Diana do Mar Entrevista MancheteManuel Machado, presidente da EPM: “Queremos continuar a ser uma escola prestigiada” A Escola Portuguesa de Macau (EPM) celebra 20 anos. A diversidade cultural e linguística da população escolar enriqueceu a instituição de ensino, mas novas necessidades trouxeram desafios. Em entrevista ao HM, o presidente da direcção, Manuel Machado, espera que a EPM continue a ser uma escola prestigiada e aberta a todos [dropcap style≠‘circle’]I[/dropcap]ntegra a EPM desde o início, em 1998. Colaborador próximo de Edith Silva, foi adjunto da direcção até ser convidado para a vice-presidência e, mais tarde, para a presidência. Que aspectos destacaria destes 20 anos? Quando foi criada, um dos objectivos era assegurar um estabelecimento de ensino na Região Administrativa Especial de Macau, que viria a constituir-se após a transição, para os filhos da comunidade portuguesa poderem seguir os estudos num currículo português em língua portuguesa (…). Mas, em paralelo, a Escola Portuguesa obviamente estava – como sempre esteve – aberta a alunos das comunidades aqui residentes, aos quais procurou sempre ir dando resposta através da adopção de estratégias e metodologias. Com o desenrolar dos anos, foi-se alterando o currículo com vista à adaptação à realidade da escola: foi introduzido o mandarim, o ensino do inglês, da educação física e da educação musical desde o primeiro ciclo e houve alterações ao nível do ensino da história e da geografia, por exemplo. Quais foram as principais conquistas da EPM? Desde logo, uma elevada taxa de sucesso educativo, uma taxa elevadíssima de alunos que terminam o ensino secundário e conseguem prosseguir estudos na primeira opção, e a abertura a outras comunidades, reflectida num cada vez maior número de alunos de outras nacionalidades – temos, neste momento, 24. Essa realidade, de uma maior diversidade cultural e linguística, que se foi desenhando ao longo dos anos, também trouxe o grande desafio de responder a novas necessidades. Temos recebido muitos alunos que não têm o português como língua materna [VER CAIXA], algo praticamente inexistente no início do funcionamento da escola, o que significa que essa aposta, em estratégias e metodologias utilizadas para oferecer as ferramentas necessárias ao acompanhamento do currículo em português, tem tido sucesso. Depois, em 2009, foi aprovada uma portaria pelo Ministério da Educação que regulamentou os currículos da Escola Portuguesa de Macau, criando duas vias curriculares: na via A é facultado o ensino do mandarim do 1.º ao 12.º ano, enquanto na segunda não há obrigatoriedade de frequência daquela língua. E o ensino do cantonense? O dossiê encontra-se arrumado? Não, aliás, em educação os dossiês estão sempre em aberto. Este ano lectivo abrimos o cantonense em regime extracurricular e há uma série de alunos que o frequentam. Os resultados têm sido bons, mas vamos aguardar pelo final do ano para fazer a avaliação do processo e ver o que deve ser mantido e/ou modificado. A EPM tem ganho um perfil internacional pela diversidade de origens, culturas e línguas. Portugal continua a ser o destino de eleição para quem ali termina os estudos secundários? Varia muito de ano para ano. Já tem acontecido haver aproximadamente 50 por cento ou um pouco mais de alunos que terminam o secundário e prosseguem estudos em Portugal e os restantes dispersarem-se por outros países, como Austrália, Inglaterra, Suíça, China, ou ficarem em Macau. No ano passado, por exemplo, a maioria (28) escolheu Portugal. De facto, a escola, não sendo uma escola internacional na verdadeira acepção da palavra, oferece todas estas saídas e é a única em Macau com currículo em português à semelhança das escolas portuguesas. Regra geral, quantos optam por ficar em Macau? Neste momento, aproximadamente dez por cento num universo de 35 a 40 [finalistas]. Satisfaz muito que a escola comece a ser vista não só como era há muitos anos, ou seja, como uma porta para Portugal. Um dos aspectos que praticamente, de forma anual, transporta a EPM para as manchetes tem que ver com os ‘rankings’ dos exames nacionais, dado que tem liderado a média entre as escolas portuguesas no estrangeiro. Sei que não gosta de falar de ‘rankings’… Claro que não vou dizer que não sinto orgulho quando leio os números, mas os ‘rankings’ valem o que valem. Há todo um percurso de ensino e de aprendizagem, de vivência na escola e de relacionamento com os outros, por exemplo, que não é pesado e que tem muito mais valor. A disposição com que um aluno vai fazer um exame não é sempre a melhor, o tipo de prova, a sua reacção às perguntas, a própria situação de exame, a par da pressão quando se trata de disciplinas específicas para ingresso em certos cursos do ensino superior, em que por uma décima se entra ou não na universidade, não podem traduzir todo o trabalho anterior. O que é mais importante e mais me satisfaz não é a posição em que a escola fica, mas o percurso que o aluno fez, as relações que estabeleceu, a forma de estar e de se sentir na escola e como se desenvolveu e cresceu no estabelecimento de ensino, ou seja, tudo aquilo que é multidimensional. O que faz falta à EPM? Neste momento? Instalações. É um processo demorado que tem os seus trâmites. Para o ano podemos ficar próximos dos 600 alunos porque admito o aumento de mais uma turma no primeiro ciclo e, obviamente, um maior número de alunos exige a ampliação de modo a que possamos continuar a prestar um serviço educativo de qualidade. As instalações são muito importantes, não só no que diz respeito às salas de aula normais, mas também às específicas, como laboratórios, etc. Acresce que, além do maior número de alunos de língua materna não portuguesa, que necessitam de um acompanhamento próximo no início, o que também requer espaço, tem aumentado também o número de alunos com necessidades educativas especiais variadas, o que exige também recursos humanos e materiais. Recursos humanos, felizmente, não têm faltado, subsidiados pela Direcção dos Serviços de Educação e Juventude [DSEJ,] mas começamos a sentir, de facto, a escassez de espaço para poder fazer a gestão de todas estas situações. Actualmente, qual é o universo de alunos com necessidades educativas especiais? Neste momento, alunos com necessidades educativas especiais, de natureza diversa, temos 45, são quase dez por cento, é um número elevado. Mas alunos com acompanhamento pelos serviços de psicologia e orientação são aproximadamente 110. A Escola Portuguesa sempre foi muito receptiva, embora até certa altura não tivesse capacidade para dar resposta, porque nós tivemos durante muitos anos apenas uma psicóloga. Muitos vinham da DSEJ, mas por causa da questão da língua, não havia possibilidade de fazer o acompanhamento de que careciam. Foi sempre apanágio da Escola Portuguesa estar aberta a essas situações, acompanhando-as na medidas das suas possibilidades. Felizmente, desde há quatro anos, temos tido a possibilidade de contratar professores do ensino especial. Abrimos o ano com três a tempo inteiro e agora, para o terceiro período, chegou mais uma professora, além de termos outra a tempo parcial. A nossa capacidade de resposta tem, portanto, aumentado. Agora temos duas psicólogas a tempo inteiro. Portanto, este conjunto consegue fazer o acompanhamento das diferentes situações, o que não significa que não haja ainda recurso a terapeutas vindos de fora que vêm apoiar os alunos. Temos ainda duas animadoras culturais que foram contratadas para fazer acompanhamento dos alunos no recreio, porque, de facto, a população escolar está a aumentar e o espaço é o mesmo (…) e que, quando há necessidade, fazem-no também dentro da sala de aula. Qual a estratégia futura? O que gostaria mesmo que a EPM tivesse, fizesse ou alcançasse? Sempre considerei que não é possível haver uma relação de ensino e de aprendizagem sem haver empatia entre os actores envolvidos, por isso, damos muita importância ao clima e à cultura que se vive e às relações que se estabelecem dentro da escola. Temos a vantagem de existir uma grande diversidade cultural, o que é extremamente enriquecedor no desenvolvimento das crianças porque ajuda-as desde pequeninas a perceber que existem outros ‘eus’ que têm de se respeitar independentemente das diferenças ou semelhanças. Portanto, espero que a escola continue a conseguir manter e aumentar – porque nunca nada está atingido – um clima de alegria, bem-estar e de segurança, para o desenvolvimento saudável dos jovens, acompanhado obviamente do processo de aprendizagem. Muitas vezes as pessoas não se apercebem, mas a segurança e o bem-estar que se vive dentro da escola é fruto de um trabalho diário de acompanhamento por parte de professores, funcionários, de encarregados de educação. Não se consegue ter uma escola com bons resultados se não houver um bom ambiente. Fico muito contente quando somos procurados por encarregados de educação da comunidade chinesa, da filipina ou de outras que nos dizem que foi por causa do ambiente [que escolheram a EPM]. É muito compensador. E em termos do projecto educativo propriamente dito? No futuro, temos que continuar a apostar muito no desenvolvimento da língua portuguesa no sentido da sua aprendizagem correcta – não só porque somos uma escola portuguesa, mas também devido ao crescente número de alunos que têm outra língua materna. Também continuar a apostar no multilinguismo, em particular, no ensino do chinês, que ainda tem que se desenvolver bastante. Obviamente, queremos sempre continuar a formação profissional, não só de professores mas também de funcionários porque a realidade está-se a alterar e muito rapidamente. Nestes últimos cinco anos, a escola modificou-se muito significativamente, a estrutura tornou-se muitíssimo mais complexa, quer pelo número de alunos, mas também pelas suas características. A quantidade de alunos que precisa de acompanhamento extra a português e que tem necessidades educativas diversas ou a vinda de professores novos, que têm de ser integrados na cultura da escola, fez a rede adensar-se, o que exige uma colaboração muito próxima entre todos. Este é o grande desafio da escola. Queremos continuar a ser uma escola prestigiada em Macau que conseguiu consolidar-se como uma escola de qualidade e que as pessoas sintam que está aberta a todos, pois não teria sentido de outra forma dado estarmos no Extremo Oriente. Havia um plano para reformular o ensino do mandarim. Qual é o ponto de situação? Começamos este ano lectivo a experiência, no 1.º e 2º ano de escolaridade, de distribuir os alunos por dois grupos: um constituído por quem não têm quaisquer conhecimentos de chinês e um outro por quem já tem. Obviamente que as aulas são diferentes, os objectivos também, bem como as metodologias. A avaliação feita até à data, quer por parte de professores, encarregados de educação e alunos, tem sido positiva. Alteramos a estratégia e implementamos esta experiência, que está a ter bons resultados, e que naturalmente vai continuar no próximo ano no 3.º e 4.º ano e por aí fora. Há algum aspecto menos positivo durante estes 20 anos? Para ser franco, não consigo identificar nenhum momento marcadamente negativo. O saldo é francamente positivo, mas no percurso desta instituição, como de qualquer outra, há sempre situações menos conseguidas e menos agradáveis – é uma escola. Têm é que se estar atento e atalhar quando é necessário atalhar aquilo que tem de ser corrigido e melhorado. “Junto da direcção até agora não chegou nada” Na sequência do recente caso de violência escolar entre dois alunos, a DSEJ solicitou à EPM o envio de um relatório que ficou prometido para depois das férias da Páscoa. Já foi entregue? Houve, há e vai continuar a haver situações menos agradáveis. Essas questões são identificadas e trabalhadas pela escola de acordo com o regulamento interno e, sobretudo, com a discrição que merecem, porque estamos a tratar de crianças, portanto, temos de resolver dentro das portas da escola da melhor maneira possível. Os jovens merecem todo o respeito e, portanto, qualquer coisa menos bem feita pode traumatizá-los, por isso não gosto de falar nem que venha para os jornais. Tenho a responsabilidades para com os alunos e tenho elevadíssimo respeito pela sua identidade. Se há um incidente tem que ser tratado, não se pode por a cabeça na areia e tem de se arranjar a melhor maneira de o resolver e superar, mas o que não pode é ser feito sem ser com a máxima discrição. Nunca o farei de outra forma. Agora, obviamente que temos uma tutela – duas aliás – e se a DSEJ nos pede um relatório, com certeza que será feito findas todas as averiguações pela escola, mas isto é feito em correspondência confidencial. O relatório será feito na devida altura. Não vou apressar nada, vou fazer as coisas ‘by the book’ e respeitando as crianças enquanto jovens em desenvolvimento que eu quero que se mantenham na escola e se sintam bem [nela]. A Inspecção Geral de Educação e Ciência afirmou, em resposta por e-mail, ao HM, ter recebido e estar a analisar duas queixas relativas à EPM. Uma respeitante a esse caso, ocorrido em Março, e outra referente a agressões a um aluno por parte de colegas alegadamente promovidas por um docente, que remonta a finais de 2016. Qual o ponto de situação? Eu não tenho conhecimento de quaisquer investigações em curso. Não é suposto a Inspecção de Portugal vir fazer perguntas à escola sobre uma questão que se passou aqui. Obviamente que pode fazê-lo, com certeza que o pode fazer, mas o não o fez ainda. Não sei se vai fazer, mas até à data não o fez. (…) Se está a investigar é porque terá chegado alguma coisa, mas à direcção, até este momento, não chegou nada – é o que posso dizer. EPM em números A EPM abriu no ano lectivo 1998/1999 com 1132 alunos, registando-se depois um decréscimo progressivo do número de alunos até 2010/2011, ano em que foi atingido o valor mínimo de 462. A partir daí, o universo começou a crescer gradualmente e no actual ano lectivo encontram-se matriculados 577 alunos. Dos 577, 430 têm nacionalidade portuguesa, 74 chinesa, havendo ainda 73 de outras origens. Contudo, o português é a primeira língua apenas para 357 estudantes , um “dado curioso”, como assinala Manuel Machado. No que toca ao corpo docente, no ano lectivo inaugural, a EPM tinha 91 professores, incluindo 18 a tempo parcial. Actualmente, são 59, dos quais dois em part-time. A EPM conta ainda com sete funcionários administrativos, 17 auxiliares, bem como com duas psicólogas e quatro professores de ensino especial, a somar a cinco técnicos especializados. Vinte anos celebrados com espectáculo no CCM No próximo dia 21, pelas 19h30, vai haver um espectáculo no Centro Cultural organizado por professores, ex-professores, alunos, ex-alunos e encarregados de educação actuais e de outros tempos, intitulado “Vinte anos a navegar”.
João Santos Filipe Entrevista Manchete SociedadeDavid Chow: “É importante permitir a entrada no mercado a investidores de Macau” O empresário e CEO da Macau Legend apela ao Governo que acompanhe as investigações nos Estados Unidos ao empresário Steve Wynn e que actue para evitar danos para Macau. Chow questiona igualmente os contornos do negócio em que a Galaxy comprou parte da Wynn Macau [dropcap style≠‘circle’]D[/dropcap]efendeu recentemente uma investigação do Governo ao negócio em que a operadora Galaxy adquiriu cerca de 3,5 por cento da Wynn Macau. Porque defende a investigação? A lei permite que haja investimentos e compras das concessionárias. Se fossem outras pessoas a fazer o negócio, que não uma concessionária, não haveria problemas. Mas não é esse o caso. Honestamente, não compreendo o negócio. A Galaxy justificou a compra com o acesso à informação da Wynn numa perspectiva de aprendizagem. Só que eles são uma concessionária com um modelo muito diferente da Wynn e já têm um modelo de negócio que gera muitos lucros, mais do que a Wynn. É um negócio que carece de esclarecimento. Considera que esta movimentação contribui para reduzir a concorrência no mercado local? Sim, parece-me um negócio que segue uma direcção oposta à liberalização do jogo. Quando se liberalizou o mercado queria-se uma maior concorrência, mas com esta movimentação tenho dúvidas que esse espírito esteja a ser respeitado. O mercado tem de ser mais aberto. Assim há uma companhia a ir numa direcção que me parece oposta. Julga, então, que as autoridades locais deviam analisar muito bem todos os contornos do negócio. Acho que há a necessidade de haver mais esclarecimentos por parte das autoridades. Por outro lado, parece-me necessário uma posição sobre para onde se quer que a indústria caminhe. Estamos a falar de assuntos muito sérios, que devem ser muito bem esclarecidos, até pela importância da indústria para a cidade. No seu entender, qual é a verdadeira razão por trás deste negócio? Não sou eu que tenho de analisar o negócio, mas como simples cidadão tenho algumas preocupações e questiono-me. Há muitas perguntas que gostava de ver respondidas, por exemplo, a Galaxy vai comprar 100 por cento da Wynn no futuro? O Governo devia clarificar muito bem a sua posição. São dúvidas que devem ser tratadas atempadamente, até porque estamos a aproximar-nos dos próximos processos de atribuição de licenças de jogo. Também se mostrou preocupado com os contornos do escândalo que envolve Steve Wynn. Porque está preocupado com o caso, mesmo depois do milionário se ter afastado da empresa? Estamos a falar de um caso que pode causar danos enormes ao nível da imagem da indústria de Macau. Se virmos o que se está a passar nos Estados Unidos, onde há uma investigação não só a Wynn, mas também aos directores da empresa. Lá querem saber se houve intenção das pessoas que estão à frente da operadora de proteger e cobrir os actos de Wynn. Espera uma investigação da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos (DICJ) semelhante à que se verifica nos Estados Unidos? As pessoas de Macau têm de fazer alguma coisa face ao caso. É preciso ver como se vão desenrolar as investigações por lá e ponderar o futuro da empresa. Será que esta empresa tem mesmo capacidade para gerir uma concessão? Estamos a falar de um grupo que assumiu as suas responsabilidades nos Estados Unidos… As exigências em Macau, que tem um mercado com base em concessões, são muito superiores aos de um mercado aberto, como acontece em Las Vegas. O Governo de Macau precisa de ser mais rigoroso na forma como tem encarado toda este caso. No passado, dizia-se que Macau precisava de aprender com o que se passava na indústria de Las Vegas. Esta aprendizagem não implica também adoptar este tipo de investigações, como acontece nos Estados Unidos? Como considera então que o Governo devia lidar com o caso? Parece-me que há dois passos inevitáveis: por um lado é preciso investigar toda a direcção da empresa e ver quem são as actuais pessoas que estão à frente da Wynn. Que tipo de responsabilidade vão assumir? Será que quando ele se comprometeu com uma licença de jogo disse que tinha um passado limpo? Este tipo de coisas não devia ter sido declarado? E o resultado da atribuição de licenças de jogo teria sido diferente à luz destes dados? Há muitas dúvidas. Não se pode agir como se o caso fosse apenas a passagem do tufão. É preciso aprender com tudo e tirar lições. Todos precisam de perceber muito bem as suas responsabilidades como concessionárias. E o segundo passo? É preciso mudar o nome dos resorts em Macau porque o nome Wynn está ligado ao escândalo. É terrível para Macau estar ligado a este caso. Wynn pagou 7,5 milhões dólares americanos perante uma conduta sexual imprópria, sobre isso parece não haver dúvidas. O acordo foi feito. Queremos mesmo espaços de entretenimento ligados a estas condutas? Que implicações e mensagem é transmitida? Entre 2020 e 2022 as licenças do jogo chegam ao fim. Existe a perspectiva de renovações anuais, com uma nova atribuição das licenças. Que pontos gostava de ver destacados nos novos concursos? Criação de mais oportunidades de promoção para os locais que estão há vários anos na indústria a aprender. Mas tenho confiança que o Governo vai ser justo na atribuição das novas licenças do jogo e que vai criar oportunidades de investimento para os locais. Sejam seis, sete ou oito licenças de jogo, isso não é o mais relevante. O importante é que se permita a entrada no mercado dos especialistas e investidores de Macau, que permitem a promoção dos trabalhadores residentes. O facto de nos últimos anos ter crescido o número de investidores de Macau a lançarem-se na indústria do jogo no exterior, mostra que há pessoas capazes de assumir um maior papel internamente? Os locais estão a investir no estrangeiro porque não há uma política que lhes permita investir no jogo em Macau. Parece-me que o mais importante é pensar como se podem trazer novos mercados para Macau. O que quer dizer com os novos mercados? As pessoas na Ásia estão a ficar cada vez mais ricas e querem frequentar casinos. Mas porque é que vão para outros mercados como, por exemplo, Singapura? Elas poderiam vir a Macau… Não tem sido feito um bom trabalho por parte das concessionárias de atrair novos mercados. Elas só têm mostrado vontade de contar com os jogadores chineses, mas isso não ajuda verdadeiramente Macau. Não se diversifica a origem dos jogadores. Mas deixe-me dizer, todas as minhas questões e exigências têm um objectivo: aumentar o nível de Macau e catapultar a cidade internacionalmente. Se não alcançarmos um nível de excelência como podemos ajudar Macau a integrar-se na política Uma Faixa, Uma Rota e na Plataforma entre a China e os Países de Língua Portuguesa? Tem sido um dos investidores que mais tem acompanhado a política Plataforma entre a China e os Países de Língua Portuguesa ao nível do turismo. Como está o projecto em Portugal? Estamos na expectativa, à espera de instruções. Portugal é uma posição estratégica, tem uma política estável e as pessoas percebem o que querem e têm coragem, como se viu com a política dos Vistos Gold. Também são bons amigos da China e permitem uma ligação com facilidade a mercados na América Latina, América do Sul, África, no espírito da política nacional Uma Faixa, Uma Rota. Esteve recentemente em Portugal e teve reunido com o presidente da República Portuguesa. Mas a verdade é que o projecto está a levar o seu tempo… Temos de aguardar e respeitar o tradicionalismo português na forma como lidam com concursos públicos e questões ambientais. Temos e queremos cumprir com tudo. Mas sentimos que temos apoio para o projecto, tanto em Setúbal como em Tróia. Até o presidente mostrou o seu apoio, também o ex-Governador de Macau, Rocha Vieira… Quando nos derem indicações começamos as obras. Além de Portugal e Cabo-Verde que outros investimentos podemos esperar nos Países de Língua Portuguesa? Já temos as obras em curso em Cabo Verde e agora preciso das orientações de Portugal, para começar as obras. Estamos em contactos com Angola e Timor-Leste. Mas, neste momento, vemos Portugal como a melhor plataforma para Macau e a melhor área para investir. Estamos a ver surgirem muitas oportunidades de investimento dentro da política Uma Faixa, Uma Rota. Nos últimos tempos o seu filho Donald Chow tem estado mais ligado ao grupo. Está a preparar a sucessão? É o meu filho. Veio trabalhar connosco depois de se ter formado na universidade. Dei-lhe a oportunidade, mas ele começou do fundo, o primeiro salário que teve foram 12 mil patacas. Tem vindo a aprender e aprender. Mas por agora é a minha mulher, Melinda Chan, que está a gerir o negócio em Macau e no Interior da China. Eu estou mais focado nos investimentos lá fora. “Temos uma amizade forte” Durante a entrevista de ontem, David Chow abordou os rumores sobre um eventual despedimento do amigo Jorge Fão. O empresário desmentiu esse cenário e fez questão de realçar a grande amizade entre os dois: “Eu e o Jorge Fão somos grandes amigos e temos uma amizade forte. Há muita gente a falar sobre o que não sabe. Não faz qualquer sentido os rumores que circularam e não percebo a intenção. Somos amigos há muito tempo. Ele está reformado mas é uma pessoa que me tem ajudado muito”, afirmou.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteNedie Palcon, líder da Green Philippines Migrant Workers Union: “Macau continua a ser atractivo” Foi uma das poucas representantes das comunidades de trabalhadores não residentes a reunir com um membro do Governo, no âmbito do aumento das taxas de partos para estas trabalhadoras. Nedie Palcon, líder da Green Philippines Migrant Workers Union, trabalha em Macau há 14 anos e afirma estar a preparar um grupo de medidas reivindicativas, tal como aumentos salariais e de subsídio de alojamento [dropcap style≠‘circle’]F[/dropcap]oi uma das primeiras porta-vozes das trabalhadoras não residentes a ter um encontro oficial com o Governo. Depois desse encontro o secretário decidiu mudar a proposta inicial relativa às taxas de partos para as empregadas domésticas. Foi uma boa decisão da parte do Executivo? Na verdade continua a não ser justo, porque as empregadas domésticas são as que recebem os salários mais baixos, que variam entre as três e quatro mil patacas. A quantia é ainda elevada para elas e não está adequada ao seu nível salarial. Ainda assim, acho que é uma boa decisão, uma vez que há 20 anos que não há aumentos nas taxas dos partos. Pretende criar um movimento mais forte para a protecção dos direitos das empregadas domésticas e ser a voz deste sector da sociedade? Há muito tempo que temos esse plano e uma série de propostas para apresentar ao Governo, como os aumentos salariais e a implementação de um salário, porque Macau ainda não tem um salário mínimo universal. Há também a questão dos contratos de trabalho que não estão uniformizados, então muitas vezes são traduzidos pelas agências de emprego ou nem sequer são seguidos. Sei que fazem o contrato com a empregada, mas esta nunca o vê. Não têm acesso aos contratos? Não, não têm sequer acesso a uma cópia, a maioria delas. O contrato é automaticamente renovado e as empregadas continuam a não ter acesso a uma cópia. O patrão tem também de pagar 500 patacas para despesas de alojamento, mas esse valor já está em vigor há muitos anos e não houve qualquer aumento. 500 patacas é metade do valor que se paga por um espaço num beliche nesta altura, que custa mil patacas. Nem sequer inclui as restantes despesas da casa. Já temos isto planeado há muito tempo, mas tenho apenas três outras associações a trabalhar comigo nestas propostas. Tem alguma ideia de quando poderão apresentar estas propostas ao Governo de forma unificada? Talvez este ano. Relativamente aos aumentos salariais, vocês pedem que haja um aumento das 2500 para 5000 patacas. Contudo, é ainda um valor baixo, tendo em conta a média salarial de Macau. Porquê propor um valor tão baixo? Achamos que se propusermos um valor mais elevado não vai ser aceite. Procuramos um aumento ligeiro, porque muitas das empregadas domésticas vivem na casa dos patrões. Este aumento iria ajudar as empregadas domésticas que vivem fora das casas dos patrões e que têm de pagar a sua casa e comprar comida. Para elas, cinco mil patacas seria suficiente. Sei que algumas associações propuseram quatro mil patacas de salário na última consulta pública sobre a implementação do salário mínimo, mas continua a não ser suficiente. Acredita que o Governo pode mudar a sua atitude, e também os deputados, em relação aos TNR? Seria melhor uma mudança, de facto. Quando realizam consultas públicas nunca consultam as associações que representam a comunidade filipina, por exemplo, apenas as associações ligadas à comunidade indonésia. Simplesmente não fomos consultados. Penso que não há muita justiça na forma como realizam as consultas públicas, deveriam ser mais abertas ao público. Disse-me que muitas empregadas domésticas não têm uma cópia dos seus contratos. Tem conhecimento de outras ilegalidades comuns e que são mais urgentes em termos de resolução? Nos casos em que os patrões pedem às empregadas domésticas para renovar os contratos, e quando estas não concordam com algumas cláusulas, correm o risco de não ver o seu contrato renovado. Se o patrão alegar despedimento por justa causa elas têm de deixar o território. Tendo em conta as agências de emprego, há também situações ilegais, em que estas retêm os passaportes das empregadas. Acredita que a nova lei pode resolver esta situação? É ilegal reter os passaportes das empregadas domésticas, porque é um documento pessoal delas. Falei com os responsáveis de uma agência e eles justificam a retenção do passaporte para evitar deslocarem-se a casa da empregada para tratar das questões burocráticas. Mas esse argumento não é aceitável. Há casos de empregadas que, ao fim de três meses, não conseguem sair porque não têm documentos. Se a empregada começa a trabalhar através de uma agência, muitas vezes já tem todas as cauções pagas e não conseguem reaver o montante que sobra. Macau continua a ser um território atractivo para os TNR, ou começam a olhar para outras possibilidades? Continua a ser um lugar atractivo porque é fácil conseguir trabalho aqui. Há muitas categorias abertas a todas as nacionalidades. Em Hong Kong, por exemplo, só nos podemos candidatar aos empregos domésticos, e não é permitido procurar trabalho como turista. Aqui também é ilegal, mas essa prática continua a ser comum. Isso pode findar com a nova lei das agências de emprego? Acredita que o Governo pode mesmo acabar com essa prática ilegal? É uma possibilidade, mas a maioria das empresas como, por exemplo, os hotéis têm vindo a manter as práticas de recrutamento. É fácil então chegar para visitar Macau, ou alguns familiares, trazer o currículo e apresentar candidaturas a empresas. Sim. Em Hong Kong tem havido um longo debate sobre os direitos das empregadas domésticas. A situação em Macau é melhor? Em Hong Kong é melhor no que diz respeito à protecção dos direitos humanos, porque há sindicatos. Aqui os sindicatos não são permitidos, não há sequer uma lei sindical. Em Hong Kong podem falar mais abertamente dos seus direitos junto do Governo, sobretudo junto do departamento laboral. O Governo parece já ter implementado algumas regras, mas há ainda muitas empregadas a serem abusadas pelos patrões, e é difícil o Governo ter controlo sobre todas as situações. Tem conhecimento de casos de violência em Macau? Até agora, não ouvi nenhum. Sei de algumas situações de empregadas agredidas ou que não têm acesso à quantidade de comida que está estabelecida no contrato. Elas têm o seu salário e usam-no para comer. É uma situação ilegal, porque cabe ao empregador financiar as despesas de alimentação, sobretudo se a empregada viver com os patrões. Acha que com a aprovação de uma lei sindical as condições poderiam melhorar? Sim, mas é difícil porque há muito tempo que se discute a criação de uma lei sindical. Nota uma grande diferença na sociedade em termos de aceitação de outras comunidades? Sente que há segregação? Sim, noto alguma, sobretudo na hora de fazer as leis e proteger os direitos dos residentes e não residentes. Só o facto de sermos os não residentes já é algo discriminatório e há muito tempo que essa questão está por resolver. Há um discurso político contra os TNR, que tem vindo a ser mais notório depois da transferência de soberania. Este discurso é negativo para Macau? Não tenho grandes comentários a fazer quanto a esse discurso político, porque não assisto aos debates, mas sei que há muito tempo que existe essa questão. Mas não noto muita diferença. Por exemplo, quando vim para Macau o valor pelo alojamento já era de 500 patacas, e isso foi há 14 anos. Na área da saúde, e tendo em conta o aumento das taxas de partos, é difícil o acesso a cuidados médicos no território para os TNR? No meu caso, quando vou ao médico o meu patrão paga-me as despesas, mas sei de muitos casos que não é assim. É muito difícil e mesmo no hospital público temos de pagar muito. Eu nunca tentei. Os internamentos são muito caros. Conheço o caso de uma senhora que ficou internada uma semana e a conta atingiu as 30 mil patacas, no hospital público. Ela pediu ajuda a uma assistente social para poder pagar esse montante em prestações, e está à espera de resposta ainda. Conheço também um homem que tem uma conta de 200 mil patacas, e que já está nas Filipinas, mas que tem aqui duas irmãs. Neste momento a Caritas dá-nos alguma ajuda, mas não temos acesso ao Banco Alimentar, por exemplo. Só através das associações é que fazemos acções de recolha de fundos em associações ou lojas filipinas, por exemplo, para ajudar os casos mais complicados. Os consulados deveriam ter um papel mais interventivo em casos sociais? No caso deste homem filipino de que falei, a família pediu ajuda mas só receberam algum dinheiro para apanhar um táxi, quando ele precisava de uma ambulância para sair. Foi a única ajuda que o consulado deu a esta família. Não sei porque é que não dão mais apoio, o consulado não dá atenção a muitas situações sociais que acontecem.
