Christiana Ieong, presidente do Zonta do Club de Macau

O convite foi lançado por Pansy Ho. Depois de abandonar a posição que tinha no Governo, Christiana Ieong assumiu um papel diferente na vida – a de agente social. A filantropa defende a reeducação da sociedade, os casinos como entidades activas e reforça a necessidade de cooperação entre homens e mulheres


Foi coordenadora do Gabinete para a Participação de Macau na Expo 2010 Xangai e, após esse papel, decidiu deixar a sua posição no Governo. Por quê esta decisão?

Queria ver o mundo como ele realmente é. Sim, é exactamente isso. Estava no topo da carreira, mas o Governo funciona como uma espécie de caixa e a minha cabeça já batia no tecto. Portanto não tinha por onde evoluir, tinha levado a cabo projectos muito interessantes e a Expo foi um absoluto sucesso. Uma surpresa para muitos, confesso, que achavam que eu e a minha equipa não iríamos atingir o objectivo proposto. Tal não aconteceu e é na altura do sucesso que nos devemos afastar, certo? Foi o que aconteceu.

Disse que quis ver o mundo como realmente é, não conseguiu até então?
Quando estamos em cargos elevados, por vezes, é-nos difícil ter acesso a outras realidades. Não que a minha vida não fosse útil, sempre acreditei nos projectos e no meu trabalho. Mas senti que precisava de ver mais, ver outras coisas, outras áreas. E sim, senti que devia virar-me para a área social, perceber como acontecem as coisas, o que realmente se passa. Ver com os meus olhos, ouvir as histórias na primeira pessoa. Queria ver o mundo real, estava longe da realidade.

Foi aí que surgiu o convite para presidir e criar a delegação em Macau do Zonta Club?
Não, não foi logo ali. Depois de deixar o Governo decidi ir visitar um orfanato no interior da China, para fazer esse reconhecimento da realidade. O que vi assustou-me. Foi um choque emocional e foi aí que conheci aquela que viria ser a minha filha adoptiva. Toda essa história foi muito comentada. Muitas pessoas vinham ter comigo para dar a opinião, umas de incentivo, outras nem por isso. Pessoas do Governo. Cheguei a receber a opinião de alguém, uma mulher, que me tentou dissuadir da ideia de adopção por ser uma mulher solteira, por questões culturais. Eu pensei: Meu Deus, ainda temos este pensamento? Como é que pessoas que supostamente têm formação e conhecem o mundo têm estas ideias? Christiana Ieong

Mas a Christiana seguiu com adopção…
Não, cheguei a desistir. Coloquei muitas vezes dúvidas à minha pessoa, não sabia se conseguia ser capaz de criar uma criança. Não sabia o que era ser mãe. Nada. Pensei que não era capaz. Um dia voltei àquele orfanato, eles estavam com problemas e o meu cunho com eles fez com que me pedissem ajuda. Fui lá com a minha irmã e com o meu sobrinho, de 14 anos, que ficou sem mãe muito novo. Percebemos os problemas pelos quais as instalações passavam e eu vi aquela bebé de novo. Ela não tinha expressão, pensei que fosse deficiente mental, não sorria, não chorava, nada. Vim embora com o coração nas mãos, mas convicta que não podia levar aquela criança comigo, não me achava capaz. Ao sairmos o meu sobrinho olhou para mim e perguntou-me: “Tia, não vais levar a bebé? Não a vais adoptar?”. Eu disse-lhe que não, ele apontou-me o dedo e disse: “ela precisa de uma mãe, se não fores tu ela morre aqui. É vida ou morte”. Fiquei impressionada com o meu sobrinho, com aquilo que ouvia, e depois pensei que era de facto uma questão de vida ou de morte. Não hesitei e avancei, dei uma quantia de dinheiro – para assegurar que voltava com a menina para tratar de tudo e aí eles devolviam-me o dinheiro – e ela veio nesse dia comigo. Foram três horas de viagem, um percurso que não parecia terminar, sem leite. Tinha nas mãos uma criança, uma toalha enrolada ao seu corpo e uma garrafa de água.

Quando é que Pansy Ho a convidou?
Nos dois primeiros anos da minha filha quis manter tudo muito em família. Alexis Tam [Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura] foi um grande amigo na altura, continua a ser, e deu-me muito apoio. Muita gente do Governo, que claro eram meus amigos, achou que tinha sido muito impulsiva mas apoiou-me em tudo o que necessitei. Algum tempo depois, Hong Kong, que tem a sua delegação do grupo Zonta Club há muitos anos, falou com a Pansy [Ho] com a sugestão de se fazer um Zonta aqui e ela lembrou-se de mim. Isso é bom. É bom sabermos que as pessoas nos guardam em boa memória. Gostou do trabalho que tinha realizado com a Expo, sabia das minha preocupações e capacidades. Ela falou comigo e ainda hesitei, mas depois pensei que era Deus a dar-me outra prova, outra oportunidade.

O Zonta mostrou-se muito activo na igualdade de género. É a base da sua existência?
Não, falou-se efectivamente nisso porque houve numa entrevista em que falei [disso], mas não é sobre isso. Estamos activos nos assuntos das mulheres e das crianças, em todos os aspectos, seja na violência doméstica, seja na educação. É preciso salientar que o Zonta não é, de forma alguma, um grupo feminista. Não somos contra os homens, de todo. Queremos apenas que eles nos vejam como parte integrante da sociedade, da nossa comunidade e que contem connosco, não atrás deles, mas ao seu lado. Só a trabalhar juntos é que seremos melhores, é isso que queremos. Não nos queremos destacar perante os homens, nada disso. Somos iguais, conseguimos o mesmo, temos os mesmos direitos.

Alexis Tam criou uma Comissão para os Assuntos das Mulheres e das Crianças. Acha um bom passo para essa mudança?
As intenções de Alexis Tam são boas, ele é de facto boa pessoa e tem avançado com muitos projectos para melhorar Macau e a sua sociedade, assim como o presidente do Instituto de Acção Social (IAS), Iong Kong Io. Neste caso não concordo porque acho que estes dois grupos deveriam estar separados. Duas comissões. As razões são claras: os assuntos, as problemáticas, são completamente diferentes. Deveriam existir profissionais especializados para o grupo das mulheres e outros para as crianças. Por exemplo, há pouco tempo tivemos o caso de uma criança que era maltratada pela mãe. Fugiu de casa e foi colocada num asilo para jovens. Depois de se acompanhar o caso a criança foi entregue ao pai. Poucos meses depois, voltou a fugir porque estava a ser abusada pelo pai. Como é que se resolve esta situação se não existir uma equipa especializada para só acompanhar este tipo de situações com as crianças? Neste caso, a único coisa que conseguimos fazer é ajudar a criança a viver com a questão e dar-lhe tecto. E os pais? O que aconteceu aos pais? Estão aí, sem que nada lhes aconteça.

Isso leva-nos à Lei da Adopção criticada muitas vezes por proteger os progenitores. Concorda, como agente social e como mãe adoptiva?
Pois, é um grande problema aqui. Há muita coisa a melhorar. É preciso reconhecer os problemas reais da sociedade e destas crianças. É isso que o Zonta quer, criar as mudanças, fazer chegar estes casos e estas problemáticas reais a este lado, a um lado de agentes hierarquicamente superiores que muitas vezes, não por sua culpa, não têm acesso.

É esse o trabalho do grupo Zonta? Fazer ouvir a voz das associações que trabalham diariamente com estas questões?
Sim. Neste momento trabalhamos com 22 associações. Ajudamos nos trabalhos de promoção, fazemos chegar as questões a outros patamares e a várias sectores. A nossa lista de membros é muito diversificada em termos de áreas profissionais e até de nacionalidades. Ninguém é melhor do que o outro, temos formações diferentes e canalizamos isso da forma mais eficaz para atingir o objectivo.

[quote_box_left]“As mulheres precisam desta lei [violência doméstica] como crime público, para terem a certeza, por exemplo, que mesmo que não denunciem o agressor alguém o poderá fazer e nunca partirá delas. Alguém está com elas, elas não estão sozinhas”[/quote_box_left]

Voltando às mulheres e às suas causas. Há pouco tempo, durante o encontro de associações sociais, falou-se na necessidade de apoio às crianças que assistem a situações de violência doméstica. Algo que falha em Macau?
Muito, falha muito. É um problema, lá está outra vez a questão de comissões separadas, não se fala da mesma forma com mulheres e crianças sobre este assunto. É preciso focarmo-nos nuns e noutros. A violência doméstica é um problema muito delicado, que precisa de soluções, várias.

Concorda com a definição de crime público na lei da violência doméstica?
Claro que sim, por várias razões. Tenho uma amiga, que ocupa um cargo de responsabilidade, que foi vítima de violência doméstica há uns dez ou 15 anos e nunca o disse, nem nunca o fará para proteger os seus filhos e por vergonha. Sim, por vergonha. Isto acontece. As mulheres precisam desta lei como crime público, para terem a certeza, por exemplo, que mesmo que não denunciem o agressor alguém o poderá fazer e nunca partirá delas. Alguém está com elas, elas não estão sozinhas.

O Zonta manifestou-se sobre este tema depois das declarações de Fong Chi Keong, na Assembleia Legislativa, onde o deputado defendeu ser normal este tipo de comportamento.
Ainda bem que o fez. É que, sem perceber, o deputado conseguiu que toda a sociedade de Macau olhasse para o problema e viesse para a rua. Com essas declarações as pessoas saíram à rua numa marcha e estavam lá muitos homens, eu vi. Isso mostrou-nos que nem todos pensam como ele. O que é preciso entender é que não há violência grave ou menos grave, há violência e uma chapada na cara não é uma brincadeira, é violência. [Perceber] isso terá de partir de nós. Somos nós que devemos assumir isso.

Fong Chi Keong é o reflexo de uma cultura pouco desenvolvida?
Não, como disse, havia muitos homens naquela marcha. A violência doméstica não é um problema de Macau ou da China, é um problema mundial. Brasil, Estados Unidos e até Portugal também a têm, também existem muitos casos escondidos, as mulheres também têm vergonha. Esta é uma questão mundial.

Mas em Macau a lei parece esquecida numa gaveta…
Não importa se existe a lei, se está pronta ou não, a mudança de comportamento passa pela educação. É isso que o Zonta defende, educar as nossas crianças de forma a que assumam que a violência é negativa, a violência é errada. Fazê-las perceber o que é e porque é que é errado.

A Christiana é Conselheira da presidência e co-presidência do MGM, que ganhou um prémio de Responsabilidade Social. Há um interesse real nesta responsabilidade?
Claro. O MGM, não só em Macau, tem-se destacado por esta sensibilidade social. É necessário um esclarecimento. A nossa terra teve um crescimento económico muito grande, ao contrário da evolução social, que não caminhou em paralelo com este desenvolvimento. Os problemas sociais são evidentes. O Jogo é muita vezes apontado negativamente. É preciso entender que, se os casinos trabalharem em conjunto com a sociedade, todos ganham. O MGM assume esse papel que tem para a sociedade e preocupa-se. Se a cidade ganhar, os casinos vão ganhar, isso é claro. Portanto também os casinos terão de assumir esta responsabilidade. O nosso presidente, Jimmy Murren, tem feito um grande trabalho, é de facto uma pessoa sensível e isso reflecte-se na forma como são organizadas as coisas. E eu tenho toda a liberdade de trabalho, são apresentados os objectivos e a forma como é percorrido o caminho até lá é livre de minha escolha, não podia estar mais satisfeita.

14 Dez 2015

António Félix Pontes: “Lobbying das associações patronais é muito forte”

A desempenhar funções na presidência do Instituto de Formação Financeira, depois de 35 anos na AMCM, que deixou este ano, António Félix Pontes considera que Macau já deveria ter um sistema de segurança social obrigatório para o sector privado com a inclusão dos não-residentes. Algo que, acusa, o patronato tem impedido

Disse em declarações recentes que o seu percurso profissional ficou marcado por dificuldades internas e externas. Pode exemplificar?
Em qualquer percurso profissional ocorrem situações de maior ou menor dificuldades e o meu caso não constituiu excepção. Foram mais de 35 anos em que desempenhei funções de direcção ou de administração na Autoridade Monetária e Cambial de Macau (AMCM) e, em cargos de responsabilidade, em que se têm de tomar decisões, é normal surgirem “forças” apoiantes ou, pelo contrário, de bloqueio ou de “lobbying”. A trabalhar numa instituição pública, como decisor, coloquei sempre o interesse público e o primado da lei acima dessas “movimentações”, nunca tendo ficado preocupado com os “contestatários” de quaisquer acções que tenha tomado.

Que análise faz à evolução do sistema financeiro de Macau, sobretudo em relação às “ferramentas” de fiscalização?
O sector bancário registou uma grande modernização, consubstanciada numa melhor, mais célere e mais extensa prestação de serviços, tendo aumentado, de forma exponencial, a sua capacidade financeira. No capítulo da supervisão dos operadores financeiros, a evolução é muito positiva, tendo a mesma sido reforçada e, hoje, não temos as perturbações surgidas nas décadas de 80 e 90 (Banco do Pacífico, Deak Perera e BCCI, entre outros), o que, por si só, constitui prova inequívoca de uma melhor eficiência da supervisão da AMCM na área bancária. Factor determinante dessa evolução foi o trabalho contínuo em termos de supervisão prudencial e comportamental prosseguidas pela AMCM. Emitiram-se orientações em matérias nucleares e efectuaram-se inspecções aos estabelecimentos bancários enquadradas em planos anual e plurianual, umas e outras que conduziram a um melhor funcionamento das entidades visadas.

Mas há ainda melhorias que podem ser feitas?
Na supervisão bancária, claro que há. Nada é perfeito e temos de continuar a aperfeiçoar os instrumentos de supervisão de que já dispomos para que não surjam situações indesejáveis no futuro. A revisão do quadro legal do sistema financeiro (que data de 1993) e a aprovação de um regime jurídico específico para a intermediação financeira devem constituir iniciativas legislativas a inscrever no leque de projectos importantes para o sistema financeiro de Macau. Penso, também, que a nossa lei “offshore” deve ser objecto de revisão global, pois não atingiu minimamente os objectivos para que foi promulgada. É imprescindível e urgente elaborar-se um estudo incidente sobre os factores que, de uma forma decisiva, contribuíram para o sucesso dos mais importantes centros financeiros “offshore” nas áreas do “leasing” de aeronaves e navios, das seguradoras cativas e dos “trusts”. 111215P2T1

Conheceu muitos Secretários da Economia e muitas políticas. O rumo de Macau foi traçado da melhor forma nas últimas décadas?
Tive a oportunidade e a honra de conhecer e trabalhar com oito Secretários para as áreas da Economia e Finanças. Por vezes as nossas visões nem sempre foram coincidentes, ou melhor e, com toda a franqueza, até colidiam, mas houve sempre respeito mútuo e cada um fez o melhor que sabia e podia, no âmbito das suas competências. No passado, havia determinados constrangimentos de ordem política e económica que a alteração do estatuto político-administrativo de Macau permitiu resolver de uma forma natural. Em termos globais, considero adequado o rumo económico delineado para Macau, sendo indiscutível o progresso registado. No entanto, deveria ter havido outras preocupações, por exemplo, de natureza social, mas não só. Já deveríamos ter implementado em Macau um sistema de segurança social obrigatório para a população activa do sector privado, quando a economia local tinha crescimento de dois dígitos. Infelizmente, o “lobbying” das associações patronais foi – e é – muito forte e continua a impedir a concretização desse projecto, mantendo-se, desta forma, a discriminação social dos trabalhadores do sector privado com os funcionários públicos. Claro que, com a situação actual e futura da economia de Macau, os obstáculos serão acrescidos no estabelecimento de qualquer sistema obrigatório para a segurança social.

Mas o actual sistema de segurança social tem capacidade para se tornar sustentável, além das injecções de fundos por parte do Executivo?
Não. Tem de haver uma plena responsabilização das entidades patronais e dos trabalhadores, não na forma actual das contribuições mensais de 15 e 30 patacas, pagas trimestralmente, mas sim em termos de uma percentagem sobre os salários. Em Hong Kong, por exemplo, essa percentagem é de 5% para cada uma das duas partes. Devia esperar-se que, no século XXI, houvesse uma maior responsabilidade social dos empresários locais e das suas organizações corporativas. Macau, bem como Hong Kong, regista das mais altas esperanças de vida em todo o Mundo, facto este que, associado à baixa taxa de natalidade, determina que a percentagem de idosos com mais de 65 anos vai elevar-se, implicando que teremos cada vez menos trabalhadores a contribuírem para a segurança social. Esta tendência só será revertida se, entretanto, a população aumentar, sendo positiva a entrada em Macau de trabalhadores não-residentes que, a serem integrados no sistema de segurança social, constituirão, com as suas contribuições e as das suas entidades patronais, uma nova fonte de receitas.

Assim sendo, os trabalhadores não-residentes já deveriam estar abrangidos por algum modelo de segurança social na RAEM.
Sou contra qualquer tipo de discriminação que seja feita em relação a esses trabalhadores. Não compreendo a racionalidade, se é que existe, dos mesmos estarem excluídos do sistema de segurança social de Macau. Se são absolutamente necessários para desempenharem certas funções, dando o seu contributo para a economia local, deve-se sanar a omissão da sua exclusão do sistema de segurança social, até porque, as empresas, por sua própria iniciativa, têm inscrito os mesmos nos fundos privados de pensões, sendo o seu número já bastante razoável (cerca de 25 mil).

Muitos deputados têm vindo a criticar a forma como o Governo tem investido a sua reserva financeira no exterior, considerando que existem baixas taxas de retorno. O Executivo poderia pensar em alternativas?
Criticar, como sempre, é fácil, mas apresentar alternativas credíveis e exequíveis já é mais difícil. Está em causa a gestão de dinheiros públicos e não se pode ser imprudente. A perfilhar-se essas críticas poderá haver a tentação em se efectuarem aplicações que, em princípio, podem proporcionar taxas de rendimento mais elevadas mas, em contrapartida, o risco é muito maior. A estratégia de investimento prosseguida para a reserva financeira, e que foi explicada recentemente pelo Governo na AL, está correcta, pois assenta em análises técnicas aprofundadas de diversas opções [onde] a relação “risco-retorno” esteve sempre presente.

Ao nível do sector segurador e sua supervisão, qual o seu desenvolvimento global?
No sector segurador registou-se um bom desenvolvimento quantitativo (em 1982, o total de prémios era de cerca de dois milhões de patacas, enquanto que, no final de Setembro deste ano, o sector segurador auferiu quase 11 mil milhões de patacas) e qualitativo (em termos de modernização, prestação de serviços e capacidade financeira). O seu contributo é gigantesco, mas, muitas vezes, este aspecto é esquecido de forma leviana. As seguradoras autorizadas a exercer actividade em Macau têm desempenhado bem o seu papel e, no campo da respectiva supervisão, têm demonstrado a sua eficácia, sendo sintomático que nenhuma seguradora a operar em Macau tenha entrado em falência até ao momento.

Há uma evolução a fazer?
Quanto desenvolvimento do sector segurador local estou muito optimista. Quanto aos ramos gerais ou não-vida, por um lado, estão em curso grandes projectos de investimento público (novo hospital e o metro ligeiro) ou privado (hotéis inseridos em projectos de Jogo) e teremos alguns nichos de mercado derivados de novos seguros obrigatórios que poderão até atrair o interesse de seguradoras internacionais de topo que ainda não operam em Macau. Por sua vez, para o ramo vida, os cidadãos do continente continuam a revelar o seu “apetite” em adquirirem esses seguros em Macau, onde a oferta e sofisticação dos produtos de seguros é muito maior, havendo um grande potencial para uma evolução positiva consolidada.

Há décadas que o Executivo tenta criar medidas para a diversificação económica. É possível atingir tal objectivo? Como é que as empresas podem responder a isso?
Temos falhado na diversificação económica. Embora não tenha quaisquer dúvidas que o sector do Jogo continuará a ser preponderante na economia local, deveria ter sido feito um esforço muito maior e mais eficiente no estabelecimento de um plano estratégico de médio e longo prazo, em que a diversificação económica, nas suas diversas vertentes, deveria ter sido definida como objectivo primordial. Na realidade, quando se analisa o tema da diversificação económica, não devemos circunscrever o mesmo à predominância do sector do jogo – que existe e continuará -, mas alargar aquela à concentração nos mercados exportadores e importadores, em que também é desejável uma menor dependência. Que sectores económicos podemos desenvolver de uma forma pragmática e não platónica? Não há hipóteses de se exportar para novos mercados? Qual a visão que se pretende para a nossa economia?

Quais são esses sectores?
Deixo a ideia de se apostar no turismo de saúde, através de unidades de saúde privadas ou públicas com médicos e outros profissionais da área da saúde qualificados. Em Macau temos 30 milhões de turistas por ano, não havendo necessidade de efectuar grande esforço orçamental em marketing para trazer mais turistas, parte deles potenciais clientes do turismo de saúde. Este novo segmento de turismo iria, por outro lado, acarretar novas receitas para os hospitais público e privados, que, face à concorrência, teriam, entretanto, de melhorar a qualidade na prestação de serviços. A curto-prazo considero que é imprescindível o estabelecimento de um regime de seguro de créditos para a importação, exportação e trânsito. Consciente desse facto, o Governo inscreveu, nas LAG para 2015 e 2016 o estudo e o lançamento do mecanismo do seguro de crédito. Não tenho dúvidas que a iniciativa, a concretizar-se em tempo útil, irá criar condições propícias para as Pequenas e Médias Empresas (PME) orientadas para a exportação se direccionarem para novos mercados e, para as empresas com outros objectivos comerciais, ampliarem a sua gama de produtos. Em paralelo, não só para os riscos comerciais mas também para os riscos de natureza política (para os quais é indispensável a RAEM prestar uma garantia financeira, através da AL), podia conceder-se linhas de crédito para determinados mercados. Caso isso aconteça, constituirá uma oportunidade excelente para os empresários locais, ao beneficiarem de condições excepcionais, em termos de cobertura e de juros, de chegarem a novos mercados.

Depois de anos de crescimento económico, as receitas do Jogo estão em queda há um ano. A economia atingiu um ponto sem retorno? Terá obrigatoriamente de se reinventar?
Recentemente numa entrevista afirmei que, em relação às receitas do Jogo, estava moderadamente pessimista. Há uma tendência de decréscimo dessas receitas e o mês de Novembro evidencia essa evolução. Temos de ser realistas: a campanha anti-corrupção desencadeada na China vai continuar, há uma migração crescente de jogadores VIP para outras paragens e o segmento de massas não tem tido e muito dificilmente terá o efeito compensador que se desejava, além de que as receitas dos novos projectos das empresas dos casinos são frustrantes. Estamos, portanto, num ciclo económico de contracção e os factos têm vindo a consolidar cada vez mais a minha tese de que esta evolução recessiva vai continuar, pelo menos durante o próximo ano.

O que deve, então, ser feito?
É nestas fases menos favoráveis do desempenho da economia que devemos actuar rapidamente na tomada de medidas efectivas que sejam conducentes à criação de condições propícias ao seu relançamento. Se é certo que, para determinadas matérias, há necessidade de se elaborarem análises técnicas, neste momento deve-se privilegiar a acção em detrimento da multiplicidade dos estudos infindáveis.

Macau irá conhecer um novo Chefe do Executivo em 2019. Até lá que mudanças sócio-económicas poderemos esperar?
O ano de 2016 constituirá, de facto, o primeiro ano para a actuação do novo Governo e, nas respectivas LAG, consta um vasto leque de medidas de impacto relevante, as quais, a serem objecto de efectiva realização, traduzirão um bom desempenho. Quanto aos restantes anos até 2019, é difícil pronunciar-me sobre as mudanças, mas prefiro enunciar o que desejo para Macau: a continuação de uma cidade segura e menos poluída, mais centros e actividades para idosos, um sistema obrigatório e universal de segurança social com a integração dos TNR e uma rede de transportes públicos eficiente. Desejo ainda hospitais de qualidade superior e turismo de saúde, estabelecimentos de ensino de excelência, áreas recreativas e de diversão desenvolvidas pelas empresas do Jogo para as famílias, uma população com maiores conhecimentos em educação financeira e uma menor concentração em termos de sectores económicos e de mercados (exportadores e importadores).

