Andreia Sofia Silva EntrevistaJoão Amorim: Protocolo com IC foi “empurrãozinho político” [dropcap]Q[/dropcap]ue balanço faz dos 30 anos de existência da FO? rinta anos é muito tempo e obviamente que o balanço é positivo. A fundação foi criada a partir de Macau e, na década de 90, criámos as delegações de Macau e da Índia. Criámos depois a delegação em Timor-Leste e em 2008 conseguimos criar o nosso projecto, que foi pensado e construído ao longo de dez anos: o Museu do Oriente. Foi algo que nos trouxe uma nova visibilidade aqui [em Portugal], porque até aí não tínhamos um local próprio para poder mostrar as nossas colecções e desenvolver outras actividades culturais. Houve então um novo fôlego? Sim. Em Macau, houve uma certa mudança de estratégia, não muito acentuada, entre a Administração portuguesa e chinesa, e mantivemos actividades ligadas ao ensino do português. O ensino do português é algo a que estamos ligados desde o princípio, em Macau, Índia e mais recentemente em Timor. A nível cultural desenvolvemos as nossas actividades nessas delegações e aqui em Lisboa temos o museu, que é um organismo vivo. Temos um programa de espectáculos, fazemos muitas conferências, workshops. O nosso centro de documentação funciona para dar apoio a investigadores. A criação da FO esteve envolta em alguma polémica. 30 anos depois, esse capítulo está encerrado? Não diria que a criação esteve envolta em polémica. Houve alguma no período que antecedeu a transição de Macau, e resolveu-se o problema com o Grupo de Ligação Luso-Chinês. A FO sempre foi portuguesa, mas o pensamento dos chineses não era exactamente igual ao nosso e foi necessário negociar o estatuto da FO em Macau, já que em Portugal nunca esteve em causa. Esse período coincidiu com a minha passagem por aí, na qualidade de responsável pela delegação, e foi, diria, muito interessante. Tudo se resolveu bem, tivemos que fazer umas escolhas, mas foi bom resolvermos isso com um acordo entre as duas partes, porque potenciou a continuação da ligação da fundação à China. Sinal disso é que mantemos, desde 1998, o protocolo com o Ministério da Cultura da China. Foi assinado recentemente um protocolo com o Instituto Cultural (IC). Porquê tanto tempo para assinar um acordo desta natureza? Que actividades serão desenvolvidas? Não fazia muito sentido termos um protocolo de cooperação cultural com a China e não termos com Macau. Demorou muito tempo, mas também as duas partes não tinham pensado nisso de modo muito activo. Há uns dois anos, com a visita do secretário a Portugal [Alexis Tam], ficou decidido que faria todo o sentido. O protocolo abre as portas para uma colaboração mais institucionalizada, e o que vamos fazer cabe agora às duas partes. Vamos propor actividades de Macau em Portugal e vice-versa, e queríamos explorar parcerias com os museus de Macau. O protocolo é mais um empurrãozinho político. Uma questão formal que estava por concretizar. Tem significado político e é importante continuarmos as boas relações que temos com Macau. É continuar o trabalho que tem vindo a ser feito. Daqui a semanas o presidente Xi Jinping estará em Lisboa. Está prevista alguma visita ao Museu do Oriente? Não fomos contactados para esse efeito. Fizemos alguns contactos para a realização de eventos ligados à visita do presidente, nomeadamente o lançamento de um livro do próprio presidente chinês. Por uma questão de espaço, o lançamento será feito no Palácio Nacional da Ajuda. Com esta visita talvez se fortaleçam investimentos e relações político-económicas entre os dois países, e dá-me impressão que o Governo português acordou agora para essa realidade. Sobre a delegação da FO em Macau, quais os planos para o futuro? Prevêem-se mudanças no modelo de funcionamento? Em equipa que ganha não se mexe. É natural que daqui a um ano ou assim possamos fazer uma avaliação do trabalho e, eventualmente, explorar novas coisas. Mas nesta matéria não há muito a inventar. A gestão da fundação é bastante descentralizada, e as delegações podem propor o que acham melhor e nós aqui analisamos.
