João Luz Entrevista MancheteEntrevista | Ren-He Xu, professor da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Macau Depois de 20 anos em universidades norte-americanas, Ren-He Xu vem estrear a Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Macau. Em três anos orientou uma pesquisa que promete revolucionar o mundo das células estaminais e meter Macau no mapa da investigação científica. O momento “eureka” poderá tornar desnecessária a criopreservação e aumentar a longevidade das células estaminais [dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]ual a magnitude desta descoberta para o campo das células estaminais? É uma descoberta que tem impacto ao nível mundial, especialmente no campo da criopreservação biológica. Tradicionalmente, tínhamos de recorrer a um tanque de nitrogénio líquido, ou uma caixa de gelo seco para enviar células estaminais para longas distâncias. Agora não é preciso, só é necessário fazer esferas de células, metê-las no bolso e ir para qualquer lado, desde que seja dentro de dez dias. Esferas de células? Sim, são como bolas de células. Normalmente, uma bola contem centenas, ou milhares, de células. A esfera é formada quando se deixam as células estaminais precipitarem e juntarem-se por umas horas. Então formam uma esfera, dessa forma reduzem a proliferação e o metabolismo. Ficam num estado de repouso como animais em hibernação, é por isso que duram mais tempo. É um processo muito simples e as células estaminais preservam todas as suas propriedades sem necessidade de recurso a incubadora. As condições ideais para este tipo de material, na incubadora, são 37 graus com cinco por cento de dióxido de carbono. Mas agora conseguem aguentar a temperatura ambiente, podemos levar células estaminais para a rua. Testámos temperaturas entre dez graus a 30 graus e não houver nenhum problema, desde que as células permaneçam juntas e mantenham o metabolismo baixo. Esta descoberta é também importante em termos de custos. Este método poupa dinheiro em comparação com o uso de nitrogénio líquido ou caixa de gelo seco. Quando vim dos Estados Unidos para cá trouxe material em nitrogénio líquido, o que acabou por me custar dois mil dólares americanos. Com esta descoberta só preciso de um tubo de um dólar no meu bolso e posso ir a todo o lado, poupando significativamente. Qual a aplicação prática desta tecnologia para a melhoria de vida das pessoas? Se alguém precisar de um transplante de medula óssea, por exemplo. As células estaminais do cordão umbilical podem ser usadas para tratar doenças auto-imunes, doenças inflamatórias ou mesmo cancro do fígado como terapia complementar. Nesses casos é necessário que um centro de células estaminais envie esse material, por exemplo, de Pequim ou Xangai. Com distâncias curtas não há problema, a prática normal é congelar e enviar para as clínicas em caixas de gelo. No final escolhem as células e injectam intravenosamente nos pacientes. Normalmente, é preciso uma pessoa para carregar a caixa para a clínica. Agora basta meter as células num frasco. Como surgiu esta descoberta? Foi uma história interessante. Pedi a um dos meus estudantes uma cultura em três dimensões de células estaminais, ou seja, deixar as células agruparem-se e testar as suas funções para depois comparar com grupos de células arranjadas de forma linear, com o objectivo de estudar os comportamentos diferentes das células. Depois da experiência, o estudante deixou as esferas no balcão do laboratório, fora da incubadora, porque o teste estava feito. Passados dez dias, reparou que ainda ali tinha as esferas de células e resolveu dar uma vista de olhos. Pensou que todas as células estariam mortas e dissociadas, mas constatou que estavam intactas. Foi falar comigo e disse-me que as células ainda estavam vivas. Disse-lhe para as voltar a meter na incubadora para ver se estavam mesmo vivas. No dia seguinte voltámos a tirá-las e todas as células estavam vivas. Foi uma surpresa. Claro que lhe disse para repetir a operação com diferentes linhas de células e continuou a resultar. Depois disse-lhe para experimentar com outros tipos de células estaminais pluripotentes, o que resultou com menor durabilidade. Pensei: “Isto é excelente, vai mudar o jogo, talvez não precisemos mais de criopreservação, portanto, não podemos publicar só assim, como um fenómeno”. Mandámos as células para sequenciação, para ver o perfil do genoma, e no final verificámos que todas as células desaceleraram de metabolismo. Qual a sensação de conseguir uma descoberta desta magnitude? O sentimento foi de orgulho. Senti que deixámos a nossa marca no campo das células estaminais, fica lá o nosso nome, o nome da universidade e de Macau. Todo o mundo vai reconhecer que isto foi feito na Universidade de Macau, na Faculdade de Ciências Médicas. Além disso, a nossa faculdade é muito recente, começou há três anos, e toda a gente quer trabalhar com afinco e conseguir resultados bons para a universidade e também para Macau. Acha que esta descoberta mete Macau no mapa da investigação científica? Sim. As pessoas reconhecem que estamos a contribuir significativamente com mérito e valor para o campo, que avançámos a ciência das células estaminais e tornámos mais fácil traduzir a ciência para a clínica. Qual o feedback internacional desta descoberta? Em primeiro lugar quisemos testar. O meu estudante estava muito interessado e determinado em provar que as células podiam ser transportadas facilmente. Quis viajar com as esferas de células para testar se, de facto, sobreviviam a viagens. Foi até à Tailândia, não viajou muito longe, mas as células continuavam bem depois de alguns dias. Internamente queríamos ter a prova. Depois da publicação pedimos a contribuição de algumas universidades internacionais conhecidas, como a Universidade de John Hopkins, entre outras. Perguntei a alguns colegas se queriam testar o que tínhamos descoberto. O colega da John Hopkins disse, espantado, “wow, isto resulta”. Todos contribuíram com citações para a publicação. Passou duas décadas da sua carreira profissional nos Estados Unidos, onde nasceu este campo de investigação científica. Comecei em Israel, depois fui para os Estados Unidos, Maryland, e trabalhei durante seis ou sete anos no National Institute of Health. Depois fui para o Wisconsin onde estudei células estaminais na universidade onde começou a investigação científica deste ramo. O meu antigo supervisor foi capa da revista Time como o homem que trouxe as células estaminais para o mundo. Mais tarde, fui recrutado para ir para a Universidade do Connecticut como professor associado. Fiquei lá durante seis anos. Como surgiu Macau no seu percurso profissional? A Universidade de Macau estava prestes a criar uma nova faculdade. Conheci o reitor em Xangai e ele perguntou-me por que não vinha para Macau. Começou por me mostrar um vídeo da construção da universidade. De um pântano surgiram, de repente, 50 edifícios do nada. Fiquei impressionado. Depois disse-me que teria o mesmo salário que tinha nos Estados Unidos, mas com os impostos de cá, o que para mim foi um aumento salarial, e assegurou-me que havia dinheiro para investir em material de laboratório. Em seguida, vim cá pessoalmente dar uma vista de olhos, nessa altura a maioria dos edifícios estava quase pronta. Que diferenças encontrou em Macau? Na Universidade do Connecticut os estudantes entram com notas melhores, sem dúvida, e são oriundos de todo o mundo. Aqui são, sobretudo, do Interior da China e alunos a tirar licenciatura. São estudantes muito inteligentes, entraram com notas altas. Para estudantes pós graduados recrutamos estudantes ao nível global, mas a maioria vem do Interior da China e da Índia, os locais estão mais direccionados para a licenciatura. Se demonstrarmos que podemos fazer bom trabalho, que damos oportunidades de sucesso aos estudantes, acho que podemos atrair mais gente de qualidade. A Universidade de Macau tem capacidade para atrair investigadores e estudantes do mundo inteiro? Apesar de a faculdade ser recente, oferece condições atraentes. Os salários são semelhantes aos oferecidos nos Estados Unidos, mas lá as universidades oferecem condições para receber a família do investigador, isso não acontece cá. Se um doutorado vem para o meu laboratório, a sua família não pode vir automaticamente para Macau, não pode viver cá. Isso torna a vida familiar de quem vem estudar para cá muito mais difícil, é uma grande desvantagem. Quais são os grandes desafios e esperanças para o futuro das ciências médicas? Globalmente, ou na maioria dos países, a qualidade e esperança de vida aumenta, assim como em Macau. Como as pessoas vivem mais tempo, há uma tendência para se verificarem mais doenças relacionadas com a velhice, incluindo cancro. São precisas novas formas para tratar estas doenças. O reitor da nossa faculdade é um famoso investigador no campo das doenças oncológicas. Está a tentar encontrar um meio de adequar uma droga específica para cada doente através de um teste ao seu genoma, à inteira sequência genética das células cancerígenas. Esperamos que esta abordagem possa trazer terapias mais direccionadas a cada paciente. No campo das doenças degenerativas, como Alzheimer e Parkinson, a maior esperança é a investigação com células estaminais. Podemos obter células através de colheita de sangue ou de células da pele e convertê-las em células estaminais. Podemos regredir até às células que queremos para os órgãos ou tecidos que precisarmos. Este tipo de células estaminais já corresponde ao nosso genoma, portanto, não corre o risco de rejeição imunológica. Isto já resultou num Nobel para um cientista japonês. Acha que é possível a atribuição de um prémio Nobel a alguém local? Não me parece. Pelo menos para já, porque é preciso primeiro crescer. É preciso congregar muitas e boas mentes científicas aqui, assim como conseguir apoios. Pode ser que um cientista entre esse grupo de grandes mentes tenha tempo e dinheiro para pensar com profundidade, e meter mãos ao trabalho para provar hipóteses remotas. Estamos numa fase inicial em que temos de nos estabelecer. Usamos recursos limitados para crescer, para ter alguns sucessos iniciais, para anunciarmos ao mundo que estamos aqui. Mas temos de ter em consideração que este é um “negócio” que precisa sempre de muito investimento. Macau não tem muitas universidades. O jogo é o negócio principal, mas não acrescenta valor adicional a Macau. Se os líderes tiverem interesse em perseguir este valor adicional, podem apostar em tecnologia de ponta e na busca de avanços científicos.
Isabel Castro Entrevista Manchete PolíticaEntrevista | José Tavares, presidente do conselho de administração do IACM A criação de órgãos municipais sem poder político será uma oportunidade para reestruturar o IACM e torná-lo mais compatível com a realidade de Macau, mas não deverão ser introduzidas alterações significativas ao que hoje é feito. José Tavares, presidente do instituto, acredita que, apesar de a casa ser grande, é possível dar conta do recado sem a multiplicação de organismos. Em entrevista, confessa que não estava à espera de dirigir o sucessor do Leal Senado, casa onde começou a trabalhar há mais de 30 anos [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stá há mais de um ano na presidência do conselho de administração do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (IACM). Como é que está a ser a experiência? É uma experiência nova de gestão. Estamos a falar de um serviço público que é o terceiro maior em termos de pessoal, são mais de 2600 funcionários, com 11 departamentos e 33 divisões. Engloba muitas áreas e cada uma com a sua especificidade. É um desafio e, ao mesmo tempo, uma experiência aliciante, apesar de já conhecer a casa – o meu primeiro emprego na Função Pública foi no Leal Senado, num cargo entretanto extinto, o de secretário-dactilógrafo. Regressou então a casa, mas com uma responsabilidade completamente diferente, o que é um desafio. Sempre gostei de desafios. Venho do desporto. Estou habituado a desafios. “Reduzir o número de obras não é uma solução – leva a apenas a uma acumulação de pedidos. A cidade obriga a estas transformações.” Quais são as áreas que considera prioritárias no IACM? Para mim, são todas prioritárias, mas posso destacar algumas, como a segurança alimentar. É uma área que temos tratado com maior intensidade nos últimos tempos. Temos acertado alguns parâmetros e índices alimentares para que Macau possa estar de acordo com as práticas internacionais. Em 2016, foram publicados quatro novos índices e normas, incluindo os relativos ao leite em pó, e nove novas orientações. Agora, estão em fase de elaboração várias normas, sobre os limites máximos de metais pesados e de resíduos de pesticidas nos géneros alimentícios, e para a utilização de conservantes e antioxidantes. Isto quer dizer que estamos cada vez mais a elevar os nossos padrões e exigências para os alimentos importados. Macau é uma cidade de turismo e de lazer – temos toda a preocupação de fazer a protecção logo na primeira linha. Tudo isto é uma prevenção para reforçar a nossa segurança alimentar. Depois, há o investimento feito nos nossos laboratórios. Há uma atenção acrescida no que diz respeito a esta área. No início deste ano, foi feita aqui uma conferência internacional sobre aditivos alimentares, com mais de 300 participantes de mais de 50 países. Isso significa alguma coisa. São organizações internacionais que conseguimos trazer, através do apoio da China. É um sinal de que Macau quer elevar os seus padrões ao nível internacional. A par da segurança alimentar, que outras áreas é que o preocupam? Muitas áreas. As vias públicas são uma realidade que temos de enfrentar. O crescimento acelerado da cidade obriga a ter valas sempre abertas. É uma consequência da realidade do crescimento da cidade. Reduzir o número de obras não é uma solução – leva a apenas a uma acumulação de pedidos. A cidade obriga a estas transformações. O que pode ser feito é reforçar a coordenação, que tem que ver com os diversos serviços e também com os concessionários. A coordenação poderá ser melhorada. Juntamente com a secretária para a Administração e Justiça e com o secretário para os Transportes e Obras Públicas, conseguimos melhorar esta coordenação. Antes de tudo, é preciso haver um aviso prévio da Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego (DSAT) para podermos emitir uma licença. Sem o parecer deles, não há emissão de licença, isto para presumir, logo à partida, que a montagem e o percurso da obra sejam delineados conforme a indicação da DSAT. “[As duas câmaras] tinham posturas diferentes e isso torna bastante difícil a execução de algumas políticas. Esta fusão faz todo o sentido.” Para garantir mais fluidez no trânsito? Sim, e para reduzir ao máximo os distúrbios que possam afectar a cidade durante as obras. Foi uma melhoria conseguida. O assunto foi abordado pelo Comissariado da Auditoria (CA), uma chamada de atenção feita acerca do período 2014-2015. Vimos o relatório. Achamos que há partes em que existe margem para melhorar e estamos a trabalhar nesse sentido. Outra preocupação tem que ver com os mercados e os vendilhões. Queremos alterar as leis sobre esta matéria porque já são muito antigas, vêm ainda da Administração Portuguesa. É um assunto urgente para resolvermos. As duas câmaras – o Leal Senado e a Câmara das Ilhas – tinham posturas diferentes. Nas ilhas fazia-se de uma maneira, aqui fazia-se de outra. Até hoje continua a ser assim porque a lei não foi mudada. Para nós, é muito difícil essa gestão. Depois, há ainda as zonas de lazer, que também foram alvo de um relatório do CA, que apontou algumas deficiências nos jardins e também nos espaços destinados às crianças. Tivemos essa preocupação e tudo foi composto em oito meses, conforme aquele relatório. Só que, durante este tratamento, verificámos outros problemas que não constavam da auditoria. Estamos agora a resolvê-los e espero que, até ao final do ano, o trabalho esteja concluído. Mas é um trabalho constante, porque a casa é grande. Estamos a falar de Macau inteiro. Em 2001, quando acabaram as Câmaras Municipais Provisórias, o Cotai não existia, era apenas um istmo. Faria algum sentido voltar a ter duas câmaras, atendendo a que hoje a Taipa e o Cotai têm uma dimensão muito maior do que quando foi pensado o IACM? Ou é preferível ter só uma estrutura? Acho que faz sentido ter só uma estrutura. Outrora, quando existiam duas câmaras, isso trouxe alguns problemas para a Administração, como referi. Tinham posturas diferentes e isso torna bastante difícil a execução de algumas políticas. Esta fusão faz todo o sentido. O IACM tem uma postura para todo o território. A nossa população e a nossa dimensão não justificam ter duas câmaras. Aliás, o IACM já não é uma câmara – a figura da câmara era um poder local que, agora, já não existe. O IACM precisa de ter maior autonomia, atendendo às funções de proximidade com a população? O IACM consegue satisfazer todas as necessidades da população com a sua estrutura actual. Temos uma grande proximidade com a população. Temos reuniões regulares com o Conselho Consultivo do IACM, colóquios nas freguesias, com os Conselhos Consultivos de Serviços Comunitários por Zonas, sessões abertas com a Administração, temos Centros de Prestação de Serviços ao Público, Postos de Atendimento e Informação, linhas telefónicas de atendimento ao público, com sistema de gravação de mensagens fora do horário de expediente, contas no Wechat, etc.. Não há outro serviço que tenha uma abertura junto da população como o IACM. Achamos que a actual estrutura do IACM é suficiente para dar resposta à realização de uma relação de proximidade com a população. Nos últimos tempos, o IACM perdeu competências em duas áreas – no desporto e na cultura. O desporto é uma área que lhe é muito próxima, trabalhou muitos anos neste campo. Que balanço faz destas alterações em termos orgânicos? Atendendo à complexidade de Macau, uma cidade muito densa, fez sentido libertar o IACM destas duas pastas? Fez e não fez. Fez, em certo sentido, por temos funções amplas e contacto próximo com a população. Mas também por isso os eventos culturais e desportivos podiam servir de elo de ligação com a população. Davam uma margem de manobra para o IACM poder ter um papel mais interventivo nas actividades recreativas, numa ligação mais imediata com a população. O que é que deverá ser o IACM no futuro? Acho que o IACM não deverá ser muito diferente do que é agora. O trabalho vai ser sempre feito por alguém. A criação de órgãos municipais sem poder político está prevista pela Lei Básica. São órgãos incumbidos pelo Governo de servir a população, designadamente nos domínios da cultura, recreio e salubridade pública, bem como dar pareceres de carácter consultivo ao Governo da RAEM em relação a essas matérias. Ou seja, o IACM, no futuro, não deverá ser muito diferente daquilo que conhecemos hoje. Julgo que essa mudança não traz grandes alterações em termos de prestação de serviços. Pode mudar o nome, pode mudar internamente alguns aspectos mas, por fora, o trabalho será o mesmo. Haverá um nome diferente, com uma estrutura eventualmente diferente, poderão ser feitos alguns pequenos ajustes, até porque já passaram 15 anos, aproveitando também para se adaptar à nova realidade de Macau. Com a introdução dessa figura poderemos então esperar que haja um aproveitamento do que é hoje o IACM? É uma reestruturação do IACM, porque já passaram 15 anos desde a sua criação. É preciso ter-se também em conta a nova realidade de Macau. “[A criação de um órgão municipal] pode mudar o nome, pode mudar internamente alguns aspectos mas, por fora, o trabalho será o mesmo.” Voltando ao trabalho que tem estado a desenvolver. Há planos para mais colaborações com entidades de fora de Macau, à semelhança da que estabeleceu com a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) de Portugal? Temos colaborações com várias entidades, quer aqui em Zhuhai, Cantão, Pequim, China e também em Portugal. É uma colaboração estreita, sobretudo na área da segurança alimentar. Isto é muito importante porque esta integração permite a troca de informações, há uma colaboração muito próxima em termos de tecnologias que estão a ser implementadas para a detecção de problemas. Além da segurança alimentar e do CEPA, temos uma colaboração constante com outras organizações internacionais, como na área da importação de animais e plantas em vias de extinção – que é muito importante, porque há muita prática de contrabando nesta área –, e Macau é obrigada a cumprir estas normas porque faz parte dos tratados neste âmbito, e nas áreas de inspecção fitossanitária e sanitária, e de prevenção e controlo de epidemias animais. Isto também está dentro do nosso pelouro. A colaboração com a ASAE está a ser muito frutífera, porque mal a secretária para a Administração e Justiça assinou o protocolo com o ministro, foi logo desencadeada uma série de iniciativas. O inspector-geral da ASAE esteve aqui comigo, traçámos metas, logo a seguir fizeram-se três seminários, para o ano vamos lá para acertar outras coisas, pelo que acho que está a resultar. Mas há mais ideias deste género para o futuro? A colaboração não pára aí. Estamos agora a implementar uma plataforma de transacções electrónicas online do Centro de Distribuição de Produtos Alimentares dos Países de Língua Portuguesa. É muito importante, quer para nós, quer para eles. Vem na linha da política “Uma Faixa, Uma Rota”. Iremos criar um mecanismo permanente, sincronizado e mútuo, de inspecção para produtos lusófonos que passam por Macau. Vai permitir que os produtos sejam colocados à venda no mercado com maior brevidade. É macaense, presidente do conselho de administração do IACM, um órgão com uma importância grande na cidade. Há uns anos, esperava que isto fosse possível? Sempre foi possível. O secretário Raimundo do Rosário é macaense. É nomeado pelo Governo Central. Tudo é possível. Só que eu não esperava. Foi uma surpresa para mim – agradeço o convite feito pelo Chefe do Executivo, agradeço à secretária para a Administração e Justiça, pela confiança que me foi depositada, porque nunca pensei que um secretário-dactilógrafo do Leal Senado fosse, um dia, presidente do IACM. Comecei a minha carreira aqui, tenho 33 anos de serviço, tive esta grande oportunidade. Para retribuir, vou dar o meu máximo. Sente saudades do Instituto do Desporto? Sou um homem do desporto. Continuo a ser um homem do desporto.
Sofia Margarida Mota Entrevista Manchete PolíticaEntrevista | Isabel Pires de Lima, académica e ex-ministra da Cultura de Portugal Os livros apareceram porque não havia outra hipótese e as escolhas académicas foram consequência de um percurso natural. A política chega porque sempre gostou de dar resposta ao que lhe pedem. Isabel Pires de Lima é uma mulher do Norte, uma investigadora sem papas na língua que explica por que razão é difícil mexer na cultura em Portugal [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo é que apareceu o interesse pela literatura? Com o quadro familiar. Foi-me induzido o gosto pela leitura em casa. A minha mãe era professora primária e evidentemente que lia. O meu pai tinha estudado em Coimbra, convivido com a geração dos neo-realistas e ainda com o resto dos presencistas, e tinha muito as referências literárias daquela geração. Desde cedo, comecei a ler porque tinha livros em casa. A prática de contar histórias também encheu a minha infância e, na adolescência, tive a sorte de não me ter alheado da leitura. Conquistamos facilmente as crianças para a leitura – o problema vem depois. Perdemos os leitores na adolescência. Se a passam, está ultrapassada a prova. Naquela altura também não havia a cultura impositiva da imagem, nem a oferta cultural que há hoje. Nasci em Braga, fiz lá o meu ensino secundário e fazia férias numa aldeia no norte da ilha da Madeira, de onde a minha mãe é originária. Havia muito que fazer, mas era entre primos. Na verdade, era um período em que lia muitos clássicos porque era o que havia. Fartei-me de ler Camilo. À medida que fui avançando nos estudos, fui-me interessando mais pela literatura, apesar de ser melhor aluna na área das ciências. Tinha um certo gosto pelo francês, apesar de não apreciar muito línguas. Tive hesitações, no secundário estive inscrita em Economia e gostava de Geografia. Acabei por me formar em Literaturas Modernas que, na altura, se chamava Filologia, na área de Português e Francês. Estive muito ligada à cultura francesa e até comecei a minha carreira universitária a ensinar literatura francesa. Só quando enveredei para a preparação do doutoramento é que me fixei na literatura portuguesa e hoje trabalho mais em literaturas de língua portuguesa e nas relações da literatura com outras artes, nomeadamente com as artes visuais. Como é feita essa relação? Voltamos à questão do gosto pessoal. Hoje, quando penso nas minhas opções, percebo que o que andava à procura era de Sociologia que, na época, nem existia na universidade portuguesa. Mas aquilo de que gostava verdadeiramente na vida era ter sido artista visual, artista plástica. Não sou nada dotada, não desenho bem, mas é uma área que me interessa muito. Para este gosto foi fundamental o meu contexto familiar. Os meus pais viajavam bastante, eu também comecei a viajar sozinha muito cedo e ia a museus e galarias de arte. Fui-me formando bastante nesse campo. Por outro lado, como já disse, comecei por ensinar literatura francesa e um dos pratos fortes do meu programa foi o surrealismo francês. Estudar o surrealismo na literatura implica o trabalho no campo das artes visuais. Não faz sentido falar em literatura surrealista sem falar em artes plásticas. O surrealismo é de facto um campo em que o cruzamento interartístico semiótico é muito importante. Já tinha gosto e aprofundei-o muito. Nos últimos 15 a 20 anos tenho estado ligada a um instituto de investigação, o Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa. Também integro o Conselho de Administração da Fundação de Serralves. Estou mergulhada nas artes. O seu doutoramento foi em literatura portuguesa do século XIX. Sim, trabalhei sobre Eça de Queirós numa perspectiva sociológica. Hoje tenho noção de que andava à procura de uma área nas ciências sociais. Quando comecei a preparar o doutoramento, acabei por me fixar felizmente na literatura portuguesa. Acabei por lá ir parar também por necessidades da própria universidade. Escolhi um escritor realista e adoptei uma metodologia teórica associada à sociologia da produção literária. Não fui para a sociologia da recepção. Fixei-me no Eça, que não era evidente para mim até porque, um pouco ingenuamente, pensava que o essencial sobre o Eça estava feito. Mas na Universidade não havia muito trabalho com perspectivas contemporâneas sobre o Eça e “Os Maias” em concreto, pelo que foi uma espécie de pânico quando me foi dada esta obra. Assustou-a porquê? Porque achava que era uma obra-prima intocável e pensei que já estivesse muitíssimo explorada. Hoje estas questões não se colocam aos jovens investigadores. Há centenas de jovens a fazer doutoramentos. Na época era uma coisa raríssima e havia a ideia de que existiam campos em que era preciso explorar áreas que nunca tivessem sido exploradas. O que não é verdade. Fui empurrada para “Os Maias” e ainda bem, mas aconteceu-me aquilo que acontece a quem trabalha com clássicos: nunca mais se vê livre deles. “Os Maias” é uma obra que faz parte do currículo do ensino secundário. Os jovens desta idade estão preparados para entender este tipo de clássicos? Os Maias são a obra-prima do Eça. Talvez não seja o romance mais fácil para uma iniciação ao contacto com o autor. Talvez fosse mais fácil “O Primo Basílio”. Muitos estudantes são iniciados no Eça através de contos ainda antes de “Os Maias”. Talvez não seja o romance mais fácil, por ser um romance muito longo e nós hoje temos poucos leitores de longo fôlego – e não apenas na adolescência, temos mesmo poucos leitores. O que é que se está a passar com o hábito de ler? A literatura perdeu poder simbólico e perdeu muita capacidade de atractividade para preencher os espaços de lazer. As solicitações hoje são imensas e de variadíssimo tipo. Há uns anos tínhamos muito mais tempo. Não havia televisão ou internet. Não existiam as solicitações visuais e de imagem que há hoje. É difícil escapar ao império da imagem. A leitura é muito exigente: exige um espaço de solidão, de prática individual, um espaço de um certo silêncio, tudo aquilo que nós não temos, nem em casa. Se calhar, hoje em dia, os jovens até têm mais estas situações na escola do que propriamente em casa. Por isso temos perdido muitos leitores. Por outro lado, por que lêem mais as mulheres? As mulheres ainda estão tendencialmente mais reduzidas ao espaço doméstico. Estão muito mais em casa, têm mais espaços de solidão, há mais mulheres sozinhas do que homens sozinhos e tudo isto converge para levar este género a ler. Outro aspecto actual é que há mais mulheres com formação superior do que homens. Depois, por razões culturais, são mais induzidas a uma espécie de formação individual, de atenção ao mundo íntimo que pode ser feita através da literatura. Os homens ainda são mais educados no sentido do êxito fora de casa. Da literatura à política. A política foi um acaso, como muitas outras coisas na minha vida. Tenho tido na vida a seguinte atitude: sou muito empenhada no meu trabalho onde quer que esteja, mas não sou muito ambiciosa. Não sendo ambiciosa, tenho uma atitude perante a vida de uma certa curiosidade intelectual, e raramente me furto às propostas e desafios que me fazem. Não tenho medo da mudança e é até uma coisa estimulante. A política veio ter comigo. Não estou inscrita em nenhum partido político mas, desde muito cedo, respondi sempre às solicitações da comunidade da cidade onde vivo, o Porto. Ia a diversas acções e palestras quando me era pedido. Atenção que fiz isto numa altura em que a própria universidade não via isso com muito bons olhos, já nos anos 1970 e mesmo 1980, porque era considerado uma dispersão àquela coisa que era o trabalho académico puro e duro. Mas sempre estive muito articulada com a vida cultural da cidade. Quando me propuseram integrar uma lista de candidatos a deputados pelo Partido Socialista, devo dizer que foi uma grande surpresa. Não estava nada à espera. Acabei por ir para o Parlamento um bocadinho por curiosidade. Acabou por ser ministra da Cultura. Foi também surpreendente o convite que me foi feito. Desta vez menos, porque já estava na Assembleia da República (AR) e sempre ligada, de alguma forma, à cultura e às questões da língua. Fui sondada pelo então primeiro-ministro José Sócrates, com quem não tinha uma relação de grande proximidade. Curiosamente, de vez em quando falávamos de poesia, porque era uma área de que ambos gostávamos. Quando saí do Governo, continuei na AR mais um ano e meio. Enquanto ministra da Cultura, quais foram os maiores desafios que encontrou? Diria que o mais difícil foi o pôr um pouco de ordem numa casa bastante desorganizada. A cultura tinha ganho um estatuto de Ministério há relativamente poucos anos. Foi criada uma estrutura bastante ampla dentro do Ministério com uma multiplicação de direcções gerais, por exemplo. Logo a seguir, antes de mim, há o primeiro quadro comunitário de apoio à cultura. De repente há dinheiro para injectar, o que fez com que houvesse uma espécie de pujança do próprio ministério com o ministro Carrilho. Quando cheguei já não estávamos no tempo das vacas gordas, as vacas já estavam a emagrecer bastante, o que fez com que tivesse de existir contenção de meios. É preciso ainda lembrar outra coisa: no primeiro Governo de José Sócrates, encontrámos um défice de 7,5 por cento e, em cerca de ano e meio, reduzimos para três por cento. Isto obrigou a muita contenção orçamental. Foi preciso fundir organismos e isso gera sempre grandes tensões internas dentro do Ministério. São acções que levam sempre a perdas de pequenos e grandes poderes. Esta foi uma das dificuldades. Outra dificuldade foi a aposta que, claramente, fiz em políticas de descentralização. A cultura em Portugal era, de facto, muito em Lisboa. Apostar em políticas que prestassem atenção ao resto do território também gera algum incómodo. Ainda por cima, eu era uma ministra vinda do Porto e mulher, e não membro do Partido Socialista. Estas três coisas juntas dificultaram um bocadinho a minha vida. Fiz esta opção de descentralização também porque, entretanto, com os tais dinheiros comunitários que tinham chegado, tinha havido a construção de equipamentos descentrados. Alguns deles estavam fisicamente de pé, mas não acontecia nada lá dentro. Outra das dificuldades foi lidar com – e vou usar palavras que nunca usei enquanto estava no Ministério – uma certa mentalidade subsídio-dependente. Mas, atenção, acho que há razões para que exista esta subsidiodependência. Hoje já há um público mais alargado, mas naquela época não havia públicos. Muitas vezes dizia uma coisa que chocava um bocadinho quem me ouvia, nomeadamente no âmbito de acções do Partido Socialista: não é só a cultura que depende de subsídios em Portugal. A maior parte dos empresários também o é. Ninguém se escandaliza quando se atribui um subsídio a uma fábrica de salsichas, mas se for para a cultura é um problema. A razão é que na fábrica as pessoas vêem um retorno para a economia e, na cultura, o retorno é muito lento. Hoje já é bastante visível, mas é muito difícil fazer perceber isto. O que é que se pode fazer? É preciso fazer perceber às pessoas que o investimento na cultura é barato. Num Orçamento de Estado, são tostões. Todavia, a filosofia orçamental continua a ser do corte na cultura. Por mais que se tente explicar isso num Conselho de Ministros, designadamente a um primeiro-ministro, é sempre muito difícil passar a mensagem. Por exemplo, tentar acentuar que o pouco que se investe em cultura potencia enormemente o muito que se investe em educação. Esta relação é dificílima de se fazer entender e é uma coisa óbvia. Importa também dizer que não é só difícil em Portugal. Há excepções. O Reino Unido é uma delas, mas também tem uma organização muito diferente. Por outro lado, não é fácil lidar com os agentes culturais. Estou a incluir os criativos e os agentes no terreno. São pessoas muito individualistas e é muito difícil definir quem é o interlocutor. Enquanto o ministro da Educação sabe que o seu interlocutor é o sindicato, o ministro da Cultura recebe o grupo A que não se dá bem com o grupo B e o B fica chateado porque recebemos o A. Depois são também grupos inorgânicos. Isto tudo acrescido do facto de que estes agentes têm uma fácil cobertura da comunicação social. Costumo dizer a brincar, mas é a sério, que o artista e o agente cultural têm sempre um amigo na comunicação social, o que faz com que, de repente, uma coisa pequena ganhe uma dimensão extraordinária. Há solução para esse problema no que respeita aos criativos e agentes? Não é fácil. Tentámos alterar as regras dos concursos para apoios a projectos em várias áreas. Para que isso acontecesse fomos falar com todos os grupos do país, o que levou uns meses, de modo a poder fazer o levantamento. Era extraordinária a diferença de realidades e de reivindicações, e inclusivamente de comportamentos. Muitas vezes, os grupos reagem muito mal a qualquer tentativa que o Estado faça de controlo do seu investimento. Mas essa é uma obrigação de quem gere dinheiro público. Quando falávamos de controlo de bilheteira, era logo um nervoso geral. Depois, há sempre aquele fosso entre os grupos que são dependentes de subsídios e aqueles que praticam uma arte que é mais comercial e que não dependem desses dinheiros. No entanto, também têm outras reivindicações e tudo isto gera muita tensão. Por outro lado, é preciso entender que há áreas em que o Estado tem forçosamente de intervir e que vão ser sempre dependentes, a não ser que tivéssemos uma mentalidade e uma dinâmica empresarial que não temos. Por exemplo, dentro do património, não há empresas em Portugal a sustentarem os arquivos, como mecenato, por exemplo. Mas os arquivos têm de existir e têm uma manutenção elevadíssima. São áreas onde não é possível não pensar em investimento do Estado e ainda há muito por fazer. Há muita coisa feita, o tecido cultural português mudou muitíssimo desde o 25 de Abril para cá. Uma das áreas em que acho que tivemos muito sucesso foi no campo da educação e da saúde, e mesmo da segurança social e, claro, da cultura, onde tivemos muitos sucessos, pese embora a percepção colectiva não seja essa. A cultura tem a seu favor e contra si o facto de ser muito transversal. Hoje há a percepção de que estas transversalidades atingem todos os campos e todas as áreas. Não imagina quanto me sentia pregador no deserto ao falar em turismo cultural. Isto não foi assim há tanto tempo. Hoje penso que é realmente chato ter razão antes do tempo. Mas era muito claro, para quem se move neste universo da cultura, que Portugal tinha potencialidades a desenvolver ao nível do turismo cultural, muito mais do que ao nível do sol e da praia. Já na altura defendia que o Ministério da Cultura deveria ser da Cultura e Turismo, como já o é em alguns países. Claro que também tenho a percepção de que este boom do turismo cultural teve circunstâncias facilitadoras, como a perda do turismo no Magreb. Mas também é verdade que hoje o turismo de longo curso é mais facilitado. Mas, na Europa, era claro que Portugal tinha muito potencial.