11 Dez 2015

Andy Chan: “É preciso dar atenção aos problemas emocionais dos funcionários públicos”

Psicólogo e investigador, Andy Chan defende que há necessidade de melhorar a prevenção das doenças mentais em Macau, sobretudo a depressão, principal origem dos suicídios registados. Andy Chan deseja lançar um programa de apoio aos funcionários públicos e diz que os profissionais estão “limitados” pela ausência de um regime de credenciação

Quais são os trabalhos principais desenvolvidos pela Sociedade de Pesquisa de Psicologia de Macau?
Queremos aumentar os conhecimentos de psicologia dos trabalhadores de várias áreas, bem como proporcionar terapia para pais e filhos. Realizamos estudos e fóruns para aumentar a qualidade dos profissionais. Só não oferecemos aconselhamento psicológico porque temos de aguardar pelo Regime de Credenciação dos Profissionais de Saúde.

Dados dos Serviços de Saúde (SS) mostram que, nos primeiros nove meses do ano, o número de consultas de saúde mental no São Januário e centros de saúde aumentaram 3,2% e 26,6% face a 2014. Quais as razões para estes números?
Olho para esses número com dois pontos de vista. Primeiro, o aumento de consultas só prova que mais pessoas procuram este serviço. Mas será que isso mostra que o número de doentes mentais aumentou? É preciso outros estudos para analisar isso. Olhando pelo lado económico, não se exclui a possibilidade da queda das receitas do Jogo afectar a saúde mental dos cidadãos. Para além dos dados dos SS, de facto o número de consultas aumentou recentemente, não só sobre saúde mental mas também sobre questões como autismo, depressão ou temas ligados às crianças.

Os profissionais da área são suficientes?
Existem poucas pessoas que têm licenças profissionais para exercerem a profissão de terapeutas e psicólogos, por isso o número não é suficiente para os serviços em Macau. A maioria dos nossos membros não tem trabalho na área de Psicologia a tempo inteiro, apesar de serem diplomados. Em Macau poucas pessoas formadas em Psicologia trabalham na área por causa da questão da credenciação e muitas são excluídas pelas suas qualificações, pelo que não podem apresentar o diploma. Excepto os que trabalham no Governo ou nas instituições de serviços sociais.

Os serviços comunitários conseguem integrar de forma adequada os serviços de saúde mental?
Penso que sim, mas podem não ser suficientes para satisfazer as necessidades. As instituições comunitárias oferecem aconselhamento psicológico mas há muitos pedidos de consultas e, quando se atinge o limite, não aceitam mais pedidos. Assim como é que as pessoas podem pedir ajuda?

Disse ao jornal Ou Mun que é necessário dar mais atenção aos problemas emocionais que podem dar origem ao suicídio, no âmbito da morte de Lai Man Wa (ex-directora dos Serviços de Alfândega). É preciso dar mais atenção aos problemas emocionais dos funcionários públicos?
Sim. Estamos a pensar cooperar com a Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais (DSAL) para apresentar o “Programa de Assistência aos Funcionários”. Esse projecto já existe em Taiwan desde a década de 80 e o Governo promove-o activamente junto de todos os funcionários públicos. O programa visa conhecer os problemas mentais do trabalhador e as suas relações pessoais e familiares e ver o que pode afectar o seu trabalho. A DSAL disse que apoiava o programa, mas apenas nos pediu para disponibilizarmos uns cursos e que os serviços de terapia só poderiam ser criados de forma gradual, devido à diferença de culturas entre Macau e Taiwan e os recursos existentes. Se este programa for para a frente, acredito que irá disponibilizar mais meios para que os funcionários públicos possam resolver os seus problemas.

O programa poderia, de facto, prevenir o suicídio ou os problemas mentais dos funcionários públicos?
Para além do programa, acho que é necessário consolidar a promoção. Actualmente apenas as grandes associações fazem a promoção da prevenção do suicídio, como a Cáritas de Macau, a Associação Geral das Mulheres ou os SS. Mas os efeitos dessa promoção não se fazem sentir e penso que as formas de promover a questão devem ser alteradas. Segundo as estatísticas da Organização Mundial de Saúde (OMS), a maioria dos casos de suicídio tem origem na depressão e podemos começar aí a promoção. Também acho viável a realização de testes de depressão online para que os cidadãos reconheçam a sua importância e possam ir a consultas quando suspeitam que sofrem desta doença. Mas não existem muitos serviços em Macau.

Há motivação dos cidadãos para procurarem esse tipo de serviços?
Tem sido maior nos últimos anos, porque foram realizadas mais actividades. Antes a promoção da saúde mental era pouca. Mas agora vejo que umas operadoras de Jogo estrangeiras dão mais atenção a esta questão e recrutam terapeutas para dar tratamento aos seus funcionários. Outras empresas poderiam aprender com isso. Para além da realização de seminários, seria bom lançar revistas mensais sobre o tema e promover a comunicação entre colegas e famílias.

A OMS prevê que até 2020 a depressão poderá tornar-se a segunda maior doença do mundo, depois das doenças cardíacas. Macau está a fazer trabalhos suficientes para prevenir este problema? Os recursos são suficientes?
Acredito que há margem de melhoria, há muitos trabalhos de prevenção que poderiam ser feitos. Não só os pacientes podem descobrir melhor que sofrem de depressão, como, através da educação, as pessoas à sua volta podem detectar os sintomas mais cedo. Existem poucos casos de depressão em que são os pacientes que pedem ajuda directamente, sobretudo os casos mais graves. Mas a família, amigos ou colegas podem ajudar a descobrir os sintomas. Em relação às instalações, acredito que os SS vão contratar mais mão-de-obra e apostar nas instituições dos serviços sociais. Acredito que a implementação do Regime de Credenciação pode fazer com que mais pessoas trabalhem na área da Psicologia.

Os licenciados actuais acabam por enveredar por outras áreas.
É verdade que é difícil encontrar um trabalho depois da licenciatura em Psicologia. Muitos podem optar por um trabalho na área comercial ou de publicidade, bem como na área dos recursos humanos, onde podem aplicar um pouco do que aprenderam em Psicologia. Posso dar o exemplo de um membro da nossa Sociedade, que fez um mestrado em Psicologia e tirou a licenciatura numa outra área e que já não conseguiu candidatar-se à Função Pública, nem ter a qualificação de terapeuta reconhecida pelo Governo. Isso faz com que não consiga encontrar trabalho. Na psicologia é mais importante ter experiência, não bastam as teorias, mesmo que se aprendam muitas. Como agora não existe desenvolvimento na área, menos estudantes optam por estudar Psicologia.

Em relação ao Regime de Qualificação, ainda não há uma proposta final. Tem algumas opiniões sobre o conteúdo?
Há mais de um ano que essa proposta não é discutida e já sofreu várias alterações. Parece-me um bom progresso o facto do regime permitir aos estudantes que fazem o curso fora de Macau e que querem a credenciação realizar o estágio não apenas no hospital público. Isso faz com que sejam formados mais profissionais.

O Secretário para a Segurança, Wong Sio Chak, admitiu no debate das Linhas de Acção Governativa que o Governo publicou demasiados pormenores sobre casos de assédio sexual. Concorda com isso? Isso poderá ter afectado as vítimas?
Concordo. É preciso proteger melhor as vítimas, porque quando voltarem a ler notícias, podem sofrer de stress pós-traumático. Mas prefiro dar mais atenção aos criminosos que poderão voltar a cometer o mesmo crime.

O que é que a sociedade pode fazer mais para promover a saúde mental?
Nas escolas primárias e secundárias podem ser disponibilizados maiores conhecimentos sobre a saúde mental e as relações familiares, e também ao nível da educação sexual. Tudo para que os alunos possam saber pedir ajuda e prevenir problemas, e também pode ajudar a que os estudantes fiquem mais interessados por psicologia. Podem também promover-se mais seminários para que os pais transmitam mais conhecimentos de psicologia aos seus filhos. Acredito que uma boa comunicação entre familiares é fundamental para o bom crescimento das crianças.

4 Dez 2015

Paulino Comandante: “Se alguém quer tirar o curso a sério, ou tira na UM ou vai para Portugal”

Os advogados querem retomar o protocolo com Portugal, mas Paulino Comandante admite que existirão mais condicionalismos do que antes: limitação do número e gente mais experiente. A relação patrono/estagiário e a a mediação e arbitragem como alternativas aos tribunais são alguns dos pontos fulcrais referidos pelo advogado e secretário-geral da AAM, para quem só a UM ensina o verdadeiro Direito de Macau

A falta de magistrados é sempre um dos pontos de enfoque no ano judiciário. É verdade que continua a existir falta de magistrados?
Em termos quantitativos, o que acho é que, ao longo dos anos, tem-se notado um aumento. Naturalmente esta equipa [de magistrados] é composta por bons elementos, de níveis de habilitações académicas elevadas. Mas, como podemos notar, são jovens, precisam de mais experiência da vida. Apesar de dominarem a língua chinesa e portuguesa, é preciso experiência para resolver os problemas que temos nos tribunais. Para isso é preciso tempo. Os magistrados que temos, este grupo, são jovens. Não quero dizer que não têm experiência, mas precisam de mais e isso só se ganha com o tempo.

Portanto Macau precisa de magistrados mais experientes.
Sim, defendo isso, que Macau precisa desses magistrados, experientes, maduros. Sendo Portugal a única via a que, neste momento, podemos recorrer. É preciso recorrer a Portugal para resolver os casos que neste momento temos pendentes nos tribunais. Estes magistrados, oriundos de Portugal, carecem da realidade de Macau. Por mais experiência que tenham, se não conhecerem a realidade do território, não são adequados para nos dar essa ajuda. É preciso mais magistrados experientes mas que conheçam esta realidade. Portanto sim, há falta de magistrados.

Um dos motivos que justifica a suspensão do protocolo com Portugal é a chegada incessante de advogados ao território. Mesmo sem protocolo, a verdade é que eles continuam a chegar…
Não há um impedimento da movimentação de advogados, mas o que actualmente é exigido, e na altura não era, é que essa movimentação seja feita através de um mecanismo. Ou seja, para quem venha de Portugal, mesmo que seja um advogado, tem de ser sujeito ao nosso exame de acesso, é sujeito a todo o processo de inscrição. É igual para todos. A suspensão do protocolo não é uma barreira para impedir que os advogados de vir para Macau. Antes, com o protocolo, o reconhecimento profissional era directo, agora têm de cumprir o processo. Durante este tempo de suspensão houve contacto com o presidente da Associação dos Advogados de Macau (AAM), Neto Valente, e a Ordem dos Advogados de Portugal.

Existirá um futuro protocolo?
Daquilo que me lembro, houve duas assembleias dos nossos associados para discutir esta possibilidade. A opinião da maioria é a de não acabar de vez com o protocolo, mas sim mantê-lo. Mas não será um regime com o modelo do passado, não. Será diferente, existirá algum condicionalismo, tal como a limitação do número de advogados vindos de Portugal, por exemplo. Também não serão bem-vindos advogados muito jovens, aqueles que acabaram há pouco tempo o estágio. Naturalmente vamos exigir profissionais com alguma experiência, que sejam três anos dela, talvez, ainda não sabemos. É preciso um maior controlo, uma maior fiscalização às actividades.

Voltando ao caso do curso da Direito orientado pela Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau (MUST). A AAM aceita os recém-formados, mas continua a colocar em causa a sua formação.
Pois, a AAM aceitou o acórdão da decisão do tribunal, embora no estado de Direito nós não concordemos com esse entendimento. Naturalmente, o que acho, é que da parte do Governo poderia ter sido feito alguma política no sentido de coordenar os diversos cursos de Direito de Macau. Actualmente há em Macau mais do que uma universidade a leccionar Direito. Mas é claro que a Universidade de Macau (UM) é a instituição que quase exclusivamente lecciona o verdadeiro Direito de Macau. Na MUST – não é segredo – o seu curso [de Direito] não é composto por disciplinas maioritariamente do Direito de Macau.

A Universidade Cidade de Macau vai também lançar o curso de Direito. Têm acompanhado?
Sim, a AAM está a par disso, fomos consultados. O problema é que os meios são escassos para se poder leccionar um curso de qualidade. Há também a questão do mercado, em termos de alunos interessados. Não é grande. Para mim é claro, se alguém quiser tirar o curso de Direito a sério ou tira na UM ou vai para Portugal.

Como avalia o estágio obrigatório para os recém-licenciados? Não o acha longo? E com tantas exigências, como o exame e as matérias, não estará a AAM a descredibilizar as próprias instituições de ensino?
Não acho, também não acho que seja um estágio difícil. Aqui em Macau, para se entrar na nossa profissão é preciso fazer um exame de acesso, algo que não é exigido, por exemplo, em Hong Kong. São processos diferentes. Em Macau só acompanhamos o curso da UM. A MUST avançou o curso sem qualquer opinião. É preciso perceber que neste curso, da MUST, a maioria das cadeiras incide sobre o Direito Chinês e este é um problema que justifica a necessidade do nosso curso e do exame. Por outro lado, temos notado que os cursos de Língua Portuguesa e chinesa de UM estão diferentes.

Mas houve uma altura que os licenciados da UM não eram sujeitos ao exame.
Sim, e foi aí que decidimos sujeitar todos os candidatos à nossa profissão ao estágio e ao exame de acesso. Para quem tem uma formação sólida, segura, durante quatro anos na faculdade não é nada difícil, é até bastante acessível. A taxa de reprovação, em alguns exames, é elevada, mas isto acontece por causa do tipo de matéria. Há candidatos que no seu curso não tiveram determinadas cadeiras e talvez seja mais difícil. Se não aprenderam o Direito de Macau, aí é mais difícil. Notámos também uma coisa, que muitas vezes o patrono não acompanha devidamente o estagiário.

A AAM não devia tomar uma acção?
E vamos. Posso garantir que a direcção actual, e até a anterior, está atenta a esta questão e iniciámos um estudo para que no futuro possamos eventualmente atribuir alguma responsabilidade ao patrono em causa. Por exemplo, estamos a falar, apesar de nada estar definido, em aplicar uma penalização de proibição de voltar a ter estagiários, num determinado tempo, caso se note, ou se confirme esta situação do não acompanhamento correcto por parte do patrono.

As oficiosas são uma grande questão em Macau, ou pela remuneração ou pela nomeação. Nos processos cíveis há uma Comissão, da qual faz parte, que seleciona o advogado, nos processos crimes é o juiz que o nomeia. Não considera que esta escolha dá azo a favoritismos?
O modelo actual nos processos crimes já vem do passado, a escolha é na base do Código do Processo Penal. A AAM envia uma escala [de advogados], agora se o juiz segue essa escala ou não, não sei. Este ano ainda não temos os dados estatísticos, mas temos notado que houve situações em que determinado advogado ou advogado estagiário, sobretudo estes, foi nomeado, durante esse ano, muitas vezes. Nós conseguimos detectar isto só a olhar para os honorários recebidos. Temos advogados que chegam até às 200 mil [patacas] e outros sem nada. Isto, claro, pode estar relacionado com o domínio da língua. Pode haver situações em que um advogado estagiário que domine só o Português opte por não querer aquele caso, mesmo por causa da língua. Pouco a pouco, naturalmente, os juízes que querem despachar e facilitar o processo escolhem quem domine a língua, é mais fácil. Não se deve assumir que se faz de forma consciente. A escolha do advogado pode também passar por este ou aquele ser menos controverso, talvez. Depende, depende…

Falando da remuneração das oficiosas, de que muitos profissionais se têm queixado. Considera ser um pagamento, tanto na quantia como forma, justo?
Houve duas situações complicadas. Uma delas foi o Governo ter diminuído os montantes para os processos crime. Isto é um problema, sim. Já tivemos oportunidade para conversar com a Secretária para Administração e Justiça, Sónia Chan, e referimos esta situação. Os valores não deviam ter baixado. Um segundo problema, que me parece estar resolvido, dizia respeito à forma de pagamento. No passado, embora não houvesse uma referência expressa na lei, os honorários dos defensores oficiosos eram adiantados pelo cofre do gabinete do Tribunal de Última Instância, depois a dada altura deixaram de fazer isto, ou seja, o defensor é arbitrado pelo tribunal e pode nunca mais receber. Actualmente, depois de um acórdão que deu razão ao profissionais, parece-me que já estão de novo a pagar antecipadamente. Pelo menos a AAM nunca mais recebeu nenhuma queixa.

Os atrasos dos juízes são uma constante. Como é que se resolve?
Sim, é um problema. Mas a AAM já explicou esta questão. Acho que só com o aumento de magistrados não se vai resolver esta situação. Como já defendi é preciso pensar noutros meios, meios alternativos, de solução de litígio. A mediação é um meio para isso e a arbitragem também. O Governo deve apostar mais neste último meio, a arbitragem. A AAM já começou essa preparação e temos organizado, com uma entidade de Hong Kong, cursos de formação de arbitragem. Acaba para a próxima semana a primeira turma. Esta pode ser uma solução.

Porque é que não existem sociedades de advogados em Macau? Dizemos muitas vezes escritório, mas nem escritórios são, são empresas. O que fez a AAM para mudar isso?
Deviam existir, sim. Macau não tem um diploma que regulamente isso. Esta é uma questão que já vem do passado, com a Administração portuguesa. Já apresentámos um projecto de lei para regular as sociedades de advogados, mas ficou lá, esquecida. Com a administração da RAEM também apresentámos. Naturalmente vamos continuar a insistir neste pedido.

Considera a justiça lenta?
Sim, é lenta. É uma questão complexa. Há vários problemas. Por um lado a sociedade de Macau evoluiu tão rápido e bastante que passámos de um espaço pequeno e agora falamos de nós como uma cidade internacional. Há muitos mais problemas, sejam sociais ou comercias, e, embora os tribunais de Macau tenham aumentado a sua velocidade – temos de ser justos, eles tentaram com mais magistrados –, não é suficiente. Temos necessidade de magistrados experientes, que conheçam a realidade de Macau, para facilitar. Por outro lado, não nos podemos esquecer que o processo judicial é sempre um processo lento, existem fases que não podem ser eliminadas, pois não queremos comprometer os direitos fundamentais dos cidadãos. Podemos simplificar, mas isso pode não querer dizer que seja o melhor. Não podemos aumentar a velocidade sem proteger os direitos fundamentais. Isso não. É altura de pensarmos nos meios alternativos, a mediação e a arbitragem.

Qual será o futuro do Direito de Macau, com um pai gigante como o Direito Português e uma cada vez maior influência do Chinês?
O Direito faz parte da cultura de uma sociedade e essa cultura vai evoluindo, não fica parada. Para o Direito de Macau o que me parece é que, tendo uma relação muito estreita com o Direito Português, irá continuar com esta relação mas haverá transformações. O próprio Direito de Macau irá evoluir, tal como o Direito de Portugal se transformou depois de integrado na União Europeia. Podemos olhar para os Direitos que tiveram um contacto íntimo com o português, por exemplo, o Direito do Brasil, ou de países lusófonos. Cada vez mais se afastam do que eram, mas é um fenómeno natural. No futuro, o Direito de Macau será sui generis, ou seja, terá uma identidade muito própria com elementos do Direito de Portugal e, pouco a pouco, elementos do Direito da China continental e até da Ilha Formosa.

Prevalecerá depois de 2049?
Não sei. Mas acredito que este Direito não será afectado, nos seus princípios basilares. Embora oriundo do Direito de Portugal, este nosso Direito faz parte da nossa história e do sistema jurídico da Europa. Esta estrutura de base não deve ser mexida, não deve ser alterada.

29 Nov 2015

Jonathan Wong, da Associação de Arquitectos: “Governo tem escolhas na parte antiga de Macau”

Para o presidente da Associação dos Arquitectos, o relatório das Linhas de Acção Governativa para 2016 limitou-se a apresentar números de habitação pública já anunciados, mas Jonathan Wong acredita que há vontade de concretização por parte do Executivo. E diz ainda haver soluções para mais habitação nos bairros antigos

Chui Sai On apresentou as Linhas de Acção Governativa (LAG) esta semana. Que análise faz do relatório, no que diz respeito à questão da concessão de terrenos e de políticas de habitação?
Em termos de política de habitação penso que basicamente providenciou o que já tinha prometido durante o processo de terceira consulta pública sobre os novos aterros, que decorreu este ano. Lembro-me que nessa altura foi anunciado que iriam proporcionar cerca de 28 mil fracções. Mas tendo em conta o que ouvi na quarta-feira, Chui Sai On limitou-se a confirmar esses dados, o que é bom. Actualmente sabemos que a construção da zona A dos novos aterros está a ser feita de forma lenta, mas prometeram que no final do próximo ano esse projecto iria estar terminado e penso que dentro de alguns anos poderemos ter as primeiras casas públicas disponíveis e depois todas as infra-estruturas poderão estar concluídas.

Chui Sai On apresentou soluções nas quais a população pode acreditar, especialmente as pessoas que estão à espera de uma casa do Governo?
Não tenho números exactos de quantas pessoas estão à espera de uma casa do Governo, mas claro que se olharmos para todas as cidades em todo o mundo com este tipo de política, vão existir mais candidatos do que casas disponíveis. Penso que Macau é um caso especial, porque as concessões de jogo arrancaram no início dos anos 2000 e registou-se um ‘boom’ nos preços das casas, mas os salários não cresceram ao mesmo ritmo. Estes problemas são especialmente sérios, porque os salários dos residentes não conseguem acompanhar os preços das casas. Temos de admitir que há uma certa limitação em termos de fornecimento de terrenos em Macau, então em vez de construir mais casas públicas em novos terrenos, o Governo também tem escolhas na revitalização da parte antiga de Macau. Se olharmos para a janela (aponta para a zona da Barra), vemos vários edifícios antigos não restaurados. A maioria está ocupada, mas se for feita uma revitalização, tenho a certeza de que mais pessoas podem morar ali. O Governo também poderia concentrar as atenções nas zonas antigas, para obter mais espaços para casas públicas. O Governo Central já autorizou a construção de quatro novos aterros, não deverá dar autorização para mais. E o Governo ainda não começou a tratar da zona C e D. A zona A está a ser parcialmente desenvolvida, bem como a zona B, mas as restantes ainda não arrancaram. A maior parte da habitação pública vai surgir na zona A e devíamo-nos concentrar nessa zona. Mas segundo o que disse o Chefe do Executivo, ele comprometeu-se a resolver esses projectos o mais depressa possível. Penso que Macau tem de finalizar a zona A, porque a ponte que vai ligar Macau a Zhuhai e Hong Kong vai estar completa no próximo ano. E assim que estiver concluída, as pessoas vêm para Macau através da ponte e, se a ilha não estiver terminada, as pessoas não conseguem vir para Macau. Há urgência em fazer isso.

O Secretário Raimundo do Rosário está a tentar arrumar a casa e acelerar o processo ligado à concessão de terrenos. Acredita que o anterior Secretário, Lau Si Io, deveria falar publicamente sobre o que poderá ter falhado durante o seu mandato em relação a essa questão?
Essa é uma questão complicada. Penso que cada terreno tem a sua própria história. Claramente alguns dos concessionários não fizeram o seu trabalho, ao não desenvolverem o terreno. Mas em alguns casos, penso que os concessionários submeteram projectos junto do Governo e esperaram. E pelo que oiço de vozes do sector, essa espera pode ser de oito anos, dez anos. A razão da parte do Governo é que existe a preocupação em relação ao património histórico.