João Luz EntrevistaVictor Ângelo, ex-representante do Secretário-Geral da ONU: “Em 2049 a China será o maior poder económico do mundo” Um mundo em reconfiguração em termos de poder das grandes potências e com instituições internacionais em crise foram temas de conversa com Victor Ângelo. O ex-representante do Secretário-Geral das Nações Unidas está em Macau para participar numa palestra hoje na Universidade de Macau sobre as relações entre a China e a Europa. Amanhã estará na Fundação Rui Cunha para falar de populismo Com a ascensão do nacionalismo e isolacionismo, onde acha que as instituições internacionais, como a ONU e a União Europeia, falharam e qual o caminho para sobreviverem? [dropcap]O[/dropcap] falhanço é muitas vezes dos Estados-membros. Esquecemo-nos que estas organizações são conjuntos de Estados. Se houver um aumento muito marcante de ideias nacionalistas, ou extremistas nos estados é evidente que isso tem impacto na maneira como eles tratam as instituições internacionais e na maneira como aceitam, ou deixam de aceitar, as decisões tomadas nos círculos internacionais. Isto reflecte o que se está a passar nalguns Estados-membros mais importantes, nomeadamente o grande nacionalismo que surgiu com a chegada de Putin ao Governo no começo dos anos 2000. Depois com os movimentos nacionalistas na Europa e agora, evidentemente, com a presença de Donald Trump na Casa Branca, que foi uma espécie de ponto final num processo que tinha sido iniciado já há alguns anos atrás. Objectivamente, quais foram as falhas dos Estados-membros que abriram brechas que permitiram esta infiltração? A grande brecha que permitiu a ascensão do nacionalismo foi a crise económica de 2008 e o facto de que os países tiveram de encontrar soluções próprias. As instituições internacionais passaram a ser vistas como impondo soluções que aumentavam ainda mais a austeridade, portanto, soluções que não poderiam ser aceites. A partir daí, foi um pouco o salve-se quem puder, ou seja, cada um procurou encontrar a sua resposta às questões. Nomeadamente, respostas ao desemprego em massa, em particular o desemprego das pessoas mais jovens. Isso, evidentemente, cria um estado de espírito de “primeiros os nossos”, ou seja, vamos trabalhar para que a economia ofereça emprego aos nossos filhos, aos nossos habitantes. A partir daí, surge a ideia do nacionalismo e também a ideia de que se fronteiras nacionais não forem reinstituídas não estamos protegidos. Perdeu-se um bocado a noção de que as instituições internacionais, e em particular, por exemplo, a União Europeia, foram criadas para proteger as pessoas. As pessoas passaram a ter medo dessas instituições, em vez de sentirem que elas as protegiam e surge a ideia do nacionalismo, a velha ideia de que eu me protejo dos outros e cada um trata de si. Como se resolve um problema destes? Como se restaura o sentido de unidade? Acho que é fundamental voltar a falar de solidariedade. Nós esquecemo-nos que estamos num planeta que é cada vez mais pequeno, em que a comunicação é cada vez mais fácil e em que os problemas se transferem rapidamente de um país para outro. Aquilo que é hoje um problema no país A pode amanhã ser no país B ou no país C. Se estamos no país B ou C deveríamos ter todo o interesse em ajudar o país A a resolver os seus problemas porque esses podem tornar-se os futuros desafios que a chegar à nossa casa. O exemplo mais flagrante disso é a questão das migrações. A migração é, pura a simplesmente, a transferência dos grandes desafios de pobreza que existem em várias partes do mundo, nomeadamente em África, para as regiões mais desenvolvidas, em particular para a Europa. Nós não conseguimos, ao fim de várias décadas de ajuda ao desenvolvimento, resolver os problemas do desenvolvimento em África e esses problemas agora vêm à nossa procura. Numa era de ressurgimento do populismo, os partidos mais tradicionais de centro perdem terreno, credibilidade, esvaziam-se de poder, inclusive com múltiplos escândalos de corrupção. Acha que é possível recuperar a credibilidade do centro? É verdade que os partidos do centro direita e, sobretudo, do centro esquerda, perderam votantes e apoio eleitoral e perderam, em grande medida, credibilidade. Isso