Sofia Margarida Mota Entrevista ManchetePaul Chan Wai Chi explica saída da Associação Novo Macau: “Em 2017 já pensava sair” Depois de meio século dedicados à Associação Novo Macau, chegou a altura de Paul Chan Wai Chi abraçar outros desafios. Para já, o ex-deputado vai dar primazia à fé que professa, o catolicismo. Em entrevista de balanço de actividade política, Paul Chan Wai Chi analisa a história do movimento pró-democrata em Macau, recorda os momentos mais complicados e analisa o significado da eleição de Sulu Sou [dropcap]D[/dropcap]eixa a Novo Macau depois de 25 anos ligado à associação. Que balanço faz? Entrei na Novo Macau na altura em que Ng Kuok Cheong se candidatava às eleições (legislativas) e eu auxiliava a sua candidatura. Depois de Ng Kuok Choeng ser eleito, a Novo Macau empenhou-se em apoiar os seus trabalhos. Com o desenvolvimento social, a Novo Macau tornou-se progressivamente numa associação. Na altura em que me tornei presidente, a natureza política foi intensificada na sequência da necessidade social e do desenvolvimento da associação. Em 2009, ano em que fui eleito como deputado, salientei a importância de conseguir captar jovens para a Novo Macau para suceder nos trabalhos e desenvolver a associação. Por isso, em 2013 avançámos com uma lista (às eleições legislativas) constituída pelos membros jovens, mas falhou, o que foi lamentável. Depois das eleições houve mudanças nos corpos dirigentes da associação. Foi um período difícil. Até ao ano das eleições de 2017, que era decisivo para a Novo Macau, já pensava em sair da associação para fazer outro trabalho, tendo em conta que sou católico e que deveria ter feito melhor alguns serviços para a igreja. Entretanto, como Ng Kuok Cheong decidiu constituir uma outra lista independente da Novo Macau, senti a necessidade de avançar e acabei por ser o segundo candidato da lista (da Novo Macau) para apoiar Sulu Sulu e a Novo Macau para poder desenvolver-se. Nos passados 25 anos, consegui ajudar associação no seu crescimento e desenvolvimento. A minha missão está completa e agora é oportuno iniciar o meu trabalho na outra área. Como já acabaram as eleições, agora é a altura para me dedicar totalmente a Deus, por isso, decidi investir mais tempo na igreja. Vai ter saudades da Novo Macau? Quais são as memórias mais fortes vai ter da associação? Considero que nós, enquanto pessoas que tentam impulsionar o avanço social, andamos todos no mesmo caminho. Mas há pessoas que andam a um ritmo diferente das outras. No entanto, basta termos o mesmo objectivo, somos iguais, mantemos comunicação e ajudamos os outros. Quanto à memória mais forte, tinha no passado um ideal que não chegou a ser realizado. Era transformar a Associação Novo Macau num grupo político. Em Macau não há partido político. Mas defendo que a política em Macau deve avançar, passo a passo, nessa direcção e não deve ser baseada na cultura das associações. Quando era presidente (da Novo Macau) e deputado na AL queria atingir esse objectivo. Mas, se calhar por causa do ritmo do desenvolvimento de Macau, não aconteceu o que esperava. Em Hong Kong há, por exemplo, o partido cívico e o partido democrático. Em Macau não há. Isso é uma questão de tempo. Acredito que com o desenvolvimento de Macau e a consciência da população a amadurecer progressivamente, vai haver cada vez mais pessoas atentas à política e com vontade de participar nas actividades políticas. Esse são os elementos para surgir uma associação com natureza política. Pode-nos contar um bocadinho da história do movimento pro-democrata em Macau? Com base no meu conhecimento, o início está ligado à Associação de Amizade liderada por Alexandre Ho. Depois da revolução dos cravos em 1974 em Portugal, Macau passou a ter eleições nas assembleias, sendo assim os chineses, especialmente os que não estavam nas associações, tinham mais canais para participar na política. Alexandre Ho foi pioneiro na promoção da participação popular na política e fez a milagre de conseguir eleger três pessoas na AL. Em seguida, na sequência da mudança do sistema político de Portugal, a AL desenvolveu-se no sentido democrático e foi aumentado o número de deputados directos. Em 1991 ou em 1992, não tenho a certeza, houve eleições suplementares para dois lugares de deputados directos. Primeiro foi Alexandre Ho que agregou alguns candidatos. Os jovens antes de 4 de Junho de 1989 começaram a tomar atenção ao futuro da China e às mudanças em Macau. Na altura, os jovens realizavam actividades alusivas ao 4 de Maio para discutir os assuntos. Até 4 de Junho, houve algumas mudanças no panorama político, e os mais jovens eram da opinião de que se precisava de continuar a valorizar o desenvolvimento da democracia. A participação na política era o meio, por excelência, para actuar na sociedade. Por isso, Ng Kuok Cheong decidiu candidatar-se às eleições suplementares mas não teve sucesso. Até às eleições legislativas em 1992, Ng Kuok Cheong criou a Novo Macau com outras pessoas e conseguiu um lugar na AL. Depois, Au Kam San entrou na Câmara Municipal do Leal Senado. Com o esforço e dedicação dos mais novos a Novo Macau cresceu. FOTO: Sofia Mota A associação cresce como um esforço colectivo… Posso dizer que com várias pessoas a participar houve mudança saudável na sociedade. Au Kam San entrou na AL em 2001. Nesta altura, a Novo Macau tornou-se uma das associações fomentadores da democracia, enquanto que no panorama associativo também houve reajustamentos ao progresso social. As outras associações também se transformaram, algumas passaram a ter mais membros jovens e fizeram muitos trabalhos para as classes sociais mais carecidas. O desenvolvimento da democracia em Macau para mim está a ser cada mais florescente. As eleições legislativas são eventos políticos que produzem vários novos talentos. Tenho uma posição optimista em relação ao futuro da democracia. No entanto, com a mudança social, tanto as oportunidades como os desafios são igualmente enormes para as pessoas, sobretudo se conseguirem enfrentar a onda e atingir o topo da onda. Isso é um grande desafio. No passado tivemos três deputados da Novo Macau na AL, um resultado brilhante. No entanto, tínhamos de avançar e arranjar alguém para suceder nos trabalhos, por isso fomentei a realização de actividades para formar talentos nos assuntos políticos e sociais. Sulu Sou disse que conheceu a Novo Macau através dessas actividades. Acho que esse tipo de acções podem atrair os jovens, dando-lhes oportunidades. Se se acreditar nos jovens e no sistema da associação, vai ser produzido um efeito de desenvolvimento mútuo. Isso é um desafio que as associações vão enfrentar no que diz respeito ao seu crescimento. Entre os anos 2013 e 2017, a Novo Macau enfrentava estes desafios mas sinto que agora já ultrapassámos essas dificuldades. Quanto ao futuro desenvolvimento da democracia em Macau, tendo em conta que não há eleições para os membros aos órgãos municipais, espero que o Governo tome uma atitude aberta para que os conselhos consultivos e os órgãos municipais tenham alto grau de representatividade. Tal é relevante para o desenvolvimento de Macau. Se as associações conseguem insistir no seu lema e os políticos tiverem como orientação máxima as suas intenções iniciais, o futuro será optimista. Quando saíram da associação históricos como Au Kam San e Ng Kuok Cheong, você ficou. Como foi este momento de ruptura para a associação? Au Kam San saiu primeiro da Novo Macau. Nas eleições legislativas em 2017, Ng Kuok Cheong ainda era membro da associação. Apesar de lhe perguntar se ia ficar e empenhar-se com os mais jovens da associação, acabou por se candidatar na outra lista. Isso é lamentável e de certeza que teve um impacto na Novo Macau. Quer seja no caso da saída de Au Kam San ou no caso da decisão de Ng Kuok Cheong de não se candidatar com a Novo Macau, tivemos de fazer o nosso melhor para evitar uma influência negativa. As pessoas têm os seus objectivos. O que podemos fazer é respeitar as suas decisões. O período mais difícil da associação já passou. A eleição de Sulu Sou como deputado em 2017 é a prova de que a cooperação entre os membros da Novo Macau vai conseguir obter apoios dos cidadãos. Apesar de Sulu Sou ficar com função de deputado suspensa por estar envolvido em outro caso, acredito que Macau é uma sociedade regulamentada por leis. Finalmente, o caso está resolvido, Sulu Sou regressou à AL, marcando tal o início de uma nova fase. Apesar da saída de Au Kam San e da decisão de Ng Kuok Cheong, continuou a ficar na Novo Macau. Porquê? Desde que saí da AL em 2013, continuei na Novo Macau. Por um lado, precisava de reflectir sobre o sucesso e as falhas nas eleições, por outro lado, precisava de fazer os trabalhos da nova direcção. Desde a saída de Au Kam San até às eleições em 2017, nunca pensei em sair da Novo Macau. Na altura, a associação necessitava de uma pessoa com experiência para enfrentar as questões com que se deparava. Em 2017 decidi ficar para ultrapassar o último desafio, que é conseguir um lugar na AL em prol do desenvolvimento da Novo Macau. Isso também é importante para a sociedade de Macau, porque acredito que o território precisa de associações diferentes como a nossa. Mas isso depende da decisão dos cidadãos e dos eleitores. Os factos apontam para a evidência de que os cidadãos e os eleitores apoiam as ideias da Novo Macau. Estou satisfeito com isso. Fiquei para enfrentar os desafios da Novo Macau juntamente com os outros membros. Agora que foram ultrapassados chegou a altura de me empenhar nos meus próprios assuntos, nomeadamente, o religioso, sem causar influência à associação. Qual é o papel de Sulu Sou? Considera que representa a salvação da Novo Macau? É injusto, quer para Sulu Sou, quer para a Novo Macau, dizer que ele representa a salvação da associação. Nós, enquanto candidatos da lista Associação do Novo Progresso de Macau, assinámos um documento de compromisso com as ideias da Novo Macau e que vamos aceitar a fiscalização da associação. Qualquer indivíduo que aceite os requisitos pode ser candidato. Ao longo dos anos os trabalhos da Novo Macau não foram feitos só por duas ou três pessoas, mas sim por um grupo maior. Se Sulu Sou não entrasse na Novo Macau, ou se não se candidatasse pela lista da Novo Macau, seria eleito? Isso é incerto. Mas a Novo Macau, como uma associação experiente na participação em eleições durante vários anos, tem capacidade para conseguir um lugar merecido na AL. Poderia ser Sulu Sou, Paul Chan Wai Chi ou Scott Chiang. Qualquer pessoa tem a possibilidade de ser eleito como primeiro candidato na lista. Relativamente à disputa por lugares cimeiros na ordem dos candidatos da lista, a ideia era responsabilizar os jovens. Em Hong Kong já se tem feito isso há anos. Algumas associações em Macau tiveram uma atitude semelhante. Por exemplo, a União Geral das Associações dos Moradores de Macau e a Federação das Associações dos Operários de Macau. As associações e os deputados estão naturalmente ligados. Não é adequado dizer que alguém salva outrem. As associações e os deputados progridem e declinam em conjunto. Fala de Xi Jinping no artigo escreveu para o HM e refere que a China precisa de se renovar. Como é que o país o pode fazer? Em primeiro lugar, o presidente Xi Jinping avançou com a ideia do sonho de rejuvenescimento do povo chinês. É de esperar que a China daqui a alguns anos consiga ser uma sociedade moderadamente próspera. Para mim, este sonho não só influencia profundamente o país, mas também pode produzir efeitos positivos no mundo inteiro. “A renovação e a abertura não podem voltar para atrás”, isso foi dito por Deng Xiaoping. Como é que se garante que se avança pelo caminho certo? Sobre esta questão acho que cada cidadão chinês pode contribuir com o seu esforço, devendo ter o mesmo sonho, que pertence à China e ao mundo. Assim poderemos participar em paz na comunidade internacional, minimizando os conflitos. No entanto, na sua prática, é óbvio que se vão enfrentar riscos e desafios. Por isso, acho necessário que sejam feitos esforços em conjunto para atingir o objectivo. Acredito que quando seguimos por um bom caminho, no final vamos chegar ao destino. Mas para isso temos de envidar esforços e não podemos esperar pela vinda de felicidade. Quais são os maiores desafios de Xi Jinping? Existem dificuldades em cada fase. A renovação e a abertura da China trouxeram prosperidade económica, assim como alguns problemas. Como é que se unem as ideias e se juntam as forças para ultrapassar as dificuldades, isso é importante. A China tem agora melhor capacidade de gestão do país, apesar de estar a enfrentar problemas quer seja no plano exterior quer seja no plano interno. A China deve melhorar no âmbito político, social e económico. Seguindo a esta directriz, neste sentido as dificuldades vão ser resolvidas. Se se empenhar pelo interesse próprio, vai no final sofrer da consequência. Acha que as limitações à liberdade que se registam no continente estão cada vez mais presentes em Macau? Lembro-me que CY Leung, quando era membro do Conselho Consultivo da Lei Básica de Hong Kong, disse em Macau que “o futuro é brilhante, o caminho é com curvas”. Isso foi bem dito. No caminho do progresso é óbvio que se vão encontrar obstáculos. Às vezes podem mesmo acontecer recuos. O mais importante é insistir e saber seguir o caminho certo. Em Macau muitas pessoas dizem que as leis estão desactualizadas e depois, na revisão das leis, (o Governo) quer reforçar-se na monitorização e melhorar a segurança na cidade devido ao número elevado de turistas. Para isso, foram instaladas câmaras de videovigilância nas ruas. É verdade que precisamos de legislação para que a sociedade seja regulamentada. Mas isso não quer dizer que seja adequado elaborar uma quantidade excessiva de leis. Nos últimos vinte anos desde 1999 quais são os aspectos que se pode melhorar quanto ao desenvolvimento do sistema político para que no próximo mandato o Governo se possa operar mudança. Mas qual é o momento oportuno, acho que em primeiro lugar a sociedade deve ter conhecimento e fomentá-lo em conjunto. Uma posição construtiva é melhor do que só criticar os outros. Os chineses valorizam o paz. Macau tem uma característica em termos da fusão de culturas. Nós tratamos bem desta questão. Além disso, com o avanço da Grande Baía, precisamos de ideias inovadoras. Não se deve passar sempre a responsabilidade ao Governo. Não pergunte o que o país pode fazer por si, mas pergunte a si próprio o que fez pelo país. Acha que o movimento independentista de Hong Kong influenciou as medidas que o Governo está a implementar em Macau? A ideia da independência de Hong Kong está relacionada com o sentimento de pertença dos jovens. Quer seja em Macau ou em Hong Kong, não há nenhuma condição para a independência. Por isso, a independência de Hong Kong não é uma situação realista. Mas por que razão é que o tema foi tão falado. Isso tem a ver com vários factores. Em prol de Macau, ou de Hong Kong precisamos de fazer o melhor para eliminar estes factores. Na altura da transferência de soberania estava preocupado com a forma como se podiam manter as características de Macau sob o sistema de “Um País, Dois Sistemas”. Para Hong Kong, é igual. Caso consiga manter as características, os residentes em Macau não precisam de se preocupar com as situações que ocorreram em Hong Kong. O Estado deu, de facto, liberdade à gestão (da região). Mas é lamentável que o assunto sobre as eleições universais não tenha sido bem tratado entre Hong Kong e a China. Tal circunstância causou conflitos na sociedade. Para mim, deve-se pensar em como obter equilíbrio na relação entre grupos diferentes de residentes.
Sofia Margarida Mota Entrevista MancheteSilvestre de Almeida Lacerda, director-geral da Torre do Tombo: “Se não se conhece, não se ama” O director-geral do Arquivo Nacional da Torre do Tombo está em Macau para participar hoje na inauguração da exposição no Museu das Ofertas sobre a Transferência de Soberania de Macau. A mostra intitulada “Chapas Sínicas – Histórias de Macau na Torre do Tombo” conta a história do território ao longo de cerca de 400 anos. De Portugal, Silvestre de Almeida Lacerda trouxe como presente um conjunto de imagens de Macau dos anos 30 [dropcap]O[/dropcap] que nos contam as Chapas Sínicas? Contam-nos muitas histórias principalmente associadas a questões da administração desde o séc. XVI até aos finais do séc. XIX. Contam-nos as histórias sobre a jurisdição do trabalho desenvolvido pelas autoridades quer chinesas quer portuguesas, portanto de comunicação diplomática. Mas, sobretudo, trazem-nos o quotidiano local da altura, a criminalidade, com todos os aspectos da jurisdição e da fixação dos estrangeiros, com pirataria, naufrágios, etc. Como eram as relações diplomáticas nos momentos iniciais da presença portuguesa em Macau? No início do séc. XVI as relações passavam muito pela instalação da câmara de Macau, sobretudo ao nível do procurador ou ouvidor, e pela permanência de autoridades no território. Portugal podia ter o exército aqui e isso dava uma possibilidade significativa de permanência. Diria que, desde muito cedo, eram relações entre iguais em que há uma preocupação de quem administra os portugueses serem as autoridades portuguesas, e quem administra a comunidade chinesa serem as autoridades chinesas. Como é organizar uma exposição com este tipo de peças? Estamos a falar de tesouros. Acho que há aqui um factor particularmente feliz da colaboração entre o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, a Direcção Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB) e o Arquivo de Macau. Este foi o primeiro passo. Ao longo dos últimos três anos, temos vindo a desenvolver o trabalho de recuperação e de conservação dos documentos que estão na Torre do Tombo. Foi necessário preparar todo um trabalho de intervenção sobre o estado em que a documentação se encontrava, que era bastante frágil. Estamos a falar de documentos com 400 anos. Uma coisa muito interessante que aconteceu tem que ver com o suporte destas obras. Inicialmente todos os indícios apontavam para que fosse papel de arroz, mas não é. Entretanto, com esta colaboração foi possível descobrir que a base essencial é o bambu. Descobrimos isto com a colaboração de um dos técnicos aqui do Arquivo de Macau que esteve a estagiar na Torre do Tombo e trouxe com ele conhecimento acerca dos vários tipos de papéis. Estes documentos foram primeiro classificados pela UNESCO como Memória da Ásia, em 2016, e só depois é que avançámos para a classificação como registo da Memória do Mundo da UNESCO. Dos 3700 documentos que fazem parte das Chapas Sínicas, estão cá apenas alguns. Originais trouxemos seis. São poucos mas são em grande formato, alguns têm quase três metros. São organizados tipo harmónio o que nos permite trazer uma caixa relativamente pequena em boas condições. Vêm todos associados a um aparelho, um datalogger, que nos permite monitorizar a humidade, a temperatura e mandar esses dados para Lisboa. O transporte foi feito à mão. Só não trazia as algemas agarrada a elas (risos). Foi um processo de exportação temporária destes documentos classificados como tesouros. FOTO: Sofia Mota Está à frente da Torre do Tombo, muitas vezes considerada como um espaço pouco acessível. Tem feito um trabalho que visa a desmistificação do secretismo do arquivo. A Torre do Tombo tem 100 km de documentos. Muitos destes documentos já estão acessíveis através da internet. Neste momento, temos cerca de 30 milhões de imagens disponíveis que as pessoas podem fazer download gratuito. Estamos a falar da democratização da história? Sim, é preciso fazer com que as pessoas possam conhecer. Se não se conhece não há capacidade de amar. O amador é aquele que ama e não aquele que tem menos competências. E ama porque conhece. Esta forma de desmistificar as coisas é possível só através do conhecimento. Por exemplo, muitas das Chapas Sínicas já estão em boa resolução no nosso site e até se pode fazer reutilização da informação. Estas obras apresentam um aspecto muito curioso: temos a representação de desenhos que estão associados ao conteúdo dos documentos. São desenhos de artífices e com esta possibilidade de reutilização e quase de reinterpretação podemos ter uma ponte para arte. As artes plásticas e gráficas podem reutilizar este tipo de materiais. Esta é outra forma para tentar que as pessoas olhem para os documentos de arquivo. Não só como preciosidades, mas como objectos dos quais se podem apropriar. Alguns deles têm mesmo que ser apropriados. Como por exemplo? Estamos a falar, por exemplo, nos casos que pretendem obter uma dupla nacionalidade e em que o interessado tem ascendentes portugueses há três gerações. A Torre do Tombo tem um registo da população portuguesa desde 1543, depois do registo sistemático a partir do Concílio de Trento. Atendendo que a população portuguesa é 99 por cento católica, temos os registos de baptismo, casamento e óbito. A partir daí somos capazes de construir a nossa genealogia e justificar direitos. Temos também registos judiciais. Alguns mais emblemáticos como o caso do Alves dos Reis, do Zé do Telhado e de outros criminosos mais ou menos célebres. Também temos documentação dos notariados, ou seja, o registo de escrituras desde o séc. XVI. Os arquivos são vivos. Não há arquivo morto. Têm vida quer para a investigação, quer enquanto provas para as necessidades dos cidadãos Quais são os temas mais procurados na Torre do Tombo? Neste momento, em termos estatísticos, a documentação mais procurada nestes quilómetros de documentos é a documentação sobre a Inquisição. A Torre do Tombo tem os processos da Inquisição desde a sua constituição no séc. VI até à sua extinção no séc. XIX. Estamos a falar da Inquisição de Lisboa mas que também da que abrangia o Brasil e a Ásia. Um caso muito curioso: temos panos da Índia associados a estes processos da Inquisição porque um familiar do Garcia da Horta foi preso e tentou passar essa informação. Para isso, ele utilizou como suporte um pano e com fumo negro escreveu que estava preso. Tentou passar essa informação que acabou por ser apanhada e ir junto ao processo como prova. Recentemente, e isto é uma novidade, foi-nos entregue o processo associado ao acidente de Sá Carneiro. Não está o avião (risos). Temos, noutros processos suportes musicais, poucos mas temos. Estou-me a lembrar do caso do Adriano Correia de Oliveira e do Zeca Afonso em que temos alguns vinis associados a isso. Ao contrário e na área da fotografia, temos milhões de imagens. Dos últimos números que apurámos estamos com cerca de 10 milhões de negativos de vidro, acetato, poliéster e alguns nitratos. Trouxemos para oferecer ao Arquivo de Macau um conjunto de 52 imagens de Macau que não estavam disponíveis, mas que digitalizámos para oferecer. São da antiga Agência Geral do Ultramar nos anos 30. Um conjunto interessante que acho que não era conhecido e que vai ficar cá para poder ser consultado e disponibilizado. Sobre o arquivo da PIDE, temos os processos individuais mas também temos a documentação da escola de polícia. Aqui uma das peças é um conjunto de mapas com o corpo humano. Isto significa que, cientificamente, era estudada a forma de torturar e de bater em pontos particularmente sensíveis e para que, nas visitas, não se verificassem nódoas ou marcas exteriores desta mesma tortura. Também temos, os artigos relacionados com a polícia política. Trata-se de documentação desde 1919, ainda da Primeira República em que os serviços de informação são criados a partir da reorganização de Sidónio Pais. É com ele que se estrutura um serviço que depois leva à prisão de quem canta o fado, nomeadamente fado subversivo. É a definição que nos aparece e que nós temos ao longo dos anos 20 e 30. Uma das características do fado em Lisboa era o chamado fado operário que era uma forma de expressão de sentimentos que não estavam de acordo com o exercício do poder. O próprio Rui Vieira Nery faz referências na história do fado a esta realidade e nós, na altura, fornecemos-lhe vários exemplos concretos de processos políticos de quem tinha sido preso por cantar fado subversivo. Quais são os seu documentos preferidos? Há um pelo qual tenho particular apreço. É o Apocalipse de Lorvão. Um manuscrito com os comentários dos beatos de Liébana que fica na zona das Astúrias. São um bocadinho heterodoxos em relação à igreja católica e estamos a falar do séc. XII, 1189. Há comentários ao Apocalipse, o livro da Bíblia, que são ligeiramente heterodoxos relativamente à forma como era olhada a religião católica. É um manual digamos, uma matriz, que depois se vai desenvolver na Península Ibérica. Candidatamos o Apocalipse do Lorvão a registo da memória do mundo conjuntamente com os nossos colegas espanhóis e fizemos um estudo sobre a circulação de manuscritos nesta altura, ou seja, sobre a circulação de conhecimento na Península Ibérica no séc. XII. É uma história particularmente significativa. Depois não posso deixar de falar da carta de Pedro Vaz de Caminha, ou seja do achamento do Brasil, mas para mim não é possível falar desta carta sem falar de uma outra, a do Mestre João que é um astrónomo e que desenha pela primeira vez o cruzeiro do Sul. A importância do cruzeiro do sul tem a ver com a orientação daquele hemisfério. No hemisfério norte fazemos a orientação pela estrela polar e no sul pelo cruzeiro do sul. Esta é a primeira vez que aparece um desenho feito por alguém que faz parte da mesma armada de Pedro Álvares Cabral. Na carta de Vaz de Caminha temos o contacto entre civilizações, que é a versão mais oficial e há também uma menos oficial que nos diz que esta carta é uma cunha, um pedido que ele faz ao rei para a libertação de um familiar preso em São Tomé. E no que respeita a documentos mais contemporâneos? O diário de Salazar. Está disponível online mas tem uma dificuldade, a letra não é fácil. Está a ser preparada a transcrição do diário com muitas notas de contextualização. Ele tomava nota da hora, e muitas vezes dos conteúdos das conversas que mantinha. É uma peça fundamental no estudo da história contemporânea. Além disso, há uma outra peça que é o processo da Casa do Luso da prisão de Álvaro Cunhal em 1949. Temos o processo judicial que está com abundante documentação do próprio arquivo comunista. Como vê o papel da tecnologia digital quando falamos de arquivos nos tempos que correm? Acho que o digital é uma oportunidade. A questão fundamental é esta: mudámos do pergaminho para o papel e já mudámos muitas vezes de suporte, mas enquanto no papel, pergaminho ou papiro eu tinha uma leitura directa e os nosso olhos são capazes de interpretar o medium utilizado, aqui tenho que ter um instrumento intermediário que me permita ter o acesso ao tal medium e esta intermediação tem que ser devidamente garantida Uma das questões essenciais que se coloca do ponto de vista do digital é a sua autenticidade, fidedignidade e confiança naquilo que tenho acesso. Naturalmente, que sempre houve falsificações, mas já há meios de identificar a sua maioria em suportes que conhecemos bem e não no digital que é relativamente recente. Neste momento há uma discussão a propósito do regulamento geral da protecção de dados. Acho que têm que ser realmente ponderados estes valores de privacidade mas acho que há questões que têm que ser devidamente estudadas e são essenciais do ponto de vista daquilo que é o acesso à informação. Temos de encontrar os mecanismos necessários para que a ideia não seja apagar conteúdos. Esta ideia do chamado direito ao esquecimento tem que ser enquadrada devidamente e temporalmente. Não posso apagar os meus registos pura e simplesmente porque a protecção e dados o prevê. O direito ao esquecimento é uma coisa que está no Tratado de Lisboa, que está na Base do Regulamento Geral da Protecção de Dados. Uma das discussões surgiu a propósito das Brigadas Vermelhas em Itália, que depois de se poderem eliminar dados surgiu um conjunto de dirigentes destas brigadas em posições de destaque. Do ponto de vista histórico isto é grave e esta foi uma das questões levantadas pelos directores dos arquivos de toda a União Europeia. Depois, na segunda versão do mesmo regulamento, já vem prevista, neste direito ao esquecimento, a excepção dos arquivos, dos fins de investigação e dos fins estatísticos para que não sejam apagados os registos, sendo que podem ser anonimizados durante um determinado período de tempo. Mas a ideia inicial seria apagar os registos. Não é uma discussão simples e tem que se ter algum cuidado. O que é isto de ser o “guardião” da história ? Além de ser uma responsabilidade muito significativa tem uma coisa fantástica: Temos uma equipa de gente que trabalha bastante bem e que gosta daquilo que faz. Temos duas componentes: um balcão aberto a toda a gente, a única restrição é o limite mínimo de 18 anos e o estado de conservação dos documentos. A manipulação permanente dos documentos é também um facto de degradação. Portanto, gerir estas necessidades de, por um lado dar acesso e por outro ter em conta as questões de conservação, é um equilíbrio que se tem que manter. Mas também não faz sentido conservar se não tivermos acesso. Este é, provavelmente, o aspecto mais interessante do ponto de vista de quem tem a responsabilidade de gestão. Nós não fazemos história, nós damos acesso.