Diana do Mar Entrevista MancheteHélder Beja, director de programação do Rota das Letras: “Foi aberto um precedente” Sete anos depois, o director de programação do Rota das Letras vai deixar o projecto que ajudou a criar e a colocar no calendário cultural de Macau. Embora reconheça que os eventos que culminaram no cancelamento da vinda de três escritores deixaram “uma marca indelével”, Hélder Beja considera que o Festival Literário é importante e pode ter continuidade desde que as regras do jogo sejam claras. Na calha, tem ideias novas, também à volta dos livros, e a expectativa de que passem por Macau, um espaço que espera que continue a ser “de relativa liberdade” O Festival Literário de Macau – Rota das Letras termina no domingo. Qual é o balanço da sétima edição? Foi uma boa edição, embora relativamente diferente das anteriores, obviamente por tudo o que aconteceu antes do arranque. Julgo que, de alguma forma, marcou esta edição. Era impossível que fosse de outra maneira, mas penso que as coisas também foram voltando à normalidade com o passar dos dias. Acabámos por ter excelentes sessões, óptimos autores, muito bons moderadores. Houve um cuidado especial com isso e também um esforço para ter transmissões online com qualidade, pelo que o impacto das sessões acabou até por ser maior, em alguns casos, do que em anos anteriores. Das inúmeras sessões do Rota das Letras, que começou a 10 de Março, destaca alguma em particular? Uma das revelações – acho que para toda a gente que pôde assistir – foi Li-Young Lee, poeta nascido na Indonésia de ascendência chinesa. É um homem que tem uma ligação histórica à China através do bisavô, [Yuan Shikai], que foi o primeiro Presidente republicano da China após o governo provisório de Sun Yat-sen, e do pai, que trabalhou para Mao Tsé-Tung. Ele vive há muitíssimos anos nos Estados Unidos e, apesar de ser muito americano, tem também qualquer coisa de ancestral no sentido de buscar dentro dele próprio as coisas mais essenciais da vida. Isso nota-se na forma como escreve, como lê a sua poesia e como comunica com as pessoas. Foi uma grande surpresa. Por outro lado, como estava à espera, foi um prazer ter Peter Hessler e Leslie Chang até porque eram desejos antigos do festival. Foi uma grande partilha sobre a China, sobre o Médio Oriente e norte de África, com a questão da Primavera Árabe. Outra boa surpresa foram os autores do Sudeste Asiático: o Miguel Syjuco e o Prabda Yoon. Foi muito bom, de facto, trazer autores com qualidade de países sobre os quais sabemos muito pouco do ponto de vista literário e perceber que há vozes muito interessantes – no caso do Prabda – e muito interventivas – no caso do Miguel. Na véspera do arranque do Rota das Letras anunciou a demissão do cargo de director de programação, com efeitos a partir de segunda-feira, na sequência dos eventos que culminaram no cancelamento da vinda de três escritores por não estar garantida a sua entrada. Reconsiderar é uma hipótese? Não. Esta decisão foi pensada e ponderada e também significa o fechar de um ciclo para mim. São sete anos. Estive na fundação do festival como o Ricardo [Pinto] e julgo que conseguimos construir um projecto muito bonito, muito singular e, diria até, inédito no panorama cultural em Macau, com grande esforço sempre, por parte de todos, claro. Foi também esse acumular que me fez tomar esta decisão e, a juntar a isso, a minha vida pessoal também diz que é o momento de fechar esse ciclo e de pensar em novos projectos e em novos desafios. Saio de consciência tranquila, porque sempre dei o melhor e tenho prazer em ter contribuído, o melhor que pude, e a grande custo às vezes, para deixar uma marca positiva na cena literária de Macau. Mas o fechar desse ciclo foi precipitado pelo que aconteceu… Completamente. A razão central foi o que aconteceu antes do festival começar que já foi, entretanto, mais clarificada do que estava quando anunciei a minha demissão. Não poderia ser eu a libertar toda a informação, porque a recebi em segunda mão e, portanto, não me cabia a mim indicar a fonte. Felizmente, essa clarificação aconteceu. É algo que prezo e sinto-me melhor com esta situação neste momento porque pelo menos chamámos as coisas pelos nomes. Esta foi uma situação sem precedentes no Rota das Letras, fundado em 2012. É a morte do Festival Literário de Macau? Pode a continuidade do festival implicar, por exemplo, sujeitar uma lista de autores convidados a aprovação prévia? Eu nunca estaria disponível para fazer um festival em que fosse preciso, ou necessário, enviar uma lista de autores para aprovação. Não me parece também que seja essa a vontade dos que estiveram envolvidos até hoje, como o Ricardo Pinto ou o Yao Feng. Na minha opinião – e posso estar errado – não me parece que ninguém queira isso. Aconteceu desta vez este caso e, obviamente, pode repetir-se no futuro, porque foi aberto um precedente. No entanto, julgo que continua a ser possível fazer o festival, mas é preciso perceber com que liberdade e quais as regras do jogo. Também temos de ser realistas e perceber o sítio em que vivemos e que nem tudo é possível numa Região Administrativa Especial da China. A própria história do festival sinaliza que aparentemente já foi… Sim. Mas, de facto, agora há a sensação de que nem tudo é. Tudo depende se estamos dispostos a aceitar, ou não, essa premissa e como é que vamos reagir quando acontecer alguma coisa – porque essa é uma questão fundamental de toda esta história. A reacção é quase tão importante como o acto anterior. Portanto, desde que esteja bem ciente na cabeça de quem possa eventualmente continuar o projecto o que é que está disposto a aceitar e como irá reagir se algo do género voltar a acontecer, parece-me possível continuar a fazer um festival literário. Mas o festival pode vir a ter espartilhos… É claro que o que aconteceu deixa uma marca indelével, mas também acho que o festival é muito importante. Entre o festival não trazer nada à cidade, ou trazer tudo aquilo que seja possível, acho que é mais importante trazer tudo aquilo que seja possível. Este ano aconteceu isto – é muito grave – mas o programa foi riquíssimo na mesma. Em causa está uma questão de princípio e essa, sim, é problemática. Como foi transmitida a mensagem aos autores convidados de que a sua entrada não estaria garantida? Como foi recebida? Foi-lhes comunicado exactamente o que foi dito na esfera pública, de que tínhamos sido informados oficiosamente da elevada probabilidade de não poderem entrar em Macau. Discutimos com eles e, juntos, decidimos que era melhor as viagens não acontecerem. Eles perceberam, de um modo geral, a mensagem e o que estava em causa. O Festival Literário chegou a indagar por que razão era inoportuna a vinda daqueles três escritores em particular? No passado, chegaram a ter outros autores com livros banidos na China, por exemplo… Pensei muito sobre isso, mas são tudo especulações. As ideias que eu tenho não são importantes agora. Como não participei nas conversas, não percebo qual foi o raciocínio do lado de lá. Obviamente, importa dizer que não me parece que nenhum deles devesse ser alguma vez impedido de vir a Macau, e também relembrar que a Jung Chang esteve no Festival Literário de Hong Kong há pouquíssimo tempo. Isto é muito importante, porque estamos a falar das duas regiões administrativas especiais e houve aqui uma clara diferença. Esperava algum tipo de reacção, por parte do Governo, de Macau ou até de Portugal, ou da comunidade, por exemplo, dado que estamos perante um caso que vai muito além do próprio festival? Penso que estamos a falar de estruturas muito intricadas e é sempre muito difícil perceber como é que estas estruturas reagem a coisas que acontecem e que depois passam para a esfera pública. Claro que teria sido reconfortante que alguém tivesse falado verdadeiramente sobre este caso, mas isso não aconteceu. Acho que também são as formas de gerir os processos que existem aqui (…) e, portanto, vai ficar tudo como está. Não me surpreendeu por aí além, mas não é fácil também lidar com essa situação, claro. Uma das componentes mais importantes do Festival Literário é o Rota das Escolas, uma iniciativa que tem contado com a coordenação da Direcção dos Serviços de Educação e Juventude (DSEJ). Este ano, porém, o organismo decidiu não participar para “evitar afectar as actividades regulares de ensino nas escolas” devido ao período de exames, isto quando o Rota das Letras tem habitualmente lugar em Março. Esta edição foi penalizada de algum modo por isso? Poderia ter sido mas, felizmente, acho que não foi, porque fizemos um esforço tremendo para manter o nível e conseguimos levar os autores a muitas escolas e a muitos jovens leitores. Amanhã [hoje] vamos à Escola Hou Kong, com a autora Maria Inês Almeida e também à Pui Ching com duas escritoras de literatura infantil de Hong Kong, ou seja, a duas das principais escolas chinesas. Nas escolas, talvez o número de sessões tenha diminuído ligeiramente, mas não muito. Claro que não deixou de ser surpreendente uma colaboração de tantos anos ter sido interrompida deste modo, mas não é de todo apenas uma desculpa, porque durante a abordagem individual também houve escolas que nos deram esse argumento. Em contrapartida, reforçámos – e de que maneira – as sessões em universidades e, se juntarmos, num pacote, todas as sessões, na verdade, tivemos mais do que em anos anteriores. Falaste em novos projectos, novos desafios. Passam por Macau? Espero que sim, não consigo ainda adiantar muito, mas tenho ideias e quero fazer coisas novas, espero que muitas delas passem por Macau. A minha decisão não é um adeus nem um virar de costas a Macau – de todo. A decisão foi ponderada e difícil, mas acho que também sensata e acertada. Espero poder olhar para trás e perceber que fiz a coisa certa. Acho que Macau é um sítio onde ainda é possível fazer coisas. Espero que continue a ser um espaço de relativa liberdade, porque está obviamente e cada vez mais sob alçada da República Popular da China e sabemos quais são as questões de liberdade que se colocam nesse panorama. Mas, sendo Macau um sítio que eu acredito que pode continuar a ser de relativa liberdade, quero continuar a fazer coisas aqui. Também à volta dos livros? Sim, porque, acima de tudo, são a minha vida. Portanto, acho que, de alguma forma, passarão sempre por outros projectos que possa vir a fazer, em Macau ou noutros sítios. Se esses projectos forem em Macau não receias que suceda o mesmo que te levou a decidir deixar o Rota das Letras? Estamos sempre sujeitos àquilo que possa acontecer mas, desde que tenhamos os nossos princípios bem fundamentados, julgo que não devemos desistir. Tanto as pessoas, como a história de Macau, merecem esse esforço e essa continuidade. Não acho que devemos todos desistir de fazer coisas por causa de um episódio mau. Não quero desistir de fazer projectos interessantes em Macau.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteRui Tavares, sobre período pós-Brexit: “Nesse cenário deveríamos prestar mais atenção a Macau” O historiador e político acredita que Macau tem muito a ganhar quando for oficializada a saída do Reino Unido da União Europeia. Rui Tavares defende ainda que o projecto europeu deve continuar a lutar contra a fuga de capitais para offshores, que todos os anos representa perdas de um bilião de euros FOTO: Eduardo Martins / Rota das Letras [dropcap]H[/dropcap]á pouco defendeu que o projecto europeu tem de se democratizar mais, mas continua a acreditar nele. Não é muito popular nesta fase ser pró-europeu [referindo-se à posição que o partido que fundou, o LIVRE, assume]. O que paga mais neste momento é inventar razões para deitar fora o projecto europeu, e seria um erro enorme abandoná-lo. Quando olhamos para o resto do mundo ainda ficamos mais convictos de que o projecto europeu tem defeitos, que há boas razões para muita gente estar frustrada e insatisfeita com ele, mas a atitude correcta a ter é refundar o projecto europeu e democratizá-lo, legitimá-lo mais junto dos cidadãos, e dotá-lo de instrumentos, através dos recursos próprios da UE, que permitam à UE ser mais forte nos tempos que aí vêm. Há que proteger mais os seus cidadãos, investir mais no futuro, nas universidades, na juventude, no combate à fuga de cérebros. Seria um erro estratégico crasso, neste cenário de que já falamos, com Trump de um lado, Putin do outro, Erdogan às portas da Europa, a China numa trajectória ambivalente, porque em alguns aspectos, nos últimos dois anos, a China tem-se tornado numa aliada valiosa da UE. Em que áreas? Pelo menos em duas coisas importantes: o combate às alterações climáticas e a luta pela preservação do sistema internacional à volta da ONU. É importante para a UE ter relações com todas estas partes do mundo e tê-las com elementos pragmáticos. Mas enfraquecermo-nos a nós mesmos, numa altura em que o mundo está a ficar multipolar e concentrado em homens fortes…seria um erro não contarmos com um projecto mais plural, que não deve ser imperialista e hegemónico, mas deve preservar numa parte do mundo o que eu chamo um patriotismo dos direitos humanos e um referencial para quem defende a democracia e os direitos humanos. Relativamente à era pós-Brexit, qual deve ser o papel de Macau nesta matéria? Se [o território] vai tirar partido, ou não, não sei, depende da maneira como souber gerir essa nova fase. Nitidamente é uma coisa que vai mudar uma espécie de paridade política que, de certa forma, existe, apesar da diferença de dimensões entre Macau e Hong Kong. Os embaixadores de Hong Kong no Parlamento Europeu e no Conselho vão deixar de existir, porque eram os representantes britânicos. O Reino Unido também vai perder peso dentro do Conselho de Segurança da ONU, porque há sempre quatro ou cinco países que são da UE. Portugal e Macau não perdem isso. Portugal e Macau, e dentro de Macau a comunidade portuguesa, passam a ter um papel de representante da UE nesta parte do mundo, um papel mais singular, e que só teria a ganhar em ser reforçado com a sua correspondência de representação junto de instituições europeias. Há muito caminho a fazer e acho que num cenário pós-Brexit deveríamos prestar mais atenção a Macau, pois pode representar um sítio privilegiado de uma relação com a UE, único após-Brexit de uma relação diferenciada com a UE, e na própria UE prestar-se também muita atenção a Macau como plataforma, que já o é, para a lusofonia. O Governo de Macau também tem muito para fazer. Há muitas cidades e regiões que têm uma representação junto da UE, e isso faz sentido. A inclusão de Macau na lista negra de paraísos fiscais gerou alguma polémica [o território já foi retirado]. Houve um erro que gerou tensão com a China? Acho que a UE deve trabalhar cada vez mais para garantir que os sistemas fiscais funcionam, que os Estados não ficam sem recursos e que o dinheiro que faz falta aos nossos hospitais e escolas não nos foge entre os dedos. E isso também é importante para os países terceiros, com um sistema fiscal mais justo que beneficia toda a gente. Há espaço para acordos internacionais à escala global que permitam fazer uma redistribuição de recursos. Acho natural que outros Estados possam ter algo a dizer em relação às listas que são elaboradas sobre legislações opacas. Devemos preparar-nos para uma maior actividade interna e externa da UE relativamente à evasão fiscal, sobretudo depois dos Panama Papers. Perde-se, na UE, todos os anos, um bilião de euros. Isto é tanto dinheiro que é mais do que todo o orçamento da UE para sete anos. Se recuperássemos uma fracção do que se perde, isso iria significar a resolução de problemas ligados ao endividamento externo e uma segurança maior para os cidadãos em termos do Estado social. continue a ler a entrevista a Rui Tavares
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteRui Tavares, historiador e político, sobre Macau: “Até 2049, Portugal tem responsabilidades” Historiador, político, ex-deputado europeu, Rui Tavares teme que as alterações à Constituição chinesa possam “vir a fazer escola” no mundo. Sobre Macau, o convidado do festival Rota das Letras lamenta que não haja um maior acompanhamento da parte da Assembleia da República e que Portugal ainda tem “obrigações morais e políticas importantes, enquanto garantia da autonomia de Macau dentro do Direito Internacional” [dropcap]H[/dropcap]Há muitas vozes que dizem que a alteração à constituição chinesa é um retrocesso relativamente à revisão da constituição feita por Deng Xiaoping na década de 80. Concorda? Concordo que há um retrocesso, que aliás é global. Estamos a assistir a um endurecimento dos regimes no mundo, e aqueles, como na União Europeia (UE), que não o estão a fazer, têm dentro de si regimes que têm estado a endurecer, como os EUA, Turquia, Rússia, Brasil. Há uma série de fenómenos muito preocupantes. E a China foi, de certa forma, mexer num processo que tem sido vantajoso para a China, e isso pode ser problemático para o país. O processo que, apesar de não ter correspondido a uma abertura generalizada, permitiu uma rotação de quadros políticos no topo da hierarquia chinesa, foi muito benéfico para a China nas últimas décadas. Substitui-lo por um processo em que o mesmo líder político pode ficar [no poder] indefinidamente não só pode ser problemático como coloca a seguinte questão: qual é o problema para que esta decisão propõe ser a solução? Ou seja, qual era exactamente o problema que a China tinha que necessitava de ser resolvido através de uma emenda constitucional como esta? Não se vê nenhum. É uma questão de ideologia? É uma questão de concentração de poder. Os Executivos têm uma propensão para concentrar poder que, normalmente, só é contida pelas constituições ou pela força da sociedade civil. Em casos que estudei, como o da Hungria, faltaram esses dois elementos, pois o poder podia mudar a Constituição e a sociedade civil não foi suficientemente forte para o conter. Depois do poder ter a concentração de autoridade que pretende, em geral, não a larga. Na Hungria não largaram. No último congresso do Partido Comunista Chinês (PCC) foi afirmado que estamos numa nova era para o socialismo com características chinesas. Que socialismo é este? O que vem aí em termos de ideologia política? Parece-me claro que há a assunção oficial de uma doutrina, segundo a qual a grande diferença que interessa não é entre autocracias e democracias, é entre a boa e má governança, e que é muito conveniente para as autoridades chinesas. Esta destina-se a minimizar a importância da existência de liberdades cívico-políticas e da capacidade de escolha, e a maximizar aquilo a que os cientistas políticos chamam de “output legitimacy”. Ou seja, o regime é legítimo quando produz, de acordo com esta doutrina, que me parece errada, consequências desejáveis para a população. Se a economia está a crescer, se há emprego, estabilidade e segurança nas ruas, o regime é legítimo. Eu não vou negar que todas estas coisas são importantes, mas os regimes não podem utilizar essa legitimidade dos resultados como forma para ter uma legitimidade dos resultados, como se fosse desculpa para desconsiderar a legitimidade dos processos, nomeadamente os processos democráticos. O que é preocupante não é só para a China, mas também para o resto do mundo. Que exemplos pode referir? O regime da RPC, ao contrário da Rússia, é um regime desejável do ponto de vista em que há muitos outros países que desejam ser como a China, ter o seu tipo de performance. Ao passo que, quando se olha para a Rússia, tem uma posição mais retórica, com traços de uma paranóia geopolítica, o que faz com que gere as suas próprias resistências. O modelo chinês é mais exportável. Esta ideia de dizer que esta distinção entre autocracia e democracia não importa, porque o que importa é se produz boa ou má governança, é uma ideia perigosa porque é sedutora para muitos governos, incluindo no Ocidente. Não é um discurso assim tão diferente do que têm alguns burocratas da UE, que dizem que a UE não tem de ser mais democrática, porque o que é preciso é crescer mais e produzir mais emprego. Ninguém nega isso, mas é evidente que a falta de democracia na UE nos levou a onde estamos hoje. No mundo em que olhamos para os grandes blocos, e grande parte deles são liderados por regimes que estão em vias de se tornar mais autoritários, se a UE, se quer legitimar mais junto dos seus cidadãos e manter a sua credibilidade para o resto do mundo, tem de se democratizar. O que mais me preocupa é que parece que essa doutrina [da China] vai fazer escola. Uma notícia apontava mesmo para o facto de muitos países africanos estarem a ponderar alterar as suas constituições para reforçar o poder presidencial e até Donald Trump fez elogios a Xi Jinping. Vêm aí tempos perigosos e de alguma inquietação? Vêm. Temos uma situação muito ambivalente: existem ferramentas, acesso à informação, tecnologia e níveis educacionais altos que nos permitiriam gerir os nossos Estado-nações e organizações de forma mais democrática, dando mais respostas aos anseios das populações, mas não há como negar que este combate vai ser difícil nos próximos anos. Numas partes do mundo será mais arriscado do que noutras. O que é importante é que a sociedade civil à escala global seja capaz de criar redes de solidariedade que transcendam as fronteiras do Estado-Nação. Preocupar-se mais com o que está a acontecer na China e também em Macau e Hong Kong. Estarmos mais preparados para ajudar os nossos co-cidadãos de outras partes do mundo, porque os próximos anos vão ser difíceis e precisamos de deter a regressão no Estado de Direito e na democracia noutras partes do mundo, porque regressa sempre às zonas do mundo onde estamos. A sociedade civil portuguesa pode achar que não tem importância o que se está a passar do outro lado do mundo, mas tem, e isso acaba por reverter para Portugal. No caso específico de Macau, Portugal tem obrigações morais e políticas importantes enquanto garante da autonomia de Macau dentro do Direito Internacional. Em relação a esse ponto, Hong Kong tem um movimento independentista que não se verifica em Macau. O Reino Unido tem opinado muito sobre a questão de Hong Kong, mas Portugal tem evitado fazer comentários. À luz dessas obrigações de que fala, considera que o país deveria ter uma posição mais forte relativamente a Macau? Portugal deve ter uma posição mais atenta e mais activa. O Ministério dos Negócios Estrangeiros ou o Governo podem agir de forma mais discreta, e às vezes nem sempre pública. Mas acho que o devem fazer. A Assembleia da República (AR) tem a obrigação de agir de uma forma mais política e mais pública. É pena que não haja um acompanhamento regular da situação de Macau, com uma comissão parlamentar que reúna regularmente, que produza relatórios anuais. É uma pena também que os parlamentares portugueses no Parlamento Europeu não façam em relação a Macau aquilo que eu e a Ana Gomes fizemos em relação a Timor, de servirem de quase embaixadores de Macau junto do Parlamento Europeu. De facto, a comunidade política portuguesa não tem estado tão atenta quanto as obrigações morais e cívicas de Portugal em relação a Macau justificariam. São obrigações que estão plasmadas em instrumentos bilaterais de Direito Internacional, como é o caso da Declaração Conjunta. No caso específico de Macau, não estamos a falar de ingerência, de interferência nos assuntos internos da China, desde que nos mantenhamos nos limites que Portugal sempre soube respeitar. Só se olha para a questão económica e esquecem-se as questões sobre os direitos, liberdades e garantias, e o sistema político? Acho natural que o Governo português tenha uma visão marcada por um certo pragmatismo em relação ao que são os interesses económicos do investimento directo chinês em Portugal e do papel que empresas portuguesas possam ter no mercado chinês. Mas é importante que a AR não se sinta limitada por esse papel. O Parlamento deve ter capacidade de ter uma posição política, de acompanhar e recolher factos acerca da situação dos direitos, liberdades e garantias em Macau, onde vive uma comunidade portuguesa muito grande e diversa. Se há coisa que retiro das minhas conversas com portugueses em Macau é que estes têm vontade que esta informação passe para Portugal, de que estão atentos, preocupados também, e que gostariam que houvesse de Portugal uma atenção em relação à questão de Macau nos próximos tempos, para que o desenvolvimento harmónico desta sociedade, da sua autonomia e das suas liberdades, seja garantido. Até 2049, Portugal tem as suas responsabilidades e deve cumpri-las. Mas isso não passa pela política do megafone, passa por fazer perguntas. De cada vez que haja uma questão que possa pôr em causa a garantia dos direitos e liberdades, deve perguntar-se o que se passou. Passa também por ouvir mais a sociedade civil de Macau, com mais fóruns em que esse esforço seja feito. Esse papel deve ser feito pela nossa diplomacia, de uma forma mais discreta, mas também pela nossa AR. O Gabinete de Ligação teme que haja influências do movimento independentista de Hong Kong em Macau. Acredita que essa influência possa, de facto, acontecer? O movimento independentista de Hong Kong acaba, muitas vezes, por ser usado como uma forma de condicionar o movimento democrático. Não me queria pronunciar sobre as veleidades independentistas, porque está para lá de um limite que é preciso respeitar em relação à soberania e integridade territorial da China. Hong Kong e Macau pertencem à China. Acho natural que os movimentos, pela representação política, pelo pluralismo, se reforcem mutuamente de um sítio para o outro, na medida em que isso for a demonstração de um anseio político que cabe dentro da Lei Básica e dentro dos pressupostos da Declaração Conjunta. Ninguém deve declarar-se preocupado ou ameaçado pelo facto de as sociedades quererem viver de acordo com os compromissos que os Estados tiveram perante elas. E que acreditam que, até 2049, serão cumpridos. continue a ler a entrevista a Rui Tavares
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteVictor Mallet, escritor e editor do jornal Financial Times: Macau e HK “estão sob enorme pressão de Pequim” Há 30 anos que é repórter neste continente e há dez que vive em Hong Kong, onde edita a secção Ásia do jornal económico Financial Times. Convidado do festival literário Rota das Letras, Victor Mallet lamenta o aviso que levou ao cancelamento da vinda de três autores chineses e diz que nem Macau nem Hong Kong “têm feito um bom trabalho na preservação da sua autonomia” Deu um workshop intitulado “Cobrindo as notícias na Ásia e à volta do mundo”. Quais os principais desafios sentidos pelos repórteres na Ásia? Uma das coisas é o facto de se ter tornado muito difícil ser jornalista em muitos países, porque os Governos têm mais dificuldade em aceitar uma imprensa livre. Tem vindo a tornar-se cada vez mais um problema face ao que era habitual. O espaço normal para a operacionalização dos jornalistas, sobretudo se reportarem sobre política, ou questões controversas, tornou-se mais curto do que o normal. Há dez anos que vivo em Hong Kong e a situação está cada vez mais difícil. Não apenas na China, mas também em outros países, como o Cambodja, e até em países democráticos já não é tão fácil ser um repórter como era antes. Um dos problemas é que os jornalistas têm de enfrentar um difícil estatuto definido pelos Governos. Se és um empresário é fácil entrares num país para fazeres os teus negócios, mas se és jornalista é difícil entrares para fazeres o teu trabalho. Isso é uma vergonha e uma reflexão do aumento da repressão nesta região. Pode ser mais específico em relação às pressões que sente como repórter em Hong Kong? A razão pela qual estamos em Hong Kong é por ser um lugar onde ainda podemos exercer a nossa liberdade de expressão. Estando num órgão de comunicação internacional [jornal Finantial Times], sei que é cada vez mais difícil para os jornalistas locais fazerem isso, devido às pressões de Pequim. Temos visto que Pequim aumentou a sua influência na sociedade e no sistema político de Hong Kong nos últimos dez anos, e foi um aumento drástico. Os canais para a liberdade de expressão, ao nível do jornalismo e edição de livros, são menores, sobretudo desde o rapto dos livreiros. Os media não são robustos como costumavam ser, sobretudo os media chineses online e impressos. Em Hong Kong, o jornal South China Morning Post (SCMP) é um dos mais importantes diários de língua inglesa. Nota diferenças importantes, ao nível dos conteúdos editoriais, desde a sua compra pelo empresário Jack Ma [CEO da Alibaba]? Não tenho feito uma análise à cobertura que é feita pelo jornal, mas claramente conseguimos perceber uma diferença. Tornou-se um jornal mais próximo de Pequim e antes era muito mais independente. Acredito que Jack Ma não tentou influenciar a linha editorial do jornal, mas a cobertura é menos crítica face a Pequim do que costumava ser, e com menos qualidade, no sentido em que não reflecte a diversidade de opiniões que existe em Hong Kong. Ontem [quarta-feira da semana passada] vi um artigo sobre a Assembleia Popular Nacional (APN) , que dizia aquilo que as pessoas de Hong Kong deveriam fazer, e parecia um artigo padrão da APN sobre aquilo que devem pensar e fazer. É o ponto de vista da pessoa que escreveu o artigo, mas não houve uma tentativa de encontrar outros pontos de vista que pudessem discordar desta visão. Simplesmente reportaram o que as autoridades chinesas disseram e não pediram reacções de alguém em Hong Kong. Isso não é aquilo que o bom jornalismo deveria ser. O SCMP não está a reflectir as visões de todos os lados. No caso de Macau, conhece eventuais casos de pressões sentidas por parte da imprensa chinesa? Não estou muito familiarizado com os media de Macau ou com o sistema político. Mas tive conhecimento de que alguns convidados não vieram ao festival Rota das Letras pelo facto de ter sido sugerido de que a sua entrada não seria permitida em Macau pelas autoridades, porque a sua presença foi considerada hostil em relação à China, e isso é vergonhoso. Jung Chang, uma das autoras envolvidas, é uma das mais importantes a escrever sobre a China actualmente e é incrível como não pôde vir a Macau falar com os seus leitores, e acredito que há muitos em Macau, tal como em Hong Kong. Penso que Macau seja mais restritivo em relação a estas questões por comparação a Hong Kong. Se Jung Chang fosse convidada teria vindo a Hong Kong [a autora participou no último festival literário da região vizinha]. Mas se ela não pode entrar em Macau, isso sugere que há aqui mais restrições em relação à liberdade de expressão do que há em Hong Kong. Macau é o bom filho da China e Hong Kong o filho mau ou rebelde? Não colocaria as coisas assim de uma forma simplista, porque Hong Kong tem uma grande parte da população a ir de encontro ao que as autoridades querem e que é obediente, muito semelhante ao que se passa em Macau, talvez. Então não é simplesmente preto e branco. Ambos os territórios estão sob uma enorme pressão por parte de Pequim, e nenhum deles tem feito um bom trabalho na preservação da sua autonomia. Os movimentos pró-democracia dos dois territórios têm diferentes características, pois em Macau não existe a luta pela independência. Ainda assim, Macau tem vindo a receber sinais de Pequim, da existência do receio de que o território possa vir a ser contaminado por este movimento. Que comentário faz? Relativamente ao movimento independentista de Hong Kong, no ano passado, e comparado com os últimos dez anos, esse movimento fortaleceu-se, e há dez anos não existia, de todo. Então algo aconteceu nesse período para levar tantos jovens a não gostarem de Pequim e do seu próprio Governo e a quererem a independência, apesar de saberem que é algo completamente irrealista. Algo correu mal na maneira como Hong Kong geriu este processo e também na forma como Pequim geriu o dossier Hong Kong. A conclusão óbvia, para mim, é que Pequim estar a ter uma abordagem dura contra qualquer expressão de autonomia, simplesmente alienando essas acções. Isso são más notícias para as pessoas de Hong Kong, porque há aqui um claro conflito. São também más notícias para Pequim, porque significa que alienou muitas pessoas em Hong Kong. Sobre a mudança na constituição chinesa, que vai permitir o fim do limite de mandatos do presidente do país, que perspectivas coloca no futuro do país na relação que possui com outros países? Penso que a parte mais interessante é que, há dez anos, as pessoas que estavam fora da China pensavam que o país estava a reformar-se do ponto de vista económico e também político, no que diz respeito a uma maior abertura. Achava-se que o país poderia ser mais democrático ou com um sistema político mais representativo. Isso mudou com esta alteração da constituição, a mensagem é clara, apesar de termos vindo a notar alguns sinais. A mensagem foi reforçada: isso não vai acontecer, a China não vai tornar-se mais representativa e democrática. O poder vai acumular-se numa só pessoa e isso vai fazer com que as relações com os outros países estejam mais numa base de confronto. A China tem uma economia poderosa, e também como país, pois tem uma grande população e um grande exército e o resto do mundo tem de lidar com isso, com esse aumento do poder. Escreveu um livro sobre a poluição do rio Ganges, com o nome “River of Life, River of Death: The Ganges and India’s Future”, publicado o ano passado. Como surgiu esse projecto na sua vida? Estamos nos dois lados do Delta do Rio das Pérolas e todas as grandes civilizações nasceram nas margens dos rios. Isso aconteceu com Hong Kong, Macau, Xangai, Paris, Londres. Houve razões para isso, no sentido em que o rio trazia vida, fertilidade e comércio. O rio Ganges, considero, é um dos mais importantes no mundo, não apenas porque é um dos maiores no mundo mas porque há muita gente a depender dele. Há milhares de pessoas na Índia que dependem deste rio, na zona norte e no Bangladesh também. É uma área densamente povoada e o rio está a ser ameaçado por várias razões, e a poluição é uma delas, incluindo a poluição industrial. Há também a extracção de água para a agricultura, então há zonas que pura e simplesmente começaram a secar. Estes tipos de problemas acontecem com rios em todo o mundo, na China, Europa. Quando temos uma fase rápida de desenvolvimento económico, com um crescimento massivo da população na Índia, como aquele que observamos hoje em dia, os rios são, muitas vezes, destruídos com a poluição, desaparecem. O lado optimista disto é que os rios podem ser restaurados com o encerramento das fontes de poluição, e temos vários exemplos. Neste momento é um assunto sensível em todo o mundo, e temos um debate sobre a poluição do rio Nilo, no Egipto, por exemplo, ou os rios chineses, os cinco grandes rios da Ásia. Estou contente com o facto de ter conseguido escrever sobre este assunto. Espera que o seu livro possa mudar algo? Espero que sim. Uma das coisas extraordinárias é que o PM indiano tem vindo a colocar a poluição na sua agenda, e falou muito sobre a necessidade de melhorar a higiene e saneamento à volta do rio, porque todos os dias morrem muitas pessoas com doenças causadas por mau saneamento, mortes essas totalmente desnecessárias. Quando foi eleito pela primeira vez, em 2014, fez desse um grande tópico. O problema é que muitas coisas não foram feitas desde então, e essa é uma reflexão de uma inactividade deste Governo mas do quão difícil é, para qualquer Governo indiano, realizar coisas. Não foi o primeiro governante a falar da necessidade de limpar o rio Ganges.