nota-se em várias partes da Europa, nomeadamente com os partidos socialistas e os partidos sociais-democratas. Mas não só, partidos do centro direita, como o partido que apoiava o ex-Presidente francês Sarkozy, é um partido que praticamente desapareceu da cena política e representa um máximo de 15 por cento da população francesa. Um partido que teve durante dezenas de anos uma força enorme no sistema de poder francês. Na própria Alemanha notamos uma erosão do poder do partido de Angela Merkel, não é apenas o Partido Social Democrata alemão que está em crise, é também, em certa medida, o partido cristão democrata de Merkel. Verificamos que quem tradicionalmente votava ao centro, esquerda ou direita, passa a votar nos extremos, sobretudos nos extremos mais nacionalistas, mais identitários, mais à direita. Precisamos voltar a ter ao nível do centro um outro tipo de liderança e uma outra maneira de comunicar com as pessoas, numa altura em que a comunicação é fundamental. A vantagem dos extremistas é que têm mensagens muito simples, fáceis de entender, reduzem todos os problemas a uma só linha, a uma só solução, é a história do muro de Donald Trump. Resolve-se o problema da imigração construindo um muro, resolve-se o problema do desemprego expulsando os imigrantes, resolve-se o problema da insegurança expulsando os islâmicos. Este tipo de discurso, extremamente simplista, passa junto de algumas camadas da população. Felizmente, ainda não passa junto da maioria. Mas a verdade é que partidos que tradicionalmente não tinham apoio eleitoral, partidos extremistas, nomeadamente de direita, têm hoje 20 ou mais por cento dos eleitores a votar neles. Acha que o surgimento da terceira via e a colagem ideológica do centro direita e centro esquerda pode ter tido um papel? Como é que isto aconteceu? Há aqui vários factores. Por um lado, o centro direita e o centro esquerda, a partir de determinada altura, passam a fazer discursos políticos praticamente idênticos. Ou seja, tanto fazia ouvir-se um lado como o outro. Na realidade, para o eleitor e cidadão comum, era a mesma conversa. Esse foi um factor. Perdeu-se a noção de que era preciso fazer a diferença entre uma solução de direita, mais conservadora, e uma solução de esquerda mais progressista. Por outro lado, perdeu-se também um bocado a noção de que é preciso haver uma renovação das classes políticas, ou seja, ambos os centros apresentavam sempre os mesmo tipo de líderes e pessoas. Muitas vezes, as mesma pessoas repetiam-se de eleição para eleição. O que se verifica actualmente é que tudo é muito dinâmico e as pessoas querem ver novas caras, novas lideranças e é por isso que vão para os extremos. O Podemos, em Espanha, aparece e ganha votos porque eram caras novas, novas na política e jovens. Não eram os velhos políticos que toda a vida fizeram política, não eram membros do establishment. Os eleitores começaram a votar em candidatos com outro tipo de discurso, mais perto do dia-a-dia das pessoas, dos problemas concretos como habitação, saúde, emprego. Longe dos grandes e tradicionais discursos teóricos. Há uma renovação de elites que é preciso também ter em linha de conta. Depois do perigoso equilíbrio geoestratégico entre os blocos russo e norte-americano, um pouco por todo o lado deflagraram guerras por procuração, com grandes potências nos bastidores. Como pode a ONU intervir em conflitos destes, como a guerra no Iémen? Há aí várias questões. Uma delas é que há, de facto, uma marginalização da ONU e das instituições internacionais. Embora a ONU tenha nomeado representantes especiais para acompanhar conflitos, a verdade é que estes representantes especiais são mantidos nas margens das grandes reuniões e discussões e não participam das decisões tomadas pelas grandes potências. Há que voltar a falar das Nações Unidas e frisar que as Nações Unidas não podem, de modo algum, ser marginalizadas neste tipo de conflito. A ONU não devia servir apenas para resolver conflitos onde os interesses estratégicos das grandes potências pesam pouco ou nada. Não pode ser. Tem de resolver todos os tipos de conflitos, incluindo o Iémen onde não só há