Sofia Margarida Mota EntrevistaPaulo Jorge Parracho: “Macau tem de ter marinas” O engenheiro naval Paulo Parracho esteve no território a participar no seminário “Jurisdição e Sustentabilidade: Ordenamento e Transporte Marítimo”. Para o especialista, Macau precisa de uma actualização legal para facilitar o aproveitamento da área marítima alargada de que dispõe. Por outro lado, e de modo a diversificar a economia local, defende a construção de marinas e a agilização dos processos de registo de embarcações [dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap]m que fase está Macau no que diz respeito à administração marítima? Há uma estrutura que, em termos de organização, responde àquilo que é suposto uma administração marítima com vontade de vir a ter navios e de cumprir as suas obrigações internacionais. Mas tem ainda uma legislação que carece de ajustamentos. A parte da legislação que diz respeito ao registo de navios respeita uma área que não sei se a RAEM poderá vir a explorar que é a náutica de recreio, um sector que, na minha opinião, poderá vir a ter aqui um grande potencial. Mas, a própria questão do registo de embarcações assenta em legislação portuguesa que já está desajustada e já foi alterada, ou seja, é preciso olhar para toda uma legislação que enquadra as questões relativas à parte marítima e que diz respeito à certificação de navios. Quando falo em certificação de navios refiro-me a questões de segurança, questões de prevenção da poluição e de gestão destes próprios navios. Há também uma curiosidade. Há um fundo de registo previsto em Macau à semelhança do que acontece em Portugal. Portugal criou um fundo de registo, ou seja temos um registo a que chamamos de registo convencional e depois temos o registo dos navios da zona da Madeira aproveitando a zona franca numa tentativa de responder à saída de navios da Europa para outros países que criavam condições mais atractivas, particularmente em termos de impostos. Nessa altura, em 82, Portugal criou o registo internacional de navios da Madeira. Curiosamente, essa legislação foi replicada aqui e está praticamente igual. O que acontece é que desde 82 até agora muita coisa se passou a nível internacional e há um conjunto de enquadramentos que já não pode ser aquele que a actual legislação existente aqui prevê. É também necessário questionar, até porque julgo que tem havido aqui uma discussão política no sentido de criar alternativas à economia além do jogo. De que forma é que a exploração do mar pode vir a ajudar a diversificar a economia local? É necessário determinar se na realidade há potencial em Macau para haver investimento e uma verdadeira economia do mar. A questão que podemos colocar é se há potencial de exploração da economia do mar do ponto de vista da exploração de recursos existentes nas águas. Que recursos? Não estamos a falar só de recursos piscícolas, que nem sei se ainda os há. Mas, por exemplo, será que há potencial para explorar a aquacultura tendo em conta que é uma área extremamente sensível do ponto de vista da qualidade das águas? Esta é a grande questão. Depois há o fundo do mar. O que é que este fundo tem para oferecer? Há o património que em Macau pode ser uma questão relevante porque esta foi uma zona de grande movimento de embarcações e é possível que haja também potencial cultural para ser explorado no fundo do mar. Estas são algumas das questões que é necessário perceber. E é preciso conhecer estes aspectos até porque só há ordenamento de espaço marítimo se houver conhecimento. Se não houver conhecimento a questão é: o que vamos fazer? FOTO: Sofia Mota A poluição marítima é uma questão que tem sido muito discutida. Como é que esta zona do mundo tem lidado com isso? A esse respeito é de registar que nesta zona do mundo muita coisa tem mudado e para melhor. Não há muito tempo havia um pouco a ideia que a questão da poluição seria um obstáculo ao crescimento económico. Felizmente, que assim não é e os grandes decisores políticos já reconheceram que, de facto, a poluição é um problema e se queremos ter um sistema sustentável este só pode existir dentro de um ambiente que também o seja. Quando os Estados ratificam uma convenção ambiental comprometem-se, para todos os efeitos, a dar cumprimento às normas dessa convenção. Mas o que acontece é que, na prática, isso não se verifica. Os Estados ratificam e depois esquecem-se que o acto de ratificação é apenas o primeiro passo. Depois é necessário criar meios, do ponto de vista de recursos humanos, devidamente qualificados para que aquilo a que se comprometeram a fazer seja viável. A situação dos plásticos, por exemplo, não seria problema se os Estados cumprissem as convenções porque isso já está previsto. Temos cada vez mais convenções e seria muito bom que fossem cumpridas porque se assim acontecesse muitos dos nossos problemas, quer a nível de poluição, quer a nível de segurança, não existiam. Relativamente a esta zona, pela primeira vez a organização marítima internacional faz auditorias a todos os Estados o que não é uma questão fácil. Os países europeus estão habituados a receber auditorias por parte da Comissão Europeia, mas há outros que não. Este processo já começou também na China e em Macau. É um sistema importante não na perspectiva de apontar o dedo mas na perspectiva das coisas poderem avançar de forma uniforme porque a poluição não conhece fronteiras. A China é vista como um dos países que tem tido algum relevo no combate à poluição. Concorda? As acções que a China tem vindo a tomar têm sido muito importantes. Vi as posições da República Popular da China (RPC) em dois momentos e não foi há tanto tempo como isso. De 2006 até provavelmente 2008, a RPC tinha uma posição em que a poluição seria para ser tratada, mas mais tarde porque há sempre a questão dos países que defendem que as questões ambientais são restritivas ao seu desenvolvimento económico e reclamam que outros Estados mais desenvolvidos atingiram o ponto que atingiram – de grandes economias – à custa de muita poluição. Por isso, países como a RPC, Índia ou Brasil entendiam que não seria justo que agora se lembrassem do ambiente quando esses países já estão na recta ascendente. Este era o argumento apresentado. O facto da RPC nos últimos anos ter tido uma posição extremamente construtiva relativamente ao ambiente tem levado a que um conjunto de medidas, que até há bem pouco tempo levavam muito tempo a ser aprovadas a nível internacional, pudessem avançar. Isto tem levado a que países mais renitentes nesta matéria como a Índia e o Brasil, sigam o exemplo da China. A nível da poluição atmosférica andámos não sei quanto tempo para que se conseguisse avançar com passos muito pequeninos, agora tem-se conseguido dar passos muito largos e importantes. Esta situação assume maior importância pelo seguinte: por vezes há a tendência errada de se procurarem soluções para este tipo de problemas a nível regional e não internacional. Assumir posições unilaterais não será a melhor estratégia mas a Comissão Europeia entende o contrário. O ambiente é um problema internacional e tem que ser tratado a nível global. Ainda neste sentido, o comportamento da China tem sido extremamente importante para colocar a comunidade internacional a avançar, não a um ritmo que todos se calhar pretendíamos, mas é já um ritmo importante e isto tem feito com que as decisões a nível regional percam a razão de existir. Ou seja, já não há aquele argumento de “temos que decidir a nível regional porque a nível internacional há um conjunto de países, entre os quais grandes potências como é a China, que lideram e que retardam o processo deliberadamente”. Isto agora não está a acontecer. Relativamente a Macau e com a quantidade de barcos que circulam nesta zona, não há um perigo acrescido nestas águas? O transporte marítimo é o menos poluidor de todos os meios de transporte. É a Direcção dos Serviços de Assuntos Marítimos e de Água que tem a obrigação de assegurar que as regras são aplicadas. Pode fazê-lo directamente, com os recursos próprios ou pode permitir que entidades independentes idóneas, designadas por organizações reconhecidas possam realizar as tarefas que competem à administração marítima de Macau. Mas isto não significa que Macau fique ilibado das responsabilidades que tem como estado de bandeira, ou seja, tem que assegurar que o trabalho que delegou em qualquer área, é acompanhado directamente pela própria direcção para garantir que está a ser correctamente efectuado. A questão que se pode colocar é porque é que isto não acontece. Pode ser por vários motivos. Um deles é a existência de alguma incapacidade do ponto de vista de recursos qualificados para exercer claramente essas funções. A outra, porque podemos estar a falar de uma administração permissiva. A questão do registo de navios é uma questão do ponto de vista financeiro muito atractiva. Mas, a questão que eu coloco é porque é que não há uma marina de recreio aqui? Acredito que se deveria apostar nesta área porque Macau tem todas as condições para ter uma marina de recreio forte. Acontece também que a legislação existente nesta matéria é basicamente a legislação portuguesa que está ultrapassada. Já tivemos depois da legislação que ainda perdura em Macau, duas alterações em Portugal e está em curso uma terceira. Portugal ainda exige, bem como os países do Sul da Europa e Macau, a obrigatoriedade de para quem quer navegar numa embarcação de recreio, de ter uma carta de navegador de recreio. Isto já não acontece nos países do norte da Europa. Isto tem que ver um pouco com as questões próprias dos regimes legais existentes. No sul da Europa ainda há um pouco a ideia de que o Estado é que tem que ser “o paizinho de toda a gente”. Isto também se vê nos enquadramentos jurídicos e é uma área que também em Macau está condicionada. Não digo para se acabarem com as licenças, que isso é uma decisão política, mas se a opção for obrigar que existam cartas de recreio para quem quer conduzir uma embarcação, pelo menos que se ajuste a legislação no sentido de potenciar e de atrair mais gente para a prática da náutica de recreio. Vamos exigir que as cartas se possam obter em centros de formação mas que não se cometa o erro, como se tem vindo a fazer em Portugal, de quase que se exigir um curso como se se fosse trabalhar a bordo de uma embarcação profissional – isto afasta toda a gente. Referiu que a legislação a nível internacional está a avançar. Macau não podia usufruir disso para ter a vida facilitada na atualização da sua legislação? Julgo que sim, mas quem está de fora não percebe todas a variáveis que um processo de alteração de legislação tem. Se se pretende olhar para o mar na perspectiva de utilização de embarcações e de atrair a população para praticas náuticas – e porque não apostar no turismo náutico – Macau tem que olhar para este pacote como um todo e isso passa obrigatoriamente pela náutica de recreio. O problema não passa só por ter uma embarcação, Macau tem de ter marinas, tem de ter pessoas que gostem de navegar e criar aqui uma dinâmica. Julgo que seria extremamente interessante termos aqui nestas águas um movimento neste aspecto. Traria a Macau um colorido diferente e provavelmente criava aqui outras alternativas dentro da actividades turística. Não tenho dúvida de que há vontade, agora é preciso que haja disponibilidade para começar a trabalhar.
Sofia Margarida Mota Entrevista MancheteAntónio-Pedro Vasconcelos, realizador: “Um bom filme é uma espécie de Juízo Final” Com mais de 50 anos de carreira, António-Pedro Vasconcelos lamenta a falta de público para o cinema que se faz em Portugal e a forma como são dados os financiamentos à sétima arte. O cineasta está em Macau para apresentar “Jaime”, “Os imortais” e “Os gatos também têm vertigens” no âmbito das comemorações do 10 de Junho [dropcap]É[/dropcap] filho e neto de juízes e começou por estudar Direito. Como é que aparece o cinema? Estudei Direito porque a família achava que devia dar continuidade à tradição, mas isso não aconteceu. Primeiro através da banda desenhada e depois através de histórias e de romances, o meu universo sempre foi o da ficção. Sempre me interessaram as histórias. Mais tarde descobri o cinema. Acabei por sentir que tinha de passar para o lado de lá. Tinha de deixar de ser um leitor e um espectador para passar para o outro lado, para transmitir os sentimentos que a realidade me inspiravam, acerca dos meus próprios problemas e daqueles que via à minha volta. O cinema dava-me isso e foi o que me fascinou: o poder ser capaz de transmitir aos outros aquilo que sentia. O que é para si o cinema? O cinema foi a grande arte do séc. XX. Sempre achei que sem ficção a vida tornava-se insuportável. A ficção dá-nos a ilusão de um mundo perfeito, mesmo nas tristezas. Costumo dizer que um bom filme é uma espécie de juízo final em que decidimos quem mandamos para o inferno, para o céu e para o purgatório – agora já não há purgatório, mas era um conceito que dava jeito. O cinema tem uma coisa que lhe é particular, aliás o realizador que me marcou toda a vida, François Truffaut, numa entrevista que lhe fiz disse-me isso mesmo: no cinema, e ao contrário da literatura e de outras artes ficcionais, nós não podemos deixar que o público saia da sala com o sentimento de que a vida não vale a pena e de que é injusta. De facto, podemos escrever um mundo de injustiça, de desigualdades, de violência, de guerra até, mas o sentimento que temos de dar às pessoas é de que o facto de transmitirmos o que é mau já significa que temos uma ideia do que é justo. Apesar de ser muito céptico em muitas coisas, de ter a noção de que a natureza humana está longe de ser perfeita, que os homens não são particularmente bons, que são bons e maus, conforme as circunstâncias e conforme tudo aquilo que o Shakespeare disse, acho que cada um de nós tem de ter uma visão crítica e positiva. Não devemos aceitar a injustiça, mesmo que se saiba que nunca haverá um mundo justo, que nunca haverá um mundo solidário e totalmente livre. Temos de nos debater constantemente para corrigir as injustiças quer ao nível daqueles que nos estão perto quer ao nível da sociedade. Quer dizer: deixar algum tipo de mensagem de esperança? Não é bem de esperança. Acho que a esperança, como a fé, são coisas em que delegamos a responsabilidade porque não dependem de nós. Aliás, São Paulo dizia que das três virtudes – fé, esperança e amor – o amor era o mais importante. O amor no sentido da fraternidade, da solidariedade, a dádiva desinteressada e da compaixão, isso já depende de nós. Posso ter esperança que a vida me corra bem, posso ter fé que me vai acontecer alguma coisa, mas o que é importante é aquilo que depende de nós. Nós temos de ser melhores, mesmo quando não esperamos retorno. O amor tem de ser incondicional. Estou-me a referir ao sentido lato do termo e não no sentido romântico. O romantismo teve uma coisa terrível que foi confundir na expressão amor. Teve um efeito bastante perverso e negativo. Se há algum tema quase recorrente nos meus filmes, é de facto uma reflexão sobre esta ideia de que o romantismo meteu na palavra amor uma série de coisas que não são necessariamente compatíveis, ou que não coincidem com o amor. O sexo, o desejo, a paixão a conjugal idade são coisas diferentes e que às vezes até entram em conflito. A paixão, por exemplo, é uma coisa turbulenta e que, muitas vezes, conduz a qualquer coisa que pode ser o oposto do amor. Conduz ao ciúme ou ao crime. FOTO: Sofia Mota Traz a Macau três filmes: “Jaime”, “Os imortais” e “Os gatos também têm vertigens”. Como é que fez esta selecção? Talvez porque são três filmes que ilustram bem a minha preocupação, sobretudo na segunda fase da minha obra. Os meus três primeiros filmes eram muito confidenciais em que o personagem principal era um pouco o meu alter-ego e reflectia muito as minhas preocupações pessoais em matéria de amor e não só. Nos outros filmes olho mais para fora de mim. São três filmes em que cada um, à sua maneira, fala de três realidades que me preocupam e que traduzem, em três épocas diferentes, as realidades do meu país. A exploração do trabalho infantil que aparece em “Jaime” é um assunto que me choca muito. “Os imortais”, porque fala de uma realidade que o cinema português fala muito pouco. Não é propriamente da guerra mas da ressaca da guerra colonial. “Os gatos também têm vertigens” foi escolhido porque tentou traduzir um sentimento que prevaleceu durante o período da chamada austeridade e da intervenção da Troika. Foi o período talvez mais negro da história da democracia portuguesa em que os portugueses foram castigados, sobretudo a classe média e os jovens. O filme não fala propriamente disso, mas dessa crise através de dois personagens que pertencem a duas gerações extremas, os idosos e os mais jovens, sobretudo aqueles que são marginalizados e que correm o risco de ficar fora da sociedade e enveredar pelo crime. Escolhi estes três filmes porque acho que traduzem bem aquilo que o meu cinema tenta ser: falar das coisas à minha volta. Estamos no Oriente. Qual é a sua opinião do cinema que se faz aqui? O cinema japonês foi talvez o cinema mais rico aqui no Oriente, durante muitos anos. Depois houve aqueles filmes do Bruce Lee, mas antes disso houve um grande cinema japonês que descobri nos anos 60 através de três grandes realizadores: Akira Kurosawa, Yasujiro Ozu e Kenji Mizoguchi. Há também uns filmes do Wong Kar-wai que gostei muito, mas não é uma cinematografia que conheça muito bem. Não chega a Portugal e o Wong Kar Wai foi talvez o realizador que mais me impressionou. Tem sido muito crítico no que respeita ao financiamento do cinema e da ditadura do gosto. Todo o cinema europeu, a partir dos anos 80, entrou em declínio. Sempre me preocupei em tentar perceber porque é que isso aconteceu e o que se podia fazer para travar este declínio. Em quase todos os países da Europa chegou-se à conclusão de que o Estado tinha de intervir, regulando o mercado, criando incentivos e inclusivamente financiando uma parte da produção. Em Portugal, em 1971, ainda em pleno regime marcelista foi criado um sistema que perdura até hoje no seu paradigma que é de que o Estado deve impor taxas – na altura às salas de cinema que eram quem lucrava com os filmes, mas hoje em dia a toda uma cadeia encarregue da comercialização dos filmes. A ideia que o Marcelo Caetano impôs com esta lei foi a de que as salas de cinema tinham de pagar uma percentagem dos seus negócios para financiar o cinema português, mas como era um regime de ditadura impôs-se que em vez de se criar um regime de obrigações como acontece noutros países, esses 15 por cento sobre os bilhetes fossem para um organismo criado pelo Estado onde um grupo de quatro ou cinco pessoas ía ler os argumentos e decidir que filmes é que eram autorizados. Este paradigma, paradoxalmente, manteve-se em democracia, ou seja, hoje em dia o Estado criou uma série de taxas e de obrigações, mas, na maioria dos casos, o grande suporte financeiro obtido por essas taxas vai para o Instituto de Cinema, que por sua vez escolhe cinco indivíduos que decidem o que é que dez milhões de portugueses devem ver. Isto é uma coisa com que não me conformo há 44 anos porque este instituto depende do Ministério da Cultura que arroga-se o direito de, com o dinheiro dos outros, escolher que filmes é que se devem fazer. Não imagino o Ministério da Cultura a decidir, cada ano, se deve escrever a Lídia Jorge ou o Lobo Antunes, ou quem deve compor música, se é o Jorge Palma ou o Sérgio Godinho. Somos o único país da Europa em que o Estado não investe directamente no cinema. Isto é tudo um completo absurdo que tem favorecido um cinema muito mais autista que o público não reconhece e que não vai ver. Está a falar do cinema de autor? É o que eles chamam de cinema de autor. Mas o cinema de autor não é isso. Hoje em dia criou-se esta ideia em Portugal: o cinema de autor é o cinema que não tem público e o que não tem público é o cinema comercial com os preconceitos que lhe estão inerentes. O cinema deve deixar um testemunho através do reconhecimento público, não há que ter medo do público. Quais são os filmes da sua vida? Isso é uma longa lista. Alguns grandes autores americanos: John Ford, Capra, Samuel Fuller foram realizadores que me marcaram para a vida. Depois há toda uma escola do cinema europeu nomeadamente a escola neo-realista. O meu autor preferido sempre foi o Rossellini. Em França, o Jean Renoir e mais tarde os autores da Nouvelle Vague. Os primeiros anos do Godard e do Truffaut. Alguns filmes do Polanski, por exemplo. O paradoxo é que hoje só se fala de cinema de autor e desapareceram os autores na Europa. O único que talvez sobrevive é talvez o Nanny Moretti. O próprio Almodovar deixou de ter interesse. Ele fez um retrato de uma época em que a Espanha mudou muito e ficou desfocado da realidade. Mas não vejo grandes autores na Europa, às vezes vejo bons filmes. A partir do momento em que os autores começaram a desprezar o público, deixaram espaço para muitos filmes que não têm alma, deixaram de dar oportunidade ao público para ver bons filmes. Ao contrario de muitos realizadores, há décadas para cá que os realizadores se sentem felizes por não ter público porque acham que a grande arte não é compreendida. Para mim isto é um contra-senso. Que filmes lhe falta fazer? Falta-me fazer muitos filmes, sobretudo aqueles que não fiz, mas quanto a isso já não há nada a fazer. Também não vou ter muito mais tempo para os fazer. Vou fazer mais dois ou três. Tenho 79 anos e apesar de me sentir em forma não posso fazer grandes planos para o futuro. Quero fazer um filme que se passa num lar de idosos, outro sobre os filhos de pais separados. Interessa-me a sensação de insegurança em que o mundo vive. Tenho alguns projectos e espero que os tais júris pensem que os meus filmes merecem ser feitos. Preocupa-me sobretudo as novas gerações e gostava que mudassem esta visão do cinema e a intervenção do Estado. Gostava que aparecesse uma geração que tem muitas coisas para dizer e que tenha um olhar diferente do meu. O meu é um olhar, apesar de tudo, marcado pela idade com tudo o que isso tem de bom mas também já moldado. É preciso ouvir as novas gerações que obviamente têm uma visão diferente do mundo. Está há uns dias em Macau. O que tem a dizer? É uma cidade estranha. É uma cidade onde floresceram os casinos. Tem um lado de Las Vegas, exuberante e muito artificial e há também marcas da presença portuguesa. É uma cidade de contrastes.
Sofia Margarida Mota Entrevista MancheteAntónio Leça, escultor | Macau e a sua personalidade António Leça vai inaugurar no próximo dia 13 a exposição “Escultura – Um Caminho” no Albergue SCM. O escultor viveu em Macau durante quase 20 anos, período em que integrou a administração portuguesa do território e presidiu ao World Trade Center. Depois de uma carreira na área económica, vive agora no Alentejo onde se dedica totalmente à escultura, mas ainda tem bem presente a personalidade de Macau [dropcap]F[/dropcap]ez parte da administração portuguesa em Macau e esteve ligado ao comércio internacional. Como é que Macau pode ser visto como um prestador de serviços neste sector? Macau, no meu entender, sempre foi no decorrer dos séculos uma economia de serviços, ou seja, as indústrias que existiam aqui – a indústria dos panchões, do mobiliário, da cerâmica, etc. – eram indústrias residuais. Por si só não suportavam a economia de Macau. Por outro lado, no séc. XX e mercê de condições exógenas, Macau iniciou uma fase de diversificação industrial, nomeadamente nas confecções, no ramo têxtil. Macau tinha cotas de exportação para os Estados Unidos da América, para a Europa e muitas companhias, que existiam em excesso em Hong Kong, diversificaram a actividade e estabeleceram-se aqui. Houve ainda nos anos 60 uma determinada actividade económica relativa à prestação de serviços que fez crescer e dinamizar o território e promoveu o seu contacto com o exterior. Mas o peso que representava foi sempre minoritário. O jogo teve sempre uma força muito grande. Quando falamos de Macau, devemos sempre considerar que, de facto, Macau foi uma economia de serviços, como ainda hoje o é. O turismo, mais concretamente o jogo, têm uma importância muito grande mas é basicamente uma economia de serviços com particularidades especificas. E que particularidades são essas? As particularidades do território baseiam-se no facto de ter sido sempre uma cidade multicultural, ou seja, sendo uma cidade chinesa tinha componentes no seu modus vivendi que também diziam respeito a outras culturas, em que a portuguesa tinha um papel preponderante. As pessoas muitas vezes pensam, e nós portugueses também fazemos uma referência a Macau como colónia, mas nunca o foi. Entendemos uma colónia quando um país. Uma potência exerce o poder de soberania sobre um território, impondo uma religião, impondo uma actividade financeira que é dominada por essa mesma potência. Isso é uma colónia. Mas, neste caso, isso não aconteceu. O território sempre foi um processo de entendimento entre as comunidades que aqui viviam. A economia foi sempre chinesa. O que existia de facto era uma equação que algumas vezes compreendia mais a parte portuguesa nessa actividade, outras vezes não. As circunstâncias flutuavam no decorrer do tempo com influência de factores mais endógenos ou exógenos, mas era uma cidade multicultural. Penso que foi este conceito de sociedade multicultural que fez a diferença em Macau. Não quero abordar o passado recente, mas ainda vivi dois anos após a transição na altura do Edmund Ho e saúdo a percepção que a administração chinesa de Macau, nomeadamente da parte do Executivo, teve em preservar estes elementos estruturantes. São estes elementos que, se não fossem preservados, fariam com que Macau se diluísse no Delta do Rio das Pérolas. Macau não podia competir com Shenzhen, não podia competir com Zhuhai, com Hong Kong ou com Cantão e diluía-se como uma pequena cidade sem personalidade própria. A diferença de Macau é esta personalidade decorrente da multiculturalidade que tem. O português é muito importante mas, hoje em dia, uma pessoa chega e vê que outros povos de outras nacionalidades também aqui estão, que aqui vivem outras comunidades em maior numero até que a comunidade portuguesa, penso eu. Estas diferenças todas é que fazem também desta região um lugar diferente. Macau foi no passado, é no presente e a sua potencialidade de crescimento vai ser sempre baseada numa economia de serviços e deve ter a inteligência de perceber esse fenómeno e de o adaptar, com o tempo, às circunstâncias que lhe são exigidas. A situação económica de Macau depende do jogo. Como é que se inserem aqui, a seu ver, os serviços? Sim, é uma economia de jogo, mas ao jogo estão associados outro tipo de serviços. Isso acontece quando se fala no turismo, por exemplo. É óbvio que os turistas que vão visitar Paris não são os mesmos que visitam Macau. Os turistas que vêm a Macau vêm jogar basicamente, sempre assim foi. Mas permitem ao mesmo tempo a existência de hotéis, de restaurantes, de um conjunto de actividades ligadas ao turismo. É óbvio que se me perguntar se o jogo é frágil, eu respondo que sim e se o jogo acabar, acaba tudo o resto. E vai acabar. As sociedades são cíclicas. FOTO: Sofia Mota Qual seria a solução? Essa é a pergunta de um milhão de dólares. Licenciou-se em escultura, trabalhou na área da economia e regressou à escultura. Como é que foi este trajecto? A escultura sempre existiu como vontade própria de realização, de fazer coisas. Desde que me conheço que considerava sempre a projecção de realizar ou de fazer escultura. Tive formação académica nesta área e por razões de natureza de sobrevivência social trabalhei em áreas, não ligadas à escultura, mas ligadas à actividade plástica e criativa. Cheguei a ser paginador do jornal “O Século”. Fui o responsável gráfico dessa publicação e das primeiras pessoas que na altura eram aceites na redacção para pensar um jornal. Vim para Macau num processo decorrente do que andava a fazer em artes gráficas e vim montar uma estrutura de publicidade ligada à direcção de economia que depois deu origem a um departamento que acabou por ser o antecessor do agora chamado IPIM. Era uma actividade de promoção no exterior da economia de Macau em que o marketing e publicidade estavam associados. Por confiança das pessoas que me conheciam e por vontade daqueles que comigo trabalhavam fui gradualmente assumindo posições de responsabilidade especificamente na área do comércio e da economia. Também por vontade de pessoas e porque era accionista do World Trade Center assumi a presidência daquela entidade e levantei o projecto. Há um amigo meu, o escultor João Cutileiro, que dizia assim: “É mais fácil um escultor ser gestor do que um gestor ser escultor”. Já tinha o caminho facilitado. Era escultor e era gestor. Regresso a Portugal em 2002 por vontade própria. Saio de bem com Macau e com as suas gentes e a estas gentes estou grato pela oportunidade que me deram de aqui trabalhar, viver e constituir família. Mas é necessário encontrar novos caminhos na vida. Regressei a Portugal e aos espaços que estavam temporariamente suspensos, ou seja à escultura e regressei a tempo inteiro. É uma actividade que não pressupõe part-time. Uma oficina requer muito trabalho físico e de forma intensa, uma dedicação exclusiva que não se compagina com outro tipo de actividades. O seu material de eleição é a madeira. Porquê? Simplesmente porque gosto de madeira, gosto das suas propriedades. A madeira é um material orgânico, que se configura e que se modifica com o decorrer do tempo. Há duas formas de fazer escultura. Uma forma é a modelagem em que as pessoas, através de um material plástico, geralmente o barro, modelam uma estátua, modelam uma maquete que por sua vez é ampliada, sendo posteriormente passada para gesso e depois é plasmada por diversos processos para pedra ou para bronze, por exemplo. Aqui entende-se um ponto que é o seguinte: trabalha-se num material que tem determinadas características e especificidades que é, neste caso, o barro e transpõe-se essa maneira de fazer para outro material que tem propriedades completamente diferentes. Nesta concepção houve um corte feito por um senhor chamado Brâncuși, no início do séc. XX que é tão importante na escultura como Picasso o foi na pintura. Cortou as linhas de criação dentro de uma determinada área e reiniciou aquilo que se designa por talhe directo, ou seja, encarar uma peça de escultura directamente no material em que vai ser produzida. O corte, o desbaste, as partes polidas ou não polidas são determinadas no acto de fazer a peça. A madeira permite um talhe directo de excelência e hoje em dia as novas tecnologias associadas às ferramentas permitem utilizar madeiras que anteriormente não eram utilizadas na feitura de escultura. Trabalho muito com o azinho que é uma árvore muito frequente no Alentejo. O azinho é uma madeira “não nobre” naquilo que se poderia considerar como madeira para trabalhar marcenaria ou escultura porque é muito dura, em que o processo de secagem determina grandes torções e por conseguinte é densa e não permite ferramentas manuais. Hoje em dia, com as novas ferramentas, já é possível. Trata-se de aproveitar a tecnologia aplicada a materiais que sempre existiram. O azinho, há uns séculos, era a madeira utilizada para lenha porque demorava muito tempo a queimar. O que vamos ver nesta exposição? Esta exposição nasce de uma visita que o arquitecto Carlos Marreiros fez ao meu atelier em Novembro. Ele acreditou nas peças que viu, fez-me este desafio para expor e tornou esta história possível. Em Novembro do ano passado não tinha pensado esta exposição. Tinha um conjunto de peças, estas que aqui vão estar e outras tantas que foram produzidas nos últimos cinco anos, mas que não estavam integradas numa linha de pensamento. Tive como propósito imediato enquadrar um processo discursivo num conjunto de peças que fossem interligadas e que reflectissem, de facto, esse período de trabalho. Este período resume-se em três linhas de entendimento: a que designo de pré- Brâncuși. Não são peças que reproduzem outras deste escultor, mas que traduzem o entendimento que tinha da forma e do espaço e em que procurei fazer na madeira utilizando o talhe directo. Depois há um conjunto de peças de dimensões diferentes, e que também têm significados distintos, que representam as árvores. As árvores, prosaicamente falando, entraram na minha escultura no Alentejo. As pessoas na cidade não as observam, porque não têm horizonte para isso. As pessoa na cidade veem só as árvores a dez metros de distância. No Alentejo veem-se recortadas no monte, numa linha de horizonte, o que tem um significado visual completamente diferente. Depois tenho os totens que também têm várias interpretações. Têm um significado antropológico, mesmo Freud falou muito do totem e do tabu. Viveu muitos anos na Ásia. O que levou daqui para os seus trabalhos? Levo sempre coisas comigo de todos os sítios por onde passei. Mal seria se assim não fosse. Mas não sou saudosista. Tenho uma grande emoção por regressar a Macau, mas não é propriamente uma saudade que me faça depender de Macau. As memórias que guardo desta região são memórias que me são muito gratas e nós construímos o futuro muitas vezes com as nossa memórias do passado. Macau foi uma parte importante na minha vida que teve um determinado período, mas se me perguntar se regressaria a Macau, respondo que não. Hoje a minha vida é no Alentejo.