Chui Sai On referiu isso no debate com os deputados.
Sim e referiu que haveria ainda outros planeamentos a fazer. E como concessionário, sem existirem esses planos não se pode sequer submeter o primeiro projecto. Não tenho os dados, mas o que ouvi é que, neste caso, uns fizeram alguma coisa e outros não fizeram nada. Em relação ao anterior Secretário, Lau Si Io, estamos a falar de concessões muito antigas. É uma história longa e talvez o Governo possa obter avisos ou explicações da parte dele. Provavelmente o Governo já fez algumas questões, se fosse o Secretário Raimundo do Rosário já lhe tinha ligado (risos). Penso que o público em geral sabe que não é culpa de [Lau Si Io].

É culpa do sistema?
São questões da década de 90, depende que cada terreno. Naquela altura nem sequer tínhamos Ao Man Long no Governo. Não é uma questão assim tão simples.

O deputado Gabriel Tong disse que se o Governo não solucionar os problemas com as concessões de terrenos isso pode causar “impacto social”. Concorda com ele?
Tudo pode trazer impacto social se não for solucionado de forma correcta. Neste momento não há uma resposta certa, e como Governo, tem de respeitar a lei. O que podem fazer agora? Não sou Chefe do Executivo, não estou em posição [para dizer].

Chui Sai On apresentou um Plano de Desenvolvimento Quinquenal para 2020, com sete principais objectivos. Como olha para esse plano?
São objectivos principais e não há nada de errado em lançar esses objectivos. Se olharmos de forma mais detalhada, vão ter cinco ou seis consultas públicas para diferentes áreas, os novos aterros, a ponte, Areia Preta. Penso que é bom termos finalmente algo mais detalhado. Na última sessão de consulta pública [sobre os novos aterros] acho que foi contratada uma empresa de design da China. Não há nada de errado nisso, mas é um plano especialmente concebido para Macau, que é um lugar único, com as culturas oriental e ocidental, muito pequeno, com muita população e poucos terrenos. Na China há bastante espaço, podem fazer o que quiserem. Mas neste caso recomendaria ao Governo contratar uma equipa local para fazer esse trabalho. A empresa contratada pode fazer o trabalho, mas nós vivemos e trabalhamos aqui. Eu levo os meus filhos todos os dias à escola e sei o que acontece no trânsito e como as pessoas não conseguem sequer apanhar autocarros. Conheço a falta de espaço. São as coisas que as pessoas que não vivem em Macau não têm percepção. Na última sessão de consulta pública fiz uma pergunta sobre a estrada que vai ligar à nova ponte. Todos os dias essa estrada está congestionada, então o que vai acontecer se trouxermos mais tráfego? Vai chegar até à zona de táxis do terminal (risos). Foi-me dito que poderíamos mudar a nossa forma de deslocação e que iríamos usar mais autocarros e menos veículos privados. Esta resposta é muito simples, com a qual não concordo. No final poderão criar um plano mais específico.

Chui Sai On vai deixar o Governo em 2019 com um melhor Governo e um melhor território?
Em termos gerais sim. Estamos numa fase muito diferente em relação a 1999, o Governo está de facto a ouvir a população, há muitos conselhos consultivos, consultas públicas… A população de Macau está um pouco mais embrenhada nas questões políticas, as pessoas falam muito à hora de almoço, em encontros de amigos. Quando dizemos para escreverem algo, para que o Governo conheça a sua opinião, são muitos poucos aqueles que o fazem. Quem o faz são uma espécie de partidos políticos e fazem-no com um determinado objectivo.

Temos visto nos últimos dois anos muitos protestos a acontecer.
Sim, por exemplo. Mas no fim de tudo podemos pensar: esses comentários são mesmo dessas pessoas, ou são das estruturas organizadas? Aí a situação é muito diferente em relação ao período da transferência de soberania. Até a imprensa é diferente e há uma tendência de aproximação do modelo de Hong Kong, mais virado para o populismo, especialmente a imprensa chinesa.

Em relação aos protestos, também é uma tentativa de imitação?
Claro que estão a aprender algo com o que se passa em Hong Kong. Ouvi que até têm conselheiros em Hong Kong e Taipei (em Taiwan), para aprenderem como se fazem este tipo de coisas. (risos)

20 Nov 2015

Roy Eric Xavier, académico macaense

O académico macaense da Universidade de Berkeley, Califórnia, está até ao dia 13 na Universidade de Macau a dar palestras sobre o lado económico da cultura de Macau, ao abrigo de um projecto Fullbright. Roy Eric Xavier acusa associações como a APIM ou o Conselho das Comunidades Macaenses de não terem uma maior aproximação aos jovens e empresas e defende a criação de uma base de dados sobre os profissionais expatriados que querem regressar

Como se sente ao ser convidado pela Universidade de Macau? Que projectos vai desenvolver?
Sinto-me honrado por ser o primeiro académico Fulbright a ser convidado pela Universidade de Macau (UM). Esta é uma oportunidade única para a China, Macau e os Estados Unidos de criarem mais intercâmbios internacionais, não apenas na área da educação, mas também em termos de negócios e comércio. O convite tem especial significado devido à minha herança macaense. Esta será a minha terceira visita em três anos, e desta vez o meu papel vai ajudar a universidade a compreender a história da comunidade macaense fora de Macau, e talvez para utilizar os laços culturais para fomentar o desenvolvimento local.

Tem vindo a estudar a cultura de Macau, com especial foco nas tradições macaenses. Porquê o maior foco do estudo no lado económico dessa cultura?
As ligações entre a cultura macaense e a economia já são conhecidas. Muitas famílias estão profundamente envolvidas em actividades culturais e económicas em simultâneo. 61115P2T1O turismo cultural actual é outro exemplo. A cultura de Macau no século XXI, especialmente para as novas gerações de macaenses, dentro ou fora de Macau, é algo atractivo que deveria ser tido em conta do ponto de vista económico. A razão é porque muitas pessoas vêem a rica história de Macau como sendo uma amostra evidente das relações entre o Ocidente e Oriente, e que deveria continuar nos dias de hoje. Fazer negócios em Macau traz muitas vantagens que Las Vegas não tem, incluindo uma ligação directa com a China.

Num artigo de investigação, intitulado “A cultura de Macau como um activo económico” diz que “o conceito de cultura como um activo, nas suas formas tangível e intangível, foi adoptado pelos governos de Macau e da China. Mas as tentativas para desenvolver ambas as formas desde a transferência de soberania têm sido incompletas”. Porquê?
O meu foco é mais nas formas intangíveis da cultura de Macau: a sua história e os efeitos que renovação dos laços tradicionais fora de Macau pode ter actualmente. Ambos os Governos têm feito bons progressos na preservação dos edifícios e outros espaços físicos, nas formas tangíveis de cultura. Mas gostaria de ver algo mais a ser feito para a compreensão da história de Macau, incluindo os contributos no estrangeiro, como é o caso dos macaenses que emigraram para Hong Kong e Xangai no século XIX, e para os Estados Unidos, Canadá, Austrália, Brasil e Portugal no século XX. A inclusão dos macaenses estrangeiros na história de Macau vai ajudar a renovar velhos laços e, o mais importante, a atrair mais jovens macaenses a regressar a Macau e a mostrarem as suas experiências e talentos. A minha investigação revela que a segunda e terceira geração de macaenses estão interessadas em Macau, e muitos são profissionais que trabalham para empresas nas áreas da tecnologia, medicina, comunicação, educação, finanças ou biotecnologia.

O que é que o Governo de Macau deveria fazer para promover mais os aspectos da cultura que menciona no artigo?
O Governo de Macau, através da universidade, já está a ter em conta parte das minhas propostas para começar a estudar a diversidade cultural de Macau e as suas origens, e os laços com a diáspora. O próximo passo importante será começar a organizar e recolher de forma sistemática a informação destas comunidades, incluindo uma base de dados dos novos profissionais que têm interesse em partilhar os seus conhecimentos com Macau. Um arquivo dessa natureza poderá estar ligado a outros da China e em todo o mundo através da internet, sendo que já tive uma discussão com investigadores chineses, em 2013, sobre uma possível colaboração. Esse processo poderia iniciar parcerias específicas entre Macau e os países onde esses profissionais vivem. Muitos estão dispostos a receber os profissionais de Macau que estão interessados. Isto nunca foi feito com os países de língua inglesa, incluindo os Estados Unidos, Canadá e a Austrália. Isso poderia ser uma boa oportunidade de começar colaborações tendo em conta as necessidades de Macau de expandir a sua economia para além do Jogo.

Diz também no seu artigo que as associações locais, como a Associação Promotora da Instrução dos Macaenses (APIM) e o Conselho das Comunidades Macaenses (CCM), “têm tido um sucesso limitado na promoção do turismo de Macau”. Estas entidades têm de alterar a sua forma de actuação?
Ambas as associações têm tido um sucesso limitado em atrair gerações mais jovens e profissionais para Macau porque a organização dos seus membros está virada para os macaenses reformados que já não têm contacto com grandes empresas. [quote_box_right]“Gostaria de ver algo mais a ser feito para a compreensão da história de Macau, incluindo os contributos no estrangeiro, como é o caso dos macaenses que emigraram para Hong Kong e Xangai no século XIX, e para os Estados Unidos, Canadá, Austrália, Brasil e Portugal no século XX”[/quote_box_right]Essas associações também têm juntado pequenos grupos de jovens macaenses a cada três anos para encontros de jovens, para aumentar a sua consciência (face à cultura). Mas sempre achei que deve ser feita uma aproximação mais ampla e mais profissional, algo que propus aos membros das direcções da APIM e CCM em 2014. Ambas as associações rejeitaram esse envolvimento.

Escreve que “a ligação entre a cultura e o desenvolvimento económico tem sido ténue, e, em alguns casos, não existe”. Acredita que o Governo de Macau ou as associações locais vão mudar a sua estratégia em relação a esse aspecto? Acredita na diversificação da economia, para além da indústria do Jogo?
Acredito que a situação vai mudar num futuro próximo, com mais informação. A diversificação da economia de Macau vai seguir a diversidade cultural. À medida que os sectores económicos se tornem mais activos em termos de trocas internacionais, mais conexões vão ser feitas. Por exemplo, o jogo em Macau já entrou numa fase virada para o entretenimento e vendas a retalho. Os media constituem uma grande parte desse entretenimento, e através disso surgem as comunicações, a tecnologia, e outras indústrias dessa área, como o desenvolvimento de social media, vídeo ou até vendas on-line. Claramente acredito que a economia de Macau pode ser diversificada.

Os casinos deveriam promover mais a cultura local?
Penso que os casinos de Macau têm um interesse directo na promoção da cultura local, porque têm vindo a criar mais atracções para as famílias e jovens profissionais que não são apenas croupiers. Os casinos têm uma maior vantagem face aos seus concorrentes de Las Vegas. Os casinos podem patrocinar “percursos turísticos culturais” e disponibilizar gastronomia exótica, algo que Las Vegas não pode oferecer. Macau, como não está no meio de um deserto como Las Vegas, que não tem mais nada para oferecer, tem uma localização exótica, cultura e uma história rica.

Apresenta algumas críticas no âmbito da lei de salvaguarda do património. Acredita que protege plenamente o património? Como podemos estabelecer uma relação entre o património e economia?
Não critiquei a lei do património. Simplesmente constatei que a preservação da história de Macau ainda não foi totalmente definida desde que a lei foi implementada em 2014. Mas ainda há tempo. Alguns esforços têm sido feitos, incluindo um acordo entre Portugal e Macau para preservar 3600 documentos da colecção “Sínicas” da UNESCO. Mas é preciso fazer mais. Proponho que a preservação cultural deveria incluir uma história mais completa de Macau, incluindo a história dos macaenses que emigraram para outros países. Materiais históricos, informação e dados deveriam ser recolhidos junto da população também. Nesse processo, as ligações culturais, e mais recentemente as económicas, vão resultar em centenas de contactos feitos.

Há o risco da cultura macaense desaparecer com o desenvolvimento económico?
Não acredito que a cultura de Macau vá desaparecer com o desenvolvimento económico, mas o contrário. Penso que vai continuar a prosperar porque um entendimento da cultura de Macau será parte do desenvolvimento económico, se a cultura for vista como um activo e se isso for usado de forma efectiva.

Regresso dois anos depois

Há dois anos que Roy Eric Xavier não visitava o território de onde a mãe é natural, e desta vez será docente convidado no Moon Chun Memorial College da Universidade de Macau, no âmbito de um projecto Fullbright, sendo o primeiro a ser convidado para Macau em 69 anos de história do projecto académico. Ontem falou das comunidades portuguesa e macaense, e na próxima terça-feira irá abordar o tema “As origens da cultura de Macau e a diversidade económica”. Na quinta-feira, 12 de Novembro, Roy Eric Xavier vai falar das “Relações tradicionais entre os locais e os macaenses expatriados”.

6 Nov 2015

Marta Cristina Carvalho, ceramista

Das artes do fogo, a cerâmica, o vidro, a joalharia e a cutelaria, a primeira transporta uma carga eivada a ocidente de uma ancestralidade que remonta ao Livro do Génesis e ao sopro divino. Marta Cristina Carvalho nasceu em Coimbra, em 1964. Entre 1986 e 87 obtém um diploma de moldes para a indústria da cerâmica. No ano seguinte trabalhou na indústria cerâmica portuguesa. Entre 1988 e 1990 frequentou o curso de escultura da Escola Superior de Belas Artes do Porto. Em 1990 lançou-se à aventura e veio para a Ásia por onde deambulou até poisar em Macau e aqui trabalhar como designer gráfica. Em 1993 levanta âncora e viaja para o Japão onde trabalha com ceramistas nipónicos. Em 1994-94 torna-se ceramista residente no Parque Cultural de Cerâmica de Shigaraki. Em 1995-96, em part-time, torna-se professora convidada assistente do Departamento de Cerâmica da Universidade de Arte e Design de Kyoto. Em 1996, apenas três anos depois de chegar a Kyoto, na região de Kansai, torna-se ceramista independente, viajando frequentemente para Macau para expor e ensinar

Da leitura da sua resumida biografia e curriculum nota-se uma grande irrequietude até chegar ao Japão, onde já reside há 22 anos. O que é que a prendeu à prática da cerâmica no Japão?
A prática da cerâmica no Japão quase foi como uma consequência natural de me encontrar na Ásia precisamente na altura em que, como artista, procurava o meu próprio caminho e expressão estética. A cerâmica sempre foi uma constante presença na minha vida, por ter nascido numa família com ligações a essa indústria. O meu pai, como geólogo, encontrou muitos dos existentes jazigos de matéria prima para a indústria cerâmica portuguesa e muitas vezes levava-me a trabalho de campo, onde sempre havia descobertas de muitos minerais, muitas vezes quartzos raros e outros de origem muito específica daquela zona atlântica. Desde adolescente que passava os tempos livres a trabalhar com esse lado da minha família, que possuía ateliers de cerâmica artística também. Quando abandonei um curso de Geologia para Escultura, iniciei a cerâmica paralelamente com um curso técnico, mas sem qualquer intenção profissional. Era-me natural poder trabalhar em algum ramo da cerâmica para poder financiar por alguns anos a universidade onde estudava, no Porto. Acontece que, quando na Ásia, tocou-me novamente a curiosidade de conhecer novas técnicas , materiais e outras maneiras de ver a cerâmica. E [isso] levou-me ao Japão, [país] pelo qual tinha um especial interesse.

Sendo portuguesa, e com curso de moldes de cerâmica, frequência em cerâmica industrial e curso de escultura na ESBAP, existe algum vestígio ocidental na cerâmica que faz desde que chegou ao Japão?
Começo por dizer que nunca acabei o curso da ESBAP, pois na altura algo do ambiente académico não me satisfez como artista e senti naquela altura particular que tudo o que tinha para ”estudar”, ou procurar , como artista não precisava de ser numa coisa chamada escola. Quanto a influências culturais acho que é impossível nos livrarmos da nossa cultura e das influências estéticas e emocionais do sítio que nos fez crescer. Como tal, e mesmo já vivendo no Japão quase há tantos anos como os que vivi em Portugal, em grande parte do meu trabalho tenho que admitir que possuo uma visão bastante ocidental, apesar de tudo. Quero dizer que, mesmo nas minhas peças de uso utilitário, a componente artesanal e tecnologia de materiais, bem como a visão filosófica que os japoneses têm relativamente aos materiais usados na cerâmica, apesar de ser importante, não toma no meu caso um papel relevante ou fundamental. De uma maneira simplista diria que os japoneses vêem qualquer que sejam as ‘arts and crafts’ no sentido “matéria-forma-estética” e o ocidente no sentido “estética-forma-matéria”. O shintoísmo – religião primordial no Japão – tem muito a ver com este fenómeno.

É importante a técnica na feitura de cerâmicas?
Sendo a cerâmica tão vasta e complexa em termos de técnicas, materiais e possibilidades desses minerais serem transformados em algo pela mão do homem, artista ou artesão, acabei por perceber que não seria nunca um potter ou oleiro. Isso no sentido em que a busca de técnicas para conseguir milhares de efeitos derivados de diferentes barros, cores ou certos resultados nas queimas consome por assim dizer toda a energia e tempo disponível na vida inteira de um ceramista. Aperfeiçoar técnicas exaustivamente a todos esses níveis nunca foi no meu trabalho o mais importante. Na realidade, a busca na cerâmica, para mim, é mais centrada em encontrar uma verdade, uma expressão própria e inerente quase que universal em qualquer material, como também a madeira terá ou o metal e, por assim dizer, todos os materiais. Então consegui ultrapassar finalmente o factor ”os materiais”. Ou seja, o que acontece no meu trabalho – muitas vezes até no mais ”utilitário” – é quase um paradoxo. Na realidade os materiais são tão essenciais quanto pouca relevância têm. Pode ser um qualquer, mesmo plástico… apenas emergem, este ou aquele, pela necessidade de encontrar uma mais perfeita composição, cor, equilíbrio ou expressão.

A cerâmica japonesa é altamente apreciada pelos japoneses e, por ser utilitária, não deixa de ser menos artística. Esta atitude e visão contradiz de certo modo aquele paradigma ocidental que diz que a arte, para o ser, não pode ter uma utilidade?
Esta questão é complexa e só pode ser vista à luz de um conceito de beleza muito próprio e inato aos japoneses. Na realidade até na cerimónia do chá, que é onde se atinge o auge deste conceito, por estranho que pareça, ia buscar tigelas com várias outras funções e objectos que não eram feitos por japoneses. Muitas tigelas e escolas de chá usaram e apreciaram tigelas e utensílios até de diferentes eras na história, encontrados na China e Coreia. Isto apenas prova que não são as técnicas ou tradições de um artesanato japonês, e o seu aperfeiçoamento ate à exaustão que podem levar a que um objecto seja tido como de grande valor artístico para satisfazer o conceito de beleza nos Japoneses. A existência do conceito wabi sabi, ou os três iis, imperfeito, impermanente, incompleto, derivado de ensinamentos budistas e associado a outras influências shintoístas como a assimetria, simplicidade, austeridade e sentido de economia de meios na concepção dos objectos e uso de imagem, cria uma sensação de intimidade profunda com a natureza. E é assim que esses objectos, de uma ingenuidade íntegra, criam um muito particular conceito de estética, pelo que objectos de uso diário, podem também ser elevados por tal, ao mais alto sentido artístico.

Além do barro, que outros materiais utiliza para as suas peças? Considera-se pioneira na utilização dos diversos materiais e na sua combinação?
Há muitos artistas que combinam materiais, mas sim cada um encontra o seu caminho e expressão e nesse sentido todo o artista é pioneiro em algo. Uso muito o gesso, que é considerado um material menos nobre na cerâmica e escultura, pelas suas características de pouca durabilidade, mas que para mim é um material rico e infinito de possibilidades técnicas e expressivas. Também uso metal e madeira e vidro fundido, não uso vidro soprado, esse só muito esporadicamente. Combino, para além disso, técnicas de gravura e serigrafia em todos esses materiais, sejam essas impressões feitas depois cozidas a alta temperatura ou não.

Como é a vida cultural no Japão e como se consegue expor em galerias no Japão?
Acho como um pouco em todo lado, ou se entra num círculo de galerias comerciais, depois de se apresentar ou ser apresentado, que fazem contratos com os artistas e os representam, ou se apresenta o trabalho a galerias para exposições esporádicas e as que gostam convidam para expor. No entanto, no Japão há uma grande quantidade de galerias que são alugadas e artistas que querem estar independentes de horários e restrições de vária índole por parte das galerias de convite, acabam por uma ou duas vezes por ano alugar e pagar as suas próprias galerias. No entanto, todas as vendas são na mesma divididas pelo artista e galerista, independentemente de serem ou não alugadas pelos artistas. No caso de trabalho mais artesanal e funcional há uma grande variedade de lojas/galerias que vendem à comissão fazendo exposição individual por uma semana ou duas e que depois têm sempre algum stock em exposição permanente na loja de trabalhos dos artistas que vão expondo ao longo do ano. Mas estas embora sejam em maior número são no fundo lojas mais dedicadas a peças de artesanato e uso mais comum, pois faz parte da vida quotidiana dos japoneses usarem louça feita à mão, por razões de tradição, noção de conforto, noções de estética, etc . Há depois galerias , no mundo da cultura à volta da cerimónia do chá, que são bastante estanques do resto das galerias de arte e mesmo artesanato. Todos os instrumentos usados na cerimónia do chá são tidos como peças fundamentais de todo um ritual e filosofia onde a tigela de chá, por exemplo, é mais um item, a par de chaleira em metal, colheres em bambu, instrumentos de queimar incenso ou preparar cinzas para ferver a água etc. etc. A tigela de chá em cerâmica na cerimónia do chá não é tida como artesanato, terá de ser sem dúvida um objecto de contemplação já elevado a um outro nível a que o artesanato por si só não satisfaz, mais perto de um objecto de arte, que tem tanto valor artístico por si só como a capacidade de criar um ambiente ou um espaço emocional, mais perto de um conceito existente na escultura e mesmo em muita da pintura.

Continua ligada a Macau. Por quê?
Em Macau continuam amigos queridos e, às vezes sinto, que existe também um pouco de Portugal aqui à mão de semear. Para além disso encontrei Macau numa fase importante de mudança da minha vida e, como tal, voltar, ver as diferenças e, se puder, fazer algo por Macau com alguma exposição ou algum workshop em que possa ajudar com novos conhecimentos e ideias estará sempre nos meus planos e será sempre um prazer.