uma rivalidade regional muito grande entre a Arábia Saudita e o Irão, mas também o facto do Iémen controlar uma das vias de comunicação fundamentais para o abastecimento da Europa em matérias-primas estratégicas, nomeadamente o petróleo. Esta questão de marginalização das Nações Unidas é fundamental. A questão destes conflitos em pontos estratégicos também precisa ser resolvida rapidamente e nós não podemos, de maneira alguma, apostar no país A contra o país B. Temos de tratar a Arábia Saudita e o Irão no mesmo pé e ambos têm culpas no cartório e têm de encontrar uma solução para trazer a paz ao Iémen. Estamos a falar de uma profunda necessidade de reforma das instituições. Antevê que este panorama possa degenerar numa guerra mundial? Penso que não, porque hoje em dia uma guerra mundial não tem os protagonistas que seriam necessários. Em termos de poder militar não há ainda nenhum poder militar que possa ser equiparado ao poder militar americano. Mesmo novas potências militares ficam muito aquém. Falar de uma guerra mundial, neste momento, seria despropositado e pouco realista. Não há da parte dos rivais dos Estados Unidos qualquer tipo de apetite em entrar num conflito aberto com os Estados Unidos. Não sei se isso não acontecerá dentro de 20 ou 30 anos. Mas nos próximos anos não vai acontecer. Mas estão em cima da mesa conflitos importantes. Um deles é o Iémen, outro que continua por resolver é o Afeganistão e a Síria. No norte de África temos a Líbia, que está num caos completo e sem resolução. E provavelmente iremos ter outros conflitos em volta dos países do Sahel em África. Vamos continuar a assistir a conflitos localizados, ao nível das regiões, mas provavelmente as coisas não irão além disso. Esses conflitos vão continuar a ter protagonistas ao nível das grandes potências. As Nações Unidas têm estado excluídas da parte central da resolução destes conflitos. Provavelmente, vamos assistir ao aparecimento de organizações regionais que vão desempenhar um papel que as Nações Unidas não têm podido desempenhar. Vamos ter uma União Africana mais forte e mais capaz. Na Ásia, vamos assistir ao desenvolvimento de estruturas regionais como o ASEAN. No Médio Oriente, a Liga Árabe. Provavelmente, iremos nesse sentido de criação de coligações de países, como na Síria onde temos uma coligação que seria impensável mas que está a tratar de arranjar uma solução (Rússia, Turquia e Irão). Coligações pontuais que poderão desempenhar o papel que deveria ser das Nações Unidas, em particular pelo Conselho de Segurança da ONU. Depois de 2011, e da crise da Líbia, o Conselho de Segurança está praticamente paralisado no que diz respeito à resolução dos grandes conflitos internacionais. Como fica o equilíbrio geoestratégico com a entrada em cena da China? Nós estamos a avançar rapidamente para uma redefinição do equilíbrio de poderes, não há qualquer tipo de dúvida em relação a isso. Esse equilíbrio de poderes vai continuar a ter os Estados Unidos. A China vai também ter um papel fundamental e muito provavelmente a Índia também vai ser um poder importante. A Rússia penso que terá alguma influência regional, mas será um poder relativamente limitado e mais interessado na periferia estratégica à volta da Rússia. A Europa poderia também ser um poder geoestratégico, não sei se o vai conseguir. Ou seja, vamos ter novos centros de equilíbrio, novos poderes e novas relações de força. A grande questão é saber se estes novos actores internacionais querem ter um papel mundial, ou regional. Se quiserem ter um papel mundial entram em conflito com os Estados Unidos. O meu grande receio é que um conflito ao início pacífico pode rapidamente transformar-se num conflito aberto. Esse é o meu grande receio nos próximos 20 ou 30 anos. No ano 2049, quando a China fizer 100 anos da revolução, será o maior poder económico do mundo, que gerará o maior PIB e será, certamente, um grande poder político e militar. Até que ponto, esse poder militar se vai limitar a sua esfera de intervenção na região asiática, mesmo no sentido amplo, mesmo se for só isso já está em rivalidade com os Estados Unidos. Mas for mais além, irá