Andreia Sofia Silva Entrevista ManchetePedro Rocha Vieira, CEO e fundador da Beta-i, empresa ligada a startups: “Macau não pode parar no tempo” Filho do último governador português de Macau, Pedro Rocha Vieira é hoje CEO da Beta-i, uma empresa que ajuda startups a procurar investimento dentro e fora de Portugal. Macau está nos seus planos e os primeiros protocolos serão assinados este mês. Pedro Rocha Vieira viveu em Macau na década de 90 e entende que as empresas portuguesas não souberam, na altura, explorar as oportunidades deste lado do mundo [dropcap]É[/dropcap] CEO da Beta-i, uma empresa ligada ao empreendedorismo e startups. Como começou este projecto? A Beta-i nasce enquanto associação sem fins lucrativos, no pico da crise em Portugal, em 2009. Tínhamos o objectivo de trazer para Lisboa uma nova cultura de empreendedorismo e para capacitar as futuras gerações de empreendedores. Acreditámos que Portugal, e sobretudo Lisboa, tinha um potencial enorme para ser um hub de inovação e de startups a nível global, porque tem talento, boa qualidade de vida. Fomos responsáveis pela construção da grande parte do ecossistema do empreendedorismo em Lisboa, que incluem as startups de tecnologia e com maior ligação e capital internacionais. Começámos por fazer eventos, programas de capacitação de empreendedores, e depois criámos um programa emblemático, que foi o Lisbon Challenge, para empresas de todo o mundo que ainda estão a adaptar o seu produto ao mercado, precisam de acertar a sua estratégia. Fomos contribuindo para a criação de uma cultura de investimento, porque não havia muitos investidores internacionais, sobretudo que investissem na fase de capital de risco. Existiam investidores ligados a um modelo mais tradicional e contribuímos para uma nova mentalidade de investimento. Evoluímos para uma sociedade de capital de risco, e esse é, hoje em dia, o nosso maior negócio. A Beta-i é hoje uma empresa gerida por quatro sócios e este ano fundimo-nos com uma outra empresa, uma boutique de inovação, e somos oito sócios. Quais os principais projectos da Beta-i depois dessa fusão? Sentimos que aquilo que estava a acontecer nas startups, ao nível do capital de risco, tinha um impacto nas grandes empresas. Hoje em dia todas as indústrias estão a passar para o digital e a Beta-i é um forte parceiro no processo de transformação das grandes empresas, desde ajudar a definir estratégias de inovação, capacitá-las com ferramentas de empreendedorismo e ajudamos a executar estratégias. Trouxemos muita da experiência que tínhamos com as startups. O nosso maior foco é a inovação aberta, pois, por um lado, as startups precisam de grandes empresas para entrar no mercado e para acelerar a sua inovação. Estamos a começar a fazer projectos globais com uma empresa de Hong Kong, a Fosun e o Hospital da Luz, por exemplo. Temos feito um trabalho muito forte nas grandes empresas e sentimos que um dos maiores desafios tem a ver com a mentalidade das pessoas dentro e fora das organizações. Temos programas de capacitação de empreendedores dentro das universidades, através de parcerias e estamos a apostar em escolas de Verão para crianças. Também temos uma ligação forte em termos internacionais. Há muito tempo que estamos em contacto com a China e acho que Macau pode ter um papel importante na ligação do mercado chinês e acho que Macau pode ter um papel importante na ligações com os países de língua portuguesa. Macau, mais do que a oportunidade, tem a capacidade de aderir ao digital e às novas tendências de empreendedorismo? Tem e não tem. Por um lado, Macau tem um grande desafio porque é um território muito dependente de poucas indústrias, tal como o jogo, o turismo e imobiliário. São indústrias que dão muito dinheiro, e também tem uma Administração Pública muito forte. A maior parte do talento e dos investidores estão nessas indústrias, e o custo de se fazer outras coisas é muito alto. O incentivo para diversificar é muito baixo, o que faz com que seja muito difícil criar oportunidade e interesse nos jovens empreendedores, ou potenciais, para explorarem outro tipo de negócio. Numa fase de capital de risco, os investidores vão, muito provavelmente, optar por investir em negócios mais tradicionais. Tenho acompanhado a evolução nos últimos anos e há uma vontade política para a diversificação e uma visão de estratégia mais alargada da presença do território no delta do rio das pérolas e a relação que Macau possa ter com os países de língua portuguesa nos próximos anos, dada a inauguração da nova ponte e uma maior interligação ao nível dos transportes. Há dinheiro para investir no digital e na tecnologia, o Governo de Macau pode investir em projectos de cidades inteligentes e na estruturação da maior parte das áreas. Acima de tudo, é preciso fazer um trabalho para atrair investimento e empreendedores para essa região e de articulação de Macau com as restantes cidades na região. O secretário Lionel Leong [da tutela da Economia e Finanças] tem uma visão para esta área. Mas há muitos tipos de empreendedorismo. Pareceu-me que está muito ligado ao turismo, e com negócios que podem ser apenas locais, e também ligado às indústrias criativas. Também há coisas novas que se podem explorar, e é uma aposta que Macau quer fazer, na área da saúde e das cidades inteligentes. Tenho visto uma mudança muito grande. Viveu em Macau e o seu pai [Vasco Rocha Vieira] foi o último governador português de Macau. Havia apenas a Universidade da Ásia Oriental e agora há mais oferta educativa. A pouca aposta no ensino superior nas décadas de 80 e 90 poderão ter influenciado este atraso que Macau ainda tem no sector empresarial, em comparação com Hong Kong? Pelo que sei, houve uma aposta muito forte para que Macau tivesse algumas bases. Hong Kong tem mais universidades mas tem uma dinâmica completamente diferente, com maior presença do sector privado. Muito do que existiu ao nível do ensino superior até foi uma aposta de Portugal, mas é difícil criar projectos de longo prazo. Foi feita uma aposta em torno do Direito, protocolos com a Universidade Católica Portuguesa, Universidade de Coimbra. Na altura, a realidade da região era completamente diferente e a China teve uma enorme mudança nos últimos anos. Os jovens que queriam estudar iam para fora, onde havia boas universidades, e as pessoas de Macau são bem formadas. Ao nível do ensino superior são precisas estratégias de longo prazo e acho que muito se fez na altura. Diria que não há falta de qualificações nas pessoas da minha geração. O liceu de Macau, onde estudei, era muito bom. Mas houve uma evolução enorme em todo o ensino superior na Ásia, hoje muitas universidades da China estão nos rankings mundiais. Tem mais a ver com a cultura e não com a educação, pois trata-se de um território pequeno. O meu pai tinha uma grande preocupação quanto à falta de espaço, pois nem havia terrenos para construir universidades. Estava tudo planeado, mas não houve tempo dentro da Administração portuguesa. Mas sei que era uma preocupação muito grande. Há projectos específicos que a Beta-i esteja a preparar com Macau? Vai haver uma delegação de Macau e China em Portugal no final deste mês [Maio], e o objectivo é estreitar relações entre Portugal e Macau. Vão ser assinados alguns protocolos e o objectivo é criar aqui ângulos de cooperação. Há alguns projectos que estão a ser trabalhados, mas é um bocado cedo para os revelar. O que se pretende é que, no final do mês, comecem a ser assinados os primeiros protocolos para que comece a ser feita uma maior ligação entre a Beta-i e Macau, com organizações locais. A Beta-i organiza também o evento Lisbon Investment Summit. As empresas de Macau poderão vir a participar? Sim, e penso que a Websummit, que não é organizada por nós, também é um óptimo evento para que Macau conheça o que se está a fazer nesta área. Não foi só Macau que mudou muito, Portugal também. Perceber esta nova dinâmica é muito interessante. O que é preciso melhorar nas relações entre a China e Portugal? Parece que há ainda algumas diferenças para resolver. É preciso que as empresas portuguesas percebam melhor o contexto chinês, e vice-versa? Claro. Há certas coisas que demoram tempo. Acho que Portugal fez um erro. Durante a Administração portuguesa foi feito um esforço para mostrar aos empresários portugueses o potencial que a China e Macau tinham. Houve pouco aproveitamento, e mesmo no contexto dos países de língua portuguesa, acho que as empresas portuguesas sempre tiveram um pouco de costas voltadas para a China, não perceberam o valor e não perceberam o que é preciso fazer. Não há uma via verde e não basta pensar que Macau era território português e que, com isso, as portas abrem-se. É preciso trabalhar muito e a China hoje em dia é um mercado super complexo, muito competitivo e de difícil entrada. Está a abrir mais, e da experiência que tenho tido com o contacto com a China é que existe uma maior abertura para novos produtos, novos contactos e parcerias. Macau não pode ficar parada no tempo e os portugueses têm de perceber que podem explorar muito mais o mercado chinês, e que, dadas as afinidades culturais, podem usar Macau para isso. São importantes as relações institucionais e o Governo chinês tem mandado mensagens muito claras que Macau tem esta importância para as relações com os países de língua portuguesa e Portugal, sobre a diversificação do território e quanto à nova posição da China sobre a política “Uma Faixa, Uma Rota”. O que é preciso é que isto passe para o nível dos empresários e não fique apenas na política. Há o enquadramento e Macau tem vantagens e desvantagens. Se calhar para muita gente é mais fácil ir directamente à China do que estar a ir para Macau. Acabou por enveredar pela área dos negócios. Nunca pensou seguir os passos do seu pai, numa carreira como militar ou na política? (Risos) Militar, de todo. Política, acho que o meu pai foi sempre um político atípico e foi mais chamado para desafios de Estado, não um político. Foi chamado para desafios que assumiu com responsabilidade e com sentido de Estado. Hoje em dia, vejo que ao ter criado uma associação, a minha forma de estar no mundo, de dever cívico, foi fazer algo que tenha impacto. Penso que ao criar a Beta-i contribui para uma mudança no meu país e na minha geração. Penso que há muitas formas de ter impacto na sociedade e a minha foi esta, mas nunca se sabe o que há-de acontecer. Comecei na banca, mas depois percebi que não estava talhado para isso.
Diana do Mar Entrevista MancheteJorge Godinho, especialista em Direito do Jogo: “Não faz sentido concurso para seis concessões” É a pergunta de um milhão de dólares: Macau vai ter novas operadoras de jogo em 2022? Ninguém sabe. Para Jorge Godinho, especialista em Direito do Jogo, se a intenção não for abrir o mercado a lei deveria ser alterada para eliminar a obrigatoriedade de um concurso público, regressando-se à figura da prorrogação da época pré-liberalização. Em entrevista ao HM, reconhece que o impacto da concorrência regional se faz sentir cada vez mais, mas não tem dúvidas de que Macau vai ser sempre o centro da indústria do jogo da Ásia [dropcap]C[/dropcap]om o aproximar do termo dos actuais contratos de concessão e de subconcessão (2020-2022) e enquanto não há sinais sobre o futuro da principal indústria de jogo quais são, a seu ver, os potenciais cenários? Há vários. Mas, acima de tudo, há primeiro uma avaliação que tem de ser feita do ponto em que estamos ou a que chegámos. Desde 2004, ou seja, desde a entrada, de facto, da concorrência assistimos a um crescimento absolutamente extraordinário que ninguém poderia imaginar. Ninguém podia prever, por exemplo, que os promotores de jogo [conhecidos como ‘junkets’] assumissem a importância que assumiram, nem que o Cotai estivesse actualmente praticamente todo construído. Houve uma aceleração da história. Portanto, olhando para o actual panorama, temos de pensar no que queremos. Em termos lógico-formais há três possibilidades: manter igual, reduzir ou aumentar. A única hipótese é ou ficar como está ou aumentar. Mas crescer como e para onde? Onde está a terra? Será que a cidade, desde as infra-estruturas, às fronteiras, ao trânsito, aguenta mais investimentos daqui a três ou quatro anos? Qual é a visão de Macau? Na realidade, estamos a falar do planeamento da própria malha urbana e eu não sei exactamente qual é a leitura que o Governo tem ou faz, ou seja, se chegou a altura de parar ou se há ainda margem. Com a revisão intercalar do jogo que, como costumo dizer, foi um exame em que todos os alunos passaram com boa nota, o que parece ter ficado nítido é que as actuais seis vão continuar. Permanece, porém, a grande dúvida se vai haver mais alguma… A continuarem, é preciso prorrogar, por dois anos, os contratos da Sociedade de Jogos de Macau e da MGM, que expiram em Março de 2020, para que todos se alinhem e terminem no mesmo ano para se fazer o concurso público como exige a lei, correcto? Certo. Não tem que se fazer isso, mas é altamente conveniente que assim seja porque, caso contrário, gerar-se-ia uma situação muito complicada. Além de ser mais simples, e para não haver uma duplicação de recursos, incluindo da Administração, e de todo o circo que sempre implica, e com potenciais problemas como processos judiciais e impugnações, porque um concurso é sempre um grande ponto de interrogação, aliás, como mostra a história de Macau. Podem acontecer coisas totalmente imprevistas, pelo que convinha ser um só processo, daí que os dois anos adicionais façam todo o sentido. E, se assim for, avançamos então para concurso em 2021, porque os contratos acabam todos no ano seguinte. Se formos para concurso público como manda a lei, caso essa obrigatoriedade não seja entretanto alterada, admite a entrada de pelo menos mais uma operadora em cena? Eu só concebo a organização de um concurso se houver novos operadores. A lei pode ser alterada, aliás, vai ter que ser, desde logo por causa do famoso artigo que define que é de três o número máximo de concessões, que está na altura de revogar. O meu pensamento fundamental é que só devemos ir para concurso público se houver sete ou mais [concessões a atribuir], caso contrário não faz qualquer espécie de sentido. Se na sequência da tal avaliação que referi se concluir que não entra mais ninguém, então a figura jurídica a usar é a prorrogação. FOTO: Sofia Mota Mas a lei define que a prorrogação das concessões não pode ser superior a cinco anos. Antecipa mexidas a este nível também? Dou como adquirido que será sempre necessário mexer um pouco na lei 16/2001 [Regime jurídico da exploração de jogos de fortuna ou azar em casino]. Se a opção for manter seis, então, deve alterar-se a lei para permitir o recurso à figura da prorrogação. Tal não seria inédito, até porque, como sabemos, durante os 40 anos e três meses de concessão da STDM houve no total cinco prorrogações, até 31 de Março de 2002 – tudo autorizado por lei. Portanto, temos uma história longa que é preciso ter presente nestes momentos. Fazer um concurso público para seis concessões é um absurdo, ou seja, tem que haver algo novo para ser posto a concurso. Em paralelo, o discurso político vai no sentido de um crescimento moderado ou sustentável e não há qualquer indicação de que se pretenda um novo ‘boom’, até porque não é possível. O único terreno disponível no Cotai é o chamado lote sete e oito, onde pode surgir um ou dois ‘resorts’ integrados, mas creio que é tudo. Não há mais terra, pelo que chegamos a um momento histórico diferente dos anteriores. Em que sentido? Em 1961/62 quando se fez o concurso público queríamos uma construção de grande visibilidade e surgiu o Hotel Lisboa que, quando abriu, era extraordinário, uma grande atracção turística. Já em 2001/2002 queríamos um ‘big bang’, com a abertura à concorrência – queríamos três operadoras – que viriam a ser em seis –, mas agora nada aponta nesse sentido, ou seja, de um novo surto. Além disso, tem havido outros indícios, desde logo, a imposição de um tecto ao aumento do número de mesas de jogo [a um máximo anual de 3 por cento], que é um sinal muito importante de que há limites ao crescimento. Estamos, por isso, diante de um cenário diferente relativamente aos outros concursos que foram feitos. Esse limite foi definido há cinco anos pelo Governo. Faz sentido mantê-lo? Não tenho uma opinião muito vincada a esse respeito. Creio que é simplesmente uma maneira de transmitir às operadoras que há limites para o crescimento. As diferentes jurisdições tentam de alguma forma conter a expansão da indústria de jogo. Em Singapura, por exemplo, a perspectiva foi arquitectónica, com a imposição de que o casino só podia ocupar 5 por cento da área total do ‘resort’ integrado. Em Macau, a fórmula que se julgou adequada foi a de limitar o número de mesas. Não vejo grandes problemas, até porque as empresas têm maneiras de se adaptar às restrições do mercado. Quando essa medida entrou em vigor o que se notou imediatamente foi que o montante mínimo das apostas subiu muito. A Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos (DICJ) divulga apenas o número total de mesas de jogo em funcionamento, mas não a forma como se distribuem pelos casinos, ou seja, pelas operadoras. Devia haver maior transparência? Sim, concordo que há uma certa falta. A propósito, chegou a defender que a DICJ devia ser uma entidade reguladora independente… Sim, um pouco como há por esse mundo fora. Contudo, reconheço que é contrário à cultura administrativa de Macau, que gosta de entidades administrativas fortes, centralizadas e dependentes directamente da hierarquia. Tem a ver com questões mais amplas, [pelo que] não há pura e simplesmente grande abertura a reguladores independentes. A ideia seria ter um regulador pautado por critérios objectivos – e não políticos – completamente transparente em toda a sua actividade, mas tal tem a ver com as tradições de cada país ou região. Macau enfrenta uma verdadeira concorrência regional – mito ou realidade? Existe um efectivo impacto? Cada vez mais, mas a sensação generalizada é que talvez afecte sobretudo o segmento VIP. Já o mercado de massas encontra-se de boa saúde, o que constitui uma grande notícia para Macau. Com 40 casinos e uma oferta tão diversificada creio que se pode afirmar que nunca e em lado nenhum vai surgir outra Macau na Ásia. A situação é comparável aos Estados Unidos: antes só havia Las Vegas, depois começaram a surgir casinos um pouco por todo o lado, mas Las Vegas é só uma e não é copiável. Está, de facto, a surgir cada vez mais concorrência, mas Macau será sempre e indiscutivelmente o centro da indústria do jogo da Ásia. As operadoras de jogo têm revelado, porém, apetite por outras jurisdições que, comparativamente, podem oferecer condições mais favoráveis, como um carga fiscal menos pesada ou maior facilidade na obtenção de vistos de entrada para os visitantes… É verdade, mas vejamos o exemplo do Japão. A lei encontra-se actualmente pendente no parlamento, na sequência de uma negociação muito complicada entre o Partido Liberal Democrata, do primeiro-ministro, Shinzo Abe, e o Komeito [parceiro de coligação], o qual acabou por ter uma influência muito grande e por conseguir impor uma série de medidas muito significativas. Durante anos falou-se que ia haver jogo em todo o lado mas, afinal, parece que vai circunscrever-se a três cidades – Tóquio, Yokohama e Osaka. A concorrência do Japão vai demorar anos, além de que convém perceber se estamos a disputar o mesmo bolo. Não há razão para receios, até porque o impacto será semelhante ao de Singapura, ou seja, não deverá ser muito significativo. Neste contexto de concorrência, será altura para rever os impostos cobrados sobre as receitas de jogo (35 por cento directos e cerca de 4 por cento indirectos) que figuram entre os mais elevados do mundo? É a ambição número um de todas as operadoras. Há muitos anos que se diz que o único problema de Macau é a elevada carga fiscal que, aliás, está num máximo histórico desde que a tributação da receita bruta começou em 1975/76 com o Governador Garcia Leandro, na casa dos 10/11 por cento. No entanto, neste momento, não vejo nenhuma razão forte para a baixar. Quais são os grandes desafios actuais no que diz respeito à legislação relacionada com o jogo? Temos assistido, por exemplo, a um apertar do cerco à actividade dos ‘junkets’, com regras mais rígidas no exercício da profissão ou ao nível das contas… Tudo isso está muito bem, mas é necessário alterar as leis, não apenas os regulamentos, porque é preciso operar uma reforma de fundo nomeadamente a nível do controlo financeiro. Os promotores de jogo foram regulamentados pela primeira vez em 2002, mas, dois anos depois, foram autorizados a conceder crédito, pelo que há todo um risco financeiro que importaria regulamentar. Esse risco, que sempre esteve presente, veio ao de cima dez anos depois quando, em 2014, o mercado começou a cair fortemente. Quem é responsável pelo quê ou como é que o risco é enquadrado ao nível da supervisão? É toda essa dimensão que falta capturar. Parece-me evidente ser preciso uma reforma de fundo – mexendo tanto da lei como no regulamento administrativo que os regula – para os enquadrar efectivamente não só em termos de idoneidade, mas também da exposição financeira, sendo necessários mecanismos de supervisão para acautelar ou impedir situações como as que ocorreram nomeadamente com o caso envolvendo a Dore.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteLola do Rosário, ex-directora do jardim de infância D. José da Costa Nunes Dirigiu o D. José da Costa Nunes durante um ano e diz que nunca lhe foram dadas explicações para a sua saída. Lola do Rosário garante que os problemas com o pedido de subsídios foram resolvidos e diz-se “magoada” com Miguel de Senna Fernandes, presidente da APIM. Sobre o alegado caso de abuso sexual, Lola do Rosário diz que não foi ouvida para a elaboração do relatório interno, nem sequer pela PJ [dropcap style≠‘circle’]D[/dropcap]isse-me que não lhe foram dadas explicações para a sua saída do jardim de infância. Não, plausíveis não. Quando me fizeram o convite ponderei todas as situações, inclusivamente o ordenado, que não era muito para a responsabilidade que tem o Costa Nunes. E acabei por vir ainda no mês de Agosto e comecei logo a trabalhar, porque sabia que tinha muito trabalho. Comecei a organizar tudo ao que era inerente ao início de um ano lectivo, com uma mudança de líder. Que problemas encontrou nesta altura quando chegou a uma casa que já conhecia, mas de outra altura? Estava tudo bastante diferente. Havia algumas coisas com as quais concordei e que mantive, porque acho que não era para chegar e alterar tudo só porque me apetecia. A minha antecessora tinha coisas bem feitas e mantive-as, como os horários. Gradualmente fui fazendo algumas alterações, achei que se justificava, mas sempre dando conhecimento ao presidente da Associação Promotora da Instrução dos Macaenses (APIM). Nunca fiz nada sem lhe dar conhecimento. As coisas estavam a funcionar e no início do ano lectivo tive que fazer alguns ajustes a nível das finanças. Quando me foi feito o convite, o actual presidente e outros membros da APIM disseram-me que as contas não estavam em ordem. Desde 2012 até finais de 2016, tínhamos de prestar contas à Direcção dos Serviços de Educação e Juventude (DSEJ), relativas aos subsídios. Dou-lhe um exemplo simples: uma educadora deu uma formação, recebeu o cheque, mas não tínhamos o comprovativo de como ela tinha recebido nem a data. Falei com as pessoas em causa e depois ficou resolvido, porque estava em causa a atribuição de verbas para este ano, que já recebidas. Mesmo que eu fizesse o pedido à DSEJ, não estando o resto justificado, poderia não ser dada a verba, e o Costa Nunes não vive sem a verba da DSEJ. Mas essa foi uma das razões para a sua saída, e chegou a ser noticiado que tinha saído por problemas internos e falhas no preenchimento dos pedidos de subsídio à DSEJ. Pedimos mais do que nos foi dado e o presidente da APIM deve ter dado conhecimento aos outros membros do montante que eu tinha pedido. Era bastante elevado, mas tive seis anos na direcção de um agrupamento de escolas em Portugal e estamos fartos de saber que nunca o Governo nos dá o montante que pedimos. Foi-nos dado muito menos, mas não era nada que, para mim, fosse novidade. FOTO: Sofia Mota Já tinha acontecido isso no Costa Nunes? Penso que sim, pelo menos fui consultar tudo o que estava para trás, com a ajuda de uma funcionária que faz a gestão financeira. Foi sempre assim, é algo normal acontecer. Chegou a ter de assinar documentação ou orçamentos deixados pela sua antecessora? Não. Pedi-lhe para assinar porque não tinha justificação nenhuma ser eu a assinar documentos que pudessem não estar assinados. E ela assinou. Que justificação encontra então para esta saída? Está magoada com a direcção da APIM? Magoada estou, bastante. Isto porque eu acho que não se faz um convite a uma pessoa que tem uma vida estabilizada em Portugal. Não tinha um mau ordenado, já estava há 15 anos em Portugal. Fiz uma mudança de 180 graus, e assumi alguns encargos contando que ficaria em Macau. O que me magoa mais é que eu não vejo, nem foi dita nenhuma justificação plausível e aceitável da minha parte. Não tive tempo de aquecer a cadeira. Eu sou uma directora que nunca está no gabinete, raramente. Circulo muito pela escola, sempre que estive em direcções. O que eu fazia era ficar na escola na minha hora de almoço. Estou magoada, porque acho que não havia justificação para, durante um ano, ter feito o melhor que podia, com crianças lá dentro, as minhas colegas, que prezo muito, e esta história [de alegados abusos sexuais] toda também me entristece bastante. A minha neta vai entrar em Setembro para lá e nós optamos pelo Costa Nunes, e ela entrou em todas. Continua a confiar na escola? Eu confio na escola. Vejo também e tenho amigos pais, avós de crianças que lá andam e que foram vitimas nesta situação, e vejo o lado deles, porque se fosse comigo não sei como reagiria, mas entristece-me bastante. Não posso falar se a actual direcção está a fazer um mau ou bom trabalho, não sei. Num artigo foi referido que, durante o seu mandato, os serventes mantinham contacto com as crianças. Quer comentar? O que acontecia no meu tempo era que cada sala tinha uma educadora, uma agente de ensino e um servente. Neste momento, já não é assim, há falta de pessoal. Há quatro salas para crianças de cinco anos e só têm dois serventes. Há um servente para duas salas, mas quando saí já sabia que ia acontecer isso. Os serventes não têm contacto directo com as crianças a não ser na hora de almoço, porque as agentes de ensino vão almoçar e a educadora fica com o servente na sala para a apoiar. A hora da sesta é a hora de almoço dos serventes, então eles não estão no trato directo com as crianças. São as agentes de ensino que os mudam, sobretudo depois da sesta. Pedi sempre que tivessem cuidado para não mudar as crianças nos corredores ou na casa de banho ou dentro da sala, por uma questão de respeito pelo corpo da criança. Trabalhou com o funcionário suspeito de abusos. Nunca notou nada estranho no seu comportamento? Não. Aliás, esse servente estava numa sala de cinco anos e eu achei por bem mudá-lo para o rés-do-chão, para uma sala de três anos. Troquei, a educadora não gostou, mas achei que deveria fazer isso. No rés-do-chão eu estava sempre, porque era uma sala ao lado da secretaria. Se alguma vez passou pela cabeça do rapaz ter uma atitude menos correcta, com a minha presença nada aconteceu. Via as casas de banho, quem estava, via na sala cor-de-rosa onde eles faziam as sestas. Nunca vi nada, nem me pareceu que tenha algum perfil de pedófilo. Em Portugal já tive de ir a tribunal… Lidou com este tipo de casos? Lidei. Casos com avôs e tios, situações em que tive de ir testemunhar, e até falei com uma psicóloga na altura para me explicar as características e os sinais. Houve um caso que fui eu que fiz queixa à Polícia Judiciária, porque desconfiei do comportamento da criança. No Costa Nunes nunca reparou em sinais suspeitos? Nunca. De nenhum dos funcionários, até porque um pedófilo não tem de ser apenas homem, pode também ser mulher. Pegando na questão do género. A imprensa chinesa abordou muito o facto do suspeito ter, alegadamente, trocado fraldas às crianças. Faz sentido, na área educativa, ter em atenção a questão do género, de ser o homem a trocar fraldas a meninas? Pessoalmente, não me faz confusão, porque é como termos o pai e a mãe em casa a cuidar dos filhos. Não tem de ser responsabilidade total da mãe trocar as fraldas ao filho. Tem de haver, e eu tinha falado com o presidente da APIM e a psicóloga da instituição, algumas acções de formação para os serventes e as agentes de ensino que lá estão, pois não têm formação. Nós temos. Há algumas situações em que se pode conversar com as pessoas e explicar. Deveria haver formação para os funcionários da escola. Mas esta é uma questão quase transversal a todas as escolas. Além disso, a maior parte das crianças com três anos no Costa Nunes já não usa fralda. Prestou declarações no âmbito da elaboração do relatório interno por parte da direcção do Costa Nunes? Não. Não me chamaram, nem a Polícia Judiciária me chamou para prestar declarações. Acredita que o projecto do Costa Nunes pode sofrer um grande abalo com este caso e até fechar portas, mediante as conclusões do relatório interno? Pode. Sei de meninos que ainda não entraram e cujos pais estão a tentar colocá-los noutras escolas onde também foram aceites. Provavelmente, estão a desistir, mas não é muito fácil, porque o prazo para o pagamento era no início de Abril e as pessoas já pagaram no Costa Nunes. Além de que há listas de espera. Quem for para a direcção do Costa Nunes terá de ser uma pessoa muito forte e com a certeza daquilo que está a fazer para enaltecer o Costa Nunes outra vez. Acredita então que a actual directora e outros funcionários têm de sair? Provavelmente, é isso que vai acontecer. Penso que a direcção da APIM é que deve considerar o que é melhor para a escola. Isto porque a imagem da escola é uma coisa, mas o trabalhar da mesma escola é outra. O ano passado abri quatro turmas de crianças com três anos, houve um grande crescimento. Daí o meu espanto: se a escola cresce, porque é que me tiram? Há um feedback positivo por parte da sociedade, das pessoas mais influentes, e não quero aqui mencionar nomes. Famílias chinesas, macaenses… Sim, crianças de pais que estão em entidades públicas, por exemplo. A escola estava bem, e então porque é que não me renovam o contrato? A direcção da APIM tem de ter mais diálogo, porque trabalhei com o anterior presidente da APIM e ele deu-me, a mim e à minha antecessora, autonomia suficiente para nós trabalharmos. E isso não acontece actualmente. Acho importante a direcção da APIM estar por dentro das situações, e não é por acaso que a directora do Costa Nunes é uma educadora de infância. Acha que a direcção da APIM trouxe instabilidade ao projecto, ou que há problemas de gestão que têm de ser resolvidos? Há problemas de gestão que têm de ser resolvidos. A direcção da APIM tem de estar mais presente, estar em reuniões mensais com as educadoras, como me foi prometido, além de reuniões semanais com a directora. Não deixar as coisas muito vagas, porque depois quem lá está dentro, para gerir, é complicado. Voltando ao período em que trabalhou com José Manuel Rodrigues. Quer comentar as suspeitas que recaem sobre si quanto a um alegado desvio de fundos do Costa Nunes e sobre a sua saída da escola? Não teve nada a ver com dinheiros. É uma questão de verem as minhas contas bancárias. A APIM não é só um presidente e tem muitas pessoas na direcção, na sua maioria homens. Quando saí, o anterior presidente da APIM, ao contrário do actual, ofereceu-me o lugar de educadora. Eu, por vontade própria, e por causa das minhas filhas, comecei a pensar que era melhor ir para Portugal, e tinha lá lugar. Não tem a ver com dinheiros, foram situações com as quais não compactuei, e achei melhor sair. Ele fez-me um convite em 2013, quando o Costa Nunes fez 80 anos e vim às festividades. Se houvesse alguma coisa, em que eu tivesse fugido com dinheiro, ele nunca me convidaria. Fiquei muito indignada com os comentários feitos aquando da minha saída em 2001. Sempre soube o que era sigilo profissional, daí não ter comentado com ninguém a razão da minha rescisão de contrato.