Sofia Margarida Mota Entrevista Manchete PolíticaEntrevista | Chan Chak Mo, deputado e empresário É deputado eleito pela via indirecta pelos sectores culturais e do desporto. Chan Chak Mo acredita na revisão da Lei de Terras e é contra o controlo do arrendamento no território. Entende que os negócios não interferem com a política e garante que luta sempre pelo bem comum [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stá no final de mais uma legislatura. Qual foi a matéria que esteve em análise na 2.ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa (AL), à qual preside, em que foi mais complicado trabalhar? Foi a lei referente às partes comuns dos condomínios. Foi um assunto em que as opiniões divergiram muito. Os proprietários, por exemplo, queriam que os seus locais tivessem condições de trabalho, ao mesmo tempo que não queriam gastar muito dinheiro com as manutenções dos espaços. Por outro lado, as empresas de gestão de condomínios queriam uma lei em que todas as pessoas tivessem de pagar a sua parte para manter os edifícios e os serviços necessários. As empresas de gestão também consideram que, se não têm o seu investimento de volta, desistem dos serviços e os edifícios acabam por não ser bem mantidos. Se existirem 100 proprietários em que 50 não pagam, não é justo para a metade que paga. O dinheiro que é pago não é suficiente para assegurar as despesas de condomínio. Alguns proprietários compram casas, não para viver, mas para investir e arrendar, e por isso acabavam por nunca pagar as despesas de manutenção. Com a nova lei, mesmo com a venda da fracção, os proprietários têm sempre de pagar as despesas de condomínio nem que seja aquando da venda, em que é descontado o montante em falta. No momento da transacção, as dívidas também são claras. Até agora não havia qualquer obrigação de pagamento neste sentido. Pensa que está garantida uma forma de assegurar os custos das despesas de manutenção dos edifícios? Sim. Assegura, pelo menos, que as empresas encarregadas da administração dos condomínios possam ter dinheiro suficiente para algumas das necessidades, como a manutenção regular, e que, daqui a uns dez anos, possam ter como pintar os edifícios. Penso que é uma boa lei. Mesmo na votação na especialidade na Assembleia Legislativa, esta lei poderá vir a dar discussão, mas a posição do Governo é clara e é boa. Acha que vai ser aprovada? Não sei. Vai depender da posição do Governo. A lei do tabaco, que também esteve em análise, foi de mais simples tratamento? Não foi tão difícil. A alteração maior que teve foi a permissão de salas de fumo nos casinos. Ng Kuok Cheong opôs-se muito a isso, mas ele sabe a necessidade desta alteração. Penso que foi mais para ter um ponto de vista político porque era algo que era preciso fazer. Nesta lei fizemos alterações importantes também. Por exemplo, as salas VIP, em que até agora era permitido fumar – o que era prejudicial para os croupiers que ali trabalhavam –, vão passar a ser isentas de fumo. Não interessa o montante que seja apostado, o apostador tem de se dirigir à sala de fumo. Penso que é um passo em frente. Por outro lado, a economia de Macau depende maioritariamente do negócio dos casinos. Não se encontra nenhuma cidade no mundo que se possa comparar a Macau neste sentido. Não acha que é muito limitativo depender apenas da indústria do jogo? É, mas é a única coisa que temos. Somos muito pequenos. Não temos indústria, nem força financeira. Não temos bolsa, por exemplo. Não temos inovação tecnológica. Não temos sequer pequenas indústrias como a produção de jóias ou de relógios, nada. Desde o início do século que temos o jogo. Sem os casinos, o Governo não tem muito onde ir buscar dinheiro. Os sistemas de educação, de saúde, a segurança social, têm todos dinheiro vindo dos casinos. O caso de Macau é mesmo muito particular. Cerca de 70 por cento do dinheiro vem do jogo. Como deputado, tem a seu cargo a representação dos sectores cultural e desportivo. Um dos aspectos em que o Governo insiste é no turismo cultural enquanto fonte de diversificação económica do território. O que pensa acerca disso, enquanto representante do sector? Macau está a fazer um excelente trabalho no que respeita ao património. O problema é que este trabalho no património não sustenta o desenvolvimento de negócios. Temos de prestar atenção a uma cultura combinada em que é integrado o factor negócio. Por exemplo, se formos a Milão, temos ao lado da catedral uma série de negócios ligados às lembranças, temos cafés e coisas desse género. E é isso que também temos de fazer. Macau olha para o património como sendo sagrado e não podemos fazer nada ali. Mas se virmos os edifícios históricos na Europa, estão todos cercados de negócios e são locais onde há publicidade que também é uma fonte de rendimento. Quando se fala de património, não interessa apenas manter os edifícios, é preciso pensar que há uma série de coisas que podem ser feitas com esses espaços. Aqui não, aqui as acções são no sentido de não tocar neste património. É necessário fazer com que os edifícios históricos coincidam com as ideias de se fazer negócio, dinheiro e atrair turistas. Um turista que venha a Macau, passeia no centro histórico durante duas horas e depois faz o quê? Outra coisa é a reserva de espaços para as grandes companhias poderem fazer publicidade. É uma forma de rentabilizar os espaços. Se eu for o dono de um edifício, como é que posso fazer dinheiro com ele se não me autorizarem a fazer um restaurante? Pedem-me dinheiro para a manutenção, mas se me permitirem tirar algum rendimento com um negócio ou com a autorização de ter publicidade no exterior do meu edifício, posso conservar este edifício também melhor. Mas aqui, se tenho um edifício histórico, não posso fazer nada. Como é que um museu pode fazer dinheiro se não se paga nada? Mas também há muitos lugares como museus com entradas gratuitas, mesmo na Europa. Sim, mas podem ser feitas coisas à volta desses edifícios que o justificam. O sector pelo qual foi eleito é da cultura e do desporto. Como está o desporto em Macau? O que tem sido feito? É muito difícil falar de desporto em Macau de uma forma nacional. Mais uma vez, o território é muito pequeno e não somos, nem podemos ser parte do Comité Olímpico Internacional (COI). Hong Kong, por exemplo, antes da transferência de soberania, já fazia parte do COI, separadamente de Inglaterra, e é por isso que continuam separados da China também. Macau não. Na altura da administração portuguesa, ninguém se preocupou com isso e depois, como somos pequenos, fazemos parte da China, mesmo neste aspecto. A melhor coisa que fizemos foi fazer parte do Conselho Olímpico da Ásia. Integramos os Jogos Asiáticos, mas Macau é tão pequeno que não conseguimos ter um sistema bem desenvolvido para o treino de atletas profissionais. Mesmo com atletas, eles não conseguem sobreviver e precisam de um emprego. Já há atletas agora que vão para Hong Kong para as escolas de desporto. Seria possível fazer o mesmo – escolas especializadas – em Macau? Estamos a tentar abrir o Instituto do Desporto a isso, mas vai levar tempo. O Governo, nos últimos anos, também devido à recessão no jogo, cortou algum financiamento ao sector. É cada vez mais difícil conseguir financiamento para ir a qualquer competição internacional. Há analistas que consideram que Chan Chak Mo e Vitor Cheung Lup Kwan não têm um contacto próximo com a cultura e com o desporto que justifique a vossa representação do sector. Como olha para estas críticas? Não tenho de lutar por benefícios na AL. Sou membro do Conselho de Desporto e posso dar a minha opinião aí. Na AL, penso que a minha atitude mais valiosa é enquanto homem de negócios porque também o sou. Por outro lado, temos o Ma Chi Seng que está sempre preocupado com o desporto e, como tal, deixo-o fazer os comentários acerca do sector. É só isso. Não é que não tenha nada a dizer, só não quero fazer ninguém perder tempo porque tenho um canal directo para mostrar a minha opinião quando se trata de desporto. No que respeita à Lei de Terras. Disse há umas semanas que acredita que o Governo irá dialogar acerca de uma possível revisão. Sim, penso que vai haver alguma mudança no que respeita à interpretação da Lei de Terras. O princípio básico tem que ver com o facto de que se um concessionário não fez nada de errado, não há razão para que lhe seja retirada a concessão. Esta é a questão que tem de se ver, a forma como é interpretada a lei. Se não é da responsabilidade do concessionário o não aproveitamento dentro dos prazos, se é da responsabilidade do Governo, deve-se considerar dar mais tempo aos concessionários. Esta é a direcção certa. É candidato de novo pelo sufrágio indirecto. O que pretende fazer? Sou uma pessoa discreta. O que quer que diga pode ser mal-entendido ou pode levar a pensar que estou a falar pelo Governo por ser membro do Conselho Executivo. Por isso, prefiro não expressar a minha opinião. Faço o meu trabalho. Há um ditado chinês que diz que se for uma pessoa boa para todos, então poderei dormir bem. É isso que faço. Não é para proveito pessoal. Tenho muito que fazer, tenho muitos negócios, tenho muito com que me preocupar. Durmo bem. Isso leva-nos a outra questão. É um homem de sucesso nos negócios. Não acha que esse aspecto pode colidir com o trabalho político? Não. Eu só interfiro, não em nome pessoal, mas em nome dos negócios. Por exemplo, eu dirijo restaurantes, quando está em discussão o sector, eu falo do geral, nunca dos restaurantes em particular, mas sim de todo o sector da restauração. Só quero que sejam melhoradas as condições do sector e os procedimentos que são necessários fazer, de modo a que toda a indústria seja mais “user friendly”. Se quero mudar alguma coisa, é para o benefício do sector por inteiro. As burocracias são uma loucura em Macau. Ter uma licença pode demorar dois anos. São necessárias mudanças nesse aspecto? Sim. Fazer coisas em Macau é um processo muito lento. Uma licença de construção pode levar dez anos. Tem-se manifestado contra a lei sindical. Porquê? Não tenho nada contra ela, mas acho que não temos um sistema que necessite dessa legislação, como acontece na Europa ou nos Estados Unidos. Porquê? Porque estamos a falar do direito à greve. Sem falar nos meus negócios, vamos dar como exemplo os casinos. Se as greves forem autorizadas, os funcionários vão pedir aumentos anualmente e, se não foram dados, há a ameaça de greve, e todo o território morreria. Penso que se trata de um jogo de poder. Os sindicatos querem com este tipo de leis controlar também os trabalhadores. Em Macau, há as leis laborais que penso que funcionam muito bem. Há um departamento responsável pela defesa dos trabalhadores, porquê criar sindicatos? A economia em Macau é boa, não são necessários. Tem património imobiliário em Macau. O que acha das alterações ao arrendamento? Sou contra. Não é por ser proprietário. Depois da recessão dos rendimentos dos casinos, já voltou tudo ao normal, porque é que se há-de controlar as rendas? Tem de ser uma economia livre. As propriedades têm de estar num mercado livre. Mas não acha que as rendas são muito altas e que estamos perante um cenário de especulação imobiliária? Nos negócios, é sempre necessário que haja alguém que combata e alguém para ser combatido. São precisos dois para dançar o tango. Mesmo que controlem o aumento da renda, os proprietários podem arranjar forma de contornar a situação: passam a cobrar por outras coisas, como por exemplo pela mobília. Na compra e venda, se o banco só dá, por exemplo, 15 por cento para a compra de uma casa, o proprietário pode negociar com o interessado e avançar com 30 por cento e fazer negócio com isso. Por muito necessária que seja a lei, vai sempre existir forma de a contornar, porque se trata de um acordo mútuo. Por outro lado, não pode existir nas maiores cidades do mundo um desenvolvimento saudável do mercado imobiliário se existir controlo de terras e de rendas. Podemos olhar para Nova Iorque ou Detroit, em que quando os proprietários são impedidos de aumentar a renda, deixam de fazer obras nos edifícios velhos. Os prédios acabam por ficar extremamente deteriorados. As pessoas não sentiriam uma maior estabilidade, sabendo que não teriam grandes oscilações nas rendas? As pessoas podem assinar os contratos que quiserem. O controlo das rendas não é uma coisa boa.
Sofia Margarida Mota Entrevista Eventos MancheteEntrevista | Hélder Macedo, escritor e investigador A poesia chegou cedo, o acto de dizer não também. Porque bateu o pé contra o sistema, saiu de Portugal para voltar uma e outra vez, para ainda não estar lá, estando. Hélder Macedo é um nome incontornável do passado-presente da literatura portuguesa. Está por estes dias em Macau [dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]ez parte do Grupo do Café Gelo. Como é que funcionava esta tertúlia, influenciada ainda pelo Orpheu? A obra de Fernando Pessoa começou a ser publicada, de facto, nos anos 1940. Nos anos 50, ainda era uma coisa recente. Fernando Pessoa era mítico, havia várias obras não só do Pessoa, como do Sá Carneiro, etc., que não eram acessíveis. O Gelo foi um bocado um acidente. Éramos jovens, com 19 ou 20 anos, e mais ou menos por acidente começámos a encontrar-nos – uns conheciam-se, outros não –, basicamente para fugirmos aos cafés literários. Porquê? Eram chatos? Eram chatos, eram estabelecidos, eram senhores pomposos, importantes. Aconteceu que um grupo de pintores alugou um quarto num sótão perto do Rossio. Não cabiam todos. Eram quatro pintores que partilhavam aquele espaço. Uns desciam e o café mais próximo era o Gelo que, nessa altura, era frequentado por uma clientela de pequena burguesia, pacata, nada intelectual, nada literária. Ia para lá para estar sossegada, não estar naquele ambiente dos cafés literários e dos cafés para estudantes. Uns foram atraindo outros para conversarmos. Eu tinha sido colega de liceu do Gonçalo Duarte, pintor, que me disse que ali tinha uma gente interessante, que eu ia gostar. Fui. Tinha conhecido o Manuel de Castro nessa altura também, ainda no liceu. Uns levaram a outros e sentimo-nos mais ou menos unidos por uma atitude existencial e política, de certa maneira, que era essencialmente de recusa do ‘status quo’, do salazarismo e até das carreiras literárias, da Brasileira, do espírito de promoção e de autopromoção que havia. No meio disto tudo, aparece lá o Mário Cesariny de Vasconcelos que, nessa altura, era um escorraçado social. Nós conhecíamos a obra dele, tinha publicado um livro ou dois. Gostámos muito dele e ele passou a ir ao Gelo. Ele também atraiu outras pessoas. Criou-se um bocado a ideia de que o Café Gelo era uma espécie de segunda ou terceira leva do surrealismo em Portugal. É e não é. E não é porquê? Todos nós beneficiámos da existência do Surrealismo, como beneficiámos da existência do Orpheu, do Futurismo, dessas coisas todas. Mas, com algumas excepções, nem os pintores, nem os escritores que depois vieram a ter o seu bocado de obra se podem caracterizar, de facto, como surrealistas. Herberto Helder não é um surrealista. É um homem que bebeu, com certeza, do Orpheu, mas bebeu da tradição bárdica do século XIX, bebeu da leitura da Bíblia, como se vê pela poesia dele. O Manuel de Castro era um homem muito interessado pelas coisas esotéricas, mas não era um surrealista. Eu não sou um surrealista. Alguns foram mais directamente influenciados pelo Surrealismo, como o Ernesto Sampaio, por exemplo, um nome de referência, extremamente importante – era a pessoa que, na altura, mais sabia de Surrealismo em Portugal, um excelente escritor. E depois também outros mais associados directamente à influência do Mário Cesariny: o António José Forte, o Virgílio Martinho, embora escrevesse mais prosa. Esses assumiram-se como surrealistas. Mas o Herberto, eu, o Manuel de Castro, não. As pessoas gostam de dar rótulos. Pronto, nada contra. A outra dimensão do Gelo, que é extremamente importante, é a ligação com os pintores. Foram fundamentais. Eles foram, de facto, os fundadores do Gelo. O João Vieira, o Gonçalo Duarte, o José Escada, o Costa Pinheiro. Alguns, depois, foram para Paris; outros, como o Costa Pinheiro, para a Alemanha. Reencontraram-se mais tarde em Paris, onde fundaram o KWY. Quando se fala no Gelo, há três Gelos: um inicial, jovens tacteantes; os que saíram e que continuaram lá fora qualquer coisa associada ao espírito do Gelo; e os que ficaram – e esses tornaram-se muito mais ortodoxos surrealistas e ficaram muito mais sob a influência directa do Mário Cesariny. Um notabilíssimo poeta, mas era um senhor que não brincava em serviço. Fingia que não, mas tinha o olho posto na glória póstuma. Ele guardava tudo, todos os papéis… E aquela mania surrealista de quem é ortodoxo e quem não é, quem é bom e quem é mau, aqueles catálogos que já em França havia e que deu sempre naquelas proliferações. Mas, se há uma coisa que unificava aquela gente toda, era uma atitude de recusa, o dizer ‘não’, o não querer pactuar política e socialmente, o desrespeitar as normas estabelecidas. A grande revolução que aconteceu no nosso tempo, recentemente, é de facto a afirmação das mulheres, que é uma coisa maravilhosa. A outra é a grande liberdade sexual, o que é espantoso. Nessa altura, os homossexuais eram perseguidos pela polícia. O Cesariny era humilhado semanalmente porque tinha de ir à polícia dizer que estava a portar-se bem. Nós tínhamos uma atitude de total liberdade em relação à própria sexualidade: cada um dormia com quem quisesse, não era obrigatório nem ser, nem deixar de ser, não entrava no assunto. Isso também era parte dessa atitude de recusa das normas estabelecidas e do sistema. Escrevi um texto que está incluído num livro de ensaios em que uso o título “A Utopia da Negação”: a negação como utopia, como desejo de recusa. O mais importante é sermos capazes de recusar, de dizer não. Os ‘sins’ organizam-se sozinhos, alternativamente. Mas temos de decidir o que não queremos. Se aceitarmos, estamos pactuando no essencial, e isso é que não pode ser feito. Essa atitude vem dessa altura e dessa vivência? Virá dessa experiência. Por outro lado, é uma atitude que levou a esta experiência. Era uma coisa partilhada. Numa loja daquelas muito lisboetas – em que tinha, de um lado, mercearia, e do outro residência do dono – o Manuel de Castro encontrou, na residência, uma coisa impressa que dizia ‘Aqui não se vende’, significando que aquilo não era a loja. O Manuel tirou aquilo e punha diariamente na mesa do café: ‘Aqui não se vende’. A nossa atitude estava, de certa maneira, simbolizada por aquilo. Nós não estamos à venda. Hoje em dia, este tipo de encontros, onde se discute o estado das coisas, da política, da literatura, praticamente não existe. Existe muito menos. É a consequência do desinteresse? Há uma grande proliferação, há muita mais gente que escreve, que pinta, uns bem, outros mal, outros assim-assim. Há uma tentativa um bocado artificial, em Lisboa, de criar uma espécie de grupos. Por exemplo, as pessoas associadas à Abysmo, uma excelente editora, sentem que são um bocado um grupo, mas é mais difícil. Há uma coisa que, felizmente, falta: a repressão. A polícia, o perigo, o proibido, o risco, as torturas, Caxias, choques eléctricos – havia um elemento de risco que agora não há. Vários dos nossos amigos – e eu – aos 18 ou 19 anos, foram presos e torturados, eram uns adolescentes, miúdos. Ainda bem que não existe. Se se quer ser maldito, é por vontade e não por necessidade. Nós tornámo-nos um bocado malditos por sanidade, porque, no fundo, a recusa era a sanidade, a recusa era portarmo-nos mal. Um termo que é muito usado e abusado – o abjeccionismo – não é tanto no sentido que se dá actualmente, da pessoa se portar abjectamente. Não, o mundo em volta é que era abjecto. Ao recusarmos aquilo estávamos, de algum modo, a fazer uma afirmação positiva através da recusa. O que acho muito interessante é que as gerações mais novas estão agora a recuperar um bocado a mitificação do Gelo com o Pacheco, o endeusar literário também do Mário Cesariny, felizmente com algumas consequências muito positivas que foi a redescoberta do Manuel de Castro, que estava esquecido – um notabilíssimo poeta. Consegui que o João Paulo Cotrim publicasse um livrinho do José Manuel Simões, “Sobras Completas”, toda a obra completa dele que ele considerava importante e que me entregou, num envelope castanho, a última vez que estive com ele em Paris. Morreu um ano depois, não querendo voltar a Portugal. Estive uns bons dez anos até conseguir editor e o Cotrim publicou. As “Sobras Completas” é um livro muito giro, muito interessante, muito bom. E há outros que podem ser descobertos. Mas está a haver um interesse grande de várias pessoas a escrever sobre o Gelo. Do Gelo à política. Foi secretário de Estado da Cultura no Governo de Maria de Lourdes Pintasilgo, numa altura complicada, no pós-revolução. Tinha trabalhado politicamente contra o regime, foi essa a razão pela qual não podia estar em Portugal. Depois regressei e, em 1975, fui convidado pelo então Governo provisório e aceitei ser Director-Geral dos Espectáculos. O Governo caiu, houve um período de várias semanas sem Governo, sem coisa nenhuma, uma coisa perfeitamente caótica. Para entrar no meu gabinete, que era no Palácio Foz, tinha de pedir licença aos piquetes. Nessa altura, como não havia muito mais que pudesse fazer, decidi publicar umas notas sobre o que poderia ser eventualmente uma política cultural, o que se poderia fazer. E isso foi publicado no Diário de Notícias que, na altura, era dirigido pelo Saramago. Decidi não continuar, voltei para Londres. No Verão de 1979, eu e a minha mulher fomos de férias a Portugal, de carro, pacatamente. Chegámos a Lisboa, fui ver os meus amigos, que se reuniam no café Montecarlo – o Carlos de Oliveira, o José Cardoso Pires, o Herberto Helder – e o [Augusto] Abelaira diz-me que se falava em mim para secretário de Estado da Cultura. Ri-me muito e disse-lhe: ‘Ah, e fala-se de si para ministro da Saúde’. Quando cheguei a casa dos meus pais, à noite, um telefonema a convidar-me. Fiquei muito surpreendido. O que deve ter acontecido foi que a Maria de Lourdes deve ter lido essas notas, achou que a coisa fazia algum sentido e decidiu convidar-me. Era um Governo provisório, diziam que era 100 dias mas afinal foram cinco meses, foi pouco tempo e, como tal, aceitei. Nunca quis ter uma carreira política. Devo ter sido a única pessoa em Portugal que foi director-geral e membro do Governo e que não tem um chavo de pensão de coisa nenhuma. Portanto, nunca quis coisa nenhuma e queria, precisamente, ter a minha total independência. Depois de o Governo se ir embora, tive três convites para deputado, de vários partidos. Recusei, não quis ter uma carreira política. Mas alguma coisa foi feita e que, depois, por ódio pessoal do Sá Carneiro à Maria de Lourdes Pintasilgo, foi apagada. O que é que foi apagado? Para já, uma coisa sem precedentes na democracia: suspenderam em bloco todos os actos que podiam ser suspensos do Governo da Maria de Lourdes Pintasilgo. Não só na cultura – nos serviços sociais, no trabalho. Tudo suspenso, para tornar a coisa uma espécie de não-Governo, o que é ideológico porque a Maria de Lourdes, sendo católica, tinha um programa muitíssimo mais à esquerda do que o Partido Socialista. Por outro lado, era uma posição antifeminista por ser mulher, que ainda por cima vivia com outra mulher. Na área da cultura posso dizer três coisas: quem criou o Museu de Arte Moderna no Porto foi o Governo da Maria de Lourdes numa sessão pública onde eu estava. Este projecto ficou parado durante uns tempos e depois foi reaproveitado pela Maria Teresa Gouveia, que criou Serralves. A origem de Serralves foi a negociação que fiz em mandar para o Porto, instalado provisoriamente no Museu Soares dos Reis, a colecção de arte moderna do Estado. Uma outra coisa que fizemos foi a compra do prédio da Cinemateca de Lisboa. São coisas que não puderam ser destruídas porque já havia investimento de dinheiro e não se podia recuar. O que fizeram foi obliterar a origem. É impensável que na Cinemateca, que foi um prédio comprado com a minha assinatura, não haja uma referência que esta aquisição foi feita no Governo da Maria de Lourdes. Também não é aceitável que, em Serralves, na sua proto-história, não seja mencionado o mesmo facto. Outra coisa que deixei organizado, e que depois foi feito pelo João de Freitas Branco, foi uma planificação dos teatros nacionais, incluindo a compra do Teatro de São João. Mas isto foi bloqueado mesmo porque foi a tempo. Depois do 25 de Abril houve um painel em que 48 pintores, desde o Pomar ao Escada, pintavam um dos 48 quadrados que faziam o painel. Era um painel fascinante que era, no fundo, a história da pintura moderna portuguesa. Este painel estava instalado no centro de exposições de um pequeno museu em Belém. O director deste museu era o João Vieira, que me disse que as instalações eléctricas naquele local estavam muito precárias. Fiz um despacho para que o espaço fosse encerrado, para que pudéssemos fazer as reparações. O meu sucessor no cargo, como o fecho tinha sido um acto do Governo anterior, mandou abrir o local. O resultado foi que ardeu e o painel desapareceu. Isto é um exemplo anedótico, mas trágico. É pena porque algumas coisas podiam ter ficado melhor, e não ficaram. A planificação da rede nacional de teatros podia ter sido feita. De qualquer forma, o que isto significa é que existiu essa atitude de antagonismo em relação ao Governo da Maria de Lourdes Pintasilgo e do que ela representava. Isso também se manifestou uns anos depois, quando foi candidata à Presidência. Trabalhei com ela nisso e tive várias reuniões, mesmo com militares, e houve uma mudança de atitude porque não aceitavam a ideia de que uma mulher pudesse ser a pessoa que comandava as forças armadas. O que falta hoje em dia à cultura em Portugal? Sou um optimista. Se vivesse em Portugal, se calhar, irritava-me mais. Há sem dúvida mais gente que lê, há uma quantidade muitíssimo maior de gente que escreve. A maior parte é uma porcaria, mas a percentagem dos que têm nível não é, certamente, inferior ao que era. O que há, talvez, é uma grande confusão entre qualidade e quantidade. Tornam-se também grandes sucessos literários pessoas cuja obra não o merece. Mas isto é um fenómeno que acontece em muitos países. Sem citar nomes, se falarmos de escritores que são celebrados como grandes escritores, muitos deles não valem nada. Há outros, menos celebrados, e que são muito bons, mas os escritores excepcionais são poucos em toda a parte. O mesmo acontece na pintura, por exemplo. Há uma democratização da criatividade literária e artística, o que não significa que haja um abaixamento de nível. O que há é gente de baixo nível que produz e que dantes não havia. Se calhar, e sendo optimista, quantidade também pode gerar qualidade. Das pessoas que dantes não tinham acesso nenhum à cultura, agora há mais que o têm e que vão produzindo coisas que se calhar são boas e que, noutras circunstâncias, nunca teriam produzido. A minha atitude é muito mais positiva do que a dos meus amigos em Portugal. Há de tudo e o facto de haver gente que lê aquela péssima literatura de aeroporto, e que compra livros no supermercado, significa que pelo menos lêem. O que faz falta em Portugal é crítica literária. Paradoxalmente, no tempo do Salazar, os jornais portugueses tinham uma coluna de crítica literária. Não era só no Diário de Notícias, mas todos os jornais de Lisboa e do Porto tinham as suas páginas literárias, coisa que agora não existe. Começou por estudar Direito. Foi, mas não acabei o curso porque tive de sair de Portugal a meio. Depois da campanha do General Delgado, envolvi-me numa intentona, as pessoas começaram a ser presas e tive de sair. E como é que apareceu a literatura? Desde pequenino. A minha mãe gostava muito de poesia, lia-me poesia, fazia-me decorar “os boizinhos” do Afonso Lopes Vieira e eu comecei a escrevinhar poesia com uns 11 anos. Fazia umas rimazitas. Naquela altura fazia três coisas: escrevia poesia, andava de bicicleta e jogava futebol. A sua escrita é biográfica, especialmente a poesia. Os romances não são biográficos, com excepção de “Partes de África”, que tem elementos autobiográficos, mas também tem falsificações. Conto como se tivesse acontecido, mas não aconteceu. Dava-me jeito, em termos de narrativa, que tivesse acontecido, o que acabou por me dar problemas porque há algumas personagens que são fusões de possibilidades de ser. É o caso de um médico que é a fusão entre um médico abnegado que conheci e um médico corrupto que havia. Misturei os dois e os filhos do abnegado cortaram relações comigo. O inspector da PIDE que também aparece nesse livro e que acabou por salvar, na verdade, São Tomé, é também a fusão de dois que conheci. Também uso a primeira pessoa com muita frequência na minha narrativa e na minha ficção, mas continua a ser uma ficção. Ponho-me nesse hipotético Hélder Macedo a contracenar com gente que não existe. A estratégia aí é dar credibilidade à ficção, mas, por outro lado, torna fictício o narrador. Na poesia é diferente. Escrevo pouca poesia. Não sou um poeta que escreve habitualmente. Costumo escrever poesia em tempos de viragem. É uma coisa interna. A poesia é uma coisa muito íntima? É. E é necessário ter muita cautela para não nos envergonharmos em público. Estamos em pleno encontro da Associação Internacional de Lusitanistas (AIL). Como é que vê este congresso, o primeiro a Oriente? Quem primeiro sugeriu que fosse em Macau, fui eu. Fui presidente da AIL, depois foram simpáticos e elegeram-me presidente honorário, que é uma óptima posição: uma pessoa manda bocas e não tem de fazer nada (risos). Sempre achei que era fundamental sair da Europa. Como presidente e com o Carlos André como secretário-geral, planeámos depois de um congresso em Oxford fazer uma coisa no Rio de Janeiro. Foi a primeira vez que o congresso aconteceu fora da Europa. Mais tarde, fez-se nos Estados Unidos e depois achámos que era importante fazer em África, e acabou por acontecer em Cabo Verde que, simbolicamente, estava muito bem. A Universidade tinha acabado de ser criada. Depois disso, o passo óbvio era o Oriente. Aí a minha ideia era de que, entre os dois sítios óbvios – Goa e Macau – a escolha fosse Macau, devido à atitude dos chineses. Enquanto em Goa a língua portuguesa foi obliterada tendo tido raízes muito mais fundas do que, alguma vez, teve em Macau, aqui é mantida. Não será muito desenvolvida, mas é mantida. É até é política oficial que podemos ver nos nomes das ruas, nos documentos oficiais. É assumidamente, uma das línguas oficiais e isso é uma atitude inteiramente diferente da atitude indiana. Seria estúpido não escolher Macau. Até como uma afirmação política em relação à Índia. Não é que em Goa tenham obliterado as línguas europeias. Não. O português foi substituído por outra língua colonial, o inglês. Ora, se se mantém uma língua colonial, porque diabo de razão vão destruir uma presença cultural que lá esteve durante 500 anos? Estão a chular a história de Portugal com os monumentos, com as igrejas, retirando a identidade que fazia parte daquela gente e daquela cultura, muito mais do que aqui em Macau. Estas são as razões negativas. Como razões positivas, quando cá vim há quatro anos, a minha ideia era, precisamente, negociar a hipótese de Macau. Fui recebido pelo presidente do Instituto Politécnico de Macau que acolheu imediatamente a ideia, fala um português perfeito, lê Camões e deu-nos condições extraordinárias. A proposta acabou por ser feita em Cabo Verde com muito boas condições. Pode não atrair tanta gente como outros congressos, devido à distância. Tivemos a desistência de umas 40 pessoas do Brasil, 15 dias antes de o congresso começar devido à crise, mas ainda assim, estamos com cerca de 150 pessoas. Na sessão de abertura, a presença do Governo foi notável. O desenvolvimento da língua portuguesa é, obviamente, parte de uma política chinesa. Terão as suas razões, mas a nós também dá jeito.