Sofia Margarida Mota Entrevista MancheteWang Chunming, investigador: “A medicina chinesa é uma forma de entender o mundo” É um homem da ciência que usa a bioquímica na procura da magia das plantas. Para Wang Chunming, a medicina tradicional chinesa tem de se afirmar pela cientificidade e esse é o seu trabalho no Instituto de Ciências de Medicina Chinesa da Universidade de Macau. A par da vida no laboratório, o professor é um admirador da cultura portuguesa e está a aprender português [dropcap]D[/dropcap]o que falamos quando nos referimos a medicina tradicional chinesa? É preciso ter atenção às palavras. Medicina Tradicional Chinesa (MTC) e medicina chinesa não são exactamente a mesma coisa. O facto de termos a tradicional não é bom nem mau, mas sabemos que na actualidade tudo muda. Hoje em dia, usamos cada vez mais tecnologia para estudar e desenvolver a medicina chinesa. Podemos dizer, de certa forma, que o que fazemos se insere na área da MTC na medida em que integramos teorias e conhecimentos clássicos. Mas também usamos a tecnologia moderna, de ponta, e baseamo-nos nas abordagens científicas. Se me perguntar o que é especial nesta área, penso que a medicina chinesa é, acima de tudo, um dos tipos de medicina que existem. Por outro lado, tem sido usada ao longo de milhares de anos, não só na China mas em grande parte da Ásia e tem vindo a ser comprovada, em vários aspectos, como útil para ajudar na manutenção da saúde das pessoas numa perspectiva médica. Há ainda uma perspectiva cultural e económica em que a MTC tem muito a dizer. Culturalmente, a MTC vê o paciente de uma forma muito holística. Estudiosos de várias áreas procuram conhecimentos interdisciplinares para descobrir o mistério, a beleza, e se calhar também com algum mito à mistura. Mas não nos podemos esquecer que estes aspectos estão fortemente entranhados na cultura asiática, em particular na China. Sob uma perspectiva económica, sabemos que o Governo de Macau está a esforçar-se por diversificar a economia local apostando na indústria da medicina chinesa. Se olharmos em perspectiva para a China, podemos ver que têm sido criadas cada vez mais políticas e mais regulamentação com o objectivo de encorajar o desenvolvimento e a pesquisa no ramo da medicina chinesa de forma científica. Se olharmos para a região do Delta, e em concreto Macau, podemos ver que, economicamente, a medicina chinesa está a assumir um papel muito importante. Podemos então dizer que o que difere a MTC da MC é a tecnologia? E os princípios mantêm-se? Sim, os princípios a que se refere de carácter mais filosófico de como encarar o ser humano mantêm-se, mas penso que, neste momento, esse aspecto é apenas uma das partes da medicina chinesa. Hoje em dia falamos de ciência. A ciência é, de facto, a forma como vemos o mundo e como o entendemos, e neste sentido também incluímos os princípios e a codificação que fazemos dele. Mas o que é ciência e o que não é? Os académicos da área da filosofia debatem esta questão, é um tópico constante. A medicina chinesa é uma forma de entender o mundo e em particular a saúde, a vida e a morte. Isto faz-se também com o entendimento de cada parte do nosso corpo. De um ponto de vista mais antigo, uma forma de perceber o mundo, é entendendo o corpo. Mas há ciências que colidem umas com as outras. Sabemos agora mais acerca do funcionamento do nosso fígado, por exemplo, e isso acontece por causa dos avanços da ciência. Mas também sabemos que é necessário um equilíbrio. Por exemplo o conceito de Yin Yang vai nesse sentido, da necessidade e equilíbrio em diferentes aspectos da vida e do próprio universo. Podemos dizer que a medicina chinesa contribui e é parte da civilização humana na sua busca da compreensão do mundo. Podemos usar diferentes tipos de tecnologia e de conhecimentos científicos para tentar entender porque é que existe o Yin e o Yang. Não podemos dizer que concordamos ou discordamos destes conceitos antes de os compreendermos na sua totalidade e especificidade. Por isso, aqui tentamos entender, por exemplo, o que é que um determinado tipo de planta contem. Para isso, usamos a química e a bioquímica para entendermos porque é que essa planta e os seus componentes podem promover o crescimento ou, pelo contrário, matar células. Mas as posições muitas vezes são opostas ao encarar as medicinas ocidental e chinesa. Acho que neste campo há dois extremos que temos de evitar. Um deles é que tudo o que seja relacionado com a medicina chinesa é falso. Já sabemos que não é bem assim e que este tipo de conhecimento tem sido actualizado. O outro extremo é pensar que a medicina chinesa, que tem beneficiado o ser humano ao longo de muitos séculos, tem de ser um conhecimento que funciona por si só e rejeitar a contaminação do ocidente e das suas teorias. Estes dois extremos, em que podemos inserir a maior parte das pessoas, não são para ser tidos. Não concordo com nenhum deles. Penso que, como cientista, sendo a minha formação em bioquímica, posso dizer que nenhuma da minha preparação foi na área da medicina chinesa. Mas as minhas pesquisas acabaram por se cruzar, obviamente, com o estudo de produtos naturais e logo, com a medicina chinesa. Tento perceber como os produtos naturais funcionam e só depois tentar tirar conclusões em vez de andar nos extremos. Como disse a sua formação é bioquímica. Como é que foi realmente o caminho até à medicina chinesa? Foi um caminho muito natural. Além dos tratamentos conhecidos e utilizados pela MTC, como a acupunctura por exemplo, esta área trata essencialmente de plantas e a questão é como é que determinas que as plantas funcionam. As plantas são de facto um recurso fundamental da medicina, mesmo na medicina ocidental. Originalmente, a aspirina tem origem numa componente de uma árvore. Antes do comprimido estar completamente desenvolvido, não tínhamos muitos mais recursos do que a natureza. Muitas das moléculas da natureza têm componentes activos úteis na medicina incluindo, as plantas usadas na medicina chinesa. Por isso, a bioquímica das plantas é um fundamento para ser aplicado na medicina. Depois de me formar em bioquímica, decidi aprofundar os meus estudos em biologia aplicada e acabei por fazer o doutoramento em Cambridge, em bioengenharia. Nas minhas pesquisas da altura dediquei-me ao estudo de uma substância, em especifico um açúcar, que está em todo o lado e que é componente das nossa células, da nossa comida, de tudo. Percebi que estas partículas, quando tratadas, são essenciais no âmbito, por exemplo, da medicina regenerativa. As pessoas que trabalham na medicina tradicional chinesa muitas vezes não sabem que estas moléculas existem. Penso que isto é um bom exemplo do que é uma ponte entre os dois mundos, da medicina ocidental e chinesa. Quando me candidatei a este emprego disse que não tinha formação em medicina chinesa e que era especialista em bioquímica mas que podia contribuir com os meus conhecimentos científicos para a investigação na medicina chinesa. Fui aceite. Há quem defenda, mesmo dentro da comunidade científica que ambas as medicinas, como disse, são precisas. E há vozes que definem que a medicina chinesa previne e a ocidental é mais dirigida ao tratamento. O que acha? Não diria que concordo totalmente com isso mas, de certa forma, esse tipo de pensamento faz sentido até certo ponto, especialmente na região de Guandong onde as pessoas fazem caldos com diferentes plantas para tratar de alguns mal estares sem, no entanto, estarem diagnosticadas com uma doença em particular. Nesse sentido, se considerarmos a combinação de alimentos e ervas faz sentido falarmos em prevenção. Mas será que a medicina chinesa só serve este tipo de propósito? Disso não tenho a certeza. A comprovar temos o Nobel da medicina de há dois anos que incluiu uma investigadora da MTC. Acha que o ocidente se começa a interessar pela medicina do oriente? Não tenho conhecimento da postura de todos os países, mas nalguns a medicina chinesa tem sido cada vez mais reconhecida. Lá está, para isso é importante que continue se faça mais investigação científica para que possa ser acreditada. Tenho algumas histórias engraçadas. Por exemplo, num encontro em Inglaterra com outros cientistas que sabiam da minha ligação à medicina chinesa fui cumprimentado por um colega com um irónico “boa tarde, este é o nosso mestre do voodu”. Depois levei-os a conhecerem os laboratórios em que trabalhava e ficaram absolutamente surpreendidos com a qualidade dos equipamentos e o desenvolvimento das nossas pesquisas. Acabaram por sugerir uma colaboração dentro da Comissão Europeia. Esta história fez-me reflectir. Em muitos casos, as pessoas de diferentes culturas e de diferentes países, nomeadamente os responsáveis pela produção legislativa, tiram conclusões e avançam com medidas com demasiada facilidade. O que é que esta cientificidade vai trazer, por exemplo, aos medicamentos? Muita gente aponta a toxicidade de alguns dos produtos da medicina chinesa. E neste sentido, o nosso trabalho também é muito importante. Por exemplo, temos dois tipos de toxicidade a considerar. Um é o externo, que vem de fora. É a poluição que pode vir através dos metais pesados que estão no ar, nas águas ou no solo. Esta toxicidade também pode vir do uso de pesticidas nas plantas. Por muito ligeira que seja esta toxicidade nas plantas, para nós é sempre extremamente prejudicial. É por isso que neste instituto estamos a desenvolver instrumentos capazes de detectar este tipo de toxinas, por muito reduzidas que sejam, e diminui-las. Outro tipo de toxicidade é a interna. Aqui podemos dizer que uma planta pode ser conhecida por ser medicinal há muitos anos mas pode ser tóxica porque tem componentes activos que o são. Qual é o nosso trabalho? É tentar comparar os níveis dos componentes e tentar equilibrar os componentes benéficos de forma a diminuir os tóxicos. Ainda assim, acha que as plantas podem vencer os medicamentos químicos? Não. Por várias razões. Toda a pesquisa e produção envolve mais tempo e dinheiro. Por outro lado, o seu efeito, mesmo que efectivo, é sempre também mais demorado. No entanto, isso seria o ideal. Sei que se interessa pela cultura e língua portuguesa. De onde vem este interesse? Sou um grande apreciador da cultura portuguesa e aprecio em especial os vinhos. Também estou a aprender a língua. Enquanto investigador fascina-me a compreensão de sistemas complexos e a língua portuguesa é um deles. Por outro lado, agora estou em Macau, não sei por quanto tempo, mas se um dia me for embora quero levar alguma coisa comigo que seja especifico deste lugar. Acho que é a cultura portuguesa e dentro dela a sua língua.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteCecília Ho, artista e fundadora da PHOTO MACAU Art Fair: “Macau está perdido na arena internacional” De 24 a 26 deste mês, Macau é o palco da primeira feira de arte dedicada à fotografia, a PHOTO MACAU | Art Fair, criada pela artista nascida no território, Cecília Ho. Entre as obras expostas contam-se trabalhos de Horst P. Horst, Steiner e Marina Abramovic, e os rituais de Confúcio recriados por Jeffrey Shaw. A artista espera que o Governo crie condições que torne estes eventos mais viáveis para que as galerias internacionais não tenham obstáculos à mostra dos seus autores O que a levou a criar um evento como a PHOTO MACAU? Não há muitas feiras de arte especializadas na área da fotografia, embora haja muitas feiras de arte de cariz internacional. A Art Basel de Hong Kong é um bom exemplo. Há cerca de 20 anos, Paris teve a primeira edição da Paris Photo e, com a sua continuidade, acabou por tornar-se um evento de renome e hoje é um dos acontecimentos de topo em termos de reconhecimento internacional. Tenho pensado nesta coisa de uma feira de artes dedicada à fotografia e lembrei-me que na Ásia não havia nenhum evento equivalente. Porque é que escolhi a fotografia? Nos últimos dez anos a China tem sido um dos maiores compradores, senão mesmo o primeiro, no mundo, quando falamos de arte no geral. Quando digo mercado de arte estou a incluir pintura, escultura, fotografia, vídeo, porcelana e antiguidades. A China é o comprador numero um a par dos Estados Unidos. Quando vamos para o mercado de nichos, em que só incluímos uma expressão artística, na fotografia o maior mercado é o americano, que representa cerca de 60 por cento, seguido de Inglaterra e França. A China, apesar de ser o primeiro no mercado de arte em geral, na fotografia está ainda muito aquém, representando apenas cerca de dois por cento. Porque é que isso acontece? Porque a fotografia ainda é muito mais popular na Europa e na América em comparação com a Ásia. Mas penso que isso pode mudar. Os chineses aprendem depressa e os agentes também. Pensei nisto e, já que nasci cá, apesar de ter deixado a RAEM há 25 anos, regressei há 18 meses para implementar este projecto. Sempre quis fazer alguma coisa pela minha terra. Olhei para isto e pensei neste conceito de mercado de arte aplicado à fotografia. Hong Kong tem o Art Basel, que inclui todos os tipos de arte, e Macau pode ter o seu papel como hub do mercado asiático especializado em fotografia. Alguém tinha de fazer alguma coisa e dar início a alguma coisa para que isto acontecesse. Pensei que seria a altura de contribuir. Falei com algumas pessoas que me deram muita inspiração e mudei-me para cá para fazer de Macau o centro da fotografia na Ásia. Quais foram os maiores desafios para criar este evento em Macau, tendo em conta que é algo completamente nova aqui? Foram muitos, mesmo muitos. Por exemplo no que respeita a impostos. Os expositores que trazem trabalhos para mostrar podem, normalmente, estar descansados porque o transporte de obras é livre de impostos em vários países asiáticos como na Coreia, no Japão, em Singapura, etc. Mesmo no Art Basel as galerias que vêm expor obras por alguns dias não precisam de se registar e pagar impostos. Mas isto não acontece em Macau. Mesmo que as galerias queiram trazer cá os seus autores e trabalhos fotográficos para participar neste evento, por três dias ou quatro dias, precisam de pagar impostos e se existirem vendas têm de pagar ainda mais. Não é que eu não queira que as pessoa não paguem impostos ao Governo mas pagar imposto neste caso significa que as galerias têm de vir primeiro a Macau, pagar o voo para fazer o registo da empresa antes de poderem estar elegíveis para o pagamento de impostos. Tudo isto não me está a ajudar. Quando os galeristas me perguntam como é o sistema fiscal em Macau neste respeito, depois de ouvirem a minha resposta dizem que nestas condições já não estão interessados. O Governo quer atrair para o território muitas convenções e exposições, mas sem um apoio noutros sentidos não é possível. O discurso do Governo é, contudo, de promoção das indústrias culturais no território. Eles não têm a noção da realidade para poderem avançar com a produção de legislação. Penso que precisamos de reformar e renovar muitas medidas especialmente ligadas aos impostos. As empresas não se vão deslocar a um território para se registarem num notário de Macau que nem sequer consegue saber se a assinatura é verdadeira se se tratar, por exemplo, de uma pessoa que vem da Alemanha. Macau está completamente perdido na arena internacional. O Governo, especialmente a secretaria da Economia e Finanças, tem de trabalhar muito mais. Ainda usam a lei dos portugueses antes de entrarem na união europeia. Estou com problemas graves. Gostaria de fazer alguma coisa mas o Governo permite que o sistema local continue desadaptado e cheio de falhas. “O Governo, se impedir quem quer que seja de entrar, deve ter uma boa razão porque precisam de enfrentar a imprensa e o julgamento do mundo internacional.” Existem muitas galerias que se recusam vir a Macau? Tive muitas a dizerem que sim num momento inicial. Depois quando expliquei o sistema de tributação responderam que tinham muita pena mas que, desta forma, não podiam. Estou muito desiludida. Além deste contratempo, como é que descreveria os trabalhos que vamos ver neste evento? Temos algumas galerias de gabarito internacional. Estou também muito orgulhosa, pelo Photo Macau 2018 ser uma mostra do que pode vir a ser no futuro. Temos galerias da Alemanha, Coreia, Taiwan e França. Conseguimos juntar um projecto incrível. Além de ser de alta qualidade temos autores pioneiros nas suas áreas de trabalho. Por exemplo, a galeria Osage de Hong Kong, que vai mostrar algumas obras baseadas no conceito de imagens em movimento que são indescritíveis e que precisam ser vistas. Temos também um programa cultural e educacional muito forte. O objectivo é formar o espectador e os residentes. Vamos ter também três exposições de topo. Uma de Horst P. Horst que foi fotógrafo da Vogue dos anos trinta aos setenta. Tem imagens da Marilyn Monroe, Dali, Channel e Jacqueline Kennedy. Vai ser um evento maior em Macau. A sua última exposição foi na Rússia há quatro anos. Vamos ainda apresentar inéditos: Vídeos dos anos setenta de Mike Steiner e da Marina Abramovic. Por causa dos direitos de autor, este trabalho não tem sido dado a conhecer. Lutei para ter este conjunto de vídeos e é o grande destaque desta primeira edição da Photo Macau. O terceiro destaque vai para uma instalação de vídeo do “Remaking the Confucian Rites” de Jeffrey Shaw. É uma instalação e um remake de uma cerimónia ritual confucionista em imagens sem palavras. Os rituais de Confúcio têm estado sempre retratados em palavras nos seus livros e aqui o artista faz uma abordagem diferente. Depois de dez anos de pesquisa com a Universidade Tsinghua, o artista reescreveu estes rituais em imagens, o que é muito interessante. Como é que explica que Macau, tão perto de Guangzhou, Taipé e Hong Kong, não tenha infraestruturas culturais de relevo? Macau tem um movimento burocrático e lento que desacelera o desenvolvimento que deveria de ter. Tem muito que ver com o próprio processo de decisão. Por exemplo, uma cidade tão rica como Macau não tem sequer o seu Moma, o seu museu para arte contemporânea. É incompreensível. Há artistas aqui que não são vistos e por isso não têm condições para poderem ser conhecidos no mundo. Não têm oportunidade de trocar conhecimentos com o resto do mundo. Agora voltei e vou usar todos os esforços, contactos e know how para tentar melhorar o panorama artístico local. Os artistas estão a trabalhar em silêncio, não têm um espaço para mostrar o seu trabalho internacionalmente. Macau está a fazer uma ponte para o campo internacional e espero que o projeto Photo Macau leve não só Macau ao mundo, mas que também traga o mundo a Macau. Assim, a arte local terá condições para se desenvolver. Espero que este evento também faça a diferença. Há 12 anos, sem a Art Basel, Hong Kong não seria o hub de arte asiática que é hoje. A Art Basel fez uma grande diferença na definição do mapa de Hong Kong no mundo a nível cultural e artístico. Macau ainda não tem nada e é preciso fazer alguma coisa. Espero que Macau me dê uma oportunidade e que o Governo me apoie na realização deste meu sonho de transformar Macau numa cidade de arte. Porque é que escolhi Macau e não outro local? Porque Macau é a minha cidade natal e tenho uma relação especial com este lugar. Macau é agora parte do projecto do continente da Grande Baía e está mesmo no centro desta Grande Baía. Entretanto, a ponte que liga o território a Zhuhai e Hong Kong vai começar a ter circulação. Geograficamente, Macau vai estar ligado a cidades muito importantes e temos de agarrar esta circunstância antes que seja demasiado tarde. É por isso que a primeira edição tem de estar no terreno este mês. Não é possível esperar. Não quero que outros tenham a mesma ideia e a ponham em prática. “Sempre quis fazer alguma coisa pela minha terra.” E a sua carreira enquanto artista? Tenho me esforçado tanto para por de pé este projecto, e para que seja um sucesso, que ultimamente tive de colocar de lado a minha carreira como artista. Mas sinto muito a falta da minha vida de artista. Estou a caminho de realizar os meus dois sonhos. Um é que Macau seja uma cidade conhecida pela arte e especializada na área da fotografia e do vídeo. Depois é desenvolver a minha carreira. Tem receio de que alguns artistas que convide possam não entrar em Macau? Penso que o Governo, se impedir quem quer que seja de entrar, deve ter uma boa razão porque precisam de enfrentar a imprensa e o julgamento do mundo internacional. Uma das razões porque escolhi Macau é porque acredito que o território tem uma forma aberta de olhar a arte comparativamente, por exemplo, a qualquer outra cidade na China. Penso também que Macau não tem ainda censura sobre a arte. • Website oficial da PHOTO MACAU | Art Fair
Sofia Margarida Mota Entrevista MancheteJoão Miguel Barros, fotógrafo, sobre a sua exposição no Museu Berardo: “Para ser vista como quem lê um livro” É inaugurada hoje, no Museu Berardo em Lisboa, a exposição de João Miguel Barros “Photo Metragens”. São 14 histórias traduzidas em imagens, palavras e vídeo dentro de um projecto que não se fica por aqui [dropcap]O[/dropcap] que é que podemos ver em “Photo-Metragens”? “Photo-Metragens” é uma exposição que é para ser vista como quem lê um livro de short–stories. É uma síntese adequada, penso eu, do que é este projecto que inclui imagem, palavras e vídeo. Trata-se, portanto, de uma exposição que inclui 127 imagens, a maioria em grandes formatos, em A0 e até maiores. A exposição está organizada a partir de 14 capítulos, com um número diversificado de imagens. Uma das particularidades é que cada capítulo inclui um texto ficcionado, de que é parte integrante. Finalmente, um desses capítulos tem também um vídeo de quase uma hora. Esta é a edição de 2018. Quer isto dizer que este projecto está pensado para ter continuidade no futuro. Tenho o propósito de fazer edições da “Photo-Metragens” a cada dois anos, com o mesmo formato e obviamente com estórias diferentes. Sempre com imagem e textos ficcionados, e provavelmente com uma componente maior de vídeo. Algumas das imagens, correspondendo sensivelmente a um/quarto do que será exposto no Museu Berardo, foram já mostradas na exposição que fiz em Fevereiro do ano passado na Creative Macau. Tudo o resto é material novo. Mas mesmo as fotografias que já foram exibidas, foram, entretanto repensadas, e muito apuradas. As imagens que vão ser mostradas em Lisboa são as versões finais e últimas do projecto e não serão repetidas. Como é que surgiu a ideia de contar estas estórias? Surgiu como resposta à ideia politicamente correcta de que as exposições têm de ter uma narrativa. Não é algo com que concorde em absoluto, mas resolvi não contrariar o “destino”… Eu ainda não tenho nenhum projecto temático devidamente estruturado e com dimensão que possa ser mostrado autonomamente. E o honroso convite do Museu Berardo colocou-me um desafio interior, que tive de resolver e que, confesso, demorou algum tempo a estruturar. No fundo, tudo se resumia a dar uma certa unidade conceptual a um projecto artístico assente na imagem, a que eu depois juntei a escrita, e que tivesse alguma “lógica”. O espaço do Museu, bastante generoso aliás, que foi destinado a esta exposição, acabou por ser inspirador do resultado final. E foi a partir daí que cheguei ao resultado da “exposição que se vê como quem lê um livro de short-stories”. Um livro de contos é um conjunto de estórias, com autonomia entre si e que versam temas por vezes muito diferentes. “Photo-Metragens” é um pouco isso. Cada capítulo inclui uma história independente. E penso que é essa diversidade que lhe dá a riqueza do conteúdo. Deixe-me ainda acrescentar o seguinte. Cada capítulo da exposição contém uma estória que pode ter potencial para ser desenvolvido autonomamente. E, depois, seguir um caminho independente. E, provavelmente, isso irá acontecer num futuro próximo em relação a uma dessas short-stories, que tem potencial para se transformar numa long-story. Vamos ver. Como pensou a exposição e a relação concreta com o espaço? Esta exposição foi pensada não só em função do espaço, como não podia deixar de ser, mas também na sua forma de representação. Quem a visitar não irá encontrar apenas imagens presas à parede. Por exemplo, o primeiro capítulo chama-se “Sentido Único” e é, em rigor, uma grande instalação de trinta imagens em formato A2, que estão colocadas no interior de uma moldura de mais de 4 metros de largura por quase três de altura, sendo que as ampliações estão presas em cabos de alumínio esticados de alto a baixo dessa moldura. A solução de imagens suspensas em cabos metálicos finos foi adoptada em mais dois capítulos da exposição. Por outro lado, houve um cuidado especial com a iluminação, que exigiu um estudo detalhado e soluções novas devido às qualidades do papel que utilizo, que é um papel profissional metalizado, mas que reflecte muito a luz. Este papel projecta as imagens de forma diferente do que é normal, mas cria dificuldades acrescidas em relação ao tipo de iluminação a adoptar. Que tipo de histórias nos conta? Encontram-se no conjunto temáticas muito diferenciadas, desde a paisagem ao boxe, ao trabalho nocturno e à sombra dos holofotes, às árvores (que é um tema que me fascina), e ao movimento corporal. Pode dar um exemplo concreto? O capítulo primeiro, “Sentido Único”, que referi, é composto por 30 imagens que são detalhes de um enorme viaduto em Xangai, que tem vários níveis de circulação. Quando se olha para o conjunto a sensação que se tem é a de se estar perante um puzzle confuso de detalhes. Ou seja, a percepção que transmite é justamente a oposta daquela que o título induz. Mas, na verdade, não há na vida sentidos únicos e há sempre a possibilidade de seguir por caminhos diferentes. Outro dos capítulos deu o título à exposição de Macau. Chama-se “Entre o Olhar e a Alucinação” e é composta por um tríptico com uma imagem