Sofia Margarida Mota Entrevista MancheteRodrigo Brum, Secretário-Geral Adjunto do Fórum de Macau: “Dar a conhecer esta imensa China” Rodrigo Brum assumiu o cargo de Secretário-Geral Adjunto do Secretariado Permanente do Fórum de Macau no passado dia 1 de Setembro. A prioridade do economista é ter as representação dos oito países de língua portuguesa dentro do organismo. Para já, estão a ser dados os primeiros passos para a apresentação dos representantes de empresas oriundas de países de língua portuguesa a potenciais parceiros da China Assumiu funções em Setembro, quais os maiores desafios com que se tem deparado no Fórum Macau? Cumprir com o meu primeiro objectivo que já foi anunciado, ou seja, assegurar a participação efectiva de todos os países de língua portuguesa. O que falta para conseguir esse objectivo? Já conseguimos a representação do Brasil. O Brasil era uma falha óbvia muitas vezes apontada ao Fórum por todos, inclusivamente jornalistas. É um país com uma dimensão e uma relação com a China que não pode estar alheado do Fórum Macau. É com muito gosto que vimos nesta última reunião anual, a declaração do embaixador do Brasil, que chefiou a delegação do país, a referir que iria existir, dentro de pouco tempo, a nomeação de um delegado, baseado em Hong Kong para acompanhar os trabalhos do Fórum Macau. Isso aconteceu já na prática com a deslocação que terminou no passado sábado, em que o delegado do Brasil junto do Fórum também participou. Trata-se do Rafael Rodrigues Paulino, segundo secretário do consulado geral do Brasil em Hong Kong. Conseguindo a representação dos oito países de língua portuguesa no Fórum Macau, o que pode vir a fazer com isso efectivamente? Posso passar para o segundo objectivo que tenho: a organização para uma actuação consertada destes oito países dentro do objectivo principal e declarado do Fórum: a divulgação, promoção e o incremento das relações económicas, comerciais e de investimento entre a China e os países de língua portuguesa. FOTO: Sofia Mota Tem sido apontada ao Fórum alguma falta de acção no estabelecimento dessas relações. O que é que está a ser feito para realmente concretizar acções de cooperação efectiva entre a China e os países de língua portuguesa? Em concreto, posso referir esta última viagem à China que aconteceu na semana passada e que diz respeito à vertente de actuação do Fórum que tem que ver com a divulgação dos países de língua portuguesa junto dos municípios e províncias chinesas. Trata-se de abrir oportunidades a estes países, porque passam a ter um maior conhecimento desta imensa China que tem uma dimensão económica e geográfica muito grande. Mas há uma outra vertente que foi menos desenvolvida que tem que ver com a divulgação da China junto dos países de língua portuguesa, bem como dos mecanismos de funcionamento do próprio Fórum Macau. Essa parte tinha sido menos desenvolvida e na última reunião ordinária anual, em finais de Março, foi já deliberado que visitaremos todos os oito países a partir deste ano, e com um carácter regular e anual. Esta é uma mudança significativa e importantíssima para os países de língua portuguesa: darmo-nos a conhecer e criarmos oportunidades junto dos países. Não de forma ocasional, mas de forma regular. Teremos missões a todos os países a partir deste ano. Estão já marcadas as missões ao Brasil e a Cabo Verde e estamos a tratar das seguintes. Ou seja, ainda estamos numa fase de apresentações mútuas? Estamos agora no início de construção de uma relação com os países envolvidos, é isso? É uma nova fase. Mas isso não deveria ter acontecido desde o início das actividades do Fórum? Cheguei há seis meses. Relativamente à agenda que teve na semana passada, que actividades considera, de um ponto de vista de utilidade, as mais eficazes? Não gostaria de me fixar só na semana passada, porque a viagem que fizemos começou na semana anterior com o encontro em Pequim, comemorativo do dia da língua e cultura da comunidade dos países de língua portuguesa apoiado, pela segunda vez, pelo Fórum Macau e que foi organizado pelas embaixadas dos países de língua portuguesa. Desta vez teve a coordenação da embaixada de Cabo Verde. E qual é o papel do Fórum nesta questão da língua portuguesa e da sua divulgação? Tem certamente. Consideramos que também a cultura tem influência ou pode proporcionar oportunidades em termos comerciais nas relações entre a China e os países de língua portuguesa, ou seja, é uma base de partida para a actividade económica. Relativamente à semana passada em concreto, há talvez três tipos de visitas e de contactos que são feitos durante estas deslocações. Há a divulgação dos países junto de entidades, empresários e associações chinesas e isso consubstancia-se em reuniões que são tipicamente apresentações por cada um dos delegados do seu próprio país, seguido de uma interacção entre os participantes. Há alguma questão que apareça nessa fase de interacção entre os participantes? Algumas curiosidades em particular? Generalizar uma experiência de dois ou três contactos na semana passada não é correcto. De facto, existe uma necessidade de conhecimento que só perante as respostas concretas dos delegados é que faz sentido. É uma acção de divulgação pura e muito necessária porque, como já disse estamos perante uma China imensa para quem destrinçar estes países também não é fácil. Essa acção existe e tem que ver com a divulgação junto das entidades oficiais ao mais alto nível, bem como de empresas e associações comerciais e empresariais destas cidades e províncias que visitamos. Depois temos a segunda vertente em que existem as visitas que fazemos a empresas e a outros organismos para conhecimento do que existe na China por parte dos próprios países para saberem o que é que existe e o que, porventura, pode vir a ser o próximo destino de relações comerciais com estas empresas que visitámos. Ao fazermos estas visitas estamos a permitir que os países se posicionem junto das entidades em questão e em que poderão ter mais interesse, quer como investidores quer como meros fornecedores de serviços ou de produtos. E a terceira vertente destas visitas diz respeito a quê? Há outro aspecto que pode parecer secundário e, talvez por isso possa ser por vezes descurado, mas que também está incluído na nossa agenda e em especial nesta em que estivemos envolvidos na semana passada. Tem que ver com uma parte mais cultural e talvez mais lúdica em que conhecemos os ambientes destas cidades e municípios que visitámos, ou seja, não basta ter reuniões em salas fechadas de hotel. É preciso sair e ver o que se passa. Uma ida a um mercado, a um centro comercial ou a um centro histórico pode ser tão importante como qualquer contacto comercial. Estamos a falar de trocas comerciais entre culturas muito diferentes mesmo no que respeita a protocolos de negócio. O Fórum Macau pode ter um papel na divulgação de conhecimento acerca deste assunto? É importantíssimo. Em todas as relações comerciais entre sociedades diferentes há sempre uma necessidade de alguma aproximação e de “tradução” de conhecimentos e de critérios e procedimentos entre as várias sociedades. É sabido que em relação à China e aos países de língua portuguesa esta necessidade é grande porque as diferenças culturais são muitas. É evidente que o conhecimento mútuo entre as partes envolvidas é útil em qualquer circunstância, neste caso este trabalho desenvolvido pelo Fórum Macau é de extrema importância. A Grande Baía é um projecto inter-regional que inclui Macau. No entanto, a livre circulação prevista entre as partes é aplicada apenas a chineses. O Fórum Macau poderia ter interesse em fomentar relações comerciais dentro da Grande Baía? Está a fazer alguma coisa neste sentido tendo em conta os interesses dos países de língua portuguesa? A pujança desta região que envolve Macau e a província de Guangdong sempre foi importantíssima no desenvolvimento da China. Esta zona é uma zona riquíssima com a integração das regiões administrativas especiais de Macau e de Hong Kong complementadas pelas posições e pelo peso das cidades vizinhas de Zhuhai e de Shenzhen. Tudo isto faz desta região uma zona, por excelência, de entrada no mercado chinês e isso não é de agora. Esse conceito, às vezes esgotado, de Macau ser uma plataforma não é só para os discursos, é uma realidade no acesso a esta região. Como é que isso se insere na Grande Baía? Estamos numa posição privilegiada para aceder a estes mercados que agora estão a ser agregados nesta iniciativa da Grande Baía. O Fórum Macau já fez alguma coisa tendo em conta esta iniciativa? Esta iniciativa está a ser construída. O Governo de Macau participa activamente e não o Fórum de Macau. Não me compete concorrer com o Governo. Agora posso-lhe dizer que ainda no ano passado, e já na minha presença, estivemos numa importantíssima reunião em Zhuhai, do Fórum, entre a China e os países latino-americanos. São formas de interagir e de ligar este Fórum, os países que o constituem e os nossos vizinhos. A presença de Pequim no Fórum tem sido mais acentuada, nomeadamente nos cargos de direcção. O que é que quer isto dizer? Não falo por Pequim, mas factos são factos. O envolvimento concreto que a China e a parte chinesa no Fórum tem junto deste organismo é do conhecimento público. No ano passado, o Fórum Macau passou a contar, além da secretária-geral indicada estatutariamente por Pequim, com um secretário-geral adjunto também estatutariamente previsto e indicado por Pequim. Há um óbvio e objectivo envolvimento de Pequim e isso temos todos de ter consciência de que tem significado. Como é que gostaria de ver o Fórum Macau no final do seu mandato? Gostaria de ver concretizados os primeiros objectivos que mencionei no início. Já seria muito bom.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteEdgar Martins foi considerado um dos melhores fotógrafos do mundo. “Quis representar a ansiedade que senti” O trabalho “Silóquios e Solilóquios na Morte, Vida e Outros Interlúdios” e outro realizado no Instituto de Medicina Legal em Portugal valeram-lhe a distinção de um dos melhores fotógrafos do mundo pela Organização Mundial de Fotografia. Edgar Martins, português com raízes em Macau, promete uma exposição no território enquanto captura a ausência numa prisão de Birmingham, no Reino Unido [dropcap]F[/dropcap]Foi considerado o melhor fotógrafo do mundo. Estava à espera deste reconhecimento? Essa designação de melhor fotógrafo do mundo é sempre uma coisa muito subjectiva, porque o trabalho foi escolhido naquele momento, por aquele júri. Se calhar, se tivesse sido escolhido por outro júri, com um trabalho diferente, o resultado teria sido outro. Mas é claro que o reconhecimento é sempre fantástico, mais por abrir uma audiência bastante grande aos projectos. Se estava ou não à espera, não sei ao certo. Sempre estive confiante no peso conceptual do projecto, mas é uma questão de ver se é isso que o júri procura nas imagens ou não. O meu trabalho vai muito além do documental e do fotográfico e, por vezes, em prémios fotográficos fora do contexto das belas artes há a tendência para se escolherem prémios mais ortodoxos. O que me deixou bastante contente foi o facto de terem visto no trabalho qualquer coisa que merecia ser divulgada, e isso para mim é incrível, sobretudo para uma pessoa que trabalha um pouco fora da fotografia documental canónica. O tema da morte trouxe algum fascínio ou chamou a atenção pelas razões certas? Sim. O tema da morte é sempre uma coisa que suscita emoções muito fortes nas pessoas e muitas vezes emoções distintas, do estilo “não queremos sequer olhar para isso” ou “vamos lá ver o que é que isto nos tem a dizer”. A morte, para mim, foi um ponto de entrada para falar de linguagem fotográfica e a forma como nos relacionamos com fotografia. E em particular o facto de assuntos humanos, sociais e políticos complexos raramente serem conceptualizados fora do contexto da fotografia documental canónica. Quis produzir um projecto que reflectisse sobre as lacunas de informação, compreensão, representação e também as ansiedades sobre a ética e estética que inevitavelmente surgem com a fotografia documental. E foi assim que surgiu este projecto que produzi com o Instituto de Medicinal Legal e de Ciências Forenses em Portugal. FOTO: Nuno Fox Como foi a sua preparação? Como é que o pensou e estruturou? O que sentiu quando viu os materiais que ia fotografar? A minha ideia para o trabalho era muito distinta em relação ao que o trabalho acabou por representar. Não estava ciente do material que o instituto tinha mas também do tipo de acesso que eles me iam dar. Sobretudo, não tinha noção do espólio fotográfico fantástico que eles tinham. A partir do momento em que descobri esse espólio, ajudei a conservar, porque estava, não digo abandonado mas os objectivos de uma instituição de ciência forense são sempre outros. Durante três anos produzi mais de mil imagens e digitalizei mais de três mil negativos desse espólio. Trabalhei mais concretamente com as sedes de Lisboa e Coimbra, e fui também capaz de acompanhar investigações em curso, presenciar autópsias. Sabia, logo desde o início, que não estava interessado em representar este tipo de situações que pudessem ser vistas como visualmente sensacionalistas. Porquê? O que queria representar era a ansiedade que senti por estar neste tipo de local e por trabalhar com este tipo de material. É por isso que o meu trabalho se concentra numa linguagem de subtracção e não de documentação, é mais pela omissão e não tanto pela revelação. As imagens que foram premiadas para o projecto revelam isto muito bem. Representam provas forenses, objectos usados em crimes e em locais de crimes e também cartas de despedida de pessoas que cometeram suicídio. Não há dúvida de que as cartas de despedida têm um conteúdo potencialmente emotivo, mas a verdade é que é neste contexto, quando estou a lidar com este tipo de material, que me sinto o mais desconfortável possível. São coisas muito pessoais e uma pessoa fica com a sensação de que não deve olhar para elas, quanto mais representá-las. É precisamente esta ansiedade que eu tenho, em pensar que não devo olhar para o material que eu queria comunicar a um potencial público. É daí que surge um pouco a metodologia adoptada. Quem vê não percebe de imediato do que se trata. Quem olha para as imagens e não sabe que são cartas de despedida jamais chegará a essa conclusão, porque eu fiz todos os possíveis para não revelar o conteúdo e para exacerbar a relação entre revelação e omissão, entre o que se comunica e fica ausente. A partir do momento em que decidi que queria abordar o material desta forma foi simplesmente uma questão de ponderar sobre a metodologia adoptada. Este projecto foi bastante experimental neste sentido, porque incluiu imagens de arquivo, fotografia documental usando máquinas analógicas de grande formato, mas também usei abordagens que passaram por apropriar imagens do meu próprio arquivo fotográfico. No caso das cartas de despedida acabei por usar equipamento digital de alta resolução para as fotografar, porque fiz várias experiências. Mas a partir do momento em que percebi que poderia representar este material de uma forma subtil e enigmática com este equipamento, decidi utilizá-lo. Antes de chegar a este equipamento ainda tentei fazer fotogramas, um método muito artesanal. Há imagens no projecto que incluem fotogramas, mas nas imagens premiadas, nas cartas de despedida, foram todas fotografadas com equipamento altamente tecnológico. Disse numa entrevista que ficou com uma ligação à temática da morte depois do homicídio de um amigo seu. Como é que levou depois esse tema para o processo artístico? Há várias fases que me levaram a trabalhar sobre este tema. Comecei a querer trabalhar o tema da morte há 15 anos, mas senti que na altura não estava preparado. Quis trabalhar na altura com agências funerárias e rapidamente percebi que isso não ia levar a lado nenhum. Mas ainda não tinha amadurecido o suficiente para trabalhar um tema tão complexo. A minha prática artística nos últimos dez anos tem-se enraizado naquilo a que temos difícil acesso, então estou interessado nas técnicas de expressão artística nestes ambientes que promovem ou criam um diálogo. Como por exemplo? Trabalhei muitos anos com o tema da indústria e tecnologia, mas percebi que esse tipo de abordagem e tema tinha chegado a uma conclusão natural, e aí quis desafiar-me como pessoa e como artista. A morte surgiu-me como um tema interessante porque também é complexo, e o meu melhor amigo, na altura, um fotojornalista sul-americano que vivia aqui em Inglaterra, foi documentar a guerra na Líbia sem qualquer afiliação. Foi com três jornalistas independentes, achávamos que tinha sido raptado pelas milícias de Kadafi, chegamos a fazer uma campanha em prol da sua libertação e só soubemos que tinha sido assassinado quando os outros jornalistas foram libertados. Um dos jornalistas que fez essa viagem, americano, e que cheguei a conhecer, foi assassinado na Síria um ano depois do meu amigo. Então, essas duas mortes fizeram-me prestar uma atenção especial à forma como este tipo de matéria é tratada nos media e outros meios. Falou-me de intenções neste projecto, mas nunca quis chocar. O choque funciona uma vez, e esse é o grande problema da fotografia. Sempre tive a visão de que a fotografia choca e é intrusiva, mas é um mecanismo apotropaico. Aliás, esse é um dos grandes problemas do fotojornalismo, essa questão de polarizar os eventos. Apesar de chocar, tem esse papel de atenuar a nossa experiência de situações violentas. Nesse sentido, quis evitar esse tipo de abordagem e foi por isso que não fotografei autópsias, por exemplo, apesar de as ter presenciado. O projecto foca-se muito neste exercício conceptual do que se revela ou não. Tem um novo projecto, numa prisão de Inglaterra, intitulado “Sociologia da Ausência”. Porquê este tema? Este é o subtítulo do título principal, que é “o que é que a fotografia tem em comum com um jarro vazio”. Não haverá resposta no título, e é o vácuo no seu interior. É algo estrutural em torno da ausência. Estou a trabalhar com uma prisão em Birmingham, com um pequeno grupo de prisioneiros e as suas famílias. Tenho interesse em abordar a forma como lidamos com a ausência de um ente querido, sobretudo se formos forçados a viver separadamente, mas a fotografia representa algo que não se vê. E há aqui algo mais interessante, que é como é que a fotografia não se identifica com o seu sujeito fotográfico, mas com a ausência desse sujeito. Acho que o tipo de questões que levanta são profundas e muito interessantes. É pensar como podemos avançar o debate sobre a fotografia documental. Da série “Silóquios e Solilóquios sobre a Morte, a Vida e outros Interlúdios” © Edgar Martins De que forma é que Macau influenciou a sua carreira, ou tem vindo a influenciar? Macau é um sítio de contrastes. Sempre foi e continua a ser, apesar dos contrastes evoluírem e sofrerem mudanças. Isso acabou por despertar em mim um espírito crítico desde muito jovem, e nesse sentido Macau foi importante. Na adolescência o meu contacto com a fotografia foi sempre esporádico, nunca achei que poderia explorar de forma séria. Cheguei a fazer um curso de fotografia durante uns meses, mas nada além disso, e ninguém na minha família tinha paixão pela fotografia. O que me levou a decidir enveredar por este caminho foi o facto de, em 1996, ter publicado um livro de poesia e dissertações filosóficas – aliás, a escrita sempre foi a minha paixão – intitulado “Mãe, deixa-me fazer o pino”. Quando acabei o livro, e tive oportunidade de o reler, apercebi-me que era muito visual, baseado em visualizações específicas. Aí percebi que deveria estudar imagem visual. O que sempre me interessou na fotografia foram as suas insuficiências e carências. Toda a linguagem que criei ao longo dos anos tem sido estruturada em torno destas ideias. Albano Martins, seu pai, tem lutado pelo fecho do Canídromo, uma iniciativa que conseguiu ir além fronteiras. O prémio que agora ganhou trouxe-lhe mais visibilidade. Pretende chamar a atenção para esta questão com o seu trabalho? Do ponto de vista visual e fotográfico, a nível de projecto, não é que não seja interessante, mas penso que teria pouco a contribuir enquanto artista. Enquanto pessoa, tenho certamente um papel e já o tenho feito. Tenho um papel mais modesto em relação ao que o meu pai tem vindo a desenvolver na ANIMA e tenho apoiado a sua causa o máximo possível. Acho que é uma causa incrível e, aliás, a relação da nossa família com os animais foi moldada face às atitudes que existiam em Macau e na China. Todos somos apoiantes dos direitos dos animais. Para quando uma nova exposição em Macau? Neste momento, estou a discutir com duas entidades, mas não posso dar mais dados. Vou certamente apresentar um dos projectos que estou a fazer entre 2019 e 2020. É um projecto que será apresentado na sequência de uma apresentação que irei fazer em Pequim, no Three Shadows Art Center. Depois o trabalho passa por Macau, ainda que numa apresentação distinta. Dentro do próximo ano irei apresentar trabalho aí.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteJosé Dias, arquitecto e ex-funcionário do Instituto da Habitação: “Corrupção começa nas obras públicas” Chegou a Macau em 1990 e trabalhou até 2008 no Instituto de Habitação. O arquitecto José Dias lamenta que a qualidade das habitações públicas tenha piorado, sobretudo ao nível da área reduzida dos apartamentos. Em relação ao campus da Universidade de Macau, José Dias defende que o projecto está longe de ser moderno, além das fragilidades ao nível de esgotos, água e electricidade [dropcap]F[/dropcap]alou do ambiente artificial que existe em Macau. Quando aqui chegou, alguma vez pensou que o território iria desenvolver-se desta maneira, ou que os arquitectos teriam de trabalhar, na sua maioria, com este tipo de ambiente artificial? Estava em Moçambique e recebi uma oferta para trabalhar em Macau. Nessa altura a presença portuguesa era mais acentuada. Não é que não se soubesse o que ia acontecer. E depois da transição as coisas mudaram instantaneamente. Lembro-me de ter alugado um apartamento que estava à venda por 500 mil patacas, um T4. Em 2000 a casa valia uns quatro ou cinco milhões de patacas. É curioso que tudo isso se está agora a debater. Hong Kong está, neste momento, a debater a injustiça dos ricos elevarem os preços das rendas e pede-se que o Governo interfira, porque pode interferir, controlar o crescimento. Isto nasce do sistema democrático, que é livre, mas depois verificamos que a liberdade é fictícia, porque é livre à custa dos que estão bem instalados e que até fizeram os seus negócios e se sacrificaram, mas são ricos. Há outros que não o são e cada vez têm menos possibilidades. Em Hong Kong há também o debate em torno da dimensão reduzida dos apartamentos, e há cada vez mais pessoas a viver em gaiolas. ade levarem os preços das rendas e pede-se que o Governo interfira, porque o Governo. Acredita que o mesmo pode acontecer em Macau? Já existe esse problema. Há muita pouca racionalização, tanto em Hong Kong como em Macau, no que diz respeito ao crescimento. Não há controlo deliberado, age-se por emergência e não há um plano que controle o desenvolvimento do jogo, por exemplo. FOTO: Sofia Mota Tem alguma expectativas positivas em relação aos novos aterros? Acredita que poderá trazer algum desenvolvimento sustentável? Vai acontecer o mesmo que já aconteceu: tudo começa por estar regularizado e depois começa a ser empolado. Isso tudo vai diminuir a disponibilidade de área livre. Em primeiro lugar começam por ocupar o mar, mas nunca sabemos até onde vai esta tentação, e há uma perspectiva de agravamento. As coisas não vão mudar e podem até agravar-se, porque vai permitir-se mais população, e os mesmos espaços de Macau vão ser ocupados pelo dobro das pessoas, e isso tem consequências imprevisíveis. Macau é uma cidade com muitas fragilidades e a construção em altura não está a ser ponderada devidamente. É um paraíso artificial, digamos assim. Em que sentido? Estamos constantemente sujeitos a surpresas. Veja isto [referindo-se ao campus da Universidade de Macau]. É um quilómetro quadrado entregue a Macau, mas aparentemente, porque está a ser manipulado pela China. Não se percebe, porque se as pessoas tivessem mais discernimento, fariam com que isto tivesse uma maior apetência. [Macau] é um tesouro que se vai extinguir, como Hong Kong. Considera então que Macau vai desaparecer. O mais natural é que seja absorvido, porque são apenas 700 mil pessoas perante mais de um bilião de pessoas [a residir na China]. Isto não é nada e desaparece, de um momento para o outro. Basta uma perspectiva diferente, um plano de acção diferente para se extinguir, pura e simplesmente. Refere-se também à extinção da cultura e do património? Sim, com prejuízo para a China. Portugal é a Europa e para a China é um relacionamento fácil. Podemos ficar num cantinho a pensar em Macau, mas é uma coisa temporária. Das duas uma: ou há uma perspectiva criativa, optimista, ou então há uma perda de toda a identidade criada. Ainda sobre a altura dos edifícios. O Governo português soube travar muitas das situações que o Governo chinês não está a conseguir travar? Penso que não. A China tem de intervir para que se cumpra a Lei Básica, porque entregar passivamente [projectos] a novos profissionais sem assegurar a qualidade da intervenção é um pouco perigoso. Refiro-me a questões técnicas e à competência profissional, que é preciso salvaguardar. Não houve nenhuma intervenção de Macau neste projecto, por exemplo [referindo-se ao campus da Universidade de Macau]. Lamenta que este campus… Não seja mais moderno. Não se vincula à modernidade, na sua linguagem é um projecto neoclássico. Mas fundamental seria o respeito pelas regras da construção, sobretudo ao nível do fornecimento de água, esgotos e electricidade. São coisas fáceis de fazer se houver uma fiscalização íntegra. Voltemos à sua vinda para Macau. Foi convidado pelo Instituto da Habitação e acompanhou o processo de construção de habitações públicas. Habitação económica, sobretudo. Comparando essa altura com a actual, acha que… Agravou-se a qualidade das habitações. O espaço foi reduzido e hoje é possível ocupar uma sala se estendermos os dois braços. Na altura, havia uma lei portuguesa, já ultrapassada, que estabelecia as áreas, mas esse decreto-lei foi alterado, para pior, e as áreas foram diminuídas. Havia um risco de manipulação que se agravou depois da transferência de soberania e não há nenhuma perspectiva de melhoria da habitação. Posso concluir que não lhe agrada o empreendimento de Seac Pai Van. É pior em termos de área. Mas isto também tem o consentimento das pessoas, porque a população em geral não tem uma consciência. Mas os que acompanham as questões da Administração Pública sabem. E não se perspectiva nenhuma melhoria das condições. Aqui [no campus da UM], por exemplo, estamos numa criação nova. Há espaço desafogado, mas se formos ver as habitações lá dentro, não têm, por exemplo, sifões nas casas de banho, e isso leva a que haja maus cheiros. A qualidade da construção deste campus tem sido, aliás, bastante questionada. Poderia ter-se feito muito melhor? É evidente, sobretudo nestes aspectos que podem ser subvertidos. Quais eram as directrizes para a construção de habitação pública quando chegou a Macau? Actualmente, há muitas queixas sobre o planeamento do Governo a esse nível. Na altura, esse planeamento era melhor? Era, simplesmente porque havia menos procura. Era mais fácil dominar a situação e o corrupto não intervinha, ficava calado na sua secretária. As ofertas em termos de corrupção são sempre feitas na altura de [elaboração do projecto]. Observou casos em concreto? Nunca observei nenhum caso porque sempre que via alguma situação que estava contra a lei eu não aprovava, chamava a atenção e mandava alterar. A corrupção não é facilmente visível, e começa logo nas obras públicas, que não fazem o controlo do projecto. Vejo o projecto, corrijo o que está errado e segue, mas ele não vai ser feito como está, vai ser alterado e é aí que se dá a corrupção. O construtor alinha com as obras públicas e arranja maneira de subverter a situação. Mas isso acontece em todas as áreas. Há uma crítica constante em relação ao funcionamento das obras públicas. Acredita que algo pode mudar ao nível da celeridade de aprovação de projectos? É sempre possível, e isso começa nas hierarquias. Se há fenómenos exteriores que denunciam situações extremamente graves, as pessoas entram em pânico e tomam medidas. Ninguém faz a denúncia porque é lesado por isso. Esta é uma situação generalizada. Macau e Hong Kong sofrem as consequências de uma alta pressão da China, a que esta está sujeita também. A China alterou-se profundamente nos últimos anos e o que acontece é que está sob alta pressão de 1.4 bilião de pessoas. FOTO: Sofia Margarida Mota Como era ser arquitecto na altura em que chegou? Apesar de ter estado na Função Pública, fazer arquitectura era mais desafiante? Claro. O arquitecto português vem de fora e vem com uma cultura e experiência determinada. Alguns primam pela isenção e há outros que aproveitam as oportunidades de singrarem e ganharem mais dinheiro. Isso agravou-se desde essa altura para cá e o arquitecto passou a ter menos influência. Ainda agora houve uma exposição sobre o trabalho de José Maneiras, e ele seguiu as regras da escola do Porto, e procurou fazer o melhor possível dentro das suas possibilidades. Mas teve de enfrentar desafios, nomeadamente de quererem alterar coisas nos seus projectos indevidamente. Mas isso não quer dizer que as novas gerações sejam piores. Actualmente é difícil fazer arquitectura de autor, fora destes grandes projectos ligados ao jogo? É difícil intervir quando já estão estabilizados certos núcleos. Há uma série de equipas que trabalham e que são independentes e que têm fornecimento de trabalho de forma regular. E essas equipas são sempre as mesmas, as que se estabilizaram e encontraram formas de sobreviver. Falo do Bruno Soares, Maneiras, Carlos Marreiros, o Rui Leão e a esposa. Cada vez há menos construção mas, por outro lado, isso não é bem assim, porque ela surge pelos novos aterros ou pelas alterações que são solicitadas. Agora solicitei junto das obras públicas um cartão para exercer a actividade, e tenho esse cartão, mas até agora procurei trabalho e tenho tido alguma dificuldade. Tem, portanto, vontade de regressar. Do que tem mais saudades? Talvez agora nesta altura fosse mais aliciante fazer acompanhamento de obra. Há sempre inovações e realizações no processo de construção. Considera que faltou planeamento para o futuro, ao nível de habitação pública, tendo em conta o crescimento populacional que se verificou em Macau? Está em curso a construção dos novos aterros, sobretudo o mais importante para a habitação pública [zona A]. Isso vai estabilizar e proporcionar mais habitação económica, mas penso que este assunto poderia ser resolvido de outra maneira, negociando a remodelação dos edifícios no chamado casco velho, ou zona antiga da cidade. Há uma comissão que regula essa intervenção, mas penso que é pouco eficaz e não se tem feito quase nada para a reabilitação da construção antiga. Que projectos da sua carreira destaca? Fiz sobretudo muita obra em Moçambique, onde nasci, em Nampula, e também Maput e Lourenço Marques. Aliás, a minha última obra foi aí, com um projecto de nove habitações de rés-do-chão e primeiro andar. Era mais fácil fazer arquitectura nas ex-colónias? Claro que era, mas não havia muito trabalho a fazer. Este trabalho foi pedido por um serviço de manutenção de estradas. Em Nampula construí alguns edifícios em altura, mas apenas com três andares. Precisava de um novo desafio na sua carreira, e foi por isso que aceitou Macau? Sim, estava tudo muito paralisado e as condições de manutenção não eram fáceis. A Associação de Arquitectos de Macau e outras entidades têm feito o suficiente para preservar a memória da arquitectura portuguesa em Macau? Deve-se salvaguardar, de uma forma geral, os empreendimentos e chegou a fazer-se algo sobre o trabalho de Manuel Vicente, e agora sobre José Maneiras. É sempre possível fazer um levantamento urbano. Pode-se sempre fazer mais alguma coisa. Cheguei a escrever sobre a [importância] da intervenção e preservação no casco velho [zona antiga da península].