Isabel Castro Entrevista MancheteEntrevista | Carlos Ascenso André, director do Centro Pedagógico e Científico de Língua Portuguesa do IPM Quem a viu, quem a vê. A língua portuguesa tem hoje uma importância em Macau que não tinha quando Carlos Ascenso André chegou ao território. Há quatro anos, a convicção dos decisores políticos não era um acto contínuo e os vários agentes do ensino do português viviam de costas voltadas. A realidade mudou, mesmo que não seja possível traduzi-la em números, diz o director do centro pedagógico do IPM, que traz por estes dias quase centena e meia de conferencistas para o Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas [dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] a primeira vez que se realiza no território o Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas (AIL). Qual é o significado para Macau? Tem desde logo um significado político, porque representa um reconhecimento do papel de Macau por parte da comunidade académica mais prestigiada do mundo no tocante aos estudos de língua portuguesa, e de literaturas e culturas de língua portuguesa. Claro que não foi por isso que Macau foi escolhido. Macau foi escolhido porque apresentou a candidatura. Fui ao XI Congresso em Cabo Verde, no Mindelo, apresentei e defendi a candidatura, e pareceu-lhes que as condições que Macau oferecia eram boas. Mas, em boa verdade, os decisores – os órgãos executivos da associação –estavam com a candidatura de Macau. Na mente deles existia claramente esta percepção da importância de Macau. Houve aqui um momento chave, quando há três anos convidei Hélder Macedo, que é o presidente honorário da associação, a vir fazer uma conferência a Macau. Ele apercebeu-se do potencial e do papel do território no que toca à língua portuguesa. E foi aí que ele teve a ideia – porque, em boa verdade, esta ideia acabou por ser dele. Estávamos um dia a jantar e ele desafiou-me a organizar aqui o congresso. Já tinha deixado a associação há uns anos e disse-lhe que ia pensar nisso, mas como o levei, umas horas depois, a cumprimentar o presidente do Instituto Politécnico de Macau (IPM), ele voltou a falar no assunto. A partir daí, foi uma bola de neve, começou a crescer e deu este resultado. Mas penso que a primeira grande importância é essa: reconhecer o papel de Macau. A segunda grande importância será chamar a Macau e ao Congresso da AIL académicos chineses, algo inédito neste tipo de iniciativas. É fazer, de facto, este cruzamento, porque é a primeira vez que acontece no Oriente, mas também é a primeira vez que professores universitários da China participam nos congressos internacionais de Lusitanistas. Não posso falar do passado porque não conheço toda a história de Macau do ponto de vista académico, mas também devo dizer que será provavelmente um dos maiores encontros de carácter científico ligados à língua portuguesa que alguma vez aconteceram no território. E isto é verdadeiramente significativo. Para quem está de fora deste tipo de encontros, o que é que se discute efectivamente? Qual é o verdadeiro sumo que se extrai daqui? Estamos a falar de Humanidades em geral. Como dizia um dia Eduardo Prado Coelho, a utilidade das Humanidades é não terem utilidade nenhuma. Escreveu isso num ensaio e nunca mais me esqueci desta frase porque achei-a muito significativa. O que estas pessoas vêm fazer é trazer resultados das suas investigações. Estes encontros são verdadeiramente produtivos. Ninguém apresenta aqui uma comunicação sem que o resumo tenha sido previamente submetido a uma avaliação cega por pares. Para que alguém apresente uma comunicação aqui, ela teve de ser validada. Normalmente são o resultado de investigações em áreas que dizem respeito à língua portuguesa ou aos estudos relacionados com a língua portuguesa. Há sobre cinema, literatura, a conferência de abertura foi sobre cultura, por parte de Elias Torres Feijó, que é um dos grandes professores de assuntos portugueses em Espanha. Há sobre linguística, naturalmente, e depois há várias sobre questões sociais, porque isto mexe com todos os assuntos que tenham quer ver com a língua portuguesa, ou literaturas e culturas dos países de língua portuguesa. E nesta coisa das culturas dos países de língua portuguesa, cabe o cinema, a sociedade, a política, a história recente… Curiosamente, por ser em Macau, há algumas comunicações que têm que ver com este entrecruzar do Ocidente e do Oriente, ou seja, as relações entre o Ocidente e o Oriente, e o papel de Macau nessas relações. Estamos a falar de um total de 48 sessões paralelas. Como cada uma tem, pelo menos, três comunicações, estamos a falar de muitas comunicações ao mesmo tempo. As pessoas distribuem-se por salas e vão ouvir as comunicações, e vão discuti-las. Isto é um congresso científico. Todas estas comunicações serão fixadas mais tarde? Em princípio serão publicadas, não num volume de actas. A associação já deixou, há muitos anos, de adoptar o princípio da publicação do volume de actas, porque é muito caro e depois não tem saída, não interessa a ninguém. É preferível fazer edições digitais e separadas por temas. Todas estas comunicações serão publicadas ainda este ano ou no próximo, mas em volumes temáticos. Sou dos fundadores da associação. Lembro-me que o primeiro volume de actas que publiquei, depois do primeiro congresso em 1984. As provas tipográficas foram todas corrigidas por mim. Estamos a falar de 500 ou 600 páginas de livro com temas que vão desde a história medieval, passando pela história das navegações, literatura brasileira, literatura galega… Depois ninguém quer aquele livro porque tem duas coisas que lhe interessam, mas tem 80 que não lhe interessam nada. A melhor solução, normalmente, são os volumes temáticos. Está cá há quatro anos. A afirmação do papel da língua portuguesa deu o salto de que estava à espera? Deu. Há grandes avanços. Podem não se medir em números, mas não estou muito preocupado com a estatística. Não sou daqueles que está a olhar para os números porque acho que o trabalho que se faz neste domínio só se sente daqui a cinco ou dez anos. Não é possível saber, no imediato, se a mercadoria foi vendida. Agora, vejo que é cada vez maior o empenhamento de quem tem nas mãos a decisão política em relação às questões do português. É particularmente visível que, quem tem de decidir, tem tomado posições muito claras em relação ao papel que Macau tem a desempenhar no que diz respeito ao português. Refiro-me no caso concreto a Macau, a quem exerce lugares de decisão em Macau – desde o Executivo, nomeadamente o secretário que tem esta responsabilidade, Alexis Tam, aos vários órgãos da Administração, nos diversos patamares onde isto tem de ser decidido – e refiro-me ao Governo Central. Não há dúvida de que aquilo a que assisti nos últimos quatro anos já não é falar disto de vez em quando, é uma insistência cada vez mais clara e nítida nesta missão de Macau no que toca ao diálogo com os países de língua portuguesa. Claro que tem que ver muito com as economias emergentes. Tem que ver com a crença que existe – e do meu ponto de vista é fundamentada – do crescimento de Angola, Moçambique e Brasil. Hão-de sair desta situação em que se encontram e quem souber estar a ocupar as posições agora, estará na grelha de partida. A China percebeu claramente isso, e percebeu que Macau tem esta herança e esta capacidade de fazer que provavelmente mais ninguém tem. Há uma grande diferença, por exemplo, entre Macau e a Índia e Goa. Dizem que, no próximo ano, vai haver um grande congresso de lusofonia ou de língua portuguesa em Goa. A grande diferença entre o que estamos a fazer agora, desde ontem, e aquilo que vai acontecer em Goa é que aqui isto é consequente. Há empenhamento político, e quem manda aqui põe meios e recursos ao serviço das conclusões que resultarem deste tipo de encontros. O que se faz em Goa é um fenómeno político que se esgota em si próprio. Passado o tempo do congresso, não vai acontecer nada. Nota-se também uma diferença entre quem tem a responsabilidade do ensino da língua portuguesa em Macau, que passa por uma união que não existia, até com a criação da Associação de Estudos de Língua Portuguesa da Ásia. Passa pela associação e por pôr as pessoas a conversar. Este ano aconteceu uma coisa muito interessante e, não sendo particularmente relevante do ponto de vista científico, teve esse significado. Houve aqui um congresso sobre literatura e filosofia, uma iniciativa que veio de fora, e foi-nos perguntado se estávamos disponíveis para a acolher. A iniciativa vinha de Portugal, a pergunta era feita ao IPM, também tinha sido feita à Universidade de Macau (UM) e à Universidade de São José (USJ). Enquanto andávamos nisto, tomei a decisão de contactar as minhas colegas, tanto na UM, como na USJ, e perguntar-lhes por que não discutíamos isto em conjunto. E, de facto, discutimos e organizámos em conjunto. Embora a comunicação social tenha dado notícia, passou mais ou menos despercebido o facto de que as pessoas da UM fizeram as suas comunicações no IPM, as pessoas do IPM fizeram na UM, as pessoas da USJ fizeram num lado ou noutro. Cruzámos os intervenientes. Isto nunca tinha acontecido em Macau. As instituições eram quintas que funcionavam em circuito fechado e isto nunca tinha acontecido em Macau. Aquele programa foi concebido numa reunião entre mim, Inocência Mata e Maria Antónia Espadinha. Sentámo-nos à volta da mesa, fizemos um programa e decidimos, ao fazê-lo, que tinha de ser assim. As pessoas não iam falar na sua própria casa, tinham de falar na casa do vizinho. Este cruzamento é vantajoso. Precisamos de pôr as instituições de Macau a cooperar. No IPM, assinámos um protocolo com o Camões, há uns meses. Mas esse protocolo abrange o Instituto Português do Oriente (IPOR). A relação que existia muitas vezes entre instituições e o IPOR era uma espécie de concorrência que não faz qualquer sentido, porque o objectivo e a acção do IPOR são fantásticos, mas não são os mesmos das instituições de ensino superior. Nós trabalhamos no ensino superior e o IPOR não. Há aí uma fronteira clara. Só ganhamos todos em cooperar uns com os outros. O facto de fazer um protocolo e abranger o IPOR não quer dizer que isto já esteja a dar resultado. Mas não tenho pressa, vamos lá chegar. A interacção tem de existir. A associação vai ser isso. Ainda só está no papel, já foi feita a escritura. Tem de passar o Verão para nós – eu, João Laurentino Neves e Fernanda Costa – passarmos a pasta a órgãos eleitos. E não somos nós. Tem de haver pessoas que peguem na associação. Mas passamos a ter uma associação que federa toda a Ásia. E isto é algo de novo em Macau, é um espírito novo. Tem de fazer o seu caminho, não tenhamos pressa, mas é um espírito novo. Como é que foi este ano lectivo no Centro Pedagógico e Científico de Língua Portuguesa? Foi um ano muito produtivo. Multiplicámos por dois o número de acções no Interior da China. Fizemos muitas mais acções do que fazíamos – também temos mais docentes e mais recursos. Quanto ao nosso número de publicações, chegaremos ao final do ano com dez livros publicados. Ganhámos o peso da responsabilidade do ponto de vista das publicações quando um livro que publicámos no ano passado, “O Delta Literário de Macau”, de José Carlos Seabra Pereira, ganhou o mais prestigiado prémio de ensaio em Portugal, o Prémio Eduardo Prado Coelho da Associação Portuguesa de Escritores. É um livro nosso, temos de assumir isso. O livro é da autoria de José Carlos Seabra Pereira, é um livro nosso, que foi escrito porque o convidei a estar em Macau durante um ano. Disse-lhe que tinha de dar aulas a apenas uma ou duas turmas, uma coisinha de nada, mas que tinha de escrever um livro sobre este assunto. E ele aceitou o repto. Temos uma fortíssima responsabilidade naquilo. Ganhar um prémio é, para nós, muito significativo. Entretanto, aquilo que ganhámos com esta consciência foi de que se o Interior da China precisa de materiais, temos de produzi-los. Já começou a série de produção e daqui até ao final do ano civil vão sair mais seis ou sete. Um saiu agora, sobre o ensino de fonética com canções. Utilizamos canções portuguesas para ensinar fonética, uma metodologia nova. É bom que Macau tenha consciência de que há coisas pioneiras que se vão fazendo aqui.
Isabel Castro Entrevista Eventos MancheteEntrevista | Anabela Leal de Barros, investigadora No modo como se fala estão muitas vidas, muitas centenas de anos, muitos barcos que chegam e partem. Anabela Leal de Barros, docente e investigadora, vai atrás da história das palavras, mas também das histórias das pessoas. De casa em casa, de escola em escola, fixou contos e lendas de Timor-Leste. Hoje, é lançado em Macau “Rumando de Lés a Leste – Contos e Lendas de Oecusse”, um livro cheio de gente [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo é que surgiu o interesse por Timor-Leste? Para além do facto de todos os portugueses nascerem com o gene “amigo de Timor-Leste” e terem andado anos a sonhar com a sua libertação?… Quando lá cheguei pela primeira vez, em 2002, e vi tudo o que havia a fazer para a implementação real do português como uma das duas línguas oficiais, e vi aquelas montanhas relvadas a cair a pique sobre aquele mar turquesa bordado de búzios, e vi aqueles sorrisos sempre a radiar, seja por rios secos ou caminhos pedregosos, percebi que ou ia de vez ou ia muitas vezes. Antes deste livro há um trabalho no país. Que percurso foi este que levou à decisão de recolher contos e lendas de Oecusse? Começou por ser a lecionação, enquanto docente da Universidade do Minho, de disciplinas de Linguística na Universidade de Timor Lorosa’e (UNTL), em 2002 e 2003, no curso de Português (uma das licenciaturas que a Fundação das Universidades Portuguesas então oferecia em Timor), e mais tarde no Mestrado em Formação de Professores, ramo de especialização em Língua Portuguesa, com orientação de mestrandos e participação em júris de provas, que a Universidade do Minho leccionou no INFORDEPE (Instituto Nacional de Formação de Docentes e Profissionais da Educação) e na UNTL (2012 a 2015). Nesses 14 anos percebi que os professores timorenses que frequentavam esses cursos guardavam pelo menos dois tesouros em situação precária e a merecer estudo: o português de Timor, com traços locais, asiáticos e antigos, e a literatura timorense de tradição oral. Eram maioritariamente os mais velhos, que frequentaram a escola em língua portuguesa, antigos guerrilheiros e membros da Resistência que antes a tinham usado como código, dificilmente decifrável pelos indonésios, e por fim tinham passado a ensiná-la, ainda sem habilitações superiores, quase generalizadamente. Comecei a sensibilizá-los e prepará-los para a recolha desse material, publiquei os “Contos e Lendas de Timor-Leste” (2014), deixei metade dos textos de 2002 para outro livro e, com o lançamento de uma edição revista e ampliada daquele, a 27 de Novembro de 2015, no âmbito das Comemorações dos 500 anos da Chegada dos Portugueses a Timor-Leste, no enclave de Oecusse, inaugurei uma nova fase: instalado o “vício” da recolha e salvaguarda dos contos e lendas, passei a dedicar-lhe períodos exclusivos ‘in loco’, de casa em casa e de escola em escola. Daí o novo livro, e mais dois, um deles em co-autoria com um antigo orientando de mestrado. Oecusse é o único município isolado do resto do país. Até que ponto esta localização geográfica específica se repercute nos contos e também na oralidade? Em todos os municípios de Timor-Leste abundam ainda os contos e lendas por recolher e registar, e quando contados em português, a partir de uma das dezenas de línguas maternas timorenses, trazem traços antigos e locais ainda não devidamente recolhidos e descritos. Contudo, Oecusse é aquele onde essa aventura impõe mais desafios; para se imaginar o quanto esteve isolado no passado basta sabermos que no século XXI o enclave ainda fica fechado por terra das cinco da tarde às nove da manhã; por mar, o barco leva meio dia a chegar de Díli e não é diário; pelo ar, o avião também folga um dia, quando não mais, ao sabor do tempo atmosférico. ‘Isolado’ no meio da ‘ilha’ (do latim ‘insula’), ‘ilhado’ no meio da Indonésia, Oecusse e os seus mais velhos são os depositários de um português que fascina escutar e investigar, à medida que se escavam os contos. O indonésio envolvente, o baiqueno materno, o tétum veicular e oficial, o inglês, outras línguas importadas dos municípios timorenses de leste, entrelaçam-se e confluem de algum modo nesse português que muitos guardam e nos entregam com um sorriso a seguir a um “Tardi!”, “Noiti!”, às vezes “Boa tarde”, “Boa Noite”, mas sobretudo “Bom dia/Dia!” apenas na voz dos mais puristas. Com os progressos cada vez mais evidentes do inglês, e em inglês, começamos a ouvir “Morning, sir!”… Quanto à repercussão nos contos, para além dos “bordados” que exibem nessas línguas, pois as palavras vão afluindo (quem conta em baiqueno prefere por vezes nomear certas realidades em tétum, ou até em indonésio, língua de desambiguação mesmo entre timorenses) e enquanto linguista é minha obrigação mantê-las no texto (com anotações em rodapé), também os contos são por vezes de fonte ou influência indonésia, tal como outros viajaram há muito de Portugal e acabaram adaptados e adoptados como locais; ou então migraram de outros municípios. Contos leva-os o vento, seguem os contadores para onde quer que vão e, a certo momento, passam a ser cidadãos do mundo. Daí que faça sentido começarmos por conhecê-los no seu lugar de nascimento, e depois, se possível, irmos seguindo as suas passadas, pois mal começam a andar, ensaiam caminhos e voos mais altos e cada vez mais longos. A recolha das histórias que compõem este livro foi feita casa a casa. Como é que foi o trabalho de campo? Foi no campo. Atravessei leitos de rio onde quase só corriam pedras e poeiras, subi montes, desci vales (tomo este isocolo à poesia barroca), bem devagarinho (que não haveria sinalização que valesse a tanto abismo, derrocada, área esburacada, charco, porco, galináceo e caprino a fazer-se à estrada). Foi à queima-roupa. Sem marcações, iam-me levando de casa em casa; cada contador acompanhava-me ou indicava-me a casa ou a escola de outro — de moto, de microlete, em longas caminhadas a pé; por vezes começava por fotografar as flores de um jardim e acabava a registar um conto e a provar fritos de coco. Os contadores, desprevenidos, muniam-se logo de um sorriso e de uma cadeira, mal me viam à distância, entregavam-me o seu tempo sem nunca regatear, íamos buscando palavras nos dicionários de todos os que arriscavam estar presentes (em baiqueno, em tétum, em indonésio, em português), e ora a ferros, ora com ventosas, ora de parto fácil e natural, lá vinha o conto, com o café de Timor bem docinho. No fim, valia sempre a pena; o conto aflorava limpo, provando, afinal, que o português não é assim tão difícil, e a satisfação geral quado lhes lia o resultado “final” é a minha melhor memória. Procura-se com esta obra não só fixar a tradição oral de Oecusse, mas também o “português timorense” que, no enclave, tem características especiais. Que características são estas e como foi o processo de escrita dos contos e lendas recolhidos? As eventuais características exclusivas do português deste distrito só serão discerníveis quando todos os traços específicos do português timorense estiverem descritos; sem ambicionar já a fazer essa destrinça, sem efectuar essa joeira, posso contar que, enquanto investigadora e docente de História da Língua Portuguesa, há mais de 20 anos, vibrei ao ouvir falantes de Oecusse lamentarem hospitaleiramente não terem mais a oferecer-me para além de ‘água cozida’ (hoje, em português europeu, sempre ‘água fervida’): o adjectivo/particípio passado presente nos dicionários antigos (logo desde o vocabulário manuscrito de português-chinês de Ricci e Ruggieri, do século XVI, e também nos manuscritos lexicográficos em chinês-português dos sécs. XVII e XVIII). Ou ainda ver e fotografar em Padiae uma ‘sintina < sentina’ (‘sanitários públicos, casa-de-banho’), ler nas ementas ‘assadura’ (‘carne grelhada’), ouvir dizer ‘chumaço’ (‘almofada, cheia’), ‘lapiseira’ (‘caneta, esferográfica’), ‘baliza’ (‘fronteira’). Em termos morfossintácticos, diz-se em Timor sempre ‘ribeira’ (não ‘ribeiro’), ‘pequeninho’ (não ‘pequenino’), ‘gémeos de três’ (decalque do tétum para o cultismo ‘trigémeos’, desconhecido), ‘pente de bananas’ (mais específico, pois ‘cacho’ é todo o “braço coberto de pentes” dado por uma bananeira), ‘tempo da chuva’ (não ‘das chuvas’); ‘tempo da colheita’ (não ‘das colheitas’). No âmbito dos intercâmbios linguísticos, achei no baiqueno (ainda sem norma ortográfica) ‘teto/tetu’ (indicando também o ‘telhado’ e o ‘forro’ das cabanas com uma parte ao ar livre onde se sentam os vigilantes dos pássaros no meio das várzeas), ‘parinseza/parincesa’ (‘princesa’), ‘cantareiros’ (‘canteiros’, os vários patamares ou pedaços de terra alagada que compõem uma várzea ou arrozal, com pequenas “paredes” para conter a água). Neste momento, os professores timorenses mais conhecedores do português manifestam certas perplexidades a esse nível. Por exemplo, por que está a televisão a preferir somente a palavra ‘arroz’, quando todos sabem que em Timor se distingue o ‘néli’ ou ‘néle’ (‘grão cru, planta, semente, grão por descascar’) e o ‘arroz’ (‘grão pilado, descascado ou já cozinhado’). A verdade é que é preciso urgentemente legitimar essas distinções locais, que Sebastião Rudolfo Dalgado já tinha registado, sem esquecer que os termos asiáticos viajaram e foram partilhados; esse veio da Índia, permite uma distinção lexical e semântica de crivo mais fino, justificável numa área geográfica em que o arroz é a base da subsistência, e muitas vezes prato único, ainda hoje. Enfim, os traços são muitos, todos os dias me aparece e fascina algo novo que conheço dos dicionários e manuscritos antigos — mas que aí me aparece ainda falado. Depois, surgem-me os termos locais e de línguas vizinhas que chegaram ao português europeu no período dos Descobrimentos: sobretudo palavras do malaio-indonésio, como ‘areca’, ‘arequeira’, ‘gamute’, ‘gamuteira’, ‘tuaca’, ‘tuaqueira’, ‘gondão’, ‘gondoeiro’, ‘gundieiro’, ‘casuarina’, ‘bétel’, ‘canária’, ‘parão’, ‘tuaca’, ‘lorico/louro’ (antes ‘loro’, o ‘papagaio’), ‘suco’, ‘cacatua’ (em português europeu, hoje, só ‘catatua’, mas sendo aquela a forma etimológica), ‘barlaque’, ‘catupa’. Algumas chegaram-nos já através do tétum. Outras são mesmo do tétum, como ‘tais’ (os lindíssimos panos tradicionais de algodão colorido tecidos pelas timorenses). Vou anotando essas formas nos livros de contos e investigo-as depois em artigos científicos, mas seria aborrecido impor o meu entusiasmo nas já longas listas que agora me ocorrem, embora assim ‘de cor’ (e é mesmo ‘de coração’), e mereceria então ‘que me enfiassem uma peúga pelas goelas abaixo’, como diz o Woody Allen para explicar que “o mal é o bem em excesso”. As histórias que os mais velhos sabem têm uma importância especial em Timor-Leste, certo? Timor-Leste é tão rico de histórias como pobre de livros. Os livros permanecem ainda nas memórias dos falantes, mas todos os dias vão falecendo e falhando com elas e eles. Com os contos, falece o português. Não só o de outrora, que me interessa tanto, mas também o do futuro, que nos deveria interessar a todos, porém, não somente para enfeitar discursos políticos e camuflar interesses económicos. O meu oásis são as escolas. Os professores sabem o que os contos valem e já sabem a importância de os fixar e guardar em português. Trabalham comigo, num intervalo das aulas, no seu pouco tempo livre, juntos, um falando baiqueno, e depois tétum, e entretanto indonésio, e algum inglês (entre os mais novos), e por fim português. Os timorenses são multilingues. Daí, também, o valor de, no meio de tantas línguas, ainda guardarem espaço de cor, de coração, para a portuguesa. E para as histórias que ela mesma conta. Por exemplo, em Oecusse existe uma Lagoa a que chamam, mesmo em baiqueno, ‘Lagoa Sina’, mesmo ao lado do lugar onde aportaram pela primeira vez os portugueses em 1515: a praia de Lifau. ‘Lagoa Sina’ inclui, não o substantivo ‘China’, como parece a um leigo do século XXI, mas o adjectivo ‘chino, -a’, a forma antiga exclusiva para se dizer em português ‘chinês, -a’, como ainda hoje em castelhano (‘yo soy chino/ella es china’). Essa palavrinha conta uma história: os comerciantes chineses foram-se instalando muito cedo nesse sítio, onde hoje já se desmoronaram as construções que os abrigaram, mas a língua, essa, não esquece a história e continua a dar-lhe abrigo. Quais são os próximos projectos? Para além de meia dúzia de livros já prontos sobre outros assuntos, que vão sofrendo há anos (fechados no computador) a prioridade que dou aos de Timor (mas também aos manuscritos e impressos antigos de Macau e da China, em vias de publicação), da literatura timorense de tradição oral sairão em breve mais dois livros de contos, e outro de Oecusse que recolhi em Junho-Julho deste ano, enquanto aguardava que chegasse de Macau (em quatro dias), mas sobretudo de Díli (em mais 15 dias), o livro “Rumando de Lés a Leste. Contos e Lendas de Oecusse”, para o lançamento. Outros projectos incluem contributos para a definição de normas ortográficas e a construção de dicionários para certas línguas locais, ou o estudo do intercâmbio e das interferências dessas línguas maternas no ensino-aprendizagem do português, para o que a colaboração dos estudantes, docentes e orientandos de mestrado e doutoramento timorenses serão cada vez mais indispensáveis.