Mostras individuais

Casa de Portugal, MACAU
Galeria ESPRIT NOVEAU, OKAYAMA
Galeria MARONIE, KYOTO
Galeria AKANE, KYOTO
TAKASHIMAYA DEP. STORE, KYOTO
Galeria NISHIKAWA, KYOTO
Galeria HAKU, OSAKA
Museu de Arte de Macau, MACAU
INAX Gallery, TOKYO
Galeria KITANOZAKA,KOBE
Galeria RERUN, TAKARAZUKA
Galeria JIKU22, KAWANISHI
Galeria BONTON, KOBE,
Galeria YUYUBON,KYOTO
Albergue SCM, MACAU

Exposições Colectivas

OPEN AIR CLAY WORK IN KYOTO ’94
1a. BIENAL DE MACAU, MACAU, YAMAGAZAKI
WAVE*WAVE SHIGARAKI
TACHIBANA gallery,TOKYO
2 ARTITS SHOW, SpaceTRY, TOKYO
SELECTED ITEMS, SpaceTRY, TOKYO
2 ARTISTS SHOW, Embaixada de Portugal , TOKYO
OSAKA DAIMARU Dep. Store, OSAKA
Galeria SUKI, NAGOYA
INAX gallery, TOKONAME
galeria UTSUWAKAN, KYOTO
NIKKI galeria SATSU , TOKYO
galeria BERTIN POIRE, PARIS
galeria KITANOZAKA, KOBE
galeria CLAUDIA BOLLAG, SUIÇA
Espaço GYRE, Omotesando, TOKYO

Prémios e concursos

1a. Exposição de artistas do Porto. Prémio de têxteis..
Bienal Internacional de Arte de Cerveira, Portugal
Prémio na Exposição de Artesanato da Asahi ’94, Japão
Prémio SHINCHIYUMEIKAI,MIHO MUSEUM, SHIGARAKI,1999
3/4 PORCELAINE IZUSHI TRIENAL, IZUSHI
52 FAENZA CONTEMPORARY CERAMIC ART COMPETITION, ITALIA
2000/2, 5/6MINO INTERNATIONAL CERAMIC COMPETITION,JAPAN
Medalha de Bronze2004, 7MINO INTERNATIONAL CERAMIC COMPETITION
2008, ANDENNE INT.CERAMIC BIENNAL, BELGIQUE

Exposição e Workshop em Novembro

Kristina Mar, nome artístico de Marta Cristina Carvalho, apresenta a 3 de Novembro, na Fundação Rui Cunha, uma exposição do seu trabalho, pelas 18h30. “Ceramic for Life” é o nome da exposição, que estará patente até 10 de Novembro. Além disso, Kristina Mar dá ainda um workshop de técnica ”Kintsugi”, a arte japonesa de emendar e restaurar objectos com laca natural e ouro ou prata. O workshop terá lugar no Centro de Design de Macau nos dias 7 e 8 de Novembro, das 16h às 20h e das 16h às 19h, respectivamente. Todos os materiais estão incluídos, devendo os participantes levar uma peça quebrada, ou apenas para retocar ou alterar visualmente, em cerâmica, vidro ou madeira. Há ainda tempo para uma apresentação sobre a técnica e aplicações desta por novos designers e artistas contemporâneos, no sábado, pelo que o workshop será direccionado no sentido de incentivar novas aplicações desta técnica de mais de 400 anos, personalizando assim, cada objecto restaurado. As inscrições podem ser feitas através de www.facebook.com/macaudesigncentre ou por email para kristinamar8@mac.com, ou telefone 28520335 / 66534838. O curso tem um número limitado de participantes pelo que será dada prioridade pela ordem de inscrição.

30 Out 2015

Rita Santos, Conselheira das Comunidades Portuguesas

Quais os planos de acção do Conselho das Comunidades depois de tomar posse?
É preciso notar que estamos a trabalhar para as comunidades portuguesas desde 2003. Apesar de, muitas vezes, os nossos trabalhos não serem publicitados nos meios de comunicação social, o mais importante é resolver os problemas que existem, desde o contacto directo com os diferentes serviços públicos de Portugal até ao Consulado Geral de Portugal aqui em Macau, entidade com a qual temos excelentes relações. Queremos resolver casos concretos do dia-a-dia, nomeadamente na resolução de renovação dos passaportes, cartões de cidadão, jovens que queiram estudar em Portugal, casos que precisam de ajuda para a integração nas universidades portuguesas. Até agora, o ponto mais importante que o Conselho tem feito é no sector dos aposentados. Durante a fase de transição da soberania – que eu acompanhei – muitos aposentados optaram por receber as suas pensões na Caixa Geral de Aposentações (CGA) e nós temos uma óptima relação com a CGA e, em coordenação com o Consulado daqui, estamos a ajudar. Também damos apoio aos residentes locais que estão interessados em encontrar parceiros económicos em Portugal e vice-versa, aliás temos um sócio que foi em 2012 a Portugal e está a apostar em várias áreas de restauração e hotelaria. Vamos continuar a dar apoios consulares, parcerias económicas e também do ensino da Língua Portuguesa.

O Português é uma aposta deste novo Conselho?
Estamos a acompanhar a ligação entre Macau e Xangai para se conseguir visitar a escola onde haverá o curso de Ensino de Língua Portuguesa através do Instituto Português do Oriente (IPOR). Na semana passada, estivemos em Jiangmen numa grande universidade com mais de 200 mil estudantes, que também pretende fazer a cooperação do ensino da Língua Portuguesa. A Língua Portuguesa, a manutenção da mesma e o estreitamento de laços com Portugal em termos de cultura e também de relações económicas são prioridades. Por outro lado, queremos elevar a eficiência do trabalho do Consulado, solicitando a Portugal o reforço nos recursos humanos e materiais para o Consulado, para que este possa dar resposta à longa lista de espera de renovação dos documentos pessoais.

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Retrocedendo à campanha. A sua participação na lista foi muito contestada…
Gostaria de frisar que, nos termos da lei, para ter três candidatos é preciso que um deles seja do sexo feminino. É por isso que eu estou na lista, não tirei lugar a ninguém, é preciso ser claro neste aspecto. Falei pessoalmente ao Fernando Gomes, que é um amigo meu e que se prontificou a ser o nosso chefe do gabinete após as eleições. É por imposição legal que eu faço parte da lista e o Fernando sabia disso.

Mostrou-se injustiçada na altura? Continua?
Não me sinto triste porque quem me conhece sabe que eu gosto de ajudar os outros e gosto de trabalhar, sou pragmática. Quando falam de mim, tento esclarecer juntamente com a pessoa que possa estar descontente comigo. O Fernando Gomes é meu amigo, continuamos a ser. Ele já tinha manifestado a vontade de não continuar a trabalhar como conselheiro. É uma pessoa muito correcta e, ao contrário do que se pensa, tem-nos ajudado muito. Temos um grupo de troca de ideias. Todos os dias falamos. Aproveito para esclarecer publicamente que internamente sempre fomos amigos, mesmo que cá para fora se possa pensar que a minha participação na lista tenha tirado o lugar a alguém. Era preciso uma mulher e estando eu aposentada estou mais à vontade para aceitar este cargo, ou de aparecer a minha cara.

Era de sua vontade ser Conselheira?
Não. Já fui convidada e até cheguei a ser Conselheira nomeada, mas desisti na altura. Agora como estou livre e como há pessoas que querem que esteja na lista aceitei. Mesmo que não aparecesse a minha cara, eu trabalho. Desde 1992 que tenho estado a dar a minha contribuição para todos os tipos de eleições, sejam legislativas, das comunidades… todas elas. Estou contente pela nossa vitória.

Um dos aspectos polémicos da campanha foi ainda a angariação de votos. Como comenta isso?
Como foi a primeira vez que foi preciso estar recenseado no Consulado, durante a campanha eleitoral, nos termos da lei, distribuímos panfletos, cerca de 30 mil. Por quê? Porque quisemos mostrar à população que estávamos no Conselho das Comunidades Portuguesas para servir os cidadãos portugueses de Macau, para servir, portanto, a população. Por isso é que fizemos um tipo de campanha junto da população, também através dos nossos contactos dos sócios da Associação dos Trabalhadores da Função Pública de Macau (ATFPM), no Facebook e no WeChat. É preciso perceber, e nós sabemos isso, que muitos dos cidadãos portugueses não dominam a Língua Portuguesa, por isso é que fizemos essa sensibilização.

O resultado foi o que esperavam?
Muitos cidadãos reconhecem o trabalho feito e por isso é que no domingo [das eleições] foram votar. Muitos, mais de mil, não foram votar mas mandaram mensagem ou telefonaram. Não foi grave, a única coisa que interessa é a mensagem que o grupo de Conselheiros passa e o trabalho que faz.

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Sobre a candidatura de Pereira Coutinho à Assembleia da República. Poucos acreditavam que acontecesse. Como comenta esta situação?
Preparei a candidatura do Coutinho um mês antes, com os contactos e em Lisboa. Desde que apareceu num jornal local que eu iria ser candidata à AR que começamos a pensar. Foi o jornal que nos alertou e começámos a trabalhar. Fui pesquisando. Isto não é uma birra de Pereira Coutinho, é uma chamada de atenção para se dar atenção, para Portugal dar atenção a Macau e às comunidades portugueses. Estamos aqui para ajudar Portugal, mas Portugal também tem de nos ajudar. Não foi birra dele, foi levar o nome de Macau às eleições.

Acha que a candidatura à AR é uma traição, como já acusaram, por parte do deputado?
Penso que alguns, não todos, membros da comunidade portuguesa não conhecem muito bem José Pereira Coutinho. Estamos a trabalhar diariamente com ele, sabemos como é que ele luta, luta por todos, independentemente se são portugueses, tailandeses, chineses ou filipinos. Desde que residam em Macau está tudo bem. Em Macau ataca-se muito em termos pessoais, como em Portugal nos debates eleitorais. Os ataques pessoais não são importantes, não resolvem problemas, que é o que se pretende. Quando olhamos para os jornais, ou vemos a televisão em Macau só vejo ataques pessoais. Isto é injusto, muito injusto.

Foi a Rita que escolheu o partido? Vocês nunca mostraram qualquer opção política…
Sim, fui eu que pesquisei na internet e descobri o partido. Gostei logo do nome e depois li informações sobre o partido e gostei da ideologia. Eles não apresentam a sua ideia com base na crítica aos outros, como a maioria faz. Liguei ao Coutinho e disse-lhe que tinha o partido escolhido. Sim damo-nos bem com o Partido Socialista (PS), o Partido Social Democrata (PSD), Centro Democrático Social – Partido Popular (CDS) e não quisemos entrar em conflito com nenhum, porque o mais importante é ser um deputado elegível. Esse era a único objectivo.

Colocar Macau no mapa eleitoral?
Claro. Macau foi muito esquecido ao longo do tempo, mesmo depois do estabelecimento da RAEM. Portugal só se lembra de Macau de quatro em quatro anos. Quantos pedidos das comunidades não foram ouvidos? Às vezes no dia 10 de Junho quase que não aparece ninguém. É uma vergonha. Já estamos no mapa. Assim que surgiu o nome do Coutinho como candidato, de imediato fomos contactados por vários partidos portugueses. Mas, agora é preciso que Macau seja acarinhado por Portugal. Temos uma comunidade forte, independentemente do seu partido, temos aqui esta comunidade e temos sido ignorados como peso político. Portugal tem que apostar na política internacional. Somos das comunidades que mais faz, seja em eventos como a Lusofonia, ou o São João, seja no que for. Os portugueses de Macau muito têm feito por Portugal e, infelizmente, Portugal esquece-se a 100% de Macau. Das suas pessoas, dos jornais, por exemplo, das associações. Por exemplo, são os jornalistas, os jornais portugueses, que metem o nome de Portugal aqui, nos seus artigos, textos que muitas vezes são traduzidos para a China continental. O que é que Portugal faz? Nada. Portugal tem de dar mas possibilidades, mais apoio.

Como agente social tem-se dedicado muito às questões das mulheres. O que falta a Macau? O que é preciso fazer?
Como presidente da Assembleia Geral da ATFPM vou sempre continuar activa nesses assuntos sociais. Com o número elevado de sócios do género feminino que temos, e também com a Comissão de jovens femininas, fazemos de forma periódica várias reuniões, muitas vezes sobre a questão de maus tratos e de violência doméstica. É preciso acompanhar estas histórias de mulheres vítimas de violência, é preciso saber como é que elas estão. Vamos e vou continuar a visitar as famílias, temos um calendário até ao final do ano para arrecadar cada vez mais provas e casos para serem transmitidos ao Governo.

Mas é preciso mudar…
Queremos sensibilizar o Governo para que não continue a perder tempo e tome as decisões que são precisas. O Governo está a ser mais papista que o Papa, o mais importante é colocar a lei de tal forma que seja prática e que dê sinal de amedrontar os agressores para não continuarem a cometer este crime.

Pereira Coutinho explicou-lhe o que fará se for eleito?
Confesso que não. Ele admitiu que tinha um plano mas não me explicou qual. Ele é jurista, sabe como resolver.

Poderá ele pedir suspensão de mandato da AL?
Nunca me disse isso, nunca falou comigo. Mas o objectivo está concluído, meter Macau no mapa mundial.

Num cenário de novas eleições para a Assembleia Legislativa apresentará candidatura?
Não fecho a porta a uma candidatura à AL, mas vamos ver o evoluir das coisas. Gosto sempre de trabalhar atrás do palco, tenho estado sempre por detrás do palco. Portanto vou continuar a fazer isso até lá. Se reunir condições, se tiver apoios suficientes avanço [com a candidatura].

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Que prioridades terá como deputada, em caso de eleição?
Ainda é cedo para falar sobre isso. Acho que devo esperar pelas eleições legislativas e ver como corre. Estamos empenhados agora nisso, depois logo se vê.

Com as eleições legislativas, acha que o Cônsul-geral, Vítor Sereno, poderá ter de abandonar o cargo?
Espero que não, sinceramente. É alguém que se tem mostrado muito disponível para trabalhar, é dado às pessoas e aos seus problemas. É sensível. Percebe quando há coisas erradas e mostra-se disponível para conversar sobre elas e resolvê-las.

Sobre o Fórum de Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa, do qual era Secretária, como avalia o trabalho feito até agora?
Bem, não vou criticar a minha sucessora, por ser claramente injusto. Prometi ao Governo de Macau que irei, dentro das minhas capacidades e contactos, continuar a dar apoio no sentido de concretização do que foi traçado para o Fórum Macau. Portanto sempre que posso faço isso.

Echo Chan foi acusada de ser pouco comunicativa. Concorda?
Vamos dar-lhe tempo. Eu sou um ser social, conheço muita gente, sempre conheci e gosto disso. Trabalhei 12 anos para conseguir ter a rede de contactos, vamos dar-lhe tempo, ela lá chegará.

18 Set 2015

Shee Vá, médico gastroenterologista

O médico gastroenterologista Shee Vá considera que o diálogo entre médico e paciente é a solução para uma melhoria dos cuidados de saúde e diz que, muitas vezes, os problemas na saúde chegam por causa de desinformações. O médico alerta ainda para o facto de a Ásia estar a ver crescer os números de doentes de Crohn

Comecemos pela performance do Hospital S. Januário. A reputação desta instituição hospitalar tem vindo a ser afectada por uma série de casos de alegado erro de diagnóstico, entre outros. Qual é a sua opinião sobre isto?
Em termos de erro de diagnóstico, as coisas devem ser vistas de uma perspectiva de inserção social. Com isto quero dizer que a informação que o público tem e a informação médico-científica, às vezes, não é a mesma. Comparativamente com Portugal, onde trabalhei durante mais tempo, o que vejo é que em Macau existe muita desinformação. Nem a população tem educação suficiente para compreender o que se passa, nem os médicos por vezes têm tempo para informar os doentes. E estes vêm, muitas vezes, com determinadas exigências.

Como é que isso se pode resolver?
Acho que é preciso encontrar o equilíbrio entre as duas coisas: entre a exigência que os doentes têm relativamente ao hospital e os serviços que o hospital tem para lhes oferecer. Precisamente por causa disso é que há exames de diagnóstico que são feitos e são completamente desnecessários. Em Medicina, podem fazer-se exames complementares, mas estes, normalmente, não indicam aquilo que os doentes têm, clinicamente falando. Pode é descobrir-se outras coisas, mas que não são relevantes o suficiente em relação à razão pela qual o doente foi ao hospital. Conclusão: vamos ter um segundo diagnóstico que não seria o inicial, o que pode ser entendido como erro de diagnóstico. A segunda situação que se põe é perceber se o hospital tem capacidade para lidar com todos estes doentes. Na minha opinião, acho que com diálogo, tudo se consegue. Se nós, como profissionais de saúde, e a população conseguirmos chegar ao diálogo, ficamos no mesmo diapasão, mas isso não acontece. Isto porque a desinformação gera muitos dos problemas relativos à saúde, que pode acontecer aqui no hospital e noutras instituições de saúde.

O S. Januário regista várias centenas de pacientes por dia em termos gerais, mas muitos residentes dizem continuar a preferir a Medicina Chinesa à Ocidental. Acha que ainda há uma certa confusão na forma como as duas são percepcionadas?
Confusão não acho que haja. A ideia geral é que todos os doentes procuram a Medicina Oriental primeiro e só depois a Ocidental. Quase todos mesmo.

Para todo o tipo de doenças?
Para uma gripe tratam-se com os chás, mas também para doenças mais graves. Tem que se perceber – e isto faz parte da cultura chinesa – que os pacientes se sentem doentes pelos sintomas. Isto é, quando não têm sintomas, não sentem que estão doentes e recorrem à Medicina Chinesa para tratar de sintomas e não de doenças. A Medicina Oriental é orientada para uma medicina de sintomatologia e tratamentos deste tipo, que é onde pode haver falhas no estabelecimento da ponte entre a Oriental e a Ocidental, na qual interessa mais tratar a doença e não o sintoma. Tudo isto pode gerar conflitos na relação entre médico e paciente, pelo que estas coisas têm que ser entendidas como diferentes funções do médico, que tem que ter um horizonte aberto para poder compreender este tipo de coisas.Shee Vá

É realmente possível juntar as duas medicinas?
Sim, tem havido avanços nesse sentido, até porque já os Serviços de Saúde têm médicos de Medicina Oriental em funções, nomeadamente sessões de Acupunctura a funcionar nos centros de saúde. Mesmo na área de Oncologia, usa-se muito a Medicina Tradicional, porque algumas pessoas confiam mais neste tipo de tratamentos, por não terem tantos efeitos colaterais. Até em Portugal estamos mais abertos a esta situação.

É médico especialista da área da Gastroenterologia e é também auxiliar activo, enquanto profissional de saúde, da Associação Mútua dos Pacientes de Crohn e Colite Ulcerosa. Qual é o objectivo desta associação?
Esta é uma associação criada de doentes para doentes e que tem por fim o apoio mútuo entre os pacientes de Doenças Inflamatórias do Intestino. É uma doença relativamente nova em Macau e em todo o Pacífico. Há 30 anos, praticamente não existia doença inflamatória do intestino nesta zona do globo e começaram a aparecer um ou outro caso apenas. A incidência e prevalência desta doença na Ásia-Pacífico eram muito reduzidas e, desde há 20 anos, cresceram em flecha. Posso dizer que não existem estatísticas relativas a Macau, mas em Hong Kong triplicaram os casos. Os últimos números apontam para a existência de mais de 2300 doentes, que é muito.

Qual é o perigo deste aumento?
O seu surgimento na Ásia incide sobre pessoas mais novas do que no Ocidente. Em Portugal, costuma acontecer na faixa dos 20 aos 30 anos e aqui estamos a ter cada vez mais casos em adolescentes e em situações mais complicadas.

Que tipo de complicações mais graves podem surgir nestes pacientes?
Os abcessos e as fístulas no sistema digestivo, que são de muito difícil tratamento. O que acontece nos adolescentes é que muitas vezes não se têm em conta as doenças abdominais, por exemplo, esse tipo de patologia. Isto faz com que o período de diagnóstico seja mais demorado, consequentemente piorando o estado do doente. A referida Associação serve então para facilitar a passagem de informação entre os doentes adolescentes, procurar resolver e integrar estes jovens, que muitas vezes têm que faltar ao trabalho ou às aulas, o que afecta muito o seu dia-a-dia. Uma vez que são adolescentes, os pais também têm um papel importante de responsabilização, que também é discutido na Associação.

Tem conhecimento de estudos e investigações que estejam a ser feitos em Macau sobre estas doenças?
Que eu tenha conhecimento, não.

E os serviços de saúde locais, como o S. Januário, têm capacidade para acolher e tratar estes doentes?
Pelo menos da doença inflamatória do intestino, sim. Precisamente porque houve este aparecimento em flecha e se tem chamado muito a atenção para esta zona do globo. Os médicos estão cientes desta patologia e, estando cientes, o diagnóstico é feito de forma mais eficaz, tal como o tratamento.

Da literatura, A primeira obra de ficção

Apresentou esta semana o livro “Uma Ponte para a China”. É a sua primeira obra?
Este é o primeiro livro. Comecei a escrevê-lo quando ainda estava em Portugal e fala sobre a cultura chinesa, principalmente porque comecei a aprender Mandarim. Trata-te de uma homenagem às minhas origens e aos meus professores.

Que conclusões tirou depois do curso de Mandarim?
Que a língua é muito difícil, principalmente porque – e esta é uma visão médica – a sua estrutura é diferente da portuguesa. Tendo isso em conta, é complicado para uma mente ocidental integrar-se no pensamento oriental. Como tenho genética chinesa, pode ter-me sido mais fácil e dediquei-me um bocado mais ao estudo, mas acredito que é preciso muita persistência para se aprender. Quis escrever o livro para demonstrar o quão difícil é aprender a língua e as formas de ultrapassar isso mesmo.

Que língua se falava quando era pequeno?
Os meus pais falavam Cantonês, mas toda a minha educação e mentalidade foi inteiramente ocidental. O que eles me ensinaram, ficou memorizado, mas era um analfabeto em Chinês porque não sabia ler nem escrever. O conhecimento ajudou-me, mas não foi determinante. Comecei a escrever o livro então nestes termos e a explicar como é que os ensinamentos dos meus professores me fizeram a tal ponte para a China, dos países lusófonos.

Como é que o resto do livro se processa?
Depois da aprendizagem da língua, contei histórias de personagens que criei para estabelecer a tal ponte para Macau, que achei importante, e depois de Macau para a China. Para essa passagem, arranjei um casal em que ele é chinês e ela portuguesa. Em seguida, com provérbios e histórias chinesas, abri um bocado a janela para a China.shee va

Em termos de origem… As suas raízes estão na China ou em Macau especificamente?
Os meus pais são da região de Cantão, fui lá visitar a minha família. A minha mulher é aqui de Macau e por isso posso dizer que me sinto um bocadinho chinês, mais do que era há 40 ou 50 anos.

A sua ligação a Macau começou com a Medicina?
Sim. Vim para Macau a primeira vez nos anos 80, através de um colega natural daqui. Na altura, quando se proporcionou, viemos trabalhar depois de acabarmos o curso de Medicina. Foi aqui que conheci a minha mulher e nasceu o meu primeiro filho, portanto logo aí fui criando raízes. No entanto, sinto que há uma enorme diferença entre a Macau dos anos 80 e de hoje em dia.

Que principais diferenças aponta?
São enormes, nomeadamente em termos sociológicos. Apesar de Macau ser um território pequeno, onde várias comunidades parecem conviver, cheguei à conclusão de que isso não acontece realmente. A imagem que tenho de Macau e das comunidades é que todas são rodas dentadas de uma máquina a funcionar. Como tal, funcionam porque ambas vão girando, quase que em paralelo, mas sem intersecções. Contudo, há intersecções, sim, que são os macaenses. Há outras diferenças, mas a que mais sinto é, sem dúvida, nas comunidades. Hoje em dia, com os casinos, há necessidade de mais recursos humanos e vêem-se nacionalidades que quase não existiam cá, como da Indonésia ou Filipinas. Chamaria à comunidade uma mistura, mas é mais uma variedade.

Como é que o bichinho da escrita cresceu?
Talvez por influência dos mestres. No livro não fiz quase referência à minha profissão de médico, até porque não tem nada que ver com Medicina. Existe a ideia – e foi-me transmitida pelos meus professores – de que, e cito o médico Abel Salazar, “O médico que só sabe Medicina, nem Medicina sabe”. Isto quer dizer que, como homens da Ciência, também devíamos enveredar por outros caminhos. Talvez tenha sido isso, até porque o professor Mário Quina, que foi um dos meus mestres, foi campeão olímpico de Vela além de exercer Medicina. Posso dizer que sou de uma geração adulta envelhecida que se habituou a olhar para os doentes e inspeccionar e descrever do doente e da doença sofrida. Este armamento descritivo perdeu-se com a introdução das novas tecnologias, onde há análises para tudo. Os médicos escritores são tradição em Portugal, como temos Miguel Torga, Lobo Antunes, Fernando Namora… Vêm todos desta escola. Provavelmente absorvi algo desta academia e quando surgiu a oportunidade de divulgar a cultura chinesa para o mundo lusófono – acho que a China entrou agora para o mundo –, aceitei a ideia. Quis enveredar por este campo para que as pessoas percebam os vários aspectos do que é ser chinês.

E vêm mais livros a seguir?
Sim, já tenho algumas coisas escritas. Provavelmente, serão também para publicar, só ainda não sei quando. É ainda preciso fazer a revisão, mas estão várias coisas escritas.