Sofia Margarida Mota Entrevista MancheteKevin Ho, empresário: “Em Macau não há especulação imobiliária” Kevin Ho, sobrinho de Edmund Ho e responsável pela KNJ Investment, falou ao HM de negócios e de Macau. No entender do investidor, o mercado imobiliário local é acessível. Por outro lado, o presidente da Associação de Estudo de Economia Política, que está encarregue do estudo sobre as condições para discussão da lei sindical, considera que os direitos dos trabalhadores locais já estão protegidos [dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap]assaram-se quase seis meses desde a aquisição de 30 por cento da Global Media. Que balanço faz? Assinámos, realmente, há quase seis meses, mas assumimos funções em Dezembro, ou seja, cerca de quatro meses. Para já, temos tido essencialmente reuniões de administração acerca do planeamento geral da companhia. Estamos a desenvolver novos produtos ao mesmo tempo que mantemos os que já existem. Durante este período ainda não mudou muita coisa. Quando o contrato foi fechado disse que um dos objectivos no negócio seria a aposta na internacionalização da Global Media. Tem algum plano concreto neste sentido? Sim, a internacionalização inclui vários aspectos. Claro que implica a cooperação e o investimento de dois países diferentes ou ter operações num lugar em particular fora de Portugal. Esta não é a nossa acção imediata. Já registámos o escritório de representação da Global Media em Macau em Fevereiro. No futuro, o gabinete de Macau vai contratar pessoal e vamos complementar o trabalho que se faz em Portugal. Ou seja, quando em Portugal se está a descansar, Macau assume as suas funções. A ideia é ter a estrutura a funcionar 24h por dia em tempo real. Actualmente, as notícias estão relacionadas com velocidade e quanto mais rápido conseguirmos colocar as notícias online, mais pessoas têm acesso. Este serviço não se vai materializar num jornal impresso, vai ser estritamente digital. Já temos uma aplicação e várias plataformas online e vamos tentar fazer com que esta seja uma plataforma importante neste negócio. Além de Macau, vamos ter mais novidades dentro de meses. Já assinámos um bom número de acordos e memorandos. A título de exemplo, avançámos com a TDM, com uma empresa em São Paulo, com umas quatro ou cinco empresas de media em Angola e estamos a tentar fazer o mesmo com Moçambique. Além disto, já temos a LUSA. Isto quer dizer que, em termos de internacionalização, não estamos nada mal. Estes memorandos de entendimento permitem às partes envolvidas a partilha de informação, livremente. Estamos a trabalhar com calma mas estamos a conseguir andar no sentido que queremos. Estou também muito feliz com a minha equipa. Temos uma equipa muito forte em Portugal. Estou contente com a abertura que têm, até porque vamos ter muitas mudanças que se vão expressar especialmente com a criação de novos produtos que vão fazer parte da marca Global Media. Não posso ainda revelar especificamente quais são, mas já estão em teste e penso que no Verão já se vão saber mais coisas. Está a pensar investir mais no Porto, nomeadamente na criação de incubadoras de startups nos antigos armazéns de Gaia. Porquê este investimento em Portugal? Em primeiro lugar, acho que esta é uma excelente oportunidade para investir no Porto. Há excelentes armazéns com óptima localização e que estão vazios. Já tive reuniões com alguns dos responsáveis do Porto e de Gaia e revelaram-me que não há planos para estes espaços que são marcos na cidade. Por isso, temos de encontrar um bom uso para eles. Além de se adequarem à instalação de incubadoras para startups, são edifícios que podem estar ao serviço do turismo. Muitos deles eram armazéns de vinho do porto e podemos usar este marketing para fazer um local de apresentação para os vinhos portugueses. Portugal tem vinhos de grande qualidade mas não são exportados e não têm um marketing a funcionar. São vinhos muito bons e pouco conhecidos. Podemos também usar estes armazéns como local de exposição para estes produtos ou como centro logístico, de distribuição e vendas. O Porto é uma cidade diferente. Há coisas a desenvolver no Porto que já o foram em Lisboa. Como por exemplo? O turismo. Penso que o Porto é uma cidade da moda, especialmente para os europeus, mas ainda não chegou a esta parte do mundo. Pequim já tem três voos directos para Lisboa por semana. No início do ano foi assinado um acordo para aumentar o número de voos que ligam a China a Portugal, directamente, para 21 por semana, o que representa três voos por dia. Uma nova linha aérea vai ainda entrar neste acordo. Penso que o Porto pode estar neste mapa de voos e, se isso acontecer, a cidade vai ser um lugar completamente novo. Isto vai trazer muitas mudanças não só a nível do turismo como da própria dinâmica e ambiente de negócios. FOTO: Sofia Mota Uma outra área que pretende investir em Portugal é no mercado imobiliário. Talvez. Não há propriamente uma área especifica em que saiba ao certo que vou investir. Sou um investidor e onde houver oportunidade de negócio eu estou lá. E qual é a sua opinião acerca da especulação imobiliária em Macau? Acho que em Macau não há especulação imobiliária. Também tenho investimentos na industria imobiliária no território e tenho uma posição diferente da maioria das pessoas. Não penso que Macau tenha preços demasiados altos e não é só por eu estar neste sector que o afirmo. Em Macau, quer os preços sejam altos ou baixos, as pessoas têm sempre uma casa para poderem viver. Já em Hong Kong, penso que o mercado imobiliário está um bocadinho inflaccionado. Em Hong Kong há muita especulação, mas é uma cidade com uma economia muito livre, em que o dinheiro circula também livremente. Por outro lado, a economia de Hong Kong e as suas fundações, são muito boas apesar de ser uma cidade pequena quando comparada com as grandes cidades do mundo. Por isso, a situação do imobiliário em Hong Kong é justificável. Toda a gente diz que Macau é caro. Não vejo Macau como sendo muito caro. As pessoas podem não conseguir comprar as casas, mas isso não quer dizer que seja caro. Vamos comparar diferentes estatísticas. Olhemos para Hong Kong, Macau, Pequim e Shenzhen. Entre estas cidades qual é a que tem o maior rendimento per capita? Macau. Em qual delas o salário médio é mais alto? Macau. Qual é que tem maiores perspectivas de crescimento? Talvez seja Shenzhen, mas Macau não está em último. Se se comparar o custo por metro quadrado em Macau, entre o passado e agora, as pessoas podem dizer que pagar 11 mil patacas por metro quadrado é muito caro comparado com as 1000 que custava há uns anos. Há uns anos, era realmente muito barato o que não quer dizer que agora seja caro. Se olharmos para um apartamento em segunda mão de 1000 metros quadrados em que se encontram preços de 5000 patacas por metro quadrado, temos uma casa que pode ir dos cinco aos seis milhões de patacas. Quem é que não tem poder de compra para uma casa destas? Um casal que seja comprador pela primeira vez, na casa dos trinta anos, com um trabalho decente em que cada um ganha provavelmente entre 30 e 40 mil patacas por mês, faz com que em conjunto recebam mensalmente cerca de 80 mil pataca. Se tiverem nas suas poupanças cerca de um milhão, não precisam de se preocupar com a compra de casa. Por isso não penso que seja assim tão cara a habitação em Macau. Quanto à sua carreira na política, quais são os seus planos? Não tenho planos. Nem enquanto membro da Associação Popular Nacional (APN)? Candidatei-me e perdi no ano passado. Fiquei como primeiro substituto e se existir alguma desistência passarei a exercer funções. Se não, posso concorrer de novo daqui a quatro anos. E vai fazê-lo? No dia de hoje respondo-lhe que sim, porque acho que é um óptimo canal para que possa representar Macau no nosso país. E como representaria o território? O que acha que é necessário fazer? Temos de saber representar o sector que representamos. Felizmente, ou infelizmente, sou mais próximo da área dos negócios. Não sou um médico ou advogado, por isso não vou representar esses sectores profissionais com certeza. Mas no que respeita ao sector dos negócios, do desporto e da cultura, em que estou mais envolvido nos últimos anos, gostaria de levar a Pequim um maior entendimento do que se passa nestas indústrias em Macau. As pessoas tendem a pensar que ser representante na APN é uma posição muito elevada e que se está no cimo de muita coisa. Quando me candidatei no ano passado, sempre disse aos votantes que era apenas um representante de alguns sectores. Nós representamos o povo de Macau. Qual é a sua opinião acerca da lei sindical? Penso que Macau tem uma história enquanto sociedade harmoniosa. Por isso, em vez de se lançar um grande debate seria melhor que a lei tivesse o acordo das partes envolvidas. A lei sindical é um assunto muito sensível, especialmente para mim. Venho do sector dos negócios e estarei ao lado deste sector. Não acho que actualmente, com ou sem lei sindical, os nossos trabalhadores sejam mal tratados. Não quero dizer que todos os trabalhadores são bem tratados, mas temos de admitir que a sociedade de Macau dos últimos 15 anos, e que podemos projectar para os próximo 20 ou 30 anos, é uma sociedade de emprego. Por isso, mesmo sem a lei, se um trabalhador sofre porque é mal tratado pelo seu empregador, pode arranjar outro emprego facilmente noutro lado. Não é o mesmo que acontecia quando estávamos nos anos 70 ou 80. Naquela altura, precisaríamos de uma boa lei para proteger os trabalhadores. Vocês jornalistas, normalmente, veem-me como sobrinho de Edmund Ho, mas também sou o neto de Ho Yin. O meu avô era um homem de negócios, mas sempre defendeu os direitos dos trabalhadores. Fala-se muito da diversificação da economia. Que negócio abriria para contribuir para essa diversificação? O que vou abrir a seguir. É um projecto novo, e é um negócio de manufacturação. Não posso ainda dizer o que é em concreto porque ainda está em fase de estudo e planeamento. Mas para investir em qualquer coisa, especialmente em Macau, temos de olhar para o mercado do jogo, isto porque mesmo uma lavandaria aqui tem de estar relacionada com esse sector. Se tivermos um negócio de confecção de uniformes também temos de pensar no mercado do jogo. Kevin Ho é um homem de negócios. Além disso, o que gosta de fazer? Gosto de viajar, por exemplo. Gosto também de fumar charutos e de beber uísque. Não é muito saudável, mas gosto muito.
João Santos Filipe Entrevista MancheteOriana Inácio Pun, advogada: “Caso Ho Chio Meng não foi agradável nem dignificou a Justiça” Começou a carreira como intérprete nos tribunais, mas com o tempo decidiu vestir a toga de advogada. Em Março do ano passado fez as manchetes locais, quando assumiu a defesa do ex-Procurador Ho Chio Meng. Em entrevista ao HM, Oriana Pun avalia a situação da Justiça, olha para as leis locais e recorda o julgamento da década [dropcap]C[/dropcap]elebram-se 25 anos da promulgação da Lei Básica. Considera que está a ser cumprida? Não verifico grandes problemas. À medida que nos vamos aproximar dos 50 anos após a transição vai haver uma maior aproximação ao sistema e à sociedade do Interior da China. Parece-me inevitável. A aproximação poderá causar divergências, mas desde que haja bom-senso e as medidas não sejam prejudiciais para Macau nem para a China, e se mantenha o respeito pelo espírito da Lei Básica, tudo poderá ser ultrapassado. Nos últimos tempos há quem acuse as autoridades de fazer interpretações legais com implicações e restrições a nível dos direitos individuais. Sente essa realidade nos tribunais? Se a lei confere um poder discricionário e a administração, que é a entidade máxima que pode exercer esse poder discricionário, o aplica de uma forma mais restrita, eu não discordo. Mas considero que os portugueses foram sempre mais tolerantes, mais humanos. Eu sou chinesa e tenho colegas chineses e portugueses e há uma diferença cultural. FOTO: Sofia Mota Que diferença? Por exemplo, nas aulas os alunos dizem que se esqueceram dos trabalhos de casa, arranjam uma justificação e os professores tem tendência para aceitá-la. São situações em que, com frequência, impera o bom-senso. Claro que também há abusos. Os chineses tendem a ser mais rigorosos. As pessoas que agora estão à frente de Macau consideram que se houver muitas excepções e um poder mais compreensivo que talvez isso não seja o mais adequado para Macau. Não posso discordar da abordagem. Porquê? A China tem uma população muito grande. Somos 1,3 mil milhões de pessoas e é difícil governar tanta gente. Também a nível cívico nem sempre é tão estável. Nesses casos, uma aplicação mais restritiva justifica-se, desde que seja sempre dentro do espírito do direito legado. O Governo vai alterar a Lei de Bases de Organização Judiciária e espera-se que os titulares de altos cargos possam recorrer de decisões dos tribunais em primeira instância. Como vê a mudança? Faz todo o sentido. Qualquer pessoa pode estar naquela posição e o direito de recurso é fundamental. Toda a gente deve ter a mesma oportunidade de ver as questões ponderadas mais do que uma vez. Como advogada do ex-Procurador Ho Chio Meng viu o recurso que apresentou ao Tribunal de Última Instância recusado. Como se sentiu? Não posso dizer que fiquei chocada, porque já estávamos à espera. Tínhamos de manifestar o nosso ponto de vista. Foi o que fizemos. O tribunal não aceitou o recurso. Mas mesmo com a recusa, fizemos um requerimento a manifestar a nossa posição. Infelizmente, não havia mais nada a fazer. Considero que qualquer pessoa devia ter a oportunidade de recorrer das decisões, pelo menos uma vez. Quando a nova lei for aprovada vai ver se há margem para recorrer da decisão? Ainda não se sabe como vai ser a nova lei e se vai haver uma aplicação retroactiva. No plano teórico, posso dizer que vamos estudar a possibilidade. O recurso já foi interposto, o tribunal é que não o aceitou. Vamos ver se haverá alguma possibilidade e se o Dr. Ho pretende reagir. Falando do julgamento de Ho Chio Meng. Assumiu o processo depois do primeiro advogado, Leong Wen Pun, considerar que não tinha condições para defender o arguido, face à postura do tribunal. Acreditava que era possível absolver o seu cliente? Na primeira vez que me reuni com o Dr. Ho trocámos opiniões e fiquei logo com a noção do estado do processo, do que era possível fazer e do que íamos tentar. Ele insistiu que fossemos nós a representá-lo. Também troquei opiniões com os colegas que estavam com o caso e eles consideraram que o Dr. Ho ficaria bem representado. Acredita que o seu colega tomou a decisão na sessão em que foi impedido de discutir uma prova, ou já havia aquele pensamento antes da sessão? Eles já estavam com o processo há mais de um ano. Como advogados, lutamos e temos de enfrentar várias derrotas e talvez eles tenham considerado que era altura de colocar um ponto final na situação. Foi uma decisão tomada com o consentimento do cliente. Agora, não sei se foi uma decisão tomada naquele momento. Acho que o pensamento de desistir já deveria ter sido abordado antes dessa sessão. Como se preparou? Era um processo mesmo muito longo. Tivemos de ir ao tribunal tirar fotocópias, consultar os processos, trabalhar aos sábados e domingos. Assim como os funcionários do TUI, que também precisaram de estar lá durante o fim-de-semana. Como o julgamento já estava numa fase bastante avançada, num primeiro momento preparamo-nos para as testemunhas que iam ser ouvidas. Foi nessas matérias que nos concentrámos primeiro. E depois? Fomos ouvir as audiências anteriores e fazer os nossos apontamentos para as sessões seguintes e alegações finais. Eu, basicamente, vi todos os papéis e os apensos, assim como os meus colegas. Foram muitas horas extra? Foram. Como advogados, os caso não nos saem da cabeça. Antes de adormecermos há sempre uma ideia que surge, quando estamos a tomar banho lembramo-nos de outra. Estamos sempre a ver e a tentar arranjar provas ou contra provas para ajudar o nosso cliente. Foram meses intensos? É um envolvimento muito grande, quase não tinha vida familiar. Algumas vez se tinha imaginado no caso que pode ser considerado o julgamento da década em Macau? Nunca tinha pensado nisso. Como profissionais queremos lidar com casos que nos desafiam. Trabalhei nos tribunais como intérprete, durante oito anos, assisti a julgamentos, fiz traduções, estive no julgamento de Pan Nga Koi e em outros processos cíveis e criminais. Como advogada, estagiei três anos e faço agora 13 anos de profissão. Estou quase há 20 anos nos tribunais. Espero que não haja casos graves em Macau, mas se houver gostava de estar envolvida. São desafios que nos fazem crescer e evoluir. O mediatismo do julgamento de Ho Chio Meng acrescentou mais pressão? Certamente que torna as coisas diferentes. Foi a minha primeira experiência num caso tão mediático. Já tinha tido casos cíveis complicados, mas em termos de ter de enfrentar a imprensa foi uma experiência nova. O mediatismo fez com que fosse muito abordada? Aconteceu muito. Mesmo os amigos comentavam o casos e houve muitos que me disseram que tinha sido corajosa por ter aceitado defender Ho Chio Meng naquelas condições. Ouvimos comentários a favor e contra. Também vemos as notícias, aqui, em Hong Kong, e por vezes consideramos que o que está escrito ou é noticiado não corresponde bem à realidade. São coisas com que nos temos de habituar a lidar. A imagem da Justiça de Macau ficou a ganhar com o julgamento de Ho Chio Meng? O caso Ho Chio Meng não foi agradável nem dignificou a Justiça. Primeiro tratou-se do julgamento de um procurador, também pelo decorrer do julgamento a que as pessoas puderam assistir. Mostrou situações que podem ser melhoradas e considero que ninguém ficou a ganhar com a situação. Independentemente de ter sido ou não condenado, para o Ministério Público, para os tribunais e para as pessoas de Macau foi uma situação triste. Há muitos ensinamentos a retirar do caso? Sim, se as pessoas quiserem aprender vão conseguir fazê-lo. Além do processo jurídico, do direito ao recurso, o processo levantou questões sobre procedimentos administrativos. Há sinais que o legislador devia ter em mente. Que sinais? Há práticas antigas que foram sempre repetidas e tentativas de acelerar os procedimentos internos dos serviços públicos que podem resultar em infracções nos processos de contratação de pessoal e adjudicações. As coisas sempre foram feitas de uma maneira, até que alguém notou que afinal continham ilegalidades… Isto merece uma reflexão. Não podemos só dizer: ele fez mal, vamos condená-lo. Temos de ser justos e perceber as situações, porque também houve outros casos ligados à contratação de pessoal e adjudicações em outros serviços. Casos em que não há intenção de cometer ilegalidades? Sim. Ouvi falar de casos de ilegalidades internas em que os procedimentos tinham sido analisados pelos próprios juristas dos departamentos. Se a situação se mantiver, a máquina dos serviços não trabalha. A questão deixa as pessoas com duas escolhas: ou arriscam cometer ilegalidades, ou não fazem nada. O governo está a trabalhar numa proposta de lei sobre as adjudicações… Sim, sim. Mas a proposta é urgente. E é preciso ouvir as pessoas no terreno, que conhecem as limitações e que sabem que procedimentos podem atrasar os trabalhos. Regressando à reforma da lei de bases judiciária. O Governo quer afastar os juízes estrangeiros dos casos que envolvem a segurança nacional. Concorda? Não vejo grandes problemas. Estamos a falar da segurança nacional e não sabemos com que níveis de sigilo se vai lidar. Talvez seja melhor colocar os juízes chineses com estas questões. Acredito que os portugueses não vão colocar o sigilo em causa, mas compreendo a opção. Desde que os juízes chineses sejam escolhidos seguindo as práticas normais, com sorteio, não vejo problemas. Sente que juízes portugueses são menos competentes do que os chineses? Não, não sinto. Os juízes portugueses que normalmente vêm de Portugal já têm alguma experiência de julgamento de casos. Por exemplo, eu aprendi e continuo a aprender imenso com os juízes nos julgamentos dos factos. Como eles já têm uma experiência longa em Portugal, a maneira como fazem as perguntas, a forma como chegam a conclusões… Aprendi e aprendo muito com eles. Mas não há um risco de diferenciação? As pessoas que lidam com os tribunais e que conhecem os juízes e os advogados sabem normalmente as pessoas que são mais competentes. Não me parece que o facto de haver juízes afastados desses processos vá fazer com que sejam encarados como menos profissionais ou com menor qualidade. Outra questão recente foi a utilização da língua chinesa para notificar um residente local que tinha pedido para ser notificado em português. É uma questão que não é nova, como encara estas situações? A língua não devia ser um problema em Macau. Tanto o português, como o chinês são línguas oficiais. Um chinês não devia ter de se queixar que foi notificado em português e vice-versa. Existe o decreto-lei n.º 101/1999, que permite escolher o idioma em que as pessoas podem pedir a notificação. Mas a própria lei não define sanções. Em princípio a administração e o tribunal deviam tentar satisfazer os requerimentos. Mas admito que pode haver justificações razoáveis para que estes casos aconteçam.
Diana do Mar Entrevista MancheteARTM faz 25 anos. “Ninguém devia ir para a prisão por consumo de droga”, diz Augusto Nogueira O tratamento deve ser a prioridade sobre tudo o resto. Quem o defende é o presidente da Associação de Reabilitação de Toxicodependentes de Macau (ARTM), para quem ninguém deve ir para a prisão por consumir droga. Em entrevista ao HM, Augusto Nogueira faz um balanço da actividade da organização que, há dez anos, lançou um programa de troca de seringas que contribuiu para a diminuição da ocorrência de novos casos de VIH A ARTM, que preside desde 2000, é herdeira da Ser-Oriente, que se estabeleceu em Macau há 25 anos. Quais foram as principais conquistas? Foram muitas. Em 2000/2001 um dos primeiros objectivos foi, desde logo, obter o subsídio do Instituto de Acção Social [IAS], porque nunca tínhamos tido. Era um dos pontos mais importantes para continuarmos a trabalhar em Macau, porque era impensável continuarmos a bater porta a porta como antigamente a pedir apoios para a nossa subsistência. Depois foi a própria estabilização da ARTM porque, inicialmente, o subsídio era reduzido. Dava para pagar a renda e pouco mais, pelo que foram tempos de angústia e até estivemos quase a fechar portas, mas travámos uma luta enorme para termos um apoio maior e, ao fim e ao cabo, para que acreditassem que estávamos aqui para ficar. Quando o IAS aumenta o subsídio a ARTM começa a crescer, a criar mais programas, a abrir centros. Depois, salvo erro em 2004, numa altura em que há um grande aumento de casos de VIH [Vírus da Imunodeficiência Humana] tendo a utilização de drogas injectáveis como via de transmissão, a ARTM foi convidada a integrar a Comissão de Luta Contra a SIDA. Em 2008, introduz o programa de distribuição de seringas e abre um segundo departamento para apoiar quem participa no programa de metadona [do IAS]. Outro passo importante foi a criação, em 2010, de um centro de tratamento feminino e, no ano seguinte, do espaço Be Cool, dedicado aos mais jovens, que tem estado a funcionar muito bem e é responsável pela prevenção nas escolas para a comunidade não falante de chinês. Já em 2016 abrimos estas instalações [em Ká-Hó] que abrangem outras adições para além da toxicodependência. Além disso, há todo esse trabalho que temos vindo a desenvolver no plano internacional, como a participação em várias conferências e a organização, no final do ano passado, da conferência mundial da Federação das Organizações Não-Governamentais para a Prevenção de Droga e Abuso de Substâncias. Que resultados alcançou o programa de troca de seringas desde que foi lançado há dez anos? Tem contribuído significativamente para baixar novos casos de VIH, correcto? Exactamente. É um dos maiores marcos da ARTM. É algo que deve deixar Macau orgulhoso, porque graças ao programa de troca de seringas e do de metadona já vamos no terceiro ano consecutivo sem novas infecções por VIH entre os consumidores de droga. Em dez anos, recolhemos 316.648 seringas, registando uma taxa de retorno na ordem dos 80 por cento. Em 2017, por exemplo, distribuímos 23 mil e recolhemos 18 mil, mas o número tem sido flutuante, algo que tem que ver com diversos factores, tais como a existência de menos consumidores de heroína – em linha com a tendência mundial – ou o trabalho da polícia. Por outro lado, como agora há um maior entendimento por parte dos juízes de que faz parte dos esforços de protecção da saúde pública devido ao VIH, os consumidores também sentem maior segurança em ir buscar e devolver as seringas, mas tal não é sinónimo de maior consumo. Qual é o actual ponto de situação do consumo de droga em Macau? Tem-se mantido estável. Olhando para os dados, acho que a única coisa que se pode realçar – porque não era comum – é um aumento do consumo de cocaína. Em sentido inverso, decresceu o consumo de ketamina. Já o de ‘ice’ sofreu uma subida residual, mas, em geral, o cenário é estável. No Sistema de Registo Central dos Toxicodependentes do IAS, encontram-se referenciados cerca de 600 toxicodependentes, mas este número tem por base a declaração voluntária de quem solicita ajuda, junto das instituições oficiais ou organizações não-governamentais, e também os dados da polícia ou dos tribunais. Qual é o verdadeiro cenário? Obviamente, esse número está abaixo da realidade, mas penso que Macau não é, de facto, um lugar com um elevado consumo de droga. Há sensivelmente um ano, entrou em vigor uma alteração à lei que agravou as penas para o consumo até um ano de prisão. Quais têm sido as repercussões? Não disponho de muitos dados. A única coisa que posso dizer é que o número de pessoas que temos é idêntico ao que tínhamos antes da entrada em vigor da nova lei. Não sentimos que tenha existido uma grande diferença – nem positiva, nem negativa. No entanto, temos casos de pessoas que vão para a prisão por causa do consumo, isto quando devia ser dada prioridade ao tratamento. Se a mão pesada resultasse, muitos países já não tinham consumidores de droga, não é? Actualmente, mesmo na China o consumo é uma sanção administrativa, em que as pessoas são enviadas para a desintoxicação por um período de duas semanas, mas não vão presas, nem ficam com cadastro. Algo que sucede em Macau… Sim, esse é outro problema que temos aqui, porque estamos a enviar pessoas muito jovens para a prisão, que vão ficar com cadastro e que, depois, vão ter enormes dificuldades em arranjar emprego e, portanto, em se reinserirem na sociedade. Estamos a falar, por exemplo, de jovens que têm sido condenados a alguns meses [de cadeia] por consumo e a penas de quatro a cinco anos por tráfico de quantidades irrisórias [de estupefacientes]. Quais são os principais desafios com que a ARTM se depara neste momento? A nossa missão é ajudar as pessoas a reabilitarem-se do problema da toxicodependência, mas é bastante importante que haja a noção de que o tratamento tem que ser prioritário sobre tudo o resto. Gostávamos imenso que houvesse o entendimento de que ninguém devia ir para a prisão por consumir droga. Custa-nos muito ter pessoas dentro do centro que têm, por vezes, de ir a tribunal por casos de consumo e o tribunal insistir em enviá-las para a prisão. No fundo, estamos a tentar ajudar essas pessoas e acabamos por ver o nosso trabalho a ser deitado ao lixo. Está estatisticamente provado que existe um elevado número de recaídas após a saída da prisão, uma situação que tem que ver, obviamente, com o facto de a pessoa não estar curada. Neste sentido, um dos cavalos de batalha da ARTM é mostrar que o tratamento é possível e é uma realidade, e existem infra-estruturas suficientes e com qualidade, com pessoas capazes e qualificadas. Enviar para a prisão não é a solução e não é, aliás, a directriz que está a ser seguida em todo o mundo, porque estamos a falar de pessoas que necessitam de ajuda. É óbvio que vai haver sempre quem vá persistir nos seus pequenos delitos, mas é como tudo na vida: há àqueles que à primeira conseguem fazer o tratamento e outros que demoram mais tempo, mas isso não quer dizer que não haja esperança. A nossa luta é, portanto, tentar fazer com que haja uma percepção diferente fazendo ver que estas pessoas necessitam de apoio, que o tratamento resulta e que a prisão deveria ser a última das soluções. A ARTM faculta algum tipo de apoio na prisão? Continuamos a dar apoio aos que estiveram aqui no centro e a outros que conhecemos, porque deram o nosso nome por não terem mais ninguém, com psicólogos a realizarem visitas periodicamente. A nossa coordenadora da parte feminina, inclusive, visita muitas mulheres e tem conseguido que muitas raparigas que saem da prisão venham de imediato para aqui. Dentro da prisão também temos um programa para os estrangeiros, incluindo portugueses, para ajudar a prevenir recaídas e também englobando um aspecto bastante importante que é o da redução de danos. Quantas pessoas procuraram tratamento na ARTM e qual o universo de recursos humanos de que dispõem? Desde 1999 foram cerca de 600 as pessoas que passaram pelo programa de tratamento de 12 meses. Já no de troca de seringas temos 369 pessoas registadas e 76 no de apoio ao programa de manutenção de metadona [do IAS]. Em termos de recursos humanos, contamos com 49 funcionários, incluindo psicólogos, assistentes sociais ou monitores. Este centro de Ká-Hó abriu em 2016 com a particularidade de estar direccionada também para outros tipos de dependências além da toxicodependência, como o alcoolismo ou o vício do jogo. Tem havido procura nestas novas valências? Neste momento, temos três pessoas com problemas de alcoolismo e, no passado, tivemos casos de vício de jogo, mas actualmente não temos. Neste momento, estamos a preparar-nos para prestar apoio a vítimas de violência doméstica e, inclusive, já fomos a Hong Kong para ver como funcionam as instituições. Que projectos ou iniciativas tem a ARTM actualmente em mãos? A ARTM está envolvida numa ‘task force’ formada por instituições da sociedade civil no âmbito do Comité de Viena para as Organizações Não Governamentais no âmbito da Política de Drogas [VNGOC, na sigla inglesa], em que temos a responsabilidade da Ásia. Para o ano, iremos apresentar sugestões para a sessão especial da Assembleia-geral das Nações Unidas para a revisão das convenções da droga. Já em Macau, dado que o programa de troca de seringas faz dez anos, vamos realizar, a 15 de Junho, uma miniconferência com três oradores, incluindo da UNAIDS [programa de combate ao VIH/SIDA da ONU] e da Organização Mundial de Saúde que vão falar dos benefícios do programa.