António Conceição Júnior EntrevistaElisabela Larrea | Uma macaense confessa Elisabela Larrea é uma jovem de Macau, filha de mãe macaense de sétima geração e de pai basco. As deambulações do pai, jogador de Pelota Basca, fizeram com que nascesse em Milão. Elisabela escreve e fala cantonense, mandarim, inglês e português. Faz parte do Grupo de Ópera Chinesa Au Kuan Cheong, interessa-se por Naam Yam (som do sul), ópera chinesa e patois de Macau e venera e respeita o seu sifu chinês. O grupo dramático chinês de que é membro tem planos de levar à cena uma peça adaptada de um conto do livro Cheong Sam de Deolinda da Conceição. Do avô materno, Vicente Honório Gomes Eusébio, ouviu histórias da Macau antiga. A avó, Maria Eusébio, era excelente cozinheira, passando-lhe o gosto pela gastronomia local. A jovem Elisabela prepara, de momento, o seu doutoramento em comunicação intercultural na Universidade de Macau, cujo tema central recai sobre o teatro creoulo Macaense. Entretanto, do seu curriculum já constam dois importantes trabalhos: Identidade Macaense na rede global: desempenho da identidade macaense na Internet. Documento de conferência apresentado no simpósio internacional sobre identidade nacional e futuras relações através do Estreito, em Macau,R.A.E.M., China, de 2008, e O Macaense na Rede Global: um estudo de desempenho da identidade cultural macaense pós-colonial, sua Tese de Mestrado apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanidades da Universidade de Macau, também de 2008. Elisabela Larrea é discreta e conhecê-la é descobrir um tesouro de interesses que merece ser revelado. Depois desta sua breve apresentação, como definiria ser Macaense? Em minha modesta opinião, é identificarmo-nos orgulhosamente com a identidade Macaense, com a sua cultura e modo de vida. Há diferentes leituras do que é ser Macaense: através de ligações genealógicas, outras pelo uso da língua, porém, em última análise, o critério consistente destes argumentos é a ligação a Macau, isto é, a identificação de Macau como o lugar das suas raízes. Somos filhos da terra, pertencemos a este solo. Somos a mistura de diferentes culturas e origens, com uma singular cultura crioula muito nossa. A identidade Macaense é versátil, com mutações ao longo do tempo e envolvência social, contudo uma coisa permanece a mesma: Macau é a nossa casa. O que a fez escolher estudar chinês e inglês em alternativa ao português? Essa foi uma decisão tomada pela minha mãe quando eu era pequena. Do seu ponto de vista, era que eu deveria aprender línguas que não podia aprender em casa. Ela fala português e cantonense, mas não sabe ler e escrever chinês. Assim, quis que eu aprendesse chinês e inglês na escola, uma vez que eu poderia aprender português em casa. Fazia com que eu assistisse diariamente ao noticiário português e encorajou-me a terminar os meus dez níveis de estudo de língua portuguesa no IPOR. Acredito que é essencial para um macaense aprender português para compreender e conhecer melhor as nossas raízes culturais e história, embora a nossa prática seja a de uma cultura portuguesa oriental. Fala do seu avô com especial afecto. De que forma a sua influência pesou nas suas? O meu avô adorava livros. As imagens que tenho dele são principalmente dele a ler um livro ou o jornal na sala de jantar, ou segurando uma National Geographic no seu quarto. O avô gostava de guardar recortes de jornais e registar ocorrências aleatórias em vários cadernos. Aleatórias no sentido de que podem ser o registo do boletim meteorológico do dia, os benefícios de certas vitaminas ou citações de figuras políticas. Guardei apenas um ou dois desses cadernos, mas que me permitem ter um vislumbre do passado. Ele gostava de passear pelas ruas de Macau com sua pequena sacola, onde guardava os óculos, um lápis, um jornal e um papel em branco. O seu amor à sua terra natal e o seu gosto pelo conhecimento levaram-me a decidir dedicar-me à preservação e promoção da nossa cultura. Com um background tão enraizado na cultura macaense, como é que a música Naam Yam entrou na sua vida? Acredito que foi o destino que me levou ao Naam Yam. O meu primeiro encontro com a ópera chinesa deu-se quando ainda muito jovem. A minha avó levou-me a assistir a apresentações em Cheok Chai Yuen (Bairro da Horta da Mitra). Conheci há alguns anos Ho Chi Fong, um dedicado estudante do Professor de Naamyam, o Mestre Au Kuan Cheong. Como local, não deveria perder qualquer oportunidade de saber mais sobre o nosso património intangível. As actuações e a personalidade do mestre Au Kuan Cheong fascinaram-me; a sua tranquilidade, humildade e carácter apaixonado serviram-me de modelo. Eu estava entusiasmada em poder aprender com ele. Outro motivo pessoal para ter querido aprender Naamyam foi a memória dos momentos passados com a minha avó e Macau antigo. É que durante as performances, sinto como que passo por uma porta do tempo e me conecto com o passado. Falando da sua investigação sobre a cultura e identidade macaense, quer partilhar as conclusões do estudo acerca do desempenho da identidade cultural macaense no período pós-transição? Não cheguei a conclusões, mas antes a uma constatação: a identidade macaense é versátil, depende do ambiente social e político envolvente. Somos filhos da terra, pertencentes a esta pequena terra, independentemente da soberania. No entanto, estamos sendo diluídos e engolidos culturalmente devido a factores como a globalização, emigração, mudanças demográficas, medidas administrativas, etc. A definição de Macaense no período de pré-transição não pode agora não ser aplicável. Por exemplo, os critérios convencionais que determinam a identidade macaense através do uso da língua portuguesa como língua matricial. Não há dúvida que os jovens macaenses têm um certo nível de proficiência em português, mas é esta a sua língua primeira? Outro exemplo será o critério de sangue. A segunda ou terceira geração podem não ter qualquer herança portuguesa, mas têm um sobrenome português, identificam-se como macaenses e seguem o modo de viver macaense, não serão eles também macaenses? Eu acredito que enquanto guardarmos a nossa identidade macaense, ninguém no-la pode tirar, a menos que optemos por a abandonar. Enquadra-se na definição que enunciou? Acredito que não existe uma só definição para a identidade macaense. Tem havido muitas discussões entre a comunidade, eu só me vejo como uma simples macaense apaixonada por Macau. Considera-se uma ponte entre comunidades? Macau sempre foi um cadinho de culturas, juntando culturas diferentes e produzindo uma outra, singular. Acredito que cada um de nós pode ser uma ponte entre diferentes comunidades se escolhermos essa via, dedicando tempo e esforço para nos entendermos e nos respeitarmos mutuamente. Podemos atravessar os limites se estivermos dispostos a partilhar, ou seja, não apenas a ouvir e aprender, mas também a contar e a compartilhar. Se queremos que outras comunidades conheçam a cultura macaense, temos de falar sobre ela. Essa responsabilidade é nossa. Acha que a população de Macau está a passar por uma crise de identidade? Se sim, porquê? Eu diria que a crise de identidade está acontecendo em todas as comunidades, especialmente devido à forte influência da tecnologia e da globalização. A gastronomia é um exemplo. A gastronomia permite transmitir práticas, valores e cultura tradicionais, o que tem uma influência significativa na construção da identidade. No entanto, a geração mais jovem de diferentes países opta pelo fast food global, reduzindo assim a oportunidade de construir a sua própria identidade cultural. Hoje, muitas pessoas optam por um modo de vida mais conveniente e fácil, e a cultura tradicional exige o contrário. Manter a cultura tradicional exige que dê do seu tempo, exige paciência, devoção e dedicação. O conforto e comodismo leva as pessoas a esquecerem a beleza do artesanato, o respeito pela cultura, valores e arte tradicionais. E essas “escolhas fáceis” levam gradualmente à crise da identidade, e temos que ter a iniciativa de lutar contra isso. Dá um grande consolo que muitos locais se esforcem por preservar a sabedoria de seus mais velhos, buscando manter a cultura tradicional dando assim continuidade à sua identidade cultural.
João Luz Entrevista EventosEntrevista | Duarte Drumond Braga, académico Começou por se interessar pelas representações da Ásia na cultura e literatura portuguesa, mas passou para o lado do estudo das pessoas que escreveram em português em territórios asiáticos. Hoje em dia, Duarte Drumond Braga estuda um tesouro cultural de valor inestimável e totalmente desconhecido: o acervo literário indo-português e as relações entre Goa e Macau [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo começou a sua incursão pelas literaturas em português no Oriente? Trabalhei um pouco a questão das representações da Ásia na cultura e na literatura portuguesa. Depois quis estudar o outro lado, as pessoas que estiveram na Ásia e escreveram em português. As literaturas em língua portuguesa na Ásia são traduções literárias muito pouco estudadas, desconhecidas, talvez a mais conhecida seja mesmo a de Macau. Há uma literatura em português em Timor, mas a menos conhecida dos três é a de Goa, algo misteriosa por ser uma literatura de consumo interno. Encontra-se a estudar esse espólio literário indo-português. O que tem encontrado? Estou a estudar a relação entre Goa e Macau na literatura portuguesa, ao abrigo de uma bolsa de pós-doutoramento da Universidade de São Paulo, o projecto “Pensando Goa (Fapesp)”, assim como o projecto do “Orientalismo Português”, da Faculdade de Letras. O projecto de São Paulo é megalómano, com mais de 40 investigadores portugueses, brasileiros, americanos, indianos, e propôs-se estudar esse acervo. Se temos, mais ou menos, a noção das literaturas africanas em língua portuguesa, quem são os seus autores, que livros escreveram, existem também listagens, dicionários e índices. Muito pouco disso existe na literatura indo-portuguesa. Ainda há um trabalho de reconhecimento do acervo que tem de ser feito e que tenho ajudado a fazer no âmbito desse grupo. O acervo é enorme, o que é surpreendente tendo em que conta que o português sempre foi altamente minoritário em Goa, talvez até mais do que em Macau. É uma produção que está ligada aos goeses católicos, que escreviam em português, e é um pouco uma literatura de consumo interno. Há muita coisa que não chegou a sair de lá. Apesar de ser de consumo interno, isso não quer dizer que seja uma literatura provinciana, é interna só no sentido em que há uma comunidade pequena que produz e lê essa literatura. Em que estado de conservação se encontra o acervo? Estamos a falar sobretudo de produção do século XIX e XX, porque tudo o que está para trás é meio incerto, pouco conhecido. Há autores goeses a escrever em português logo desde o século XVI, mas as coisas mais antigas estão em mau estado de conservação. As coisas mais modernas, séculos XIX e XX, estão em condições relativamente frágeis, mas aceitáveis. Há muitas coisas em bibliotecas em Pangim, sobretudo, outras estão em bibliotecas privadas dispersas por Goa. Uma parte importante deste projecto da Universidade de São Paulo é digitalizar o máximo de coisas possível, mesmo as coisas que estão em bom estado e que se vão deteriorando com o clima, a humidade, para ficarem preservadas. Também há a questão de, eventualmente, disponibilizar na Internet algumas das obras para que caíam em domínio público e serem conhecidas. O grande problema aqui é que estamos a falar de autores que ninguém leu, que não têm reedições modernas. Apesar de haver, e isto é impressionante, editoras a publicar actualmente em português em Goa. A editora do Frederick Noronha é um exemplo. Chama-se Goa 1556, a data da introdução da imprensa na Índia via Goa. Embora o público leitor seja reduzido, publica-se literatura, até ensaio, memórias em português. Isto apesar de o inglês ter ganhado protagonismo. As famílias que falavam o português mudaram para o inglês, o português é falado mais como uma língua doméstica. Quem eram estes escritores? Existe diáspora portuguesa em Goa, assim como em Macau, mas a questão é que o grosso desta literatura é produzida mesmo pelos goeses. Os portugueses quando conquistaram Goa forçaram camadas vastas da população hindu a converterem-se em massa. Esses conversos adoptaram nomes cristãos, portugueses, geralmente o nome do padre que foi o padrinho. Fizeram uma conversão cultural, abandonaram os moldes culturais do hinduísmo, adoptaram o catolicismo. São esses que no século XIX, e antes, produzem essa literatura. Mas há também os descendentes de portugueses nascidos na Índia, já não são diáspora, são segundas e terceiras gerações. Que retrato da sociedade se pode tirar deste acervo? É um meio bastante misterioso que ainda estamos a tentar compreender. Podíamos traçar alguns paralelos com a comunidade macaense na medida em que os goeses se assumiram como portugueses do Oriente. Mas, na verdade, têm uma entidade distinta dos portugueses e souberam marcá-la bem nos momentos chave. Tenho usado como chave para ler os goeses uma frase de um autor chamado João da Veiga Coutinho. Um nome portuguesíssimo. Ele publicou um livro chamado “Uma Espécie de Ausência”. Nesse livro ele diz “nós goeses éramos portugueses, mas não éramos os portugueses”, para mim está aí o segredo todo. Éramos portugueses, pertencíamos ao império, tínhamos cidadania portuguesa, mas não éramos “os portugueses”. Não éramos os portugueses no sentido em que éramos subalternizados pelos portugueses que estavam no topo da hierarquia colonial. Também nesta frase ele está a tentar demarcar-se, criar uma identidade distinta dos portugueses, reclamando para os goeses uma forma também de ser português. Porém, é preciso evitar cair no discurso perigoso de ver estes territórios como meras projecções de Portugal, são territórios complexos, multilinguísticos. A literatura em língua portuguesa nunca existiu sozinha, ela intrinca-se com o inglês, com o concani, portanto é preciso deixar claro que são territórios muito plurais, tal como Macau. De maneira alguma são projecções de Portugal no Oriente. Por outro lado, os goeses sempre que lhes conveio politicamente, simbolicamente, quiseram reclamar para si também uma pertença a essa identidade portuguesa. Em que moldes se tem estabelecido a ligação Goa – Macau em termos literários? É importante entender que Goa, Macau e Timor funcionam um pouco em rede, em sistema. São espaços insulares do Império na Ásia, dependem uns dos outros e quanto mais para trás mais eles estão ligados. Os governadores de Macau vinham de Goa, eram eleitos e vinham para cá porque Goa era bem mais importante do que Macau nos séculos XVI, XVII e ainda no XVIII. Essa situação só vai terminar, creio, que em 1844/45. Timor também, a certa altura, depende de Macau. Isto funciona em rede em termos administrativos e eclesiásticos. Creio que Timor pertenceu à diocese de Macau durante uma data de anos. Não há um contacto muito directo entre escritores de Goa e Macau. Ainda um pouco fora da literatura, há goeses que viveram em Macau e vice-versa. Um exemplo interessante é a Escola Médico-Cirúrgica de Goa, que a certa altura era a única unidade de ensino superior no Ultramar. Houve macaenses que foram estudar medicina para Goa, uma ligação um pouco inusitada. Neste contexto de rede, quais as distinções entre a literatura de Goa e Macau? É preciso ver que estamos a falar só da produção em língua portuguesa, que é um recorte sempre artificial. Estamos a falar só de secções. Parece-me que a grande diferença é que a literatura goesa em língua portuguesa está bastante ligada a esta comunidade católica, embora tenha havido também hindus que escreveram em português. Os críticos têm visto a literatura de Macau em português como algo de mais vasto, não seria apenas a literatura produzida pelos filhos da terra, pelo Henrique de Senna Fernandes, a Deolinda da Conceição, mas seria algo mais vasto. Como o acervo que descobrimos é tão vasto eu creio que, por agora, é melhor ter algum cuidado, conhecer primeiro o que é que os goeses, de facto, produziram, para depois aprenderemos como é que podemos colocar essa literatura. Acredito que seja possível no futuro falarmos em literaturas asiáticas em língua portuguesa, incluindo Timor, pensarmos como um sistema, uma rede, tenho defendido isso. Passarmos a ver que outro sentido ganha a literatura de Goa lida junto com a literatura de Macau, com a literatura de Timor, no fundo literaturas insulares longe da metrópole, de alguma forma isoladas. Por outro lado, é preciso ter em atenção a circulação dos portugueses que passam por estes territórios e vão escrevendo sobre eles, por exemplo, a Maria Ondina Braga que antes de vir para Macau sai de Goa. Há este caso dos intelectuais portugueses que tiveram esta mobilidade. Os textos que estes autores portugueses foram escrevendo também dão corpo às literaturas de cada um desses espaços. Que peso tem este acervo indo-português? Penso que as literaturas de língua portuguesa de Goa e Macau têm de entrar urgentemente no estudo das literaturas em língua portuguesa. A literatura portuguesa, brasileira e as africanas estão muito ligadas à ideia de “nação”. Macau e Goa são outras realidades. Temos de conhecer estas literaturas para podermos repensar “the larger picture” e redefinir o quadro do que são as literaturas em língua portuguesa, como aconteceram, quais os contactos que existiram entre elas. Sabemos que um dos primeiros jornais moçambicanos tinha goeses na sua fundação. Até no próprio famoso jornal publicado em Macau, Ta-Sii-Yang-Kuo, há um goês na sua fundação. Há relações que estão mal estudadas e que têm de ser conhecidas para sairmos um pouco daquela ideia de que a literatura está ligada à nação.
Sofia Margarida Mota Entrevista Eventos MancheteEntrevista | Cláudia Varejão, realizadora O filme “Ama-San”, da realizadora portuguesa Cláudia Varejão, integra o ciclo que está a decorrer na Cinemateca Paixão, dedicado ao cinema documental. O interesse pelo Oriente vem de longe. A produção dedicada às “amas”, mulheres mergulhadoras japonesas, já foi galardoada em vários festivais e é um momento de encontro entre a cineasta e este lado do mundo [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo é que apareceu a ideia de fazer “Ama-San”? Tive conhecimento destas comunidades de mulheres mergulhadoras em 2012, ao ler um livro de poesia de uma amiga, onde encontrei uma referência aos seus corpos que partiam à procura de pérolas, nas zonas costeiras do Japão. Na altura, não sabendo se era uma imagem ficcionada pela autora, comecei a pesquisar. Impressionou-me muito o que fui encontrando, desde a existência desta prática, que tem cerca de dois mil anos de existência, à bravura destas mulheres que arriscavam as vidas num trabalho tão duro. Estamos a falar de um contexto patriarcal, absolutamente dominado pelo poder dos homens e onde estas mulheres, muitas vezes, são o elemento estrutural na economia da família. Preocupou-me também que estivesse diante de uma tradição em vias de extinção. Ao longo do processo, tive a sorte de me fazer acompanhar de pessoas que acreditaram na minha vontade e capacidade de fazer este filme. Recebi uma bolsa da Fundação Oriente de Lisboa para fazer uma primeira viagem ao Japão, onde fiz um levantamento fotográfico de algumas vilas piscatórias onde as “amas” mergulham. Foi nesse período que conheci Wagu, a vila onde mais tarde viria a filmar. Na segunda viagem, em 2014, trabalhei exclusivamente no filme. Contei com a produção da Terratreme Filmes em Portugal, a Pillow Films no Japão e o apoio financeiro do Instituto do Cinema. Para finalizar o filme, contámos com a co-produção com a suíça Mira Film e apoio financeiro da televisão suíça. O Oriente em geral e o Japão em concreto sempre fizeram parte dos meus interesses culturais e até de vivência quotidiana. Não é inocente portanto o meu interesse pelas “amas”. Além da experiência cinematográfica, foi uma experiência pessoal? Sim. Procuro um cinema com fortes laços na realidade, na vida que se move diante dos meus olhos. Geralmente, quando filmo, crio fortes laços de afecto com as pessoas. Desde as pessoas que estão diante da câmara, passando por todas as que estão em redor e as que me acompanham depois, na fase mais isolada de pós-produção. Neste filme criei um laço que me é muito querido com uma das “amas”, a que corresponde à geração do meio, a Mayumi. Foi ela que me ajudou a concretizar muitas das cenas que desejei filmar. Houve um entendimento muito bonito, muito maternal da parte dela para comigo, que se transformou dentro de mim num agradecimento profundo. Ainda hoje, à distância, trocamos mensagens por telefone. Não são escritas por causa da língua, trocamos fotografias semanalmente uma com a outra. Para o público, o que fica, são os filmes. Para nós, que os fazemos, o que nos fica são as memórias, mas sobretudo as relações que criamos para o resto da vida. Existiram algumas dificuldades específicas na produção deste filme? Não tenho propriamente um método para encontrar o meu cinema. Há muitas ferramentas de trabalho que ainda estou a descobrir e a explorar. Em nada muda a minha aproximação à realidade ou à ficção. Eventualmente, apenas a constituição da equipa com quem trabalho. Mas o meu olhar e a forma como o dirijo a quem está diante de mim são sempre os mesmos. Nesse sentido, é possível que se confundam os géneros nos meus filmes. Em verdade, parece-me que a catalogação do género é um conceito criado para o mercado de distribuição e de exibição em festivais e salas. Nós, realizadores, somos mais livres internamente se pensarmos menos isso. Não preparei absolutamente nada com as “amas”, em termos de cenas e narrativas, antes de filmar. O que foi acontecendo foi sendo filmado com a cadência da realidade, do quotidiano, da relação que íamos estabelecendo entre nós e moldado pelo meu olhar com a câmara. Muito pontualmente, repetiu-se alguma cena. Mas pouco. Depois, houve a incompreensão da língua, para ambos os lados. Filmar num contexto em que não se domina o nosso mais seguro cartão-de-visita, a palavra, exige a criação e recriação dos modelos em que estamos habituados a trabalhar e a comunicar. No caso deste filme, o facto de não dominar o japonês, acabou por resultar a favor do próprio filme: deu-lhe uma determinada intimidade. Falava sempre através da minha assistente de realização, a Aya Koretzky, que ia traduzindo aquilo que eu precisava. Por isso mesmo, quando filmava, as “amas” ignoravam a minha presença pois sabiam que não iriam falar directamente comigo. E talvez isso resulte no tal olhar íntimo que se atribui ao filme, na naturalidade dos gestos. É um filme que tem sido destacado um pouco por todo o lado. Mais um trunfo para o cinema português? O filme tem tido um percurso muito fluido no circuito de festivais, com alguns prémios que nos têm deixado a todos felizes. A força que atravessa a vida destas mulheres tem dado que falar. Motiva as pessoas a irem ver o filme e cria um discurso após as sessões. Quer dizer que qualquer coisa no mundo está a mudar. As consciências estão a criar raízes mais profundas, o olhar está mais livre, menos submisso às ideias que carregamos de um passado profundamente desequilibrado para as questões de género. Os estereótipos estão, lentamente, a cair. A curiosidade do público tem enchido as projecções nos festivais e a estreia comercial em Portugal foi um sucesso de bilheteira, tendo em conta o tipo de filme: é de baixo orçamento e é documental. Por todo esse retorno e reconhecimento pelo trabalho da equipa, mas sobretudo pelas “amas”, eu fico feliz. Gostava que a vida das “amas” ecoasse nas nossas próprias vidas, que nos fizesse sentir mais do que pensar. Estas mulheres viraram do avesso a própria sociedade japonesa. São um caso raro, não só no Japão mas em todo o mundo, em que as mulheres conseguiram anular uma série de estereótipos associados à feminilidade. As “amas” conquistaram a sua liberdade através do amor e força, pelo mar, pelas suas famílias, pela vida. São a poesia, mas é ainda mais, tudo verdade. O que falta à indústria portuguesa para que se possa desenvolver e internacionalizar? Portugal não tem uma indústria de cinema. Portugal é dos países europeus com maior dificuldade em produzir os seus próprios filmes. A única fonte de financiamento dentro do nosso país é o Estado português que, através da lei do cinema, cobra uma taxa às operadoras que depois reverte para os cofres do Instituto do Cinema e Audiovisual. Esta é a única verba disponível localmente. E, como é fácil de imaginar, o dinheiro não chega para alimentar nem um terço do potencial que temos no nosso país. Grande parte dos filmes produzidos actualmente recorre a co-produções internacionais, um pouco por todo o mundo. Vivemos com muita dificuldade. Há uma linha imensa de profissionais no cinema, desde produtores, realizadores, técnicos, distribuidores, festivais de cinema, que vivem permanentemente a fazer omeletas sem ovos. O trabalho é extremamente subvalorizado e precário. Somos um grupo de loucos alimentados quase só pela nossa fé e prazer. Para as novas gerações o estrangulamento é uma barreira bruta para darem início aos seus filmes. Ao cinema, e a toda a cultura que se produz em Portugal, falta investimento, estratégia, visão, e responsabilidade do Governo. Vivemos subfinanciados há muitos anos. É assustador que não se aprenda com os erros cometidos no passado. Os cortes no sector são permanentes. Cultura é produção de saber e, por sua vez, crescimento de uma sociedade. É a nossa mais preciosa herança. Sem memória não somos nada. Não posso naturalmente exigir o mesmo financiamento para a cultura e para a saúde. São necessidades de uma ordem muito distinta. As doenças culturais não são visíveis da mesma forma que o nosso corpo se expressa. São doenças que, por exemplo, se reconhecem na forma como as cidades crescem. Estão à nossa volta se as quisermos ver. E enquanto não existir esta consciência generalizada, continuaremos a viver, no sector da cultura, desamparados e a levar as nossas próprias energias ao limite. Para rematar este discurso triste, ainda que necessário, devo dizer que o cinema português está em grande forma. Aliás, sempre esteve. Temos autores com uma obra extraordinária, que são reconhecidos dentro e fora do nosso país e cujo os prémios que permanentemente lhes são atribuídos enchem de orgulho o público em geral. É, para mim, quase comovente que se consiga caminhar tanto e tão longe quando o corpo está permanentemente a ser impedido. Maior sinal de que o cinema que produzimos é dos mais ricos do mundo parece-me impossível. E a ideia de que o público português não vê o seu própria cinema é um boato mal contado. Por exemplo, os números de espectadores que o “Ama-San” tem feito em sala revelam um público muito curioso e participativo. Maior sinal de vitalidade é impossível. Só falta mesmo que olhar dos nossos políticos se encontre com a realidade. Entretanto, nós continuamos, individualmente mas unidos, a cuidar do cinema. O que é que a impressionou deste lado do mundo? O Oriente é, de facto, um mundo específico dentro do nosso mundo. Muito se aprende na diferença. Mas o ser humano é sempre o mesmo. É aí que reside o meu fascínio e o meu olhar: na total diversidade humana que converge num só.
Isabel Castro Entrevista MancheteChan Kai Chon, director do Museu de Arte de Macau: “O MAM deve ser para todos” Chan Kai Chong tem um objectivo: quem entrar no museu que dirige deve conseguir encontrar aquilo que procura. Por isso, quer uma instituição diversificada, capaz de comunicar com as várias comunidades que vivem na cidade. Para o novo responsável pelo MAM, o espaço museológico não tem razões para temer a concorrência regional. Basta que continue a afirmar-se como o local onde cabem diferentes culturas [dropcap]A[/dropcap]Assumiu o cargo de director do Museu de Arte de Macau (MAM) há dois meses. Como é que está a ser este desafio? Em primeiro lugar, devo dizer que, apesar de ter feito investigação sobre história de Macau, e estudos de história de arte chinesa e acerca do intercâmbio artístico entre Oriente e Ocidente, gerir um museu é algo completamente diferente. Tenho de conhecer o funcionamento normal de cada parte administrativa e as que lidam com os assuntos ligados à museologia. Por isso, para mim, é um desafio. Simultaneamente, fiquei muito contente por ter uma oportunidade para aprender. Creio que toda a gente precisa de aprender ao longo da vida. Vem da área da educação artística, que foi uma das apostas visíveis do MAM. É uma das áreas que quer desenvolver no museu? Para que o MAM tenha público, é preciso fazer formação de públicos. Quais são os seus planos nessa matéria? O museu tem organizado muitos cursos, destinados a adultos, adolescentes e crianças. Por exemplo, no piso 0 temos acções de formação destinadas aos miúdos. É uma forma de educar e de aumentar o conhecimento artístico das crianças. É também um modo de os miúdos conhecerem o conceito de museu. Neste momento, também temos alguns trabalhos destinados aos Amigos do MAM, pelo que organizamos visitas guiadas, acções de formação e visitas fora do território. Além disso, o museu tem colaborado com a Direcção dos Serviços de Educação e Juventude. Em conjunto, são organizadas visitas para que todos os alunos do sexto ano venham ao museu. Através das visitas guiadas, explica-se como se deve visitar um museu e como é que se apreciam obras de arte num espaço destes. É uma parte da disciplina de Artes Visuais na escola. Os museus têm mais recursos artísticos para responderem a estas necessidades. Estive a falar com os nossos colegas sobre a possibilidade de, no futuro, se prepararem mais materiais didácticos e de apoio destinados a cada grupo etário, para que os miúdos percebam melhor, através de alguns textos e jogos, e se possam aproximar mais das obras de arte. Em termos gerais, como é que olha para o desenvolvimento do MAM? Que caminho é que este museu deve seguir? Acredito que o museu deve ser para toda a gente. Na semana passada inaugurámos uma exposição: quase todos os artistas são jovens. Mas, no quarto andar, temos um grande mestre de pintura chinesa. E temos também uma exposição sobre as mulheres, constituída a partir do nosso espólio. Como temos quatro pisos, gostava que as pessoas, quando entrassem aqui, pudessem encontrar o que querem ver, o que querem aprender. É esse o meu objectivo. Por outro lado, vamos aumentar os recursos humanos para que possam ser melhoradas as visitas guiadas. A ideia é fazer com que os visitantes tenham uma maior facilidade em saber o que ver e qual é o conceito original, para saber como ver as obras. FOTO: Sofia Margarida Mota Macau é um território pequeno e muito associado ao jogo – não à arte. Que imagem é que o MAM pode ajudar a projectar? É possível que o MAM possa fazer parte da imagem de Macau? O MAM tem 18 anos. Este museu tem representado um papel importante na divulgação da cultura chinesa no território. Macau não é só uma cidade de casinos, tem uma história diferente e muito rica. Um museu serve, em primeiro lugar, como um sítio onde os visitantes podem ter uma sensibilização estética. Em segundo lugar, uma visita a um museu pode servir para aumentar os conhecimentos através dos quadros. Acredito que, aquando da criação dos quadros pelos artistas, existem intenções, ideias e sentimentos – isto é conhecimento. Se quisermos atingir estes dois objectivos, as nossas exposições e actividades têm de ser muito diversificadas. Macau tem as comunidades chinesa, portuguesa e de língua materna inglesa. Por isso, precisamos de diversificar os temas dos nossos trabalhos. Nos últimos meses, temos ouvido falar muito da integração regional, com a Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau a ser estudada. Na perspectiva da futura grande área metropolitana, em termos artísticos vamos ter muita concorrência das cidades em redor. Como é que o MAM pode ser diferente? Que lugar é que pode ocupar neste contexto? Antes de mais, gostava de dizer o seguinte: a comunidade chinesa de Macau é constituída por muitas pessoas com diferentes proveniências. Cada uma tem o seu background cultural, assim como eu tenho origem na Província de Guangdong. Quando se fala na Grande Baía, este conceito engloba as diferentes cidades da zona do Delta do Rio das Pérolas. A maioria tem a mesma raiz cultural. Qual é o papel que precisamos de ter neste contexto? O MAM tem uma história de 18 anos e a experiência de mostrar os diferentes grandes mestres ocidentais e orientais neste território. Em comparação com museus de cidades vizinhas, temos o nosso espaço para continuarmos a ter o privilégio de representar um papel que, em primeiro lugar, deve mostrar a cultura chinesa de Macau – através das relíquias e pinturas chinesas –, para transmitirmos a herança da cultura chinesa. Temos colaborado com o Museu de Orsay e o Victoria & Albert de Inglaterra, temos esta ligação. Acho que podemos continuar a ter um papel relevante na divulgação das culturas chinesa e ocidental. Também estou convencido de que, para o ano, o nosso papel na divulgação da arte e da cultura portuguesa vai ser maior do que no passado recente. Há alguma novidade que possa adiantar em relação a essa presença portuguesa no MAM? Neste momento, estamos em preparativos. Desde que assumi o cargo de director, fui a Itália, para ver a Bienal de Veneza, e depois fui a Portugal. Lá estive em alguns museus e nalgumas galerias, bem como em estúdios de artistas de Lisboa. Já temos algumas ideias para avançar com projectos. Neste momento estamos a trabalhar para isso. Como é que olha para o desenvolvimento da arte em Macau? A cidade é pequena, não existe uma Faculdade de Belas-Artes. O Instituto Politécnico de Macau tem, há já muito tempo, uma Escola Superior de Artes. Também tomei conhecimento de outra universidade que também tem o curso de Artes. Por isso, penso que, neste momento, Macau tem cada vez um espaço maior para a formação profissional e académica nesta área. Para mim, é um pouco difícil descrever o cenário das artes em Macau. Há muitas formas de arte. Quando falamos de artes plásticas, vemos que a arte contemporânea é mais viva do que a de outros grupos de artistas. Os artistas na vertente contemporânea são mais visíveis. Isso significa que há um maior dinamismo nos artistas mais jovens? Macau é diferente da China e do estrangeiro. Nem todos os artistas são profissionais. Mas alguns jovens em Macau, neste momento, já começaram a ter a sua imagem como artistas profissionais. Isto é uma mudança muito significativa ao longo da história da arte de Macau. Estudo a história do território há 20 anos e nota-se que isto está a acontecer. É um bom sinal na evolução da arte de Macau. Mas é difícil fazer uma avaliação global – há quem trabalhe em pintura chinesa, outros trabalham em arte contemporânea. Quando me refiro à arte contemporânea, falo apenas da arte ocidental. Na pintura chinesa, embora haja pessoas que estão a alterar o seu gosto estético e a criar novos estilos, geralmente os artistas gostam mais das técnicas tradicionais. FOTO: Sofia Margarida Mota Qual é o seu maior desejo para o MAM? O meu maior desejo é que os nossos trabalhos – quer na parte administrativa, quer na componente académica – possam aumentar e chegar a um nível razoável em termos de museologia. Depois, queremos publicar mais materiais em termos de investigações e aumentar a velocidade da publicação dos catálogos de exposições. No futuro, gostava que o MAM fosse parte da vida dos nossos cidadãos. Nas mãos do historiador Natural de Zhongshan, província de Guangdong, Chan Kai Chon fez o ensino secundário em Macau, na escola Hou Kong. A arte não foi a primeira opção académica do director do MAM: quando chegou a altura de frequentar a universidade, foi para Jinan, onde estudou Economia. Com a licenciatura concluída, Portugal apareceu no seu percurso, com dois anos passados em Coimbra, onde frequentou o curso de Língua e Cultura Portuguesa. De regresso a Macau, começou a trabalhar na Direcção dos Serviços de Educação e Juventude (DSEJ). Mas, uma vez mais, surgiu a necessidade de estudar: em Nanjing fez o mestrado de Pintura Chinesa. Seguiu-se Pequim e a Academia Central de Belas-Artes, para estudar História de Arte. Trabalhou na DSEJ durante 20 anos, “sempre em áreas relacionadas com a educação artística”, nota. Chan Kai Chong tem várias obras publicadas no domínio da história de arte em Macau, na China Continental, em Hong Kong e em Singapura. Além disso, dedica-se ao desenho e à pintura. Chagall para o ano O Museu de Arte de Macau recebe, no próximo ano, uma exposição de obras do pintor Marc Chagall, adiantou ao HM o director da instituição. Para já, ainda não há detalhes sobre o que será mostrado no território da autoria do multifacetado artista, fortemente influenciado pelo fauvismo e pelo surrealismo. “Os nossos colegas do Instituto Cultural foram a Paris em Maio”, explicou Chan Kai Chon. “Estamos a trabalhar neste projecto.” Dos planos para 2018 do MAM faz ainda parte uma exposição de pinturas a óleo de artistas russos. Além disso, a colaboração que tem vindo a ser desenvolvida com o Museu do Palácio de Pequim deve conhecer novos desenvolvimentos, com mais um projecto.