quase lunar e, depois, a misteriosa silhueta de um cão a olhar para outro. Mas o capítulo que provavelmente poderá chamar mais atenção é o que retrata alguns momentos de um intenso combate de boxe a que assisti em Macau. São imagens fortes. Esse capítulo chama-se simplesmente Homenagem, mas, na verdade, era para se chamar “Homenagem a um Perdedor”, porque se centra num lutador negro do Gana, que perdeu o combate. “Um olhar que possa registar todos os pormenores até à complexidade das coisas, que através de uma minuciosa observação e num exercício de natureza sensível ou intelectual permita que as imagens nos saibam devolver e suscitar afectos e memórias”. Pode comentar esta afirmação? Todos nós vivemos uma vida intensa e complexa em termos visuais, emocionais e ocupacionais. Tudo nos solicita, tudo nos ocupa e, simultaneamente, tudo nos distrai. Quando se faz fotografia o nosso olhar é ajustado e muda por vezes radicalmente a forma de vermos o que nos rodeia. Olhamos em volta e muitas vezes o que ressalta é o ângulo que poderia dar um bom registo, o detalhe que serviria para fazer uma excelente fotografia e por aí adiante. Algumas das imagens da Photo-Metragens são de uma enorme simplicidade. Por vezes são registos de uma certa banalidade. E apenas isso. Mas podem ser, também, uma surpresa porque as nossas permanentes solicitações muitas vezes não nos deixam tempo para esse registar das coisas pequenas que, por vezes, são maiores do que podemos supor. A exposição é com imagens a preto e branco. Por quê? Eu fiz uma opção, que posso dizer incondicional, pela fotografia a preto e branco. Estou convicto de que dificilmente irei alterar este caminho. E ao longo dos anos, depois de muitas exposições já visitadas, de idas regulares às feiras de fotografia, o meu olhar tem vindo a ser treinado, cada vez mais, tornando óbvia a opção pela fotografia a preto e branco. Não tenho nada contra a cor, como é óbvio. Há fotografias e trabalhos a cor fabulosos e que, provavelmente, sem essa opção da cor perderiam alguma coisa. Muitas delas têm justamente como objectivo o contraste que as cores permitem e o efeito emocional que podem transmitir. Mas esse não é o lado que me interessa. O meu problema com a cor na fotografia é que nos pode distrair tremendamente do objecto e da essência do objecto registado. É um outro registo, e que acaba por se sobrepor a tudo. Faça a experiência. Entre num espaço com trabalhos expostos e olhe de forma genérica e abstracta. O que capta em primeiro lugar são as diferenças cromáticas do que tiver à frente, e não as formas retratadas. É, antes, a intensidade dos vermelhos, ou dos azuis, e de outras cores, o modo como essas cores se espalham e ocupam o espaço impresso. Só depois, num segundo momento, e quando se conseguir abstrair ou recompor desse choque cromático, é que consegue entrar na essência da imagem. Isto se a essência não for, obviamente, o tal choque cromático porque, nesse caso, fica por aí! A minha opção pelo preto e branco é claramente uma opção pela substância e pela prevalência do conteúdo que normalmente só a fotografia a preto e branco permite. Onde recolheu as imagens? Foram escolhidas um pouco em vários sítios. Mas a maioria é da Ásia e de Portugal. O que diria da mediatização/banalização da fotografia na actualidade? A sua pergunta seria um bom pretexto para uma outra conversa, em especial se a questão da mediatização da imagem se associasse à manipulação da imagem ou, a um outro nível, se se pensasse nos diversos veículos que as sociedades contemporâneas têm para que a fotografia se projecte nesse espaço mediatizado. E para a conversa ter utilidade teríamos de distinguir vários níveis de questões sobre essa ideia de “mediatização da fotografia”. Mas essa não é o tema de hoje. O que agora me parece de evidenciar é que os meios de comunicação formais e informais vieram dar actualidade à fotografia, dando-lhe uma importância acrescida no contexto das sociedades contemporâneas. Nos últimos tempos tenho-me interrogado é sobre um outro fenómeno que decorre dessa mediatização: o modo como se tem valorizado a fotografia como objecto de arte com valor nos mercados de arte. A fotografia é actualmente um bem artístico relevante, graças a essa mediatização. Há obras que começam a atingir valores significativos, criando um mercado de investimento importante e com um potencial de crescimento muito grande. Mas há perversões. Porque essa mediatização valoriza no mercado o bom, mas, algumas vezes, o mau e muito mau. Como também permite que facilmente se possa esquecer o bom e o muito bom. © João Miguel Barros #04 Homenagem Ainda menino usava panos enrolados nas mãos para bater em sacas cheias de farinha. Enrijava os músculos, ouvira dizer. Queria crescer com o corpo cheio, acima de tudo para chamar a atenção das miúdas mais engraçadas do bairro. Eram essas as suas rotinas de tempos livres, demasiado livres. Mais velho, começou a usar o corpo em combates a sério. Alimentava-se da ânsia de esmagar o adversário, mostrar o seu lado feroz e implacável, mas já não o de alimentar o sonho de namorar com a mais bonita do bairro. Apenas bater. Para ganhar. Ao mesmo tempo ia engrossando o corpo, sem tempo para reforçar a fluidez da mente. Sim, sabia bater. Era conhecido por bater forte, de forma implacável, até inteligente. Ganhava. Outras vezes perdia. Mas, a mais das vezes, ganhava. Com o tempo, e sem tempo, passou a viver enclausurado nas cordas do ringue. Batendo. Levando. Chorando. Rangendo os dentes protegidos. E ocasionalmente sorrindo de raiva. Sim, sorrindo. No seu último combate perdeu os sonhos da sua vida. Mas saiu inteiro, pelo seu pé, continuando a sorrir.
João Luz Entrevista MancheteRogério Miguel Puga, académico: “Forbes reforçou a fortuna em Macau” Até à fundação de Hong Kong, Macau era a porta de entrada na China, facto que levava a que muitas famílias anglófonas se fixassem no território administrado por portugueses. O cruzamento entre fontes em língua inglesa e portuguesa permitiriam ao investigador Rogério Miguel Puga desvendar o século XVIII e XIX de Macau e da região A passagem de comerciantes britânicos por Macau originou uma forma linguística própria. Qual a dimensão identitária deste dialecto? O chinese pidgin english foi uma língua comercial que primeiro faz um decalque do crioulo, do papiação de Macau, e que depois os ingleses e os americanos em Macau utilizam para falar com os chineses. É uma língua comercial, com uma estrutura uma estrutura sintáctica muito básica. Não chega a ser crioulo, o pidgin passa a crioulo quando as crianças aprendem esse pidgin como língua nativa, como nunca se instalou nunca passou a crioulo. É daí que vêm as expressões como “long time no see”, “no can’t do”, são expressões de chinese pidgin english, traduções directas do cantonense e que entram na língua inglesa em Macau e em Cantão no século XVIII e XIX. Como a palavra “savvy” que vem do português “saber”. O pidgin morreu, ninguém o fala, mas o primeiro relato de viagem que fala no século XVIII do pidgin english é quase todo português. Surge com um chinês a perguntar a um inglês “queles pequena ou glande whole”, “queres uma prostituta alta, ou baixa”. O pidgin começa a ser um decalque directo do português, com a palavra whore sem o fonema “r”. Quando os americanos e os ingleses regressam aos seus países continuam a utilizar estas expressões, são copiadas e acabam por entrar na língua inglesa. Esse chinese pidgin english passa a ser um traço identitário dessa comunidade comercial que viveu no sul da China, que regressou multimilionária e que o pidgin como tique de alguém que esteve na China para fazer “show off” e criar uma noção de identidade. O chinese pidgin inglês não teve a penetração, durabilidade e identidade do patuá. Não, porque os ingleses eram temporários aqui. Vinham com a Companhia das Índias e iam embora. Mas foi falado em Macau, nos portos todos que foram abertos depois da Guerra do Ópio e em Hong Kong. Em Hong Kong desaparece nos anos 50, mas ainda hoje se utiliza muito a expressão “Kowloon Side”, isto é uma expressão fóssil do chinese pidgin english que ficou no dia-a-dia, mas que desapareceu com a comunidade mercantil e a internacionalização do inglês no século XX. Os britânicos e norte-americanos que vinham para Macau tinham uma vida social muito particular. Quais as suas especificidades? Viviam em “golden ghettos”. Os americanos vinham para Macau comprar chá. Aliás, o Boston Tea Party, que marca o início da independência norte-americana, é com chá de Cantão. Logo a seguir à independência dos Estados Unidos da América eles enviam um navio para Macau e o responsável por essa missão torna-se no primeiro embaixador dos Estados Unidos na China e vivia em Macau. Isto foi antes da abertura de Hong Kong, portanto, Macau era a única porta de entrada para a China, ou para o complexo de feitorias em Cantão que também era fechado, tal e qual como Macau. Estes “golden ghettos” eram constituídos por grupos de comerciantes americanos, ingleses, dinamarqueses e portugueses que viviam em Macau, porque não podiam viver na China e que depois subiam a Cantão onde viviam numa espécie de aglomerado murado de feitorias, de onde não podiam sair. Não chegavam a entrar em Cantão, por isso é que é um “golden ghetto”, eles iam fazer comércio, ficavam lá seis meses, as mulheres ficavam em Macau. As mulheres estrangeiras não podiam entrar na China. Há um episódio de uma jovem e a tia entram disfarçadas de homens e os chineses param o comércio enquanto as senhoras não saíssem de Cantão. Porquê esta restrição? Acho que era uma forma de evitar que os estrangeiros se estabelecessem com famílias na China de forma duradoura. Era uma maneira de serem apenas pássaros migratórios, que apenas estavam de passagem. Por isso é que Macau ficou tanto tempo sobre administração dos portugueses, foi muito útil para as administrações chinesas. Tinha o comércio e depois era delegado nos portugueses a administração dos estrangeiros todos, Macau funcionava como um tampão. Era um “ghetto” porque viviam fechados em Macau e em Cantão. “Golden” porque eram pessoas ricas, quem vinha como comerciante para a China já era rico. Os próprios sobrecargas da Companhia das Índias inglesa também já eram de famílias abastadas. Já tinham dinheiro mas reforçavam as fortunas. A família Forbes reforçou a fortuna em Macau. Os Delano, nomeadamente o tetra-avô do presidente Franklin Delano Roosevelt morou em Macau. Mas também havia muitos comerciantes que faziam fortuna durante quatro ou cinco anos, regressavam aos Estados Unidos, investiam e perdiam a fortuna e regressavam mais uns anos a Macau para recuperar o dinheiro perdido. Construíam mansões onde punham todas as coisas chinesas, os artefactos culturais e isso tornava-se uma marca de riqueza, sobretudo na zona e nos portos de Boston, Nova Iorque e Filadélfia. Era uma marca de um estatuto especial, uma forma de “show off”. Hoje usamos BMWs e Audis, na altura eram os artefactos chineses, as sedas, os leques de marfim e o uso do chinese pidgin english. Ainda existem vestígios destas comunidades por cá? Existem, sobretudo arquitectónicos. O Cemitério Protestante, onde estão sepultados muitos dos americanos que morreram em Macau e que não podiam ser sepultados em território católico. A Companhia das Índias compra o terreno e todos os norte-americanos, ingleses eram enterrados aí. Pode-se fazer a história do comércio e da presença americana, das suas famílias, com base no cemitério. Ainda hoje há muitos turistas americanos que vêm a Macau visitar os antepassados que estão sepultados no Cemitério Protestante, fazem excursões e faz parte da mitologia das famílias. Macau é assim uma coisa distante e exótica. O Cemitério Protestante é muito referido nos diários das mulheres que viveram em Macau. A Casa Garden é portuguesa, mas tem um nome inglês, porque foi arrendada ao director da Companhia das Índias inglesa cá em Macau. Não havia viajante que não visitasse a Casa Garden e a Gruta de Camões. O nome do poeta é internacionalizado em Macau, todos os viajantes americanos que vinham a Macau eram levados à gruta e diziam-lhes que, de acordo com a lenda, Camões terá escrito uma grande parte de “Os Lusíadas” naquela gruta. Macau funcionou sempre como um espaço de divulgação da cultura portuguesa para qualquer viajante que fizesse uma circunavegação, uma viagem científica. Paravam aqui e eram confrontados com a cultura portuguesa. Nomearia a Casa Garden, o Cemitério Protestante, a Capela Protestante. Grande parte da colecção da Biblioteca Morrison da Universidade de Hong Kong foi feita com base nos livros de língua inglesa que estavam em Macau e Cantão que esses comerciantes traziam e deixavam em Macau. O primeiro museu que abriu portas na China foi em Macau, pela mão destes ingleses, quer missionários, quer comerciantes. Há uma série de heranças que persistem. Como académico e investigador, como começou este fascínio por esta zona do globo? Foi em miúdo. Lembro-me de estar na escola, no 9º ano, e a minha professora de história fazer uma exposição das casas portuguesas de Macau. Desde aí senti um fascínio. A arquitectura portuguesa na China foi algo que mexeu comigo. Depois quando fiz a investigação para o doutoramento decidi estudar Macau na literatura inglesa e nas fontes inglesas, que era uma coisa pouco estudada, podendo cruzá-la com as fontes portuguesas. Porque há muitos vazios nas fontes portuguesas que eram revelados nas fontes inglesas e vice-versa. Como por exemplo… Tricas com barcos, ou amantes locais que mantinham, rixas locais que não queriam que os directores da Companhia das Índias soubessem, mas os portugueses referiam-nas na documentação que enviavam para Portugal e vice-versa. Segredos que os portugueses não gostavam que chegassem a Portugal e que os estrangeiros de língua inglesa referem, até porque havia espionagem comercial. Este cruzamento de olhares é muito interessante. Por exemplo, os americanos estranhavam uma coisa que um português nunca estranharia: o repicar os sinos a toda a hora. Um protestante acha que nós somos malucos e queixa-se dos incessantes toque dos sinos. Este olhar protestante sobre Macau é muito interessante porque nos permite perceber as especificidades do quotidiano de Macau que, como portugueses, não conseguimos por não haver distância suficiente. A partir do momento em que se dá a fundação de Hong Kong e o comércio anglófono se desloca para lá, como fica a situação social de Macau? Não é uma transição assim tão rápida, é gradual. No início de Hong Kong havia muitas doenças, a cidade estava a ser construída. Se alguém tivesse uma família não a levaria imediatamente para Hong Kong. O êxodo é gradual. Mas muitas firmas mantiveram uma representação em Macau, apesar da grande debandada anglófona. Como é que isso foi sentido pelas comunidades portuguesa e chinesa de Macau? Economicamente foi um grande choque. As águas do Porto de Hong Kong eram profundas, ao contrário de Macau, então os barcos a vapor deixam de vir para cá a passam a ir para Hong Kong. Ferreira do Amaral e os sucessivos governadores tentam responder tornando o Porto de Macau franco, exigindo da China as mesmas garantias que tinham dado a Hong Kong, em muitos casos em vão. Mas a importância regional de Macau muda completamente, sobretudo, com a Guerra do Ópio que dá na fundação de Hong Kong. Foi uma mudança de grande impacto ao nível do arrendamento de casas, aluguer de barcos, comércio, mobílias, todas as despesas que essa comunidade endinheirada tinha em Macau desaparecem. Há um impacto grande na economia local e na sociedade. A comunidade inglesa promovia eventos culturais. Houve representações de Shakespeare em Macau, óperas, o Chinnery pintava os cenários das peças de teatro que eles encenavam. Claro que isto era muito circunspecto à comunidade britânica. Mas, de qualquer forma, animavam a vida cultural da cidade e o Governador e a elite portuguesa era convidada para estes acontecimentos.
João Luz Entrevista MancheteRose Neng Lai, professora Universidade de Macau, sobre o imobiliário: “Somos asiáticos: gostamos de tijolo e cimento” A académica da Universidade de Macau, Rose Neng Lai, não considera que as medidas para controlo de subida de rendas sejam eficazes. A professora de finanças, especialista em imobiliário, acha se deve olhar para a oferta de casas e para os aspectos que a influenciam Na Assembleia Legislativa, quando se fala em mercado imobiliário ou de arrendamento, é frequente dar-se o exemplo de Hong Kong, onde a especulação e os preços batem records. Porquê esta comparação? É algo muito fácil de fazer, são ambas regiões administrativas especiais. Há a ideia de que tudo o que o Governo Central impuser em Hong Kong provavelmente será também aplicável em Macau. Hong Kong enfrenta problemas graves no seu mercado imobiliário, e aqui o mercado de habitação está demasiado caro para a maioria das pessoas. Acho que a única razão para esta comparação é a proximidade de Hong Kong. Qual o risco de rebentar uma bolha imobiliária na China, ou mesmo em Hong Kong? Do ponto de vista académico, nunca podemos definir algo como uma bolha até que rebente, somos bastante conservadores. Nem temos uma definição concreta do que constitui uma bolha. Que provas, factos, precisamos reunir para dizer que estamos perante um fenómeno desses? No caso da China, Hong Kong e Macau fala-se muito em bolhas imobiliárias mas, do ponto de vista puramente académico, não concordamos com isso. Mas podemos dizer que há, definitivamente, um movimento em crescendo. Temos de ver se os preços das casas podem ser explicados por alguns factores concretos, como os rendimentos das pessoas, o PIB da economia, oferta e procura, etc. Sofia Margarida Mota Uma vez que estes factores não consigam explicar as razões pelas quais os preços das casas estão tão caros, o resto, a que chamamos residual, pode ser parte da bolha. Se este residual for acumulando preços, temos possibilidade de ter uma bolha. No caso de Macau, podemos ver que as rendas acompanham as subidas dos preços das casas. Mas se pensarmos em todos investimentos, quem investe numa acção é porque espera dividendos, lucros, perspectivas de futuro. Se falarmos de casas não há ganhos futuros em termos de maiores volumes de negócio, portanto, a única coisa que se pode tirar de um apartamento, ou uma casa, é a renda. Mas se a renda não conseguir explicar o seu preço, então há potencial para uma bolha. Em Macau e em Hong Kong não vemos muito disso, porque as rendas também aumentam à medida que o preço aumenta. Como há procura nos mercados da China, Hong Kong e Macau, teria grande cuidado identificar aqui bolhas. A procura ter origem no investimento ou no consumo são coisas diferentes. Se forem investimentos verdadeiros isso significa que o mercado é saudável, mas o caso muda de figura se o mercado for dominado pela especulação. Há muita gente em Macau que quer comprar uma casa mas que não tem poder de compra suficiente. As pessoas querem ter um apartamento, querem ser proprietárias. Mas se lhes disser que nos próximos 10 anos os preços não vão subir será que ainda querem comprar? Talvez comecem a pensar que arrendar é melhor. É por isso que os preços das casas em Macau, e mesmo Hong Kong, são altos, porque as pessoas querem investir. Algo que não acontece, por exemplo, em Detroit onde abundam as casas devolutas, uma cidade sem revitalização, morta. Isto acontece porque as pessoas não vêm perspectivas de futuro naquela cidade. Se as pessoas estiverem muito confiantes em Macau e Hong Kong vão investir e nós devemos estar contentes por Macau atrair investimento. Outra razão pela qual os preços em Macau são tão altos é porque aqui as pessoas gostam de canais de investimento. Somos asiáticos e nós gostamos de apartamentos, gostamos de tijolo e cimento. Se tivéssemos de investir em acções corremos sempre o risco de no dia seguinte cair tudo. Acha que as medidas que o Governo pretende implementar para controlar os valores das rendas tem hipóteses de sucesso? O Governo tem de fazer alguma coisa, porque é o que lhe é exigido, mas estou céptica quanto à taxa de sucesso porque temos de ver qual o derradeiro problema dos valores das rendas. Porque são tão altos? Acho que a razão é simples, muita procura e pouca oferta. Nos últimos anos, com alguns incidentes que resultaram na falta de oferta privada, as pessoas competiam pelos apartamentos. Ficavam com receio de que se não comprassem os preços poderiam aumentar ainda mais. Então, isso levou as pessoas a comprar cedo, um sentimento que toda a gente sentiu, daí a corrida à compra. Nos últimos tempos o mercado acalmou, vemos isso todos dias pelo menos nos jornais de língua chinesa onde há sempre anúncios de pré-compra de fracções. Isso quer dizer que os empreiteiros querem meter casas no mercado. Já não é necessário comprar precipitadamente porque há mais apartamentos, os compradores podem ter mais calma na escolha, olhar com cuidado, esperar por apartamentos novos. Com tanta oferta, o mercado pode-se ajustar um pouco e posso ter melhor qualidade pelo mesmo preço. Por outras palavras, a solução é a oferta. Sem oferta adequada, o Governo só pode dar alguns choques temporários ao mercado. Queremos continuar a atrair investidores estrangeiros, se isso continuar não esperamos que o mercado imobiliário caía. A solução é aumentar a oferta. Mudar as estruturas das hipotecas, se eu tiver muito dinheiro posso pagar o apartamento a pronto, então essa medida não tem qualquer efeito para mim. Em última análise, os jovens que procuram comprar a primeira casa serão os afectados. Têm de cumprir as mesmas regras além de terem de pagar entradas, hipotecas, aumento de taxas de juro, etc. Não sei se a solução para o mercado imobiliário passa pelo Governo, a não ser que construa. O que acha da medida que prevê o aumento dos contratos de arrendamento para três anos? Pensei nesta medida tanto da perspectiva dos senhorios, como dos inquilinos. Acho que nenhum lado ganhou muito com esta medida. Tenho familiares que têm fracções para arrendar. Dois anos é o tempo que têm de esperar para aumentar a renda, mas se o mercado de rendas estiver a aumentar, esperar dois, três ou quatro anos será igual. Vão ter de aumentar na mesma. Qual o grupo que o Governo está a tentar ajudar? De acordo com agentes imobiliários, as leis do Governo favorecem sempre o inquilino. Os inquilinos têm medo de aumentos de renda, enquanto que os senhorios, se tiverem problemas com um inquilino, não têm muito a fazer. Se mandar uma carta registada, a pessoas pode recusar-se assinar ou fingir que não estão em casa. Se tiver menos de três meses de aviso, então o inquilino pode permanecer no apartamento para sempre. Qual é a protecção do lado do senhorio? Esses são os assuntos que devem ser alterados, em vez das medidas que o Governo quer implementar e que podem complicar ainda mais o processo. Não me parece que estas medidas sejam eficazes e podem mesmo reduzir a oferta de apartamentos para arrendar. O rendimento das rendas em comparação com o preço da casa é tão baixo, um ou dois por cento acumulado por um ano. Que tipo de investimento é este? Se depositar dinheiro em dólares da Nova Zelândia, ou renminbi, tenho taxas de juro maiores. Porquê arrendar? Se não o fizer tenho um apartamento novo para quem o quiser comprar e posso vender a qualquer altura. Se posso ganhar 20 ou 30 por cento e vender logo, para quê arrendar? Não há em Macau uma política de controlo de rendas e deixa-se o mercado regular os preços livremente. Isso não é contrário à natural missão de um Governo num regime socialista? Sou a favor do capitalismo. Não é assim tão surpreendente esta aparente contradição. Se pensarmos na qualidade de vida, não estou a falar de uma vida luxuosa, por exemplo, um apartamento no One Oasis custa mais de 10 milhões de patacas. Eu sou professora de finanças. Nós nunca queremos meter o dinheiro debaixo da almofada. Tendo em conta aquele preço, preciso dar uma entrada de 50 por cento, o que representa cinco milhões de patacas debaixo da almofada. Nem pensar. Como vou comprar essa casa? Isso leva a que muitas pessoas vivam amontoadas num apartamento. Este é um problema que devia ter mais acção do Governo e aí voltamos à conversa da intervenção de um Governo mais socialista. Mas Macau nunca foi assim. Não estou a dizer que não devemos ter uma abordagem mais socialista, mas não me parece que estejamos preparados, pelo menos a curto prazo. Por exemplo, em alguns países europeus o Governo tem algum controlo em zonas chave da economia. Algo que não acontece aqui. Agradeço a influência de Portugal porque ajudou Macau a ser o que é hoje em dia. Como alguém de Macau, dou graças a Deus por essa influência. Nós tivemos a oportunidade de respirar ares diferentes. Sem dúvida que a economia chinesa cresceu a um ritmo fenomenal, mas se recuarmos aos anos 80 era péssimo. Nessa altura era um alívio ser de Macau. Acho que agora Macau está óptimo porque o Governo Central não nos quer controlar de uma forma muito apertada, querem que tenhamos a nossa liberdade. É algo que me agrada porque estamos tão habituados aos tempos passados. Viemos de um modo de vida tão livre que é difícil ir na direcção oposta. Os nossos professores estrangeiros ficam sempre tão surpreendidos com os impostos que se pagam aqui. As pessoas de Macau estão habituadas a ter tanto que por vezes não conseguem ver aquilo que os Governos têm feito. O Governo precisa de melhorar em muitos aspectos, por exemplo na cidade inteligente. Não me digam que estão a trabalhar numa cidade inteligente quando só querem instalar uma data center para o Governo e não para a cidade inteira. O Governo mostra tanta atenção àquilo que a população prefere, têm tantas consultas públicas, ouvem tantas opiniões, mesmo em assuntos em que precisa agir rapidamente.