Sofia Margarida Mota Entrevista MancheteRui Cunha: “Estamos a pagar o que aconteceu no ‘Occupy Central’” Rui Cunha é um homem do direito. Há seis anos criou uma fundação com o seu nome onde quer ver reflectida a diversidade da população. Assume-se contra a alteração da lei de bases à organização judiciária que limita o julgamento de casos relativos à segurança nacional a juízes chineses e apela a um maior número de juízes no Tribunal de Última Instância para que seja possível o recurso [dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap] Fundação Rui Cunha entra agora no sexto ano de actividade . Que balanço faz desde a sua entrada em funcionamento? A Fundação foi constituída em 2012 e já lá vão mais de 700 eventos. O balanço é positivo, apesar de não poder dizer que o seja totalmente. Nós na vida, desejamos sempre o melhor e haveria muitos mais objectivos que gostaríamos de atingir. Mas, de qualquer forma, julgo que podemos considerar o nosso trabalho bastante positivo, na medida em que ao fim de seis anos somos já uma referência no ambiente cultural e social de Macau. Que objectivos estão por cumprir? Um dos objectivos que temos em mente desde o princípio da fundação e que não conseguimos ainda atingir é conseguir penetrar mais na comunidade chinesa. Macau tem cerca de 90 por cento da população chinesa e se fiz a fundação para benefício de Macau, pode-se concluir que esta população está incluída. Isto não foi totalmente conseguido ou, pelo menos, não tanto quanto eu desejaria por várias razões, uma delas é a dificuldade de comunicação com esta comunidade. Sendo eu português e ligado à comunidade portuguesa, esta reagiu muito facilmente às nossas iniciativas. O mesmo não aconteceu com a comunidade chinesa. Mas aos poucos lá vamos entrando e conseguindo. Já temos alguns eventos em que a grande maioria do público é chinês, exemplo disso são as nossas noites de piano às sextas-feiras. Para a fundação não há distinção entre portugueses, chineses ou qualquer outra nacionalidade. Todos são bem vindos. Uma das actividades que faz parte das comemorações deste aniversário é a conferência de hoje sobre os 25 anos da Lei Básica. Que balanço faz deste quarto de século de vida do diploma? Acho que 25 anos depois, tendo em conta os quase 20 anos que levamos depois da transferência de administração, demos passos muito grande no sentido de proporcionar qualidade de vida à grande maioria da população. Não digo à totalidade, porque é utópico pensar numa sociedade que seja totalmente feliz. Mas a realidade é que, de um Macau relativamente pequeno e que existia dentro de si em 1999, passámos para um Macau aberto, que ombreia com qualquer outra cidade do mundo e que já adoptou um padrão de vida em que a grande maioria do cidadão vive muito melhor do que vivia em 99. Há uma visão de confiança para o futuro. Não temos os espectro do desemprego, não temos os espectro de catástrofes aqui à esquina, não temos ameaças constantes de guerras ou de atentados. Podem acontecer coisas, como o tufão do ano passado, ou um louco que atire o carro para cima das pessoas mas, em princípio, temos de considerar que as pessoas vivem em Macau em tranquilidade a qualquer hora. Isto revela uma evolução no padrão de vida o que é muito positivo. Eu serei um pouco parcial a fazer um juízo, talvez porque a sorte e a fortuna estiveram comigo, mas é fácil ver que as pessoas vivem hoje melhor. A Lei Básica tinha de existir e ainda bem. Depois da Declaração Conjunta tinha-se de fazer uma espécie de espinha dorsal de uma sociedade que se pretendia aqui para Macau. Diria que a Lei Básica foi importante, foi útil e vai sê-lo, pelo menos, até 2049. A Lei Básica pode mesmo vir a ser o suporte do que se vai fazer e do que se vai encontrar depois de 2049. Creio que a existência da Lei Básica e da forma como foi aplicada, permitiu a estabilidade e a prosperidade que Macau tem agora. Há quem considere que a Lei Básica tem estado em risco com a existência de casos polémicos, como o de Sulu Sou, por exemplo. Qual é a sua opinião? Sempre tive um conceito de que as leis são feitas para determinado momento, para determinada sociedade e não são nem imutáveis, nem devem ser tão sacralizadas que se tornem intocáveis. Com isto quero dizer que sou totalmente avesso a, precipitadamente, se estarem a fazer mudanças conforme mudam os ventos. Sou a favor de uma estabilidade, sim, mas não imutabilidade. Há necessidade de, quando em vez, dar algum toque que acompanhe as necessidades. Quanto à Lei Básica, penso que não precisa de ser mudada. Ela tem e contem tudo o que Macau necessita para poder continuar, progredir e completar alguns dos princípios das leis existentes da forma que se considere mais adequado, mas não penso que precise de ser mudada. Não creio mesmo que haja um risco eminente de isso acontecer. Estamos, no entanto, a ser um bocado vítimas de uma conjuntura que nem será tanto a nossa. O facto de Macau ser uma região administrativa especial e Hong Kong também, as duas leis básicas foram, quase contemporâneas e os modelos aplicados também. Com os problemas que possam existir em Hong Kong, podemos ter como reflexo determinadas alterações. Acha que faz sentido que Macau e Hong Kong sejam vistos pela mesma lente? Neste momento, Macau será um pouco um banco de ensaio para aquilo que é preciso fazer ou o que querem fazer em Hong Kong e, às vezes, experimenta-se ou faz se aqui primeiro e depois diz-se lá que aqui já se fez, e que por isso tem de ser feito na outra RAE. Desde que não venha a afectar seriamente a vivência desta sociedade e o seu bem estar, acho que pode não ser grave. E se atingir a liberdade das pessoas? A liberdade é um conceito um pouco relativo. Com os tempos, cada sociedade foi criando o seu conceito de liberdade, o seu conceito de democracia e de participação. Por isso, se às vezes há necessidade de por algum travão à liberdade individual por necessidade de um bem-estar colectivo eu não seria contra isso. Acho que o bem público está acima do interesse de A, B ou C de querer usar a sua liberdade. A liberdade de um tem como limite a liberdade dos outros. É preciso criar as baias necessárias no sentido de que exercício da liberdade não ultrapasse o que é razoável para o bem-estar comum. A liberdade de expressão é um valor que também prezo mas isso não me autoriza a berrar e a usar palavrões no meio da Almeida Ribeiro cheia de gente. Por outro lado, às vezes, endeusam-se certas pessoas ou certos pseudo-ídolos e invoca-se logo a liberdade de expressão para dizer que essas pessoas estão a ser vítimas de repressão e de injustiças. Trata-se de uma área muita cinzenta e em que qualquer juízo tem de ser feito com muita cautela e, acima de tudo, com uma certa objectividade e sem a obsessão pela vontade de criar vítimas. Está a falar de Sulu Sou? Pode ser um deles. Nesse aspecto, nem sempre tenho visto a comunicação social a ter um juízo muito objectivo. Não sou eu a autoridade para julgar a comunicação social, mas essa vontade de criar vítimas buscando valores que existem, pode levar à queda na área cinzenta e à tendência de se dizer que é a área branca ou preta, sem se ter atenção a este lugar indefinido. A uma acção há uma reacção e às vezes o equilíbrio entre a acção e a reacção não existe. Se uma acção desencadear uma reacção que não seja muito violenta, tendemos a aceitar melhor tanto uma como outra. Quando há desequilíbrio, às reacções desajustadas vêm outras acções também exageradas, e por aí fora. Quanto ao ponto que questionou em concreto, diria que poderia haver, e estou a falar enquanto cidadão, um valorizar mais as pessoas por aquilo que fazem e não por aquilo que dizem. Sem personalizar, diria que às vezes há certos mitos criados de tanto serem falados. Mas se formos ver com mais cuidado o que essas pessoas fizeram em beneficio ou em favor da sociedade onde estão, chegamos quase à conclusão de que nada fizeram a não ser usar a liberdade de expressão para mostrar que são uns seres superiores e que as suas ideias são a verdade. Ainda relativamente ao caso Sulu Sou. Acha que se trata de uma decisão de que carácter? Não conheço os pormenores, mas admito que esta última decisão que saiu do Tribunal de Segunda Instância definiu com argumentos válidos que a decisão relativamente a Sulu Sou não é meramente administrativa mas sim uma decisão com carácter político e, por isso, é irrecorrível para tribunais. Não cabe aos tribunais julgar e apreciar actos de natureza política. Mas podemos ver esta questão de outra forma: se todos os requisitos que a própria lei prevê para que aquele acto se consumasse não foram cumpridos, então acho que deveria haver um meio de corrigir. Sem tomar partido em dizer se é um acto administrativo ou político, acabaria por perfilhar a orientação definida pelo tribunal e que merece uma certa credibilidade. Agora, se esse acto político obedeceu totalmente a todos os requisitos ou a todas as formalidades que deveria ter seguido não sei, e se não seguiu, quer seja político ou administrativo, é um acto doente. Acho também que não é com barulho que as coisas se vão resolver, mas com bom-senso pode haver forma de corrigir o que esteve mal. Está em discussão a alteração à lei de bases da organização judicial. Um dos pontos que tem causado alguma polémica é a limitação dos julgamentos relativos a segurança nacional, a juízes chineses. O que acha desta restrição? Não me parece que seja uma boa opção. Os tribunais são criados para serem respeitados e para merecerem na sociedade onde existem a confiança de que tudo é tratado com isenção, com elevação, e com a seriedade. Já estive sentado em todos os lados dos tribunais e acho que tenho uma visão do que considero que é um tribunal. O tribunal é um órgão que deve merecer toda a confiança e que está acima de tudo. Os juízes não se devem colocar num poleiro e têm de viver no meio das pessoas a quem têm de aplicar a justiça. Sempre considerei que os tribunais especiais são uma anormalidade nos sistema judiciário. Fiz parte de um tribunal militar, mas na prática sempre fiz e quis que funcionasse da mesma forma e com a mesma credibilidade de qualquer outro tribunal. Sou avesso a tribunais especializados e, por coerência, sinto que a distinção de juízes capazes de julgar determinadas causas e incapazes de julgar outras, não me parece um opção muito apropriada. Acho mal. Era preferível uma opção mais discreta e sem ferir tanto a opinião pública que ficará sempre com uma certa desconfiança relativamente a este assunto. E relativamente à impossibilidade de recurso para os funcionários de altos cargos julgados pelo Tribunal de Última Instância (TUI)? Já tive oportunidade de dizer que, quer como juiz que fui, quer como advogado, se houve alguma coisa que considerei como um pilar muito importante na administração da justiça é o recurso. Sou sempre apologista de que deve haver a possibilidade de recurso. Aprendi que o recurso é um instrumento de correcção necessário na aplicação da justiça. Daí, sinto que o nosso sistema aqui enferma de uma falha: em determinadas circunstâncias, que normalmente são muito especiais e de impacto na opinião pública, não têm direito a uma reapreciação. Nunca percebi e a solução é muito simples. Estamos num território com um superavit que dava para pagar 50 juízes do TUI, mas bastavam mais dois juízes no TUI para podermos criar um degrau a mais para do julgamento colectivo de três e para um pleno de cinco. Já nem pensamos em mais. E até se poderia ir a seis o que permitia a criação de dois colectivos que iam acelerar o andamento dos processos e, ao mesmo tempo, teríamos um pleno. Penso que isto protegeria a ideia de isenção e de credibilidade necessária para o sistema judiciário. É um passo que espero que seja dado o mais depressa possível por várias razões: assim nunca ficaria a ideia de que teria sido o peso de um factor exterior a afectar dois dos juízes para que uma decisão não seja a mais apropriada. Com cinco juízes dava lugar a que se repensasse e a mais certezas na decisão. Enquanto juiz, quando via que uma decisão que tomava pudesse vir a ser reapreciada, tinha mais cuidado na explicação das razões da minha opção. O secretário para a segurança, Wong Sio Chak, quer adicionar diplomas complementares à lei da segurança nacional. O que acha da medida? Não conheço em pormenor quais são os diplomas complementares que ficaram por fazer depois da aprovação da legislação sobre o artigo 23 da Lei Básica. Mas, posso fazer um juízo, que pode ser um pouco precipitado, mas que é fruto dos 20 anos que vivemos com a RAEM. Estamos numa sociedade de paz, de tranquilidade e a forma como esta sociedade se está a comportar, não necessita de ser mais travada. Qualquer que seja o travão, será um pouco inútil e não há necessidade de estarmos a apertar a tarraxa quando já está suficientemente provado que Macau tem um sistema em que as pessoas vivem em paz e harmonia sem criar grandes problemas. Mas fico à espera que se saiba mais acerca desses diplomas complementares para ter uma opinião mais concreta. O que tem a dizer relativamente ao que aconteceu no Festival Literário “Rota das Letras” com o cancelamento da vinda de alguns autores por serem considerados “inoportunos”? Não sei os pormenores desse processo. Se sou partidário de um mínimo de restrições ao direito de expressão, em particular no caso do festival literário, acho que poderíamos entender a situação se houvessem outras razões ou algum perigo. Quando falo de perigo quero referir-me a alguém que quisesse aproveitar a vinda desses autores para criar alguma comoção social. Acho que não se justificava. Estamos a falar de um evento e de uma apresentação dirigidos a relativamente poucas pessoas e, ainda assim, partiria do princípio que quem fosse assistir seriam pessoas maduras com capacidade de saber ouvir, saber interpretar e, se tivessem de assumir qualquer posição, seriam pessoas com responsabilidade para o fazer. Tenho pena que o “Rota das Letras” possa não ter continuidade e que este episódio tenha sido uma facada muito forte. Mais uma vez acho que estamos a pagar em Macau o que aconteceu em Hong Kong com o “Occupy Central. Estamos a pagar o preço daquela irreverência. Nem sabemos quem está por detrás do que aconteceu. Lembro-me naquela altura, em conversa, me dizerem até que a menina envolvida tinha sido uma activista do partido comunista. Resta saber quem são estes meninos e por conta de quem o estiveram a fazer. A semana passada foi mais uma vez noticiada a recepção por parte de um advogado português de uma sentença em chinês. Como estamos em termos de aplicação do bilinguismo na justiça? Esse é um problema que está ligado à falta de tradutores. Aqui no escritório somos vítimas dessa situação. As duas línguas são oficiais, mas nada diz que se devem usar sempre em simultâneo. Fico satisfeito com o esquema bilingue que os serviços públicos usam, por exemplo. Mas à carência e descuido no que respeita ao mercado de tradutores. O Governo disse que precisava de 200 e ficou com todos, por outro lado paga o dobro a estes funcionários o que impede um mercado a que possamos recorrer com facilidade. Há muitos anos se deveria ter fomentado o mercado da tradução e hoje teríamos uma classe de tradutores a fazerem o seu trabalho. Não podemos exigir que os tribunais façam as coisas em função dos destinatários. Temos é de ter um mercado de tradutores.
Sofia Margarida Mota Entrevista Manchete SociedadeEntrevista | Hans-Georg Moeller, académico de filosofia e estudos religiosos da UM Foi nos finais dos anos 80, com a abertura da China ao mundo, que o alemão Hans-Georg Moeller, então aluno de filosofia em Bona, decidiu especializar-se no pensamento Chinês. O coordenador do programa de filosofia e estudos religiosos da Universidade de Macau vai hoje, às 18h30 orientar uma palestra na Livraria Portuguesa sobre o Taoísmo. Ao HM apontou alguns aspectos religiosos e filosóficos que vai comentar, assim como a sua prática na sociedade contemporânea [dropcap style≠‘circle’]V[/dropcap]ai estar na Livraria Portuguesa a falar acerca de Taoísmo. Em linhas gerais, o que é que vai abordar? Vou falar, essencialmente, de uma história que consta do livro de Zhuangzi. Há dois livros que são considerados essenciais no Taoismo. Um é de Laozi, o Daodejing que é o mais conhecido, e o outro é de Zhuangzi. De facto, este último é uma obra muito mais divertida de ler. A maioria das pessoas começa com o Daodejing que é quase uma linguagem encriptada e difícil de entender. Já o Zhuangzi é cheio de histórias alegóricas. São pequenos contos cheios de humor e mais acessíveis para o leitor. Hoje vou falar de uma história em concreto que está no final deste livro – do Zhuangzi. Até lhe posso contar a história. Fala de três imperadores. Um do centro, um do norte e um do sul. O imperador do centro tem o nome de Hun Dun, que tem a fonética do wonton da sopa e a aparência do governante seria essa também. Hun Dun tem uma forma amorfa, não humana, sem cara e era um imperador muito simpáticos para os outros dois. Um dia, os imperadores do norte e do sul decidiram que, como forma de gratificar a simpatia de Hun Dun, lhe deveriam fazer algum tipo de favor. Dada a sua aparência sem forma, resolveram esculpir-lhe uma cara para que se pudesse parecer com eles, com os humanos. Durante sete dias, e em cada um dos dias, fizeram um buraco na forma de Hun Dun para lhe dar um rosto humano. Fizeram sete buracos e no sétimo dia, Hun Dun morre. É esta a história. E o que podemos tirar desta história? Na base deste conto vou explicar as duas dimensões maiores do Taoismo que são a religiosa e a filosófica. Relativamente à primeira, que será talvez a mais utilizada, é uma interpretação que tem que ver com a própria concepção de Hun Dun muito conhecida entre os chineses. Hun Dun é um figura mitológica antiga. Temos figuras idênticas na Grécia Antiga relacionadas com a noção de caos, do que ainda não está formado e a partir do qual tudo se transforma e desenvolve. Neste sentido, há a ideia de que temos de nos cultivar de modo a retornar a este estado sem forma que é o Hun Dun. Desta forma seremos mais saudáveis, teremos uma vida longa e conseguiremos chegar a uma espécie de estado de unidade cósmica. A essência do Tao é essencialmente medicinal. O Taoismo não é como o cristianismo e é muito preocupado com o cultivo da saúde física. Podemos mesmo dizer que nos primeiros tempos do Taoismo a ideia era conseguir atingir a imortalidade. A teoria, tanto a nível fisiológico, como espiritual, tem como fim atingir esta imortalidade e a forma de se lá chegar é através de um estado em que não se perde qualquer energia. Aliás, há muitas práticas Taoístas em que o objectivo é reter a energia vital até mesmo a nível sexual. Esta concentração de energia simboliza um retorno ao estado de Hun Dun, um estado primitivo. Aliás, se olharmos atentamente para as imagens antigas de Laozi, parece um ser muito amorfo. Podemos entender a história desta forma: todos temos de retornar a este estado inicial, sem forma e de plena concentração energética. Hun Dun é uma massa indiferenciada cheia de potencial, como uma semente de uma planta. É uma espécie de retorno a um estado de semente em que a energia está toda concentrada. O Taoísmo está cheio de directrizes para cultivar este retorno que têm que ver com o movimento, a alimentação e fundamentalmente, a respiração. Ainda hoje, na China praticamente não se bebe água fria e a razão que está na base deste hábito é taoísta, para não provocar um choque térmico no corpo que o obrigue a despender mais. Acredita nessas práticas? (Risos) Não, mas tenho que lhes dar algum crédito. Da minha experiência, as pessoas que praticam o que é dito pelas teorias Taoistas vivem de facto mais tempo do que as que não praticam. Mas não conheço ninguém que tenha chegado à imortalidade (risos). FOTO: Sofia Mota Falou de uma interpretação também filosófica. Há algumas ideias básicas no Taoismo a este respeito. Uma delas é que as acções dos dois imperadores, o do norte e o do sul, podem ser associadas ao confucionismo. Eles basicamente pensaram em termos de educação e de que tinham de retribuir a gentileza. Um confucionista está sempre preocupado com as relações interpessoais e é guiado por um certa moldura de moralidade, pensada em termos de comportamento. Ou seja, se alguém é simpático temos de retribuir com presentes, por exemplo. Este é um aspecto ainda muito presente na cultura chinesa. Portanto, agiram como confucionistas típicos. Por outro lado, também quiseram humanizar Hun Dun e fazer com que fizesse parte da sociedade humana caracterizada por um sistema social e de rituais. Eles queria transformar o outro à sua imagem. Apesar de o fazerem com boas intenções, impuseram de alguma maneira as regras confucionistas e com isso mataram o imperador do centro. Acabaram por ser dois interventores humanistas ao quererem dar-lhe uma face de gente e para isso escavaram-lhe buracos, fizeram uma intervenção humana. Aliás, é uma coisa muito humana pensar que se tem de fazer coisas. Esta intervenção humana é uma acção que vai contra a doutrina da não acção do Daodejing. Temos aqui uma alegoria a mostrar como é que a acção pode ser má e destrutiva. De um ponto de vista filosófico é uma história que explica o paradoxo da acção sobre a não-acção. É também um conto que critica o próprio confucionismo na sua moralidade. E a sua interpretação pessoal, enquanto filósofo? A minha interpretação não é totalmente diferente das anteriores mas, olhando para esta história de um ângulo diferente, acho que é importante dar-lhe uma componente de humor e satírica. Temos a mesma função no ocidente, por exemplo, com os bobos da corte. Basicamente, é uma sátira ao confucionismo, à reverência às autoridades, em que Hun Dun acaba por morrer nas mãos de dois confucionistas estúpidos que, ao quererem fazer o bem, acabam por criar uma grande confusão. Também é uma sátira ao próprio Tao que acaba por ser morto no final, o oposto do que seria esperado. É Hun Dun, a vida que consegue concentrar a energia, que demasiado envolvido com os confucionistas acaba um perdedor. Esta é a perspectiva que acho que a história realmente trata: a de um confucionismo falhado e também de um Tao derrotado. Além deste lado, que considero mais humorístico, há uma mensagem central neste livro do Zhuangzi que é a noção de face muito presente na cultura chinesa. De acordo com o Taoísmo o problema não foi o perder a face, mas aceitar essa cara como forma de identificação. Esta identificação com um rosto, com um papel social, é muito confucionista e é uma forma de identificação com os papéis sociais impostos pelo próprio confucionismo. A mensagem deixada é uma espécie de alerta para ter cuidado com o que nos identificamos no nosso papel social. Penso que o Taoísmo, mais do que medicinal, tem que ver com uma garantia de sanidade em que temos de ser capazes de não nos identificar em demasia com os papéis sociais que o confucionismo tenta impor. Numa sociedade contemporânea podemos fazer um paralelismo com, por exemplo, as identidades ou faces, promovidas pelas redes sociais? Exactamente. Na sociedade actual há uma pressão social de conformidade para com uma imagem social que é requerida. Temos de produzir o nosso perfil social, temos de o fazer online e isso vai exigir um comprometimento para com ele. Temos de actualizar os nossos estados do Facebook, por exemplo, e de nos comportarmos conforme esse perfil que criamos. Estamos a falar de confucionismo? Sim, claramente. É uma forma de estar que preenche os requisitos da teoria. Todos temos um perfil, um padrão de relações em que temos de viver e respeitar e ter os comportamentos esperados conforme essas relações. Isto, claro, vai requerer um compromisso e muito trabalho para que se mantenham as coisas como é pedido. E como é que podemos ver este pensamento na política? O Daodejing, tal como os livros filosóficos daquela altura, é uma obra política. Foi escrito, ou dito, tendo como alvo os dirigentes. Era um livro para políticos e que exigia que um governador se cultivasse através da não acção, sem o desejo de atacar os outros, de alargar territórios. Este é um aspecto muito importante que deveria ser assimilado pelos dirigentes: a sabedoria de saber quando é suficiente. Mais uma vez, também as crianças servem de exemplo: comem e deixam de comer quando já não têm fome. Em adultos comemos e continuamos a comer mesmo depois de cheios, mesmo que nos faça mal. Esta atitude não é saudável, tanto de um ponto de vista físico, enquanto indivíduos, como metafórico, como seres sociais e políticos. Outro aspecto importante e que se acreditava na altura é que o mind set do governante seria o do povo. Como exemplo, cabe ao político não ser ambicioso, ser modesto e agir pela não acção, pela naturalidade. É naive pensar que, actualmente, os políticos possam pensar desta forma. Podemos também falar da questão das guerras. No Daodejing do Laozi ou mesmo do Zhuangzi há uma crítica muito grande à violência. Voltando à história de Hun Dun: o que lhe foi feito em nome do bem foi uma violência, uma acto de morte baseado em dois princípios que também motivam as guerras actuais. Um de que temos o direito de interferir e outro de que devemos transformar os outros de modo a que sejam como nós. Para isso, se necessário, utilizamos instrumentos violentos, armas, porque nos achamos no direito e no dever de o fazer. Este é um argumento muitas vezes usado para legitimar as guerras. Temos o exemplo do Iraque. O pretexto foi o da ajuda na transformação do país para que tivesse mais liberdade, como nós. O resultado, foi o que foi. Um dos princípios do Taoísmo, como já referiu tem que ver com a não acção. Como é que define este conceito? De facto, para se ter uma tradução aproximada a não acção devemos pensar na noção de acção sem esforço. Um bom exemplo que costumo usar é a aprendizagem de uma língua quando se é criança. É feita sem esforço. E o objectivo na não acção é conseguir voltar a este estado de fazer as coisas e de as assimilar com naturalidade, sem despender energia vital. Como é que Taoísmo e o Confucionismo ainda estão presentes na sociedade actual, nomeadamente a chinesa e como convivem dadas as diferenças paradoxais? São filosofias que se encontram na prática em que cada um mantém as suas características em diferentes aspectos da vida. O Taoísmo está na medicina chinesa, no Tai Chi, na água quente, por exemplo. O Confucionismo, por seu lado, está nas relações familiares que continuam a ser orientadas pelas regras e preceitos de Confúcio. É a família e a propriedade familiar que constitui o núcleo da sociedade chinesa. Penso que a sociedade chinesa continua a ter presente um pouco de cada um dos seus pilares filosóficos, com o seu espaço. Mas do que tenho visto as pessoas não têm conhecimento de facto acerca do taoismo ou do confucionismo. São coisas muito integrantes da cultura e a China é claramente dominada pelo confucionismo. O Dao aparece essencialmente ligado à medicina enquanto que Confúcio dita as regras sociais.
Diana do Mar Entrevista MancheteManuel Machado, presidente da EPM: “Queremos continuar a ser uma escola prestigiada” A Escola Portuguesa de Macau (EPM) celebra 20 anos. A diversidade cultural e linguística da população escolar enriqueceu a instituição de ensino, mas novas necessidades trouxeram desafios. Em entrevista ao HM, o presidente da direcção, Manuel Machado, espera que a EPM continue a ser uma escola prestigiada e aberta a todos [dropcap style≠‘circle’]I[/dropcap]ntegra a EPM desde o início, em 1998. Colaborador próximo de Edith Silva, foi adjunto da direcção até ser convidado para a vice-presidência e, mais tarde, para a presidência. Que aspectos destacaria destes 20 anos? Quando foi criada, um dos objectivos era assegurar um estabelecimento de ensino na Região Administrativa Especial de Macau, que viria a constituir-se após a transição, para os filhos da comunidade portuguesa poderem seguir os estudos num currículo português em língua portuguesa (…). Mas, em paralelo, a Escola Portuguesa obviamente estava – como sempre esteve – aberta a alunos das comunidades aqui residentes, aos quais procurou sempre ir dando resposta através da adopção de estratégias e metodologias. Com o desenrolar dos anos, foi-se alterando o currículo com vista à adaptação à realidade da escola: foi introduzido o mandarim, o ensino do inglês, da educação física e da educação musical desde o primeiro ciclo e houve alterações ao nível do ensino da história e da geografia, por exemplo. Quais foram as principais conquistas da EPM? Desde logo, uma elevada taxa de sucesso educativo, uma taxa elevadíssima de alunos que terminam o ensino secundário e conseguem prosseguir estudos na primeira opção, e a abertura a outras comunidades, reflectida num cada vez maior número de alunos de outras nacionalidades – temos, neste momento, 24. Essa realidade, de uma maior diversidade cultural e linguística, que se foi desenhando ao longo dos anos, também trouxe o grande desafio de responder a novas necessidades. Temos recebido muitos alunos que não têm o português como língua materna [VER CAIXA], algo praticamente inexistente no início do funcionamento da escola, o que significa que essa aposta, em estratégias e metodologias utilizadas para oferecer as ferramentas necessárias ao acompanhamento do currículo em português, tem tido sucesso. Depois, em 2009, foi aprovada uma portaria pelo Ministério da Educação que regulamentou os currículos da Escola Portuguesa de Macau, criando duas vias curriculares: na via A é facultado o ensino do mandarim do 1.º ao 12.º ano, enquanto na segunda não há obrigatoriedade de frequência daquela língua. E o ensino do cantonense? O dossiê encontra-se arrumado? Não, aliás, em educação os dossiês estão sempre em aberto. Este ano lectivo abrimos o cantonense em regime extracurricular e há uma série de alunos que o frequentam. Os resultados têm sido bons, mas vamos aguardar pelo final do ano para fazer a avaliação do processo e ver o que deve ser mantido e/ou modificado. A EPM tem ganho um perfil internacional pela diversidade de origens, culturas e línguas. Portugal continua a ser o destino de eleição para quem ali termina os estudos secundários? Varia muito de ano para ano. Já tem acontecido haver aproximadamente 50 por cento ou um pouco mais de alunos que terminam o secundário e prosseguem estudos em Portugal e os restantes dispersarem-se por outros países, como Austrália, Inglaterra, Suíça, China, ou ficarem em Macau. No ano passado, por exemplo, a maioria (28) escolheu Portugal. De facto, a escola, não sendo uma escola internacional na verdadeira acepção da palavra, oferece todas estas saídas e é a única em Macau com currículo em português à semelhança das escolas portuguesas. Regra geral, quantos optam por ficar em Macau? Neste momento, aproximadamente dez por cento num universo de 35 a 40 [finalistas]. Satisfaz muito que a escola comece a ser vista não só como era há muitos anos, ou seja, como uma porta para Portugal. Um dos aspectos que praticamente, de forma anual, transporta a EPM para as manchetes tem que ver com os ‘rankings’ dos exames nacionais, dado que tem liderado a média entre as escolas portuguesas no estrangeiro. Sei que não gosta de falar de ‘rankings’… Claro que não vou dizer que não sinto orgulho quando leio os números, mas os ‘rankings’ valem o que valem. Há todo um percurso de ensino e de aprendizagem, de vivência na escola e de relacionamento com os outros, por exemplo, que não é pesado e que tem muito mais valor. A disposição com que um aluno vai fazer um exame não é sempre a melhor, o tipo de prova, a sua reacção às perguntas, a própria situação de exame, a par da pressão quando se trata de disciplinas específicas para ingresso em certos cursos do ensino superior, em que por uma décima se entra ou não na universidade, não podem traduzir todo o trabalho anterior. O que é mais importante e mais me satisfaz não é a posição em que a escola fica, mas o percurso que o aluno fez, as relações que estabeleceu, a forma de estar e de se sentir na escola e como se desenvolveu e cresceu no estabelecimento de ensino, ou seja, tudo aquilo que é multidimensional. O que faz falta à EPM? Neste momento? Instalações. É um processo demorado que tem os seus trâmites. Para o ano podemos ficar próximos dos 600 alunos porque admito o aumento de mais uma turma no primeiro ciclo e, obviamente, um maior número de alunos exige a ampliação de modo a que possamos continuar a prestar um serviço educativo de qualidade. As instalações são muito importantes, não só no que diz respeito às salas de aula normais, mas também às específicas, como laboratórios, etc. Acresce que, além do maior número de alunos de língua materna não portuguesa, que necessitam de um acompanhamento próximo no início, o que também requer espaço, tem aumentado também o número de alunos com necessidades educativas especiais variadas, o que exige também recursos humanos e materiais. Recursos humanos, felizmente, não têm faltado, subsidiados pela Direcção dos Serviços de Educação e Juventude [DSEJ,] mas começamos a sentir, de facto, a escassez de espaço para poder fazer a gestão de todas estas situações. Actualmente, qual é o universo de alunos com necessidades educativas especiais? Neste momento, alunos com necessidades educativas especiais, de natureza diversa, temos 45, são quase dez por cento, é um número elevado. Mas alunos com acompanhamento pelos serviços de psicologia e orientação são aproximadamente 110. A Escola Portuguesa sempre foi muito receptiva, embora até certa altura não tivesse capacidade para dar resposta, porque nós tivemos durante muitos anos apenas uma psicóloga. Muitos vinham da DSEJ, mas por causa da questão da língua, não havia possibilidade de fazer o acompanhamento de que careciam. Foi sempre apanágio da Escola Portuguesa estar aberta a essas situações, acompanhando-as na medidas das suas possibilidades. Felizmente, desde há quatro anos, temos tido a possibilidade de contratar professores do ensino especial. Abrimos o ano com três a tempo inteiro e agora, para o terceiro período, chegou mais uma professora, além de termos outra a tempo parcial. A nossa capacidade de resposta tem, portanto, aumentado. Agora temos duas psicólogas a tempo inteiro. Portanto, este conjunto consegue fazer o acompanhamento das diferentes situações, o que não significa que não haja ainda recurso a terapeutas vindos de fora que vêm apoiar os alunos. Temos ainda duas animadoras culturais que foram contratadas para fazer acompanhamento dos alunos no recreio, porque, de facto, a população escolar está a aumentar e o espaço é o mesmo (…) e que, quando há necessidade, fazem-no também dentro da sala de aula. Qual a estratégia futura? O que gostaria mesmo que a EPM tivesse, fizesse ou alcançasse? Sempre considerei que não é possível haver uma relação de ensino e de aprendizagem sem haver empatia entre os actores envolvidos, por isso, damos muita importância ao clima e à cultura que se vive e às relações que se estabelecem dentro da escola. Temos a vantagem de existir uma grande diversidade cultural, o que é extremamente enriquecedor no desenvolvimento das crianças porque ajuda-as desde pequeninas a perceber que existem outros ‘eus’ que têm de se respeitar independentemente das diferenças ou semelhanças. Portanto, espero que a escola continue a conseguir manter e aumentar – porque nunca nada está atingido – um clima de alegria, bem-estar e de segurança, para o desenvolvimento saudável dos jovens, acompanhado obviamente do processo de aprendizagem. Muitas vezes as pessoas não se apercebem, mas a segurança e o bem-estar que se vive dentro da escola é fruto de um trabalho diário de acompanhamento por parte de professores, funcionários, de encarregados de educação. Não se consegue ter uma escola com bons resultados se não houver um bom ambiente. Fico muito contente quando somos procurados por encarregados de educação da comunidade chinesa, da filipina ou de outras que nos dizem que foi por causa do ambiente [que escolheram a EPM]. É muito compensador. E em termos do projecto educativo propriamente dito? No futuro, temos que continuar a apostar muito no desenvolvimento da língua portuguesa no sentido da sua aprendizagem correcta – não só porque somos uma escola portuguesa, mas também devido ao crescente número de alunos que têm outra língua materna. Também continuar a apostar no multilinguismo, em particular, no ensino do chinês, que ainda tem que se desenvolver bastante. Obviamente, queremos sempre continuar a formação profissional, não só de professores mas também de funcionários porque a realidade está-se a alterar e muito rapidamente. Nestes últimos cinco anos, a escola modificou-se muito significativamente, a estrutura tornou-se muitíssimo mais complexa, quer pelo número de alunos, mas também pelas suas características. A quantidade de alunos que precisa de acompanhamento extra a português e que tem necessidades educativas diversas ou a vinda de professores novos, que têm de ser integrados na cultura da escola, fez a rede adensar-se, o que exige uma colaboração muito próxima entre todos. Este é o grande desafio da escola. Queremos continuar a ser uma escola prestigiada em Macau que conseguiu consolidar-se como uma escola de qualidade e que as pessoas sintam que está aberta a todos, pois não teria sentido de outra forma dado estarmos no Extremo Oriente. Havia um plano para reformular o ensino do mandarim. Qual é o ponto de situação? Começamos este ano lectivo a experiência, no 1.º e 2º ano de escolaridade, de distribuir os alunos por dois grupos: um constituído por quem não têm quaisquer conhecimentos de chinês e um outro por quem já tem. Obviamente que as aulas são diferentes, os objectivos também, bem como as metodologias. A avaliação feita até à data, quer por parte de professores, encarregados de educação e alunos, tem sido positiva. Alteramos a estratégia e implementamos esta experiência, que está a ter bons resultados, e que naturalmente vai continuar no próximo ano no 3.º e 4.º ano e por aí fora. Há algum aspecto menos positivo durante estes 20 anos? Para ser franco, não consigo identificar nenhum momento marcadamente negativo. O saldo é francamente positivo, mas no percurso desta instituição, como de qualquer outra, há sempre situações menos conseguidas e menos agradáveis – é uma escola. Têm é que se estar atento e atalhar quando é necessário atalhar aquilo que tem de ser corrigido e melhorado. “Junto da direcção até agora não chegou nada” Na sequência do recente caso de violência escolar entre dois alunos, a DSEJ solicitou à EPM o envio de um relatório que ficou prometido para depois das férias da Páscoa. Já foi entregue? Houve, há e vai continuar a haver situações menos agradáveis. Essas questões são identificadas e trabalhadas pela escola de acordo com o regulamento interno e, sobretudo, com a discrição que merecem, porque estamos a tratar de crianças, portanto, temos de resolver dentro das portas da escola da melhor maneira possível. Os jovens merecem todo o respeito e, portanto, qualquer coisa menos bem feita pode traumatizá-los, por isso não gosto de falar nem que venha para os jornais. Tenho a responsabilidades para com os alunos e tenho elevadíssimo respeito pela sua identidade. Se há um incidente tem que ser tratado, não se pode por a cabeça na areia e tem de se arranjar a melhor maneira de o resolver e superar, mas o que não pode é ser feito sem ser com a máxima discrição. Nunca o farei de outra forma. Agora, obviamente que temos uma tutela – duas aliás – e se a DSEJ nos pede um relatório, com certeza que será feito findas todas as averiguações pela escola, mas isto é feito em correspondência confidencial. O relatório será feito na devida altura. Não vou apressar nada, vou fazer as coisas ‘by the book’ e respeitando as crianças enquanto jovens em desenvolvimento que eu quero que se mantenham na escola e se sintam bem [nela]. A Inspecção Geral de Educação e Ciência afirmou, em resposta por e-mail, ao HM, ter recebido e estar a analisar duas queixas relativas à EPM. Uma respeitante a esse caso, ocorrido em Março, e outra referente a agressões a um aluno por parte de colegas alegadamente promovidas por um docente, que remonta a finais de 2016. Qual o ponto de situação? Eu não tenho conhecimento de quaisquer investigações em curso. Não é suposto a Inspecção de Portugal vir fazer perguntas à escola sobre uma questão que se passou aqui. Obviamente que pode fazê-lo, com certeza que o pode fazer, mas o não o fez ainda. Não sei se vai fazer, mas até à data não o fez. (…) Se está a investigar é porque terá chegado alguma coisa, mas à direcção, até este momento, não chegou nada – é o que posso dizer. EPM em números A EPM abriu no ano lectivo 1998/1999 com 1132 alunos, registando-se depois um decréscimo progressivo do número de alunos até 2010/2011, ano em que foi atingido o valor mínimo de 462. A partir daí, o universo começou a crescer gradualmente e no actual ano lectivo encontram-se matriculados 577 alunos. Dos 577, 430 têm nacionalidade portuguesa, 74 chinesa, havendo ainda 73 de outras origens. Contudo, o português é a primeira língua apenas para 357 estudantes , um “dado curioso”, como assinala Manuel Machado. No que toca ao corpo docente, no ano lectivo inaugural, a EPM tinha 91 professores, incluindo 18 a tempo parcial. Actualmente, são 59, dos quais dois em part-time. A EPM conta ainda com sete funcionários administrativos, 17 auxiliares, bem como com duas psicólogas e quatro professores de ensino especial, a somar a cinco técnicos especializados. Vinte anos celebrados com espectáculo no CCM No próximo dia 21, pelas 19h30, vai haver um espectáculo no Centro Cultural organizado por professores, ex-professores, alunos, ex-alunos e encarregados de educação actuais e de outros tempos, intitulado “Vinte anos a navegar”.