Serão em que âmbito?
A maioria baseada na cultura chinesa e de ficção. O próximo penso que será mesmo um romance e a seguir tenho já muita coisa escrita sobre Ópera, outra das minhas grandes paixões. Resolvi escrever um livro sobre as óperas que Macau já vi durante todos estes anos do Festival Internacional de Música, desde 87 até agora. A ideia é divulgar a Ópera enquanto género musical, dar os enredos e aquilo a que as pessoas devem ouvir e dar atenção. Mas como não podia deixar de ser, fiz um guia de Ópera aliado a um romance, onde um personagem vai relatar a sua experiência em relação às óperas.

11 Set 2015

Ronald Lou, líder do grupo New Power of Melco Crown: “Trabalhadores têm menos coragem de sair à rua”

Trabalha há mais de dez anos no sector Jogo e passou por várias operadoras. Ronald Lou lança críticas a várias operadoras, nomeadamente no que aos salários diz respeito, e diz ainda que a não proibição total de tabaco nos casinos pode continuar a gerar conflitos entre jogadores e funcionários

Está a trabalhar como supervisor de mesas de jogo e é director de um novo grupo de funcionários, o “New Power of Melco Crown”. Por que decidiu criar esta organização?
Em muitas operadoras de Jogo já existem “sindicatos”, mas a Melco Crown ainda não tinha. Espero, com isto, ajudar os meus colegas a organizar um grupo para que seja uma ponte de comunicação entre a empresa e os funcionários. O grupo começou a ser pensado há meio ano e estamos agora no processo de oficializar a organização.

Até ao momento, quanto membros é que o grupo tem?  Como é que os funcionários vêem esta organização?
Tem mais de cem membros e existe uma grande fatia de funcionários que não têm vontade em participar no grupo, uma vez que a operadora tem 12 mil funcionários. Lamento que o grupo não seja ainda tão conhecido, mas há mais pessoas que nos conhecem e que querem ser membros.

Já começaram a tomar acções?
No final do mês passado entregámos uma carta ao departamento de recursos humanos da operadora, queixando-nos da questão da posição para estagiários denominada “high dealer” nos casinos.

Essa posição fica entre croupiers e supervisor de mesas e existem cerca de mil funcionários nessa posição, que não foram promovidos como a empresa prometeu, certo? Como está essa situação?
A empresa respondeu-nos, mas de forma muito oficial, e não mostrou uma resolução muito concreta. Vários high dealer já foram promovidos, mas a operadora mantém a sua forma de gestão e é difícil conseguirmos o que pedimos. Se houver vontade de fazer mais queixas sobre este assunto da parte dos funcionários, vamos continuar a agir.

Já existem diversas associações de funcionários do Jogo, tais como a Forefront of the Macau Gaming e a Associação de Empregados das Empresas de Jogo de Macau da Federação das Associações de Operários de Macau (FAOM).  Qual é a posição que vão tomar? Existe por exemplo a possibilidade de participarem em manifestações?
Vamos tentar que o objectivo seja servir as classes de trabalhadores mais baixas e tentar ao máximo ajudar os funcionários dos casinos. Não excluímos também integrar ou realizar manifestações, mas depende da situação. Sabemos que o ambiente económico não está tão bom como há dois anos e, na altura, os trabalhadores tinham mais coragem em sair à rua. Agora, têm receio, porque pensam mais em manter o emprego e já não é fácil fazer protestos. Temporariamente. Vamos observar a situação calmamente.

Tem uma relação próxima com o grupo Forefront of the Macau Gaming e a Associação dos Direitos dos Funcionários de Jogo, liderada por Cloee Chao?
Temos muitas oportunidades de cooperação, porque temos o mesmo objectivo: trabalhar em prol dos funcionários de Jogo. ronald lou melco

Há quanto tempo trabalha nesta área?
Trabalho na área de Jogo já há mais de dez anos. Comecei por trabalhar como croupier no casino Lisboa, mudei uma vez para o do Galaxy e desde há oito anos até ao momento que trabalho como supervisor de mesas na Melco Crown. Posso dizer que passei por várias eras do sector do Jogo: desde ainda não ser permitido licenças, até à abertura do mercado, passando pela crise económica em 2008, até hoje. Tenho observado a mudança dos casinos. Portanto, penso fazer alguma coisa em prol deste sector, contribuindo para a indústria e para os funcionários.

Está agora na Melco Crown, passou por outras operadoras, como avalia a situação da sua operadora, comparando com outras?
Cada operadora tem as suas características. Por exemplo, o bónus de Verão – muitas operadoras oferecem um bónus equivalente ao salário mensal aos funcionários, o que faz com que os trabalhadores possam ter 14 meses de remuneração por ano. No entanto, a Melco Crown é muito especial, criou um plano denominado “Ovo de Ouro” e a empresa não oferece nenhum bónus de Verão até 2017, ano em que os funcionários podem receber os bónus de três anos de uma só vez. Na realidade, é uma medida para manter os funcionários, porque depois de 2017 não vão abrir mais empreendimentos de Jogo e, na altura, os recursos humanos vão ser estáveis e não haverá grandes mudanças. Além disso,  a Melco fala sempre em determinadas percentagens de promoção de funcionários, mas de facto isto são palavras vazias, porque não consegue fazê-lo. Sobretudo quando há grandes saídas de funcionários. Portanto, o meu sentimento de pertença à empresa não é assim tão grande, nem o de outros colegas, como é do meu conhecimento.

Consegue falar das condições de outras operadoras ?
Por exemplo, a Wynn tem sucesso nas regalias dadas aos funcionários, portanto o número de perda de mão-de-obra é o menor. Como eles têm bónus de Verão todos anos, os 13 meses da remuneração ficam escritos em todos os contratos de trabalho, além de que, como já foi anunciado, vão ser distribuídas mil quotas em acções para os trabalhadores. A operadora do Lisboa [SJM] e da Galaxy são mais práticas: por exemplo, os funcionários conseguem subir de posição depois de um ano de estágio, algo que pode demorar três a cinco anos na Melco Crown. Mas não foi criada nenhuma posição instável como a de high dealer.

As receitas de Jogo caíram para menos de 20 mil milhões de patacas. A Galaxy foi a primeira empresa que anunciou que não iria aumentar os salários do pessoal superior da administração e até o Governo precisou de tomar medidas de austeridades. Acha que as operadoras de Jogo estão a sentir pressões?
Para dizer francamente, é verdade que existe pressão. Mas temos de ver que antigamente era muito fácil ganhar grandes quantias de dinheiro, basta olhar para o director-executivo da Galaxy Macau, Francis Liu, que conseguiu subir na lista de pessoas mais ricas. Agora, as operadoras estão apenas a ganhar menos, mas já estão a tomar estas medidas, por quê? Será que está a perder dinheiro? Não. Acho que só querem criar uma imagem de fachada para os trabalhadores, a dizer que as empresas não estão boas e inclusive os cargos superiores vão ter os salários congelados. Isto para que se crie um ambiente que justifique o despedimento dos funcionários. Isso não é verdade e, mesmo que se sofra pressões, não se deve fazer isso.

Mas existem outras opiniões de que se a remuneração dos funcionários de Jogo diminuir, estes também não se podem queixar porque têm ganho um salário alto, comparado com outros sectores…
Não se pode dizer isso. O nível de remuneração dos funcionários de Jogo, por exemplo o dos croupiers nunca aumentou. Há 20 anos, os croupiers ganhavam 20 mil patacas por mês, enquanto nos outros trabalhos só se ganhavam duas a três mil. Actualmente, eles continuam a ganhar 20 mil. Se se fizer as contas à inflação e ao desenvolvimento económico, o salário deveria chegar às 50 mil patacas. De certa maneira, os salários dos funcionários do Jogo estão a ser cortados. O que se mostra de que se ganha muito bem é aparência. Outra coisa é que os outros sectores não trabalham por turnos, não têm de ouvir todos os dias jogadores a entrar em conflito com eles quando perdem dinheiro, não fumam passivamente por causa de clientes. Acham que o dinheiro é ganho por nós sem esforços? Alguém já disse que o salário ganho não chega para as despesas médicas com as doenças, olhe que pode ser verdade.

Quais são as doenças mais comuns que os funcionários de Jogo apanham?
Por exemplo no sistema respiratório, como a rinite alérgica, devido ao ar poluído por tabaco onde trabalhamos durante um longo tempo dentro dos casinos, sem apanhar sol. É horrível. Bem como no estômago, não temos refeições a horas regulares. Insónias… Vi também muitas vezes supervisores a desmaiar quando trabalham.

Concorda então com a medida de proibição total de tabaco nos casinos? 
Concordo absolutamente, mas não posso dizer que todos concordam. Mas pelo menos os da linha frente concordam. Posso contar uma experiência minha: há dez anos, quando trabalhava como croupier, a distância entre mim e o jogador era muito pouca e o jogador estava a fumar e a soprar o fumo de propósito para a minha cara. Mas o supervisor não me permitiu virar a cara, senão poderia levar um raspanete do cliente. Onde está a justiça e o respeito? Ninguém consegue aceitar ser ofendido deste jeito.  
 
Os clientes provenientes da China, comparado com o número antes à queda das receitas, são cada vez menos?
O que observei é que caíram, mas pouco, tanto nas zonas comuns, como nas zonas VIP. Os casinos de Macau ainda dependem muito dos jogadores da China, senão, não ganharíamos nada. 

A renovação das licenças de concessão de Jogo vai ser revista este ano. Viu algumas medidas feitas pelas operadoras de Jogo propositadamente para isso?
Até ao momento não reparei nisso na Melco Crown, aliás ficou por cumprir a questão da promoção dos funcionários, como prometido. Para mim, é muito fácil: fazer o que o slogan da Melco Crown diz: “um facto conquista milhares de palavras”. O que se deve fazer é cumprir as promessas. 

7 Set 2015

Isabel Lopes: “Acredito que a nossa língua, por si só, já está internacionalizada”

Isabel Lopes chegou ao Centro Pedagógico e Científico da Língua Portuguesa e vê no ensino do português em Macau um desafio imperdível. Confirma haver diferenças na aprendizagem da língua por chineses no mundo, sublinhando que há mais motivação na China do que na RAEM. O Acordo Ortográfico, defende, não é “o desastre”, mas também tem defeitos

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]omo é que surgiu a oportunidade de vir para Macau integrar o Centro e dar formação de Português como língua estrangeira?
Convidaram-me para integrar a equipa do Centro Pedagógico e Científico da Língua Portuguesa e aceitei imediatamente, por várias razões. Era, desde logo um desafio irrecusável por ser relevante e importante em termos profissionais. Há muito que estou ligado ao ensino do português como língua não-materna e linguista e tudo isto era um novo desafio, vivenciar um momento histórico, que é o que está a acontecer nesta altura na China, esta procura pelo português.

Em que medida considera essa procura importante, tanto para Macau como para Portugal?
A procura do português na China tem, naturalmente, uma razão funcional e instrumental de mercado, mas não vejo nisso um mal. Obviamente que tem consequências, quando levado a um extremo, mas o conhecimento de uma língua transforma-a a si própria numa expressão de cultura. Como linguista, entendo que a língua não se ensina na sua estrutura apenas, mas também enquanto cultura. Quem fala disto, fala de literatura e de tudo o resto que é expressão.

Mas na China, a questão da cultura fica um pouco aquém, já que não é possível experienciá-la…
Depois de conhecer uma série de instituições de ensino superior na China, de dar formação a professores de português [chineses] que estão na China, tenho vindo a destruir essa ideia, sobretudo porque eles querem também saber questões relacionadas com cultura e vivência do dia-a-dia, não só dos portugueses, mas também dos angolanos e dos brasileiros. Gostam e pedem que falemos de questões relacionadas com a literatura desses países lusófonos. A ideia que se passa não é tão certa como se pensa. Há uma procura pelo português que realmente acontece por razões meramente instrumentais e económicas, mas – e a história prova-o – ao aprender uma língua, nasce muitas vezes a motivação para saber e entender a cultura que lhe está associada. Os professores da China estão, neste momento, também a procurar esses conhecimentos.

Porque é que acha que isto acontece?
Pessoalmente, porque muitos dos professores tiveram uma formação em Portugal e neles há a vontade de conhecer outras culturas lusófonas e isso é nítido. Estivemos recentemente em Xangai e os professores de lá solicitaram-nos informações sobre o que se passa no Brasil, em Angola, até mesmo em termos linguísticos… É muito interessante ver como é que eles bebem essa informação.

Também foi professora de português como língua não-materna na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Quais são as grandes diferenças entre ensinar alunos com as mesmas características, em dois locais distintos?
É muito diferente e essa é uma das reflexões que mais tenho feito. De facto, ensinar português como língua estrangeira em Portugal cria-nos desafios muito diferentes daqueles que cria ensinar o mesmo aqui e na China, onde também há diferenças. Um aprendente de língua materna chinesa que esteja em Portugal está em contexto de imersão, o que não acontece com os alunos da China continental e no primeiro caso, há um ambiente e uma necessidade que não se verifica estando em Xangai ou Pequim, onde o contexto se resume ao tempo da sala de aula.

Considera que a aprendizagem em Macau ou na China é mais difícil do que em Portugal?
A minha experiência diz-me que há, por parte dos alunos, uma atitude diferente perante a língua estando na China ou em Portugal. Não tenho uma resposta final para a pergunta, porque estou cá há pouco tempo e tenho a experiência de Portugal, que era, confesso, cheia de estereótipos. Em Coimbra tive muitos alunos estrangeiros, nomeadamente chineses e revelavam-se diferentes, sobretudo por interagirem mais entre eles e não tanto com outros alunos. Aquele contexto de imersão que eu achava total, afinal não o era, mas sim parcial. A grande diferença é o contexto de imersão, mas a motivação que tenho visto nos alunos que aprendem no continente é notável. É incrível como é que alunos que estão fora do contexto de imersão, conseguem uma proficiência em português absolutamente extraordinária. 21815P2T1

Que papel desempenha a motivação no contexto da aprendizagem?
A motivação é fundamental na aprendizagem das línguas e há uma tradição de estudar na cultura chinesa, pelo que [estes alunos] conseguem saber a estrutura da língua portuguesa na ponta da língua. Acredito até que estes alunos [da China] conseguem atingir níveis mais satisfatórios até do que os que estudam em Macau. A ideia de arranjar um emprego está muito vincada na China e o curso de português em algumas universidades chinesas é mesmo considerado um “Curso de Ouro” por ser o passaporte para um “emprego de Ouro”.

Macau tem vantagens enquanto local de estudo face a cidades da China, por ser um local que junta as culturas portuguesa e chinesa?
Aqui temos um ambiente em que a televisão e os jornais são em português e a língua forma ícones e anda nas ruas, como o património edificado. Isto facilita uma apreensão mais global da língua e da cultura, mas o facto do Português não ser [no ensino secundário] uma língua obrigatória faz alguma diferença.

Há quem defenda que o português pode vir a ser internacionalizado como é o inglês ou como já foi o francês. Concorda?
Acredito que a nossa língua, por si só, já está internacionalizada, com 250 milhões de pessoas a falarem-na no mundo. Tem um capital histórico e simbólico associado em todos os continentes e tem vindo a promover um factor curioso: a China e quem trabalha com a língua portuguesa está a contribuir para essa internacionalização, até em termos do português em termos língua de Ciência. Num dos fóruns em que estivemos recentemente a qualidade das comunicações foi muito elevada e foram feitas em português e versavam sobre isso, por professores chineses de português. O que ali aconteceu foi a internacionalização da língua portuguesa enquanto língua de ciência.

Passou então de um patamar do quotidiano para a Academia…
Exactamente. Acho que a língua portuguesa vai ganhar muito com esta geração de professores chineses que falam em chinês, investigam e desenvolvem teses sobre o português. No nosso portal Ponto de Encontro, organizei uma bibliografia à medida que as coisas vão nascendo e crescendo. Neste momento, temos compiladas 201 referências bibliográficas, grande parte sendo estudos de professores chineses.

Considera que a longo prazo, o português poderá vir a ser uma das principais línguas da Ciência?
Acredito que tem essa capacidade, mas naturalmente o inglês tem, no seio da comunidade científica, tem muito mais expressão. É importante é perceber que também já se faz Ciência e investigação em português.

Chegou há pouco mais de um ano. Que diferenças nota entre o ambiente do Ensino de Portugal e de Macau?
Acredito que Macau está no bom caminho para se assumir – e talvez seja uma ideia arrojada – como terceira economia no sector do ensino superior. Ou seja, pode tornar-se, se o caminho que está a ser trilhado der efeitos, numa região de Educação de excelência. A própria Universidade de Macau e a sua dimensão permitem-no, o IPM tem tido um trabalho extraordinário no domínio da língua portuguesa, sem esquecer a abertura do novo curso de Relações Comerciais entre a China e os Países Lusófonos… O presidente do Centro [Lei Heong Iok] vaticinava em 1984, ainda como técnico superior da DSEJ, aquilo que está a acontecer, dizendo que o Português era preciso. Foi quase como uma profecia. Há é necessidade de criar uma estrutura para acolher esta procura do português, mas também de outras áreas. Diria é que o Português é uma marca de Macau, que pode permitir criar a tal plataforma que se quer. Existem aqui todas as condições para transformar Macau num centro de Ensino Superior de excelência. Julgo que a criação dessa plataforma tem mesmo pernas para andar, até porque de acordo com dados do GAES, há um aumento de 5% na procura de cursos em instituições de ensino superior locais. Isto mostra que é preciso investir no ensino em Macau, até porque faz sentido para a China.

Considera que há recursos humanos suficientes?
Penso que estão a ser adquiridos, com a vinda de vários professores e as formações. Aqui no Centro temos vários professores doutorados e, ao contratar pessoas de fora, está a fazer-se um investimento. É um caminho de crescimento que não se faz, claro, sem dores de crescimento, mas faz efectivamente parte da estratégia do Governo local e da China. Haverá coisas a melhorar, mas há uma vontade assumida de evoluir.

Que coisas podem melhorar?
O caminho está a ser seguido essencialmente para o ensino superior, mas se formos para o ensino secundário, é diferente. O ensino superior é um reflexo do secundário e os alunos que chegam ao ensino superior para aprender português sem terem tido bases antes, vêm, naturalmente, com um défice.

Faria sentido estender o ensino do português para o secundário?
Essa é uma questão para os dirigentes porque é mais política. Nós, enquanto professores e especialistas, podemos dizer que se houvesse escolarização em português, os alunos teriam muito mais facilidade em fazer um curso de ensino superior.

Tem formação e experiência em Linguística. Como é que vê a questão do Acordo Ortográfico e a sua expressão na aprendizagem do português?
Essa é uma questão quente. Tenho um livro publicado sobre isso, que não toma uma posição, mas explica as mudanças que aconteceu no Português Europeu. Confesso que não consigo ver o Acordo como “o desastre” de Vasco Graça Moura, mas também não sou uma pessoa que ache que tudo nele faz sentido. Tenho uma visão de linguista nesta questão: ninguém conseguiria hoje ler Camões nem Eça de Queirós nas suas versões originais. A língua é um organismo vivo e evolui na medida em que é usada, portanto há momentos em que é preciso não uniformizar, mas sim “pôr ordem na casa”. A evolução da língua mostra-nos que não é “um desastre” e sei que é uma questão polémica, mas gosto de dizer aos meus alunos, principalmente na China, que o Acordo trouxe benefícios. Ainda não conseguimos é ter abertura suficiente para os vermos, porque temos uma relação afectiva com a língua. Esta passa pelo lema de que “a língua que eu aprendi é que é boa”. Tudo o que venha perturbar esta relação é, de alguma forma, ferir a susceptibilidade. Há muita falsa informação, até porque muitas vezes surge, nos meios de comunicação portugueses, “facto” sem C, quando este não cai. Em todo o caso, acho que o Acordo tem várias virtualidades. Há quem diga que é uma questão política ou económica… Para mim é uma questão em que vale a pena pensar de forma desapaixonada. Caso contrário, caímos em extremos.

Em 2049, Macau passa a ser oficialmente parte da China, pelo que estamos ainda num período de transição. Acredita que nessa altura o português pode desaparecer?
Não, porque tem sido dito tanto pelo Governo Central como pelo local, que o português é uma condição complementar e essencial para Macau se assumir como plataforma. Se assim o é agora, vai continuar a ser daqui a uns anos. Há razões para acreditar, tendo em conta o investimento que tem sido feito, que a aposta no Português é para continuar e não acredito que este Centro, cuja ambição é crescer, não tenha uma missão para continuar a cumprir.

21 Ago 2015

“Macau deu o poder da indústria aos junkets e ao resto do sector VIP”

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o seu livro “Chopsticks and Gambling”, refere que o Jogo e o vício são vistos negativamente na cultura chinesa, mas que os números revelam ser os chineses quem mais joga. Como é que esta disparidade acontece?
Tem mais que ver com a história da população, em termos de dinastias. Vemos que em cada uma delas, há uma série de medidas e políticas para banir o jogo, mas continua a existir, naturalmente. Aqueles que são normalmente acusados de jogar são, afinal, oficiais de Estado e membros do Governo. Penso que os chineses não vêem o jogo como uma doença ou um vício, como os ocidentais. Os chineses entendem é quem joga como sendo uma má pessoa. No mundo ocidental, os apostadores são vistos como psicologicamente doentes e na China, quem não consegue controlar os impulsos, é visto como sendo uma má pessoa. Julgo que esse é um problema grave, em termos da ajuda e do apoio que estas pessoas poderiam ter. É muito complicado fazer com que as pessoas viciadas em jogo peçam ajuda e dêem a cara.

Mas porque é que é na população chinesa que a percentagem de viciados é maior?
Esta é a pergunta decisiva: é muito complicado de explicar, mas na perspectiva da própria indústria percebemos que o vício afecta mais os chineses porque são quem mais joga. Não se sabe ainda é porque é que são quem mais joga… Pode ter causas biológicas ou de etnia, por ser uma questão cultural ou causa de forças exteriores. Talvez uma combinação das três. E é uma coisa que não é de agora, tem vindo a acontecer há séculos. Xangai tinha uma série de casinos que acabaram por desaparecer, embora haja uma faixa suburbana de jogo ilegal muito forte. Nas minhas pesquisas, concluí que a cultura chinesa que vem a Macau tem propensão para ver o jogo como uma forma de investimento. Assim, não vêem o facto de perderem como um “perda” em si, mas sim como uma actividade que terá retorno: “Jogo para ter uma taxa de 20% ou 30% de retorno”. Antes do ‘crash’ da bolsa [de Xangai], claro, o negócio do imobiliário estava a crescer exponencialmente e as pessoas procuram dinheiro extra para ficar mais ricas e subir na escada social. Os casinos são, tal como o imobiliário ou as acções em bolsa, um investimento. Acredito que esta perspectiva faz mais sentido nos dias de hoje do que dizer apenas que é “um aspecto cultural”. O factor cultural entra em termos da forma como se joga, como é o exemplo das superstições que ganham vida entre as quatro paredes dos casinos.

Que tipo de superstições existem?
Uma série delas, mas é muito comum os chineses usaram lingerie vermelha ou banharem-se em água com flores e extractos de plantas antes de irem para as mesas, para trazer sorte. A superstição tem que ver com o reforço e atracção da sorte. O Feng Shui também desempenha um papel importante e as pessoas muitas vezes estão logo à espera de encontrar “emboscadas” de Feng Shui nos casinos. Normalmente também não se entra pelas portas principais… São tudo questões de sorte e azar. O número quatro também está presente nas mesas. Existe o número quatro nos baralhos, mas não existem quatro elementos de uma mesma coisa, sejam cartas, copos ou fichas.

Como disse, há séculos que os chineses jogam e os governos têm vindo a banir o Jogo sucessivamente ao longo de várias dinastias. Acredita que isto possa vir a acontecer um dia em Macau?
Dizer “banir” é um pouco drástico. Tem havido várias medidas de controlo do jogo, como são as punições para oficiais do Governo que joguem. Antigamente, não havia capacidade para regular esta actividade, mas em Macau há. Na China, acredito é que a legislação vigente não está em consonância com o seu reforço. As pessoas podem não admitir, mas existem, de facto, casinos ilegais na China. Nos últimos dez anos, temos andado a crescer a um ritmo demasiado rápido.