certamente haver uma rivalidade aberta, aliás, que é cada vez mais evidente. Na cimeira da cooperação económica entre a Ásia e Pacífico, que teve lugar este fim-de-semana, foi bem clara a tensão existente entre os Estados Unidos e a China. Tensão aberta, de crítica aberta sobretudo dos americanos em relação aos chineses, de tal maneira que pela primeira vez na história destas cimeiras dos países da Ásia e do Pacífico não se conseguiu aprovar um comunicado conjunto. Isso é um sinal muito evidente de que as divergências e o fosso são cada vez maiores. A vantagem dos Estados Unidos continua a ser, para já, que grande parte da população asiática prefere ter o guarda-chuva americano do que o chinês. Essa é a grande vantagem dos Estados Unidos. Um país como a China, apesar de próximo cultural e geograficamente, é ainda assim um país que pela sua dimensão amedronta os países vizinhos mais pequenos.
Sofia Margarida Mota Entrevista EventosNuno Markl, humorista: “Isto da humanidade não tem cura” O comediante, autor, radialista e apresentador de televisão Nuno Markl esteve em Macau para apresentar o espectáculo “Como ser um saco de pancada deprimente e vencer na vida”. Em entrevista, conta como a comédia pode ser um mecanismo de protecção e como o ser humano “é intrinsecamente marado” [dropcap]C[/dropcap]omo é ser um saco de pancada deprimente que consegue vencer na vida? Acho que isto no fundo, como todo o humor ou grande parte do humor que faço, é uma espécie de auto terapia, que me poupa bastante dinheiro em consultas. Tenho sempre esta ideia de que se as pessoas em vez de varrerem as suas coisas mais deprimentes para debaixo do tapete, se as assumirem e se lidarem com elas de uma maneira divertida, isso consegue ser bastante libertador e conseguem contagiar outras pessoas a quem se calhar aconteceram as mesmas coisas. Embora soe a egocêntrico, porque se trata de um espectáculo sobre coisas que me aconteceram a mim, é muito giro ver a identificação de pessoas a quem aconteceram coisas parecidas e que passaram por embaraços idênticos. Torna-se, portanto, um exercício de catarse da minha parte e das pessoas que assistem ao espectáculo. Também estimulo diálogo com as pessoas do público e acaba por ser uma espécie de terapia conjunta que é muito divertida de se fazer. Como é o trabalho de fazer rir as pessoas? É tramado (risos). É um ofício para onde as pessoas vão. Analisando tudo o que se passa lá para trás, acho que grande parte das pessoas que trabalham na comédia, começaram na escola usando-a como uma espécie de mecanismo de autodefesa porque fazer rir quebra gelo e barreiras. Vamos com essa ilusão para a idade adulta a pensar que se nos safámos na escola à conta de fazer rir os outros. Mas depois percebemos que não é nada assim. Na realidade, não há nada menos unânime que a comédia, porque suscita uma reacção tão visceral. As pessoas ou riem ou não riem e não riem todas das mesmas coisas. Portanto, há um lado sempre de incerteza e de desporto radical nisto. Costumo dizer que não faço nenhum desporto radical, tenho horror a coisas que me façam saltar de sítios muito altos. Portanto, o meu desporto radical é fazer piadas. Por muito que estejamos convencidos que determinada piada vá dar cabo do público, aquilo pode não funcionar e se calhar uma em que temos menos confiança pode tornar-se uma coisa que as pessoas agarram. Por isso, fazer rir é um ofício fascinante. Ao contrário de fazer dramas. O drama não suscita uma reacção visceral. Uma pessoa pode olhar para um drama e pode simplesmente fazer “humhum”, pode chorar eventualmente se for muito comovente, mas não precisa de o fazer. Pode apenas dizer sim, senhor, aqui está uma coisa bem feita”. Agora se o humor não fizer rir é complicado. Quando penso nisso é de facto uma forma de espectáculo tramada, mas que dá muito gozo. É arriscado? Sim, mas parte do gozo está nisso. Tenho sempre algumas incertezas e nervos antes de ir para um palco, mas depois chego lá e fico à vontade. Mas os momentos antes são sempre difíceis. FOTO: Sofia Margarida Mota Assume-se como um geek. Porquê? Sim. Acho que a minha “geekness” também começou na