João Santos Filipe Entrevista Manchete SociedadeDavid Chow: “É importante permitir a entrada no mercado a investidores de Macau” O empresário e CEO da Macau Legend apela ao Governo que acompanhe as investigações nos Estados Unidos ao empresário Steve Wynn e que actue para evitar danos para Macau. Chow questiona igualmente os contornos do negócio em que a Galaxy comprou parte da Wynn Macau [dropcap style≠‘circle’]D[/dropcap]efendeu recentemente uma investigação do Governo ao negócio em que a operadora Galaxy adquiriu cerca de 3,5 por cento da Wynn Macau. Porque defende a investigação? A lei permite que haja investimentos e compras das concessionárias. Se fossem outras pessoas a fazer o negócio, que não uma concessionária, não haveria problemas. Mas não é esse o caso. Honestamente, não compreendo o negócio. A Galaxy justificou a compra com o acesso à informação da Wynn numa perspectiva de aprendizagem. Só que eles são uma concessionária com um modelo muito diferente da Wynn e já têm um modelo de negócio que gera muitos lucros, mais do que a Wynn. É um negócio que carece de esclarecimento. Considera que esta movimentação contribui para reduzir a concorrência no mercado local? Sim, parece-me um negócio que segue uma direcção oposta à liberalização do jogo. Quando se liberalizou o mercado queria-se uma maior concorrência, mas com esta movimentação tenho dúvidas que esse espírito esteja a ser respeitado. O mercado tem de ser mais aberto. Assim há uma companhia a ir numa direcção que me parece oposta. Julga, então, que as autoridades locais deviam analisar muito bem todos os contornos do negócio. Acho que há a necessidade de haver mais esclarecimentos por parte das autoridades. Por outro lado, parece-me necessário uma posição sobre para onde se quer que a indústria caminhe. Estamos a falar de assuntos muito sérios, que devem ser muito bem esclarecidos, até pela importância da indústria para a cidade. No seu entender, qual é a verdadeira razão por trás deste negócio? Não sou eu que tenho de analisar o negócio, mas como simples cidadão tenho algumas preocupações e questiono-me. Há muitas perguntas que gostava de ver respondidas, por exemplo, a Galaxy vai comprar 100 por cento da Wynn no futuro? O Governo devia clarificar muito bem a sua posição. São dúvidas que devem ser tratadas atempadamente, até porque estamos a aproximar-nos dos próximos processos de atribuição de licenças de jogo. Também se mostrou preocupado com os contornos do escândalo que envolve Steve Wynn. Porque está preocupado com o caso, mesmo depois do milionário se ter afastado da empresa? Estamos a falar de um caso que pode causar danos enormes ao nível da imagem da indústria de Macau. Se virmos o que se está a passar nos Estados Unidos, onde há uma investigação não só a Wynn, mas também aos directores da empresa. Lá querem saber se houve intenção das pessoas que estão à frente da operadora de proteger e cobrir os actos de Wynn. Espera uma investigação da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos (DICJ) semelhante à que se verifica nos Estados Unidos? As pessoas de Macau têm de fazer alguma coisa face ao caso. É preciso ver como se vão desenrolar as investigações por lá e ponderar o futuro da empresa. Será que esta empresa tem mesmo capacidade para gerir uma concessão? Estamos a falar de um grupo que assumiu as suas responsabilidades nos Estados Unidos… As exigências em Macau, que tem um mercado com base em concessões, são muito superiores aos de um mercado aberto, como acontece em Las Vegas. O Governo de Macau precisa de ser mais rigoroso na forma como tem encarado toda este caso. No passado, dizia-se que Macau precisava de aprender com o que se passava na indústria de Las Vegas. Esta aprendizagem não implica também adoptar este tipo de investigações, como acontece nos Estados Unidos? Como considera então que o Governo devia lidar com o caso? Parece-me que há dois passos inevitáveis: por um lado é preciso investigar toda a direcção da empresa e ver quem são as actuais pessoas que estão à frente da Wynn. Que tipo de responsabilidade vão assumir? Será que quando ele se comprometeu com uma licença de jogo disse que tinha um passado limpo? Este tipo de coisas não devia ter sido declarado? E o resultado da atribuição de licenças de jogo teria sido diferente à luz destes dados? Há muitas dúvidas. Não se pode agir como se o caso fosse apenas a passagem do tufão. É preciso aprender com tudo e tirar lições. Todos precisam de perceber muito bem as suas responsabilidades como concessionárias. E o segundo passo? É preciso mudar o nome dos resorts em Macau porque o nome Wynn está ligado ao escândalo. É terrível para Macau estar ligado a este caso. Wynn pagou 7,5 milhões dólares americanos perante uma conduta sexual imprópria, sobre isso parece não haver dúvidas. O acordo foi feito. Queremos mesmo espaços de entretenimento ligados a estas condutas? Que implicações e mensagem é transmitida? Entre 2020 e 2022 as licenças do jogo chegam ao fim. Existe a perspectiva de renovações anuais, com uma nova atribuição das licenças. Que pontos gostava de ver destacados nos novos concursos? Criação de mais oportunidades de promoção para os locais que estão há vários anos na indústria a aprender. Mas tenho confiança que o Governo vai ser justo na atribuição das novas licenças do jogo e que vai criar oportunidades de investimento para os locais. Sejam seis, sete ou oito licenças de jogo, isso não é o mais relevante. O importante é que se permita a entrada no mercado dos especialistas e investidores de Macau, que permitem a promoção dos trabalhadores residentes. O facto de nos últimos anos ter crescido o número de investidores de Macau a lançarem-se na indústria do jogo no exterior, mostra que há pessoas capazes de assumir um maior papel internamente? Os locais estão a investir no estrangeiro porque não há uma política que lhes permita investir no jogo em Macau. Parece-me que o mais importante é pensar como se podem trazer novos mercados para Macau. O que quer dizer com os novos mercados? As pessoas na Ásia estão a ficar cada vez mais ricas e querem frequentar casinos. Mas porque é que vão para outros mercados como, por exemplo, Singapura? Elas poderiam vir a Macau… Não tem sido feito um bom trabalho por parte das concessionárias de atrair novos mercados. Elas só têm mostrado vontade de contar com os jogadores chineses, mas isso não ajuda verdadeiramente Macau. Não se diversifica a origem dos jogadores. Mas deixe-me dizer, todas as minhas questões e exigências têm um objectivo: aumentar o nível de Macau e catapultar a cidade internacionalmente. Se não alcançarmos um nível de excelência como podemos ajudar Macau a integrar-se na política Uma Faixa, Uma Rota e na Plataforma entre a China e os Países de Língua Portuguesa? Tem sido um dos investidores que mais tem acompanhado a política Plataforma entre a China e os Países de Língua Portuguesa ao nível do turismo. Como está o projecto em Portugal? Estamos na expectativa, à espera de instruções. Portugal é uma posição estratégica, tem uma política estável e as pessoas percebem o que querem e têm coragem, como se viu com a política dos Vistos Gold. Também são bons amigos da China e permitem uma ligação com facilidade a mercados na América Latina, América do Sul, África, no espírito da política nacional Uma Faixa, Uma Rota. Esteve recentemente em Portugal e teve reunido com o presidente da República Portuguesa. Mas a verdade é que o projecto está a levar o seu tempo… Temos de aguardar e respeitar o tradicionalismo português na forma como lidam com concursos públicos e questões ambientais. Temos e queremos cumprir com tudo. Mas sentimos que temos apoio para o projecto, tanto em Setúbal como em Tróia. Até o presidente mostrou o seu apoio, também o ex-Governador de Macau, Rocha Vieira… Quando nos derem indicações começamos as obras. Além de Portugal e Cabo-Verde que outros investimentos podemos esperar nos Países de Língua Portuguesa? Já temos as obras em curso em Cabo Verde e agora preciso das orientações de Portugal, para começar as obras. Estamos em contactos com Angola e Timor-Leste. Mas, neste momento, vemos Portugal como a melhor plataforma para Macau e a melhor área para investir. Estamos a ver surgirem muitas oportunidades de investimento dentro da política Uma Faixa, Uma Rota. Nos últimos tempos o seu filho Donald Chow tem estado mais ligado ao grupo. Está a preparar a sucessão? É o meu filho. Veio trabalhar connosco depois de se ter formado na universidade. Dei-lhe a oportunidade, mas ele começou do fundo, o primeiro salário que teve foram 12 mil patacas. Tem vindo a aprender e aprender. Mas por agora é a minha mulher, Melinda Chan, que está a gerir o negócio em Macau e no Interior da China. Eu estou mais focado nos investimentos lá fora. “Temos uma amizade forte” Durante a entrevista de ontem, David Chow abordou os rumores sobre um eventual despedimento do amigo Jorge Fão. O empresário desmentiu esse cenário e fez questão de realçar a grande amizade entre os dois: “Eu e o Jorge Fão somos grandes amigos e temos uma amizade forte. Há muita gente a falar sobre o que não sabe. Não faz qualquer sentido os rumores que circularam e não percebo a intenção. Somos amigos há muito tempo. Ele está reformado mas é uma pessoa que me tem ajudado muito”, afirmou.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteNedie Palcon, líder da Green Philippines Migrant Workers Union: “Macau continua a ser atractivo” Foi uma das poucas representantes das comunidades de trabalhadores não residentes a reunir com um membro do Governo, no âmbito do aumento das taxas de partos para estas trabalhadoras. Nedie Palcon, líder da Green Philippines Migrant Workers Union, trabalha em Macau há 14 anos e afirma estar a preparar um grupo de medidas reivindicativas, tal como aumentos salariais e de subsídio de alojamento [dropcap style≠‘circle’]F[/dropcap]oi uma das primeiras porta-vozes das trabalhadoras não residentes a ter um encontro oficial com o Governo. Depois desse encontro o secretário decidiu mudar a proposta inicial relativa às taxas de partos para as empregadas domésticas. Foi uma boa decisão da parte do Executivo? Na verdade continua a não ser justo, porque as empregadas domésticas são as que recebem os salários mais baixos, que variam entre as três e quatro mil patacas. A quantia é ainda elevada para elas e não está adequada ao seu nível salarial. Ainda assim, acho que é uma boa decisão, uma vez que há 20 anos que não há aumentos nas taxas dos partos. Pretende criar um movimento mais forte para a protecção dos direitos das empregadas domésticas e ser a voz deste sector da sociedade? Há muito tempo que temos esse plano e uma série de propostas para apresentar ao Governo, como os aumentos salariais e a implementação de um salário, porque Macau ainda não tem um salário mínimo universal. Há também a questão dos contratos de trabalho que não estão uniformizados, então muitas vezes são traduzidos pelas agências de emprego ou nem sequer são seguidos. Sei que fazem o contrato com a empregada, mas esta nunca o vê. Não têm acesso aos contratos? Não, não têm sequer acesso a uma cópia, a maioria delas. O contrato é automaticamente renovado e as empregadas continuam a não ter acesso a uma cópia. O patrão tem também de pagar 500 patacas para despesas de alojamento, mas esse valor já está em vigor há muitos anos e não houve qualquer aumento. 500 patacas é metade do valor que se paga por um espaço num beliche nesta altura, que custa mil patacas. Nem sequer inclui as restantes despesas da casa. Já temos isto planeado há muito tempo, mas tenho apenas três outras associações a trabalhar comigo nestas propostas. Tem alguma ideia de quando poderão apresentar estas propostas ao Governo de forma unificada? Talvez este ano. Relativamente aos aumentos salariais, vocês pedem que haja um aumento das 2500 para 5000 patacas. Contudo, é ainda um valor baixo, tendo em conta a média salarial de Macau. Porquê propor um valor tão baixo? Achamos que se propusermos um valor mais elevado não vai ser aceite. Procuramos um aumento ligeiro, porque muitas das empregadas domésticas vivem na casa dos patrões. Este aumento iria ajudar as empregadas domésticas que vivem fora das casas dos patrões e que têm de pagar a sua casa e comprar comida. Para elas, cinco mil patacas seria suficiente. Sei que algumas associações propuseram quatro mil patacas de salário na última consulta pública sobre a implementação do salário mínimo, mas continua a não ser suficiente. Acredita que o Governo pode mudar a sua atitude, e também os deputados, em relação aos TNR? Seria melhor uma mudança, de facto. Quando realizam consultas públicas nunca consultam as associações que representam a comunidade filipina, por exemplo, apenas as associações ligadas à comunidade indonésia. Simplesmente não fomos consultados. Penso que não há muita justiça na forma como realizam as consultas públicas, deveriam ser mais abertas ao público. Disse-me que muitas empregadas domésticas não têm uma cópia dos seus contratos. Tem conhecimento de outras ilegalidades comuns e que são mais urgentes em termos de resolução? Nos casos em que os patrões pedem às empregadas domésticas para renovar os contratos, e quando estas não concordam com algumas cláusulas, correm o risco de não ver o seu contrato renovado. Se o patrão alegar despedimento por justa causa elas têm de deixar o território. Tendo em conta as agências de emprego, há também situações ilegais, em que estas retêm os passaportes das empregadas. Acredita que a nova lei pode resolver esta situação? É ilegal reter os passaportes das empregadas domésticas, porque é um documento pessoal delas. Falei com os responsáveis de uma agência e eles justificam a retenção do passaporte para evitar deslocarem-se a casa da empregada para tratar das questões burocráticas. Mas esse argumento não é aceitável. Há casos de empregadas que, ao fim de três meses, não conseguem sair porque não têm documentos. Se a empregada começa a trabalhar através de uma agência, muitas vezes já tem todas as cauções pagas e não conseguem reaver o montante que sobra. Macau continua a ser um território atractivo para os TNR, ou começam a olhar para outras possibilidades? Continua a ser um lugar atractivo porque é fácil conseguir trabalho aqui. Há muitas categorias abertas a todas as nacionalidades. Em Hong Kong, por exemplo, só nos podemos candidatar aos empregos domésticos, e não é permitido procurar trabalho como turista. Aqui também é ilegal, mas essa prática continua a ser comum. Isso pode findar com a nova lei das agências de emprego? Acredita que o Governo pode mesmo acabar com essa prática ilegal? É uma possibilidade, mas a maioria das empresas como, por exemplo, os hotéis têm vindo a manter as práticas de recrutamento. É fácil então chegar para visitar Macau, ou alguns familiares, trazer o currículo e apresentar candidaturas a empresas. Sim. Em Hong Kong tem havido um longo debate sobre os direitos das empregadas domésticas. A situação em Macau é melhor? Em Hong Kong é melhor no que diz respeito à protecção dos direitos humanos, porque há sindicatos. Aqui os sindicatos não são permitidos, não há sequer uma lei sindical. Em Hong Kong podem falar mais abertamente dos seus direitos junto do Governo, sobretudo junto do departamento laboral. O Governo parece já ter implementado algumas regras, mas há ainda muitas empregadas a serem abusadas pelos patrões, e é difícil o Governo ter controlo sobre todas as situações. Tem conhecimento de casos de violência em Macau? Até agora, não ouvi nenhum. Sei de algumas situações de empregadas agredidas ou que não têm acesso à quantidade de comida que está estabelecida no contrato. Elas têm o seu salário e usam-no para comer. É uma situação ilegal, porque cabe ao empregador financiar as despesas de alimentação, sobretudo se a empregada viver com os patrões. Acha que com a aprovação de uma lei sindical as condições poderiam melhorar? Sim, mas é difícil porque há muito tempo que se discute a criação de uma lei sindical. Nota uma grande diferença na sociedade em termos de aceitação de outras comunidades? Sente que há segregação? Sim, noto alguma, sobretudo na hora de fazer as leis e proteger os direitos dos residentes e não residentes. Só o facto de sermos os não residentes já é algo discriminatório e há muito tempo que essa questão está por resolver. Há um discurso político contra os TNR, que tem vindo a ser mais notório depois da transferência de soberania. Este discurso é negativo para Macau? Não tenho grandes comentários a fazer quanto a esse discurso político, porque não assisto aos debates, mas sei que há muito tempo que existe essa questão. Mas não noto muita diferença. Por exemplo, quando vim para Macau o valor pelo alojamento já era de 500 patacas, e isso foi há 14 anos. Na área da saúde, e tendo em conta o aumento das taxas de partos, é difícil o acesso a cuidados médicos no território para os TNR? No meu caso, quando vou ao médico o meu patrão paga-me as despesas, mas sei de muitos casos que não é assim. É muito difícil e mesmo no hospital público temos de pagar muito. Eu nunca tentei. Os internamentos são muito caros. Conheço o caso de uma senhora que ficou internada uma semana e a conta atingiu as 30 mil patacas, no hospital público. Ela pediu ajuda a uma assistente social para poder pagar esse montante em prestações, e está à espera de resposta ainda. Conheço também um homem que tem uma conta de 200 mil patacas, e que já está nas Filipinas, mas que tem aqui duas irmãs. Neste momento a Caritas dá-nos alguma ajuda, mas não temos acesso ao Banco Alimentar, por exemplo. Só através das associações é que fazemos acções de recolha de fundos em associações ou lojas filipinas, por exemplo, para ajudar os casos mais complicados. Os consulados deveriam ter um papel mais interventivo em casos sociais? No caso deste homem filipino de que falei, a família pediu ajuda mas só receberam algum dinheiro para apanhar um táxi, quando ele precisava de uma ambulância para sair. Foi a única ajuda que o consulado deu a esta família. Não sei porque é que não dão mais apoio, o consulado não dá atenção a muitas situações sociais que acontecem.
Diana do Mar Entrevista MancheteHélder Beja, director de programação do Rota das Letras: “Foi aberto um precedente” Sete anos depois, o director de programação do Rota das Letras vai deixar o projecto que ajudou a criar e a colocar no calendário cultural de Macau. Embora reconheça que os eventos que culminaram no cancelamento da vinda de três escritores deixaram “uma marca indelével”, Hélder Beja considera que o Festival Literário é importante e pode ter continuidade desde que as regras do jogo sejam claras. Na calha, tem ideias novas, também à volta dos livros, e a expectativa de que passem por Macau, um espaço que espera que continue a ser “de relativa liberdade” O Festival Literário de Macau – Rota das Letras termina no domingo. Qual é o balanço da sétima edição? Foi uma boa edição, embora relativamente diferente das anteriores, obviamente por tudo o que aconteceu antes do arranque. Julgo que, de alguma forma, marcou esta edição. Era impossível que fosse de outra maneira, mas penso que as coisas também foram voltando à normalidade com o passar dos dias. Acabámos por ter excelentes sessões, óptimos autores, muito bons moderadores. Houve um cuidado especial com isso e também um esforço para ter transmissões online com qualidade, pelo que o impacto das sessões acabou até por ser maior, em alguns casos, do que em anos anteriores. Das inúmeras sessões do Rota das Letras, que começou a 10 de Março, destaca alguma em particular? Uma das revelações – acho que para toda a gente que pôde assistir – foi Li-Young Lee, poeta nascido na Indonésia de ascendência chinesa. É um homem que tem uma ligação histórica à China através do bisavô, [Yuan Shikai], que foi o primeiro Presidente republicano da China após o governo provisório de Sun Yat-sen, e do pai, que trabalhou para Mao Tsé-Tung. Ele vive há muitíssimos anos nos Estados Unidos e, apesar de ser muito americano, tem também qualquer coisa de ancestral no sentido de buscar dentro dele próprio as coisas mais essenciais da vida. Isso nota-se na forma como escreve, como lê a sua poesia e como comunica com as pessoas. Foi uma grande surpresa. Por outro lado, como estava à espera, foi um prazer ter Peter Hessler e Leslie Chang até porque eram desejos antigos do festival. Foi uma grande partilha sobre a China, sobre o Médio Oriente e norte de África, com a questão da Primavera Árabe. Outra boa surpresa foram os autores do Sudeste Asiático: o Miguel Syjuco e o Prabda Yoon. Foi muito bom, de facto, trazer autores com qualidade de países sobre os quais sabemos muito pouco do ponto de vista literário e perceber que há vozes muito interessantes – no caso do Prabda – e muito interventivas – no caso do Miguel. Na véspera do arranque do Rota das Letras anunciou a demissão do cargo de director de programação, com efeitos a partir de segunda-feira, na sequência dos eventos que culminaram no cancelamento da vinda de três escritores por não estar garantida a sua entrada. Reconsiderar é uma hipótese? Não. Esta decisão foi pensada e ponderada e também significa o fechar de um ciclo para mim. São sete anos. Estive na fundação do festival como o Ricardo [Pinto] e julgo que conseguimos construir um projecto muito bonito, muito singular e, diria até, inédito no panorama cultural em Macau, com grande esforço sempre, por parte de todos, claro. Foi também esse acumular que me fez tomar esta decisão e, a juntar a isso, a minha vida pessoal também diz que é o momento de fechar esse ciclo e de pensar em novos projectos e em novos desafios. Saio de consciência tranquila, porque sempre dei o melhor e tenho prazer em ter contribuído, o melhor que pude, e a grande custo às vezes, para deixar uma marca positiva na cena literária de Macau. Mas o fechar desse ciclo foi precipitado pelo que aconteceu… Completamente. A razão central foi o que aconteceu antes do festival começar que já foi, entretanto, mais clarificada do que estava quando anunciei a minha demissão. Não poderia ser eu a libertar toda a informação, porque a recebi em segunda mão e, portanto, não me cabia a mim indicar a fonte. Felizmente, essa clarificação aconteceu. É algo que prezo e sinto-me melhor com esta situação neste momento porque pelo menos chamámos as coisas pelos nomes. Esta foi uma situação sem precedentes no Rota das Letras, fundado em 2012. É a morte do Festival Literário de Macau? Pode a continuidade do festival implicar, por exemplo, sujeitar uma lista de autores convidados a aprovação prévia? Eu nunca estaria disponível para fazer um festival em que fosse preciso, ou necessário, enviar uma lista de autores para aprovação. Não me parece também que seja essa a vontade dos que estiveram envolvidos até hoje, como o Ricardo Pinto ou o Yao Feng. Na minha opinião – e posso estar errado – não me parece que ninguém queira isso. Aconteceu desta vez este caso e, obviamente, pode repetir-se no futuro, porque foi aberto um precedente. No entanto, julgo que continua a ser possível fazer o festival, mas é preciso perceber com que liberdade e quais as regras do jogo. Também temos de ser realistas e perceber o sítio em que vivemos e que nem tudo é possível numa Região Administrativa Especial da China. A própria história do festival sinaliza que aparentemente já foi… Sim. Mas, de facto, agora há a sensação de que nem tudo é. Tudo depende se estamos dispostos a aceitar, ou não, essa premissa e como é que vamos reagir quando acontecer alguma coisa – porque essa é uma questão fundamental de toda esta história. A reacção é quase tão importante como o acto anterior. Portanto, desde que esteja bem ciente na cabeça de quem possa eventualmente continuar o projecto o que é que está disposto a aceitar e como irá reagir se algo do género voltar a acontecer, parece-me possível continuar a fazer um festival literário. Mas o festival pode vir a ter espartilhos… É claro que o que aconteceu deixa uma marca indelével, mas também acho que o festival é muito importante. Entre o festival não trazer nada à cidade, ou trazer tudo aquilo que seja possível, acho que é mais importante trazer tudo aquilo que seja possível. Este ano aconteceu isto – é muito grave – mas o programa foi riquíssimo na mesma. Em causa está uma questão de princípio e essa, sim, é problemática. Como foi transmitida a mensagem aos autores convidados de que a sua entrada não estaria garantida? Como foi recebida? Foi-lhes comunicado exactamente o que foi dito na esfera pública, de que tínhamos sido informados oficiosamente da elevada probabilidade de não poderem entrar em Macau. Discutimos com eles e, juntos, decidimos que era melhor as viagens não acontecerem. Eles perceberam, de um modo geral, a mensagem e o que estava em causa. O Festival Literário chegou a indagar por que razão era inoportuna a vinda daqueles três escritores em particular? No passado, chegaram a ter outros autores com livros banidos na China, por exemplo… Pensei muito sobre isso, mas são tudo especulações. As ideias que eu tenho não são importantes agora. Como não participei nas conversas, não percebo qual foi o raciocínio do lado de lá. Obviamente, importa dizer que não me parece que nenhum deles devesse ser alguma vez impedido de vir a Macau, e também relembrar que a Jung Chang esteve no Festival Literário de Hong Kong há pouquíssimo tempo. Isto é muito importante, porque estamos a falar das duas regiões administrativas especiais e houve aqui uma clara diferença. Esperava algum tipo de reacção, por parte do Governo, de Macau ou até de Portugal, ou da comunidade, por exemplo, dado que estamos perante um caso que vai muito além do próprio festival? Penso que estamos a falar de estruturas muito intricadas e é sempre muito difícil perceber como é que estas estruturas reagem a coisas que acontecem e que depois passam para a esfera pública. Claro que teria sido reconfortante que alguém tivesse falado verdadeiramente sobre este caso, mas isso não aconteceu. Acho que também são as formas de gerir os processos que existem aqui (…) e, portanto, vai ficar tudo como está. Não me surpreendeu por aí além, mas não é fácil também lidar com essa situação, claro. Uma das componentes mais importantes do Festival Literário é o Rota das Escolas, uma iniciativa que tem contado com a coordenação da Direcção dos Serviços de Educação e Juventude (DSEJ). Este ano, porém, o organismo decidiu não participar para “evitar afectar as actividades regulares de ensino nas escolas” devido ao período de exames, isto quando o Rota das Letras tem habitualmente lugar em Março. Esta edição foi penalizada de algum modo por isso? Poderia ter sido mas, felizmente, acho que não foi, porque fizemos um esforço tremendo para manter o nível e conseguimos levar os autores a muitas escolas e a muitos jovens leitores. Amanhã [hoje] vamos à Escola Hou Kong, com a autora Maria Inês Almeida e também à Pui Ching com duas escritoras de literatura infantil de Hong Kong, ou seja, a duas das principais escolas chinesas. Nas escolas, talvez o número de sessões tenha diminuído ligeiramente, mas não muito. Claro que não deixou de ser surpreendente uma colaboração de tantos anos ter sido interrompida deste modo, mas não é de todo apenas uma desculpa, porque durante a abordagem individual também houve escolas que nos deram esse argumento. Em contrapartida, reforçámos – e de que maneira – as sessões em universidades e, se juntarmos, num pacote, todas as sessões, na verdade, tivemos mais do que em anos anteriores. Falaste em novos projectos, novos desafios. Passam por Macau? Espero que sim, não consigo ainda adiantar muito, mas tenho ideias e quero fazer coisas novas, espero que muitas delas passem por Macau. A minha decisão não é um adeus nem um virar de costas a Macau – de todo. A decisão foi ponderada e difícil, mas acho que também sensata e acertada. Espero poder olhar para trás e perceber que fiz a coisa certa. Acho que Macau é um sítio onde ainda é possível fazer coisas. Espero que continue a ser um espaço de relativa liberdade, porque está obviamente e cada vez mais sob alçada da República Popular da China e sabemos quais são as questões de liberdade que se colocam nesse panorama. Mas, sendo Macau um sítio que eu acredito que pode continuar a ser de relativa liberdade, quero continuar a fazer coisas aqui. Também à volta dos livros? Sim, porque, acima de tudo, são a minha vida. Portanto, acho que, de alguma forma, passarão sempre por outros projectos que possa vir a fazer, em Macau ou noutros sítios. Se esses projectos forem em Macau não receias que suceda o mesmo que te levou a decidir deixar o Rota das Letras? Estamos sempre sujeitos àquilo que possa acontecer mas, desde que tenhamos os nossos princípios bem fundamentados, julgo que não devemos desistir. Tanto as pessoas, como a história de Macau, merecem esse esforço e essa continuidade. Não acho que devemos todos desistir de fazer coisas por causa de um episódio mau. Não quero desistir de fazer projectos interessantes em Macau.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteRui Tavares, sobre período pós-Brexit: “Nesse cenário deveríamos prestar mais atenção a Macau” O historiador e político acredita que Macau tem muito a ganhar quando for oficializada a saída do Reino Unido da União Europeia. Rui Tavares defende ainda que o projecto europeu deve continuar a lutar contra a fuga de capitais para offshores, que todos os anos representa perdas de um bilião de euros FOTO: Eduardo Martins / Rota das Letras [dropcap]H[/dropcap]á pouco defendeu que o projecto europeu tem de se democratizar mais, mas continua a acreditar nele. Não é muito popular nesta fase ser pró-europeu [referindo-se à posição que o partido que fundou, o LIVRE, assume]. O que paga mais neste momento é inventar razões para deitar fora o projecto europeu, e seria um erro enorme abandoná-lo. Quando olhamos para o resto do mundo ainda ficamos mais convictos de que o projecto europeu tem defeitos, que há boas razões para muita gente estar frustrada e insatisfeita com ele, mas a atitude correcta a ter é refundar o projecto europeu e democratizá-lo, legitimá-lo mais junto dos cidadãos, e dotá-lo de instrumentos, através dos recursos próprios da UE, que permitam à UE ser mais forte nos tempos que aí vêm. Há que proteger mais os seus cidadãos, investir mais no futuro, nas universidades, na juventude, no combate à fuga de cérebros. Seria um erro estratégico crasso, neste cenário de que já falamos, com Trump de um lado, Putin do outro, Erdogan às portas da Europa, a China numa trajectória ambivalente, porque em alguns aspectos, nos últimos dois anos, a China tem-se tornado numa aliada valiosa da UE. Em que áreas? Pelo menos em duas coisas importantes: o combate às alterações climáticas e a luta pela preservação do sistema internacional à volta da ONU. É importante para a UE ter relações com todas estas partes do mundo e tê-las com elementos pragmáticos. Mas enfraquecermo-nos a nós mesmos, numa altura em que o mundo está a ficar multipolar e concentrado em homens fortes…seria um erro não contarmos com um projecto mais plural, que não deve ser imperialista e hegemónico, mas deve preservar numa parte do mundo o que eu chamo um patriotismo dos direitos humanos e um referencial para quem defende a democracia e os direitos humanos. Relativamente à era pós-Brexit, qual deve ser o papel de Macau nesta matéria? Se [o território] vai tirar partido, ou não, não sei, depende da maneira como souber gerir essa nova fase. Nitidamente é uma coisa que vai mudar uma espécie de paridade política que, de certa forma, existe, apesar da diferença de dimensões entre Macau e Hong Kong. Os embaixadores de Hong Kong no Parlamento Europeu e no Conselho vão deixar de existir, porque eram os representantes britânicos. O Reino Unido também vai perder peso dentro do Conselho de Segurança da ONU, porque há sempre quatro ou cinco países que são da UE. Portugal e Macau não perdem isso. Portugal e Macau, e dentro de Macau a comunidade portuguesa, passam a ter um papel de representante da UE nesta parte do mundo, um papel mais singular, e que só teria a ganhar em ser reforçado com a sua correspondência de representação junto de instituições europeias. Há muito caminho a fazer e acho que num cenário pós-Brexit deveríamos prestar mais atenção a Macau, pois pode representar um sítio privilegiado de uma relação com a UE, único após-Brexit de uma relação diferenciada com a UE, e na própria UE prestar-se também muita atenção a Macau como plataforma, que já o é, para a lusofonia. O Governo de Macau também tem muito para fazer. Há muitas cidades e regiões que têm uma representação junto da UE, e isso faz sentido. A inclusão de Macau na lista negra de paraísos fiscais gerou alguma polémica [o território já foi retirado]. Houve um erro que gerou tensão com a China? Acho que a UE deve trabalhar cada vez mais para garantir que os sistemas fiscais funcionam, que os Estados não ficam sem recursos e que o dinheiro que faz falta aos nossos hospitais e escolas não nos foge entre os dedos. E isso também é importante para os países terceiros, com um sistema fiscal mais justo que beneficia toda a gente. Há espaço para acordos internacionais à escala global que permitam fazer uma redistribuição de recursos. Acho natural que outros Estados possam ter algo a dizer em relação às listas que são elaboradas sobre legislações opacas. Devemos preparar-nos para uma maior actividade interna e externa da UE relativamente à evasão fiscal, sobretudo depois dos Panama Papers. Perde-se, na UE, todos os anos, um bilião de euros. Isto é tanto dinheiro que é mais do que todo o orçamento da UE para sete anos. Se recuperássemos uma fracção do que se perde, isso iria significar a resolução de problemas ligados ao endividamento externo e uma segurança maior para os cidadãos em termos do Estado social. continue a ler a entrevista a Rui Tavares