[quote_box_right]“Os casinos são, tal como o imobiliário ou as acções em bolsa, um investimento. Acredito que esta perspectiva faz mais sentido nos dias de hoje do que dizer apenas que é um aspecto cultural”[/quote_box_right]

Em que sentido, exactamente?
Quando o Jogo se começou a expandir, em 2002/2003, a ideia era transformar Macau numa cidade diversificada e internacionalizada, mas a verdade é que isso foi uma coisa que só começou a acontecer muito mais tarde. O Governo tem apostado muito no desenvolvimento do mercado VIP e não no mercado de massas, mas esse é que está fortemente associado ao entretenimento, como acontece em Las Vegas. Até nisso creio que se tomaram escolhas não tão acertadas e o sector VIP tornou-se num mercado tão vasto, que só se associa à camada social mais endinheirada. Isto significa que Macau deu o poder desta indústria aos junkets e ao resto do sector VIP. Isto não é algo necessariamente negativo, mas implica termos menos poder que está agora nas mãos de terceiros. Nem os promotores de junkets têm controlo sobre quem vem cá jogar e tudo isto traz consequências para a indústria.

Mas o sector VIP tem tido grandes quedas nas receitas nos últimos meses…

Sim e tudo devido à campanha anti-corrupção do Governo Central, que está a ganhar cada vez mais força. A pergunta que devíamos fazer é porque é que as receitas descem com uma campanha deste género? Por que afectam Macau? Quem são, então, as pessoas que têm vindo a entrar em Macau nos últimos anos e que agora não vêm?

Qual será a solução para colmatar a falta de jogadores?
Não creio que devamos olhar para trás e querer que seja igual. Acho é que temos que tornar a indústria mais transparente e limpa e fazer com que o Jogo seja visto como um entretenimento. É importante começar a atrair pessoas que pretendam vir cá e sentar-se às mesas para se divertirem, mesmo que apostem menos dinheiro do que aqueles que antes vinham jogar para as salas VIP. Transformar a indústria numa coisa sustentável e que não esteja relacionado com branqueamento de capitais ou com oficiais de Estado.

Diz-se que a queda das receitas está muito relacionada com o receio que muitas pessoas agora têm de vir até Macau…
Sim, claramente. No entanto, também acredito que o sector VIP deve estar sempre presente em Macau, porque faz parte. A actividade do Jogo é um dos elementos que distingue esta cidade de outras semelhantes e creio que sem ele, Macau não sobreviveria. Temos uma série de actividades não relacionadas com o Jogo, mas é esta actividade que realmente faz com que as pessoas cá venham. Esta pode é ser vista como algo divertido, feliz e saudável. Não tem que ser algo negativo.

Considera que a proibição total de fumo nos casinos tem ajudado à queda das receitas?
Julgo que a proibição total pode vir a ter efeitos negativos no mercado VIP, sim. No entanto, depois de estar numa série de sítios onde é proibido fumar nos casinos, apercebi-me que nos primeiros dois anos após a implementação da lei as receitas têm quedas entre os 10% e os 20% e isto é drástico para as operadoras. Mas com o tempo, vemos que a população que frequenta estes locais começa a alterar-se e passa a ser maioritariamente constituída por aquelas pessoas que nunca jogavam por não gostarem do cheiro a tabaco e do ambiente e agora o fazem por ser livre de fumo. Mas respondendo à pergunta: acho que o que realmente está a afectar a queda é a campanha do Governo Central e não esta proibição.

Mas a solução não seria integrar as salas de fumo, como já se fez no ano passado?
Essa é uma questão que deixo para a própria indústria responder. Só ela pode dizer, de uma perspectiva de negócio, se isto resulta ou não. No entanto, acho que neste momento, com a queda, faz bastante mais sentido permitir que todos beneficiem dos casinos, fumadores e não fumadores.

[quote_box_left]“[É importante] transformar a indústria numa coisa sustentável e que não esteja relacionado com branqueamento de capitais ou com oficiais de Estado”[/quote_box_left]

Como é que vê a abertura dos novos casinos e hotéis?
Estamos a falar de coisas diferentes, porque se trata de empreendimentos com uma componente muito mais forte de entretenimento e elementos não jogo do que casinos e mesas propriamente ditas. O que é uma coisa boa, algo que se tem andado a tentar fazer desde 2002.

Acha que vai funcionar?
Ainda não se sabe, porque estão muitas coisas por abrir. No entanto, acredito que há mercado suficiente, feito de pessoas como nós, que estão dispostas a gastar umas cem ou 200 patacas no casino para se divertirem. Numa perspectiva exterior, é preciso diminuir as nossas expectativas. Sempre fomos a cidade do Jogo, mas passaremos a ser uma cidade onde o Jogo é uma das suas componentes.

Acredita que Macau algum dia vai ser uma cidade internacional?
Sim e é por isso que cá estou. Acho que não tem que ser só Jogo ou só qualquer outra coisa. A verdade é que o Jogo nunca vai desaparecer, nem deve. Tem é que se gerir esta indústria de forma inteligente, para a tornar transparente e fazer com que apostar não seja mais visto como uma actividade negativa. Acho que é preciso dar às pessoas várias razões para virem a Macau.

O que considera que vale a pena em Macau, da perspectiva do turista?
As pessoas acreditam que existe uma série de coisas interessantes aqui, desde locais protegidos pela UNESCO, prédios preservados do tempo do Governo português e uma componente tipo Las Vegas, com resorts com piscinas e, em breve, a roda gigante do Studio City. Macau é Las Vegas com quatro mil anos de história.

Quanto tempo vai demorar até chegarmos a essa internacionalização?
Não é possível fazê-lo de um dia para o outro. Não podemos é esperar que a indústria do Jogo, embora seja forte, continue a crescer tanto como nos últimos anos durante 20, 30 ou 50 mais. Temos que parar e desacelerar este crescimento para desenvolver.
Não acredita então que é possível virmos a ter uma crise financeira em Macau?
Enquanto residente, não consigo sequer imaginar uma crise aqui, até porque os casinos continuam cheios de gente a jogar e nas lojas. A única coisa que falta são jogadores e isso não afecta directamente o resto das pessoas, como os residentes e os turistas.

O Governo mencionou já várias vezes que poderão ser precisas medidas de austeridade.
Não creio que sejam necessárias, se deixarmos o mercado seguir o seu curso. Quando tivemos aqueles cinco a sete anos de crescimento exacerbado, ninguém nunca disse que era preciso um plano de contingência, mas acho que sim. A certo ponto, cerca de 40% ou 50% é demais e as pessoas deviam ter reclamado. Houve uma série de coisas que não se desenvolveram porque tudo andou demasiado rápido. É preciso resolver os problemas de tráfego, dos transportes e as questões laborais antes de voltar a impulsionar as receitas. Na altura em que o mercado começou a crescer, as indústrias sentiram que precisavam de se adaptar e restaurantes, hotéis de luxo e mesas novas cresciam em todos os cantos, mas outros aspectos da vida social continuam por resolver. Havia dinheiro para dar a vender e era fácil e hoje em dia talvez não seja tanto e é onde a inteligência é precisa.

Quanto à polémica de construir casinos em bairros comunitários ou zonas de periferia. Qual é a sua opinião?
O Louis XIII é um caso à parte, porque se trata de um complexo para as “grandes baleias”. O perigo são os espaços de lazer como o Mocha. Num sentido geral, não julgo que seja boa ideia ter casinos nem sítios com slot machines junto destas zonas porque atraem pessoas que recebem pouco mensalmente, como pensões. As leis e fiscalização têm que ser boas.

A revisão dos contratos de concessão está aí à porta. O que acha que vai mudar?

Sinceramente não sei, porque é uma questão política, que me ultrapassa. Pessoalmente, acho que nada vai mudar.

Poderá entrar uma nova operadora no sistema? David Chow considera que sim…
Acho que não vai ser bom se isso acontecer, se será boa ideia injectar mais competição no mercado. Acho que devia ficar como está. Também não estou a ver o Governo a tirar alguém da corrida. É preciso é reinventarmos a indústria, estar sempre a inovar e atrair pessoas, como Las Vegas tem feito há tantos anos.

O Governo tem, de facto, falado muito na reinvenção e diversificação. Será possível fazer isto somente com mão-de-obra local?
Não posso falar pelo Governo, mas acredito que os estrangeiros [profissionalmente] trazem para Macau conhecimentos que os residentes, certamente, não têm. Quando se quer inovar nesta cidade, não se pode contar com os residentes ou mesmo com quem cá vive, mas não é residente. Continuamos a precisar de sangue novo.

Mas isso não será tirar oportunidades para os locais?
Temos estado a fazê-lo durante estes anos todos, mas é preciso trazer quem lhes mostre que o caminho é para cima, que se saiba gerir a sério. No fundo, é preciso mostrar aos residentes que existe mais para além daquilo que vêem. A mão-de-obra local é muito reduzida e na altura de expandir o mercado do entretenimento, vai ser preciso ter quem saiba do assunto. O conhecimento é essencial e o ideal seria formar o nosso próprio pessoal, mas isso leva tempo. Há pouco talento numa população de 600 mil pessoas e, em termos globais, os mais talentosos, não o são assim tanto.

7 Ago 2015

Entrevista | Mané Crestejo, músico, regressa a Macau 20 anos depois

Vencedor da Academia de Estrelas da TVI em 2002 e com honras de abrir um noticiário devido à sua vitória, Mané Crestejo está de volta à terra que o viu nascer 20 anos depois. Ao HM, o músico – que ainda esteve numa final do Chuva de Estrelas e numa eliminatória do Festival da Canção – falou do sonho da música, relembrou tempos difíceis em Portugal e falou da sua identidade macaense

Quem é Mané Crestejo?
Sou um macaense que nasceu em 1976 numa Macau completamente diferente do que é hoje. Aqui cresci e desde muito novo tive o sonho de ser músico.

Mais do que ser cantor, ser músico?
Sim, ser músico. Esse lado de ser cantor surgiu mais tarde porque comecei com oito anos a tocar piano, depois aos dez anos comecei a tocar bateria e aos 14 peguei definitivamente na guitarra e foi com a guitarra, como auto-didacta, que comecei a tentar compor. Naturalmente que as primeiras músicas eram semelhantes a muitas das coisas que ouvia. A partir de determinada altura, e já a viver em Portugal, comecei a procurar compor, em Português e em Inglês, num estilo próprio mas claro, com influências do multiculturalismo cá de Macau. Desde então, procuro manter esse contacto.

Já vamos falar do seu percurso musical, que conheceu o apogeu no início deste milénio. Voltando à Macau do antigamente. Quais são as suas recordações?
Saí de Macau com 20 anos e, por isso, lembro-me de muita coisa (risos). Essencialmente lembro-me das coisas culturais da cidade como as corridas dos Barcos-Dragão, os meus tempos como jogador de futebol… Joguei como guarda-redes e cheguei a representar a Selecção de Macau. Recordo também com saudade os tempos passados no Liceu [Nacional Infante Dom Henrique], com os meus amigos e colegas. E ainda o tempo que passei como animador da Rádio Macau, em 1995 e 1996.

Nesse tempo ia a Portugal com regularidade?
Naquela altura, íamos a Portugal de três em três anos. Dependia sempre das licenças especiais que os meus pais tinham.

São os dois macaenses?
Não. O meu cruzamento deriva de pai macaense, da família Sales, e de mãe portuguesa. Eles conheceram-se em Moçambique, onde casaram. O meu irmão mais velho, com ano e meio de diferença, nasceu lá mas eu já vim nascer a Macau. Mané Crestejo_GLP_01

Depois foram 20 anos em Macau. Então, saiu de Macau antes da transferência de soberania.
Sim, um pouco antes, em 1996. Até 1999, ainda vim duas vezes de férias e na cerimónia de transferência até estava em Macau.

Que sentiu nesse dia?
Foi triste. Andei a percorrer as ruas e, em certos momentos, senti aquela tristeza do fim de um era, do fim de um período de convívio e de experiências da comunidade portuguesa. Porque, na verdade e desde então, as coisas mudaram drasticamente na sociedade de Macau. Ainda voltei a Macau, de férias, em 2005 e já foi um choque para mim, quanto mais o ano passado quando decidi regressar.

Foi exactamente ao encontro do que lhe ia perguntar a seguir, isto é, a Macau em que cresceu nada tem a ver com esta Macau do século XXI.
Sim, muito diferente. Claro que falo de diferenças mais ao nível físico. Existem certas zonas em que o património se mantém e as coisas estão quase iguais ao que eram em 1999 e aí, sim, a gente sente-se muito mais aconchegada. Contudo, no geral, Macau está muito diferente. Em 2005, ainda havia um campo de futebol no Tap Seac e, o ano passado, quando regressei já não. Grande parte do meu tempo era passado naquele campo a jogar futebol e basquetebol. Foi um choque tremendo, já para não falar dos diversos amigos que perdi.

Como foi regressar às origens 20 anos depois?
A readaptação está a ser gradual. Vim para cá de férias e sem intenção de ficar. Voltei em Julho de 2014 com viagem de regresso em Setembro mas surgiu a possibilidade de trabalhar no Consulado de Portugal e, como estava a acompanhar a minha mãe que estava doente, decidi aceitar o convite. Essa decisão ia sempre sendo a prazo. Primeiro até final do ano, depois até ao Verão, agora, novamente, até final do ano. Se renovarem o contrato, não coloco de parte a possibilidade de ficar mais tempo. Tem sido uma experiência gratificante pois acabei por me reunir com muitos dos meus antigos colegas e amigos do liceu e do Dom Bosco.

[quote_box_right]“Aconteceram muitas coisas em Portugal que marcaram e muito a minha vida, desde a carreira musical a amigos. Claro que estando de volta [a Macau] estou a criar novas memórias e a tentar tirar algum partido deste meu regresso”[/quote_box_right]

A caminho dos 40 anos, tendo vivido metade aqui e metade em Portugal, sente mais saudades de Portugal ou está bem em Macau?
É uma pergunta difícil. Sinto-me dividido. Quando fui para Portugal sentia-me um emigrante e agora, voltando para cá, tenho a mesma sensação, apesar de aqui ter nascido. Aconteceram muitas coisas em Portugal que marcaram e muito a minha vida, desde a carreira musical a amigos. Claro que estando de volta estou a criar novas memórias e a tentar tirar algum partido deste meu regresso.

Como já foi dito anteriormente, voltou a Portugal em 1996. O que é que aconteceu daí para frente?
Fui-me envolvendo com a música. Comecei a participar em alguns programas de televisão como o Chuva de Estrelas, em 1999, onde cheguei à final com uma interpretação de “Iris” dos Goo Goo Dolls. Mas o mais marcante foi, sem sombra de dúvidas, a Academia de Estrelas, em 2002, da qual saí vencedor. Era um programa da TVI, ao estilo da Operação Triunfo mas, fora a componente do canto, também com a vertente da representação e da dança. Lembro-me perfeitamente dos professores de representação que eram o António Feio e a Margarida Marinho. Tínhamos o Luís Madureira como professor de voz e o Paulo Jesus como coreógrafo.

Essa foi a grande alavanca na sua carreira.
Sim, claro. Como fui o vencedor, o prémio incluía um carro…

Ainda tem esse carro?
Não. Troquei-o na altura por um melhor. Parte do prémio foi ainda um curso na Oficina de Actores na NBP e a gravação de um disco, que foi o meu primeiro álbum de originais intitulado “Longe”, através da Farol.

Com isso, o seu sonho de criança tornou-se realidade. Essa componente de representação foi sempre secundária?
Sim, era acessória. A minha presença em representação na televisão é muito residual. Logo ao início, tive duas participações em duas novelas da TVI – Saber Amar e Anjo Selvagem -, mas era mais como músico e cantor. Depois, envolvi-me no teatro musical e participei em dois musicais com o Fernando Mendes e, mais tarde, participei no musical dos Xutos & Pontapés, intitulado “Sexta-feira 13”.

Esses musicais aconteceram quando?
Os que fiz com o Fernando Mendes foram em 2003 e 2005. O do Xutos aconteceu em 2006, no Music Box, um espaço aberto junto às Docas. Actualmente, pode ver-se o espectáculo na íntegra no YouTube. Depois desse espectáculo fiz uma pausa e comecei a dedicar-me novamente à composição, começando a preparar o meu próximo projecto.

Esse projecto, que acabou por ser o seu segundo trabalho musical, viu a luz do dia em que ano?
Em 2008, não a solo, mas com o projecto Mariária. Trata-se de um projecto de música do mundo, com influências tradicionais e celtas.

Há influências de Macau?
Também. Fui beber aqui e ali. Aliás, um dos temas que tem bastantes influências de Macau e da China é o tema “Ao Seu Lugar” que venceu o segundo lugar no International Songwriting Competition em 2009, na categoria de World Music. Foi o tema que nos permitiu dar a conhecer o projecto.

Quantos álbuns editou?
Um álbum a solo completo que foi o primeiro. Dois de projecto e um EP, o último que lancei no final do ano passado, em Outubro de 2014, que são só cinco temas.

Que mais fez em Portugal?
Tive algumas participações aqui e ali, em diversos outros projectos. Cantei em coros, em programas de televisão e em galas. Paralelamente, e como engenheiro de som, estive ligado à produção de álbuns de Paulo Gonzo e Madredeus.

Participou no Festival da Canção?
Sim, em 2001, se a memória não me falha, numa eliminatória da Madeira, antes da participação na Academia de Estrelas. Interpretei a música “Fechar os Olhos (e Olhar)”.

O facto de ter vindo para Macau em 2014, por entre diversas razões, pode também ter a ver com o facto de estar a atravessar um momento de menos trabalho em Portugal?
Provavelmente, sim. Aproveitei para vir precisamente porque não estava a ter tanto trabalho lá, numa fase mais baixa. Estar cá também me permite auscultar o que há de oportunidades na música. Macau é um mercado totalmente diferente, onde temos de ter em conta a multiculturalidade. Aqui, não posso pensar apenas no mercado português e na comunidade portuguesa.

Mas o sonho, apesar de algumas dificuldade, mantém-se.
Sim, o sonho mantém-se. Sempre.

O que é que tem feito por aqui, relacionado com a área artística?
Por enquanto ainda nada, ou muito pouco. Em Outubro de 2014, fiz uma actuação de uma hora no Hard Rock Café, no âmbito do Pink Oktober, através do convite da Vera Fernandes. E, agora, a convite do Miguel de Senna Fernandes também participei no espectáculo dos Dóci Papiaçam di Macau, uma experiência fantástica.

Tem composto? Trouxe instrumentos consigo? Que tempo tem reservado ao seu sonho, se é que podemos dizer assim?
Não trouxe nada. Tive que comprar uma viola acústica aqui (risos) para poder continuar a tocar. A minha guitarra e todo o meu equipamento de produção ficou em Portugal. Em Macau, estou a reinvestir um pouco e comprei a viola precisamente para manter o contacto com a música e fui compondo algumas coisas. Ninguém me sondou para mais projectos e, na verdade, sou eu quem está a sondar e tentar perceber que músicos é que estariam interessados em criar qualquer coisa de novo, porque existem muitos músicos por cá. Contudo, a maioria toca mais covers, algo que não tenho problema, mas queria mesmo era criar coisas novas. A criação original sempre foi o meu interesse principal.

E Portugal? Neste ano que aqui esteve, surgiu algum convite?
Sim, têm perguntado mas perguntam sempre muito por cima. Normalmente questiono quantos concertos são, que projectos. Porque a viagem daqui para Lisboa é muito longa e cara. Teria de valer a pena. Recusei alguns trabalhos, uma vez que a minha ida não compensava só para fazer um concerto. Se houvesse uma sequência de espectáculos, sim, estaria interessado em ir.

O que é que acha que pode ter acontecido na sua vida/carreira para que nos primeiros anos, depois da vitória na Academia de Estrelas, ter tido tanto trabalho e agora estar a passar por um momento menos bom?
Foram várias circunstâncias. A crise talvez tenha sido a maior de todas. Houve uma altura em que as Câmaras Municipais organizavam festas e ofereciam os concertos às populações. Nessa altura, havia muito trabalho mas essa prática foi prejudicial uma vez que as pessoas começaram a ser habituadas a não pagar espectáculos. Depois, quando os Municípios deixaram de oferecer esses espectáculos, tudo se complicou. Os concertos começaram a diminuir assim como a formação das próprias bandas. Muitas das bandas, mesmo de artistas consagrados como Rui Veloso ou Luís Represas, diminuíram as suas formações para fazer face aos gastos. Mas nem sempre é a mesma coisa. Não há nada que pague a verdadeira dinâmica do tocar ao vivo, até porque o público entranha-se mais na música.

Portanto, voltar a Portugal só houver algo aliciante na música?
Sim. Claro que, se houver trabalho na música, voltarei a Portugal. Ou então, se não houver oportunidade para continuar por Macau, procurarei noutro lado como Londres ou Nova Iorque. E sempre foi minha intenção experimentar a realidade desses locais.

Quando venceu a Academia de Estrelas, iludiu-se ou é uma pessoa de pés firmes no chão?
Não. Sempre tive os pés bem assentes no chão e, por isso, nunca me iludi e nunca me desiludi. Repare, até mesmo nos momentos menos bons são essas alturas que nos definem. Ou mantemos a convicção daquilo que nós queremos ou deixamo-nos seguir o caminho das editoras, muitas vezes diferente daquele que idealizamos.

A música deu-lhe mais amigos ou mais inimigos?
Mais amigos. Sinto que ganhei mais amigos até porque conheci vários músicos com quem tive a oportunidade de trabalhar e aprender. Músicos dos Pólo Norte, da Rita Guerra, dos Madredeus, e esse convívio permitiu-me enriquecer musicalmente.

Quais são as suas influências e os seus ídolos?
Quando era mais novo gostava mais de rock. Ouvia Guns n’ Roses, Bon Jovi… Mas a partir do momento que fui viver para Portugal tive contacto com vários outros estilos e passei a ouvir o José Afonso, Trovante, Loreena McKennitt, Carlos Núñez, Dulce Pontes, entre outros.

Gosta de Fado?
Gosto de fadistas. Para ouvir Fado tudo depende do fadista que esteja a cantar. Do lado masculino, admiro muito o Ricardo Ribeiro e do lado feminino, ouço a Ana Moura que, para além de muito bonita, tem um calor de voz que gosto.

Em que estado está a música portuguesa? É necessário cantar em Inglês como os Moonspell para ser reconhecido mundialmente?
Não penso que seja necessário. Esta é uma luta de anos mas o que está em jogo são as quotas dedicadas à música portuguesa nas rádios lusas, que nunca chegam àquilo que é estabelecido por lei. Por isso, as pessoas estão mais habituadas a ouvir em Inglês e a rádio acaba sempre por definir os gostos. Repare que uma pessoa pode ouvir uma música na rádio e dizer “detesto isto” mas, depois dessa música passar dez vezes, já se começa a cantarolar. Daí que quando surge um projecto como os D.A.M.A., mais recente e que me recordo, é de louvar pois cantam em Inglês e começam a ter algum público fiel, mesmo que seja um mercado muito específico como o hip-hop. Penso que, a haver uma crise na música portuguesa, ela será mais relacionada com a forma como a música é apresentada ao público, porque havendo um controlo mais afincado das editoras e das rádios, eles é que acabam por influenciar o público.

E em Macau, como está a indústria musical?
Está numa fase pré-natal. Ainda não há investimento e cultura de edição musical. Só ultimamente é que começaram a surgir apoios, quer do Instituto Cultural quer da Fundação Macau para produções de artistas locais. Ainda assim, é muito pouco. Fora o estúdio da Casa de Portugal, não conheço mais qualquer estúdio que permita aos músicos arranjarem um produtor e gravar um trabalho. É preciso isso – e muito mais – para que, pelo menos, possamos estar ao nível de Hong Kong. Mas a região vizinha tem as editoras mundiais lá estabelecidas, tem outra orgânica e até mesmo os músicos de lá são mais ouvidos em Macau que os locais. É preciso pro-actividade. Os músicos têm de começar a criar mais em Macau, seja em Cantonês, em Mandarim, em Português ou em Inglês. Isso iria dar mais destaque àquilo que é a cultura de Macau, a diversidade.

