Edgar Martins foi considerado um dos melhores fotógrafos do mundo. “Quis representar a ansiedade que senti”

O trabalho “Silóquios e Solilóquios na Morte, Vida e Outros Interlúdios” e outro realizado no Instituto de Medicina Legal em Portugal valeram-lhe a distinção de um dos melhores fotógrafos do mundo pela Organização Mundial de Fotografia. Edgar Martins, português com raízes em Macau, promete uma exposição no território enquanto captura a ausência numa prisão de Birmingham, no Reino Unido

[dropcap]F[/dropcap]Foi considerado o melhor fotógrafo do mundo. Estava à espera deste reconhecimento?
Essa designação de melhor fotógrafo do mundo é sempre uma coisa muito subjectiva, porque o trabalho foi escolhido naquele momento, por aquele júri. Se calhar, se tivesse sido escolhido por outro júri, com um trabalho diferente, o resultado teria sido outro. Mas é claro que o reconhecimento é sempre fantástico, mais por abrir uma audiência bastante grande aos projectos. Se estava ou não à espera, não sei ao certo. Sempre estive confiante no peso conceptual do projecto, mas é uma questão de ver se é isso que o júri procura nas imagens ou não. O meu trabalho vai muito além do documental e do fotográfico e, por vezes, em prémios fotográficos fora do contexto das belas artes há a tendência para se escolherem prémios mais ortodoxos. O que me deixou bastante contente foi o facto de terem visto no trabalho qualquer coisa que merecia ser divulgada, e isso para mim é incrível, sobretudo para uma pessoa que trabalha um pouco fora da fotografia documental canónica.

O tema da morte trouxe algum fascínio ou chamou a atenção pelas razões certas?
Sim. O tema da morte é sempre uma coisa que suscita emoções muito fortes nas pessoas e muitas vezes emoções distintas, do estilo “não queremos sequer olhar para isso” ou “vamos lá ver o que é que isto nos tem a dizer”. A morte, para mim, foi um ponto de entrada para falar de linguagem fotográfica e a forma como nos relacionamos com fotografia. E em particular o facto de assuntos humanos, sociais e políticos complexos raramente serem conceptualizados fora do contexto da fotografia documental canónica. Quis produzir um projecto que reflectisse sobre as lacunas de informação, compreensão, representação e também as ansiedades sobre a ética e estética que inevitavelmente surgem com a fotografia documental. E foi assim que surgiu este projecto que produzi com o Instituto de Medicinal Legal e de Ciências Forenses em Portugal.

FOTO: Nuno Fox

Como foi a sua preparação? Como é que o pensou e estruturou? O que sentiu quando viu os materiais que ia fotografar?
A minha ideia para o trabalho era muito distinta em relação ao que o trabalho acabou por representar. Não estava ciente do material que o instituto tinha mas também do tipo de acesso que eles me iam dar. Sobretudo, não tinha noção do espólio fotográfico fantástico que eles tinham. A partir do momento em que descobri esse espólio, ajudei a conservar, porque estava, não digo abandonado mas os objectivos de uma instituição de ciência forense são sempre outros. Durante três anos produzi mais de mil imagens e digitalizei mais de três mil negativos desse espólio. Trabalhei mais concretamente com as sedes de Lisboa e Coimbra, e fui também capaz de acompanhar investigações em curso, presenciar autópsias. Sabia, logo desde o início, que não estava interessado em representar este tipo de situações que pudessem ser vistas como visualmente sensacionalistas.

Porquê?
O que queria representar era a ansiedade que senti por estar neste tipo de local e por trabalhar com este tipo de material. É por isso que o meu trabalho se concentra numa linguagem de subtracção e não de documentação, é mais pela omissão e não tanto pela revelação. As imagens que foram premiadas para o projecto revelam isto muito bem. Representam provas forenses, objectos usados em crimes e em locais de crimes e também cartas de despedida de pessoas que cometeram suicídio. Não há dúvida de que as cartas de despedida têm um conteúdo potencialmente emotivo, mas a verdade é que é neste contexto, quando estou a lidar com este tipo de material, que me sinto o mais desconfortável possível. São coisas muito pessoais e uma pessoa fica com a sensação de que não deve olhar para elas, quanto mais representá-las. É precisamente esta ansiedade que eu tenho, em pensar que não devo olhar para o material que eu queria comunicar a um potencial público. É daí que surge um pouco a metodologia adoptada.

Quem vê não percebe de imediato do que se trata.
Quem olha para as imagens e não sabe que são cartas de despedida jamais chegará a essa conclusão, porque eu fiz todos os possíveis para não revelar o conteúdo e para exacerbar a relação entre revelação e omissão, entre o que se comunica e fica ausente. A partir do momento em que decidi que queria abordar o material desta forma foi simplesmente uma questão de ponderar sobre a metodologia adoptada. Este projecto foi bastante experimental neste sentido, porque incluiu imagens de arquivo, fotografia documental usando máquinas analógicas de grande formato, mas também usei abordagens que passaram por apropriar imagens do meu próprio arquivo fotográfico. No caso das cartas de despedida acabei por usar equipamento digital de alta resolução para as fotografar, porque fiz várias experiências. Mas a partir do momento em que percebi que poderia representar este material de uma forma subtil e enigmática com este equipamento, decidi utilizá-lo. Antes de chegar a este equipamento ainda tentei fazer fotogramas, um método muito artesanal. Há imagens no projecto que incluem fotogramas, mas nas imagens premiadas, nas cartas de despedida, foram todas fotografadas com equipamento altamente tecnológico.