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteRui Tavares, historiador e político, sobre Macau: “Até 2049, Portugal tem responsabilidades” Historiador, político, ex-deputado europeu, Rui Tavares teme que as alterações à Constituição chinesa possam “vir a fazer escola” no mundo. Sobre Macau, o convidado do festival Rota das Letras lamenta que não haja um maior acompanhamento da parte da Assembleia da República e que Portugal ainda tem “obrigações morais e políticas importantes, enquanto garantia da autonomia de Macau dentro do Direito Internacional” [dropcap]H[/dropcap]Há muitas vozes que dizem que a alteração à constituição chinesa é um retrocesso relativamente à revisão da constituição feita por Deng Xiaoping na década de 80. Concorda? Concordo que há um retrocesso, que aliás é global. Estamos a assistir a um endurecimento dos regimes no mundo, e aqueles, como na União Europeia (UE), que não o estão a fazer, têm dentro de si regimes que têm estado a endurecer, como os EUA, Turquia, Rússia, Brasil. Há uma série de fenómenos muito preocupantes. E a China foi, de certa forma, mexer num processo que tem sido vantajoso para a China, e isso pode ser problemático para o país. O processo que, apesar de não ter correspondido a uma abertura generalizada, permitiu uma rotação de quadros políticos no topo da hierarquia chinesa, foi muito benéfico para a China nas últimas décadas. Substitui-lo por um processo em que o mesmo líder político pode ficar [no poder] indefinidamente não só pode ser problemático como coloca a seguinte questão: qual é o problema para que esta decisão propõe ser a solução? Ou seja, qual era exactamente o problema que a China tinha que necessitava de ser resolvido através de uma emenda constitucional como esta? Não se vê nenhum. É uma questão de ideologia? É uma questão de concentração de poder. Os Executivos têm uma propensão para concentrar poder que, normalmente, só é contida pelas constituições ou pela força da sociedade civil. Em casos que estudei, como o da Hungria, faltaram esses dois elementos, pois o poder podia mudar a Constituição e a sociedade civil não foi suficientemente forte para o conter. Depois do poder ter a concentração de autoridade que pretende, em geral, não a larga. Na Hungria não largaram. No último congresso do Partido Comunista Chinês (PCC) foi afirmado que estamos numa nova era para o socialismo com características chinesas. Que socialismo é este? O que vem aí em termos de ideologia política? Parece-me claro que há a assunção oficial de uma doutrina, segundo a qual a grande diferença que interessa não é entre autocracias e democracias, é entre a boa e má governança, e que é muito conveniente para as autoridades chinesas. Esta destina-se a minimizar a importância da existência de liberdades cívico-políticas e da capacidade de escolha, e a maximizar aquilo a que os cientistas políticos chamam de “output legitimacy”. Ou seja, o regime é legítimo quando produz, de acordo com esta doutrina, que me parece errada, consequências desejáveis para a população. Se a economia está a crescer, se há emprego, estabilidade e segurança nas ruas, o regime é legítimo. Eu não vou negar que todas estas coisas são importantes, mas os regimes não podem utilizar essa legitimidade dos resultados como forma para ter uma legitimidade dos resultados, como se fosse desculpa para desconsiderar a legitimidade dos processos, nomeadamente os processos democráticos. O que é preocupante não é só para a China, mas também para o resto do mundo. Que exemplos pode referir? O regime da RPC, ao contrário da Rússia, é um regime desejável do ponto de vista em que há muitos outros países que desejam ser como a China, ter o seu tipo de performance. Ao passo que, quando se olha para a Rússia, tem uma posição mais retórica, com traços de uma paranóia geopolítica, o que faz com que gere as suas próprias resistências. O modelo chinês é mais exportável. Esta ideia de dizer que esta distinção entre autocracia e democracia não importa, porque o que importa é se produz boa ou má governança, é uma ideia perigosa porque é sedutora para muitos governos, incluindo no Ocidente. Não é um discurso assim tão diferente do que têm alguns burocratas da UE, que dizem que a UE não tem de ser mais democrática, porque o que é preciso é crescer mais e produzir mais emprego. Ninguém nega isso, mas é evidente que a falta de democracia na UE nos levou a onde estamos hoje. No mundo em que olhamos para os grandes blocos, e grande parte deles são liderados por regimes que estão em vias de se tornar mais autoritários, se a UE, se quer legitimar mais junto dos seus cidadãos e manter a sua credibilidade para o resto do mundo, tem de se democratizar. O que mais me preocupa é que parece que essa doutrina [da China] vai fazer escola. Uma notícia apontava mesmo para o facto de muitos países africanos estarem a ponderar alterar as suas constituições para reforçar o poder presidencial e até Donald Trump fez elogios a Xi Jinping. Vêm aí tempos perigosos e de alguma inquietação? Vêm. Temos uma situação muito ambivalente: existem ferramentas, acesso à informação, tecnologia e níveis educacionais altos que nos permitiriam gerir os nossos Estado-nações e organizações de forma mais democrática, dando mais respostas aos anseios das populações, mas não há como negar que este combate vai ser difícil nos próximos anos. Numas partes do mundo será mais arriscado do que noutras. O que é importante é que a sociedade civil à escala global seja capaz de criar redes de solidariedade que transcendam as fronteiras do Estado-Nação. Preocupar-se mais com o que está a acontecer na China e também em Macau e Hong Kong. Estarmos mais preparados para ajudar os nossos co-cidadãos de outras partes do mundo, porque os próximos anos vão ser difíceis e precisamos de deter a regressão no Estado de Direito e na democracia noutras partes do mundo, porque regressa sempre às zonas do mundo onde estamos. A sociedade civil portuguesa pode achar que não tem importância o que se está a passar do outro lado do mundo, mas tem, e isso acaba por reverter para Portugal. No caso específico de Macau, Portugal tem obrigações morais e políticas importantes enquanto garante da autonomia de Macau dentro do Direito Internacional. Em relação a esse ponto, Hong Kong tem um movimento independentista que não se verifica em Macau. O Reino Unido tem opinado muito sobre a questão de Hong Kong, mas Portugal tem evitado fazer comentários. À luz dessas obrigações de que fala, considera que o país deveria ter uma posição mais forte relativamente a Macau? Portugal deve ter uma posição mais atenta e mais activa. O Ministério dos Negócios Estrangeiros ou o Governo podem agir de forma mais discreta, e às vezes nem sempre pública. Mas acho que o devem fazer. A Assembleia da República (AR) tem a obrigação de agir de uma forma mais política e mais pública. É pena que não haja um acompanhamento regular da situação de Macau, com uma comissão parlamentar que reúna regularmente, que produza relatórios anuais. É uma pena também que os parlamentares portugueses no Parlamento Europeu não façam em relação a Macau aquilo que eu e a Ana Gomes fizemos em relação a Timor, de servirem de quase embaixadores de Macau junto do Parlamento Europeu. De facto, a comunidade política portuguesa não tem estado tão atenta quanto as obrigações morais e cívicas de Portugal em relação a Macau justificariam. São obrigações que estão plasmadas em instrumentos bilaterais de Direito Internacional, como é o caso da Declaração Conjunta. No caso específico de Macau, não estamos a falar de ingerência, de interferência nos assuntos internos da China, desde que nos mantenhamos nos limites que Portugal sempre soube respeitar. Só se olha para a questão económica e esquecem-se as questões sobre os direitos, liberdades e garantias, e o sistema político? Acho natural que o Governo português tenha uma visão marcada por um certo pragmatismo em relação ao que são os interesses económicos do investimento directo chinês em Portugal e do papel que empresas portuguesas possam ter no mercado chinês. Mas é importante que a AR não se sinta limitada por esse papel. O Parlamento deve ter capacidade de ter uma posição política, de acompanhar e recolher factos acerca da situação dos direitos, liberdades e garantias em Macau, onde vive uma comunidade portuguesa muito grande e diversa. Se há coisa que retiro das minhas conversas com portugueses em Macau é que estes têm vontade que esta informação passe para Portugal, de que estão atentos, preocupados também, e que gostariam que houvesse de Portugal uma atenção em relação à questão de Macau nos próximos tempos, para que o desenvolvimento harmónico desta sociedade, da sua autonomia e das suas liberdades, seja garantido. Até 2049, Portugal tem as suas responsabilidades e deve cumpri-las. Mas isso não passa pela política do megafone, passa por fazer perguntas. De cada vez que haja uma questão que possa pôr em causa a garantia dos direitos e liberdades, deve perguntar-se o que se passou. Passa também por ouvir mais a sociedade civil de Macau, com mais fóruns em que esse esforço seja feito. Esse papel deve ser feito pela nossa diplomacia, de uma forma mais discreta, mas também pela nossa AR. O Gabinete de Ligação teme que haja influências do movimento independentista de Hong Kong em Macau. Acredita que essa influência possa, de facto, acontecer? O movimento independentista de Hong Kong acaba, muitas vezes, por ser usado como uma forma de condicionar o movimento democrático. Não me queria pronunciar sobre as veleidades independentistas, porque está para lá de um limite que é preciso respeitar em relação à soberania e integridade territorial da China. Hong Kong e Macau pertencem à China. Acho natural que os movimentos, pela representação política, pelo pluralismo, se reforcem mutuamente de um sítio para o outro, na medida em que isso for a demonstração de um anseio político que cabe dentro da Lei Básica e dentro dos pressupostos da Declaração Conjunta. Ninguém deve declarar-se preocupado ou ameaçado pelo facto de as sociedades quererem viver de acordo com os compromissos que os Estados tiveram perante elas. E que acreditam que, até 2049, serão cumpridos. continue a ler a entrevista a Rui Tavares
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteVictor Mallet, escritor e editor do jornal Financial Times: Macau e HK “estão sob enorme pressão de Pequim” Há 30 anos que é repórter neste continente e há dez que vive em Hong Kong, onde edita a secção Ásia do jornal económico Financial Times. Convidado do festival literário Rota das Letras, Victor Mallet lamenta o aviso que levou ao cancelamento da vinda de três autores chineses e diz que nem Macau nem Hong Kong “têm feito um bom trabalho na preservação da sua autonomia” Deu um workshop intitulado “Cobrindo as notícias na Ásia e à volta do mundo”. Quais os principais desafios sentidos pelos repórteres na Ásia? Uma das coisas é o facto de se ter tornado muito difícil ser jornalista em muitos países, porque os Governos têm mais dificuldade em aceitar uma imprensa livre. Tem vindo a tornar-se cada vez mais um problema face ao que era habitual. O espaço normal para a operacionalização dos jornalistas, sobretudo se reportarem sobre política, ou questões controversas, tornou-se mais curto do que o normal. Há dez anos que vivo em Hong Kong e a situação está cada vez mais difícil. Não apenas na China, mas também em outros países, como o Cambodja, e até em países democráticos já não é tão fácil ser um repórter como era antes. Um dos problemas é que os jornalistas têm de enfrentar um difícil estatuto definido pelos Governos. Se és um empresário é fácil entrares num país para fazeres os teus negócios, mas se és jornalista é difícil entrares para fazeres o teu trabalho. Isso é uma vergonha e uma reflexão do aumento da repressão nesta região. Pode ser mais específico em relação às pressões que sente como repórter em Hong Kong? A razão pela qual estamos em Hong Kong é por ser um lugar onde ainda podemos exercer a nossa liberdade de expressão. Estando num órgão de comunicação internacional [jornal Finantial Times], sei que é cada vez mais difícil para os jornalistas locais fazerem isso, devido às pressões de Pequim. Temos visto que Pequim aumentou a sua influência na sociedade e no sistema político de Hong Kong nos últimos dez anos, e foi um aumento drástico. Os canais para a liberdade de expressão, ao nível do jornalismo e edição de livros, são menores, sobretudo desde o rapto dos livreiros. Os media não são robustos como costumavam ser, sobretudo os media chineses online e impressos. Em Hong Kong, o jornal South China Morning Post (SCMP) é um dos mais importantes diários de língua inglesa. Nota diferenças importantes, ao nível dos conteúdos editoriais, desde a sua compra pelo empresário Jack Ma [CEO da Alibaba]? Não tenho feito uma análise à cobertura que é feita pelo jornal, mas claramente conseguimos perceber uma diferença. Tornou-se um jornal mais próximo de Pequim e antes era muito mais independente. Acredito que Jack Ma não tentou influenciar a linha editorial do jornal, mas a cobertura é menos crítica face a Pequim do que costumava ser, e com menos qualidade, no sentido em que não reflecte a diversidade de opiniões que existe em Hong Kong. Ontem [quarta-feira da semana passada] vi um artigo sobre a Assembleia Popular Nacional (APN) , que dizia aquilo que as pessoas de Hong Kong deveriam fazer, e parecia um artigo padrão da APN sobre aquilo que devem pensar e fazer. É o ponto de vista da pessoa que escreveu o artigo, mas não houve uma tentativa de encontrar outros pontos de vista que pudessem discordar desta visão. Simplesmente reportaram o que as autoridades chinesas disseram e não pediram reacções de alguém em Hong Kong. Isso não é aquilo que o bom jornalismo deveria ser. O SCMP não está a reflectir as visões de todos os lados. No caso de Macau, conhece eventuais casos de pressões sentidas por parte da imprensa chinesa? Não estou muito familiarizado com os media de Macau ou com o sistema político. Mas tive conhecimento de que alguns convidados não vieram ao festival Rota das Letras pelo facto de ter sido sugerido de que a sua entrada não seria permitida em Macau pelas autoridades, porque a sua presença foi considerada hostil em relação à China, e isso é vergonhoso. Jung Chang, uma das autoras envolvidas, é uma das mais importantes a escrever sobre a China actualmente e é incrível como não pôde vir a Macau falar com os seus leitores, e acredito que há muitos em Macau, tal como em Hong Kong. Penso que Macau seja mais restritivo em relação a estas questões por comparação a Hong Kong. Se Jung Chang fosse convidada teria vindo a Hong Kong [a autora participou no último festival literário da região vizinha]. Mas se ela não pode entrar em Macau, isso sugere que há aqui mais restrições em relação à liberdade de expressão do que há em Hong Kong. Macau é o bom filho da China e Hong Kong o filho mau ou rebelde? Não colocaria as coisas assim de uma forma simplista, porque Hong Kong tem uma grande parte da população a ir de encontro ao que as autoridades querem e que é obediente, muito semelhante ao que se passa em Macau, talvez. Então não é simplesmente preto e branco. Ambos os territórios estão sob uma enorme pressão por parte de Pequim, e nenhum deles tem feito um bom trabalho na preservação da sua autonomia. Os movimentos pró-democracia dos dois territórios têm diferentes características, pois em Macau não existe a luta pela independência. Ainda assim, Macau tem vindo a receber sinais de Pequim, da existência do receio de que o território possa vir a ser contaminado por este movimento. Que comentário faz? Relativamente ao movimento independentista de Hong Kong, no ano passado, e comparado com os últimos dez anos, esse movimento fortaleceu-se, e há dez anos não existia, de todo. Então algo aconteceu nesse período para levar tantos jovens a não gostarem de Pequim e do seu próprio Governo e a quererem a independência, apesar de saberem que é algo completamente irrealista. Algo correu mal na maneira como Hong Kong geriu este processo e também na forma como Pequim geriu o dossier Hong Kong. A conclusão óbvia, para mim, é que Pequim estar a ter uma abordagem dura contra qualquer expressão de autonomia, simplesmente alienando essas acções. Isso são más notícias para as pessoas de Hong Kong, porque há aqui um claro conflito. São também más notícias para Pequim, porque significa que alienou muitas pessoas em Hong Kong. Sobre a mudança na constituição chinesa, que vai permitir o fim do limite de mandatos do presidente do país, que perspectivas coloca no futuro do país na relação que possui com outros países? Penso que a parte mais interessante é que, há dez anos, as pessoas que estavam fora da China pensavam que o país estava a reformar-se do ponto de vista económico e também político, no que diz respeito a uma maior abertura. Achava-se que o país poderia ser mais democrático ou com um sistema político mais representativo. Isso mudou com esta alteração da constituição, a mensagem é clara, apesar de termos vindo a notar alguns sinais. A mensagem foi reforçada: isso não vai acontecer, a China não vai tornar-se mais representativa e democrática. O poder vai acumular-se numa só pessoa e isso vai fazer com que as relações com os outros países estejam mais numa base de confronto. A China tem uma economia poderosa, e também como país, pois tem uma grande população e um grande exército e o resto do mundo tem de lidar com isso, com esse aumento do poder. Escreveu um livro sobre a poluição do rio Ganges, com o nome “River of Life, River of Death: The Ganges and India’s Future”, publicado o ano passado. Como surgiu esse projecto na sua vida? Estamos nos dois lados do Delta do Rio das Pérolas e todas as grandes civilizações nasceram nas margens dos rios. Isso aconteceu com Hong Kong, Macau, Xangai, Paris, Londres. Houve razões para isso, no sentido em que o rio trazia vida, fertilidade e comércio. O rio Ganges, considero, é um dos mais importantes no mundo, não apenas porque é um dos maiores no mundo mas porque há muita gente a depender dele. Há milhares de pessoas na Índia que dependem deste rio, na zona norte e no Bangladesh também. É uma área densamente povoada e o rio está a ser ameaçado por várias razões, e a poluição é uma delas, incluindo a poluição industrial. Há também a extracção de água para a agricultura, então há zonas que pura e simplesmente começaram a secar. Estes tipos de problemas acontecem com rios em todo o mundo, na China, Europa. Quando temos uma fase rápida de desenvolvimento económico, com um crescimento massivo da população na Índia, como aquele que observamos hoje em dia, os rios são, muitas vezes, destruídos com a poluição, desaparecem. O lado optimista disto é que os rios podem ser restaurados com o encerramento das fontes de poluição, e temos vários exemplos. Neste momento é um assunto sensível em todo o mundo, e temos um debate sobre a poluição do rio Nilo, no Egipto, por exemplo, ou os rios chineses, os cinco grandes rios da Ásia. Estou contente com o facto de ter conseguido escrever sobre este assunto. Espera que o seu livro possa mudar algo? Espero que sim. Uma das coisas extraordinárias é que o PM indiano tem vindo a colocar a poluição na sua agenda, e falou muito sobre a necessidade de melhorar a higiene e saneamento à volta do rio, porque todos os dias morrem muitas pessoas com doenças causadas por mau saneamento, mortes essas totalmente desnecessárias. Quando foi eleito pela primeira vez, em 2014, fez desse um grande tópico. O problema é que muitas coisas não foram feitas desde então, e essa é uma reflexão de uma inactividade deste Governo mas do quão difícil é, para qualquer Governo indiano, realizar coisas. Não foi o primeiro governante a falar da necessidade de limpar o rio Ganges.
Sofia Margarida Mota Entrevista MancheteWang Chunming, investigador: “A medicina chinesa é uma forma de entender o mundo” É um homem da ciência que usa a bioquímica na procura da magia das plantas. Para Wang Chunming, a medicina tradicional chinesa tem de se afirmar pela cientificidade e esse é o seu trabalho no Instituto de Ciências de Medicina Chinesa da Universidade de Macau. A par da vida no laboratório, o professor é um admirador da cultura portuguesa e está a aprender português [dropcap]D[/dropcap]o que falamos quando nos referimos a medicina tradicional chinesa? É preciso ter atenção às palavras. Medicina Tradicional Chinesa (MTC) e medicina chinesa não são exactamente a mesma coisa. O facto de termos a tradicional não é bom nem mau, mas sabemos que na actualidade tudo muda. Hoje em dia, usamos cada vez mais tecnologia para estudar e desenvolver a medicina chinesa. Podemos dizer, de certa forma, que o que fazemos se insere na área da MTC na medida em que integramos teorias e conhecimentos clássicos. Mas também usamos a tecnologia moderna, de ponta, e baseamo-nos nas abordagens científicas. Se me perguntar o que é especial nesta área, penso que a medicina chinesa é, acima de tudo, um dos tipos de medicina que existem. Por outro lado, tem sido usada ao longo de milhares de anos, não só na China mas em grande parte da Ásia e tem vindo a ser comprovada, em vários aspectos, como útil para ajudar na manutenção da saúde das pessoas numa perspectiva médica. Há ainda uma perspectiva cultural e económica em que a MTC tem muito a dizer. Culturalmente, a MTC vê o paciente de uma forma muito holística. Estudiosos de várias áreas procuram conhecimentos interdisciplinares para descobrir o mistério, a beleza, e se calhar também com algum mito à mistura. Mas não nos podemos esquecer que estes aspectos estão fortemente entranhados na cultura asiática, em particular na China. Sob uma perspectiva económica, sabemos que o Governo de Macau está a esforçar-se por diversificar a economia local apostando na indústria da medicina chinesa. Se olharmos em perspectiva para a China, podemos ver que têm sido criadas cada vez mais políticas e mais regulamentação com o objectivo de encorajar o desenvolvimento e a pesquisa no ramo da medicina chinesa de forma científica. Se olharmos para a região do Delta, e em concreto Macau, podemos ver que, economicamente, a medicina chinesa está a assumir um papel muito importante. Podemos então dizer que o que difere a MTC da MC é a tecnologia? E os princípios mantêm-se? Sim, os princípios a que se refere de carácter mais filosófico de como encarar o ser humano mantêm-se, mas penso que, neste momento, esse aspecto é apenas uma das partes da medicina chinesa. Hoje em dia falamos de ciência. A ciência é, de facto, a forma como vemos o mundo e como o entendemos, e neste sentido também incluímos os princípios e a codificação que fazemos dele. Mas o que é ciência e o que não é? Os académicos da área da filosofia debatem esta questão, é um tópico constante. A medicina chinesa é uma forma de entender o mundo e em particular a saúde, a vida e a morte. Isto faz-se também com o entendimento de cada parte do nosso corpo. De um ponto de vista mais antigo, uma forma de perceber o mundo, é entendendo o corpo. Mas há ciências que colidem umas com as outras. Sabemos agora mais acerca do funcionamento do nosso fígado, por exemplo, e isso acontece por causa dos avanços da ciência. Mas também sabemos que é necessário um equilíbrio. Por exemplo o conceito de Yin Yang vai nesse sentido, da necessidade e equilíbrio em diferentes aspectos da vida e do próprio universo. Podemos dizer que a medicina chinesa contribui e é parte da civilização humana na sua busca da compreensão do mundo. Podemos usar diferentes tipos de tecnologia e de conhecimentos científicos para tentar entender porque é que existe o Yin e o Yang. Não podemos dizer que concordamos ou discordamos destes conceitos antes de os compreendermos na sua totalidade e especificidade. Por isso, aqui tentamos entender, por exemplo, o que é que um determinado tipo de planta contem. Para isso, usamos a química e a bioquímica para entendermos porque é que essa planta e os seus componentes podem promover o crescimento ou, pelo contrário, matar células. Mas as posições muitas vezes são opostas ao encarar as medicinas ocidental e chinesa. Acho que neste campo há dois extremos que temos de evitar. Um deles é que tudo o que seja relacionado com a medicina chinesa é falso. Já sabemos que não é bem assim e que este tipo de conhecimento tem sido actualizado. O outro extremo é pensar que a medicina chinesa, que tem beneficiado o ser humano ao longo de muitos séculos, tem de ser um conhecimento que funciona por si só e rejeitar a contaminação do ocidente e das suas teorias. Estes dois extremos, em que podemos inserir a maior parte das pessoas, não são para ser tidos. Não concordo com nenhum deles. Penso que, como cientista, sendo a minha formação em bioquímica, posso dizer que nenhuma da minha preparação foi na área da medicina chinesa. Mas as minhas pesquisas acabaram por se cruzar, obviamente, com o estudo de produtos naturais e logo, com a medicina chinesa. Tento perceber como os produtos naturais funcionam e só depois tentar tirar conclusões em vez de andar nos extremos. Como disse a sua formação é bioquímica. Como é que foi realmente o caminho até à medicina chinesa? Foi um caminho muito natural. Além dos tratamentos conhecidos e utilizados pela MTC, como a acupunctura por exemplo, esta área trata essencialmente de plantas e a questão é como é que determinas que as plantas funcionam. As plantas são de facto um recurso fundamental da medicina, mesmo na medicina ocidental. Originalmente, a aspirina tem origem numa componente de uma árvore. Antes do comprimido estar completamente desenvolvido, não tínhamos muitos mais recursos do que a natureza. Muitas das moléculas da natureza têm componentes activos úteis na medicina incluindo, as plantas usadas na medicina chinesa. Por isso, a bioquímica das plantas é um fundamento para ser aplicado na medicina. Depois de me formar em bioquímica, decidi aprofundar os meus estudos em biologia aplicada e acabei por fazer o doutoramento em Cambridge, em bioengenharia. Nas minhas pesquisas da altura dediquei-me ao estudo de uma substância, em especifico um açúcar, que está em todo o lado e que é componente das nossa células, da nossa comida, de tudo. Percebi que estas partículas, quando tratadas, são essenciais no âmbito, por exemplo, da medicina regenerativa. As pessoas que trabalham na medicina tradicional chinesa muitas vezes não sabem que estas moléculas existem. Penso que isto é um bom exemplo do que é uma ponte entre os dois mundos, da medicina ocidental e chinesa. Quando me candidatei a este emprego disse que não tinha formação em medicina chinesa e que era especialista em bioquímica mas que podia contribuir com os meus conhecimentos científicos para a investigação na medicina chinesa. Fui aceite. Há quem defenda, mesmo dentro da comunidade científica que ambas as medicinas, como disse, são precisas. E há vozes que definem que a medicina chinesa previne e a ocidental é mais dirigida ao tratamento. O que acha? Não diria que concordo totalmente com isso mas, de certa forma, esse tipo de pensamento faz sentido até certo ponto, especialmente na região de Guandong onde as pessoas fazem caldos com diferentes plantas para tratar de alguns mal estares sem, no entanto, estarem diagnosticadas com uma doença em particular. Nesse sentido, se considerarmos a combinação de alimentos e ervas faz sentido falarmos em prevenção. Mas será que a medicina chinesa só serve este tipo de propósito? Disso não tenho a certeza. A comprovar temos o Nobel da medicina de há dois anos que incluiu uma investigadora da MTC. Acha que o ocidente se começa a interessar pela medicina do oriente? Não tenho conhecimento da postura de todos os países, mas nalguns a medicina chinesa tem sido cada vez mais reconhecida. Lá está, para isso é importante que continue se faça mais investigação científica para que possa ser acreditada. Tenho algumas histórias engraçadas. Por exemplo, num encontro em Inglaterra com outros cientistas que sabiam da minha ligação à medicina chinesa fui cumprimentado por um colega com um irónico “boa tarde, este é o nosso mestre do voodu”. Depois levei-os a conhecerem os laboratórios em que trabalhava e ficaram absolutamente surpreendidos com a qualidade dos equipamentos e o desenvolvimento das nossas pesquisas. Acabaram por sugerir uma colaboração dentro da Comissão Europeia. Esta história fez-me reflectir. Em muitos casos, as pessoas de diferentes culturas e de diferentes países, nomeadamente os responsáveis pela produção legislativa, tiram conclusões e avançam com medidas com demasiada facilidade. O que é que esta cientificidade vai trazer, por exemplo, aos medicamentos? Muita gente aponta a toxicidade de alguns dos produtos da medicina chinesa. E neste sentido, o nosso trabalho também é muito importante. Por exemplo, temos dois tipos de toxicidade a considerar. Um é o externo, que vem de fora. É a poluição que pode vir através dos metais pesados que estão no ar, nas águas ou no solo. Esta toxicidade também pode vir do uso de pesticidas nas plantas. Por muito ligeira que seja esta toxicidade nas plantas, para nós é sempre extremamente prejudicial. É por isso que neste instituto estamos a desenvolver instrumentos capazes de detectar este tipo de toxinas, por muito reduzidas que sejam, e diminui-las. Outro tipo de toxicidade é a interna. Aqui podemos dizer que uma planta pode ser conhecida por ser medicinal há muitos anos mas pode ser tóxica porque tem componentes activos que o são. Qual é o nosso trabalho? É tentar comparar os níveis dos componentes e tentar equilibrar os componentes benéficos de forma a diminuir os tóxicos. Ainda assim, acha que as plantas podem vencer os medicamentos químicos? Não. Por várias razões. Toda a pesquisa e produção envolve mais tempo e dinheiro. Por outro lado, o seu efeito, mesmo que efectivo, é sempre também mais demorado. No entanto, isso seria o ideal. Sei que se interessa pela cultura e língua portuguesa. De onde vem este interesse? Sou um grande apreciador da cultura portuguesa e aprecio em especial os vinhos. Também estou a aprender a língua. Enquanto investigador fascina-me a compreensão de sistemas complexos e a língua portuguesa é um deles. Por outro lado, agora estou em Macau, não sei por quanto tempo, mas se um dia me for embora quero levar alguma coisa comigo que seja especifico deste lugar. Acho que é a cultura portuguesa e dentro dela a sua língua.