende desenvolver este ano?
Fizemos há tempos uma visita à Associação Fuhong no sentido de fazer uns materiais com o nome da associação para vender aos sócios. Em Maio, no dia 27, estamos a planear organizar um chá dançante, com músicas antigas. Queremos organizar um curso de culinária, pois muitos falam sobre isso, e, mais difícil, mas não desistimos, um curso de patuá. Queríamos ir à Escola Portuguesa de Macau e arranjar um professor macaense, das famílias antigas, que conheça mesmo o patuá com a pronúncia original. Já não deverá ser este ano, mas vamos ver se organizamos um encontro intermédio, um jantar, fora de Macau, com outros sócios. Mas este foi o primeiro ano em que tivemos o financiamento da Fundação Macau. Foi baixo, pedimos muito pouco e não tivemos sequer metade do que pedimos. Não vamos desistir de fazer as coisas só porque não nos dão dinheiro. A associação está a crescer e penso que os financiamentos e o reconhecimento virão naturalmente.

29 Mar 2017

Nuno Rogeiro, analista de política internacional: “Macau tem evoluído num caminho delicado”

Com um novo livro nas bancas, “O Pacto Donald”, sobre a ascensão do fenómeno Trump, Nuno Rogeiro regressa às publicações. Uma presença assídua na emissão da SIC há anos, assim como em colunas de muitos jornais, tem sido uma voz incontornável em matérias de política internacional. Deu uma volta ao mundo com o HM, sobre algumas das crises que têm marcado a actualidade

[dropcap]C[/dropcap]om a confusão permanente em Washington, acha que o “impeachment” de Donald Trump é uma realidade incontornável?
A impugnação do Presidente só se pode fazer por vontade do Congresso e com base em delitos praticados no exercício das funções presidenciais. Ainda não vimos a conjunção desses factores, mas é verdade que havia boatos de “impeachment” ainda antes de Trump tomar posse e, portanto, ainda antes de ser “impugnável”.

Escreveu um livro, “O Pacto Donald”, sobre a ascensão do fenómeno Trump. O que nos pode dizer sobre esta obra?
O livro foi um pesado fardo, mas tinha de ser feito. Trata-se de averiguar se o famoso “Novo Contrato com a América”, um programa de dezenas de pontos, anunciado por Donald Trump enquanto candidato, em Gettysburg, é mesmo um pacto de mudança, ou uma simples fraude. O livro começou a ser pensado em Janeiro de 2016, quando se desenhou a importância política de Trump no sistema americano, ganhasse ou perdesse as primárias e as nacionais. Foi, portanto, um trabalho intenso que se tornou ainda maior a partir de Setembro-Outubro de 2016 e, sobretudo, durante os meses de Dezembro e Janeiro. Em quase 500 páginas, o livro trata de muitos temas: o processo eleitoral de 2016, seus incidentes e consequências, o papel das sondagens, dos media e das minorias (com uma história pouco conhecida sobre a escravatura nos EUA, que surpreenderá muitos). Explica o federalismo eleitoral e as razões da sua não substituição por um sistema de sufrágio unitário nacional, a história do populismo, da demagogia e dos insultos nas campanhas, desde o século XVIII, a possibilidade de resistência ao trumpismo, possíveis líderes dessa revolta e formas da mesma, uma reflexão histórica sobre o papel da violência política na história dos Estados Unidos. Também faço uma análise das razões das perdas e ganhos de Clinton e Trump, contada através de dezenas de testemunhos dos seus planeadores e estrategos, uma análise sobre as promessas de Trump e uma parte, de cerca de 120 páginas, só sobre a nova equipa governativa e os seus planos de política externa, de segurança e defesa.

Quais as suas principais preocupações quanto ao efeito Trump no plano geopolítico mundial?
A preocupação de uma guerra comercial sem limites, com países como a China ou o México, o que parece algo afastado com as nomeações no Departamento de Estado, e a preocupação do afastamento ou desinteresse dos assuntos europeus e da NATO, o que parece também afastado, depois das declarações solenes do vice-Presidente Pence e do Secretário da Defesa James Mattis, na Conferência de Segurança de Munique. Mas há outras preocupações desligadas do “efeito Trump” e que se prendem com a gestão de crises herdadas: a Síria, as relações entre a Rússia e a Ucrânia e, sobretudo, o papel da Coreia do Norte na (in)segurança asiática.

Como vê o futuro da Aliança Atlântica com os Estados Unidos a assumirem uma postura isolacionista?
Como disse antes, o isolacionismo americano face à NATO, apesar de temido, tem sido desmentido em palavras e actos. Palavras, pelo que já disse, actos pelo envio, desde Janeiro, de muitos contingentes americanos para as repúblicas bálticas e Polónia, em exercícios militares mesmo em frente do território da federação russa. Por outro lado, Washington quer que os europeus contribuam mais para a NATO, e isto está a provocar dois fenómenos: o aumento dos orçamentos defesa, da Alemanha à Polónia, mas também o aumento de planos europeus para a construção de uma defesa autónoma, com meios estratégicos que até agora faltavam.