João Luz Entrevista MancheteMário Costa, presidente da União de Exportadores da CPLP: “Podemos ser uma potência económica mundial” Proporcionar o encontro entre empresários dos quatros cantos do mundo, tendo a língua portuguesa com factor unificador, é um dos propósitos de Mário Costa. O presidente do União de Exportadores da CPLP considera que, nos próximos 40 anos, o espaço lusófono pode tornar-se num dos grandes blocos económicos. A entrada na China faz-se, agora, através de Macau [dropcap]Q[/dropcap]ual o papel da União de Exportadores da CPLP? Fazemos parte da Confederação Empresarial da CPLP, somos reconhecidos como a representação do sector privado que veio introduzir um novo pilar económico na CPLP. O nosso objectivo é aproximar as empresas deste espaço e promover negócios. Como é óbvio, cada um destes países pertence a sub-regiões onde se pode fazer comércio livre. E ninguém é alheio ao peso de Macau como plataforma para a China, não só na colocação de produtos, como também na captação de investimento para estes países que têm grandes recursos naturais, tecnologia, know-how, mas falta capital. Falta alguma liquidez para pôr em prática os projectos. Temos países com recursos, como os países africanos e Timor-Leste, enquanto no Brasil e Portugal há tecnologia e know-how. Portugal e Brasil têm necessidade de sair para fora porque estão estagnados internamente; como tal, têm necessidade de ir para estes países onde estão os recursos. Mas falta o capital e sabemos que a China tem excedentes, não aplica todo o capital que tem. Nesse contexto, a China é um gigante económico incontornável. Queremos vir cá para mostrar todas as oportunidades que existem no mundo lusófono. Os empresários chineses têm boas oportunidades de negócio, não só ao nível de grandes infra-estruturas como portos e aeroportos, mas também ao nível de agricultura e indústria. Se juntarmos o know-how, os recursos naturais e a capacidade de investimento que a China tem, podem sair daqui projectos gigantescos. Se a CPLP conseguir introduzir este factor de liquidez em todo o processo, pode ser uma potência global, na nossa opinião. Em três ou quatro décadas, se continuarmos no percurso que estamos agora, a CPLP pode tornar-se numa potência económica mundial, tem tudo para isso. Estamos nos quatro cantos do mundo. Brasil na América, Portugal na Europa, os países africanos e Timor-Leste. Existe mercado, não só dos países da CPLP, como nas regiões onde estão inseridos, estamos a falar de quase 31 por cento da população mundial, são dois mil milhões de consumidores. Se juntarmos a isso liquidez, acho que isto é explosivo. Macau servirá como plataforma para esta aproximação ao mercado chinês. Sim, a minha vinda cá é para criar esse laço entre a parte chinesa e a parte dos países da CPLP, ou seja, uma perspectiva mais empresarial. Existem, neste momento, grandes contactos políticos, institucionais, e estamos a tentar passar isso para o mundo das empresas. Esta é a primeira aproximação, estamos a conhecer o mercado, a falar com as instituições oficiais para que, no futuro, tenhamos aqui um núcleo em Macau que possa servir todos os países da CPLP. A relação empresarial com a China é bastante importante, mas também abrimos delegações, por exemplo, nos Estados Unidos, na Rússia. Como costumo dizer, é preciso primeiro percorrer o caminho de pedras. Assim sendo, quis vir cá desbravar terreno. Este é um grande mercado de colocação de produtos e de captação de investimento. Macau é a estratégica plataforma para a China. Por cá já reunimos com o Fórum Macau e com o IPIM. Como se escolhem empresas com capacidade de internacionalização? É preciso avaliar muito bem os empresários porque estamos a falar de culturas muito diferentes, formas de pensar diferentes e é preciso que as pessoas saibam dialogar. Há muitos empresários que são bons no seu próprio terreno, na sua região ou país, e sair pode ser algo muito complicado. Esse trabalho é complexo. Muitos empresários também pecam porque fazem o negócio, mas depois esquecem-se da parte logística, da parte financeira, da parte da segurança jurídica dos negócios. Nós temos parceiros que podem ajudar nesses detalhes, temos dimensão para isso. Como funciona a rede de núcleos da União de Exportadores da CPLP? Temos núcleos em todos os países da CPLP, já estamos em 21 países. Normalmente, o coordenador do núcleo, que é vice-presidente, é um empresário de referência, que é o modelo de empresário que queremos para esse espaço. Depois temos o coordenador do núcleo e delegados, pessoas técnicas, que trabalham com os empresários. Se uma empresa quer ser associada avaliamos a empresa, o empresário. Os nosso especialistas, que conhecem muito bem a realidade dos outros países, avaliam se aquela companhia e pessoa estão preparadas para ter relações com estes países. Depois aceitamos a candidatura, ou não. A partir daí desenhamos o perfil deles. Os empresários têm de dizer o que é que têm, a experiência que têm para os darmos a conhecer ao mundo. Depois, os nossos núcleos vão procurar, junto dos nossos parceiros e associados, empresas que cumpram requisitos daquilo que eles pretendem, que tenham apetência de internacionalização e fazemos o match entre a oferta e a procura. A partir daí, quem faz os negócios são os empresários, nós somos apenas a plataforma de encontro. Estes projectos também têm alcance social. Pode dar-nos um exemplo? Temos o projecto da União de Exportadores para o Desporto, em que queremos aproveitar o desporto como factor de desenvolvimento do ser humano. Em África abrangemos seis milhões de crianças nas escolas e usamos o desporto como forma de educação. Só para ter uma ideia, havia uma grande necessidade de fazer o teste de HIV a crianças. O Governo montou tendas e ninguém apareceu. Então, fizemos um torneio de futebol e as crianças tinham de fazer o teste antes de participarem no torneio. Eram filas e filas de crianças. Neste momento estamos a organizar a maior competição juvenil em África, a Copa Coca-Cola. Queremos pegar nesses talentos para desenvolver o desporto, estamos a ajudar na organização dos clubes, de competições, fazer clubes link, ou seja, clubes portugueses, ou brasileiros, que possam ajudar a desenvolver clubes mais pequenos que tenham potencial. Estamos a criar centros de alto rendimento para desenvolver os jovens com maior talento. Até que ponto as barreiras nacionalistas são empecilhos à cooperação económica? Estou em países da CPLP todos os meses, fico uma semana em Portugal e uma semana fora, e sinto que há uma vontade muito grande de pertencer à CPLP, mas também há muita vontade de vincar que “este é o meu país”. Nesse aspecto estamos, agora, a fazer a diferença. Quando chegarmos ao cidadão comum e ele perceber que para ele a CPLP é importante, ele vai ter força sobre o seu próprio Governo. É isso que estamos a fazer. Estivemos na Guiné Bissau e levámos 80 empresários de Portugal, Brasil e Angola, entre outros países, para investirem lá. Não imagina a quantidade de pessoas que estavam no evento e que quiseram fazer negócio, que disseram: “Isto é uma luz ao fundo do túnel para nós. Pessoas que falam a mesma língua e que querem ser nossos parceiros?”. É uma lógica win-win. Queremos juntar tudo, capital, recursos, know-how, essa é a nossa lógica, criar empresas CPLP, não portuguesas, nem brasileiras, queremos empresas com a bandeira da CPLP, que falem todas a mesma língua, que formem um bloco. Já temos muitos casos mas, à escala mundial, são precisos muitos mais. Quando tivermos um nível forte de envolvência, vai ser o orgulho da própria pessoa a dizer que pertence à CPLP, que resultou disto. Não teme dificuldades surgidas dos fantasmas do colonialismo? Esse é um grande obstáculo que temos agora, mas que as novas gerações vão resolver. Eu próprio tive dificuldades com os angolanos por ser português e estar a liderar este projecto. Mas agora tenho grandes amigos angolanos, pessoas de topo que viram o trabalho que está a ser feito. As novas gerações em todos estes países já esqueceram um bocado o colonialismo, os mais velhos ainda têm alguma resistência, mas isso desaparece. Fala-se agora em livre circulação de pessoas e capitais, em cidadania CPLP, porque os empresários estão a exigir e os políticos vão atrás. A cooperação económica é estratégica e a lusofonia tem de se afirmar no mundo, se não a francofonia passa-nos à frente, assim como os ingleses. Nós temos mais afinidades entre os países lusófonos do que os países francófonos, eles têm uma relação mais fria e distante. Nós queremos cooperar, culturalmente somos muito mais afáveis, temos mais coração. Quantos membros tem a União de Exportadores da CPLP? A União de Exportadores tem quatro anos e tem mais de 600 associados, mas representamos milhões de empresas através de protocolos de parceria, e era esta dimensão económica que a comunidade precisava. A própria CPLP, em si, estava a ficar velha, ultrapassada quando estava a completar 20 anos. Não se sabia para que servia. Tivemos de introduzir o pilar da cooperação económica, se não nada faz sentido. Houve necessidade de renovar a CPLP, em 2010 deram estatuto à Confederação Empresarial. Nós consideramos que os empresários têm de andar sempre à frente dos políticos.
Isabel Castro Entrevista MancheteJosé Eduardo Martins, especialista em direito do ambiente: “A liderança chinesa é inevitável” Paris já não seria Paris sem a China, que mudou muito nos últimos anos e percebeu que, sem um maior respeito pelo ambiente, o desenvolvimento não será sustentável. Mas a saída dos Estados Unidos do acordo internacional abre portas a um maior protagonismo de Pequim, analisa José Eduardo Martins, advogado, ex-secretário de Estado do Ambiente de Portugal. Quanto a Macau, tem um papel importante a desempenhar, porque tudo conta no trabalho de luta contra o aquecimento global [dropcap]V[/dropcap]eio a Macau falar do Acordo de Paris, que voltou a estar recentemente na ordem do dia com a saída dos Estados Unidos. Ainda é cedo para avaliar o impacto real desta desistência norte-americana ou podemos já adivinhar consequências graves? Para responder com franqueza, não sei. Como é que isso se vai avaliar? Hoje não estamos como há 20 ou 30 anos. O Acordo de Paris é absolutamente único no direito internacional porque, apesar de haver poucas normas imperativas – tirando as que obrigam à transparência e ao conhecimento, à monitorização das emissões –, permitiu vencer a barreira que existia no Protocolo de Quioto. O que é diferente em Paris é que, com excepção da Síria, da Nicarágua e agora dos Estados Unidos, todos os países do mundo têm consciência de que o trabalho de combater as alterações climáticas é um trabalho de cada país, um trabalho nacional. Não há uma coisa etérea chamada comunidade internacional, porque continua a haver terra onde pôr os pés, indústrias baseadas neste ou naquele país, modos de vida, de consumo, de produção de energia baseados neste ou naquele país – o que é muito importante em Paris é este consenso quase universal para a acção. Isso nunca tinha acontecido. É muito raro haver acordos internacionais sequer subscritos por maioria de Estados das Nações Unidas, quanto mais aprovados unanimemente. O primeiro efeito de Paris foi levar, de facto, um conjunto de Estados a avançar qualquer coisa nas suas políticas domésticas, e isso é importante. Anunciaram-se muitas iniciativas domésticas em muitos estados cruciais para o cumprimento do protocolo a seguir a Paris. Nessa medida, a desistência dos Estados Unidos é sobretudo grave pelo exemplo e pelo retrocesso. Mas não é só no ambiente que esta circunstância fatídica, de se ter eleito Presidente da América um homem que nunca terá lido um livro até ao fim, está a fazer os Estados Unidos perderem liderança e andarem para trás. A questão do exemplo será então, para já, a principal preocupação. O principal efeito que tem é os decisores políticos menos comprometidos com o futuro poderem dizer ‘se aqueles não fazem, eu também não faço’ ou usarem o argumento farisaico de que se os Estados Unidos não fazem, nada disto vai funcionar, porque eles são dos maiores poluidores. Este é o lado negativo. Mas voltando ao princípio: para quem trabalha nestas coisas, a primeira reacção tem de ser, apesar de tudo, um bocadinho mais optimista. Depois do Acordo de Paris, não há nenhum Trump que consiga fazer isto voltar atrás, nem na América. E nem na América porquê? As empresas americanas que estão pelo mundo inteiro não deixaram de estar sujeitas às regras que o Acordo de Paris fará das políticas domésticas de cada Estado. Dentro dos Estados Unidos, como muito do que se consegue é o que se faz efectivamente, uma grande maioria de Estados e de cidades continuam comprometidos com o Acordo de Paris, e vieram dizer ‘este senhor pode dizer o que quiser que nós, aqui, vamos continuar’. Não sabendo, tenho a esperança de que vamos chegar ao fim disto e, na matéria do clima, como noutras, terá havido aqui um momento sobretudo embaraçoso para os Estados Unidos, consequência de terem eleito este populista. Mas esse momento embaraçoso é um lapso de tempo num processo que ganhou uma consciência global que já não volta atrás. É mais uma área em que a China pode ter um papel importante ao nível internacional, sendo que o país nos últimos anos tem feito um trabalho importante nesta área? Um senhor que não estimo particularmente e que foi o mentor de Tony Blair, Anthony Giddens, escrevia a propósito do clima uma coisa simples: houve aqui um sonho de uma ordem internacional, de agências, supraestadual. Isso não é o mundo, nem é a normalidade. A normalidade é a competição entre Estados soberanos. Se há coisa que mudou no mundo nos últimos 20 anos é a passagem da China pelo mundo com a globalização. Imediatamente após as declarações de Trump, a União Europeia – que sempre quis ter um papel liderante nisto, mas que tem uma dificuldade enquanto bloco, de serem muitas vozes, muitas políticas diferentes e não tanta moral como a que se apregoa – voltou-se imediatamente para a China. A natureza não permite o vazio. A política também não permite o vazio. A geopolítica não permite o vazio. Quando os Estados Unidos se fecham sobre si próprios, a China aproveita – e bem – para tomar a liderança. Da última vez que falámos, tinha havido um congresso do Partido Comunista Chinês. E esse congresso fez com que os mais velhos do Comité Central tivessem como grande objectivo na vida voltar a ver o céu de Pequim, começar a despoluir a China. Perceberam que tinha havido uma fase de crescimento que atropelou as regras internacionais e que tinha de haver um esforço de ser liderante também como produção mais limpa. O que mudou essencialmente entre Quioto e Paris já vem muito da liderança chinesa, já vem muito da China arrastar os países desenvolvidos para a ideia de que todos temos obrigações e que não vale a pena imaginar que são uns quantos países industrializados do hemisfério norte que vão cortar as suas emissões, e que isso vai travar o aquecimento global. Não haveria Paris com a força que houve se não houvesse China dentro; com a saída dos Estados Unidos, acho que a liderança chinesa é inevitável. Poderemos ter então um reforço positivo, estando a China num contexto internacional que os Estados Unidos não estão, numa questão tão importante como as alterações climáticas? Poderá ser um impulso adicional para o trabalho que a China tem estado a fazer? É e de várias formas, também porque é interessante economicamente. A China quer ser líder mundial das renováveis e quer exportar tecnologia de energias renováveis, nomeadamente do solar fotovoltaico – em que está na crista da onda –, para imensos países com quem tem relações. Há um conjunto de acordos de investimento bilaterais da China com muitos países em África, por exemplo, e a esperança que tenho é que boa parte desses acordos bilaterais, além de protegerem o investimento, também criem regras para o investimento cada vez mais saudáveis. No fundo, depois de Paris, há uma tensão entre três mundos de normas internacionais. O Acordo de Paris, que nos diz basicamente que temos de tomar a acção doméstica porque o pior problema da Humanidade é o aumento da temperatura; depois temos as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC), cujo objectivo último é liberalizar o comércio mundial. Como é que se casa a liberalização do comércio mundial com alguma protecção do ambiente? Por exemplo, quando os Estados Unidos dizem que não querem importar camarão da Tailândia porque as redes dos pescadores dão cabo de uma série de espécies protegidas, estão a fazer uma norma proteccionista ou estão verdadeiramente a alegar uma excepção em favor do ambiente? Como é que vão evoluir os acordos da OMC? É uma área em que falta fazer muita coisa. Mas o terceiro mundo de normas internacionais, e que diz respeito sobretudo à China, são as normas destinadas ao investimento estrangeiro. Hoje, muitos países, para competirem pelo capital chinês, estariam disponíveis a baixar todos os standards de tratamento dos recursos naturais, e deixar que, nos seus países, se fizessem coisas que a China já não faz na China. É um modelo predatório do século passado. Neste século, aquilo que já vamos vendo é que boa parte dos acordos bilaterais de investimento têm uma previsão de protecção também dos modos e das regras de produção. A maior influência de Paris na vida real é que essa competição pelas trocas comerciais e pelo capital estrangeiro pode começar a ter algumas regras. Se não, não há esforço nacional que valha a um mundo em que agora, pela primeira vez, todos têm obrigações. Veio a Macau para uma formação no âmbito do programa de cooperação na área jurídica entre a RAEM e a União Europeia. O que é que se ensina, numa perspectiva mais técnica? Nesta formação, procuramos ver o que se pode fazer no cruzamento destes três mundos de normas – comércio, protecção de investimento estrangeiro, regras ambientais de Paris. Sobre o Acordo de Paris não se diz nada de extraordinário, porque o que conta é a acção local. Ao longo destes três dias, eu e o Prof. Julian Chaisse vamos procurar dizer que Paris convida que cada um faça a sua parte. A China é muito grande, mas não podemos começar a dizer que Macau é pequeno dentro da China. Tudo conta. O António Lobo Antunes gosta muito de citar um provérbio húngaro que eu uso muito para o tema das alterações climáticas, que é o do ratinho que foi até à beira do mar e fez chichi porque todos os bocadinhos acrescentam. Em Macau, não estamos a falar de um bocadinho pequeno; estamos a falar de uma concentração brutal num espaço exíguo, o que leva a fenómenos de concentração de emissões, especialmente no sector residencial, no tratamento do lixo, numa série de matérias. É isso que estamos a tentar dizer: Paris significa o compromisso da Humanidade com o modelo de vida para o futuro para a própria sobrevivência da Humanidade. Isso determina um conjunto de regras ao nível local para disciplinarmos a nossa vida em relação ao consumo de energia, à produção industrial, à produção alimentar, ao tratamento de resíduos. E todas essas coisas têm importância, todas essas coisas contam. No hotel onde estou, precisei de vestir uma camisola para tomar o pequeno-almoço – é nas coisas simples que temos de perceber isto. Precisamos de regras sobre utilização de energia que expliquem que não é confortável uma diferença térmica de 20o C entre o interior do edifício e o exterior, e que o conforto não é este consumo brutal de energia e de desperdício de energia. Se quisermos climatizar todos os hotéis a 20o C, quando estão 35o C na rua, e se acharmos isso certo, então só estamos a dizer que vamos ter de extrair e queimar mais carvão, aquecer mais a atmosfera e piorar mais a situação do clima. Se acharmos que não vale a pena tratar o lixo convenientemente e com ele produzir electricidade, evitando a extracção de carvão, não vamos conseguir fazer grande coisa. Se não quisermos regular o trânsito, de maneira a que as emissões sejam um bocadinho diferentes e os carros funcionem de maneira diferente, não vamos lá. O futuro não pode só esperar que todos os carros sejam eléctricos, precisa que algumas coisas aconteçam já.
Sofia Margarida Mota Entrevista EventosJoão Botas, autor de biografia sobre Silva Mendes: “Deixou um legado de um valor inestimável” “Biografia de Manuel da Silva Mendes 1867 – 1931” é o mais recente livro de João Botas. A obra foi apresentada ao público na mais recente edição da Feira do Livro de Lisboa. O autor considera que Silva Mendes é uma personagem ímpar da história do território [dropcap]P[/dropcap]orquê a escolha de Manuel da Silva Mendes? Por vários motivos. Primeiro, porque foi num texto dele que me inspirei para dar nome ao blogue onde tenho vindo a divulgar a história de Macau desde 2008, o “Macau Antigo”, e que já ultrapassou um milhão de visitantes. Depois, porque Silva Mendes foi professor no Liceu de Macau, onde completei o ensino secundário. Acresce que há uns anos fui contactado por familiares de Silva Mendes que diziam querer saber mais sobre a sua vida. Encarei a abordagem como um desafio e, desde logo, pensei em escrever sobre a história da vida e legado de um homem que foi uma figura marcante da história de Macau na primeira metade do século XX e, inexplicavelmente, ainda nada de substancial tinha sido feito. No decorrer das pesquisas, que factos mais o surpreenderam neste homem? A multiplicidade de actividades a que se dedicou, um ou outro detalhe de âmbito mais pessoal que, julgo, ninguém até hoje conhecia, a dimensão e qualidade da sua colecção de obras de arte, um legado que em parte ainda hoje pode ser apreciado no Museu de Arte de Macau. Outro facto surpreendente foi a rapidez com que Silva Mendes construiu a sua casa, hoje a United Nations University International Institute for Software Technology. Ele chegou ao território em 1901 e, por volta de 1908, já a mansão estava pronta. De professor a sinólogo. Qual o legado que deixou a Macau? Manuel da Silva Mendes deixou um legado de um valor inestimável. Logo após a sua morte, Governo e sociedade civil de Macau, portugueses, macaenses e chineses, tiveram a noção clara da sua importância, a ponto de terem adquirido muitas das peças da sua colecção. As obras de cerâmica de Sek Wan ainda hoje constituem uma das mais valiosas colecções do género ao nível mundial. Não é de somenos importância as centenas de artigos publicados na imprensa local ao longo de quase 30 anos, bem como os livros que publicou, não só sobre Macau do seu tempo, como também sobre a cultura chinesa. Como está a ser recebido este livro? A apresentação ao público na Feira do Livro de Lisboa, bem como as sessões de autógrafos que se seguiram, decorreram muito bem. Houve muitas pessoas a assistir e a participar de forma activa, e isso deixa-me satisfeito, é claro. Até ao momento, as reacções que tenho recebido têm sido muito positivas. Já recebi alguns convites para fazer palestras sobre o livro em Portugal e espero que, em Outubro, (mês em que se assinalam os 150 anos do nascimento de Manuel da Silva Mendes), possa regressar a Macau para a apresentação pública do livro através do Instituto Cultural, co-editor da obra. Por essa altura, o livro já vai estar à venda em várias livrarias do território. Em Portugal, está disponível na Livraria do Turismo de Macau, em Lisboa, e já recebi alguns contactos de outras livrarias que estão interessadas. A seguir, o que pensa fazer? Que vida vai pesquisar? Esta foi a minha estreia no mundo das biografias e, confesso, fiquei entusiasmado com o género. Tenho mais dois ou três nomes em carteira de personalidades ‘macaenses’ que gostaria de biografar, mas não depende apenas de mim a sua concretização. Tenho também outros projectos relacionados com a história do jogo e do turismo bastante aliciantes. Faço-o com muito prazer, mas apenas nos tempos livres; além de tempo, são precisos apoios, nomeadamente financeiros. Já escrevi quatro livros (e outro em co-autoria) sobre a história de Macau, mas parece que como cartão-de-visita ainda não chegam para conseguir financiamentos. Para esta biografia, por exemplo, a Fundação Macau concedeu-me cinco mil patacas. Obviamente, recusei. Porquê o interesse pelos homens de Macau? O meu interesse pela história de Macau é o mais abrangente possível. Há quase duas décadas que venho coleccionando objectos – e já tenho uns cinco mil – sobre Macau (postais, fotografias, moedas, notas, livros, carteiras e caixas de fósforos, lai sis, jornais, revistas, calendários, bilhetes de cinema e de transportes, folhetos turísticos, etc.) num projecto que intitulei de “Macau Memorabilia” e que, um dia, tenciono transformar numa exposição iconográfica sobre a história de território, no século XX. Tenho uma colecção de cerca de 50 mapas/plantas de Macau que um dia também tenciono mostrar publicamente. Outro projecto antigo que tenho vindo a equacionar é passar para livro muitas das histórias que tenho vindo a publicar no blogue Macau Antigo. Acha que o território e a sua história precisam de ser mais conhecidos em Portugal? Costumo dizer que, nestas coisas, mais nunca é de mais. Na medida das minhas possibilidades estarei, como sempre estive, disposto a dar o meu contributo. Talvez no domínio dos projectos audiovisuais possa haver novidades em breve. Recentemente recebi dois convites, mas para já é prematuro avançar com detalhes. O que pode ser feito nesse sentido? Tanta coisa. Mas muito tem sido feito. Quem está minimamente atento não pode deixar de reconhecer a profusão de eventos que se vão realizando em Portugal relacionados com Macau, nomeadamente pela Delegação do Turismo de Macau em Portugal.
Isabel Castro Entrevista MancheteHong Kong, 20 anos | Entrevista | Larry So, académico: “Há muitas pessoas a falar dos velhos tempos” Larry So não é saudosista, embora agradeça a educação que teve. Nascido e criado em Hong Kong, o académico conta que a geração a que pertence se sente desiludida com duas décadas que podiam ter sido muito melhores. As expectativas eram grandes e os sucessivos Governos da RAEHK não deram conta do recado. O analista explica ainda porque é que os que nasceram depois também não se conformam Em termos gerais, estes 20 anos de Hong Kong enquanto região administrativa especial da China vão ao encontro do que estava à espera? De uma forma geral, sim. Mas também há muitos aspectos que não correspondem às expectativas. Sou da área dos serviços sociais. Eu e os meus amigos desta área estávamos à espera de que houvesse uma melhoria significativa neste aspecto. Hong Kong era uma colónia britânica e, com esse estatuto, não se esperava que houvesse um grande investimento, pelo que havia a esperança de um desenvolvimento dos serviços sociais. Claro que houve algumas melhorias, mas ficaram aquém das expectativas. Tínhamos, na altura, entre 40 a 50 anos e pensávamos que poderíamos ter uma reforma, por exemplo. Mas em Hong Kong, à semelhança de Macau, o sistema de previdência é terrível. Estamos a falar de um centro financeiro internacional, mas também de uma cidade onde existem muitas pessoas em situação de pobreza extrema – e os números aumentam nos últimos anos. Estas duas décadas não serviram para se trabalhar para a igualdade social. Os ricos ficaram mais ricos e os pobres passaram a ter cada vez menos, como aliás demonstra o Coeficiente de Gini, que mede a desigualdade. Este coeficiente aumentou quase um ponto desde 1997. É uma medida objectiva. Qual é a explicação para este fenómeno? Quando Hong Kong voltou para a China, a política prioritária da região administrativa especial foi a manutenção da estabilidade económica. Partiu-se da ideia de que se houvesse mais dinheiro no topo, chegaria a todos e que a população sairia beneficiada. Mas parece que houve uma concentração excessiva das políticas na dimensão económica: tentou-se arranjar terras para que houvesse mais construção, mas não se investiu em habitação pública. Deram mais terrenos aos magnatas, que puderam aumentar os seus investimentos. Este tipo de política funcionou em certa medida, mas foi um erro pensar-se que o dinheiro iria chegar às pessoas comuns. Se olharmos para os níveis de qualidade de vida e os problemas políticos com que Hong Kong se depara, chegamos à conclusão de que a aposta na economia só beneficiou uma pequena parte da população. Podemos falar em falhanço no que toca à qualidade de vida dos residentes de Hong Kong? A cidade é muitas vezes retratada como o local onde milhares de pessoas vivem em cubículos. No tempo em que Hong Kong era uma colónia britânica, a habitação pública tinha muita importância em termos de apoio social. A Administração construiu apartamentos que disponibilizava a preços baixos. Metade da população vivia em habitação pública. Neste momento, temos pouco mais de 40 por cento da população a residir neste tipo de habitação. É um tipo de apoio muito importante porque um terço dos rendimentos das famílias é gasto nas rendas. É muito complicado. A Administração britânica lançou, na altura, medidas que considero muito boas, porque permitiram combater a pobreza. Mas este tipo de políticas não beneficia os magnatas ou os investidores do sector imobiliário, porque quantas mais fracções públicas houver, menos gente irá comprar no mercado privado. Neste momento, falta habitação pública e o preço do imobiliário continua a aumentar. De cada vez que se pensa que não pode subir mais, há um novo pico. Neste momento, o pé quadrado custa em média 20 mil dólares de Hong Kong. O primeiro Chefe do Executivo de Hong Kong, Tung Chee-hwa, não foi propriamente popular. O Governo Central tinha de escolher alguém em quem pudesse confiar. Essa pessoa tinha de ter uma ligação a Pequim e à Administração britânica. Não digo que fosse a única escolha mas, nessa altura, era a melhor. Eram anos complicados, que foram pouco tempo depois dificultados pela tentativa falhada de legislar o Artigo 23.o da Lei Básica. E aí começámos a ver milhares de pessoas nas ruas. Sim, isso foi um problema. Tung Chee-hwa forçou essa questão demasiado depressa, subestimando o facto de, ao contrário dele, nem toda a gente estar satisfeita com o regresso à China. Muitas pessoas da classe média e da classe baixa-média não pensam dessa forma. Na altura, não teve sorte, na medida em que a situação económica também não era uma vantagem. Tentou disponibilizar mais habitação pública, mas a resistência dos promotores do mercado imobiliário foi tão forte que se viraram para o Governo Central. Foram directamente a Pequim e o Governo Central, que tinha de arranjar um equilíbrio, decidiu que não ia haver habitação pública. Os magnatas opuseram-se. Tung Chee-hwa estava de mãos atadas? Ambas as mãos, não foi apenas uma. Uma delas com a questão das condições de vida da população e a outra com os magnatas a dizerem ‘não’. Portanto, não teve suficiente força política. Não, na altura não teve. Se nos lembrarmos dessa altura, a economia não era uma vantagem. Tinha rebentado a crise financeira asiática de 1997. Sim. A economia num estado complicado, ele a tentar levar por diante o projecto de habitação pública e os magnatas a dizerem que não. Tentou desviar as atenções com o Artigo 23.o, e foi o que se viu. E ainda houve o surto de pneumonia atípica, em 2002 e 2003. Morreram quase 300 pessoas em Hong Kong. Foi outra coisa terrível. Diria que Hong Kong enquanto região administrativa especial não teve um bom início. Havia muitas pessoas que esperavam uma série de coisas positivas depois do retorno à China, mas toda esta situação não ajudou. Depois Donald Tsang assumiu o poder. Há analistas que consideram que foi o único Chefe do Executivo capaz de congregar diferentes sectores e interesses. Foram anos de alguma acalmia. Teve sorte logo no início, em termos políticos e no contexto económico. Teve pelo menos dois ou três anos de estabilidade. Era muito diferente de todos os outros. Era um funcionário público, um burocrata. O modo britânico de treinar os funcionários da Administração fazia com que as pessoas não estivessem sempre nos mesmos cargos. Tinham determinadas funções durante um par de anos e depois mudavam de departamento. Donald Tsang beneficiou dessa formação. Sem dúvida alguma. Toda esta geração de funcionários públicos passou por esta experiência e Donald Tsang tinha a vantagem de perceber de finanças. C.Y. Leung, que deixa agora o cargo, foi bastante menos popular. Teve um mandato com dias muito difíceis, com o movimento Occupy. Mais recentemente, surgiu uma nova palavra na política de Hong Kong: independência. Há estudos que apontam para um reforço do sentimento de pertença a Hong Kong, por oposição à China, nos últimos anos. Confirma esta ideia? Sim, isso é um dado adquirido. O movimento Occupy não teve na origem qualquer vontade independentista – as pessoas pediam o sufrágio universal. Era este o pedido da maioria dos jovens. Mas o Governo Central apoiou o pulso forte de C.Y. Leung, o método que ele utiliza. De facto, ele hostilizou os jovens. Quando olhamos para o Occupy e outras manifestações que têm acontecido em Hong Kong, deparamo-nos com líderes que, se já eram nascidos em 1997, eram ainda demasiado novos para perceberem onde estavam. Compreende-se que pessoas de gerações anteriores possam estabelecer paralelismos com os tempos da colónia britânica, mas estes jovens não podem fazê-lo. De onde vem toda esta vontade de oposição? Como é que se explica que não queiram fazer parte da China? Não estavam em Hong Kong antes de 1997, mas ouviram muito e leram muito acerca do passado. Percebem o espírito antigo de Hong Kong, em que muitas pessoas vinham das classes baixas, lutavam por vidas melhores, entreajudavam-se e conseguiam um nível de vida melhor. As gerações mais novas não viveram isto, mas sabem do que estão a falar. Por outro lado, nas escolas secundárias e universidades leccionam professores que, em 1997, tinham 20 ou 30 anos. São pessoas que nutrem certos sentimentos em relação aos tempos da colónia britânica, sobretudo quando comparam C.Y. Leung com a Administração britânica. Alguns deles dizem: ‘Nos velhos tempos, pelo menos o Governo iria ouvir-vos. Não vos iria dar tudo, mas vinha, sentava-se e falava com vocês. Talvez vos desse um bocadinho do que querem. C.Y. Leung, com o pulso forte que tem, não vos dá nada’. O passado continua demasiado presente em Hong Kong? Diria que sim, há muitas pessoas que voltaram a falar dos velhos tempos. E os velhos tempos não significam necessariamente que a Administração britânica era boa. Mas o modo e a qualidade de vida, em termos comparativos, eram muito melhores. Em termos económicos, no que toca à performance do Governo, encontramos diferenças antes e depois de 1997. As pessoas sentem-se traídas, na medida em que havia expectativas no retorno à pátria que saíram defraudadas? Na minha geração, sim. As pessoas que nasceram depois de 1997 não tiveram essa experiência, mas comparam estes três Chefes do Executivo e encontram diferenças. Dos três, C.Y. Leung foi o pior. Em termos económicos, estes últimos cinco anos foram melhores do que a recta final de Tung Chee-hwa. Mas não é a economia que interessa. É o modo como o Governo lida com as pessoas e, sobretudo, a forma como defende as políticas que implementa. C.Y. Leung não defende as suas políticas; limita-se a dizer que são as soluções possíveis e que o que está a fazer é o melhor. Há muitas coisas que foi dizendo que levam as pessoas a perguntar ‘mas o que é que ele está a dizer?’. Falando agora do futuro. Carrie Lam toma posse amanhã. Quando foi eleita, vários analistas consideraram que se trata de mais do mesmo. Sim. Carrie Lam tem uma carreira como funcionária pública, o que é uma vantagem em relação a C.Y. Leung, porque conhece a Administração. Mas isto não significa que esteja numa posição tão vantajosa como a que Donald Tsang teve, porque ele não se rodeou do mesmo tipo de pessoas. Todos sabemos que Carrie Lam fez muitas promessas ao regime para poder estar no poder. Tem de pagar todos os favores. Uma das formas passa pela nomeação de pessoas para a sua equipa. A maioria delas não corresponde às preferências da população. Não podemos esperar, então, melhorias no ambiente social e político de Hong Kong. Não. É algo que posso afirmar com certeza. Ela poderá não ter o mesmo pulso forte de C.Y. Leung, pode ser ligeiramente mais diplomática, mas não acredito que consiga dialogar com as diferentes forças políticas. Teremos mais ou menos o mesmo tipo de situação. Tem saudades da Hong Kong anterior à transferência? Não exactamente porque, quando era jovem, era uma espécie de anti-colonialista. Mas posso dizer que valorizo muito a educação que Hong Kong me deu. Patten, lágrimas, entusiasmo Partiu para o Canadá, passou uns anos nos Estados Unidos, mas antes de embarcar garantiu que, a 1 de Julho de 1997, estaria em Hong Kong. A promessa, feita ao seu grupo de amigos, foi cumprida. No momento em que nascia a primeira das duas regiões administrativas especiais da China, Larry So estava em Hong Kong, a assistir às cerimónias pela televisão, em casa de um amigo. “Chovia muito”, recorda. “Estávamos todos muito entusiasmados. Chris Patten [o ultimo Governador de Hong Kong] estava emocionado, com lágrimas nos olhos”, conta. Foi uma imagem que o marcou. Assim como “ver a polícia a mudar os distintivos, substituir a coroa pelo logótipo da região administrativa especial”. Foi uma noite em que se falou muito. O futuro era uma incerteza. “Havia muita especulação. Entre os meus amigos, alguns tinham passaporte do Canadá e do Reino Unido. Todos decidiram ficar por algum tempo, para ver o que ia acontecer”, explica Larry So. O que aconteceu não correspondeu às expectativas da generalidade. Nascido e criado em Hong Kong, o académico da área dos Serviços Sociais acabou por partir mais uma vez, em 2002, mas para um destino mais próximo: Macau. É por cá que tem estado desde então, sempre atento ao outro lado do Delta.