Disse numa entrevista que ficou com uma ligação à temática da morte depois do homicídio de um amigo seu. Como é que levou depois esse tema para o processo artístico?
Há várias fases que me levaram a trabalhar sobre este tema. Comecei a querer trabalhar o tema da morte há 15 anos, mas senti que na altura não estava preparado. Quis trabalhar na altura com agências funerárias e rapidamente percebi que isso não ia levar a lado nenhum. Mas ainda não tinha amadurecido o suficiente para trabalhar um tema tão complexo. A minha prática artística nos últimos dez anos tem-se enraizado naquilo a que temos difícil acesso, então estou interessado nas técnicas de expressão artística nestes ambientes que promovem ou criam um diálogo.

Como por exemplo?
Trabalhei muitos anos com o tema da indústria e tecnologia, mas percebi que esse tipo de abordagem e tema tinha chegado a uma conclusão natural, e aí quis desafiar-me como pessoa e como artista. A morte surgiu-me como um tema interessante porque também é complexo, e o meu melhor amigo, na altura, um fotojornalista sul-americano que vivia aqui em Inglaterra, foi documentar a guerra na Líbia sem qualquer afiliação. Foi com três jornalistas independentes, achávamos que tinha sido raptado pelas milícias de Kadafi, chegamos a fazer uma campanha em prol da sua libertação e só soubemos que tinha sido assassinado quando os outros jornalistas foram libertados. Um dos jornalistas que fez essa viagem, americano, e que cheguei a conhecer, foi assassinado na Síria um ano depois do meu amigo. Então, essas duas mortes fizeram-me prestar uma atenção especial à forma como este tipo de matéria é tratada nos media e outros meios.

Falou-me de intenções neste projecto, mas nunca quis chocar.
O choque funciona uma vez, e esse é o grande problema da fotografia. Sempre tive a visão de que a fotografia choca e é intrusiva, mas é um mecanismo apotropaico. Aliás, esse é um dos grandes problemas do fotojornalismo, essa questão de polarizar os eventos. Apesar de chocar, tem esse papel de atenuar a nossa experiência de situações violentas. Nesse sentido, quis evitar esse tipo de abordagem e foi por isso que não fotografei autópsias, por exemplo, apesar de as ter presenciado. O projecto foca-se muito neste exercício conceptual do que se revela ou não.

Tem um novo projecto, numa prisão de Inglaterra, intitulado “Sociologia da Ausência”. Porquê este tema?
Este é o subtítulo do título principal, que é “o que é que a fotografia tem em comum com um jarro vazio”. Não haverá resposta no título, e é o vácuo no seu interior. É algo estrutural em torno da ausência. Estou a trabalhar com uma prisão em Birmingham, com um pequeno grupo de prisioneiros e as suas famílias. Tenho interesse em abordar a forma como lidamos com a ausência de um ente querido, sobretudo se formos forçados a viver separadamente, mas a fotografia representa algo que não se vê. E há aqui algo mais interessante, que é como é que a fotografia não se identifica com o seu sujeito fotográfico, mas com a ausência desse sujeito. Acho que o tipo de questões que levanta são profundas e muito interessantes. É pensar como podemos avançar o debate sobre a fotografia documental.

Da série “Silóquios e Solilóquios sobre a Morte, a Vida e outros Interlúdios” © Edgar Martins

De que forma é que Macau influenciou a sua carreira, ou tem vindo a influenciar?
Macau é um sítio de contrastes. Sempre foi e continua a ser, apesar dos contrastes evoluírem e sofrerem mudanças. Isso acabou por despertar em mim um espírito crítico desde muito jovem, e nesse sentido Macau foi importante. Na adolescência o meu contacto com a fotografia foi sempre esporádico, nunca achei que poderia explorar de forma séria. Cheguei a fazer um curso de fotografia durante uns meses, mas nada além disso, e ninguém na minha família tinha paixão pela fotografia. O que me levou a decidir enveredar por este caminho foi o facto de, em 1996, ter publicado um livro de poesia e dissertações filosóficas – aliás, a escrita sempre foi a minha paixão – intitulado “Mãe, deixa-me fazer o pino”. Quando acabei o livro, e tive oportunidade de o reler, apercebi-me que era muito visual, baseado em visualizações específicas. Aí percebi que deveria estudar imagem visual. O que sempre me interessou na fotografia foram as suas insuficiências e carências. Toda a linguagem que criei ao longo dos anos tem sido estruturada em torno destas ideias.

Albano Martins, seu pai, tem lutado pelo fecho do Canídromo, uma iniciativa que conseguiu ir além fronteiras. O prémio que agora ganhou trouxe-lhe mais visibilidade. Pretende chamar a atenção para esta questão com o seu trabalho?
Do ponto de vista visual e fotográfico, a nível de projecto, não é que não seja interessante, mas penso que teria pouco a contribuir enquanto artista. Enquanto pessoa, tenho certamente um papel e já o tenho feito. Tenho um papel mais modesto em relação ao que o meu pai tem vindo a desenvolver na ANIMA e tenho apoiado a sua causa o máximo possível. Acho que é uma causa incrível e, aliás, a relação da nossa família com os animais foi moldada face às atitudes que existiam em Macau e na China. Todos somos apoiantes dos direitos dos animais. 

Para quando uma nova exposição em Macau?
Neste momento, estou a discutir com duas entidades, mas não posso dar mais dados. Vou certamente apresentar um dos projectos que estou a fazer entre 2019 e 2020. É um projecto que será apresentado na sequência de uma apresentação que irei fazer em Pequim, no Three Shadows Art Center. Depois o trabalho passa por Macau, ainda que numa apresentação distinta. Dentro do próximo ano irei apresentar trabalho aí.

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