O que é para si ser macaense?
Para mim ser macaense é ser muito paciente, se calhar mais paciente que o chinês (risos). Na verdade, sinto-me especial por pertencer a uma comunidade que é única no mundo e que tem as suas especificidades. Ser capaz de interagir com as mais diversas culturas é um ponto forte do ser macaense. Posso falar Chinês, posso falar Português e até posso falar Inglês. Temos muita felicidade em adequarmo-nos.

As tradições macaenses sempre estiveram presentes em sua casa?
Sim. Lá em Portugal, fazia e comia minchi (risos). Aprendi com a minha mãe. Fazia também chao min e cheguei a cozinhar comida macaense para os meus amigos. Eles adoravam até porque fazia a massa chinesa estaladiça com molho.

Fala chinês?
Falo. E agora mais uma vez que com o regresso tenho falado muitas vezes em Cantonês. O Mandarim já é mais complicado mas no Cantonês estou a falar cada vez melhor.

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Discografia

1996 – Participação na colectânea Made in Macau
2002 – “Longe”, primeiro CD de originais
2008 – “Mariária”, primeiro CD do projecto homónimo
2012 – “Terra de Sal”, segundo CD com o projecto Mariária
2014 – “Comeback”, EP a solo

10 Jul 2015

Entrevista | André Ritchie, arquitecto e ex-coordenador do GIT

A sua saída do cargo político que ocupava, o metro e o património são alguns dos assuntos em cima da mesa com o ex-coordenador do GIT. Com algumas reticências, André Ritchie fala de alguns assuntos mais polémicos, mas defende que não é altura para tudo ser revelado

[dropcap type=”circle”]E[/dropcap]steve à frente do gabinete que coordena o metro ligeiro. É realmente necessária esta construção em Macau? Não existem alternativas mais económicas?
Acho que Macau precisa acima de tudo de ser uma cidade mais “user friendly”. Neste território, a distância não pode ser medida pela distância em si, mas pelo tempo que demoramos nas nossas deslocações. Macau está a tornar-se uma cidade muito desconfortável. Há distâncias curtas, que a pé são pouco confortáveis devido aos passeios e ao número de pessoas. É preciso, por isso, um sistema integrado de transportes e isso implica o metro, autocarros, táxis e circulação pedonal. Em Hong Kong, por exemplo, o sistema pedonal funciona bem. Em Macau, devido à sua marca portuguesa de zona alta e baixa da cidade, é preciso compreender o que é possível neste espaço e este sistema pode funcionar muito bem aqui. É inaceitável demorar-se tanto tempo nas deslocações e, por isso, acho que o metro faz sentido.

Mas a construção do metro vai resolver este problema?
Não. O metro em si não vai resolver este problema das deslocações. Mas claro, tem que ser visto como uma das soluções do puzzle. O Governo tem que apostar mais na circulação pedonal, porque em Macau as pessoas habituaram-se muito ao carro, a um meio de transporte para deslocações curtas, o que não acontece em Hong Kong. Em Macau as pessoas são preguiçosas, é verdade. Mas a pessoa de Macau quando vai à região vizinha anda muito. Porquê? Porque tem conforto, seja no sistema pedonal ou no metro. Quando há conforto as deslocações tornam-se mais fáceis e rápidas.

Quando é que acha que esta obra estará concluída?
Prefiro não responder a essa pergunta.

Há muitas perguntas sem resposta. Porquê esta decisão de nunca comentar, nunca falar em assuntos considerados sensíveis?
Nunca falo porque é uma atitude que decidi ter e colocar em prática. Não quero dar a ideia de que bati com a porta e saí aborrecido e agora disparo contra [o Governo]. Olho para trás e acho que tive muita sorte, vim [para Macau] com a economia de rastos, mas depois assistiu-se ao crescimento. Aprendi muito, tivemos imensos projectos, foi estimulante para um novato como eu estar ali na linha da frente. E por isso mesmo não falo por respeito à casa. Naturalmente o Governo também comete erros, eu também cometi erros. Agora não quero aprofundar esses assuntos porque não quero meter o dedo na ferida.

Mas a verdade tem que ser dita, é direito da sociedade ter conhecimento dos erros…
Sim, acho que sim. Mas não é por mim, mas posso adiantar um aprendizado meu. O meu chefe de Portugal tinha muitas histórias para contar, muitos erros, devido às obras em que estava envolvido e sempre me passou o testemunho que não podia contar e mandar para a sociedade aquelas verdades. Disse-me um dia que iria escrever um livro com o título “As Memórias de um Burro” com essas verdades.

O André vai seguir o exemplo?
Um dia. As memórias de um burro escrito por mim com essas histórias.

Porque é que saiu do Governo?
Bem, foram 12 anos no Governo. Nunca foi intenção minha estar eternamente no Governo, há essa tendência geral das pessoas verem os cargos públicos como âncoras para o futuro, mas nunca aconteceu comigo. Há uma postura errada do acomodar-se ao cargo. Há um ditado chinês que diz que fazer ou não fazer é a mesma coisa e isto é errado. Profissionalmente, é super desmotivador e castrante. Ao longo dos anos que trabalhei fui sempre recebendo algumas propostas mas recusei, até que, chega-se a um ponto da nossa motivação em que temos que mudar. Não escondo que comecei a ficar desmotivado.

Porquê?
Enfim, porque o Governo tem o seu ambiente e modo de trabalho, do ponto de vista legal, jurídico, a nível de procedimentos que eu já conhecia bem. Estava a precisar de algo novo. Foram 12 anos a trabalhar com os mesmos mecanismos, mesmos procedimentos, mesmo método. Tinha que mudar.

Disse que aprendeu muito, boas e más experiências. Podemos ter como exemplo a condenação de Ao Man Long?
Sim, essa foi uma das situações que foi uma grande lição para mim. Fui testemunha e todo o processo foi intenso. Aprendi muito, porque aprendemos sempre com os bons e os maus momentos.

Ao Man Long foi o bode expiatório para uma situação que envolvia muita gente?
As pessoas têm essa tendência de generalizar. Por exemplo, agora no caso recente da FIFA alguns deles são suspeitos, o que faz com que as pessoas acusem o presidente [Joseph] Battler imediatamente. Neste caso, não sei, não estou dentro do assunto. Mas acredito que há de facto tendência para culpabilizarmos o outro.

Raimundo do Rosário, Secretário para os Transportes e Obras Públicas, afirmou que ia mexer em alguns serviços e gabinetes organizando-os, fundindo-os ou até eliminando-os. Concorda com esta espécie de arrumar da casa?
Vejo esta decisão mais como algo global do que só desta pasta específica. Acho que isto está acontecer transversalmente, não é só na pasta dirigida pelo Secretário Raimundo. Parece-me bem, porque defendo que a reforma administrativa é sempre necessária e contínua. A cidade vai-se transformando, portanto o Governo tem sempre necessidade de criar serviços para dar resposta a algumas lacunas ou desafios e isso acontece com várias tutelas. Ao longo dos últimos anos foram criados vários serviços na pasta das Obras Públicas, para dar resposta. Mas claro, é sempre oportuno perceber se esses serviços são necessários ou se é possível fundir alguns deles para se conseguir um melhor desempenho. Não sei se a casa está desarrumada, pelo menos não quero assumir isso, vejo a reforma administrativa como algo necessário. Quando se faz este [trabalho] de extinção ou união é preciso perceber porque é que esses serviços foram criados, perceber a sua natureza, cultura e orgânica. É preciso perceber se são úteis ou não.

FOTO: Gonçalo Lobo Pinheiro
FOTO: Gonçalo Lobo Pinheiro

O Gabinete para o Desenvolvimento das Infra-Estruturas (GDI) é útil? Foi renovada por mais dois anos a sua existência.
O GDI foi muito útil desde a criação da RAEM devido a três grandes construções: a fronteiras das Portas do Cerco, a ponte Sai Van, que é essencial para o acesso ao Cotai, e depois o próprio Cotai. Quando vim em 2003 e comecei a trabalhar no GDI o Cotai não existia, foi o gabinete que o construiu e isso foi muito importante para que os investidores pudessem investir. O GDI foi muito útil nessa altura e agora no último Governo foi responsável pela habitação pública. Quer se goste ou não, existe e está construída e foi este gabinete que a executou, assim como a nova Universidade de Macau, que é uma grande obra. Este serviço é um gabinete de intervenção rápida, tem uma agilidade que muitos serviços não têm e acho que qualquer Governo deve ter este tipo de serviço, sem departamentos, de respostas rápidas.

Em Portugal trabalhou na obra do metro do Porto, projecto de grande dimensão. Porque decidiu voltar para Macau?
Acabei o curso de Arquitectura no Porto em 2001 e mal acabei o curso comecei a trabalhar lá. Foi sorte, tinha acabado de defender a minha tese sobre o plano inicial sobre os NAPE e cruzei-me com um professor meu, no próprio bar da universidade, que logo ali me fez o convite para a obra do metro do Porto. Nunca pensei em regressar a Macau, confesso, pensei sempre que o meu futuro era na Europa, mas a verdade é que o salário, com os impostos, assustaram-me um bocado. Com o primeiro salário pensei: então é só isto? Quando o António Guterres abandona o cargo e entrou o Durão Barroso com o discurso do ‘país de tanga’ pensei que Portugal não estava a entrar num bom caminho. Precisava de alternativas, a experiência de trabalho estava a deixar-me infeliz e mexi-me aqui em Macau. Pronto, voltei.

O Regime de Acreditação de Arquitectos e Engenheiros em Macau entra em vigor agora no início de Julho. Concorda com este regime?
Não conheço muito bem a lei, mas acho que é um bom princípio. É importante porque tem que existir um controlo de qualidade. Faz sentido ter este regime. Portugal recentemente também passou por isso, até se criou a ordem dos arquitectos, portanto acho que sim. Caso contrário qualquer pessoa que tenha um curso inscreve-se nas Obras Públicas e está apto a assinar projectos, não pode ser assim. Este regime é importantíssimo do ponto de vista técnico e profissional.

Mas Macau tem capacidade para formar arquitectos?
De facto existe um curso de Arquitectura em Macau, na Universidade de São José, mas tenho algumas dúvidas. Conheço as pessoas que estão à frente do curso e posso dizer que são pessoas competentes, são bons, não há dúvidas. Mas o plano de curso em si deixa-me com muitas dúvidas. É preciso começar em algum lado, é uma universidade nova e ninguém lhe tira o mérito, mas não sei que referências tem. Por outro lado, pode ser chato dizer isto, mas não compreendo porque é que este curso não é dirigido pela “prata da casa”. Temos aqui em Macau excelentes profissionais, tais como o Carlos Couto, Carlos Marreiros, Luís Sá Machado, Isabel Bragança… Macau tem bons arquitectos e aparentemente estes profissionais não estão directamente ligados a este curso. O Rui Leão, um bom profissional, já esteve, mas já não está. Não percebo. Acho que é preciso este apadrinhamento.

FOTO: Gonçalo Lobo Pinheiro
FOTO: Gonçalo Lobo Pinheiro

Mas apenas o curso não é suficiente.
Não, de facto. Até pode não fazer sentido para alguns, mas para mim uma pessoa que nasça aqui, viva aqui e estude Arquitectura aqui não sei que cultura arquitectónica assumiu. A vivência no exterior, essa experiência como ser humano e profissional, seja em que área for, é muito importante. A bagagem cultural é muito importante, ganhar motivações de desenho, ver como se vive nas outras culturas, perceber o verdadeiro significado da área, não é só desenhar umas coisas bonitas. Neste lado do mundo há muito esta ideia do design, do moderno ou clássico. Não é nada disto, é muito mais profundo que isso. Digo sempre às pessoas que da necessidade, a motivação de desenho, nasce uma moda e não o contrário.

Sobre o Património de Macau, como vê o que foi até ao momento classificado pela UNESCO e o que poderá ser?
O que já foi classificado devia ter mais alma. Não pode ser só fachada. Olhamos para o Largo do Senado, é um sítio bonito e rico, mas o que se passa com os edifícios? Temos fachadas bem cuidadas mas completamente desrespeitadas a nível de rés-do-chão pelo comércio, não há o mínimo de disciplina a nível de desenho de lojas, cada um faz o que quer. É vergonhoso, vivemos de fachada. Acho que é preciso disciplina e dar vida. Por exemplo o Largo do Lilau tinha mais vida antigamente do que agora, que é considerado património. Na altura tinha um café, uma tasca chinesa, moravam pessoas nas casas em volta, tinha muita vida e nem sequer era considerado património.

E o novo?
Bem, espero que da lista não saiam só edifícios antigos com arcos. Espero sinceramente que haja arquitectura moderna porque em Macau fez-se muita interessante, como é o caso da Escola Portuguesa. Há muitas obras de arquitectura moderna que deviam ser preservados. Estamos a entrar numa fase triste para arquitectura porque maioritariamente o que se constrói na cidade é habitação. Antigamente, os arquitectos desenhavam edifícios para habitação muito interessantes, agora perdeu-se isto, por força do mercado e das imobiliárias. Só se constrói edifícios de catálogo.

E o Hotel Estoril?
É um edifício muito interessante, mas é preciso que a sociedade perceba que é necessário manter-lhe a alma. Entenderem que o património não são só arcos e o antigo, o que é novo é também património. O que se faz hoje é património. Não é só o Clube Militar, o Senado, não é só isso.

Existe planeamento urbanístico em Macau?
Sempre existiu. O que as pessoas têm que compreender é que o planeamento urbanístico é gestão de interesses, económicos e públicos. É preciso haver este equilíbrio. Sempre existiu, mas fala-se muito em planeamento urbanístico porque as pessoas confundem o planeamento com o zonamento, que é organização por zonas. O planeamento não é isto e a população tem que perceber isto. O planeamento pretende equilibrar e criar ferramentas legais e jurídicas para o ordenamento do território.

Como vê Macau daqui a 20 anos?
Quando era miúdo, o meu pai, como não havia pontes de ligação a Coloane, combinava excursões com os amigos ao fim-de-semana. No meu tempo, com a ponte, ir à Taipa era uma aventura, pagávamos a portagem e íamos fazer os trabalhos da escola, voltar para casa era outra aventura. Era tudo diferente. Agora em dez minutos estamos em Coloane. Macau expandiu. Para a minha avó ainda existe a ideia dos piratas de Coloane. A expansão vai continuar, vamos crescer e crescer. As fronteira vão estar muito mais premiáveis, vai abarcar Zhuhai e a zona de Cantão, a circulação de bens e pessoas será cada vez maior. Inevitavelmente o nosso estilo de vida vai mudar. Para mim agora ir a Zhuhai é cansativo, tenho que passar a fronteira e aquilo tudo, para o meu filho possivelmente vai ser como ir à Taipa. Ir a Cantão vai ser já ali.

[button color=”” size=”” type=”3d” target=”blank” link=”https://hojemacau.com.mo/category/opiniao/sorrindo-sempre/”]LEIA TAMBÉM AS CRÓNICAS DE ANDRÉ RITCHIE NO HOJE MACAU[/button]

23 Jun 2015

Konstantin Bessemertny: “O dinheiro não nos faz ter mais consciência cultural”

Um dos maiores artistas de Macau e da Ásia tem optado por trabalhar na sombra, aparecendo pontualmente com alguns trabalhos. Konstantin Bessemertny defende que para Macau é suficiente uma exposição a cada cinco anos, condenando os governantes que não consomem cultura. Para o artista, a política do território, no que diz respeito à arte, arquitectura e espaços públicos, deveria ser decidida por um órgão totalmente independente

[dropcap style=’circle’]F[/dropcap]ez a última exposição individual em Macau em 2012. Porquê este tempo todo sem uma mostra individual em Macau?
O mundo artístico está a mudar quanto à democratização da criatividade. E não só em Macau, em todo o mundo. Agora qualquer pessoa é artista, e o problema dos artistas contemporâneos é mostrarem-se e produzirem demasiado. Há tanta arte disponível nos dias de hoje! Então a maneira mais lógica é tornarmo-nos como monges que ficam no seu mosteiro, e é isso que estou a fazer. Apareço raramente, em ocasiões específicas. Mudei o meu pensamento em relação a alguns eventos, como feiras de arte, porque penso que são apenas plataformas, como os media, o Instagram. São plataformas para uma arte algo imatura, na sua forma de expressão.

Mas não tem nenhum projecto para expor em Macau?
Não disse isso. Primeiro, temos de nos limitar a nós próprios, para um certo número de exposições, por um certo período de tempo. Penso que Macau é um bom sítio para uma exposição a cada cinco anos. Consegue imaginar uma exposição todos os anos? Tenho vindo a trabalhar em alguns quadros, sim, mas comecei a gastar mais tempo em cada trabalho, em vez de produzir sob pressão. Estou a tentar adaptar-me à nova realidade.

De que forma?
Estou a tentar focar-me, também devido a essa questão da excessiva produção artística. Há tanta arte destruída. Numa bienal, 95% da arte que lá está exposta vai para contentores. Tudo o que vai para o lixo não é arte, então estou a tentar focar-me em sítios que possam ter algo interessante, ou em coisas que as pessoas me pedem. É difícil, porque temos de convencer pessoas, instituições, mudar as mentalidades de certos meios, quando as pessoas pensam actualmente nas tendências a curto prazo. A arte acaba por ir para o caminho da “cultura da celebridade”.

[quote_box_left]“Mudei o meu pensamento em relação a alguns eventos, como as feiras de arte, porque penso que são apenas plataformas, como os media, o Instagram. São plataformas para uma arte algo imatura, na sua forma de expressão”[/quote_box_left]

Em que os artistas são como estrelas pop.
Sim. Claro que isso começou nos anos 60, com o Andy Wharol e o movimento pop-art. Mas acho que isso não é arte, é design. Então essa arte pode ir para museus, mas quem disse que ia lá ficar para sempre? Mas respondendo à sua questão, tenho vindo a trabalhar em coisas específicas. Continuo a trabalhar em Macau, com algumas pessoas, em galerias. As galerias de arte estão a morrer, porque já chegaram a um ponto de exaustão.

Em todo o mundo.
Não estou apenas a falar da pequenina Macau. Aqui tudo acontece em pequena escala, mas as questões (do mundo artístico) são iguais às dos restantes países do mundo. Os problemas são os mesmos, a questão é que em Macau as coisas são mais visíveis e podemos tirar conclusões mais rápidas. Mas de cada vez que há algum tipo de iniciativa em Macau, eu tento contribuir. Tive agora dois trabalhos meus no Armazém do Boi, depois dei um trabalho a uma galeria junto às Ruínas de São Paulo, o que já é bastante (risos). Mas se me pedirem “por favor, faça uma grande exposição”. Direi que não.

Mas vive em Macau há 23 anos, como olha para a arte que tem vindo a ser produzida neste pequeno território?
Não há arte. A arte é a procura, e qual é a procura aqui? Pela Hello Kitty? Há mau gosto. Para compreender o que é a arte, temos de ser educados, ter a nossa própria motivação, sermos curiosos. Infelizmente o público aqui não é assim. Para qualquer coisa que se produza em Macau não há procura, mas não é uma questão de preço. Porque é que as pessoas de Macau não compram as obras de arte locais? Porque preferem ter posters na parede, coisas criativas que compram em Bali. Tem tudo a ver com questões de gosto, educacionais, de cultura. É como aquela máxima de “nós somos o que comemos”, e somos também os livros que temos na estante e os quadros que temos na parede. É um pouco perturbador.

[quote_box_right]“A arte é a procura, e qual é a procura aqui? Pela Hello Kitty? Há mau gosto. Para compreender o que é a arte, temos de ser educados, ter a nossa própria motivação, sermos curiosos. Infelizmente o público aqui não é assim”[/quote_box_right]

Em relação aos museus, galerias ou entidades públicas. Pensa que o Governo poderia investir na criação de mais espaços como estes?
Esse é um conceito socialista. Ajudar os artistas? O problema é que, se as pessoas não tiverem experiência no meio, não souberem a melhor forma de se tornarem artistas, isso é um erro. Temos esse problema com as políticas públicas. A arte transforma-se numa coisa preguiçosa, que não é desafiante. Quando ajudamos os artistas não criamos qualidade. Recentemente falei com várias pessoas do meio cultural de Macau e disse que a melhor forma é abrir concursos ou comissões para espaços públicos, em que uma vez por ano qualquer artista poderia concorrer para um apoio. Temos muitas construções aqui, mas podemos ver o quão tudo é horrível. E não estou apenas a falar da arte, mas a arquitectura também é muito má.

Está a referir-se ao Cotai?
A todo o lado. E porquê? Porque não queremos saber. Chega aqui alguém e deixamo-lo construir um projecto, e não dizemos “não faça esta imitação da escultura” ou “não revista isto de plástico”. O conceito é muito pobre. Recentemente estive em Singapura no Marina Bay Sands. O casino pode não estar a ter muitos lucros, mas é um edifício bonito. Ao menos podem orgulhar-se daquele esforço. Se há 15 anos me dissessem que iríamos ter uma Torre Eifeel em Macau…é horrível. Não é apenas o facto de não envolver os artistas locais, mas tudo deveria ser feito por concurso e aprovado pelas instituições e pessoas de Macau. Porque é que Macau deixa que essas coisas feias sejam aqui construídas?

Pensa então que deveria haver um novo modelo para o Cotai? Um espaço que poderia servir para promover os artistas locais?
A questão dos artistas locais é similar a um jardim de infância, “acabei o meu curso, dêem-me um espaço para poder mostrar o meu trabalho”. O que poderíamos fazer agora? Criar um órgão independente, composto por artistas ou arquitectos, que não esteja envolvido com o sector do imobiliário, do Jogo ou da construção. Esse órgão deveria decidir o que é bom ou mau para Macau. Tudo deveria ser aprovado por este órgão. Em Guangzhou, o Governo deu responsabilidades a um grupo deste género para fazer uma cidade bonita. Estas pessoas não têm interesses no dinheiro, porque são professores, artistas… simplesmente ditam o que é bom ou mau para a cidade. Então vemos que a arquitectura e os espaços são bonitos, existe bom gosto. O problema aqui é que os lucros não trazem o bom gosto, o dinheiro não nos faz ter mais consciência cultural.

Em Macau parece que o Governo tem de estar em todo o lado, concedendo subsídios. Pensa então que deveria ser criado um novo modelo de apoio?
Quando cheguei a Macau, fiquei impressionado. Porque antes era melhor do que agora. Macau era melhor do que Hong Kong. E porquê? Porque no Governo, todos os secretários adjuntos, tinham interesse por arte. Construíam casas em Portugal, gostavam do design chinês, da mobília, visitavam galerias e estúdios de arte. Estes governantes ajudavam mais o mercado da arte do que qualquer outra pessoa. As pessoas que temos actualmente no Governo podem apoiar a cultura e a arte, mas individualmente não vão a concertos, nunca foram a uma galeria, e falo de Hong Kong também. Este é um problema. As pessoas que querem ajudar os artistas são apenas funcionários públicos ignorantes que tentam ser uma espécie de pais destes alunos de arte que acabam os seus cursos, para que sejam felizes.

[quote_box_left]“Se há 15 anos me dissessem que iríamos ter uma Torre Eifeel em Macau…é horrível. Não é apenas o facto de não envolver os artistas locais, mas tudo deveria ser feito por concurso e aprovado pelas instituições e pessoas de Macau”[/quote_box_left]

Mas acredita que o Governo de Macau, em concreto, está a seguir esse caminho?
Não estou a criticar apenas aqui, porque na verdade o nosso Instituto Cultural (IC) ou o museu funcionam muito melhor do que poderíamos pensar. Claro que ainda há melhorias a fazer. Mas as pessoas deveriam ser nomeadas não porque falam cantonense, se são locais ou não, mas sim por mérito e conhecimento. Para cada projecto deveria haver uma selecção, e se for o melhor, mesmo que não fale cantonense, não deve constituir um problema. Macau poderia ser um modelo para a multi-culturalidade. Tudo deveria ser feito por pessoas com coragem e conhecimento para melhorar as coisas.