João Luz Entrevista MancheteMorse Lei, empresário e investigador: “Produzimos mais de mil toneladas de lixo por dia” Com uma vida profissional dedicada à gestão de resíduos, Morse Lei está prestes a defender uma tese de mestrado assente numa mudança de paradigma. O aluno do Instituto de Ciências do Ambiente da Universidade de São José quer minimizar o papel dos aterros e das incineradoras. Em vez disso, propõe a transformação do lixo orgânico em energia limpa [dropcap]Q[/dropcap]uais as principais conclusões do seu trabalho de tese de mestrado? Fiz uma análise de peso ao lixo de Macau. Em Março deste ano analisei os resíduos oriundos de casas particulares e áreas comerciais. Separámos os vários tipos de lixo que vão parar aos contentores: madeira, papel, vidro, metal, latas de alumínio, plástico, tecidos e resíduos de comida. No final pesámos tudo. Foi algo que deu muito trabalho até chegarmos aos números. Em 2012, fez-se uma análise semelhante e a porção de desperdício alimentar era 49 por cento nas áreas comerciais, como casinos, hotéis e restaurantes. Usei o mesmo sistema e comparei com esses valores. Em Março deste ano, o desperdício alimentar em áreas comerciais era de 51 por cento do lixo produzido. Em áreas residenciais era de 48 por cento. Chegámos a estes números a partir de uma amostra de 6,2 toneladas. É normal que casinos, restaurantes e hotéis tenham maior percentagem de desperdício alimentar. Para se ter uma ideia, em Macau produzimos mais de mil toneladas de lixo por dia, desse número total mais de 500 toneladas são desperdício orgânico resultante da alimentação. Eu produzo, você produz, todos produzimos. Como não estamos numa cidade com muita indústria, esta é a grande parcela de desperdício. Para que este estudo tivesse resultados fidedignos tive de ter em conta diversos factores, como, por exemplo, a temperatura do dia em que analisámos a amostra, os níveis de humidade e os valores de precipitação. Estas variáveis são importantes porque alteram o peso do lixo. O que acontece a este lixo? A recuperação de desperdício em Macau é de um valor inferior a 0,2 por cento. Pegamos no lixo que produzimos e metemo-lo em aterros e nas incineradoras. Um dos parâmetros de análise que fiz foi uma comparação entre o total de desperdício incinerado em 2005 e 2015. Em 2005, os centros de incineração queimaram cerca de 278 mil toneladas. Em 2015 o total foi 509 mil toneladas, isto representa um aumento significativo de cerca de 82 por cento. Por aqui incinera-se tudo, excepto o desperdício resultante da construção, porque algum desse material não se consegue queimar. Tudo o que colectamos e que possa ser queimado vai para aí, incluindo o desperdício alimentar. Algum deste desperdício alimentar vai para um pequeno centro de compostagem, mas é uma percentagem mínima. Se olharmos para os números oficiais, por este centro passam duas toneladas diariamente. De acordo com a informação oficial lançada pela Direcção dos Serviços de Protecção Ambiental, no ano passado, em Macau o lixo alimentar era de mais de 40 por cento. Durante o mestrado recolheu exemplos do exterior. Quais as ilações retiradas dessas viagens? Fiz uma visita a Portugal, à cidade do Porto, onde visitei sete centrais municipais de compostagem, incineração, digestão anaeróbia e aterros. Foi uma experiência muito boa, ter a oportunidade para sair de Macau e regressar com sabedoria que possa ser aplicada aqui. Estudei o princípio europeu e português do poluidor-pagador e as capacidades pedagógicas deste princípio. Também fui a Hong Kong onde visitei uma central que vai separar desperdício orgânico, com uma capacidade para lidar com 200 toneladas por dia. O que eles vão fazer é gerar energia, reciclar toda a matéria orgânica e transformá-la em biogás, converter em electricidade, ou em gás para uso doméstico. FOTO: Sofia Margarida Mota Qual a alternativa que propõe ao modelo actual de gestão de resíduos? O meu estudo procurou encontrar um guia para a validação estratégica dos compostos orgânicos para Macau. Primeiro, temos de ter em conta que vivemos um problema de falta de recursos de terras. Precisamos encontrar um pedaço de terreno para instalar uma central de separação de lixos mecânica. Este é o primeiro passo para que o desperdício seja recuperado. Actualmente, temos uma economia linear de recuperação, quando produzimos desperdício alguém o recolhe e coloca-o no aterro ou na incineradora. Queremos fazer mais do que isto. Para tal, há que olhar para fora e aprender com Portugal, com Hong Kong e o resto do mundo. Podemos escolher todo o lixo orgânico, separá-lo, tanto o lixo produzido comercialmente, como o residencial, e ter uma estratégia para tratá-lo. Precisamos de um plano, ao nível governamental, para compostagem e digestão anaeróbia, assim como para a produção de biogás. Temos de saber o que o Governo quer fazer, sei que estão a elaborar um estudo sobre biogás. Mas há que enfrentar o inevitável, que esta é a tendência, temos de desenvolver um modelo de gestão sustentável de lixos. Esse modelo deve ser circular e transformar o desperdício em energia limpa, com menos impacto para o ambiente. A electricidade produzida pode fornecer a rede pública e alimentar a central de produção energética para a tornar auto-sustentável. Outra possibilidade que devemos aproveitar é pegar na compostagem digerida e transformá-la em fertilizante. Qual a percentagem de energia que pode entrar na rede pública através deste processo? Essa é a questão. Podemos tentar saber, aliás, esse será o meu próximo estudo. Quero estudar o consumo energético, a produção e quanta energia pode ser gerada a partir de 200 toneladas diárias de biomassa e chegar a um modelo económico que nos beneficie, que seja compensatório. Acho que este plano é exequível, também temos de calcular quanto calor pode gerar, o investimento de energia e de trabalho necessários até chegar ao output, à rentabilidade. Sente que há abertura das autoridades para implementar esta política? Sim. Aliás, o Governo tem uma empresa de consultoria a trabalhar nesta matéria. Mas a consultoria é uma coisa separada da concretização, sabem o que há a fazer mas não sabem como implementar, não conhecem as limitações do território, nem da cultura de Macau. Este é um desafio para o qual toda a sociedade tem de juntar esforços e conhecer os seus respectivos papéis. Acho que este modelo circular pode beneficiar muito Macau. Testemunhei as mudanças na cidade, o crescimento do turismo para mais de 30 milhões de visitantes anuais. Desde 2003, a cidade mudou drasticamente. O boom económico também trouxe alguns problemas, como a habitação, por exemplo. Neste sentido a sustentabilidade de Macau depende muito da gestão de lixos. Em termos de acções concretas, o que se pode fazer? Temos de ter prioridades, uma hierarquia de gestão de lixos. O primeiro patamar é a prevenção, ou seja, minimizar o desperdício. Reutilização, reciclagem, recuperação e, por último, o descarte, que é a solução menos preferível. Hoje em dia, quem compra um iPhone faz parte do sistema linear económico, que obriga o consumidor a comprar o novo telefone. Em termos industriais, a Apple produz para algo que vai substituir algo que vai para o lixo. Isto é o oposto de sustentabilidade. Em Macau, que é uma microeconomia, temos de minimizar o uso de aterros e incineração. Sabemos que o Governo se prepara para construir uma nova incineradora até 2021. Mas se continuarmos a apostar nestas técnicas onde vamos parar? O que acontece se a população e os turistas aumentarem? Precisamos de outro modelo, precisamos de uma estratégia para reduzir o lixo orgânico, isso é o mais importante. Até onde este problema pode chegar? Como sabemos, a população mundial não pára de crescer e essa inevitabilidade traz três grandes problemas. O primeiro é o acesso à água, o segundo é a falta de proteínas na alimentação e o terceiro é o lixo. As pessoas nunca pensam no lixo. Hoje em dia, a maioria das cidades, mesmo na China, estão rodeadas por lixo. As pessoas vivem em cima de lixo. Todo este desperdício polui rios e oceanos, afecta a biodiversidade e destrói habitats. Temos de empregar mais tempo e devoção a tratar do lixo, é um tema importantíssimo.
Isabel Castro Entrevista MancheteJoão Guedes, jornalista e investigador: “A memória perde-se muito rapidamente” Quando chegou a Macau, a cidade era feita de segredos, um passado irresistível para João Guedes. Apaixonado por história desde cedo, porque ela apareceu no quintal da casa de infância, o jornalista é o responsável por uma palestra marcada para o próximo sábado, que marca os 12 anos da Associação de Imprensa em Português e Inglês de Macau. O autor do único livro em português sobre as seitas no território promete outras obras para breve. Para que o passado não desapareça no vai e vem de pessoas [dropcap]S[/dropcap]ão quase 40 anos de Macau. Veio viver para cá em 1980, num contexto bastante diferente. Como é que foi a chegada? Cheguei num momento muito interessante da história de Macau, o momento em que a imprensa se começava a profissionalizar. Havia, na altura, dois jornais: a Gazeta Macaense, com um senhor que se dedicava muito ao seu jornal, o Leonel Borralho, mas não era um jornalista profissional; o outro era O Clarim, da Igreja Católica, que tinha também belíssimos colaboradores. Por outro lado, tínhamos uma rádio com um profissional, o Alberto Alecrim, mas que vivia sozinho na sua rádio. Era o director e era o resto. Tinha colaboradores que, normalmente, vinham em comissão de serviço para Macau. Gostavam de falar na rádio, de fazer programas, de pôr discos. Era assim. Cheguei no momento em que se estava a pensar fazer a televisão em Macau. A rádio deu um salto qualitativo muito importante e, por arrastamento, os jornais. “Quando nos interessamos pelos becos e pelos sítios que não conhecemos, começamos a gostar, mesmo que os becos sejam feios e a realidade seja, muitas vezes, pouco agradável” Foi uma altura em que vieram para Macau vários jornalistas profissionais. Vim eu, a Judite de Sousa, que hoje está na TVI, o José Alberto de Sousa da RTP, que faleceu há uns anos, o Fernando Maia Cerqueira, da RTP também, o Afonso Rato, que era o chefe da equipa, o Rodrigues Alves, um dos fundadores de O Jornal, que é hoje a revista Visão, e o Gonçalo César de Sá. A Rádio Macau transformou-se, de um momento para o outro, de uma emissora oficial que dava os comunicados do Governo e que punha música numa rádio normal, com noticiários de hora a hora, o que era uma coisa espantosa, nunca se tinha feito isso em Macau. Eu fui o crucificado, porque fui encarregado de ler os intercalares, fui literalmente lançado aos bichos. Tudo isto era para a criação da televisão, mas a rádio ainda ficou bastante tempo a ser dona das ondas hertzianas, porque o projecto da televisão demorou bastante tempo a ser concretizado. Houve percalços políticos, alterações de Governo. Os governadores em Macau costumavam ter um prazo de validade médio de mais ou menos dois anos. Com a mudança de Governador, não era só o ajudante de campo que mudava também – toda a Administração ia embora para Portugal e vinha um novo Governador com os chefes de repartição. Quando o PSD estava no poder, o PS vinha para cá exilado. Quando era o PS no poder, o PSD vinha exilado para cá. Finalmente, em 1984, ficaram reunidas todos as condições para a televisão poder avançar. E avançou com um projecto muito profissional a todos os níveis – técnico, da qualidade dos jornalistas, da qualidade da informação que se fazia. Foi um abanão muito grande no “status quo” de então em Macau. Foi nessa altura que se verificou uma transformação na imprensa. A Gazeta Macaense deixou de deter o monopólio das notícias da imprensa e surgiram dois jornais novos: a Tribuna de Macau e o Jornal de Macau. A Tribuna de Macau, sob a batuta de José Rocha Dinis, e o Jornal de Macau com João Fernandes, que acabou por ir embora. Deu-se então a fusão entre os dois. Ambos os jornais trouxeram equipas de redactores também profissionais. Por aqui se pode ver a profundíssima alteração que ocorreu na década de 1980 no jornalismo em Macau. De lá para cá, houve outros momentos de grandes alterações na comunicação social local. Como é que olha para o jornalismo de língua portuguesa que hoje se faz em Macau? Há muitos profissionais que vieram depois da transferência de administração, para um território que já não pertencia a Portugal e às suas extensões. Foi outra alteração tão profunda como a que acabei de referir, ou talvez ainda mais profunda. Vivi numa colónia portuguesa. Por muito que se diga que não era colónia, porque o poder económico esteve sempre na mão dos chineses, o espírito era esse. Quem mandava era Portugal. Surgiu 1999 e deu-se uma alteração do panorama que teve que ver principalmente com um factor: antigamente, a comunicação social ignorava o mundo chinês, os mais de 90 por cento da população, tratava das notícias e das análises sobre o que se passava com a comunidade ocidental que aqui vivia, com a comunidade portuguesa, que nunca ultrapassou as 10 mil pessoas. De repente, começou a tornar-se importante ouvir o deputado chinês na Assembleia Legislativa. Antes, quem ouvia os deputados chineses eram os repórteres chineses, não éramos nós que os íamos ouvir, porque quem contava politicamente eram os deputados portugueses. Aqui está uma alteração completamente radical. Hoje, Ng Kuok Cheong, Mak Soi Kun e todos esses nomes estão presentes nos diários. Isto representa a tal alteração estatutária de Macau que, de repente, passou a ser um local de emigração. O que vejo hoje é que as pessoas que vieram depois estão aqui como emigrantes. Às vezes custa-me perceber essa nova forma de estar em Macau, porque não me sinto emigrante e até posso ser considerado passadista. Mas leva-me muitas vezes a considerar a minha função de jornalista e a ter em conta a imagem do meu país. Hoje, o jornalista que está aqui, não precisa de ter isso em conta: tem em conta as regras da profissão e já lhe chega. O facto de não se sentir emigrante faz com que encare o exercício da cidadania de outra forma? Sim, talvez, porque gosto de Macau. Gosto de Macau por duas razões: primeiro, porque estou cá há muito tempo; e depois porque gosto muito de história, sempre gostei de saber o que se passava, e quando nos interessamos pelos becos e pelos sítios que não conhecemos, começamos a gostar, mesmo que os becos sejam feios e a realidade seja, muitas vezes, pouco agradável. É uma forma de estar bastante diferente da de um emigrante que está aqui, com toda a honestidade, a fazer o seu trabalho, mas que não tem quaisquer obrigações morais para com o sítio onde está. Como é que surge o interesse por história? Vem de longe. Nasce porque sou de uma aldeia do Alto Douro, muito pequenina, que hoje só já tem 22 habitantes. Lá no alto da aldeia há um monte que é um crasto antigo, romano. No meu quintal, encontravam-se muitas coisas que vinham com as enxurradas. Lembro-me que tinha uma colecção de moedas com vários sestércios romanos. Encontrei um anel árabe, várias coisas. E isso despertou-me o interesse. Andavam por ali arqueólogos da Universidade de Coimbra, que era na altura a única universidade que fazia esses estudos. E como é que esse interesse se materializou em Macau? Pouco tempo depois de cá ter chegado, apareceu-me uma pessoa que me entregou muito discretamente um documento sobre uns acontecimentos que, dizia, tinham sido terríveis aqui em Macau: os tumultos de 1922. Foi um caso grave na história de Macau porque houve uma greve geral que durou um ano, estiveram aqui os anarquistas em força a agitar as massas, houve tiroteios, os militares saíram para a rua, houve 70 mortos e mais de 200 feridos. Deram-me esse papel por acharem que daria uma boa história. Antes, esses assuntos não eram tratados, eram praticamente segredos. Olhei para aquilo: o documento que me foi entregue não era uma carta privada. Era um Boletim Oficial de 1922 que relatava os acontecimentos. Achei piada porque, na altura, em Macau era tudo secreto. Caí que nem peixe na água, porque aí comecei a investigar tudo o que era secreto. Mais secreto ainda do que 1922 – uma data tão remota que não percebia por que tinha algum grau de secretismo –, era 1966, o chamado “1-2-3”. Esse era ainda pior, ninguém falava e muito menos publicava alguma coisa sobre isso. Tudo isto me despertou para a história de Macau, que verifiquei ser muito interessante. Macau estava cheio de história, cheio de histórias, que se desconheciam, por estes preconceitos agravados pela ditadura e pelo monopólio da inteligência do clero local. O clero constituía a intelectualidade de Macau e exercia uma censura férrea a todos os níveis. Temos um exemplo muito interessante, o do Padre Teixeira. Foi o homem que escreveu sobre tudo quanto havia para escrever, mas havia determinados temas sensíveis em que não hesitava em adulterar por completo o que se passou, para se coadunar com aquilo que ele pensava ser correcto – e ele era um salazarista, um homem da extrema-direita, com todos aqueles preconceitos muito antigos, um reaccionário. Macau, apesar de já estarmos muito para lá do 25 de Abril, continuava envolto neste ambiente de censura, embora já não existisse censura. Tudo isto me impeliu a ir vasculhar, para saber quais eram as outras histórias que não sabia e que tinha obrigação de dar a conhecer. A partir daí começa também a investigar as seitas, numa altura em que não havia em português nada escrito sobre este tipo de organizações. Sim, mas pior: continua a não haver. O meu interesse pelas seitas não começa aqui, mas sim quando pertencia à Polícia Judiciária, em Portugal. Por qualquer razão, tudo quanto dizia respeito a Macau acabava por vir parar à minha secretária. Tive de começar a estudar. Ainda me lembro que o primeiro processo que me caiu era de um homem da 14 Kilates, de maneira que tive de ir ver o que era a 14 Kilates. Não encontrei nada em português porque ninguém tinha escrito sobre isso, a não ser um pequeno livro que pouco ficou na história da literatura portuguesa, de um autor de viagens chamado António Maria Bordalo. Fez aquela que, estou convencido, será a primeira novela policial escrita em português. Era sobre as seitas em Macau na sequência da explosão da Fragata D. Maria II, em 1850. Era a única coisa que existia. Depois disso, escrevi o livro “Histórias do Crime e da Política em Macau – As Seitas”, e estava à espera de abrir caminho a outros interessados. Mas não, infelizmente continua a ser o único livro sobre as seitas em Macau. Ao contrário do que previ, Macau tem mais jornalistas do que tinha antes da transição. Pode ser que algum se interesse por esse tema, porque mesmo entre gente da universidade ninguém se interessou até ao momento. O tema é demasiado sensível? Se calhar. Ou as pessoas pensam que é demasiado sensível. Eu acho que não é. É um tema cultural, como qualquer outro. Por exemplo, Sun Yat-sen, o primeiro Presidente da República da China, era um homem das seitas e nunca omitiu esse facto na sua biografia política. As seitas oscilam entre mergulharem na criminalidade comum e depois em ciclos políticos de transformação. Por isso é que são importantes. Não é um assunto tão sensível como isso. “Macau, apesar de já estarmos muito para lá do 25 de Abril, continuava envolto neste ambiente de censura, embora já não existisse censura” Nos últimos anos, tem feito muito trabalho de levantamento histórico para programas da TDM. Fazem falta mais exercícios de explicação do sítio onde estamos, até pela falta da escrita da história de Macau? O problema de Macau foi sempre a população mudar muito rapidamente, e não só a portuguesa. Se virmos as estatísticas, temos uma percentagem altíssima de pessoas que têm menos de sete anos de residência em Macau. A memória não fica preservada. Como disse, os governadores mudavam de dois em dois anos, com toda a Administração, pelo que se perdia a memória daqueles dois anos. Lembro-me de ser repórter e de chegar um Governador, anunciar que ia fazer um estudo sobre determinado assunto, e dois anos antes tinha sido feito um estudo sobre o mesmo tema. A memória perde-se muito rapidamente. Se calhar, as pessoas que agora vêm de Portugal ficarão mais de dois anos mas, de qualquer maneira, não permanecem aqui muito tempo. Quanto ao meu trabalho, porquê pequenos programas? Não pretendo fazer um compêndio da história de Macau – isso é a Universidade de Macau que deve fazer. O que pretendo é divulgá-la, da melhor forma, de maneira a que as pessoas se interessem. Quanto à feitura da história de Macau, acho que não existe uma história de Macau, de facto, mas também não sei que história se poderá fazer. A rádio, a televisão e os jornais são efémeros. Há possibilidade de passar esses apontamentos para livro? Sim, porque só depende da minha disponibilidade. Como estou na reforma, já tenho bastante mais tempo. Há muitos temas que são tratados de uma forma na rádio ou na televisão mas que, em livro, podem ser abordados de uma maneira mais profunda e elucidativa, e menos efémera. Podemos então esperar mais livros de João Guedes? Com certeza que sim. Quase 40 anos depois de ter chegado, gosta da Macau que temos? Gosto, gosto disto. Tem muitos problemas. Estou a ver a Ponte Sai Van e a quantidade de trânsito que tem. Depois a poluição. Há uma série de coisas terríveis e é preciso fazer pressão para que isto melhore. Mas, apesar disso, gosto muito de Macau e não sou nada saudosista dos tempos em que havia as casas baixinhas da Praia Grande. Gosto muito de ver essas gravuras, mas Macau não podia parar no tempo. Já teria desaparecido, obliterado por Hong Kong. Eu e quem achar que sim tem a obrigação de fazer os possíveis por corrigir estas coisas caóticas, torná-las melhor e transformar esta cidade para que dê gosto viver nela, sem tantas obras, sem tantos carros e outras coisas que não são boas.