Sofia Margarida Mota Entrevista MancheteDi Wang, investigador: “A China está num processo de substituição de uma cultura local para uma cultura nacional” Há 40 anos que se dedica ao estudo das sociedades secretas chinesas. A cultura, a comunicação, o papel que tiveram na sociedade e na política são áreas que, para o investigador Di Wang, são fundamentais para que se entenda a actualidade. Depois de mais de 20 anos nos Estados Unidos, Wang está desde 2015 na Universidade de Macau e já começou a recolher dados acerca da história das subculturas organizadas no território Como é que começou o seu interesse pelo estudo das sociedades secretas chinesas? Já há muito tempo. Na década de 1980 comecei a investigar este tema, o interesse foi crescendo e acabei por escrever um livro que reuniu a pesquisa de 30 anos. Era enorme com mais de 700 páginas. Mas tudo nasceu quando comecei a estar mais atento à sociedade chinesa, em especial durante a dinastia Qing. Foi quando as sociedades secretas começaram a aparecer e a ter força e desempenharam um grande papel no que respeitava ao controlo local. Por outro lado, são também entidades que têm uma grande riqueza cultural enquanto subcultura. Estes grupos de pessoas que começaram por existir em oposição ao governo Qing acabaram por ter uma dinâmica própria com características que até hoje perduram. Qual era o objectivo destas sociedades quando apareceram? Estando em oposição à dinastia Qing, os grupos secretos da altura queriam restabelecer a dinastia Ming. Eram sociedades formadas dentro do próprio povo. Sendo grupos secretos e de forma a se protegerem, estas sociedades acabaram por criar códigos culturais próprios que incluíam rituais e formas de comunicação apenas entendíveis entre eles. Também me tenho debruçado na pesquisa destes códigos e foi muito interessante conseguir perceber como é que os membros das sociedades se identificavam quando se encontravam, ou como se descobriam, tinham diálogos autênticos e faziam planos com uma linguagem absolutamente simbólica. Pode referir exemplos? Uma das formas de comunicação mais comum era com chávenas de chá. Havia um conjunto de formas de disposição das chávenas na mesa quando eram pousadas, que discretamente traduziam questões e respostas, que formavam diálogos silenciosos. Não precisavam de proferir uma única palavra para que tivessem uma conversação. Acredito que este tipo de rituais tinha uma ideologia política anti-governo. Tinham também os seus próprios poemas que reflectiam as suas ideologias, a história, a cultura enquanto serviam, ao mesmo tempo, de forma de comunicação. Existem várias sociedades secretas conhecidas. Estuda alguma em especial? Estudo uma sociedade da província de Sichuan, a Paoge. É uma fracção da conhecida Tiandihui que traduzido significa sociedade do céu e da terra. O que significa Paoge? Pao é referente ao traje que usavam, que seria uma espécie de grande túnica. Ge vem de irmão e remete para irmandade. É um nome metafórico pois não se vestiam assim, não tinham que usar este tipo de túnica mas era uma referência. Estamos a falar no passado. Estes grupos ainda existem? Acredito que as sociedade sociedades secretas, apesar de terem sido alvo de ataque pelo vários governos desde que apareceram e pela própria dinastia Qing, continuam, mesmo que sob outras formas, ou outros nomes, presentes. A Paoge é um bom exemplo e fala-se que foi exterminada a partir de 1949. Mas acredito que a sua cultura, a sua linguagem e rituais sobreviveram e que merecem ser preservados e conhecidos. Hoje em dia, na nossa linguagem diária há ainda palavras que eram usadas pelos Baoge e que são de uso diário. Por outro lado assistimos a uma espécie de retorno destas sociedades alguns anos depois da revolução cultural. Emergem das suas origens e que podemos constatar em Sichuan, Guandong, Fujian e em muitas outras províncias. Agora poderão estar a surgir com nomes diferentes mas têm as mesmas raízes. São grupos culturalmente regulados pelos rituais e tradições que existiam antes. É por isso que se queremos entender a sociedade de hoje temos de olhar para trás e perceber o que vem de há muito tempo. Mas mesmo que algumas destas organização já não existam da mesma forma que existiram no passado, as suas actividades, os seus rituais, a sua comunicação e os seus negócios sobrevivem. Consegue ter exemplos da actualidade? Se nos reportarmos a 2012 ao conhecido caso Bo Xilai. Um importante membro do Politburo que depois de um famoso discurso em Chongqin em que prometia acabar com as chamadas heise, sociedades negras, e também conhecidas por entidades de crime organizado, foi acusado de corrupção. Há várias teorias acerca do sucedido. É uma assunto muito complexo mas acredito que as sociedades secretas possam ter estado envolvidas na sua queda, as tais sociedades negras. Quando falamos das antigas sociedades secretas e das actuais entidades de crime organizado, estamos a falar da mesma coisa? Em Sichuan é quase de conhecimento comum a existência destas sociedades negras, e sim, são muitas vezes associados a criminosos. Hoje em dia são muito semelhantes. Todas elas têm diferentes princípios, uma história diferente mas a base é semelhante. Como é que estas grupos evoluíram, por exemplo, para as tríades? As tríades de Hong Kong tem na sua origem a antiga Tiandihui. Temos de perceber que estamos a falar pessoas ou de grupos marginais que eram alvo de combate por parte dos governos. Claro que tinham uma rede muito complexa de membros em que alguns tinham profissões legítimas e outros não. Por exemplo em Sichuan, os Paoge estavam divididos em duas categorias. Uma a que chamavam de água pura em que as pessoas que lhe pertenciam não estavam envolvidas em qualquer actividade criminosa. Tinham as suas profissões e podiam ser homens de negócios, senhorios, etc. e que se juntavam à irmandade à procura de protecção. A outra categoria chama-se água lamacenta. O próprio nome indica que é algo onde não se vê claramente. Este tipo de categoria da Paoge estava normalmente envolvida em actividades criminosas. Esta categorização apareceu depois do séc. XIX. Penso que a Paoge foi transformada com o tempo em entidade criminosa e com isso deixou de proteger o povo ou de o representar, o que estaria na sua origem, para o suprimir. Mas é importante perceber a sua cultura de génese ainda sobrevive. Por exemplo, um jornalista de Wall Street Journal entrevistou-me porque estava em Sichuan a entrevistar pessoas e ouvia sempre referências à Paoge. Parece que a população tem sempre uma conexão a esta entidade. Que poder têm estas entidades? Na década de 1940, por exemplo, os Paoge acabaram por se tornar a sociedade mais poderosa daquela região. Faziam parte dela pelo menos metade dos homens adultos da província. A mim custava-me crer que fosse possível. Mas tenho feito muita pesquisa este ano e entre arquivos e investigações reiteraram que são dados reais. Por outro lado, estes membros da Paoge conseguiram infiltrar-se em todo o lado. Entraram na política e mesmo no exército. Os membros do conselho de Qongqin eram, na sua maioria pertencentes à Paoge, até porque era a forma de serem eleitos. Acredito que em Sichuan há as chamadas sociedades negras e que estão muito presentes. Mas as entidades deste género acabam por estar em todo o lado e fazer parte das próprias mudanças históricas. Sun Yat Sen por exemplo seria membro de uma. Tem também feito alguma investigação na área da história das cidades. Como é que vê o desenvolvimento urbanístico na China e em Macau? As cidades chinesas estão a passar por mudanças dramáticas em que é destruído o passado. Em Macau constroem-se casinos mas não se elimina o centro histórico ou as comunidades mais antigas. No continente acaba-se com a história. Este aspecto está a transformar-se num grande problema no continente. Os bairros antigos, mesmo os de Pequim que são históricos, estão a ser destruídos, os conhecidos hutongs. As cidades na China estão a uniformizar-se e está-se a perder muito com isso. No passado, cada cidade tinha as sua características próprias, a sua cultura, a sua identidade, o seu dialecto, estilo de vida e paisagem. Hoje está tudo a ficar igual. Trata-se de um fenómeno actual? De acordo com a pesquisa que fiz, defendo que este processo de uniformização urbana teve início nos primeiros anos do séc. XX e começou a tornar-se uma tendência tanto da dinastia Qing, dos republicanos da república popular que tem vindo a agravar-se. Todos tinham a mesma tendência. A China está num processo de substituição de uma cultura local para uma cultura nacional. Esta chamada cultura nacional é a cultura motivada pelo Governo Central. Mas o modelo é o mesmo do aplicado pelos últimos anos da dinastia Qing, só que agora elevado a um extremo. Se olharmos para as cidade europeias ou mesmo do Japão e Macau, vemos que as comunidades e construções antigas ainda permanecem lá. Mas se formos agora ao continente, as cidades estão todas a ser reconstruídas. A diversidade na China é cada vez menos e o problema é tanto maior quando estamos a falar de culturas com pelo menos dois mil anos e que deveriam ser preservadas. Mas estamos num governo centralizado e ninguém se atreve a desafiar ou a tentar modificar estas políticas. Relativamente a Macau, tem alguma pesquisa acerca do território? Estou muito interessado em Macau. Estou na Universidade de Macau desde 2015 e estou a pensar estudar especialmente a vida cultural e do quotidiano. Mas já iniciei uma pesquisa acerca da história das sociedades secretas aqui.
João Luz Entrevista MancheteMiguel Rodrigues Lourenço, investigador, sobre a Inquisição em Macau: “A prática do poder é sempre objecto de negociação” Apesar do Santo Ofício ter actuado no território de uma forma cuidada para não destabilizar os interesses mercantis de Macau, foram enviados para Goa muitos condenados. Por cá, as sentenças eram ouvidas no Convento de Santo Agostinho. O investigador Miguel Rodrigues Lourenço, autor de “A Articulação da Periferia: Macau e a Inquisição de Goa (c. 1582- c. 1650)”, desvenda-nos um passado cheio de enigmas Macau foi um refúgio para quem escapava às garras do Santo Ofício. Que condições oferecia a estes refugiados? Macau era demasiado importante do ponto de vista mercantil para o Estado da Índia e também como centro logístico no acesso às missões da China, do Japão e do Sueste Asiático. Talvez por esses motivos não se conheça qualquer intervenção inquisitorial destrutiva ou desestabilizadora em Macau que tenha tido como consequência o afastamento de figuras-chave ou uma renovação da sua elite mercantil. Isso pode ter criado condições favoráveis a uma migração de cristãos-novos para Macau, como o sugere genericamente alguma documentação, mas devido à destruição do arquivo do Santo Ofício de Goa é difícil quantificar quantos estariam em fuga do tribunal e quantos procuravam aproveitar as oportunidades comerciais. Além de tudo isto, Macau era também um espaço cujo grau de institucionalização era bastante reduzido no século XVI, acelerando-se a presença dos representantes da Coroa no século seguinte. Quem foge da justiça, qualquer tipo de justiça, quem procura ganhar distância, foge para as margens, onde o poder é, pelo menos, menos visível. A presença do Santo Ofício traz um conjunto de novas leis ao ordenamento jurídico de Macau. Há algum registo de como esta novidade legal foi recebida? A presença do Santo Ofício traz, para a população, sobretudo um dever de consciência, um dever de denunciar quem tem comportamentos suspeitos para preservar a comunidade católica da exposição a exemplos que possam pôr em causa a sua ulterior salvação no quadro do cristianismo romano. Em termos pessoais, esse dever passa a ser uma realidade quotidiana da população a partir do momento em que reside no território um representante do tribunal de Goa, o comissário do Santo Ofício. Este deveria, uma vez em posse das denúncias, remetê-las a Goa e aguardar a resposta do tribunal. Nos inícios da representação inquisitorial em Macau, estas funções couberam ao bispo D. Leonardo de Sá em virtude de uma comissão passada pelo próprio inquisidor-geral de Portugal. Por isso, não há uma oposição do poder episcopal. Mas houve resistências de sectores da população pouco depois da chegada do bispo. Por exemplo, sabemos que um importante mercador cristão-novo chamado Pedro Fernandes d’Arias subornou algumas pessoas para que lhe fossem reveladas as culpas que tinham sido reunidas em Macau contra a sua mulher, Francisca Teixeira, também cristã-nova, e que tinham sido enviadas à Inquisição de Goa. A tentativa foi descoberta e ambos foram processados pelo tribunal. A dependência administrativa/religiosa de Goa provocou algum ressentimento em Macau. Até que ponto o alcance do Santo Ofício até Macau teve um papel nesse ressentimento? Há uma imagem muito forte na memória colectiva sobre Macau, a de uma trajectória de autonomia do território, que faz pensar que naturalmente o Santo Ofício seria percepcionado como mais um dispositivo de poder que poderia reforçar o controlo de Goa sobre Macau. Aliás, difícil é pensar que o poder que se manifesta de forma coerciva possa ser sentido senão como exógeno ao quotidiano das populações que o experienciam. Mais no caso da Inquisição, que deixa um escassíssimo espaço para manifestações críticas sobre a sua validade ou valência no seio da sociedade em que se inscreve. Em Macau, tais manifestações de desconforto acerca da presença do Santo Ofício são reduzidas e foram produzidas num contexto de tensão social entre facções onde estava em causa o correcto desempenho do comissário do Santo Ofício. Isso faz com que o valor desses testemunhos enquanto espelho de uma realidade esteja comprometido pela intenção com que os textos foram escritos. Mas a prática do poder, mesmo quando é identificada como absoluta, é sempre objecto de negociação. E esse é o lado da história do ressentimento em relação a Goa que falta fazer. Porque um dos lados do poliedro que forma a história de Macau é preenchido por Goa e pelas profundas solidariedades existentes entre as duas cidades que sustentam operações comerciais, protagonismos sociais ou estratégias colectivas em Macau. Houve alguma figura entre o comissariado do Santo Ofício em Macau que se tenha distinguido como alguém de relevo em Macau? Eu destacaria, sobretudo, o primeiro, D. Leonardo de Sá, que recebeu do inquisidor-geral uma comissão que o nomeava como inquisidor sobre os naturais do seu bispado recentemente convertidos ao catolicismo (chineses e japoneses, portanto). Infelizmente, nada sabemos sobre a sua actividade neste domínio. Quanto aos portugueses, deveria remeter as denúncias a Goa, funcionando, na prática, como comissário. A chegada de D. Leonardo de Sá a Macau significou a presença de uma nova autoridade eclesiástica, de resto terá o seu próprio juízo, o seu próprio tribunal, que no domínio formal contrabalançava o ascendente espiritual da Companhia de Jesus entre os moradores de Macau. Mesmo que esse ascendente tenha permanecido nas décadas seguintes, a presença do bispo alterava necessariamente as configurações dos poderes eclesiásticos locais, introduzindo um elemento concorrencial. De facto, a figura de D. Leonardo não foi sempre grata aos jesuítas que residiam na cidade. A partir do momento em que a Inquisição está em Macau, qual a extensão da sua influência na sociedade local? Que tipo de castigos eram aplicados? A Inquisição teve uma trajectória variada do ponto de vista dos moradores de Macau que processou. Foi no século XVI que se registou o maior número de casos contra cristãos-novos com acusações de judaísmo, bem como de obstaculizar a actuação do Santo Ofício. No século XVII, a tipologia de acusações é muito variada: envolve feitiçaria, sodomia, apostasia, islamismo. Houve mesmo um ex-comissário do Santo Ofício que foi julgado por conduta irregular no desempenho das suas funções. Mas o caso mais sonante é, sem dúvida, o do julgamento das quase duas dezenas de clérigos que negaram a sua obediência a frei António do Rosário, governador do bispado e interlocutor habitual do Santo Ofício em Macau. Os clérigos foram enviados para Goa, onde foram julgados no tribunal do arcebispado e na Inquisição por fomentarem o cisma no seio da Igreja e por obstaculizarem a actuação do Santo Ofício. Tanto quanto a documentação permite averiguar, só no século XVIII é que encontramos chineses cristãos moradores em Macau processados em Goa. Há registos de chineses cristãos condenados pelo Santo Ofício antes, mas a sua ligação a Macau não está comprovada. O local por excelência de demonstração da justiça inquisitorial era a cidade-sede do tribunal, no caso, Goa, através dos autos-de-fé. No entanto, o tribunal podia determinar que um réu cumprisse a sua pena ou penitência na cidade onde o delito julgado pelos inquisidores ocorrera. Em Macau, alguns processados pelo Santo Ofício foram obrigados a ouvir a sua sentença no Convento de Santo Agostinho. As sentenças variaram muito, desde penas pecuniárias, desterro, açoutes e pelo menos uma pessoa foi condenada a ser relaxada, ou seja, a morrer pela fogueira. Há alguma informação de como a Inquisição se relacionava com a comunidade chinesa? A Inquisição não tinha jurisdição sobre não-cristãos, com excepção em situações de fautoria (promover a apostasia de um cristão) ou por prejudicarem o aumento da cristandade, como se dizia. Não consta, no entanto, que o tribunal de Goa tenha instaurado processos por esses motivos, e não porque faltassem notícias a esse respeito. Mas, ao mesmo tempo, a Inquisição de Goa não ficou indiferente à comunidade chinesa de Macau. Nos finais do século XVII, os inquisidores chegaram mesmo a destituir um dos seus comissários em Macau por entender que era conivente com as muitas procissões chinesas realizadas na cidade, nomeando outro para que tentasse pôr um fim a esses acontecimentos. O caso não veio a ter consequências de maior porque o comissário não recebeu qualquer apoio do Senado nesse sentido. Existem vestígios da presença de cristãos-novos em Macau, ou da sua influência na sociedade do território? Há um conjunto de preconceitos, no sentido de entendimentos a priori, cultivados pela historiografia sobre uma forte presença de cristãos-novos em Macau que a documentação não permite quantificar com segurança. No entanto, o facto de essa menção ser recorrente significa que o seu número deveria ter sido abundante ao ponto de constituir opinião corrente na época. Ora, esta dimensão, que aparentemente impressionava os contemporâneos, contrasta com a informação precisa disponível sobre os cristãos-novos de Macau. A identificação de alguém como cristão-novo está longe de ser uma realidade objectiva. Fazê-lo, nos séculos XVI ou XVII, era lançar sobre a pessoa um estigma social, a presunção de alguém ser um potencial judaizante. A existência de Macau, um espaço de institucionalização portuguesa em solo chinês, amparado por múltiplas parcerias asiáticas, exigia pragmatismo e compromissos. No que diz respeito aos cristãos-novos, esta necessidade fez com que Macau fosse, em larga medida, um espaço de silêncios que se reflecte, por exemplo, no reduzido número de processos por delitos de judaísmo, sobretudo quando comparado com Goa ou Cochim. Conhecemos alguns nomes de envergadura desigual ligados ao comércio, como Pedro Fernandes d’Arias, Pedro Rodrigues, António Galvão Godinho, Jorge Dias de Montoya, Jorge Vaz de Azevedo. A partir de meados do século XVII, deixamos de conseguir seguir na documentação a descendência destes cristãos-novos. As tensões entre ordens religiosas da primeira metade do século XVII colocaram Macau numa situação fracturante de conflito eminente. Até que ponto as nomeações dos comissários do Santo Ofício influenciaram esta situação? A distribuição das ordens religiosas pelos territórios asiáticos, a constituição das missões e, sobretudo, o seu sustento do ponto de vista financeiro foram tudo menos questões pacíficas entre jesuítas, dominicanos, franciscanos e agostinhos. Por haver destinos que atraíam mais os missionários que outros; por a entrada de uma nova ordem religiosa num dado território gerar o desagrado de quem já lá se encontra; e, muito importante, por o dinheiro da Coroa não chegar para todos, tudo isto foram factores que fizeram com que a relação entre as ordens no Estado da Índia tenha sido marcada por momentos ou episódios de especial tensão. As tensões, portanto, não surgem em Macau, mas agudizam-se aqui por várias razões. As missões da China e do Japão foram motivo de um profundo mal-estar entre jesuítas, de um lado, e mendicantes, do outro. A responsabilização mútua pela implosão da missão japonesa, as violentas críticas a respeito das respectivas estratégias de missionação na China, a competição pelo reconhecimento dos seus membros como mártires no Japão geraram, aqui sim, um forte ressentimento entre as ordens que se somou a uma já de si convivência difícil em Macau.