adolescência. Sentimo-nos inadaptados e vencemos essa inadaptação e timidez agarrando-nos a séries, a filmes, a banda desenhada, a coisas que possamos apreciar sozinhos e metidos no nosso mundo. Isso faz com que desenvolvamos esse apreço por este tipo de coisas e que saibamos nomes de artistas que fizeram coisas super obscuras em filmes. O que acontece depois é que crescemos e começamos a perceber que há mais geeks como nós e depois formam-se comunidades de geeks que justificam a existência de coisas como, por exemplo, as comic-cons. Toda a geekness, e não digo isto com sentido depreciativo, parte de uma certa solidão que nos faz estar mais alerta e tentar encontrar uma espécie de sentido da vida em coisas. Porque se sentia um inadaptado? Porque era tímido, porque era um caixa de óculos, etc. Mas depois comecei a perceber que se fizesse rir as pessoas e desenhasse caricaturas delas, conseguia vencer o bullying. Consegui fazer com que alguns bullies me deixassem de chatear por ter feito a caricatura deles. E pensei “ok”, isto é uma boa maneira de comprar amizades. Mas, nem sei se consigo avançar com alguma explicação para a minha inadaptação ao longo da vida. Acho que tem tudo a ver com uma aula de ginástica para aí em 1977, ou 78 em que me esqueci de levar os calções e me pareceu que era uma boa ideia ir fazer ginástica em cuecas. Como eram brancas como o calções que se usavam na escola, achava que as pessoas iam achar que naquele dia tinha apenas calções mais curtos. Mas, de facto, não acharam isso. Fui humilhado. Acho que isso faz com que toda a minha idade adulta, e ainda hoje, sinta que estou em cuecas brancas. Poderia surgir disto algo bastante deprimente, mas não. A ideia deste espectáculo é também a de se escarafuncharmos nas coisas que queremos esconder também as conseguimos vencer e, se calhar, ter algum sucesso. Lamentou a morte de Stan Lee. Qual o papel e a necessidade de super-heróis actualmente? Lembro-me o quão mal vistos eram os livros de banda desenhada quando estava a crescer. As pessoas questionavam-me porque lia “aquelas porcarias” em vez de ler outras coisas decentes. Há sempre esta ideia. Na verdade, e o Stan Lee foi exemplar nisso, os super-heróis não são mais que uma adaptação aos tempos modernos dos heróis mitológicos das Grécias e Romas antigas. No fundo, estamos sempre em busca de criaturas mais elevadas que nos possam salvar e dar algum sentido à vida. Acho que temos de facto super-heróis em muitas áreas, da medicinas aos bombeiros. Não precisamos necessariamente de tipos com capas e collants justos para nos salvar. No entanto, uma pessoa como o Stan Lee fez muito mais que simplesmente arranjar histórias para nos entreter. Por isso, acho que é exemplar. Ele criou mitos que desbloquearam muitas situações na vida de muitos jovens que foram lendo banda desenhada. Quando se fala hoje de um filme como o “Black Panther” como uma coisa revolucionária que tem um elenco todo afro americano, na verdade foi o Stan Lee que fez isso quando decidiu que deveria existir um super-herói negro que vem de um país em África que está muito mais avançado do que todo o resto do mundo. Ele desbloqueou muitas coisas: falou sobre raça, sobre tolerância. Sempre foi um tipo muito progressista e, às vezes, quando as pessoas grosseiramente dizem que os super-heróis são uma coisa patrioteira da América, na realidade não é verdade. Se as pessoas realmente mergulhassem naquelas histórias, iriam perceber que há ali muitas mensagens universais, que falaram a muitas crianças e que de certa maneira formaram muitas crianças. É muito activo nas redes sociais. Como vê esta relação das pessoas com o mundo virtual? Já larguei o Facebook, mas estou fortíssimo no Instagram (risos). Acho que as redes sociais chegaram para unir as pessoas, mas acabaram por as desunir mais que nunca. Ainda por cima acabaram por perverter o sentido das palavras como amigo, gostar, etc. Acho que as pessoas também criaram nas suas cabeças a ilusão de conseguirem mudar o mundo e a mentalidade dos outros usando o Facebook, quando não o conseguem. Às tantas acaba por ser apenas um exercício imaturo de insultos mútuos. Não