Isabel Castro Entrevista MancheteAgnes Lam, candidata às eleições: “O Governo é muito bom a gastar dinheiro” As patacas não compram tudo e é por isso que Macau se depara hoje com mais problemas do que nas últimas legislativas. Agnes Lam, investigadora e docente, volta a liderar o Observatório Cívico nas eleições de Setembro. O resultado de 2013 ajudou-a a perceber que não pode ter apenas como alvo o eleitorado da classe média, uma fatia de eleitores demasiado pequena. Defensora de mudanças no método de conversão de votos em mandatos, entende que a sua grande vantagem é conseguir analisar a sociedade em que vivemos [dropcap]C[/dropcap]andidata-se pela terceira vez este ano. Depois do resultado de 2013, aquém do que estaria à espera, o que a leva a tentar mais uma vez? Sinto que tenho de voltar a fazê-lo. Da última vez, apesar de sentir que trabalhei muito, tomei a decisão demasiado tarde. Não planeei muito bem. O resultado foi bom, mas claro que se esperava mais. Quando olho para trás, percebo que não tive tempo para fazer uma série de coisas que queria fazer, para falar com as pessoas. Tenho de fazer isto como julgo que deve ser feito. Da primeira vez que me candidatei, achei que devia seguir por um caminho, mas acabei por escolher uma forma que não era aquela em que acreditava. Depois das eleições, a lista fez um grande trabalho de avaliação à nossa participação. Tivemos reuniões muito duras, criticámos o que fizemos mal e também tivemos sessões muito calmas, em que olhámos para os resultados das eleições, analisámos os votos que tivemos em cada mesa, analisámos todos esses detalhes, para percebermos quais são foram as grandes diferenças entre 2009 e 2013. E que diferenças foram essas? A principal diferença é que conseguimos melhores resultados junto das zonas onde vota a classe média. Tivemos mais votos na Taipa, na Praia Grande, no Tap Seac. Mas tivemos uma prestação pior na zona norte, não fizemos o suficiente nesta área da cidade. Mais tarde percebemos que, mesmo que quiséssemos representar a classe média ou os eleitores com mais formação, tínhamos de fazer mais em simultâneo, porque não tivemos votos suficientes. Não há apenas uma lista que representa este tipo de pessoas, há mais a fazê-lo. Desta vez, parti do princípio de que tenho de olhar para o panorama em geral. Aquele conjunto de pessoas era demasiado pequeno. O trabalho que fez nestes últimos quatro anos foi suficiente para que as pessoas fora do grupo da classe média tenham ficado a perceber quem é Agnes Lam? Acho que fiz melhor. Não consigo fazer uma sondagem acerca de mim própria, mas tenho os dados da minha presença nas redes sociais e parece que a minha popularidade é maior agora do que era há quatro anos. Quanto a estarmos a fazer o suficiente para o público em geral, lidei com alguns casos, como a da menina cega, em que ajudei à recolha de fundos para que fosse operada. Tive vários casos desse género, em que ajudei minorias e pessoas que precisam de ajuda sistemática ou de apoio urgente. De alguma forma, isso talvez tenha ajudado. E espero poder ajudar mais e melhor. Mas este envolvimento terá contribuído para chegar a um público mais abrangente. Em termos eleitorais, a competição é grande na zona norte de Macau. Em 2013 já era difícil mas, este ano, a equipa de Chan Meng Kam partiu-se em duas e há mais uma lista oriunda de Fujian. Há várias listas que se dividiram, por causa do sistema de contagem de votos. Macau deve reconsiderar a forma como os votos são convertidos em mandatos? Sim, acho que o método que utilizamos é errado. Um cenário seria aquele que se utiliza em Hong Kong, com a representação por distritos, mas as três freguesias da zona norte representam 70 por cento dos votos. É impossível desistirmos daquela área, onde não vivem apenas as classes mais baixas – também há pessoas da classe média, estudantes universitários, professores… Não posso pensar que não tenho de trabalhar naquela zona. Tenho, isso sim, de ter uma estratégia melhor. Ainda estou a trabalhar nela. Mas chegou a altura de repensarmos todo o sistema político para as eleições por via directa. Porque é que utilizamos estas listas? No boletim de voto, o eleitor poderia votar em 14 candidatos, o número de assentos. Na China Continental está a fazer-se isto. Se optássemos por este método, dávamos aos eleitores a possibilidade de decidirem como é que a Assembleia Legislativa (AL) deveria ser constituída. Por exemplo, se eu quiser que a sociedade seja mais estável, dou dez votos a candidatos mais tradicionais, mas como também quero alguma inovação, escolho dois com essas características, e como também quero alguma oposição para contrabalançar, escolho outros dois dessa ala. Neste momento, não é possível fazer essa escolha. No dia em que formalizou a comissão de candidatura, fez referência ao facto de hoje termos problemas diferentes daqueles que existiam em 2013. O que é que a preocupa? O Governo é muito bom a gastar dinheiro para resolver os problemas. A maioria das questões que podiam ser resolvidas através de dinheiro está solucionada. Agora temos muitos mais problemas que o dinheiro não pode resolver. Temos tanto dinheiro, mas por que é que temos tanto trânsito? Os transportes não são bons. O mesmo acontece com a habitação: está toda a gente descontente. Quem arrenda casas tem de pagar um custo muito elevado, quem quer comprar não tem perspectivas de quando é que vai poder fazê-lo. Depois, há questões sociais emocionais. Ganhamos mais, viajamos mais – muitas pessoas vão com frequência a Taiwan, ao Japão. E quando voltam sentem-se insatisfeitas com a cidade. Por mais que o Governo Central nos elogie, as pessoas não estão contentes, temos uma carga negativa grande na sociedade. Por quê? Porque nos dão nove mil patacas? Não é sequer um Panadol. No início era uma espécie de analgésico, agora já nem sequer isso é. Sente que a cidade piorou desde 2013? Em termos gerais, as emoções estão em baixo. Temos mais problemas, quando devíamos ter muitas hipóteses. Temos a política “Uma Faixa, Uma Rota”, devíamos estar à espera de podermos abraçar essas novas possibilidades. Mas depois não vemos ninguém que consiga comunicar de forma clara com o público em geral. O que é que está a acontecer? Sentimos que há qualquer coisa especial, parece que há muitas oportunidades para os países lusófonos, mas quais são as verdadeiras possibilidades para as pessoas de Macau? Há demasiados chavões e slogans na política local, em comparação com o que existe na realidade? Sim. A propósito da Grande Baía Guandong-Hong Kong-Macau, fui a uma palestra em que nos perguntaram o que podemos nós fazer. Houve uma pessoa que sugeriu que deveria existir uma espécie de gabinete de ligação para ajudar as pessoas jovens a poderem entrar nesta grande área e encontrarem oportunidades. Fiquei a pensar sobre que oportunidades são essas e cheguei à conclusão de que não sei. Talvez consigam os investidores, os profissionais liberais que possam arranjar emprego na sua área, aqueles que estão a fazer negócios. Parece que temos um enorme potencial, mas ninguém sabe o que fazer com ele. Talvez demore algum tempo a perceber. Mas, a partir do momento em que tivermos essa política a funcionar, espero que haja ideias concretas. Não me parece que haja suficiente informação. Vem da área da Comunicação. Tem muito trabalho de pesquisa social feito. Se for eleita, qual pode ser a grande diferença em relação a outros deputados? Em que medida pode a AL mudar se estiver lá? Um dos aspectos tem que ver com a capacidade de ver questões que não são abordadas, estudadas ou defendidas por outras pessoas. Fomos a primeira – e única – lista a defender os direitos dos animais em 2009. Nesse ano, quando organizámos actividades na Taipa com cães e gatos, houve pessoas que gozaram connosco nas redes sociais. Diziam que a lista não ia a lado algum, que não sabíamos o que estávamos a fazer. Mas a verdade é que foi feita legislação nessa área. Vimos que havia essa necessidade, Macau estava a mudar muito. Também fomos dos poucos a defender que a violência doméstica deveria ser considerada crime público. Fomos a primeira lista a defender políticas que protejam as famílias. Percebemos essas necessidades e acho que isso se deve ao facto de ser investigadora, fui capaz de observar a sociedade como um sistema e perceber que há aspectos que não funcionam. Se for eleita, farei pressão em relação a mudanças no sistema. Também propusemos regulamentação acerca das finanças públicas. Quando o fizemos éramos os únicos e o Governo avançou agora nesse sentido. Independentemente da sua candidatura, o que gostaria de ver acontecer no dia 17 de Setembro? Uma mudança positiva. Tivemos uma mudança nos últimos anos, mas não foi muito positiva. Desta vez, espero que possa ser diferente. É muito importante para a AL e para Macau, para toda a estrutura e vida política, para o poder e o equilíbrio. “O fenómeno das listas regionais irá desaparecer” Há quem entenda que as eleições de Setembro poderão ficar fortemente marcadas pelas chamadas listas regionais. Quais são as suas expectativas? Se olharmos para a AL como um todo – incluindo os sete deputados nomeados e os dez eleitos pela via indirecta – a fatia para estas listas regionais vai ser maior, vão conseguir mais assentos. Fujian tem três listas este ano: a equipa de Chan Meng Kam dividiu-se e há mais uma da mesma província. Que consequências terá para Macau? Haverá uma ligação maior às políticas do Continente. Se as pessoas utilizam a influência do Continente para conquistarem assentos, então precisam de devolver algo. No grupo de deputados eleitos por via directa, acredito que consigam mais um lugar. Este fenómeno será uma tendência no futuro? Julgo que não, porque as pessoas vão mudando. Se olharmos de uma perspectiva histórica, a comunidade de Fujian chegou a Macau sobretudo nos anos 1980, pelo que são pessoas entre os 40 e os 50 anos. A próxima geração sentir-se-á mais enraizada. Os jovens não irão votar como os pais. Este fenómeno irá desaparecer. Na passada semana ficámos a saber que vários deputados não se recandidatam, entre eles Leonel Alves, o deputado com mais experiência na AL. Como é que vê estas saídas? É o deputado com mais experiência e exerce o cargo com muito profissionalismo. É muito importante para a AL. Por um lado, é advogado, pelo que utiliza as leis; por outro, é deputado há muitos anos. Conhece o jogo, sabe que problemas poderão ser levantados, o que deve ser feito quando se está a desenhar uma lei. Por isso, considero que se trata de um membro da AL muito importante. Não tenho a certeza de que possamos ter outro com tantas capacidades, com tanta diplomacia, com tanto profissionalismo como ele. Olhando para todas as listas, pelos membros que conheço, não vejo ninguém com qualificações que fiquem perto das dele. Ao mesmo tempo, tem todo o direito de afastar-se. O facto de não termos mais ninguém como ele também me leva a pensar que temos de ter alguém que cresça como ele. É uma pena não contarmos com ele desta vez, mas espero que possa ajudar a AL de outra forma: como uma espécie de consultor, por exemplo, não sei se tal será possível. Seria muito importante se pudesse escrever sobre a sua experiência, se escrevesse um livro sobre todos estes anos na AL.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteVítor Marreiros, designer gráfico: “O Instituto Cultural não está mais bem entregue” Já não é possível dissociar o cartaz oficial do 10 de Junho do nome Vítor Marreiros. Desde 1990 que o designer gráfico faz este projecto por gosto, e assume estar sempre a pensar em novas formas de retratar, por exemplo, Luís de Camões. Ao HM, Vítor Marreiros defende que Ung Vai Meng não foi o melhor presidente do Instituto Cultural, mas Leung Hio Ming também não é o nome ideal [dropcap]O[/dropcap]O seu nome está muito ligado aos cartazes oficiais do 10 de Junho. Como é que tudo começou? Faço os cartazes do 10 de Junho desde 1990. Fiz primeiro para o Governo de Macau, quando ainda estava no Instituto Cultural (IC), e depois para a comissão organizadora das comemorações do 10 de Junho. Depois, ao fim de uns anos, voltou para o IC e passou a ser feito pelo IPOR. Ao fim de um ano, pelo facto de o IPOR ter decidido fazer um concurso, em vez de me pedir cartazes, deixei de fazer. Mas ainda assim decidi fazer sem encomenda, em 2006, quando fiz um galo de Barcelos para oferecer à comunidade portuguesa. Estava habituado. A Casa de Portugal em Macau soube da história e decidiu apadrinhar o cartaz. Até hoje. Como funciona o processo criativo? Vou fazendo aos poucos ao longo do ano. Há uns cartazes que demoram mais, basta contar as cabeças das pessoas. Outros demoram menos tempo. Mas vou fazendo outros trabalhos também. Estou reformado mas nunca deixei de trabalhar. É um hábito meu, quando tenho um trabalho vou pensando nele. A minha cabeça está sempre a trabalhar. Quando estou numa conversa que está aborrecida, por exemplo, vou desenhando e pensando. Foi um hábito que adquiri a partir dos 27 anos, porque antes não dormia. A minha vida é feita de datas. Adoro o meu trabalho e não é stressante trabalhar comigo, mas as datas [para as entregas] são stressantes. E às vezes uns clientes, que são de uma monotonia ou de uma inteligência… É a parte pior do design gráfico. Não gosta que lhe imponham ideias. Não faço o meu trabalho para agradar. Há umas cotoveladas, uns maus momentos, mas nunca trabalhei para agradar ao cliente ou ao superior. Respeito o trabalho e depois as sugestões e objectivos. Ao longo da vida tenho tido bons e menos bons clientes, mas isso faz parte da profissão. Tantos anos a fazer este projecto dos cartazes, houve certamente uma evolução na forma de representar Portugal e os portugueses. Quando se trabalha o mesmo tema muitas vezes ganha-se facilidade, mas também se começam a secar as fontes. Para mim nunca foi um grande problema fazer o cartaz do 10 de Junho, já estou habituado a repetir os mesmos temas. Portugal tem uma história rica, uma nação colorida. Às vezes repito o Camões, tenho dez versões dele, ou 20 versões do mar. Tento sempre equilibrar o Camões, a comunidade e a história. Ao longo dos anos os cartazes foram mudando de estilo e é um amadurecimento como designer. Nunca fiz questão de manter o mesmo estilo. 1990 1998 2004 2006 2009 2017 Gosta de variar e de evoluir. Posso saltar de estilo que as pessoas reconhecem sempre. Deve lá ter alguma alma, algum esqueleto, pois reconhecem sempre. Com a idade tornei-me mais divertido e brincalhão, e atrevido também. Coloquei em alguns cartazes a frase “Este cartaz não passou pela comissão prévia de censura” e também tirei do Boletim Oficial a frase que diz que, em caso de conflito, prevalece a versão portuguesa de uma lei. São pequenas brincadeiras que não agridem ninguém. Quer passar alguma mensagem ou fazer uma espécie de exercício de memória? São brincadeiras. Gosto de pensar que, quando estou a trabalhar brinco, e depois o trabalho ganha vida. Cada um que interprete. Tenho sempre duas interpretações: a minha e aquela que dou ao cliente. No 10 de Junho há cotoveladas no bom sentido. Fez uma exposição com trabalhos seus em 2014. Porquê tanto tempo sem expor? Não exponho o meu trabalho numa galeria, ele está à vista. Já esteve mais, mas está à vista. Não é por acaso que estamos aqui a tomar café. Estes trabalhos são meus [aponta para as obras expostas num restaurante no MGM, feitas em 2016]. Fala-se muito das indústrias criativas, dos artistas locais, mas fiz este projecto e não foi noticiado. Faço poucas exposições, nestes cerca de 30 anos devo ter feito umas quatro ou cinco, incluindo duas em parceria com o meu irmão [Carlos Marreiros] e com Ung Vai Meng, em Osaka. Não trabalho para fazer exposições. Falando destes trabalhos que vemos aqui, foi um convite do MGM. FOTO: Hoje Macau Tem ali a imagem da imperatriz chinesa Cixi. Sim. Foi um dos trabalhos que gostei muito de fazer, além de ser muito respeitado pelo cliente. Fiz os quadros e a parte gráfica. O único input que me deram foi que as obras seriam para os restaurantes norte e sul. Na zona sul coloquei o Mateus Ricci, por exemplo. Acha que o seu trabalho é reconhecido o suficiente em Macau? É uma pergunta perigosa. Penso que é reconhecido, não é mais por culpa minha. Muitas vezes nego entrevistas. Gosta de estar na sombra? Não gosto de estar na sombra, mas não preciso do estrelato. Estrelas é o que há mais, no mundo e em Macau. Apesar de ser designer gráfico não tento publicitar o meu trabalho, por opção ou falta de jeito, não sei. Fui condecorado pelo Governo português e pela RAEM. Sei que os meus amigos gostam, outros dão palmadinhas e outros têm inveja, mas isso faz parte da vida. Acho que é reconhecido, mas podia ser mais. Nunca quis ter a intervenção social e política que o seu irmão tem, por exemplo. Somos muito diferentes. O meu irmão gosta disso e tem a sua maneira de estar na vida e na cultura, faz muito bem e tem o seu valor. Eu gosto de estar mais no meu cantinho, sem ser escondido. A minha prioridade, acima de tudo, é a liberdade. Estar em muitas comissões ou associações para mim seria um sacrifício. Prefiro trabalhar como quero e andar onde quero. Criou o Círculo dos Amigos da Cultura de Macau há muitos anos. Agrada-lhe a cultura que se faz em Macau nos dias de hoje? Fui sócio fundador, com Ung Vai Meng, o meu irmão e mais alguns artistas. Fizemos muito na altura, contribuímos muito para o panorama artístico de Macau. O Governo dá bastante apoio aos artistas, mas será da forma mais correcta? Acho que não. Mas há facilidades em fazer uma exposição, há subsídios. Poderia ser um apoio mais organizado e seleccionado. O que faz falta no Governo e na comunidade de Macau é o amor aos seus valores. E é isso que está a faltar. Também não podem ter muito orgulho se mais de metade da população não sabe quem foi São Paulo [referindo-se às Ruínas de São Paulo]. Quanto à cultura macaense, tem-se feito o suficiente em prol da sua preservação? As coisas boas nunca são de mais. Poderíamos ter mais coisas. Tenho pena de termos perdido o hábito do carnaval no Teatro D. Pedro V, uma festa muito macaense. Isso desapareceu e ninguém reanimou. A Associação dos Macaenses está a fazer um bom trabalho com o patuá. É o destino das coisas. A comunidade está cada vez menor, mais diversificada. Definir um macaense… Pergunto sempre: definir à antiga, de acordo com a actualidade ou politicamente? Se a cultura macaense está protegida? Há sempre lugar para mais. Está descaracterizada? É o percurso normal das coisas. Um macaense nascido na Austrália é normal que fale mais inglês. E ainda se orgulha de ser macaense? Batemos palmas. Com o tempo o português vai diminuindo, o chinês vai aumentando e introduzem-se outros sangues. Não troco o meu passaporte português por nada e nasci aqui, mas os outros, que nasceram noutros lugares, também têm direito de dizer que são macaenses. Definir um macaense é difícil e a cultura, consoante as nuances, vai mudando. Espero que a alma se mantenha. FOTO: Hoje Macau Há projectos novos a nascer em Macau, há uma evolução rápida. A cultura local e o património podem ficar perdidos no meio desse desenvolvimento? Só depende da comunidade e do Governo. Gosto do antigo, sou nostálgico, mas também gosto de coisas novas, desde que sejam bem feitas. Um design arrojado, atrevido, mas também gosto do mofo da madeira. Por isso é que há reuniões e conselhos, espero que todos se reúnam, trabalhem e tenham dois dedos de testa. Se Macau perder as suas características será abafada por Zhuhai. Mas para manter o tradicional não tem de se parar o moderno. Façam concursos internacionais, há dinheiro, tragam os melhores. As coisas não têm de ser sempre feitas por locais. Há pouco público, mas não temos de fazer coisas só para esse público. Ficou triste com a saída de Ung Vai Meng do IC? Já não estava lá [reformou-se em 2015]. Visto de fora, não sei se fiquei triste. Somos amigos de longa data. Posso dizer que é um apaixonado pelas coisas que faz. Não digo que o IC está mais bem entregue e afirmo-o com as duas mãos abertas. Neste momento não está mais bem entregue, doe a quem doer. Mas essas coisas acontecem, o vai e vem, as pessoas não podem estar sempre ligadas ao seu trabalho. Trabalhei para todos os presidentes do IC [dirigiu o departamento de design gráfico], e tinha sempre uma mala invisível, caso mudasse o presidente e quisessem mudar as chefias. Mas sempre fiquei lá. Se Ung Vai Meng fez tudo bem? Como ex-funcionário, como gráfico, posso dizer que não foi o melhor presidente. Houve melhores, o sector [do design gráfico] foi mais respeitado [com outros presidentes]. É muito diferente do seu irmão, mas como funciona quando têm projectos em comum, como foi o caso de “A Peregrinação”? Trabalhar para e com o meu irmão não é difícil porque é um cliente conhecedor dos objectivos do trabalho que pede e respeitador do criativo. Torna-se mais difícil quando o trabalho é um catálogo para o artista Carlos Marreiros. Somos dois artistas apaixonados e exigentes, por vezes para defender as nossas ideias e sermos irmãos torna-se mais complicado. Mas há sempre um final feliz e estamos prontos para o próximo trabalho. “A Peregrinação” foi um dos trabalhos gráficos que mais me divertiu e a relação profissional com o meu irmão foi óptima. Gostava de fazer um projecto semelhante com outra obra da literatura portuguesa? Poderia ser “Os Lusíadas”, mas com menos piada. Fernão Mendes Pinto, se não fosse português, tinha 20 filmes, uma galeria e vários documentários sobre ele. Tem muita piada, tal como “A Peregrinação”. “Os Lusíadas” têm outra componente.
Victor Ng Entrevista MancheteCarl Ching, candidato às eleições: “Em Macau não se fala muito sobre o sufrágio universal” Entrou nas lides políticas em Hong Kong, há mais de três décadas, na sequência da participação activa num associação de cariz social. Membro de uma lista candidata às legislativas em 2013, Carl Ching é desta vez o cabeça-de-lista da Associação Sonho Macau. Tem o sufrágio universal como principal cavalo de batalha, mas também diz preocupar-se com as contas públicas, o património e a cultura Entrou no mundo da política, não em Macau mas em Hong Kong, há já vários anos. Como é que surgiu esse interesse? Fui para Hong Kong depois de ter concluído os estudos na Escola Secundária Pui Ching. Já depois de lá estar a viver, tentei candidatar-me às eleições distritais, mas não cheguei a ser oficialmente candidato, porque não consegui assinaturas suficientes. Tinha uma participação activa em associações da área dos serviços sociais e pensava que a candidatura poderia ser uma maneira de expressar a opinião dos cidadãos. Também participei na realização de actividades de luta pela democracia. Em Hong Kong, é relativamente fácil ser-se candidato aos conselhos distritais, mas claro que é difícil conseguir um assento. A situação é diferente em Macau. E como foi essa experiência em Hong Kong? A situação de Hong Kong é muito politizada. A política lá foca-se sobretudo na democracia, nomeadamente no Conselho Legislativo. Mas nos conselhos distritais a carga política é menor, porque os residentes votam e o resultado das eleições está directamente relacionado com o trabalho que viram ser feito na área social. É fácil para um membro de um conselho distrital conseguir a renovação do mandato, sendo difícil desafiar quem já lá está e conseguir um assento. Por exemplo, o Long Hair [Leung Kwok-hung, deputado ao Conselho Legislativo] desafiou um membro da Aliança Democrática para a Melhoria e o Progresso de Hong Kong, mas não conseguiu ser eleito. Faltavam-lhe mais de 200 votos. Ainda assim, foi um bom resultado. A sua intervenção política em Hong Kong tinha também como objectivo o sufrágio directo universal para o Chefe do Executivo e para o Conselho Legislativo? Apoiei o sufrágio universal para ambas as eleições. Penso que existe esta necessidade, quer em Hong Kong, quer em Macau. A partir do momento em que me mudei para Hong Kong, deixei de prestar tanta atenção ao que foi acontecendo em Macau. Depois, em 2010, cheguei à conclusão de que as eleições aqui no território se assemelhavam ao referendo que, à época, houve em Hong Kong – o referendo que envolveu os cinco distritos, em que cada um deles solicitou a um deputado para deixar o cargo, para que os substitutos fossem eleitos por toda a população. Nesse mesmo ano obtive o Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau e em 2013 participei nas eleições legislativas, juntei-me a uma lista. Pensei que seria uma oportunidade de representar as opiniões dos cidadãos e acreditava que em Macau era necessário lutarmos pelo sufrágio universal. Como é que olha para o processo democrático em Macau, em comparação com o de Hong Kong? Em Macau não se fala muito sobre o sufrágio universal. As pessoas pensam que não precisam de lutar por isso. Mas considero que se trata de uma forma de pensar incorrecta. Na Lei Básica não está previsto qualquer conteúdo relativo ao sufrágio universal, mas tal não representa que não possa existir. Os residentes de Macau têm direito a casar e a ter filhos. Mas a Lei Básica não diz quando é que as pessoas se podem casar e ter crianças. Será que os residentes precisam de esperar pela permissão do Governo Central para se casarem? Não, o casamento tem que ver com a decisão dos indivíduos. Segundo a lei, caso haja dois terços dos deputados de acordo, a metodologia das eleições pode ser alterada, o que significa que é possível alcançar o sufrágio universal. É óbvio que não é nada fácil que dois terços dos deputados estejam de acordo com essa ideia. Por outro lado, se continuarmos a adoptar os métodos utilizados durante a Administração portuguesa, o direito da população local de eleger e de ser eleito continuará a ser restringido. Por que tem o Chefe do Executivo o direito de nomear sete deputados? Durante a Administração portuguesa, esta medida dava jeito porque, na altura, se fosse implementado o sufrágio universal, os chineses teriam receio. Hoje em dia, dizemos que os locais não reagem de forma activa à política mas, naqueles tempos, as pessoas eram ainda mais passivas. Se fosse adoptado o sufrágio universal, os deputados seriam todos macaenses ou portugueses. Por isso, durante aquele período, justificava-se a nomeação. Constata que, desde então, houve alterações no modo como a população lida com a política. Hoje em dia há muitos estudantes universitários e a população queixa-se através do canal de rádio. O que se passou com o regime de garantia dos titulares do cargo de Chefe do Executivo e dos principais cargos permitiu-me perceber que os deputados eleitos pela via indirecta e os nomeados pelo Chefe do Executivo têm uma postura que se opõe às opiniões dos cidadãos. Em 2013, dos dez deputados eleitos por via directa, só três votaram contra esse regime. Esses três deputados têm coisa um aspecto em comum: defendem o sufrágio universal. A proposta levou 20 mil pessoas às ruas e sete mil manifestaram-se em frente à Assembleia Legislativa (AL). Os manifestantes pediam que a proposta fosse retirada, mas os deputados não o fizeram. Os seis deputados oriundos de três listas, que apoiavam o regime, tiveram menos votos do que o número total de manifestantes. Porque é que não apoiam o sufrágio universal? Porque o “avô” [o Governo Central] não gosta. Os programas políticos desses deputados não foram feitos com base nas necessidades dos residentes. Além disso, não fiscalizam bem os trabalhos do Governo e deixam engordar os funcionários dos principais cargos da função pública. Por isso, o objectivo da minha candidatura é fiscalizar a acção do Governo e mostrar as opiniões reais dos cidadãos. Ainda em relação ao processo democrático em Macau, entende que existem condições para se ir mais longe? O processo democrático em Macau pode ser acelerado, porque aqui não há tanta polémica como em Hong Kong, onde existe uma grande divergência de opiniões. Há quem diga que isto se deve à administração de C.Y. Leung. Acredito que, se as pessoas de Macau não querem ver acontecer o que sucedeu em Hong Kong, devem caminhar o mais rapidamente possível para a democracia. O Governo Central não proíbe a implementação do sufrágio universal, só diz que o povo de Macau deve amar a pátria. Mas como é que definimos o conceito de amar a pátria? Por outro lado, as pessoas de Macau são muito inteligentes. Este ano realizam-se as primeiras eleições após o regime de garantia dos titulares dos principais cargos. Se o Governo não for composto por membros eleitos pelos votos da população, por melhores que sejam, as medidas não fazem sentido. Por isso, vamos tentar que mais de metade dos eleitores apoiem listas de candidatos com programas políticos relativos ao sufrágio universal, para que possam substituir os deputados que actuam contra as opiniões dos cidadãos. Apelo aos eleitores que votem pelas listas que apoiam o sufrágio universal. Acredita que consegue ser eleito? Não sei ainda. Mas fizemos bem os trabalhos de preparação. No entanto, as eleições deste ano são mais difíceis. Em primeiro lugar, por causa da privacidade, é difícil obter o número de bilhete de identidade dos eleitores para eles subscreverem o pedido de reconhecimento. Depois, as pessoas têm medo de arranjarem problemas e de serem acusadas de assinar em pedidos diferentes, pelo que respondem todas que já assinaram outra lista. Ouvi dizer que alguns candidatos tentam recolher mais assinaturas do que as necessárias, porque assim os outros candidatos têm menos assinaturas. E alguns candidatos decidiram candidatar-se em duas listas separadas. Quando olhamos para as eleições de 2009 e de 2013, constatamos que há apenas aqueles nove grupos de candidatos. Nas eleições, o resultado não muda. Uma vez que os programas políticos não envolvem o sufrágio universal, isto significa que esses candidatos só seguem as direcções do “avô”. Mas nós também amamos a pátria – só que amamos de um modo muito mais exigente. Expressar a nossa ideia através de manifestações não significa que não amamos a pátria. Se a minha comissão de candidatura não for aprovada, vamos ainda tentar, ainda temos várias coisas para fazer. Mas como já submetemos 340 assinaturas, estamos confiantes. Não sabemos se conseguimos ser eleitos. As pessoas dizem que nós apoiamos o sufrágio universal só porque queremos ganhar os votos dos eleitores. Se acharem que não vale a pena votarem em nós, não o façam. Mas não votem naqueles candidatos que estão contra as opiniões dos cidadãos, que apoiaram a proposta do regime de garantia dos titulares dos principais cargos. Quem são os seus apoiantes? São pessoas que, nestes anos, se têm manifestado nas ruas, sobretudo contra o regime de garantia dos titulares dos principais cargos. Não só aqueles que se manifestaram nas ruas, mas também os que não querem que os deputados contra a voz dos cidadãos continuem a desempenhar funções na AL. Quais são as principais ideias políticas da Associação Sonho Macau? As nossas ideias principais estão relacionadas com dois aspectos. Em primeiro lugar, a Associação Sonho Macau gostaria que as aspirações da população fossem correspondidas, sobretudo as dos novos eleitores, dos jovens e das pessoas que chegaram depois de 1999. Também prestamos atenção a questões como a arte e a cultura. O sufrágio universal é um dos nossos sonhos. Acreditamos que é difícil tornar os sonhos realidade por causa do sistema político, em que menos de metade dos deputados são eleitos por via directa. Muitas pessoas, sobretudo os jovens, acham que a participação nas eleições não tem qualquer significado. Porque é que temos de seguir as directrizes do Governo Central? Há várias coisas que podemos fazer. Por exemplo, a medida dos cinco dias de trabalho não se aplica a Macau. Como é que descreve as pessoas que fazem parte desta associação? Tem quantos membros? A associação só foi criada no ano passado, sendo que não temos muitos membros. Mas nunca contámos quantos membros temos. Quanto ao número de membros activos, são cerca de dez, são amigos que têm ideias semelhantes. Alguns deles são do sector de jogo, outros são estudantes, por exemplo. Se for eleito, quais são os assuntos que gostaria de ver discutidos? As despesas que envolvem montantes muito elevados devem ser aprovadas pela Assembleia Legislativa. Também defendemos a abertura do concurso para a habitação pública e a preservação do património cultural. Há pouco tempo, a UNESCO emitiu um alerta ao Governo de Macau, pelo que pedimos às autoridades que façam os devidos trabalhos de preservação do património.