Passando agora para a Europa. As sondagens dizem que Le Pen não ganha na segunda volta, apesar de ter boas hipóteses de vencer a primeira. Como perspectiva este embate eleitoral?
Em França, a tragédia é a de poder ter na segunda volta candidatos com problemas judiciais. Ou seja, depois da política, a criminalização. Acho quase impossível Le Pen não passar à segunda volta, e quase impossível que ganhe a segunda volta. Macron ou Fillon serão, em circunstâncias normais, os vencedores finais. Mas França ainda não vive circunstâncias normais.

Qual o perigo do crescimento da Frente Nacional para a coesão da UE?
A FN é um dos rostos do populismo e o populismo é sinónimo de disfunção na representação política. Daí que todos os avanços populistas obriguem os representantes políticos “tradicionais” a mudar de vida e de discurso. Na Holanda, por exemplo, o primeiro-ministro Mark Rutte compreendeu o problema, e tomou, face ao desejo turco de campanha ministerial pelo referendo, uma posição “populista”. Aliás, Rutte disse, na noite eleitoral, que com o senhor Wilders tinha sido derrotado o “mau populismo”. O que quer dizer que há um “bom”.

Com vários movimentos populistas anti-integração europeia a ganhar protagonismo, e face à inacção institucional de Bruxelas, como perspectiva o futuro da União Europeia? Teme mais algum “exit”?
A União Europeia é uma construção permanente, uma promessa permanente e uma crise permanente. Por enquanto, consegue dar aos seus cidadãos paz, prosperidade e desenvolvimento. A questão é a de saber o que acontecerá, quando deixar de dar tudo isto. Nesse sentido, o problema da imigração é apenas mais um teste. Que não poder ser minimizado, mas que não é o único problema.

No plano chinês, todos os sinais indicam consolidação de poder e afastamento de possíveis vozes contrárias a Xi Jinping. Acha que o secretário-geral do Partido Comunista Chinês se manterá no poder?
Não se vê alternativa em Pequim a não ser a via institucional. Mas poderão crescer, dentro dessa via central, interpretações diferentes.

Como perspectiva a continuidade de uma veia militarista, que se tem fortalecido, em Pequim?
A China quer ter um poder militar que corresponda, ao menos em parte, às suas capacidades e responsabilidades globais. Mas não vejo que esse poder militar possa, num futuro próximo, ter verdadeiramente uma capacidade global. E, na sua esfera imediata, cresce ao mesmo tempo que se desenvolve um rearmamento defensivo do Japão.

O que acha que pode sair do futuro encontro entre Xi Jinping e Donald Trump que, provavelmente, acontecerá à margem da próxima cimeira do G20?
Prevejo a promessa de um novo diálogo, em bases mais realistas, em que o problema de Taiwan, que parecia enorme, fica minimizado.

Como vê o progressivo afastamento da Turquia em relação à União Europeia e ao Ocidente em geral?
Com extrema preocupação. A Turquia é o cartão-de-visita da Europa no Médio Oriente, e a porta que filtra todos os movimentos de estabilização e desestabilização dessa área. Há uma Turquia que vive fora da UE e outra que vive dentro, com largas massas de migrantes, geralmente bem integrados (na Alemanha, no Benelux, na França e Polónia, etc.). Portanto, a UE tem de desejar que a Turquia deixe de ser o “doente da Europa”, como se dizia na expressão novecentista, e passe a ser outra vez um parceiro saudável. Mas a Turquia tem de fazer por isso.

Entretanto, a Coreia do Norte aprofunda o isolacionismo internacional.
A morte do meio-irmão do líder norte-coreano preocupa-me, porque mostra a facilidade de trânsito internacional de matérias perigosas, preparadas em laboratórios militares, e destinadas a ataques cirúrgicos. Se o rasto do crime for até Pyongyang, e se ficar confirmado que se trata de uma tentativa norte-coreana de punir um alegado circuito de ajuda a dissidentes (o Grupo de Defesa Civil de Cheollima), entramos numa nova era de instabilidade regional, onde a China terá o grande ónus de intervenção correctiva. Exercê-lo-á?

E no plano da leitura, o que tem lido?
Estou a reler o “Silêncio”, do clássico Endo, e outras obras do mesmo sobre cristãos clandestinos. A história da adaptação de “Silêncio” ao ecrã, pelo Martin Scorsese, começa, claro, em Macau.

O que conhece da realidade política de Macau?
Como vou com alguma frequência a Macau, conheço o panorama político e a sua evolução desde o fim da administração portuguesa. Acho que a RAEM tem conseguido evoluir num caminho delicado entre autonomia política, económica e de organização social, manutenção de alguns laços com o mundo lusófono (a sede do Fórum CPLP-China em Macau não é um acaso, é um projecto estratégico relevantíssimo) e reconhecimento das evidências históricas e geográficas de relação com a China. Podia desejar-se mais dinamismo dos media, da sociedade civil e da classe política, por comparação com Hong Kong, mas é uma situação peculiar, diferente, que tem a sua própria lógica. Por outro lado, sempre que vou a Macau não cesso de me fascinar com o produto de contactos seculares entre dois mundos tão diferentes como o português e o chinês que, mesmo assim, conseguiram conviver sem se destruírem, apesar dos momentos de incompreensão, tensão e conflito aberto. Teve aqui grande importância a vontade, o talento e o bom senso de um punhado de portugueses e chineses que souberam conduzir de forma saudável um processo que, noutros cantos do mundo, teria redundado em desastre.

28 Mar 2017