Ajudou a criar a AFA – Art for All Society. Como olha para a entidade nos dias de hoje? Que desafios encontram?
A AFA foi uma solução encontrada para se fazer e promover a arte. Mas diminuí a minha participação há cerca de dois ou três anos. Vamos mantendo o contacto, mas percebi que ficar lá mais tempo não iria ser benéfico para mim, porque sou uma pessoa ocupada, viajo muito. E não quero fazer esse tipo de trabalho de pedir patrocínios. A minha ideia inicial era de que a AFA não era apenas para os artistas locais, mas seria uma plataforma para as pessoas produzirem e consumirem arte, e seria a primeira do género em Macau. Mas há leis e regras que temos de seguir, então tornou-se uma entidade muito virada para Macau. Percebi que o que fazemos é algo anti-marca, porque um artista faz um trabalho, o Governo apoia-o, muito bem. Mas dou-lhes apoio sempre que é necessário.

Qual o caminho que Macau está a tomar, com os casinos e as réplicas?
Penso que já não é apenas o Jogo que domina, mas podemos atrair as famílias, com as crianças, e temos de pensar como dar-lhes o divertimento e fazer com que isso seja lucrativo, com eventos ou apostar na área da restauração. Penso que nesse sentido Macau está a ir no caminho certo. Há algumas questões, como o facto do Governo querer acabar com o fumo nos casinos. Não sou fumador, mas um turista vem a Macau para jogar, fumar e comer. Concordo em não fumar em restaurantes, ao pé de crianças…mas nos casinos? Estas pessoas jogam, bebem e fumam. Eles vêm cá para se divertir, então onde está o divertimento?

[quote_box_right]“O que poderíamos fazer agora? Criar um órgão independente, composto por artistas ou arquitectos, que não esteja envolvido com o sector do imobiliário, do Jogo ou da construção. Esse órgão deveria decidir o que é bom ou mau para Macau”[/quote_box_right]

O Governo já mostrou a vontade de criar mais museus. Qual deveria ser o modelo a implementar?
Macau já foi o primeiro território na Ásia a ter uma bienal, no tempo dos portugueses, e ninguém fala disso. Macau poderia transformar-se num centro de arte na Ásia e dizer que desde os anos 90 (que promove esse tipo de eventos). Hong Kong era um deserto cultural, Pequim e Xangai não tinham arte, de todo. E Macau já tinha uma bienal de arte. Então deveríamos promover isso sem fazer esse corte entre a Administração portuguesa e o Governo chinês. Macau sempre foi Macau e deve ter orgulho desses pequenos detalhes, para além das diferenças. Nessa altura Macau não tinha nada, tirando um ou outro problema com um Governador, mas era um lugar engraçado e interessante.

Para si, ainda é assim?
Vejo este lugar como uma continuação da cultura da Europa, e que ainda mistura outras formas, como essas coisas americanas que agora existem. Penso que é uma boa plataforma para a arte e cultura, e Macau poderia ser de novo um centro de arte. Temos dois modelos: a feira de Singapura, apoiada pelo Governo, ou a Art Basel em Hong Kong, totalmente privada. Poderíamos fazer uma mistura, com um pouco de apoio do Executivo. Os casinos também poderiam participar, mas a questão é que eles só promovem os artistas de topo, as grandes marcas. Macau deveria ditar um pouco as regras, criando esse órgão, com 30% de artistas locais, e mais um grupo de artistas convidados, para decidir quais seriam os projectos certos.

15 Jun 2015

Viriato Soromenho Marques: “A nossa política doméstica é hoje política europeia”

Viriato Soromenho Marques, professor de Filosofia da Universidade de Lisboa, tem um extenso currículo, não apenas académico. Esteve em Macau para promover o seu novo livro intitulado “Portugal e a Queda da Europa”, no qual defende a abolição do Tratado Orçamental da UE e que o federalismo europeu não seja apenas penitência mas também salvação.

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap] pontou diversos erros na construção da União Europeia, fazendo um diagnóstico não muito favorável. Por outro lado, apontou um outro caminho que seria mais federalismo. Isso faz-me lembrar o que Nietzsche diz de Kant: a raposa que destrói a sua jaula para a seguir construir outra e se meter nela…
(Risos) Refere-se à passagem da Crítica da Razão Pura para a Crítica da Razão Prática, não é?

Sim. Da crítica “radical” da possibilidade de conhecer à emergência do “radical”, “terrorista” imperativo categórico (risos).
De facto, penso que há uma consistência na minha afirmação, isto é, a construção europeia foi efectuada através de uma metodologia que, desde o início e para os observadores mais atentos, estava “impregnada” de deficiências de design, ou seja, de construção. Temos vários marcos das críticas que foram feitas. As críticas foram feitas em diferentes períodos: um deles que foi na década de 70, porque a ideia de uma união monetária – que é hoje a zona Euro – já vem bastante de trás. Praticamente, desde que a comunidade europeia se constituiu, em 1958, com um dos Tratados de Roma, que temos várias tentativas de a construir. A primeira – e a mais consistente – é de 1970 e tem o nome do Primeiro-Ministro do Luxemburgo [Pierre Werner], que ficou encarregue de fazer o esboço e é o Plano Werner, que consiste em fazer uma união monetária de 70 a 80, ou seja, em dez anos. Este é muito parecido com aquele que está actualmente em vigor. Tendo sido objecto de críticas válidas, se o plano actual é muito semelhante, as críticas são igualmente válidas. As deficiências que hoje vemos claramente são fruto do choque daquela estrutura com a realidade. A primeira crítica é a seguinte: uma união monetária só pode sobreviver se tiver uma grande solidariedade política e por isso é que as uniões monetárias – que a História verifica e que sobreviveram – são as que tinham o suporte de uma união política, geralmente de recorte federal ou aparentado…

Pode dar um exemplo, para entendermos melhor o que é realmente para si essa necessidade…, digamos, federal.
O exemplo mais puro é o do Federalismo Americano. Temos a Constituição Federal de 1787, aprovada e em vigor em 88, mas não temos o dólar nem nenhum banco central. No entanto, tinham já uma Constituição comum dizia as competências do Governo comum. Só timidamente, à medida que a realidade ia evoluindo, é que eles começaram a introduzir o dólar – em 1792 – e houve várias tentativas falhadas de fazer um banco central.

[quote_box_left]“Uma união monetária só pode sobreviver se tiver uma grande solidariedade política e por isso é que as uniões monetárias – que a História verifica e que sobreviveram – são as que tinham o suporte de uma união política, geralmente de recorte federal ou aparentado…”[/quote_box_left]

Está então a dizer que existem erros estruturais, conjunturais e também eventos dramáticos…
Um outro caso, a que eu chamo de império federal, foi o II Reich, de Bismarck. A Alemanha tinha 30 e tal unidades políticas e a Prússia liderava a unificação depois da vitória sob a França. Só em 1876 é que foi possível unificar todos os bancos centrais que existiam nos estados alemães e que na altura se chamava Reich Bank. Em 1871 fizeram a Constituição. Digo que [isto] era Imperialismo Federal na medida em que os estados continuavam a estar representados parlamentarmente; a única questão é que o imperador era sempre da Prússia. O Império Austro-Húngaro – que também tem traços democráticos – tinha uma união monetária que passava pelo crivo do Parlamento. Como era um império constituído por dois reinos, de dez em dez anos havia uma sessão especial do Parlamento que se debruçava sobre a renovação da união monetária… Nós nunca tivemos nada disto na zona Euro.

Sem união política, considera então impossível a união monetária?
Que funcione, sim. A união política permite criar uma esfera de Governo comum e a Comissão Europeia não é um governo comum, até porque precisam de ter um orçamento comum que permita fazer investimentos, políticas contra-cíclicas quando os Estados estão com dificuldades. Num governo federal, quando há uma expansão económica, o governo tende a contrair.

Quando fala de federalismo, está a falar de política, mas a verdade é que o Tratado Orçamental, que impõe a intromissão na definição dos orçamentos nacionais, não é só um instrumento económico mas, sobretudo, de economia política. No fundo, já existe federalismo através deste tratado…
Existe uma caricatura, na medida em que só existe o federalismo como penitência e não como salvação. Uma questão central tem que ver com o orçamento comum e a capacidade de políticas de coordenação económicas, que são duas coisas que efectivamente ainda não existem na Europa. O orçamento comunitário da UE corresponde a 1% do PIB e, quando o [Jean-Claude] Juncker e o [Durão] Barroso se sentavam com os chefes de Estados dos Governo, tínhamos 1% do PIB europeu sentado à mesa de 45% do PIB europeu, que é sensivelmente aquilo que os orçamentos dos governos representam. Temos uma desproporção absolutamente brutal. Para podermos falar de federalismo económico de um governo que tivesse capacidade de fazer as tais medidas, precisaríamos de ter um orçamento europeu, no mínimo, de 4% a 5%. Isto para um federalismo “low-cost”…

[quote_box_right]“Vale a pena ler o documento das propostas apresentadas por Juncker, depois destes quatro meses de negociação com Tsipras. É como se nada tivesse acontecido, as mesmas coisas. É o IVA a aumentar, exclusões de sectores de pessoas com problemas…”[/quote_box_right]

Isso significaria mais impostos para os povos europeus?
Neste momento temos 1% e não dá. Como é que vamos arranjar os tais 5%? Através da superação de uma outra desvantagem que a actual situação traz: não só não temos política de coordenação económica, como temos uma competição fiscal – no sentido português da palavra – terrível. Isto provoca situações como as empresas do nosso PSI 20 pagarem impostos na Holanda. A vantagem da coordenação económica é que obriga a algum federalismo fiscal. Isto significa simplesmente que o orçamento comum é baseado nos impostos e toda a gente percebe. Se perguntar como é que funciona o orçamento europeu, só um técnico é que sabe responder. Mas esta baseia-se no princípio de garantir que algumas economias são contribuintes líquidas e outras beneficiárias: é de paternalismo fiscal. A ideia é manter sempre sete ou oito países à frente.

É essa Europa que quer federalizar ainda mais, dando mais poder a estes países? Se já temos um federalismo na prática…
O que temos é uma “consolidação de Estado”, ou seja, uma forma de hegemonia misturada com uma partilha de soberania monetária e cambial, mas que é um federalismo só com desvantagens e sem a solidariedade e o desenvolvimento. É um sistema monstruoso e que, na minha perspectiva, não vai sobreviver muitos anos. O BCE é que tem salvo a Europa de uma desagregação que teria acontecido em 2010 ou 2011. A grande reforma que precisamos não são na Grécia ou Portugal, mas sim da zona Euro e a prova disso é o BCE. O próprio resgate da Grécia e Portugal era proibido pelo artigo 125 [Tratado de Lisboa] e é muito interessante, porque o mecanismo que foi encontrado é o da ambiguidade e falta de coragem de se dirigir ao cidadão. O artigo 125 é uma espécie de cadáver que está no Tratado… E o artigo 123, que proíbe o financiamento monetário. Ou seja, enquanto os bancos centrais de outros países compram as suas obrigações do tesouro no mercado primário e consegue fazer um financiamento político, o BCE compra a dívida que está sobretudo na posse dos bancos, no mercado secundário.

Então, pelos vistos, interpretando esse artigo do Tratado de Lisboa, conclui-se que os políticos europeus estão nas mãos desses bancos, fazem-lhes as vontades. Vamos federalizar mais para lhes dar ainda mais poder, para expandir e dar uma dimensão final às doutrinas neo-liberais?
Não. A proposta que defendo é a explicitação do federalismo e isso implica ser capaz de voltar ao princípio, à ideia de um tratado constitucional, definindo claramente as competências da esfera europeia, fazer uma reforma fiscal que permita habilitar esse governo a ser eleito pelos cidadãos com os recursos orçamentais necessários e impedir esta situação em que temos o Conselho Europeu a controlar o processo. A Comissão Europeia está neste momento na posição de “serva” do Conselho Europeu e não tem tido capacidade de iniciativa. Os tratados recomendam que todo o processo legislativo começa na Comissão e agora é ao contrário: todo ele começa nas reuniões do Conselho Europeu, por sua vez dominado pela Alemanha, às vezes com o apoio da França. Temos que fazer esse caminho – claro que a política é a procura da liberdade possível – mas também procurar evitar a “física política” – que é quando se faz a única coisa que se pode fazer. Estamos a ver que a política na Europa está a estreitar-se tanto que qualquer dia já só temos física, sendo só administrada a desordem.

[quote_box_left]“O que temos é uma ‘consolidação de Estado’, ou seja, uma forma de hegemonia misturada com uma partilha de soberania monetária e cambial, mas que é um federalismo só com desvantagens e sem a solidariedade e o desenvolvimento. É um sistema monstruoso e que, na minha perspectiva, não vai sobreviver muitos anos”.[/quote_box_left]

Neste enquadramento, também deu a ideia de que prefere uma solução que passe pelos partidos políticos tradicionais do que pela emergência de novas forças políticas ou novos conceitos, que acontecem em países como a Grécia, a Espanha ou a França. Em que sentido prefere os tradicionais?
O que prefiro é que exista uma consciência colectiva dos europeus no sentido de não voltarem as costas à Europa, porque é a casa que nós temos e, se ela se fragmentar, as ruínas caem-nos em cima. Julgo que tudo é possível porque entramos numa zona – com a Grécia – em que as regras já não se aplicam e é uma situação nova, porque é a primeira vez que um país da OCDE não cumpre os planos do pagamento do FMI e é, de facto, grave. É, sobretudo, feito num contexto em que não sabemos se vai haver acordo, pelo que se não houver, a Grécia terá que criar uma nova moeda. No entanto, isto vai ser uma confusão muito dolorosa para a Grécia e para o resto da Europa, porque não é só a questão dos credores oficiais, mas também da inserção deste país no mercado europeu, na medida em que os importadores e exportadores vão, certamente, ficar numa situação em que deixarão de estar interessados em vender produtos à Grécia, país com nova moeda e que vai ter que renegociar tudo com toda a gente.

Mas a dívida infinita também não é uma opção viável…
Não. Temos que ser rigorosos. Vale a pena ler o documento das propostas apresentadas por Juncker, depois destes quatro meses de negociação com Tsipras. É como se nada tivesse acontecido, as mesmas coisas. É o IVA a aumentar, exclusões de sectores de pessoas com problemas…

Não existe um regime de federalismo político assumido: com eleições, governo, presidente da Europa, nada… Mas há uma dúzia de bancários e políticos de determinados países que jogam no mercado financeiro e impõem aos países determinadas medidas.
Não lhe parece que podíamos aproveitar a Grécia para, pacífica e politicamente, começarmos a mudar as coisas? Era interessante. Essa racionalidade fazia sentido e julgo que os países que deviam ter logo aproveitado com a questão grega eram Portugal, Espanha e a Itália. O que eu acho inadmissível – e que os eleitores vão ter que punir estes governos nas próximas eleições – é que os governos de Portugal e Espanha não tivessem aproveitado, até porque sabemos que os ministros das finanças português e espanhol foram mais papistas que o Papa no Eurogrupo e isto significa que tanto em Portugal como em Espanha o que tivemos foram dirigentes partidários e não nacionais. Pensaram no seguinte: se conseguirmos ganhos por causa da Grécia, significa que toda a oposição que temos à nossa esquerda, vai ganhar as eleições porque vão perguntar porque não fizemos o que a Grécia fez. – É preciso que corra mal na Grécia para que nos corra bem a nós – é precisamente o discurso de Passos Coelho.

[quote_box_right]“Os ministros das finanças português e espanhol foram mais papistas que o Papa no Eurogrupo e isto significa que tanto em Portugal como em Espanha o que tivemos foram dirigentes partidários e não nacionais”[/quote_box_right]

Mas estes partidos do arco da governação são aqueles que defende…
Não exactamente. A reforma do sistema partidário pode assumir várias dimensões. Falamos dos casos grego e espanhol, onde está a ver-se uma reforma ao lado dos partidos tradicionais. Todavia, julgo que também é possível vislumbrar uma reforma da parte dos partidos tradicionais. Podemos conceber um processo misto, com o aparecimento de partidos convencionais que sejam capaz de dar a volta e ajustar contas com o seu passado, renovando-se, com novos partidos. No caso português, temos no espaço da direita uma certa renovação, com uma coligação que vai aguentar até ao fim e que vai partir outra vez para as eleições. A direita foi capaz de fazer uma coisa que a esquerda tem muita dificuldade em fazer, que foi unir-se, sempre com a perspectiva da manutenção do poder. Em relação à esquerda, vejo dois partidos mais pequenos – o PCP, que é um partido clássico que mantém basicamente as mesmas posições e o BE, que está numa posição de grande incerteza em relação ao futuro –, o aparecimento de uma força que vai disputar votos à esquerda, à direita e ao centro – que é Marinho Pinto – e a questão do PS, que é um grande enigma. Aparentemente, teria condições para se renovar e até produziu, com a equipa de Seguro, as primárias – que era um desígnio já muito antigo –, mas está a ser perturbado por uma grande dificuldade em não apenas calibrar o seu discurso programático mas também da narrativa do seu passado. A situação de ter um ex-primeiro-ministro preso não facilita a situação. Um dos grandes problemas do PS vai ser conseguir a demarcação muito clara relativamente à figura do anterior primeiro-ministro, mas também do método de fazer política que foi predominante durante esse período.

As Legislativas 2015 estão à porta e há a possibilidade do Governo mudar. Em que medida é que uma possível alteração de partido poderia influenciar a forma como Portugal se posiciona na Europa?
Julgo que a verdadeira escolha está, essencialmente, na compreensão de que a nossa política doméstica é hoje política europeia, tal como para Espanha, Grécia ou Itália. Qualquer possibilidade de contrariarmos a austeridade, que tem feito cair o investimento público a níveis tão baixos que só têm paralelismos históricos se recuarmos décadas, de ter capacidade para lutar contra a fragmentação financeira da UE, que faz com as nossas empresas tenham condições competitivas piores do que empresas da Europa Central… Tudo isto só será possível mudando as regras do jogo europeu. A melhor política que um novo governo pode fazer, pelo bem do nosso país, será a de dialogar extensivamente com forças de outros países. Temos algum tempo, mas não temos todo o tempo do mundo, partindo do princípio que a situação da Grécia não vai escalar muito mais. Aquilo que temos mesmo discutir é a questão do tratado orçamental e a minha posição é radical: este devia ser abolido, porque é um instrumento que não serve à UE. Se tivermos que encontrar uma posição intermédia, teremos que rever aquelas metas absolutamente irrealistas do défice e da dívida pública que nos condenariam a uma austeridade por, pelo menos, mais 20 anos.

[quote_box_left]“Um dos grandes problemas [do PS] vai ser conseguir a demarcação muito clara relativamente à figura do anterior primeiro-ministro, mas também do método de fazer política que foi predominante durante esse período.”.[/quote_box_left]

Disse que Portugal não tem uma lógica de projecto colectivo. Em que medida seria possível contornar esta sua ideia?
Maurice Duverger dizia uma coisa muito interessante quando aderimos à UE: ao entrarem na comunidade europeia, vocês, portugueses, parecem estar a reformar-se da História. Isto significa que Portugal não amadureceu suficientemente o seu desígnio estratégico, depois de termos rompido com uma tradição secular. A maioria dos portugueses e políticos não se apercebeu da mudança sísmica da revolução de 74: é que, nesta altura, não nos limitámos a substituir uma ditadura por um regime de democracia representativa. Já a tínhamos tido na Primeira República e na Monarquia. Em 74 interrompemos um ciclo em que a nossa identidade estratégica dependia de um apoio externo, que era o imperial. Em 74 estava em causa precisamente esta questão: onde é que vamos buscar este apoio externo? O país continuou a precisar disso… Adriano Moreira diz isso e eu apoio. Julgo que a Europa foi isso mesmo, mas não fomos capazes de perceber que a Europa era um espaço de luta e não de repouso. Devíamos ter negociado os termos de amarração na Europa.

Uma espécie de projecto nacional, como houve com os Descobrimentos… Resumimo-nos agora à selecção nacional de futebol e, esporadicamente, tivemos Timor, que foi um caso de sucesso.
Exacto. O falhanço nacional principal foi o Tratado de Maastricht. Em 1986 a negociação e as condições de entrada foram bem conseguidas. O que a democracia conseguiu não é nada que o Estado Novo não tivesse já pensado, até porque o primeiro pedido de adesão à comunidade europeia foi feito em 66, e não foi com Marcelo Caetano mas sim com Salazar, que pediu a adesão discretamente. Foi De Gaulle que se opôs porque tinha acabado de criar a sua política agrícola comum. Olhou para Portugal e pensou que era um país pequeno mas demasiado parecido com França: tinha muito agricultores. A vocação europeia não é nenhuma descoberta democrática, mas sim lógica.

Haveria outras alternativas?
De entre várias outras, há um projecto mais audaz, que seria o de uma união lusófona, que faria de Portugal um país descentrado da Europa, com uma base europeia, mas fundamentalmente centrado em África, que era o projecto de Norton de Matos. Nova Lisboa era o embrião de uma capital em África, o que seria uma experiência absolutamente extraordinária. O que falhou? O que falha actualmente: não se pode fazer isto nem um regime federalista sem democracia plena. Julgo que a actual crise que estamos a viver é também um momento para um despertar da nossa consciência nacional, de não estamos condenados à fatalidade, de pensar o país como um processo de venda a saldo do capital construído, dos bens imóveis, até que não exista mais nada. Este governo tem vendido tudo aquilo que constituía um suporte da nossa capacidade de autonomia em caso de sermos obrigados a seguir o nosso destino. No fundo, o nosso país está a ficar um país de assalariados.

[quote_box_right]“Temos que estreitar a cooperação com os PALOP, mas Portugal não pode pertencer a uma lusofonia mais forte se não tiver alguma coisa para oferecer. Devemos manter o projecto europeu, porque o que nos valoriza junto dos moçambicanos, brasileiros e angolanos é a nossa pertença à Europa.”[/quote_box_right]

O investimento chinês tem estado particularmente presente na área de investimento português. Como vê a influência da China em Portugal e que futuro augura?
A China é claramente uma potência que tem uma visão estratégica mundial, já não é só asiática, e também não tem estados de espíritos: partidos republicanos e democráticos, políticas conjunturais, nem presidentes burros ou inteligentes… Tem um projecto estratégico de décadas. Outro aspecto: a China não faz caridade e está a investir em Portugal porque neste momento é um bom negócio com empresas bastante válidas e estruturas lucrativas. Parece-me também que na perspectiva de projecção de poder no mundo, a China prefere a aliança e a parceria ao confronto e à dominação. Estando nós numa situação tão incerta e insegura em que a nossa permanência na zona Euro pode estar em perigo, é conveniente termos outras amarrações geopolíticas e geoestratégicas do ponto de vista económico com outras zonas do mundo. Temos que estreitar a cooperação com os PALOP, mas Portugal não pode pertencer a uma lusofonia mais forte se não tiver alguma coisa para oferecer. Devemos manter o projecto europeu, porque o que nos valoriza junto dos moçambicanos, brasileiros e angolanos é a nossa pertença à Europa.

Como aos olhos da China…
Faz todo o sentido fazermos parcerias com a China em vários sectores e talvez se tenha exagerado um pouco na percentagem de capital de cada sector que foi negociado e a culpa foi do nosso Governo. A Índia é também muito importante, mas os EUA também não devem ser esquecidos, tal como outros países. Diria que, à semelhança do que a região de Macau representa, também no que diz respeito ao investimento chinês em Portugal, o governo que vem a seguir deverá manter uma boa cooperação com a China.

com Leonor Sá Machado
leonor.machado@hojemacau.com.mo

12 Jun 2015