João Santos Filipe Entrevista MancheteScott Chiang, activista político e ex-presidente da Novo Macau: “Casos nos tribunais obrigam-nos a crescer” As batalhas jurídicas que envolvem a Novo Macau obrigaram a um crescimento e uma aprendizagem em áreas que os membros nunca tinham imaginado necessitar. A explicação é de Scott Chiang que hoje começa a ser julgado, com Sulu Sou, por suspeitas da prática do crime de desobediência qualificada. Sobre suspensão do deputado, o ex-presidente considera que as vozes dos democratas vão continuar a ser ouvidas em Macau A Novo Macau tem sofrido mudanças significativas. Jason Chao deixou a associação, elegeram Sulu Sou como deputado, Kam Sut Leng assumiu a presidência. Que balanço faz das alterações? Há uma evolução natural e temos aprendido muito e depressa. As pessoas que assumiram as novas posições estão a ter um bom desempenho. As eleições trouxeram muitas mudanças para a Novo Macau e o facto de termos um deputado está a alargar o nosso campo de acção. É uma fronteira nova com que temos de trabalhar e que nos exige uma nova adaptação. Quando fala de nova adaptação, o que quer dizer? Ao contrário de associações tradicionais, não nos focamos apenas numa área de acção, temos de lidar com muitos assuntos e diferentes, o que exige aprendizagem. Por exemplo, não quero falar dos casos que estão nos tribunais, mas são episódios que nos obrigam a crescer e a aprender sobre determinadas áreas que, como associação, nunca pensámos que teríamos de aprender. Quais são as suas motivações para ser um activista pró-democrata no contexto de Macau e da China. O que acredita que é possível alcançar? Quero sempre melhores condições e alcançar mais, mais transparência nos que têm o poder, uma maior responsabilidade dos políticos e uma população com consciência cívica e bem-informada, capaz de votar no que é melhor para si. Quero uma Assembleia Legislativa que trabalhe para as pessoas e não contra elas. Quero uma sociedade em que uma associação como a Novo Macau não é precisa porque a população tem um pensamento crítico, sabe defender e reivindicar os seus direitos e não tem medo de se expressar. Acredita que esse objectivo é alcançável? Dentro de um certo tempo razoável… O que considera um tempo razoável? Talvez até ao fim da minha vida… (risos) Talvez, no futuro, as pessoas de Macau não se foquem muito na política, nem tenho a certeza absoluta que isso seja obrigatoriamente positivo. Mas se estiverem mais preocupadas com os seus direitos, se tiverem uma maior compaixão pelos cidadãos com menos sorte e posses… Era algo que também já me deixava muito contente. Acredito que é possível haver essa mudança. Macau tem falta de solidariedade? As maiores tragédias nesta cidade não acontecem porque há um regime do estilo fascista a reprimir as pessoas inocentes. Acontecem porque não há solidariedade, existe muito o pensamento perante a adversidade dos outros: “Tiveste azar” ou “Isso é um problema teu e eu não tenho nada a ver com isso”. Se mudássemos um pouco isso, haveria mais justiça e menos medo de proteger os nossos direitos. Era um ponto de chegada que me agradaria. Sulu Sou foi suspenso da Assembleia Legislativa, apesar de nunca ter defendido a independência de Macau. Em Hong Kong também houve pró-democratas que perderam os mandatos e nem todos defendem a independência. Há espaço para esta nova geração pró-democrata em Macau e Hong Kong? Acredito que sim. Podem tentar silenciar-nos a todos, podem suspender-nos para acabar com o barulho, mas as nossas vozes vão ser ouvidas. Vão continuar a surgir pessoas nas gerações mais novas com coragem e pensamento crítico para apontarem as práticas do sistema que não justas. O ambiente criado à volta dos pró-democratas faz com que as pessoas tenham mais medo de serem associadas à Novo Macau? Não, pelo contrário. Nunca promovemos uma política activa de angariação de membros, até porque não estamos dependentes do valor das quotas que os associados pagam. Mas a verdade é que Sulu Sou tem um carisma muito grande, quase como se fosse uma estrela, o que faz com que muitos jovens tenham a curiosidade de perceber como funciona a Novo Macau nos bastidores. Por agora, não faz sentido falar de medo. Quantos membros tem a Novo Macau? Temos cerca de 100 membros. Ao longo da história da associação nunca se passou essa marca. Os “nossos pais fundadores” também nunca quiseram fazer a associação crescer muito porque tinham receio da transferência da soberania. Na altura, esperavam um ambiente muito adverso para os pró-democratas após a transição. Têm muitos relatos de membros prejudicados no trabalho por serem membros da Novo Macau? Estamos a falar de uma característica muito chinesa, em que ninguém vai explicitamente colocar um cartaz no escritório ou emitir orientações aos trabalhadores a proibi-los de aderirem à Novo Macau. Mas sabem fazê-lo de outras formas e impor uma certa autocensura que leva as pessoas a pensarem: “Posso estar na Novo Macau, mas não posso aparecer nas câmaras”. Foi algo que aconteceu logo desde o início da Novo Macau, quando muitos membros eram funcionários públicos. A transição agravou esse problema? Passou a ser mais frequente, porque as pessoas não querem ser vistas como causadoras de problemas. O cenário é muito semelhante, só que as gerações mais novas são muito corajosas e sabem dividir a vida profissional da vida política. Percebem que as duas não têm de estar ligadas. Ter um emprego não implica abdicar de ter opinião. É uma mudança muito positiva. Há membros da Novo Macau a trabalhar para o Governo? Não tenho conhecimento de a existência de algum caso. Houve avisos do Governo para que os funcionários públicos não participassem na manifestação de apoio a Sulu Sou? Tivemos relatos dessas situações, mas como já aconteceu anteriormente não temos provas e, por isso, o que podemos dizer é que é especulação… São relatos que nos parecem credíveis. As pessoas sabem como funcionam as coisas e acreditam que é plausível que isso tenha acontecido. O Governo devia mudar a sua postura face às manifestações, não devia encorajar a participação, mas também não é positivo se houver este clima de suspeição. Olhando para a situação de Macau, que balanço faz da situação do segundo sistema e a região? Na minha opinião, o sistema não está melhor do que há cinco anos. Já o desenvolvimento social, principalmente a nível material, teve uma evolução muito positiva, talvez melhor do que em qualquer outra parte do mundo. Este aspecto material é muito importante porque permite dotar as pessoas de uma maior consciência cívica. Essa consciência pode ser uma semente mais democrática? Talvez as pessoas não queiram uma sociedade mais democrata, mas querem explicações. Querem perceber como é que um Governo que tem recursos tão grandes é incapaz de resolver os problemas do sistema de transportes. Há cada vez mais pessoas a exigirem que o Governo resolva os problemas e apresente resultados. Foram estas exigências que levaram as cerca de sete mil pessoas à Praça da Assembleia Legislativa contra a lei para dar mais benefícios aos membros do Governo aposentados? Sim. As pessoas de Macau não se preocupam muito se os poderosos ficam mais ricos e tiram uma grande parte dos dinheiros para si, sendo pagos muito acima do que merecem. Mas também querem ver alguns resultados. Quando surgiu essa proposta, as pessoas consideraram que era um abuso face às incapacidades governativas. “Autoridades querem ainda mais poder” Qual é a sua opinião sobre a nova lei da cibersegurança? É uma lei feita numa zona cinzenta. Evoca-se a necessidade de proteger os cidadãos e, depois, garantem-se enormes poderes às autoridades. É muito importante perceber como vai ser utilizado esse poder. Considera que pode haver abusos? Era uma pergunta que gostava de ver respondida. Parece-me muito claro que as autoridades não vão parar e querem ainda mais poder, ao mesmo tempo que não têm qualquer pudor em mostrar esse mesmo poder na cara dos cidadãos. Na última vez que fizemos uma pesquisa, e falando de uma forma muito geral, a percentagem dos gastos com a segurança em Macau em proporção do PIB era a mesma que o do Interior da China, numa área chamada estabilidade nacional. Esta área do orçamento não trata dos assuntos militares, são os gastos com o controlo da Internet, de informação, entre outros… Após a passagem do Tufão Hato, o secretário Wong Sio Chak disse que o Governo ia equacionar vigiar as aplicações móveis para evitar que se espalhassem rumores. É uma questão que preocupa a Novo Macau? Por causa dos chamados rumores foram detidas quatro pessoas após a passagem do Tufão Hato. Como é que eles poderiam ter feito essas detenções se não estivessem já a vigir as conversas? A minha especulação é que eles querem é legalizar algo que já fazem. As autoridades querem estar à vontade para fazerem tudo o que querem, mas para estarem mesmo à vontade querem um “selo legal”… Quando a Novo Macau organizou um referendo sobre o sufrágio directo, foi levado para a esquadra com Jason Chao e mais outros três voluntários. Como ficou o caso? Foi arquivado, mas nos próximos cinco anos, se tiverem provas novas, podem reabri-lo. Ainda não podemos dizer definitivamente que não vamos a julgamento… “Não há apoios financeiros do exterior” No passado chegaram a circular rumores que a Novo Macau poderia estar a ser financiada por instituições do exterior interessadas em criar instabilidade em Macau. Confirmas que houve financiamento do exterior? Não, isso nunca aconteceu. O nosso maior apoio financeiro foi sempre a contribuição dos nossos membros que eram deputados na Assembleia Legislativa. Também temos donativos individuais, mas nenhuma dessas fontes de financiamento o faz de forma regular e consistente, comparando com as contribuições dos deputados. Nunca tivemos apoio de qualquer instituição.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteSteve Bevans, padre e teólogo, sobre a Igreja Católica: “Temos de levar a ciência e a psicologia a sério” Teólogo com seis livros publicados e ligado à ordem católica Missionários do Verbo Divino, Steve Bevans esteve em Macau esta semana na Universidade de São José para falar dos cinco anos de pontificado do Papa Francisco. O padre norte-americano defende uma investigação interna aos casos de abusos sexuais e diz que a Igreja tem de se adaptar aos tempos modernos. Porque, desta forma, “não é credível” [dropcap]Q[/dropcap]ue análise faz aos últimos cinco anos do pontificado de Francisco? Diria que ele trouxe ar fresco, uma nova energia. A Igreja está a tornar-se mais aberta e, para usar uma das palavras favoritas do Papa Francisco, está a tornar-se mais compreensiva. Pelo menos era isso que o Papa Francisco gostaria que a Igreja fosse, mas nem todos os bispos, padres ou cristãos estão nesse caminho. Mas foi essa visão que eles nos ofereceu, e isso é o mais entusiasmante. Que negativos momentos destaca dos últimos cinco anos? Estou contente com o que o Papa Francisco tem feito, e penso que ainda tem um longo caminho a percorrer. A minha critica mais forte talvez esteja relacionada com a sua atitude em relação às mulheres. Obviamente que ele gosta das mulheres e quer incluí-las, mas continua a ter, diria eu, uma perspectiva do homem latino-americano em relação às mulheres, de que estas têm um génio muito próprio e trazem conforto ao lar. Mantém esses estereótipos. De certa forma ele tem criado limitações nas questões da liderança, sobretudo quanto à ordenação das mulheres dentro da Igreja. Mas, por outro lado, abriu o debate sobre a possibilidade das mulheres serem ordenadas. Ele pediu também a participação de mais mulheres, ao nível da liderança, mas não o vejo a fazer nada de concreto em relação a este assunto. Dada a sua cultura e o seu background, penso que ele está a fazer o que pode. Ele está a fazer um bom trabalho, não vejo grandes áreas onde possa estar a falhar. Claro que há áreas nas quais está mais limitado devido às tradições da Igreja, mas penso que está além disso. Há também os casos de abusos sexuais dentro da Igreja Católica. O Papa tem tido a melhor atitude em relação a este assunto, no sentido de resolver o problema? Sim. Ele tem enfrentado uma situação que é muito crítica e vergonhosa. Tem feito muito no sentido de ajudar as vítimas, mas é sempre difícil dizer aquilo que deve ser feito. As vítimas devem ser ouvidas e compensadas financeiramente e acho que ele está do lado dessa ideia. Sei que alguns grupos de vítimas criticam-no, eu compreendo-os, mas penso que o Papa Francisco está do seu lado mas não de uma forma extrema como gostaria de estar. É, decerto, difícil saber a verdadeira dimensão dos abusos sexuais dentro da Igreja Católica. Seria importante realizar uma investigação interna a estes casos? Não sei. Talvez estivesse a favor disso. Penso que tem sido um grande problema na Igreja e espero que tenha sido um sinal de alarme. Espero que as pessoas mudem, embora isto seja uma doença e não seja algo que se possa mudar. Mas apesar de tudo esta questão tem sido exposta e sim, penso que seria uma boa ideia fazer uma investigação aos trabalhos internos da Igreja. Esta exposição é importante porque pode levar a uma erradicação. O Papa Francisco condena fortemente o clericalismo e o carreirismo e ele tem feito muitos inimigos dentro da Igreja por causa disso. Mas penso que ele está absolutamente certo e poderia até ter uma posição mais forte. Em relação à China, o Vaticano tem vindo a fazer uma tentativa no sentido de reatar relações com o país. Ainda assim, esse objectivo poderá ser mais difícil de atingir na era Xi Jinping? Acabei de estar uma semana em Hong Kong, fiquei num seminário e conheço o cardeal John Tong Hon muito bem. Conheço várias pessoas lá e o que ouvi é que um acordo está iminente, que vai acontecer em breve. Há algumas questões por resolver. Não tenho certezas em relação ao Governo, pois essa é questão complexa, mas penso que em termos da igreja oficial na China há uma abertura de ambos os lados para que haja uma espécie de acordo, sobretudo ao nível da ordenação dos bispos. Isso deverá ser anunciado muito em breve. É importante para a China ter uma relação com o Vaticano, no sentido de reforço do poder político? Não basta ter o domínio em termos económicos e diplomáticos mas também na área da religião? Exactamente. Não sou especialista nesta área, mas o que têm dito é que a China está a descobrir a importância da religião. Descobriram que podem, eles próprios, encontrar o poder da religião para o bem do Estado e do Governo. Há uma certa abertura em relação à religião, que está a crescer. Esse acordo vai facilitar a vida dos chineses católicos que vivem escondidos? Vai de certa maneira facilitar. O Vaticano está a tentar chegar a um acordo e uma aproximação. Seria ingénuo pensar que esse acordo será feito sem problemas, mas há algo no ar. Digo isto apenas como observador e como alguém que está próximo de figuras de Hong Kong. Recentemente o Papa Francisco visitou o Myanmar, numa altura em que a crise humanitária do grupo étnico Royngha está no auge. Acredita que as suas palavras podem ajudar a resolvê-la? É uma situação complexa. Estamos a lidar com um país que é maioritariamente budista e que tem uma minoria muçulmana. Houve alguns ataques terroristas e as pessoas estão assustadas, mas isso não deve justificar, de maneira nenhuma, as perseguições que temos visto à minoria muçulmana. O Papa Francisco foi o mais sensível possível à situação e quem sabe aquilo que foi dito em privado? Esperemos que haja alguma alteração. Foi um momento importante na carreira do Papa. O Papa fez a coisa certa e outra coisa importante foi o facto de não ter feito isto sozinho: ele ouviu os conselhos do cardeal católico em Rangum, não se limitou a apontar o dedo. Esteve nas Filipinas como missionário, onde viveu até 1981. Como explica a relação tão forte que existe entre os filipinos e a religião? Para eles a religião é uma forma de escaparem ou de terem esperança face à pobreza? Sim. Não diria que é o ópio das pessoas, mas é algo que ajuda as pessoas. Ajuda, de facto, as pessoas a viverem as suas vidas. Os filipinos olham para a função da religião. Sei que em Hong Kong muitos deles trabalham como empregados domésticos, presumo que aqui a situação seja semelhante, e levam vidas duras. Os filipinos representam, de facto, a mais forte comunidade religiosa e vivem a sua fé até em casa. Nem todos praticam a sua fé, mas é muito forte e é uma cultura que respira religião. Em situações mais aflitivas é algo que os faz estar juntos. É um factor identitário importante. Acredita que as condições sociais melhoraram no país ou acredita que está quase tudo na mesma? Um dos problemas nas Filipinas é que existe demasiada corrupção. Há poucas famílias que gerem o país. O presidente está um pouco de fora disto, mas vejo que existem muitos problemas no Governo. É um país com enormes recursos e uma população altamente qualificada, mas não conseguem sair desta imensa pobreza. Fizeram alguns progressos desde os anos do Governo de Ferdinando Marcos, mas há ainda muito por fazer. E temos agora esta guerra contra as drogas implementada por Rodrigo Duterte. É um grande problema e ele é um homem muito perigoso. É um populista e há um grande paralelismo entre ele e Donald Trump. Ambos ganharam as eleições mas penso que tudo foi errado. Estou preocupado com as Filipinas, é muito triste. Qual deve ser o papel da Igreja Católica no século XXI? O Vaticano tem imensos recursos financeiros e inúmeros documentos históricos que continuam por revelar. A Igreja tem de mudar, ser mais transparente, para se aproximar das pessoas? Absolutamente. A Igreja Católica, e a sua liderança, não é credível. Podem falar o que quiserem sobre coisas bonitas, mas as pessoas não vão prestar muita atenção. O poder da Igreja costumava ser o medo, caso contrário as pessoas iam para o inferno. As pessoas já não acreditam nisso, a educação está a tornar-se algo universal e já não prestam atenção a todos os homens celibatários que falam sobre mulheres. Isso não faz sentido. Temos de ter uma Igreja menos clerical e mais ouvinte, e que esteja ligada com a ciência contemporânea e o seu pensamento. Muita da imoralidade de que se fala baseia-se em má ciência e má biologia. Temos de compreender a evolução biológica, compreender a astrofísica, a medicina contemporânea e só podemos oferecer acompanhamento se estivermos a par destas evoluções, ao invés de sermos críticos ignorantes, como muitas vezes acontece. O Papa Francisco, aliás, já alterou bastante o seu discurso em relação ao HIV e o uso de preservativos. Sim. Esse tipo de coisas, como a proibição dos preservativos, é baseada numa biologia muito limitada. O uso dos preservativos não quer dizer que sejamos todos promíscuos. Podemos falar da questão da moralidade desde que estejamos informados e não com uma mentalidade mais conservadora. Acredita que os padres podem vir a casar? É uma questão complicada. Mas penso que deveríamos discutir este assunto e pessoalmente acho que deveria ser uma opção possível. Em muitos países e culturas, uma vida celibatária não é o caminho a seguir. Temos de ter em conta esses lugares. A homossexualidade é outro tópico sensível, e sobre ele o Papa Francisco também mostrou abertura. A sua abordagem a esse assunto tem sido algo limitada, e é uma das áreas onde tenho algumas críticas a fazer. Mas ele tem bastantes limitações e não me parece que tenhamos de lhe apontar o dedo. É uma questão de moralidade baseada em biologia retrógrada. Temos de levar a ciência e a psicologia a sério e entrar num diálogo honesto sobre estas questões. Tanto homens como mulheres sofrem bastante com a sua identidade sexual. A coisa mais importante da vida é a misericórdia de Deus e não outras regras. Uma nova Igreja tem de buscar aquilo que a ciência descobriu, os cientistas não são pessoas fracas. Como Jesus disse, “a verdade vai deixar-te livre”. Então temos de entrar nesse diálogo aberto para ver o que vai acontecer. O Papa Francisco acaba o seu pontificado em Março deste ano. Quem poderá ser o próximo Papa? Tem havido grandes mudanças. Francisco intitula-se como Bispo de Roma, mas na verdade é, de certa forma, bispo de todas as igrejas. Nesta igreja global não temos apenas italianos a tornarem-se bispos de Roma, pois é uma posição que está aberta a todas as nacionalidades, e este é um grande desenvolvimento na história da Igreja, e é irreversível. É possível que haja um bispo africano. Se pudesse escolher, seria um papa filipino, o actual arcebispo de Manila, Luís António Tagle, pois penso que continuará o legado de Francisco. Peter Turkson, do Gana, poderia ser outra hipótese, ou até americano, Joseph Tobin, o que seria uma escolha óptima, não relacionada com questões políticas.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteEric Lestari, representante da OWE: Agências de emprego “retém passaportes para pagarmos as cauções” Empregada doméstica, Eric Lestari é também representante em Macau da Overseas Worker Entities, uma organização não governamental com sede na Indonésia que representa os trabalhadores migrantes. Eric denuncia casos de cobranças excessivas das agências de emprego, acima dos 50 por cento de ordenado, e a retenção de passaportes e outros documentos pessoais, para garantir que os trabalhadores pagam essas cauções. A responsável alerta ainda para os recrutamentos ilegais em Macau, que são “um problema” Decidiu trazer a Overseas Worker Entities para Macau. Quais são as principais actividades que têm vindo a ser realizadas? Temos esta associação não tanto para nos queixarmos quanto aos nossos direitos laborais mas também para partilharmos a nossa cultura junto da sociedade de Macau e também de outras comunidades oriundas das Filipinas ou do Vietname. Abordamos também as políticas implementadas pelo Governo e as nossas condições de trabalho. Quantos membros têm? Criamos esta associação há cerca de um ano. Fazemos sobretudo acções para que os trabalhadores compreendam os seus direitos em Macau. Somos apenas três membros neste momento. Acredita que os trabalhadores não residentes precisam de falar mais sobre si e os seus direitos? Não o fazem por medo de perder o emprego? Claro que precisamos de falar mais. Já estou há 12 anos em Macau, e alguns dos meus amigos já cá estão há 16 anos, e todos nós concordamos que não houve novas políticas em benefício ou protecção dos trabalhadores migrantes. O nosso salário mínimo ronda as 2500 patacas. Cabe ao empregador decidir o nosso salário e tudo depende das empresas [para onde vamos trabalhar], são eles que decidem o salário que nos vão pagar. Actualmente apenas existe o salário mínimo para os sectores da limpeza e da segurança, que ronda as seis mil patacas. Está então contra a proposta do Governo em não incluir as empregadas domésticas na nova lei do salário mínimo. Independentemente da decisão do Governo, se este concordar que a nossa experiência ou domínio da língua não são suficientes para Macau, então iremos para outro país procurar emprego. Mas tudo depende das empresas e dos nossos patrões, se continuam a precisar de nós ou não. Não há recrutamentos legais ou acordos de entendimento entre Macau e a Indonésia, ou outros países. Somos nós que decidimos vir trabalhar para Macau e este é um novo problema. Porque é que o Governo de Macau não aprende com as práticas implementadas pelo Governo de Hong Kong no que diz respeito à gestão de recursos humanos importados, ao nível das empregadas domésticas, por exemplo? Actualmente o Governo está a rever a lei das agências de emprego e uma das possibilidades é a cobrança de, no máximo, 50 por cento do salário do trabalhador na hora do recrutamento. O que acha desta medida? Vai ser mais difícil para os trabalhadores migrantes conseguirem trabalho aqui? Não acredito nesta política. Na realidade eles já deduzem mais do que 50 por cento do nosso salário inicial. Chegamos a pagar 12 mil ou até 20 mil patacas à agência ou a um intermediário para termos um determinado emprego. As empregadas domésticas, caso fiquem a residir na casa dos patrões, pagamos até seis mil patacas por três meses. Se ficarmos a residir fora de casa do empregador pagamos entre seis a oito mil patacas. É também uma dedução que se faz durante três a quatro meses. Continuam a existir casos em que as agências ficam com os passaportes dos trabalhadores retidos? Tentar ajuda junto do Governo é muito difícil. Se algo acontecer com os nossos passaportes podemos ir ao consulado e depois é apresentada uma queixa à polícia. Muitas vezes queixamo-nos de que a agência ou o empregador ficam com os nossos passaportes mas o que nos dizem na polícia é para lidarmos com a situação. É muito difícil para nós. Muitas vezes as agências de emprego ou os patrões obrigam-nos a assinar um documento em como não vamos voltar a fazer queixas, depois de recebermos os documentos de volta. É também uma situação perigosa para nós. Mas estes casos acontecem muitas vezes, são comuns? Isso acontece com a maioria dos casos, sobretudo com os recém-chegados. Mesmo com muitos anos em Macau, como eu ou algumas pessoas, pedem os documentos e mantém-nos retidos. Qual é o argumento que utilizam para manterem os vossos documentos? Dizem-nos que é para tratar do processo, para garantir a confirmação do empregador, e para apresentar junto dos serviços de emigração. O facto de manterem os nossos passaportes retidos é para que tenhamos de pagar as cauções. Recentemente o Governo das Filipinas suspendeu o envio de trabalhadores para Hong Kong devido aos casos de abusos cometidos. Acredita que esta medida terá algum impacto em Macau ou que pode mudar alguma coisa em relação a eventuais abusos? Não sei como será a situação em Macau, porque as pessoas não são recrutadas. Simplesmente chegam e começam à procura de emprego. Em relação aos abusos, há alguns casos mas os trabalhadores não sabem onde se podem queixar e não sabemos que justiça será feita ou que departamento do Governo nos poderá ajudar. Não sabemos se nos devemos dirigir a algum agente da polícia ou a um assistente social que nos possa ajudar. Muitos dos nossos amigos ficam calados, ou param de trabalhar e decidem regressar a casa. Alguns tentam encontrar outro trabalho. O ano passado tive uma amiga que era agredida pela idosa para quem trabalhava. No entanto ela desistiu de apresentar queixa à polícia porque o caso ia demorar muito tempo e ela não sabia que serviço ou lei é que a poderia ajudar. Ela visitou a nossa associação e o consulado da Indonésia, mas não foi suficiente para a ajudar. As condições de vida dos trabalhadores migrantes têm piorado nos últimos anos, tendo em conta o aumento do custo de vida? É difícil obter ajuda de associações de cariz social? Penso que é muito difícil. Depende se os trabalhadores são fortes o suficiente para lutarem pelos seus direitos ou se reúnem as provas para se queixarem. Muitas vezes ficam calados, falam com os amigos, partilhamos algumas coisas nas redes sociais e tentamos mudar de emprego. Qual a vossa agenda para este ano? Quais são os temas que consideram mais urgentes para serem tratados? A questão do salário mínimo existe mas não é a mais problemática. O maior problema é como podemos vir para Macau de forma legal e não ilegal. Nós, trabalhadores migrantes, chegamos com um visto de turista, e o Governo de Macau também não consegue proteger as pessoas se acontecer alguma coisa. É também difícil ao Governo da Indonésia fazer queixas e fazer garantir os direitos dos trabalhadores indonésios. Actualmente há muito recrutamento ilegal, com deduções salariais excessivas, porque não há esse acordo entre os dois governos. O que pensa do discurso político que existe actualmente junto dos deputados da Assembleia Legislativa contra os trabalhadores não residentes? O que tem para lhes dizer? Penso que há muitas pessoas que estão contra esse discurso. Há ainda alguma discriminação contra nós e queremos que saibam mais sobre os nossos direitos.
João Luz Entrevista MancheteXiaojiang Yu, professor de ciências geológicas da Universidade de Sidney: “O rio corria preto” Xiaojiang Yu é um académico da Universidade de Sidney com um vasto currículo em ciências ambientais. Fez parte da Agência para a Protecção Ambiental da China no final dos anos 80 e estudou um afluente do Rio das Pérolas. Ao HM falou da forma como a deslocação da indústria de Hong Kong para o Interior da China prejudicou o ambiente de Macau. Xiaojiang Yu declara-se optimista que o mundo consegue abrandar os efeitos das alterações climáticas Estudou os níveis de poluição do Rio Beipan, na província de Guizhou, um afluente do Rio das Pérolas. Quais as conclusões a que chegou? Ao longo de 15 anos, e ao abrigo da estratégia nacional de desenvolvimento do oeste chinês, verificámos que as condições ambientais melhoraram bastante. Os principais problemas que a região enfrentou, e que ainda enfrenta porque é algo que demora o seu tempo, é o impacto humano em termos de geologia, solos, chuva e problemas como as alterações climáticas. Este impacto ainda precisa de ser endereçado, e o pior é não haver aplicação coerciva de leis de protecção ambiental em algumas regiões. Não se pune com eficiência. Quais são as principais fontes de contaminação no Rio Beipan? Hoje em dia diria que são, principalmente, resíduos urbanos e rurais originados pelo sector agrícola. Os resíduos industriais estão sob controlo porque o Governo actuou de forma muito séria nessa matéria, mas também esta fonte de poluição é mais fácil de ser controlada do que os resíduos urbanos e rurais. Esses dois focos de poluição ainda inspiram preocupação e há muito trabalho pela frente nessas áreas. Portanto, as condições ambientais melhoraram. Melhoraram bastante. Antes de visitar a região li um artigo de uma académica norte-americana sobre a gestão de resíduos na China que se focava, em particular, na poluição dos rios. O estudo dizia que o rio corria preto e que a China iria enfrentar desafios ambientais muito graves. Quando foi a Guizhou, foquei-me no Rio Beipan como meu case study, é um rio a montante do Rio das Pérolas, reparei que a água era bastante limpa. Então perguntei às pessoas se o rio havia sido sempre assim limpo e eles disseram que durante a década de 90 era muito sujo e que, de facto, corria preto e também com bastante lama, em especial quando chovia devido à desflorestação e desperdício de minas que era depositado no leito do rio. Os resíduos das minas de carvão eram, sobretudo, cinzas resultantes da lavagem do carvão. Sofia Margarida Mota Daí o rio preto. Durante a década de 90 não havia ali sistemas de gestão eficazes, estamos a falar, sobretudo, de minas pequenas que se limitavam a deixar os resíduos ao ar. Então quando chovia e se davam cheias, as águas empurravam estes detritos para o rio. Este rio, assim como outros, vão desaguar no Rio das Pérolas. Em Macau fala-se muito da importação de poluição, seja através do rio, seja transportada pelo vento do Interior da China. Há alguma validade neste argumento? Com base no que sei, a poluição atmosférica tem origem, em grande parte, localmente, é um tipo de poluição que flui e que também pode subir para as regiões interiores, dependendo da direcção do vento. Esta discussão foi tida há uns anos em Hong Kong, dizia-se que a maioria da poluição vinha através do Rio das Pérolas mas, mais tarde, um académico de uma universidade técnica de Hong Kong descobriu que 40 por cento da poluição atmosférica era gerada localmente. Outro aspecto importante é que muita da indústria que está localizada perto do Rio das Pérolas tem origem em Hong Kong. Mudaram as fábricas para montante do rio para o Interior da China e não controlaram bem a produção de poluição atmosférica, mas também poluição fluvial. Estamos a falar de 80 mil fábricas de Hong Kong que foram deslocadas para norte. Passados uns anos começaram a queixar-se da poluição no Interior da China, mas não fizeram nada. Acabaram por perceber que para resolver o problema da poluição é necessário cooperação entre Hong Kong, Interior da China e Macau. Esta deslocação de fábricas de Hong Kong para o Interior da China acabou por afectar mais Macau? Sim, Macau e Hong Kong. Acho que agora melhorou bastante. O meu estudo foi realizado a dois mil quilómetros de distância de Macau, mas posso dizer que só com base no que vinha com o Rio Beipan a qualidade da água melhorou muito. Estão sempre de acordo com os standards de qualidade nacionais. Depois de 2003, a qualidade cumpriu sempre os standards e, por vezes, era mesmo muito melhor. Foi algo que o Governo chinês conseguiu através de políticas rígidas. Mas acho que também o Rio das Pérolas melhorou bastante porque desde 2006 o Governo da província de Guangdong exigiu parâmetros de gestão ambiental ao sector industrial. Ou as fábricas modificavam as operações de forma a cumprir os parâmetros, ou fechavam, ou mudavam as instalações para outro sítio. As fábricas que permaneceram tiveram de fazer uma modernização de equipamento e implementar métodos de gestão ambiental mais exigentes. Neste aspecto, o Governo deu apoios financeiros para procederem a estas renovações. Aconteceu com algumas indústrias receber o financiamento e não fizeram as devidas alterações até haver uma fiscalização por parte das autoridades. No final dos anos 80 trabalhou na Agência de Protecção Ambiental da China. Nessa altura não se falava tanto de alterações climáticas, mas mais do buraco do ozono. Como analisa esta evolução? Estamos a falar de altas esferas do Governo chinês. Creio que nessa altura começou-se a olhar mais seriamente para estes assuntos, algo que começou à volta de 1973, quando se começou a falar de desenvolvimento sustentável. Nessa altura, a China ainda estava na Revolução Cultural, o Primeiro-Ministro Zhou mandou 25 especialistas para uma conferência internacional, quando regressaram trouxeram avisos de que este assunto precisava ser endereçado com urgência. Nessa altura, as preocupações estavam mais viradas para a poluição atmosférica, então começaram a fechar caldeiras industriais porque não queimavam carvão de uma forma eficiente e criavam smog preto e muita poeira. Mas há que perceber que durante esse tempo, a China vivia uma situação económica muito má com muitas pessoas a viver em pobreza extrema. Era, portanto, muito difícil para o Governo fazer alguma coisa como a imposição rigorosa de padrões ambientais para a indústria, algo que poderia implicar a subida do desemprego. Ultimamente, a China aumentou imenso a importação de carvão e continua a usar o carvão para produzir energia. Como vê esta situação? Na China não se produz muito gás natural e também não existem muitos depósitos de carvão, que em termos qualitativos não é bom carvão, ao contrário da Austrália, por exemplo. Ao usar carvão australiano, por exemplo, pode-se reduzir a poluição. Portanto, foram fechadas muitas minas de carvão chinesas e aumentou-se a importação de carvão estrangeiro. Mas isto não contradiz as metas ambientais ambiciosas de Pequim? Entre 60 e 70 por cento da produção energética ainda é baseada na queima de carvão. É algo que não se consegue mudar em tão pouco tempo. Ainda há necessidade de usar carvão, ao mesmo tempo que se tenta reduzir emissões de gases que produzem efeito estufa e também poluição atmosférica. Portanto, cortou-se no carvão chinês, que causava mais danos no ambiente. Daí a decisão de importar carvão de qualidade, ao mesmo tempo que se aposta em energias renováveis como eólica, solar, hidráulica e nuclear. Outra das apostas passa por promover a eficiência energética, aspecto no qual acho que a China já ultrapassou os Estados Unidos, apesar do carvão ainda fazer parte substancial das políticas energéticas chinesas. Vê essa realidade mudar brevemente? Não, acho que ainda precisa de desenvolver, gradualmente, mais produção de energias renováveis. A China apostou muito na energia hidráulica, mas essa fonte custa agora muito em dinheiro e em efeitos ambientais. Com as alterações climáticas mudaram os padrões de chuva, aumentaram os períodos de seca e isso não é bom para este sector energético. Em relação às alterações climáticas. Está optimista que podemos reverter o curso em que estamos? Nos anos 80 e 90 enfrentámos o problema do buraco do ozono, mas desde da conferência internacional de 1996 para proteger a camada do ozono foram tomadas medidas globais com efeitos muito positivos e, hoje em dia, o buraco encolheu bastante. Algo que há 20 ou 30 anos era considerado impossível. Apesar da saída dos Estados Unidos do acordo de Paris, a maioria dos países quer agir de forma positiva. Não tenho a certeza que conseguiremos inverter totalmente o curso em que estamos, mas acho que devemos conseguir abrandar os efeitos das alterações climáticas.