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteAndrea Tavares, líder do movimento Alternativa 1: “Liderança de Nicolás Maduro tem sido fraca e ilegítima” Falar com Andrea Tavares ao telefone a partir da Venezuela revelou ser uma tarefa impossível: a rede é fraca e não há sequer Internet no país. Por e-mail, a luso-descendente e líder do movimento político Alternativa 1 garante que a grave crise social e económica que a Venezuela vive actualmente poderia ser resolvida num regime democrático. No meio do caos social, a comunidade portuguesa é uma das maiores vítimas do crime, assegura Porque decidiu criar o movimento político Alternativa 1? O movimento Alternativa 1 nasce da necessidade de criar um espaço político para aqueles que não se identificam com a concentração da política em dois grandes blocos ou pólos. Somos líderes sociais e políticos com experiência e conhecimento em administração pública na Venezuela e queremos resgatar a ideia da política ao serviço dos cidadãos, e não o contrário. Acreditamos que, para superar os nossos grandes males, devemos desenvolver uma visão de uma república de cidadãos, superando a economia petrolífera e em que possamos defender a “verdade” como um valor na política e aprofundar a democracia, expressa na diversidade de pensamento e reconhecimento dos outros. Somos um movimento que faz oposição ao Governo venezuelano actual, embora não façamos parte da coligação Unidade Democrática. Em muitas ocasiões partilhamos uma agenda política para enfrentar o inimigo comum do povo venezuelano, o regime de Nicolás Maduro e seus cúmplices. Disse numa entrevista concedida ao semanário Expresso que há portugueses a serem alvo de sequestros na Venezuela. A situação tem tendência a piorar? Sem dúvida, porque à medida que aumenta a crise política e económica, o crime torna-se um modo de sobrevivência para muitos, especialmente num país onde há uma impunidade total e absoluta contra o crime. A rápida desvalorização da nossa moeda e o controlo de câmbio de moeda estrangeira tem forçado as pessoas a procurar divisas para não perderem o capital em muitos casos. Os comerciantes e as comunidades imigrantes preferem poupar divisas, por isso são um alvo tentador para os sequestradores, que também cobram o resgate de sequestros em moeda estrangeira. Uma das comunidades imigrantes mais afectadas é a portuguesa que, como todos sabem, está envolvida no comércio, e é esforçada e poupada. De que forma o Estado português poderia ajudar a comunidade portuguesa aí residente? O Estado português deve exigir garantias junto do Governo venezuelano em relação à protecção da sua comunidade, sem esquecer o castigo exemplar para aqueles que cometem crimes contra a comunidade portuguesa. [O Estado português] deve protegê-los da extorsão e propor alguma cooperação para garantir a segurança dos cidadãos de origem portuguesa e o respeito pela sua propriedade. Há casos de confisco de propriedades sem qualquer procedimento legal. Há portugueses a querer ir embora da Venezuela ou pretendem ficar no país? Muitos preferem ficar, porque aqui têm o seu património que foi construído durante toda a vida e não é fácil sair de anos de sacrifício e esforço para começar de novo. As gerações mais jovens de luso-descendentes estão a tentar voltar e muitos preferem ir para a Espanha por terem mais facilidade na língua. Muitos não falam bem português e têm dificuldades especialmente na parte da escrita. Chegou a apoiar Hugo Chávez, mas depois tornou-se crítica do seu Governo. Que análise faz à postura de Nicolás Maduro perante a crise do país? Fui fundadora e membro do partido Pátria Para Todos (PPT), que foi um dos que integrou a coligação mais importante que apoiava Chávez para chegar ao poder. Fui vereadora em Caracas em representação do PPT, e desde 2000 o PPT começou a ter diferenças em relação a Chávez. Foi sempre uma relação muito tensa. De que forma? No PPT havia muitos activistas que começaram a pensar no desvio em relação ao projecto político inicial. Aí começaram a lançar as bases para a corrupção massiva e para o totalitarismo que se desenvolveu mais tarde. Foram os mesmos que fizeram críticas e que foram atacados por Chávez, que conseguiu dividir o partido e, finalmente, através de uma ordem judicial, afastá-lo. E em relação a Nicolás Maduro? A sua liderança tem sido muito fraca e ilegítima. Maduro não conseguiu criar a sua própria liderança, mesmo que tenha sido feita através da imposição de Chávez. Isso levou ao aprofundamento de uma enorme rejeição, mesmo no seu próprio partido, e ele tem sido questionado pelo exercício da presidência a nível interno. Antes da morte de Chávez, houve um mistério gerado com os últimos decretos e leis promulgados nesta fase. De seguida regista-se uma eleição com resultados duvidosos, tendo [Nicolás Maduro] ficado na presidência com uma pequena margem de diferença, o que enfraqueceu o seu mandato. A acrescentar a isso, verifica-se uma dependência quase total em relação a Havana [capital de Cuba] para tomar decisões. Maduro pode ter sido o líder que começou um grande processo de diálogo e de encontro entre os venezuelanos desde que assumiu o cargo, mas poderia também ter desenvolvido um plano económico viável. Ao invés disso, escolheu o caminho da radicalização e da divisão, levando a esta crise actual. Quais as consequências mais visíveis desse caminho na sociedade venezuelana nos dias de hoje? Após 60 dias de protestos houve estudantes e cidadãos que foram mortos, presos, torturados e perseguidos. Há pessoas no exílio e temos neste momento uma das mais altas taxas de emigração na história da Venezuela. Prefere-se uma ditadura, violando todas as leis da República, suspendem-se eleições e institui-se uma Assembleia Constituinte não originária, sem que se realize qualquer referendo. Tal acontece apenas para dissolver o que resta do Estado republicano e da divisão de poderes. Maduro preferiu entrar para a história como o representante venezuelano do “gorilismo” que vigora na América do Sul. Como é o dia-a-dia da comunidade portuguesa aí residente? A comunidade portuguesa está totalmente integrada na sociedade venezuelana e tem os mesmos sofrimentos da vida quotidiana. Existe dificuldade na obtenção de medicamentos, as empresas estão à beira da falência devido à falta de matéria-prima, há crime por toda a parte. Os filhos e os netos crescem num país onde não há qualidade de vida, e onde não há nenhum Estado de Direito e de justiça mesmo no trabalho efectuado nos serviços públicos. Grande parte da comunidade portuguesa está a participar nos protestos e muitos foram presos. Por isso não é surpreendente que a imagem que deu a volta ao mundo seja a de uma mulher corajosa que segura a bandeira da Venezuela, tentado impedir a passagem de um tanque militar, tendo sido cercada por gás lacrimogéneo. Essa mulher é portuguesa. Tem esperança num futuro melhor para o país? Quais as soluções que aponta para o fim da crise? Tenho, não se pode perder a esperança. Esta crise pode ser resolvida como qualquer país democrático, através de eleições e respeitando a actual Constituição. Pode ser resolvida com o respeito pelos direitos humanos, pela soberania popular e com uma agenda económica séria e responsável. Sabemos que o Governo está a ir na direcção oposta, e é por isso que estamos nas ruas, para exigir liberdade e democracia. Para nós é muito importante a solidariedade internacional, e esperamos que o mundo continue a pressionar a Venezuela para que a democracia seja restabelecida. O que está a acontecer connosco pode acontecer com qualquer país do mundo, porque este Governo dá asas a que muitos líderes [ajam] em nome do socialismo ou dos pobres, para de seguida mostrar o seu verdadeiro rosto fascista e totalitário. Pedimos ajuda a Deus e também aos homens e mulheres de boa vontade para continuarmos a lutar pela liberdade, para que possamos ajudar o mundo a livrar-se de uma tragédia em torno da saga ditatorial. Isto deve ser superado no século XXI. “A situação está caótica” Relatos de cenários de guerra no país A grave crise económica e social que a Venezuela enfrenta neste momento está a levar milhares de portugueses a regressar a Portugal. A maior vaga de regressos está a acontecer na Ilha da Madeira, de onde muitos emigrantes são naturais. Marisa é uma dessas pessoas que regressou há pouco tempo a Portugal, depois de, aos poucos, a família ter deixado a Venezuela. Os pais foram os primeiros a sair, seguindo-se o irmão, que chegou a ser sequestrado e viu a sua empresa falir. Os filhos de Marisa formaram-se e também deixaram o país. “As pessoas estão a fazer barricadas nas ruas, para pressionar o Governo. As estradas fecham-se e não há comida. Saímos cedo de casa mas não sabemos se podemos ir para casa de novo, porque está tudo fechado. A polícia sai e inicia-se uma espécie de guerra nas ruas, com gás lacrimogéneo”, contou ao HM. Com as prateleiras dos supermercados vazias, as pessoas são obrigadas a comprar a comida no mercado negro. “Compramos a pessoas que conhecemos, que se dedicam a vender comida mais cara. Não há arroz ou papel higiénico, e para conseguir carne temos de falar com alguém que consegue, o preço é duas ou três vezes mais do que deveria ser.” Um país perdido A residir em Macau, Eliana Calderon olha com tristeza para a situação do seu país que afirma não conhecer mais. “A situação do país está caótica, porque a pobreza já atinge 90 por cento da população. Tenho amigos que ainda estão lá e uma irmã, e a situação deles é horrível.” “A Venezuela está completamente perdida, não reconheço o meu país. Não vou lá há dois anos e tenho terror da Venezuela. Eu pertenço aos 90 por cento de pessoas que são pobres, mas as pessoas já estão tão desesperadas que ou morrem ou vão para as ruas. Se não há uma guerra civil, vai haver”, acrescentou a responsável por uma associação que apoia crianças com necessidades educativas especiais. Na visão de Eliana Calderon, o Governo é parcialmente responsável pela crise venezuelana, sem esquecer a corrupção. “Nicolás Maduro não está a ajudar, porque assumiu o mandato como se fosse descendente do rei Hugo Chavez. Não é um Governo verdadeiramente eleito. O dinheiro que tínhamos foi mal gasto pelas cúpulas do Governo, graças à corrupção”, concluiu.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteGilberto Camacho e Mónica Tang, candidatos às eleições: “É importante que os deputados se envolvam” Os nomes que vão ocupar a terceira e a quarta posições na lista Nova Esperança, encabeçada por José Pereira Coutinho, são novos na política e assumem querer fazer mais e melhor pelos cidadãos. Gilberto Camacho e Mónica Tang criticam a inércia de Chui Sai On e pedem mais transparência do hemiciclo [dropcap]P[/dropcap]or que decidiram aceitar este desafio e integrar uma lista candidata às eleições deste ano? Mónica Tang (M.T.) – José Pereira Coutinho e Leong Veng Chai são deputados a tempo inteiro, e Rita Santos também faz grandes contributos para a sociedade. Então decidi seguir esse exemplo. Ainda estou a aprender, mas quero contribuir para a sociedade. Gilberto Camacho (G.C.) – É uma honra e um orgulho poder fazer parte da lista Nova Esperança. Tanto José Pereira Coutinho, como Leong Veng Chai são duas pessoas que têm lutado muito pela sociedade de Macau, por valores com os quais eu também me identifico, tal como mais transparência na Assembleia Legislativa (AL) e mais rigor. São valores democráticos e quero aprender com eles. É importante ter uma voz nova além da experiência que eles já têm. Não posso dizer que vou estar sempre dentro da política. Uma vez o Papa Francisco disse que a política deve ser um meio para mostrarmos o nosso altruísmo e não os nossos próprios interesses. No caso do Gilberto, já teve uma curta experiência política, uma vez que esteve com um pé na Assembleia da República, graças à participação de Coutinho na candidatura do partido Nós! Cidadãos. Como surgiu a vossa ligação à Associação dos Trabalhadores da Função Pública de Macau (ATFPM)? G.C. – Comecei a interessar-me por política quando fui para Portugal. Talvez devido aos media, por haver uma maior abertura, comecei a ler muitos jornais, não só nacionais, como também comecei a ler mais sobre política internacional. Aos poucos fui ganhando esse primeiro contacto. Regressei a Macau e quando trabalhei no aeroporto houve um caso relacionado com o ambiente, e sugeriram que viesse falar com José Pereira Coutinho. Gostei desse contacto e ele abriu-me a porta. M.T. – No meu caso tive o meu primeiro contacto com a ATFPM há cinco anos, quando participei numa palestra. Participei em muitas actividades da ATFPM e comecei a interessar-me pelas questões relacionadas com os cidadãos. Sou empresária e estou ligada aos negócios da minha família. Antes de o Gilberto ir para Portugal, como olhava para o meio político de Macau? G.C. – Acompanhava pouco, porque em 1998 não sabíamos como seria a situação depois de 1999, era uma incógnita. Acompanhava algumas causas sociais, mas não tanto o meio político. Em Portugal achava interessante o trabalho e o funcionamento da Assembleia da República. Tanto o Gilberto, como a Mónica são duas caras novas no meio político. Que expectativas colocam em relação à vossa participação? G.C. – O nosso programa político ainda não está finalizado. Penso que as eleições vão ser semelhantes às anteriores, a não ser que exista uma mudança na mentalidade das pessoas. Em que sentido? G.C. – No sentido de apelo ao voto. As pessoas sabem que votar é um dever cívico, mas sabemos que as pessoas estão cada vez mais afastadas da política. Mas aqueles que não votam têm de ter consciência de que isso vai influenciar as listas que são sempre vencedoras. A abstenção é demasiado elevada. Que razões aponta para isso? G.C. – Em Portugal a abstenção acontece por protesto. Em Macau penso que não existe uma consciencialização política. Acredito que muitas pessoas nem sequer sabem que têm direito ao voto. M.T. – O Governo tem falhado na promoção da educação dos mais jovens, para que tenham uma maior consciência do voto e da sua importância. Tem havido algum debate sobre a implementação do sufrágio universal em Macau. Consideram que tal poderá vir a ser uma realidade? G.C. – Não acredito que isso venha a acontecer. Porquê? Poderá ter que ver com eventuais falhas dos movimentos pró-democratas? G.C. – Não é uma falha desse campo. É impossível, porque as regras do jogo são adoptadas por Pequim. Se Hong Kong não conseguiu, Macau muito menos irá conseguir. Macau está demasiado próxima de Pequim, penso que isso não irá acontecer. A sociedade de Macau e os eleitores não estão atentos a essa questão? G.C. – Muito poucos estarão atentos a isso. Como a Mónica disse, a educação cívica e a consciencialização da política não são promovidas nas escolas. As pessoas não sabem o que é política. O pouco que se sabe de política, em Macau e em Hong Kong, vem das antigas administrações portuguesa e britânica. M.T. – Apoio o sufrágio universal, mas não posso dizer se acredito ou não que isso irá mesmo acontecer. Acho bem que as pessoas se interessem mais pela política. Há pouco o Gilberto falou da questão da transparência na AL. Que outros problemas apontam ao funcionamento da Assembleia Legislativa? G.C. – Não vou falar individualmente deste ou daquele deputado. Mas penso que os deputados têm de pensar mais na população, ao nível da transparência e do rigor. Não acredito que a AL não saiba quais são os problemas da sociedade. É importante que os deputados consultem mais a população, que se envolvam: andem de autocarro, sintam o que é ter calor dentro do autocarro, que vão aos hospitais e sejam tratados como as outras pessoas. Os deputados têm uma vida mais ou menos luxuosa que os afasta desses problemas. Considera que os membros do Governo, secretários e Chefe do Executivo, também têm esse distanciamento? G.C. – A sensação que tenho é que, quanto maior o salário, melhor a vida. Vão a hospitais privados, e por aí. Para melhor exercerem os seus cargos, as pessoas têm de estar no meio da população. Fala-se que deveria haver mais deputados eleitos pela via directa. Há demasiados deputados ligados ao meio empresarial? G.C. – É preciso haver mais transparência, porque o povo está sempre desconfiado em relação ao que se passa. Olhe-se para o caso do metro ligeiro, com o aumento exorbitante de orçamento. O terminal marítimo da Taipa é outro exemplo. O Governo tem de trabalhar de uma maneira mais transparente, com mais rigor, porque o dinheiro pertence ao erário público. M.T. – As reuniões das comissões permanentes da AL têm de ser mais transparentes, porque as pessoas precisam saber mais sobre as decisões que são tomadas. A promoção da eleição em Setembro é insuficiente, porque os jovens não sabem que as eleições vão acontecer. O Gilberto é macaense e, caso consiga um assento na AL, vai representar também a comunidade macaense. Como vai ser o seu trabalho nesse sentido? Que problemas acha que precisam de ser resolvidos? G.C. – Vou estar atento às opiniões das pessoas. Não vou apenas representar uma comunidade, é um peso muito grande. Gostaria que mais macaenses avançassem para a política e não apenas eu. Acho que é importante haver um representante da comunidade local, mas não sou o único. Gostaria de reforçar a identidade macaense. Quero que o legado dos portugueses a Oriente se mantenha por muitos anos. Farei propostas que reforcem a preservação da cultura. O Governo tem feito o suficiente para preservar essa cultura e identidade? G.C. – Em alguns aspectos sim, como ao nível arquitectónico, por exemplo. Mas ao nível linguístico, penso que o português poderia ser reforçado no que toca ao ensino. O Governo fala muito na diversificação económica, sabemos que a China é a segunda maior economia do mundo, e Macau tem um posicionamento privilegiado que pode aproveitar para fazer a ponte com os países lusófonos. Mas penso que esse potencial nunca foi aproveitado como deve ser. A Mónica está mais ligada à comunidade chinesa. Quais são os maiores problemas sentidos pela maioria da população? M.T. – O trânsito, a saúde, as creches e a habitação. Todas as tutelas do Governo têm problemas, e já enviamos várias cartas a apelar à resolução de várias questões, mas nunca recebemos respostas. G.C. – Acho que o imobiliário é o maior problema. Não há princípios relativos à especulação. É cada vez mais difícil para as novas gerações viver em Macau? G.C. – No meu caso é mais difícil. Nasci em Macau, mas não tenho casa própria. O salário não acompanha a inflação. Submeti a minha candidatura para ter uma habitação económica há dez anos e até agora não tenho resposta. Era jovem quando me candidatei, quando tiver a casa sou velho. É muito tempo. Esse é o maior problema. Os jovens casam cada vez mais tarde porque não têm o seu próprio lar. M.T. – É difícil para as gerações mais novas viver em Macau, devido aos aumentos das rendas e à inflação. Há muitas pessoas a irem fazer compras em Zhuhai. Gostava que o Governo resolvesse esses problemas e conhecesse mais a vida real das pessoas. Chui Sai On sai do Governo em 2019. Que balanço fazem do trabalho do Chefe do Executivo? G.C. – Ele esteve presente? Não reparei. É uma pessoa que não critica, não condena, está de passagem. Poderia ter sido mais interventivo? G.C. – Mais interventivo, mais crítico, menos receoso de fazer as coisas. M.T. – Não tenho muito a dizer, penso que o trabalho não foi suficiente.
Sofia Margarida Mota Entrevista MancheteAna Sofia Barros, especialista em Direito: “Não se percebe o que é que está a acontecer aos resíduos sólidos” Ana Sofia Barros está em Macau para uma palestra, hoje, na Fundação Rui Cunha. Para a especialista em direito internacional público, atentar contra o ambiente pode constituir uma violação de direitos humanos. Cabe ao Direito gerir esta matéria [dropcap]V[/dropcap]Vai estar hoje na Fundação Rui Cunha para falar sobre questões ligadas ao ambiente e aos direitos humanos. Em que é que que estas temáticas se ligam? A conferência de hoje trata uma questão que considero muito importante. Trata-se do dano ambiental. Vamos abordar o modo como podemos tratar este tipo de problemática à luz do direito internacional público. Vou explicar a ideia de que há intercepção entre o direito internacional e o regime internacional de direitos humanos, e que podemos encontrar soluções que asseguram uma protecção eficaz de indivíduos de comunidades perante o dano ambiental. Outro aspecto importante é tentar associar esta matéria a casos com que as pessoas se identifiquem. Por exemplo, quando há exposição de indivíduos a gases tóxicos emitidos por fábricas ou expostos às consequências das alterações climáticas. É a esse tipo de indústrias que chama “indústrias perigosas”? Sim. É um conceito que define aquelas indústrias que podem ter efeitos nefastos ao nível ambiental. Normalmente, o conceito é utilizado no sector da exploração mineira e relacionado com a utilização de produtos tóxicos. Estão um pouco por todo o lado. Se falarmos de Macau, se calhar, não se aplica tanto porque não há indústrias. Mas há casos deste tipo em todo o lado e a situação é tanto mais grave quando falamos de países que estão em níveis de desenvolvimento mais conscienciosos ambientalmente. Estamos também a falar de consequências graves e que se reflectem, por exemplo, nas descargas que levam à intoxicação de rios e das pessoas que depois utilizam estas águas para viver. Coloca-se uma questão de perigosidade a todos os tipos de indústria cujos impactos não são salvaguardados e se tornam perigosos, tanto para o ambiente, como para as pessoas. Onde entra o direito internacional? É importante perceber que a questão ambiental teve início nos anos 90. É relativamente recente. Quando foram ratificados os primeiros tratados de direitos humanos, com muitas excepções, não era salvaguardado um direito a um ambiente ecologicamente são. Está salvaguardado na Carta Africana de Direitos do Homem, mas é uma excepção. Na Declaração Universal de Direitos do Homem e no Pacto Internacional de Direitos Civis, Políticos e Sociais não vemos nada. A verdade é que, quando pensamos na protecção de indivíduos e de comunidades, temos de pensar ao nível de direitos. Nos anos 70 e nos anos 90 assiste-se à assinatura de convenções entre Estados que determinam a horizontalidade de obrigações. Não conferem propriamente direitos às pessoas. Quando passamos ao regime de direitos humanos começamos a questionar como é que vamos conseguir adaptá-lo aos novos problemas que não tinham sido antecipados na altura em que as convenções tinham sido celebradas. O que começa a acontecer é um processo interessante de interpretação extensiva de direitos humanos, no sentido de afirmar que direitos ambientais e associados à qualidade do ambiente são implícitos, e podem ser derivados dos direitos reconhecidos nesses tratados. Como exemplo temos o direito à vida, ao acesso a comida, a água, à saúde, à protecção da vida privada e à autodeterminação dos povos. Há uma vasta jurisprudência que se regista muito ao nível europeu, mas também africano, e mesmo quando se fala no regime interno americano de direitos do Homem. Na Ásia, o Pacto de Direitos Económicos, Sociais e Culturais tem um protocolo associado que dá acesso ao indivíduo a fazer uma reclamação contra o Estado. Neste sentido, todos os países asiáticos que tiverem ratificado o pacto e o protocolo adicional poderão ser sujeitos a acções que, no entanto, não têm um sentido vinculativo. Num dos seus artigos menciona a protecção das vítimas de abusos industriais. Como é que é feita? A protecção das pessoas começa sempre ao nível nacional. O conceito que tem sido desenvolvido defende que o Estado tem obrigações positivas para proteger os indivíduos em relação à actividade privada. Tem também de regulamentar a actividade privada numa óptica de prevenção, de monitorização dessa actividade e de resposta, quando as coisas correm mal. Dentro desta óptica de deveres, existe a ideia de deveres procedimentais no que toca à imposição de estudos de impacto ambiental e de consultas aos cidadãos, sempre que for necessário tomar decisões de âmbito económico que têm impacto no ambiente e na vida das pessoas. As pessoas têm de ser informadas sobre os riscos que correm. Há uma série de procedimentos que, hoje em dia, se tornaram obrigatórios quando interpretamos o direito à vida ou à saúde. Muitos Estado já têm sido condenados por não satisfazerem este tipo de requisitos. Está a dizer que são políticas e procedimentos que estão a ter efeitos efectivos? O Tribunal Europeu de Direitos do Homem tem um número elevado de casos e a sensação que tenho é de que estão a restringir um pouco mais o acesso. O número de casos que são declarados inadmissíveis para consideração está a crescer. Os critérios também se estão a tornar mais restritos. Por exemplo, quando queremos combater questões como as alterações climáticas, é difícil provar a causalidade entre o facto e o dano, e temos de arguir em tribunal que somos vítimas directas e que temos um dano concreto. Mas há muitos casos que são mais de dano colectivo do que propriamente de um dano que possa ser individualizado. O tribunal tem dificuldade em lidar com este tipo de questão e acaba por não considerar certas pessoas como vítimas por não se conseguir provar que há um dano concreto que foi infligido devido, por exemplo, às operações de uma fábrica que emite gazes poluentes para a atmosfera. É esta ligação que existe entre o problema ambiental e o direito humano. O que podia ser feito? Tem tudo que ver com interpretações que se fazem destes conceitos. Há tribunais que têm mais abertura para estes casos do que outros. Mas estamos com o primeiro caso em que se faz uma associação entre as alterações climáticas e direitos humanos, decidido em 2015 pelo Tribunal de Primeira Instância holandês. O caso está agora em fase de recurso e é o primeiro em que se juntam o regime de direitos humanos e o direito civil para se alegar que o facto de um Estado não compactuar com os limites máximos de emissão de gases poluentes também se traduz numa violação dos direitos humanos. A partir deste caso já estão a ser estudadas as hipóteses de repetir este tipo de alegações na Bélgica e tenho a certeza que vai ter efeitos mais alargados. Num sentido oposto, temos o recente caso de afastamento do Acordo de Paris por parte dos Estados Unidos. Temo um Trump a fechar portas mas também temos, nos Estados Unidos, tribunais e governadores que se estão a opor à medida. Penso que a arrogância e a falta de senso desta decisão podem facilmente ser traduzidas num estímulo junto da comunidade internacional para reforçar a sua luta. Gostei muito de ver as reacções ao nível interno. As próprias indústrias, governadores e os presidentes de várias câmaras já afirmaram que vão respeitar o limite máximo de emissões de gases. Relativamente a Macau, como vê a evolução do direito ambiental no território? No meu dia-a-dia não acompanho de perto a realidade de Macau. Dentro daquilo a que tenho acesso está a legislação e a Lei Básica de Macau, que prescreve que o Governo tem o dever de proteger o ambiente. Não consagra o direito ao ambiente mas consagra o dever de o proteger. Temos também a Lei de Bases do Ambiente que é muito completa e interessante. Confere os tais direitos de participação do público a que já me referi, o dever de consulta e os direitos de acesso à justiça quando se trata de causas ambientais. No entanto, o que também se regista é que esta lei de bases padece de regulamentação: os conceitos estão lá, mas não estão a ser operacionalizados na prática. Falo com pessoas à minha volta com pouca informação acerca desta matéria e nós, enquanto cidadãos, temos o direito de o ser. Não se percebe, até agora, o que é que está a acontecer aos resíduos sólidos do território e que não são tratados na central de incineração. Portanto, os resíduos sólidos podem ser tóxicos e estão a ser colocados algures, num lugar que ninguém sabe onde é. Podemos neste momento estar a ser contaminados com isso. São estes casos que dão direitos à população e estes direitos não estão a ser operacionalizados. A qualidade do ar também é uma questão importante e que é necessário fiscalizar. É preciso saber se os veículos obedecem à emissão de determinados poluentes e, ao que parece, Macau importa veículos sem este tipo de cuidados. Quando se fala em construções, apenas os edifícios com uma determinada superfície são sujeitos a estudos de impacto ambiental. Não faz sentido porque um edifício com uma área reduzida de ocupação pode ter muito impacto nas vidas das pessoas. Em suma, Macau tem uma boa lei de bases, mas falta regulamentar. Terminou recentemente o doutoramento em que aborda a responsabilização dos Estados membros de instituições financeiras internacionais quando são violados os direitos humanos. Porquê esta temática? Há um problema grave no direito internacional público: gerir a ideia de que há novos actores na cena internacional além dos Estados. O direito é sempre concebido como sendo entre Estados, mas a verdade é que há novos actores extremamente influentes, tais como as organizações internacionais onde estão incluídas as multinacionais. O problema das organizações internacionais, e o que é mais debatido, tem muito que ver com operações militares em que há violação de direitos humanos. O apuramento das responsabilidades neste tipo de operações é da NATO ou dos Estados que contribuem com as suas tropas. O que não é discutido é a responsabilidade associada às operações de instituições financeiras internacionais, tal como o FMI ou o Banco Mundial. Quando o FMI ou quando os Estados membros do FMI decidem os cortes à Grécia ou a Portugal, por exemplo, e as coisas correm mal, não são salvaguardados os direitos ao emprego, à educação e à saúde porque implicam sempre cortes nas despesas. A minha tese explica qual é a responsabilidade da organização em si e qual é a quota-parte de responsabilidade que cabe a cada Estado membro. Os Estados têm o dever de assegurar que as organizações não violam os direitos humanos. Os Estados não podem exercer influência ao ponto de tornarem as organizações inoperacionais mas, dentro das suas competências na organização, podem assegurar medidas que respeitem estes direitos.
Sofia Margarida Mota Entrevista MancheteEntrevista | João Vasconcelos, secretário de Estado da Indústria de Portugal Uma China moderna e tecnológica. Foi o que a comitiva que acompanhou o secretário de Estado da Indústria de Portugal, João Vasconcelos, teve oportunidade de observar na visita dos últimos dias ao Continente. Em Macau, João Vasconcelos que ver fortalecidos os laços para a implementação de uma estrutura de acolhimento que facilite a chegada de empresários portugueses. O futuro passa pelo território e Portugal pode ter uma posição de relevo [dropcap]A[/dropcap]ntes de visitar o território, esteve na China Continental, nomeadamente em Shenzhen e Zhuhai. O que trouxe desta visita? Foi uma visita muito especial. Pela primeira vez pude trazer de Portugal um ecossistema empresarial ligado à ciência e à inovação, de modo a que os empresários pudessem conhecer esta China virada para a tecnologia e que ainda é muito desconhecida na Europa e em Portugal. Ainda não temos o hábito de associar a China a algumas das melhores empresas do mundo na área da tecnologia. Fomos a Shenzhen que hoje é a capital mundial da inovação. É uma cidade líder quando se fala, por exemplo, de hardware e de produção. Visitámos várias incubadoras de centros tecnológicos. Estivemos ainda com empresas portuguesas que já estão a funcionar em Shenzhen. É impressionante como esta capital está a apenas a uma hora de barco de Macau. Podemos fazer com facilidade o que fizemos nesta viagem. Fomos cerca de 20 pessoas comer um bife à “casa do Benfica” de Macau, o Santos, e a uma hora de distância temos a cidade líder da inovação. Macau é, há centenas de anos, uma porta de entrada para os portugueses na China. A sua proximidade a Shenzhen obriga-nos a ter mais ambições nesta relação. Qual é concretamente o papel que Macau pode ter? Macau continua a ser o melhor local para um empresário português se posicionar para que, a partir daqui, possam ser feitas parcerias e estabelecidas relações de compra e venda com a China. Temos feito um grande trabalho com o secretário para a Economia e Finanças, Lionel Leong, nesta aproximação. O objectivo é que Macau venha a ter todas as características e facilidades que um empresário português precisa para que possa utilizar o território como plataforma. Mas queremos ir mais além: queremos que as empresas chinesas façam o mesmo, ou seja, utilizem Macau para contactar com Portugal e com a Europa. Já há essa abertura materializada em acções concretas? Sim. Ainda este ano vamos ter um espaço em Lisboa que o secretário Lionel Leong já visitou. Também os serviços de Economia e Finanças de Macau estão a preparar um espaço na capital portuguesa para receber empresários do território e do Continente. A ideia é ainda que possamos ter também, em Macau, uma estrutura análoga capaz de acolher os nossos empreendedores. Queremos que os nossos empresários, na sua chegada ao território, tenham o chamado “soft landing”, ou seja, possam chegar e começar a trabalhar de imediato num escritório com um ambiente preparado para os receber: com as parcerias certas, com os advogados e contabilistas certos, com toda uma equipa de assessoria. O objectivo é tornar esta chegada muito mais fácil para a entrada neste grande mercado que é a China. Trata-se de um mercado exigente, com procedimentos, cultura e hábitos muito diferentes dos nossos, pelo que precisamos sempre de alguém que faça as respectivas traduções. Além da própria língua, precisamos deste tipo de tradução mais alargada. Este papel cabe a Macau. Por outro lado, penso também que o território quer continuar a ter esta função quando se fala em nova economia e em nova China. Não podemos esquecer a crescente abertura do Continente ao mundo e Macau tem de acompanhar a situação. São várias as medidas que já estamos a implementar e esta visita vai nesse sentido. A maior parte das pessoas que me estão a acompanhar nesta comitiva está pela primeira vez em Macau. Também temos de mostrar a esta nova geração de portugueses, que têm entre 20 e 30 anos, que o território não é tão distante quanto pensam. Temos de voltar a aproximar-nos e dar a conhecer ao mundo que aqui ao lado de Shenzhen, que já tem créditos dados, está uma região em que os portugueses se podem sentir em casa. Na sua actividade política, o apoio às “startups” tem tido destaque. Porquê esta opção? Penso que tenho tido um papel importante quando se fala de empreendedorismo em geral. O empreendedorismo é uma das principais fontes de novo emprego. Em Portugal, neste momento, quase metade do novo emprego é dado por empresas com menos de cinco anos. Outro factor interessante é que são estas novas empresas que, muitas vezes, pagam mais e são também as principais fontes de inovação em vários sectores. São aquelas que apresentam modelos de negócio mais ambiciosos e mais disruptivos. As novas empresas nasceram dentro de uma das mais profundas crises que Portugal teve nos últimos anos, e apresentam produtos e serviços globais. Um bom exemplo é o facto de, muitas vezes, começarem a exportar logo desde o primeiro ano. Neste momento, quase 30 por cento das nossas cotações são empresas com menos de dez anos. Um país que não tenha uma estratégia clara, forte e sólida para apoiar a criação de novas empresas está a desistir do futuro e da inovação. Isto é o que eu não quero que aconteça com Portugal. Outro aspecto importante é quando falamos de indústrias digitais. Num país dito periférico como o nosso – ou seja, não tem recursos naturais relevantes, tem um mercado interno pequeno, situa-se numa ponta da Europa –, as dificuldades são muitas se pensarmos em logística e transportes, por exemplo. Se pensarmos em termos digitais, a situação muda e podemos dizer que Portugal está no centro do mundo. Quem quiser ter uma empresa para vender para a Europa, para África e para a América, Portugal está na melhor posição possível. Quando falamos de digital, a posição de Portugal é óptima. Podemos estar a vender para todos os cantos do mundo a partir do nosso país. E é aí que Portugal tem de pretender sobressair. Não podemos querer ter uma posição relevante em indústrias pesadas porque não temos matérias-primas e estamos longe do cliente, pelo que a logística irá ter um custo muito grande. Podemos sim estar destacados quando se trata deste tipo de indústrias leves que são também as indústrias do conhecimento, da ciência e da tecnologia. É esse o nosso programa económico. Não são apenas as “startups”, são também empresas de software, hardware, empresas de ciência, farmacêuticas e ligadas à biotecnologia. São empresas como a Farfetch que vende centenas de milhões de euros na China e que, este ano, já tem 800 funcionários em Portugal, está a contratar mais 500 e o maior mercado que tem é precisamente a China. São estas iniciativas que a nova economia permite que queremos fomentar. É a isso que chama “nova revolução industrial”? Sim. O digital é a revolução que está neste momento a acontecer, mas em Portugal é uma revolução, como diz Marcelo Rebelo de Sousa, “silenciosa”. Está a alterar a maneira como produzimos, como fabricamos, como vendemos, como nos relacionamos, está a alterar tudo. Neste momento esta zona do globo está sob alguma pressão devido às circunstâncias que envolvem a Coreia do Norte, os Estados Unidos e a China. Acha que esta situação pode influenciar o interesse, nomeadamente dos portugueses, em investir aqui? Penso que não. A tensão com a Coreia do Norte, de certa forma, já existe há muito tempo. A nossa relação, pelo menos da Europa com a China, é muito mais intensa do que se pensa e estas circunstâncias não vão ter qualquer influência no interesse dos empresários, muito menos quando falamos de relações económicas. Esteve envolvido, no ano passado, numa iniciativa civil, a Caravana Aylan Kurdi, que levou toneladas de bens essenciais aos refugiados Sírios que estavam na Hungria. Como é que vê a posição da Europa relativamente a este problema? Continuamos com muitos desafios de integração e no que respeita a ter uma posição europeia integrada e coordenada em relação a vários problemas. Um deles é o dos refugiados. Penso que vários países fizeram o seu papel ao nível individual, mas era exigida uma posição europeia que nunca chegou a existir. Na situação dos refugiados, foi ainda notório que os líderes europeus muitas vezes anseiam por posições oficiais em assuntos que lhes interessam e noutros nunca exigem o mesmo. No caso dos refugiados faltou essa posição clara, porque se não é a Europa a assumir perante o mundo os valores que devem nortear quem ocupa uma função pública e uma sociedade no sentido de promover a tolerância e a igualdade, dificilmente haverá outras regiões a fazê-lo. No caso dos refugiados, alguns países comportaram-se bem, e em conformidade com a história do continente e do papel que a Europa tem no mundo, enquanto outros nem por isso. Daí também a intervenção que fizemos. Foi acima de tudo uma iniciativa da sociedade civil, com o apoio de milhares de portugueses, e em que atravessámos a Europa para prestar o auxílio que, naquela altura, nos era possível dar, num momento em que vários países estavam a fechar portas a quem estava a fugir à morte.