João Luz Entrevista MancheteConcerto | The Legendary Tigerman traz “How to Become Nothing” a Macau e Shenzhen Três anos depois da passagem por Macau, The Legendary Tigerman regressa como um dos nomes principais do cartaz deste ano do festival This is My City, no sábado às 22h no espaço What’s Up Pop Up, na Calçada do Amparo. O português vai tocar ao vivo a banda sonora do filme, de Pedro Maia, “How to Become Nothing” [dropcap]O[/dropcap] que é que o público de Macau pode esperar deste espectáculo que sai um pouco fora do conceito habitual de concerto? “How to Become Nothing” é um projecto que foi feito a três cabeças, com a Rita Lino, o Pedro Maia e comigo, e não tem nada a ver musicalmente com o disco “Misfit”. No fundo, é um cine-concerto, um live-cinema. O Pedro Maia faz alguma edição e montagem ao vivo. Obviamente, há uma história no filme que é comum a todas as exibições mas, como num concerto, há alguns espaços para improviso e há alterações que fazemos pontualmente em alguns momentos da montagem do filme. O Pedro faz essa parte ao vivo e eu faço a banda sonoro. É uma espécie de um cine-concerto um bocadinho mais livre e experimental. Não tem, portanto, só a ver com o meu universo como Tigerman, antes pelo contrário, até está um bocadinho distante e é um pouco mais experimental. É um trabalho assente na junção de imagem em movimento e música. “How to Become Nothing” é um título um bocado niilista, baseado na ideia do homem que se perde no deserto e de onde sai outro. O que está por detrás deste conceito? No fundo, a ideia inicial era desenvolver um projecto que tivesse a ver com música e imagem em movimento em Super 8 neste caso, porque era o Pedro Maia, e que tivesse a ver também com fotografia. Para mim era importante que fosse algo que se passaria no deserto, teria de ser uma road trip, era assim que eu queria escrever o disco novo. Antes de começar a compor o disco queria que fosse criado este universo visual e que fosse feita esta viagem e este personagem que dá pelo nome de Misfit. É o personagem principal do filme ao qual eu dou corpo. Desenvolvemos esta ideia a partir de um livro que chega a ser um bocado cómico, que é o “How to Disappear Completely and Never Be Found”, do Doug Richmond. O livro é quase um guia para quem quer desaparecer do mundo quando tem problemas, sei lá, com o IRS, ou para quem quer fugir para algum lado. Partimos dessa ideia muito simples e pragmática da road trip para colocar isto numa esfera que tem mais a ver com a poesia e a filosofia. Foi um road-movie escrito por mim diariamente, todas as manhãs levantava-me às 6 da manhã e escrevia o diário desse dia. O argumento poderia ter alguma parte de verdade dos dias anteriores, ou poderia ser totalmente ficção, ou uma mistura de ambos, e depois partíamos para o dia de rodagem que tinha sido pré-definido. Sabíamos que esta viagem ia acontecer entre Los Angeles e Death Valley, foi um projecto muito aberto em que sabíamos que havia a busca deste homem, um busca um pouco onírica e muito pouco real de alguém que procura tornar-se em nada. O filme também tem a ver com todo o acesso que nós hoje em dia temos à informação e a toda essa existência digital está muito para além da nossa vida. Daí também termos filmado tudo em analógico. São muitas questões. No fundo, é um filme em formato de cine-concerto, que é uma forma mais livre e experimental, e que acaba por ser mais interessante. É um filme que tem muitas camadas, é algo que só poderia ser feito com uma equipa muito curta e com muita intimidade e entreajuda na própria rodagem. Na realidade, o filme foi rodado em 14 dias e tem muita coisa a ver com o trabalho pessoal dos três, e foi algo que também foi tido em conta e levado para dentro do filme. Como é traduzir essa experiência um pouco existencialista para palco? O filme é um bocado mais livre e experimental, os cortes não são sempre no mesmo sítio, da mesma forma que a história não é sempre exactamente a mesma, há sempre uma variável adicionada. Há uma versão do filme um pouco mais fechada, que foi à Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e que esteve no Indie Lisboa, que vai passar em Portugal e em várias salas de cinema um pouco por todo o lado. Esta parte ao vivo é como se fosse um concerto, há espaço para a minha parte de improvisação, mas há um guião que tenho de seguir porque eu faço a banda sonora do filme ao vivo. No final da travessia do deserto o Paulo foi para o mítico estúdio do Rancho De La Luna gravar o disco “Misfit”. Como foi a gravação e como define este disco? É um disco totalmente de viragem em relação a tudo que está para trás na minha carreira. Por um lado, porque é o primeiro disco que eu gravo neste formato, ou seja, que não gravo enquanto one-man band. Gravei com o João Cabrita no saxofone e com o Paulo Segadães na bateria. O disco foi composto já a pensar que seria, pelo menos, um trio. Na realidade é, também, o momento em que me apetece descolar totalmente do formato de one-man band, mantendo alguns dos pressupostos que acho que são importantes a nível de arranjos e próprio espaço que a música pode ter. O facto deste trio ter surgido um bocado por acaso, e de se ter vindo a criar quase como se fosse uma banda, acabou por influenciar muito o modo como compus para este disco. Foi gravado no Rancho De La Luna, mas acabei por optar por misturar em Paris com o Johnny Hostile, que misturou as Savages. Ele tem uma abordagem muito contemporânea e inovadora, a forma como ele mistura discos de rock interessou-me porque não queria um disco que soasse ao século passado. Portanto, estou muito feliz com essas opções todas que parecem díspares, mas há aqui um equilíbrio muito grande entre gravar num estúdio praticamente todo analógico no meio do deserto e depois ir misturar em Paris de uma forma mais virada para a música electrónica do que propriamente ao rock. Acho que acabou por funcionar muito bem. Como se sentiu com a necessidade de censurar parte do filme para o público de Shenzhen? Foi algo que estava pressuposto desde o início. Ou optávamos por não passar o filme, ou por censurar o filme e ir a negro, ou por fazer esta opção de desfocar as imagens. Não sei se vai funcionar, ou não, se vamos conseguir fazer isto assim. Houve um momento em que tinha de decidir se queria mostrar o filme e, de alguma forma, marcar uma posição qualquer desfocando as imagens, ou não mostrar. Acho que é importante passar por este tipo de situações porque elas existem. Se elas não existissem em 2017 seria sinal de que a liberdade é uma coisa um bocado mais comum e em alguns países ainda não é assim. Acho que é importante para nós podermos levantar estas questões passando por elas. A mim custa-me imenso que o filme vá passar assim mas, definitivamente, prefiro fazê-lo, que se fale sobre isto e que se questione o facto de se estar a fazer isto.
Sofia Margarida Mota Entrevista MancheteCeleste Wong, presidente do IAS: “Vamos discutir a lei da adopção com a DSAJ no próximo ano” Ajudar os que mais precisam é a tarefa geral do Instituto de Acção Social de Macau. Para Celeste Vong, presidente do organismo, há ainda muito que melhorar, mas as medidas que o instituto tem vindo a tomar estão a dar os seus frutos. Na calha está a revisão da lei da adopção sendo que será discutida, para o ano, com os serviços de justiça. As prioridades estão no apoio aos idosos Que balanço faz da lei da violência doméstica depois de mais de um ano da sua entrada em vigor? Tem funcionado muito bem até agora. Tínhamos tudo bem preparado antes da lei entrar em vigor com outros departamentos do Governo, no total seis, e trabalhámos em proximidade com ONG. Tivemos uma boa preparação para a aplicação desta lei, e fizemos as necessárias regulamentações de como os vários organismos devem tratar os casos de violência doméstica. Fizemos manuais para todos os envolvidos, departamentos do Governo, ONG e também criámos o Sistema Central de Registo para recolher os números e a natureza dos casos. Tudo ficou pronto. Além disso, temos relações de trabalho muito próximas. Até agora, tivemos mais de 20 reuniões com esses membros. Acha que a população está sensibilizada e educada para denunciar casos de violência doméstica? A promoção é algo muito importante e que precisamos de reforçar. Nesse aspecto montámos também uma hotline aberta 24 horas e fazemos muita promoção através da televisão, rádio e outros meios para que toda a comunidade esteja desperta para o problema da violência doméstica. É importante para que quem saiba, ou suspeite, de casos denuncie às autoridades. A formação também é importante. Temos apostado nesse aspecto para os funcionários da hotline e também junto da comunidade como, por exemplo, em escolas. Também para os funcionários do Instituto de Acção Social. Temos mantido contacto de cooperação com a PSP, PJ, Serviços de Saúde, DSEJ, DSAL e o Instituto de Habitação. Em cada meio ano fazemos uma reunião para avaliar a aplicação da lei. Temos mantido cooperação com as ONG que têm dez centros de serviços comunitários. Sofia Margarida Mota Porquê o Instituto de Habitação? Porque as vítimas também têm problemas de alojamento. É nesse sentido que tentamos ajudar. Também temos dois abrigos para as vítimas, com 55 vagas e 2 abrigos temporários com 45 camas. Quantos homens receberam o vosso apoio por questões de violência doméstica? Tivemos três, ou quarto. Temos um centro para homens, com 11 vagas. Achamos que no conjunto temos capacidade suficiente para responder às necessidades e ainda temos lugares vagos para receber mais pessoas. Quantos lugares estão ocupados nas casas de acolhimento neste momento? Até Setembro eram 34, no centro de abrigo. Nas residências temporárias só temos seis pessoas. Internacionalmente, nesta matéria, são designadas equipas com psicólogos, assistentes sociais, médicos psiquiatras para acompanhar os casos. Acha que Macau tem psicólogos suficientes para fazer este trabalho? Na minha opinião, há falta de psicólogos. As pessoas fazem confusão entre o trabalho do assistente social e do psicólogo e, na realidade, os profissionais da área da psicologia estão sob a alçada dos Serviços de Saúde, enquanto nós temos assistentes sociais. Claro que nos serviços sociais também temos pessoas com formação em sociologia e disciplinas do género. A psicologia clínica é um ramo diferente. Os psicólogos clínicos, normalmente trabalham em conjunto com assistentes sociais. Na sua opinião, acha que é importante começar este tipo de trabalho aqui no IAS? Isso já acontece em Macau. Pessoas que têm formação em psicologia também podem trabalhar nas escolas, nos serviços sociais e são bem-vindos para trabalhar com os nossos assistentes sociais. Apesar de serem trabalhos diferentes, com formação diferente, há áreas em que podem trabalhar bem juntos, como por exemplo em terapia. Os psicólogos clínicos podem tratar dos casos mais graves. Mas acho que Macau tem falta de psicólogos clínicos. Na sua opinião o que pode ser feito? São necessários mais profissionais nessa área. Com o crescimento económico, muitas pessoas enfrentam agora problemas psicólogos e querem e precisam de ter apoio psicológico. Os assistentes sociais podem fazer isso, mas psicólogos clínicos podem ajudar em casos mais graves. Quais os principais problemas psicológicos que a população de Macau enfrenta? É natural que durante as épocas de crescimento económico sejam agravados os problemas de cariz psicológico. A nossa responsabilidade é tentar o nosso melhor para equilibrar e para diminuir os efeitos secundários destes problemas nos cidadãos. Há mais stress, a constituição das famílias agora também é diferente, é mais pequena. Antigamente, os casais tinham, por regra, mais filhos. Era normal terem quatro ou cinco filhos, o que fazia com que houvesse pessoas dentro de casa com quem partilhar problemas, angustias e mesmo as alegrias. Agora, os pais têm um ou dois filhos, trabalham e o stress pode ser maior do que antes. Antes a vida era mais simples e actualmente, complicou-se. Relativamente à adopção. Neste momento Macau tem uma criança disponível para adopção e os centros de acolhimento estão cheios de crianças. Mas, os pais não autorizam que fiquem disponíveis para adopção e a lei não permite o seguimento dos processos sem autorização parental. Na sua opinião, acha que a lei da adopção precisa ser revista? Temos de olhar para este assunto com a solenidade que merece. Em Macau, não há muitas crianças para adopção, mas para garantir os direitos e interesses das crianças temos de ter uma atitude muito séria. Para a revisão da lei da adopção, temos de trabalhar com a Direcção dos Serviços dos Assuntos de Justiça (DSAJ), porque é o departamento responsável pela redacção das leis. Quanto ao processo de adopção temos trabalhado muito para que seja melhorado e facilitado mas, e mais uma vez, o mais importante é garantir os direitos e interesses das crianças. Temos mantido contacto permanente com as ONG para saber melhor acerca dos problemas nesta matéria. Acha que é bom para uma criança passar a vida num abrigo? Porque a lei actual permite que isto aconteça. Acha isto positivo? De acordo com a minha memória, não temos muitos casos de crianças que ficam a vida inteira nos centros. Mas esses casos já existiram e podem existir se não houver alterações. A lei devia, ou não, estabelecer um prazo para os pais dizerem que querem ficar com a criança? Este tópico está na nossa agenda. Vamos discutir a lei da adopção com a DSAJ no próximo ano. Em termos de pobreza, o que é que o IAS tem feito e o que é preciso ser feito? Atender às necessidades das pessoas que vivem numa situação de pobreza é uma das nossas maiores responsabilidades. Estamos contentes, porque a população mais pobre decresceu. De acordo com os nossos dados, em 2012 tínhamos cerca de 5900 famílias carenciadas e que precisavam da nossa ajuda, que precisavam de subsídios. Em 2016, só tínhamos 4400 famílias, sendo que mais de mil famílias já não recebem o nosso subsídio. Também no que diz respeito a casos novos, entre 2012 e 2016, todos os anos, são em média, 318. Mas os casos que deixam de precisar da nossa ajuda são, também em média, 550, mais do que os casos novos. Que razões estão na base destas melhorias? As razões para estes números prendem-se com a boa situação económica de Macau e com os apoios sociais que ajudam as famílias a terem uma vida melhor. Por outro lado, também a taxa de desemprego é muito baixa. Nos nossos serviços não damos só dinheiro, também ajudamos os utentes a reunirem as condições necessárias para que possam voltar a trabalhar. Fornecemos formação e temos políticas de encorajamento para reintegração social. Os beneficiários de subsídios também continuam a receber os mesmos mesmo quando encontram trabalho, pelo menos até conseguirem estabilizar a sua situação economia. Queremos dar confiança às pessoas para que voltem a trabalhar, encorajá-las a assumir as suas responsabilidades. As pessoas não gostam de depender de terceiros, ou do Governo. Queremos que as pessoas se ajudem a elas próprias, se reergam, esse é o nosso propósito. Segundo os nossos registos, mais de metade das famílias que ajudamos, são quase pobres, ou seja, têm rendimento mas estão no limiar do risco social. Também ajudamos pessoas para não caírem em situações de pobreza. Quais as principais razões de pobreza em Macau? Talvez, a doença. Mas as situações de pobreza locais têm que ver com perda de emprego que está muitas vezes associada a contextos de drogas ou de crime. Quais são neste momento as prioridades do IAS? Em 2016 tivemos a nossa reestruturação dos serviços e ainda estamos a acertar muitas coisas para ver o que podemos melhorar. Mas como prioridade neste momento, temos a organização dos lares para idosos existentes e a criação de mais. No que respeita às creches, pensamos que agora temos já lugares suficientes pelo que, de facto, a prioridade para a criação de lugares e de mais condições é destinada a idosos.
João Luz Entrevista MancheteIsolda Brasil, escritora e advogada | Macau e o realismo mágico A viver há oito anos em Macau, Isolda Brasil sempre teve dentro de si uma linguagem que está para além da que usa para advogar em causas laborais. É, essencialmente, escritora e o seu primeiro livro “O Último Sangue da Trindade” chega agora às bancas virtuais e físicas. A obra é uma saga familiar que se desenrola num ambiente mágico inspirado os Açores, onde a autora cresceu Porque só agora surge um livro escrito em português? Na verdade, já estava escrito há dois anos. Primeiro escrevi um livro em inglês em 2014 (The Wanton Life of My Friend Dave), com o qual ganhei o prémio norte-americano do The IndieReader Discovery Awards. Logo de seguida comecei este livro, “O Último Sangue da Trindade”, em português. Foi escrito de uma forma muito rápida mas, entretanto, ficou suspenso entre o trabalho e a maternidade, porque também fui mãe. Não houve muito tempo para pensar no assunto. Entretanto, surgiu a oportunidade de publicar pela editora Alfarroba. O livro era para ter sido publicado no início deste ano mas as coisas acabaram por se atrasar um bocadinho e ficou decidido deixar para a segunda época de publicação em Portugal, ou seja, para o Natal. Daí ter saído agora, ficou disponível a partir de dia 1 de Dezembro online. O livro é marcado por uma matriz profundamente matriarcal e foi escrito enquanto se preparava para ser mãe. Estes timmings foram coincidência? Não exactamente. Na altura em que escrevi o livro estava grávida da minha primeira filha, ainda não sabia o que era ser mãe, ainda não tinha tido essa experiência. O livro foi influenciado pelo que se passava na minha vida, é claro, a pessoa vai sempre buscar aquilo que lhe está mais próximo, aquilo que conhece. Ao mesmo tempo, foi também um pouco inspirado na história de outras mães e trouxe essa realidade emprestada que não conhecia em primeira mão. Mas não é só uma história de mães, o livro aborda relações familiares, fraternais, tudo o que nos está no sangue. Como foi o processo de escrita de “O Último Sangue da Trindade”? Decidi tentar o prémio Leya. Necessariamente, tinha de escrever em português. Escrevi este livro em muito pouco tempo, em cinco meses escrevi 500 páginas. No final do dia de trabalho, chegava a casa e escrevia. Não fazia mais nada, foi um processo muito intensivo. Fins-de-semana e noites a escrever. Tendo em conta que tinha muito pouco tempo, optei por um tipo de história que me saísse naturalmente e numa linha que eu gosto muito que são as sagas familiares e o realismo mágico. Foi muito fácil escrever a história, saiu-me muito naturalmente. Escrevi o livro tendo os Açores como pano de fundo, apesar de nunca serem referidos de forma específica. Eu nasci na Madeira, mas cresci nos Açores, a minha mãe é madeirense e o meu pai açoriano, portanto, sou um mix. Os Açores são uma realidade que conheço de perto, apesar das minhas raízes serem madeirenses tenho uma grande afinidade com os Açores que é o lugar ao qual sinto que pertenço mais, a minha alma é açoriana. Foi a opção que tomei por achar que era aquilo com que me sentia mais confortável e que conseguiria fazer, em pouco tempo de forma a escrever uma história que tivesse pés e cabeça numa realidade que me é familiar. Não quis atribuir o local da narrativa a uma ilha concreta, apesar de haver detalhes históricos dos Açores muitos deles ligados ao elemento mágico que, de certa forma, lhe dão alguma graça. Por exemplo, o vulcão dos Capelinhos na Ilha do Faial, entra na narrativa com uma explicação mágica para um acontecimento traumático da história, que é um desgosto amoroso. Uma grande erupção de mágoa de uma personagem que dá origem ao vulcão e que vem acrescentar um quilómetro à ilha. Também uso referências à primeira guerra mundial, à forma como o povo açoriano sentiu esse período, algo que tive conhecimento através de histórias de família. Também me foquei na forma como as pessoas viviam num mundo bastante isolado, foi também uma realidade que procurei transmitir sem ser exaustivamente descritiva. Tentei transmitir a realidade do que é ser açoriano, ser ilhéu, e a vivência do ilhéu com o resto do mundo. Quando os açorianos se referem a Portugal continental, referem-se ao continente que é lá fora, enquanto que nós estamos aqui dentro. É um pouco como Macau, fala-se do Interior da China e nós estamos no Exterior. Como foi escrever um livro inspirado na realidade açoriana a meio mundo de distância? É feito com base na memória e em muita saudade, obviamente, com base naquilo que se guarda da ilha e das suas pessoas. Dei também um tratamento à própria linguagem, que é muito tipicamente açoriana. O discurso directo no livro segue aquela forma enrolada que os açorianos têm de falar, a forma como colocam as palavras na frase. Tentei transmitir uma ideia de evolução da forma de falar à açoriano desde o início do século XX, uma forma muito respeitosa. No fim do livro, quando chegamos aos tempos modernos, as personagens já têm outro tipo de tratamento linguístico. Como é para uma autora escrever num território onde há muito poucos potenciais leitores que leiam em português? Como é escrever para um público que está longe? Não racionalizei isso. Claro que a minha escrita já sofreu influência por tudo aquilo que passei desde que saí de Portugal. Quando escrevi o livro em inglês, quem o leu foram os meus amigos, como é óbvio. Resolvi ver o valor desse livro em inglês, uma vez que os nosso amigos dizem sempre que escrevemos muito bem. Mas uma pessoa quer saber se o que escreveu é bom, ou não. O prémio norte-americano já veio depois de eu ter escrito o livro em português. Portanto, quando escrevi, não pensei num público em particular, não tive essa sensibilidade. O primeiro livro escrevi-o para ver se conseguia escrever um livro em inglês e depois pensei em escrever em português. Tinha o deadline do prémio Leya para o ter pronto, sem pensar no público mas a pensar no tipo de livro que eu gosto de ler. Vive em Macau há oito anos. Há por aqui também um realismo mágico, um absurdo na cidade. Até que ponto acha que é uma cidade que induz imaginação, que inspira? Há muitas coisas sobre Macau que inspiram. Comecei outro livro em que parte da acção se passa em Macau, aí vou mesmo atribuir-lhe um lugar específico. Passa-se aqui muita coisa, Macau é muito denso, é sempre tudo muito cheio, de gente, de estados de espíritos, culturas e isso confunde-me um bocado por causa do excesso. Como fonte de inspiração, acho que tem uma grande potencialidade para isso, mas é preciso fazer uma boa gestão porque é tudo em grande. É um sítio pequeno onde tudo é em grande escala. Em Portugal estamos habituados a espaços mais arejados em todos os aspectos, físico, intelectual, o nosso espaço e o dos outros é maior. Aqui aglomera-se tudo, acho que isso dificulta um bocado, importa uma gestão na parte escrita porque é tudo demasiado. Gerir toda a informação, passá-la para papel e tentar utilizar isso na escrita não é fácil. Quando comecei o livro que estou a escrever agora senti essa dificuldade, como usar Macau na escrita e como fonte de inspiração. Acha que vai conseguir algum dia parar de escrever? Acho e espero que não. Honestamente, espero que não. Sou advogada de profissão, mas não é esta a minha paixão. Gosto muito daquilo que faço, sinto-me realizada na minha profissão, mas não é aquilo que fala mais forte em mim. O que fala mais forte em mim é a escrita, eu sempre escrevi desde miúda. Participei e ganhei muitos prémios literários na adolescência, parei durante a faculdade e início da vida profissional e só retomei agora quando escrevi o primeiro livro em inglês. Mas não quero parar, quero continuar e, se possível, fazer da escrita a minha profissão. Seria um prazer porque é aquilo que realmente me dá gosto. Se me perguntarem se sou advogada ou escritora primeiro, sou escritora primeiro, sem dúvida.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteRegina Campinho, estudiosa do património de Macau: “Nem tudo merece ser conservado” A arquitecta Regina Campinho está a fazer um doutoramento na Universidade de Coimbra com o projecto de tese “Macau, 1850-1950: cidade portuguesa no declínio do império”. Este foi um “período de transição para a modernidade”, cujo património pôde ser preservado graças à legislação adoptada a partir dos anos 80. Ainda assim, Regina Campinho lamenta que se continue a perder património “por falta de reconhecimento do seu valor e da sua história” Antes de mais, como surgiu o interesse pelo património de Macau? Quando se embarca numa aventura de investigação de longos anos, como é o doutoramento, penso que no início está sempre uma questão de afectos. No meu caso, quis o destino que eu encontrasse em França, onde fiz o programa Erasmus, aquele que viria a ser o meu marido, que por sinal nasceu em Xiamen e cresceu em Hong Kong. Sou natural de Braga e tirei o meu curso na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, tendo frequentado o 5° ano através do programa Erasmus na École d’Architecture de Nancy). Seguiram-se as costumeiras viagens para conhecer a família, nas quais eu aproveitei sempre para ir espreitar Macau, essa mítica terra portuguesa no oriente longínquo. E pouco a pouco, por força das circunstâncias, esse mesmo oriente deixou de ser longínquo para se tornar familiar. Tendo-me especializado em património arquitectónico e trabalhado alguns anos em França na área da renovação urbana, na altura de escolher o tema da tese a inclinação natural foi para o património de influência portuguesa (título do programa de doutoramento que integro na Universidade de Coimbra) e, dentro deste vasto tema, a história urbana de Macau, por estar agora perto do coração. Decidiu estudar o período correspondente a 1850 a 1950. Considera que este período foi fundamental para erguer o tecido urbano de Macau que ainda existe? Precisamente. Este foi o período de transição de Macau para a modernidade, como é comum ver-se escrito nas diferentes histórias do território. Esta transição começa nos anos 1850, no seguimento da 1ª Guerra do Ópio e das reformas do Governador Ferreira do Amaral e, considerei eu, que se esbate com a inauguração do Porto Exterior. Depois virão outras fases de desenvolvimento até à actualidade, que têm sido mais estudadas. Acredita que parte desse património estará em risco ou já terá mesmo desaparecido? Graças à legislação e à prática de protecção do património que foi sendo implementada em Macau a partir dos anos 1980, este tecido relativamente antigo foi sendo conservado, sobretudo nas áreas de influência dos monumentos classificados. Não penso que se deva adoptar uma atitude saudosista em relação à cidade. Os processos de renovação e de reciclagem dos imóveis são naturais e universais e devem ser aceites como tal. Nem tudo merece ser conservado. O que é pena é ver perder-se o património urbano por falta de reconhecimento do seu valor, por falta de conhecimento da sua história, como aconteceu no passado e continua a acontecer em Macau. Hoje em dia a cultura patrimonial do grande público permite à maior parte reconhecer o valor da arquitectura excepcional: não passa pela cabeça de ninguém demolir a Igreja de S. Domingos, por exemplo. Mas nos anos 1900, quando essa cultura patrimonial não estava de todo desenvolvida, chegou a equacionar-se essa demolição para dar lugar à construção de mais um quarteirão de habitações. O que se passa com o tecido urbano antigo, muitas vezes degradado ou desfigurado, é que o seu valor patrimonial não salta aos olhos. Por isso, fora das zonas de protecção como o centro histórico ou outras zonas pontuais já restauradas, é fácil substituí-lo por outra coisa e assim se ir perdendo a pouco e pouco o valor do conjunto. Nessa fase como se começou a desenvolver a cidade além dos portos comerciais? É verdade que o porto foi sempre o motor da renovação da cidade, o que não é de admirar, visto ter sido desde a fundação do estabelecimento o núcleo da sua actividade comercial. A partir da década de 1850, acumulam-se as dificuldades no Porto Interior, o que leva ao surgimento de um grande número de estudos e projectos para a sua reestruturação e depois para a criação do Porto Exterior. Paralelamente, e muitas vezes pelos mesmos autores dos projectos de reestruturação do porto, avançam os projectos de renovação e extensão da cidade, quer sobre a frente de rio, quer sobre a cidade a cidade antiga, com os diversos projectos de melhoramentos de bairros designados como insalubres, cuja obra maior é sem dúvida a abertura da Avenida Almeida Ribeiro. Não esquecendo ainda os projectos de reestruturação integral dos bairros pobres nas franjas da cidade, como na zona de São Lázaro. Que influências da arquitectura portuguesa houve nessa altura? O que será interessante pôr em perspectiva sobre esta época de intensa renovação urbana é, do meu ponto de vista, a universalidade destes processos de transformação. Não se trata então de referir uma influência portuguesa específica, mas antes de analisar o fenómeno de globalização e de homogeneização das práticas de ordenamento urbano que advém com a introdução, a partir da segunda metade do século XIX, do planeamento urbano institucionalizado em contextos urbanos pré-industriais, na metrópole como no Ultramar, como instrumento de “modernização” das cidades. Trata-se, então, de interrogar a história urbana portuguesa de Macau, por um lado sob o prisma do projecto colonial português da época contemporânea, e por outro sob o prisma desta macro-escala que o investigador Anthony D. King designa por “sistema urbano mundial”. Havia, nessa época, a preocupação de desenvolver a cidade fora da zona marítima? Quais foram os principais intervenientes? À parte alguns especialistas vindos de Portugal com missões de estudo relativas ao porto, como foi o caso do Engenheiro Adolfo Loureiro, por exemplo, a maior parte dos projectos, quer para os portos, quer para a renovação da cidade, eram feitos pelos engenheiros do corpo das obras públicas, em estreita colaboração com os médicos do serviço de saúde. Ambos os corpos de serviço público eram funcionários com formação no reino ou nas escolas de Goa, que cumpriam em geral comissões de alguns anos em Macau, antes de prosseguir as suas carreiras profissionais no circuito colonial. Para além do poder de decisão dos Governadores, que ganham eles próprios protagonismo a partir de meados do século XIX, era principalmente esta rede de técnicos que desenhava a transformações das cidades do império e que fazia circular as teorias de modernização. Que análise faz ao tratamento e atenção que era dada, por parte da comunidade chinesa e portuguesa, ao património português em Macau? A protecção do património em Macau começou naturalmente com a administração portuguesa, com o mesmo impulso que foi dado nos anos 1980 à protecção patrimonial em Portugal, e infelizmente com as mesmas lacunas. Volto à questão da visão de patrimonialização a partir do monumento. Sem verdadeiros instrumentos de protecção do património urbano, este foi-se degradando em Macau como nas cidades metropolitanas, em razão da pressão imobiliária. As autoridades chinesas retomaram a linha traçada pelos portugueses a partir da retrocessão do território, quer em termos dos bens integrados na Lista do Património Mundial, quer quanto aos bens protegidos localmente. O que não deixa de ter os seus méritos, e vai permitindo que estes se conservem e se renovem de forma satisfatória, do meu ponto de vista, num quadro que contempla não apenas edifícios e conjuntos de origem portuguesa, mas também chinesa. O que eu defendo é que tanto uma como outra comunidade têm imenso a ganhar em apoiar estudos sobre o património urbano macaense na sua globalidade o qual encerra, porventura de maneira mais complexa e interessante do que o elenco de monumentos, pistas para a compreensão da história da colaboração entre estas duas comunidades na construção da cidade. A sua tese visa contribuir para uma outra perspectiva da história do tecido urbano de Macau e respectivo património? É claramente o meu propósito. A ideia é estudar – para dar a conhecer – para melhor proteger. Dar a conhecer uma paisagem urbana constituída por monumentos que se inscrevem num quadro urbano. E promover a ideia de que proteger esta paisagem urbana histórica (ver referência da UNESCO) é tanto ou mais importante do que proteger apenas os seus monumentos. Considera que há muito a estudar no património de Macau? É uma área esquecida pelos académicos portugueses? Sem dúvida! É preciso ir muito além do que já se sabe para trazer à luz da história o que para já permanece na sombra. Mas não creio que Macau esteja esquecida, antes pelo contrário! Há muita gente a estudar o património macaense, em português mas também em chinês. Penso aliás que uma grande lacuna neste momento é a falta de contacto e de legibilidade entre os investigadores que publicam em línguas diferentes. Poderia haver um esforço dos patrocinadores para traduzir uns e outros em inglês, por exemplo, num espírito de partilha verdadeiramente universal do conhecimento e de diálogo entre as diferentes versões da história. Fica a sugestão. Quando é que este projecto estará concluído? Neste momento encontro-me no terceiro ano do doutoramento. Com algum optimismo, marcamos encontro em Coimbra para a defesa da tese em 2020!
Sofia Margarida Mota Entrevista ManchetePaulo Duarte, investigador: “‘Uma Faixa, Uma Rota’ é para os filhos dos nossos filhos” Paulo Duarte esteve em Macau para o lançamento do seu terceiro livro na passada sexta-feira, “A faixa e rota chinesa: a convergência entre terra e mar”. Para o investigador que se dedica à pesquisa acerca das relações da China com o mundo, a política “Uma Faixa, Uma Rota” é uma estratégia de longo prazo para garantir o futuro dos habitantes do país mais populoso do planeta. Cabe aos países que se associam aproveitar os benefícios que o projecto lhes pode trazer. A Macau, enquanto plataforma, sobra a iniciativa de acções que aproveitem as vantagens geográficas e linguísticas do território na comunicação com os países de língua portuguesa Tem três livros que fazem análises profundas sobre a China. De onde veio esse interesse pelo país? Eu diria que não escolhi, fui escolhido pela China. A minha relação com a China foi recíproca. Fiz mestrado e doutoramento na Bélgica e tinha uma cadeira de China and World Politics. A cada aula que passava, a avidez por conhecimento pela China tomou conta de mim. Quer dizer, fui tomado pela China. Nesse sentido, continuei na Bélgica a fazer o doutoramento e depois tive a ocasião de ir para a Ásia Central fazer investigação de campo. Estive no Cazaquistão duas vezes, no Quirguistão e Tajiquistão, são três dos cinco Estados nascidos do colapso da União Soviética. São Estados do ponto de vista cultural extremamente enriquecedores. Esta passagem pela Ásia Central reflecte-se, sobretudo, no segundo e terceiro livro. Quis começar, justamente, por falar da periferia chinesa. Do porquê da importância da periferia. Basta recordar que é na periferia, no Cazaquistão, que a China lança a sua faixa e rota para o mundo. Quis aliar neste livro a convergência entre o mar e a terra. Não é só a terra que é importante, não são só as linhas de alta velocidade, é também o mar, sempre foi por mar que a China processou e processa a maior parte do comércio, as estatísticas divergem entre 80 a 90 por cento. Mas a terra vem aqui surgir como um complemento. A China está a revisitar a sua essência, a sua história. Desta vez sem camelos ou mulas, mas por ligações de alta velocidade, comboios e uma emergência de uma série de corredores logísticos e grandes portos. O livro “Faixa e Rota Chinesa” é o primeiro livro em língua portuguesa sobre este grande projecto. O que é, realmente, “Uma Faixa, Uma Rota”? É o renascer de um projecto que outrora ligava a China à grande periferia mundial. A China já foi grande. Hoje Trump fala em “making America great again”, esta política é, por outras palavras, “making China great again”. Por várias razões. Economicamente, a China tem crescido ao longo das últimas décadas, excepto recentemente em que a economia conheceu um período menos bom. A indústria da construção, que tem sido o grande motor do crescimento chinês, precisa de ser lançada e a Faixa e Rota mais não é, em termos práticos, do que empregar os chineses em projectos logísticos entre o Oriente e o Ocidente. Em termos políticos, ao longo da história os vários líderes tiveram diferentes narrativas e o que se passou com a Teoria das Quatro Modernizações ou o que se passou com o desenvolvimento científico do Hu Jintao. Hoje temos mais uma narrativa, “Uma Faixa, Uma Rota” é mais uma narrativa. Não digo só esta política, mas da grande concentração de poder que se está a formar em torno de Xi Jinping. O que é que esta política reflecte a nível cultural? A componente cultural é o soft power. Não é por acaso que a China é um actor tardio em termos de soft power. Andei pela Ásia Central e a sinofobia, o medo da China é omnipresente. A propaganda soviética tinha incentivado o temor pelo povo chinês do ensino básico até à universidade. Ainda hoje na Ásia Central, para não dizer em outras regiões do mundo, há receio de que os chineses cheguem e tomem terras, empregos. A China sentiu, a tempo, que o crescimento económico não gera, propriamente, simpatia. É preciso revisitar o passado da Rota da Seda, em que a China negociava pacificamente com os povos da grande periferia global. Revisitar o passado traz boas memórias aos chineses. Mas para combater as percepções que o mundo tem da China é preciso arranjar aqui ideias nobres. É preciso explicar que a China não é aquele gigante que vem apenas aqui para fazer comércio e há que fazer proliferar, por exemplo, os Institutos Confúcio. Há que educar o mundo acerca da cultura chinesa? Exactamente. A melhor maneira para nós percebermos aquilo que não conhecemos é começar por falar a língua do desconhecido. Não é por acaso que os Institutos Confúcio são não só um início da aprendizagem do mandarim, que é uma língua dificílima, mas também uma fonte de incentivo da cultura chinesa, porque a China não é só o mandarim, há toda uma cultura milenar, simplesmente não tem o nosso ponto de vista. Aquilo que a China faz fá-lo numa perspectiva de décadas, de gerações. “Uma faixa, Uma Rota” é para os filhos dos nossos filhos. A China não pensa à ocidental, o que eles fazem é pensar para décadas, porque estamos a falar de alimentar o povo mais populoso do mundo. Não se vai buscar recursos num planeta escasso, tem de se pensar a longo prazo. No futuro isso representa mais bocas, mais necessidade de alimentos e energia e mais necessidades de construir estratégias. “Uma faixa, Uma Rota” é, em todos os aspectos, económico, político e cultural, explicar que a China quer criar a tal comunidade de destino comum. Ou seja, o desenvolvimento deve ser não só para a China, mas para todos. Criar o ambiente favorável para a reemergência chinesa e dividir os dividendos do progresso com a comunidade. Fazer perceber que a China não é o gigante susceptível de ser temido, mas é alguém que quer partilhar os frutos do progresso. “Uma faixa, Uma Rota” é, nesse sentido, uma partilha e um emanar de soft power. Acabou de chegar de Pequim onde esteve reunido com elementos de várias universidades chinesas com cursos de língua portuguesa. Qual o papel da língua portuguesa neste projecto “Uma faixa, Uma Rota”? O português é a quinta língua mais falada do mundo. A China está atenta a isso. Tal como a China, os mercados onde a língua oficial é a portuguesa, nomeadamente o Brasil, não são mercados estanques, tendem a evoluir. Sendo o português a quinta língua mais falada do mundo, é preciso utilizar uma plataforma, pode ser Macau, embora a China não necessite tanto de Macau como Macau necessita da China. Isto é, a China sempre utilizou a via bilateral e Macau proporciona uma via multilateral. Mas quando a China tem realmente interesse em forjar laços sempre o fez pela via bilateral. Multilateralismo é um complemento. A China tem interesse nos mercados de língua portuguesa porque é preciso pensar em Angola, o segundo país que mais exporta petróleo para a China, a seguir ao Médio Oriente, à Arábia Saudita. Mas não é só petróleo, é marfim, minérios, ouro, mil e uma coisas. E quem diz petróleo de Angola diz também do Brasil. Mas há outra coisa muito importante: a China tem uma classe média emergente, que supera toda a população dos Estados Unidos e que começa a viajar. Estamos a falar de um potencial de turismo incrível, não só para Portugal como para o Brasil e destinos menos conhecidos como São Tomé e Príncipe, que muito poderão beneficiar disso. Existe também uma classe média que tem gostos cada vez mais requintados, que gosta de frutos exóticos. A China procura petróleo mas procura também, cada vez mais, comprar terras, terrenos para cultivo, porque apenas sete por cento das terras na China são aráveis. Isto quer dizer que durante décadas a China destruiu os solos, fruto da industrialização rápida. 28 mil rios desapareceram na China ao longo das últimas décadas. Isto significa que o país está a procurar cada vez mais aquilo que não tem, que é terrenos no estrangeiro. Há resistência local, então, muita vezes, a China envolve-se em joint ventures, em formas de desenvolvimento de agricultura sustentável nesses países. Não estamos a falar de uma espécie de colonização? Há quem faça essa crítica. Há autores que dizem que sim, outros que dizem que não. Eu digo o seguinte: a responsável não é apenas a China. Cabe aos países anfitriões diversificar as suas economias. Imagine que cai o preço do petróleo. Em vez de virem pedir empréstimos à China, o que têm a fazer é diversificar a sua economia e não concentrarem nem usurparem os recursos dentro da elite. Estes países é que dizem sim à China, não é a China que vai impor as suas condições. Se lhe permitem negociar e comprar, a China fá-lo e muito bem. Cabe a estes países aproveitar as bolsas que a China concede aos seus técnicos, o know-how e as parcerias para formar quadros e para se desenvolverem mais. Além disso, a China começa a ser um terceiro polo de educação. Há cada vez mais gente interessada em vir para o Oriente. Temos um mundo tradicionalmente dominado pela Europa e Estados Unidos a nível de educação, agora a China, Singapura e outros países, estão a emergir. Não é a China que vai fazer a mudança, pode ajudar mas depende dessas pessoas. Daí, aquela visão, ou não, de neo-colonizador. Macau afirma-se muito como uma plataforma. Qual é o papel de Macau nesta política “Uma Faixa, uma Rota”? É preciso ver que do ponto de vista geoestratégico e cultural, Macau beneficia muito da tal fórmula de Deng Xiaoping “Um País, Dois Sistemas”. Macau tem uma posição geoestratégica: está na Ásia, embora o legado seja ocidental. As empresas de Macau são sobretudo PME. Isto significa que Macau, por muito boa vontade que tenha, não pode partir à descoberta da África e da América Latina, sem se aliar com as grandes empresas que já têm conhecimento e know-how do Sul da China. Macau pode ser uma plataforma, não só para feiras, exposições, ou casinos, mas para um ponto de partida em que as empresas macaenses beneficiam de um trilinguismo, uma grande vantagem face a Hong Kong onde se fala só chinês e inglês. Em Macau fala-se português, chinês e nos quadros empresariais fala-se, naturalmente, inglês. Também está localizado a ocidente da foz do Rio das Pérolas, numa convergência de transportes terrestres, marítimos e aéreos. Temos o legado do Direito Ocidental, procedimentos aduaneiros relativamente céleres, empresas de tradução, formação de quadros na área do turismo, as grandes universidades que aqui existem com reconhecimento internacional. Não vejo Macau apenas como a tal feira de exposições, onde vêm cá de vez em quando os grandes industriais. Macau pode, de facto, ser essa plataforma de várias sinergias, na área da educação, do Direito, do Direito Comercial, porque as empresas necessitam de um Direito Internacional e Macau tem a possibilidade de ter e formar quadros que, inclusivamente, eduquem outros asiáticos pela proximidade na área do Direito, Educação e Turismo. Não é Portugal, ou Macau, que têm de esperar que a China Continental venha ao seu encontro de braços cruzados. Cabe a Macau e aos países de língua portuguesa verem aquilo que de melhor têm para oferecer à China. É um processo mútuo. O território pode também ter um papel na divulgação da cultura chinesa? Com certeza. Mas há um ponto que eu critico. Vejo os países de língua portuguesa muito distraídos. Existe um grande receio, sobretudo na Europa, acerca da coexistência no mundo de dois senhores: o parceiro de longa data do pós-segunda guerra mundial, os Estados Unidos, e a China que vem preencher um vazio. Esta é a grande barreira psicológica que ainda existe no Ocidente. Como é que a NATO pode coexistir com a China em parceria numa área global como o terrorismo? Todos nós temos o terrorismo como inimigo, portanto, faz sentido a China aliar-se não só na protecção das linhas marítimas do Mediterrâneo, do Suez, etc. Faz sentido a cooperação cibernética, para fazer face aos apagões cometidos por aqueles países tidos como do eixo do mal, como a Coreia do Norte. Faz sentido uma sinergia de interesses. É preciso que a Europa e outros países afins percebam a China como um contraponto, uma mais valia, uma complementaridade, face ao Ocidente. Está a ser uma percepção difícil? Sim e isso é, talvez, a grande barreira que limita o maior envolvimento da China e a possibilidade de retirar proveito dessa relação com a China. Neste seu livro, “Metamorfose do Poder”, refere que o partido pode estar a terminar a sua idade de ouro, e que pode neste momento estar mais perto de ser um retrocesso do que uma solução. O que quer dizer com isto? Isto é uma crítica que vários autores ocidentais fazem. Há que diga que o soft power chinês tem como grande limitação não partir da sociedade civil, como nos Estados Unidos. As pessoas têm o sonho americano, há um modelo de inspiração, o american way of life. Mas não se vê o chinese way of life porque as pessoas temem a China. A narrativa chinesa. O soft power chinês não nasce, ao contrário do soft power americano, da sociedade civil. Nasce do partido e da sua propaganda. O cidadão médio mundial está reticente em receber o que é do partido e não nasce da sociedade civil. Aí reside o complexo equilíbrio. O partido sabe que se autorizar a liberdade está no fundo a criar problemas à sua própria subsistência. Então o chinês que é mais culto, que viaja, que poderá vir a ter acesos à internet, é o chinês que vai querer sempre mais e vai dizer “não, eu não quero ser controlado, quero ser eu a controlar o meu destino”. E aí está o paradoxo do partido. A iniciativa privada, é aceite desde que possa gerar desenvolvimento, mas o domínio da informação é perigoso para este tipo de regimes por gerar mais necessidade de conhecimento e o indivíduo é sempre ávido. Aí pode estar, de facto, aquilo que mina o futuro do partido. Fala também neste seu livro que nas décadas de 1980 e 1990 os responsáveis pelo poder tinham também interesses privados e isso está na base da corrupção dos altos cargos. O Xi Jinping tem vindo a desenvolver uma campanha contra a corrupção. Em Macau há um sistema em que os legisladores são também alguns dos maiores empresários do território. Não estamos perante um contrassenso? De facto, o poder é fonte de corrupção se não for bem gerido. A grande luta de Xi Jinping é a de legitimar esta elite do poder, que aos olhos dos chineses está gravemente afectada. É preciso voltar a fazer com que a sociedade olhe de novo para os políticos, não como fonte de corrupção, mas como a vanguarda do povo, porque era assim que era o Partido Comunista Chinês nas suas origens. O partido era legítimo pela capacidade unificadora de pobres, de ricos. Hoje o partido é visto como a classe parasitária que conseguiu há várias décadas unir os chineses, mas que hoje é fonte de discórdia. O Xi Jinping percebeu que é preciso, a nível regional e local, fazer esses líderes corruptos pedirem desculpa aos chineses. Aí faz também uma eliminação dos seus principais rivais. A iniciativa privada é cooptada pelo regime. O Governo chinês pede frequentemente a multimilionários chineses que dêem a cara ao invés de passar determinado projecto como sendo do Governo chinês. Por exemplo, Wang Nuguo, apresentou à Islândia a intenção de comprar uma porção do norte de Islândia para construir um campo de equitação e um hotel luxuoso, mas o Governo da Islândia recusou essa proposta porque havia ali motivos ocultos. Em vez de equitação e turismo, havia reais interesses do Governo chinês em utilizar aquela parte do hemisfério norte, do Ártico, para um posicionamento estratégico face ao petróleo, ao gás e a uma, eventual, rota da seda polar. O gelo está a derreter e não vamos ter nas próximas décadas apenas uma rota convencional, vamos ter uma rota complementar quando o gelo permitir. Temos aí um exemplo de uma tentativa que nasceu morta, porque o Governo da Islândia decidiu dizer não e dizer “nós sabemos que não é o senhor que está a querer comprar, é o Governo chinês”. Nada do que a China faz no mundo é por acaso, existe uma grande estratégia e o indivíduo deve submeter-se ao todo, e não o todo ao indivíduo. Nós, os latinos, temos a tendência para sobressair face à massa, aqui o indivíduo serve a massa. Isso não pode ser perigoso? É e não é porque o individualismo também pode ser perigoso. Estaline sobrepôs-se face à massa e matou muita gente. O próprio Mao fez isso. Mao Zedong é apresentado como um herói nacional. A Inquisição fez o mesmo e marcou um dos períodos negros da Igreja. Há duas vertentes, o bom e o mau. Pode haver no individualismo o lado bom, como no holismo um lado positivo. Não podemos ser radicais e fundamentalistas.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteDuarte Trigueiros, investigador e docente, sobre caso Sulu Sou: “É um erro para Macau, é mais um tiro no pé” Duarte Trigueiros, investigador do ISCTE e docente convidado na Universidade de São José e Instituto de Estudos Europeus, considera que a possibilidade do deputado Sulu Sou poder perder o mandato poderá afastar investidores. Duarte Trigueiros alerta também para a maior dimensão do branqueamento de capitais na área do imobiliário em relação aos casinos Falávamos há pouco sobre a questão do património de Macau e da integração regional. Disse temer que venha a acontecer o mesmo com a regulação bancária. Macau tem condições para ser uma região como a Suíça, mas não me refiro a questões como fuga de impostos. Pode ser um lugar onde os investidores gostam de ter contas bancárias. Mas é preciso que o sistema judicial de Macau continue a ser independente do poder político, porque se não os investidores não vêm. A última coisa que eles querem é tribunais que não sejam independentes. Nós temos esperança de que as características mais importantes da Lei Básica, aquelas que mais distinguem Macau da China, sejam preservadas. Porque advirá muita riqueza e oportunidades para Macau. A China tem um sistema de partido único, isso é intocável, e é um sistema onde não pode existir uma completa imparcialidade dos tribunais, uma vez que existe um partido que está acima disso. Se aqui em Macau a independência do poder judicial não fosse manchada por suspeitas de parcialidade e interferência do poder Executivo… Nem imagina o mal que pode vir e que já veio, infelizmente, da concepção que os tribunais possam estar demasiado dependentes do poder Executivo. Que sinais destaca? Toda a gente em Macau estranhou a forma como o julgamento do ex-procurador do Ministério Público (Ho Chio Meng) foi levado a cabo. Foi um pouco exagerado, tanto que era considerada uma pessoa de primeira linha e esteve muito exposto ao escrutínio internacional. Agora estamos outra vez por um fio, porque existe este caso do deputado que pode perder o mandato [Sulu Sou]. Parece-me que estão todos a querer que ele perca o mandato. Eles não percebem que isso é um erro para Macau, é mais um tiro no pé. Inclusivamente para a economia, os investidores vão perceber? Claro. A China não ganha nada com isso e estou até convencido que não gosta destes exageros, não são favoráveis à sua política. Aconteceu um caso semelhante em Hong Kong. Mas Hong Kong já está liquidado. É o exemplo a não seguir. Hong Kong está liquidado não tanto pela culpa dos governos, nem talvez por culpa da polícia, mas sim porque nunca leram autores como Lenine, que explica as técnicas de provocação. Foram usadas em Hong Kong técnicas muito reprováveis de provocação e a pior maneira de reagir à provocação é reagir e reagir fortemente. É pena ver chineses a porem em causa a nacionalidade chinesa e ver habitantes de Hong Kong a ocuparem edifícios à força. Mas se a reacção for demasiado visível e violenta, então como Lenine e muitos outros teóricos explicaram, quem ganha são os agitadores. Infelizmente foi isso que aconteceu. Sofia Margarida Mota Houve alguns receios do impacto financeiro que o movimento Occupy Central teria na economia, mas a verdade é que Hong Kong manteve a robustez do seu mercado financeiro. Hong Kong tem dois aspectos: um que interessa à China por si só, que é a existência de serviços financeiros muito experientes e fiáveis. Mas também tem o lado de ser um íman de dinheiro internacional de quem quer adquirir raízes em Hong Kong antes de lançar-se para a China. Os que vêm de fora, sobretudo ocidentais, estão agora a olhar para Hong Kong de uma maneira como antes não olhavam. E aí perdeu-se alguma coisa. Macau tem essa oportunidade e capacidade para ser uma alternativa? Macau ainda não tem o know-how que vem do lidar directamente com mercados de capitais e produtos financeiros mais sofisticados, mas isso vai-se adquirindo à medida que as oportunidades vão surgindo. Macau não precisa de estar sentado em cima de um mercado de capitais, mas o que precisa é de fomentar ligações com bancos que estejam em contacto com mercados de capitais e precisa de adquirir o know-how suficiente para se tornar atractivo na captação de serviços financeiros. Relativamente à questão do branqueamento de capitais. Estava a desenvolver um estudo sobre Macau, em que fase está? Infelizmente ainda não temos o acordo de alguns bancos no sentido de podermos construir um sistema baseado em cenários. É, digamos assim, uma resposta ao branqueamento de capitais, ao problema de detecção de casos de branqueamento de capitais. Mas já avançámos na preparação teórica e nos contactos. Respeitando inteiramente o sigilo de todas as transacções, queremos ter a oportunidade de conversar com pessoas dentro dos bancos que tenham sido expostas a casos de branqueamento de capitais. Isto para que possamos transpor o conhecimento deles para regras, que podem ser seguidas por computadores. Prevê-se que esse sistema aprenda os cenários e consiga criar novos. Foi aprovada o ano passado uma nova lei de combate ao branqueamento de capitais. A lei trouxe avanços em matéria de prevenção? A lei tinha de ser feita. Os Estados Unidos juntaram ao branqueamento de capitais ao financiamento do terrorismo, mas já quando se trata de fuga aos impostos, o país nunca quis juntar esse problema. Foi dado um cariz ao financiamento ao terrorismo com o qual os europeus nem sempre podem concordar. Os Estados Unidos fazem listas de países que financiam o terrorismo da maneira que lhes apetece. Mas não é porque esses países financiem o terrorismo, às vezes financiam regimes de que os Estados Unidos não gostam. Há o caso da Coreia do Norte, da Síria, do Irão e o Iémen, embora este último seja mais claro. Às vezes é discutível, e assim as coisas não vão para a frente. Isso porque há países que não querem aderir a esse pacote de medidas porque estas estão todas misturadas. Aqui em Macau as leis têm ido sempre ao encontro daquilo que os reguladores internacionais pedem. As leis em Macau estão perfeitas. Mas, no caso do branqueamento de capitais, as leis não são o mais importante, mas sim conseguir que se transformem em regras vivas dentro de cada banco, casino ou loja de venda de ouro. E isso está a ser feito? Vai sendo feito dependendo da vontade do poder Executivo em Macau. Às vezes não haverá muita vontade se existirem situações viradas para prejudicar a Coreia do Norte, a Síria ou a Rússia. Mas um sólido edifício de regulação no que diz respeito ao branqueamento de capitais faz imenso bem aos bancos. Em Macau era comum, até há poucos anos, e ainda talvez seja, encontrar contas bancárias anónimas em que os bancos faziam ligações negociais com entidades que não eram propriamente bancos, com uma rédea completamente solta. Só apresentavam as garantias que os bancos fossem exigindo. E podiam ser falsas, porque esses bancos estão na China e outros sítios. Falo também de casas de câmbio. Mas isso acontece também nos Estados Unidos, um lugar onde as transacções não são examinadas à lupa. Associa-se muito o branqueamento de capitais ao jogo. Há casos de lavagem de dinheiro noutras áreas? Macau e Portugal estão a fazer grandes acções de branqueamento de capitais através do sector imobiliário. Tenho essa percepção e a única maneira de lutar contra isso, e manter um controlo sobre os preços elevados, problema de que está a sofrer a população em Macau e de Lisboa, é observando à lupa essas transacções, de onde está a vir esse dinheiro. Muita gente diz: “Branqueamento de capitais? Casinos”, mas o que é feito através dos casinos é relativamente diminuto quando comparado com o branqueamento de capitais feito através do imobiliário. As lojas de ouro? São peanuts, embora também haja lavagem de dinheiro. O Governo pode fazer as casas sociais que quiser. O que está por detrás disto é o dinheiro que está a ser branqueado e que vem de fora, muito dele da China, também no contexto da fuga de capitais do país. A política anti-corrupção de Xi Jinping também veio acelerar as medidas preventivas nesta área? Veio dar uma aparência. Não pode existir luta contra o crime sem tribunais absolutamente independentes do poder político. Na China não podem existir tribunais independentes. O que Xi Jinping fez foi aquilo que os imperadores antes dele fizeram: uma campanha contra a corrupção. Tentou pôr a casa em ordem, mas as salas VIP dos casinos já estão novamente cheias. Bastou ele levantar um pouco a mão. Os problemas de corrupção não se resolvem com campanhas mas sim com tribunais, polícia e magistrados independentes. Só assim temos uma sociedade em que a corrupção é mantida a um nível baixo. Mas deixe-me dizer-lhe que admiro muito a China e quando era miúdo até era maoista (risos). A China unificou-se e hoje tem o território que lhe compete, é um país que se põe de pé nas suas pernas. Agora se me pedem falar do Estado de Direito…esse deveria ser um objectivo para onde as autoridades chinesas deveriam caminhar. O poder judicial tem formação suficiente para lidar com crimes financeiros? Em Macau ainda não existe um corpo especializado, dentro do poder judicial, para lidar com este tipo de situações. Mas temos o Gabinete de Informação Financeira, que pode ajudar muito, e a Autoridade Monetária e Cambial de Macau. O problema que refere foi comum a países como Portugal. Recentemente foram divulgados os documentos dos Paradise Papers. Deveria debater-se mais a necessidade de uma maior regulação das offshores? Quem manda? E se os que mandam não querem, o que se pode fazer? As offshores só continuam a operar porque não existe vontade de uma série de potências, desde a Rússia aos Estados Unidos, em resolver o problema. E a China quer? Estou convencido que sim. A China tem-se oposto ao desenvolvimento de Macau como um centro offshore. Tem diminuído o seu papel de Macau Quando estava por aqui, em 2001, era muito diferente do que agora. Havia as tais contas anónimas. E não só isso. Havia actividades offshore, e agora temos acordos de troca de informações fiscais com outros países e é isso que é preciso continuar a fazer. Que direito têm as pessoas de movimentarem o dinheiro para fora da vista das suas autoridades fiscais? Só porque são ricas? Estou convencido que dentro de poucos anos não será possível esconder o dinheiro dessa maneira, pelo menos em bancos. Macau caminha para isso. A China não quer que Macau seja um centro offshore, mas quer que o território seja um centro financeiro, tendo em conta a integração regional que se avizinha. A China tem um problema que espero que seja temporário, que é a fuga de capitais. E vou-lhe contar uma história verídica que foi descoberta no Canadá. Chineses ricos vêm a Macau, frequentam as salas VIP e dão-se com pessoas que têm ligações a casinos e bancos subterrâneos no Canadá. E aí eles são convidados a ir ao Canadá, recebem uma mala cheia de dinheiro que vem do tráfico de droga dos Estados Unidos, imagine-se um milhão de dólares, e vão a um casino lá e lavam parte desse dinheiro. Ao mesmo tempo, esses chineses ricos transferem um milhão de dólares para uma conta que a pessoa do Canadá lhes indica. A única coisa que se consegue é que o chinês fica com um milhão de dólares no Canadá e o traficante de droga tem um milhão de dólares limpos na China. Isso foi descoberto pelas autoridades canadianas, funcionava há vários anos. Macau não tinha nenhum papel activo, mas tinha um ingrediente fundamental: juntava as pessoas. O único remédio é investigar todas as suspeitas.