adianta nada. Isso fez me sair do Facebook. Agora estou no Instagram porque acho que as coisas estão ainda respiráveis, Talvez por ser uma coisa mais baseada em imagem do que em texto. Mas, de um modo geral, a espécie humana não sabe lidar com uma ferramenta como o Facebook. O que se passa com a humanidade? Isto é meio apocalíptico e niilista de se dizer, mas acho que somos uma espécie intrinsecamente marada. Muitas vezes quando olho para a paz no olhar das minhas cadelas quase que lhes invejo a serenidade. Na verdade, quando há guerras entre cadelas têm apenas que ver com um prato de comida mas de resto há uma tolerância muito grande. Também não estou a sugerir que a humanidade deva andar a cheirar os rabos uns dos outros, que é uma coisa que os cães fazem e muito bem. Mas acho que isto da humanidade não tem cura. Por muito que existam coisas boas a acontecer nós, intrinsecamente, aquilo que nos distingue dos animais é que temos perversão intrínseca e alguma maldade e isso é muito difícil de resolver. Portanto, só podemos tentar levar isto o melhor que conseguirmos tendo em conta que somos de facto marados. Aliás, o preço para termos coisas tão incríveis como comédia, poesia, arte é também sermos passados da cabeça. Como encara situações da actualidade como o Trump no EUA e Bolsonaro no Brasil? Acaba por ser muito inquietante mas ao mesmo tempo é estranhamente previsível. Faz-me muito impressão que tudo isto esteja a acontecer. Especialmente alguém como o Bolsonaro. Aqui há uns anos, um tipo que dissesse as coisas que ele disse durante a campanha não seria levado a sério. Quando vi uma fotografia da Regina Duarte, que é uma actriz que admiro, abraçada ao Bolsonaro pensei: o mundo está, de facto, perdido. Não há solução para isto. A viúva Porcina está a apoiar um fascista. Inacreditável [risos]. Isto é muito preocupante mas, de certa maneira, a humanidade caminhou para este buraco. Muitas vezes, as pessoas ofendem-se com tão pouco à esquerda enquanto a direita fica unida. Essa desunião à esquerda faz de facto com que a direita se una e se ria, enquanto olha para a esquerda e vê toda a gente à porrada uns com os outros. Portanto, de certa maneira estávamos a pedi-las, o que é horrível, mas espero que isto, a dada altura, se afine e que seja apenas um acidente de percurso.
Andreia Sofia Silva EntrevistaBenny Tai, fundador do movimento Occupy Central: “Votar agora é uma forma de protesto” Faz parte de um grupo de nove pessoas ligadas à fundação do Occupy Central e que estão acusadas de crimes puníveis até sete anos de prisão. Benny Tai não receia uma eventual pena e deseja clarificar a origem do movimento após a polarização de ideias e conceitos [dropcap]Q[/dropcap]uais as suas expectativas em relação ao julgamento de hoje? A parte mais importante é que teremos a oportunidade de contar toda a história e motivações que nos levaram a organizar o movimento Occupy Central, as intenções que tínhamos e o que pretendíamos alcançar. Quatro anos depois, muitas pessoas podem ter esquecido o que de facto aconteceu. Na fase do movimento havia muita circulação de informação e as pessoas podem não ter compreendido as coisas mais importantes. Sobretudo as razões pelas quais começamos este movimento. Então teremos oportunidade para clarificar muitas coisas publicamente. O que nos vai acontecer em tribunal não é o mais importante. Acredita que, quatro anos depois, as pessoas têm uma percepção diferente do que é o movimento Occupy Central? Certamente. Depois do movimento, as coisas tornaram-se polarizadas, com diferentes interpretações do que é Occupy Central. Talvez algumas pessoas não tenham tido a percepção certa do que aconteceu na altura, então é por isso que temos de fazer uma clarificação, contar a história. O facto das pessoas poderem não nos compreender ou aceitar não é a parte mais importante, porque no final a história irá encarregar-se disso. Mas é importante deixarmos um registo. Continuou a dar aulas na Faculdade de Direito da Universidade de Hong Kong. Sentiu algum tipo de pressão para deixar o emprego, ou tem sido alvo de ataques ao nível da liberdade académica? A universidade tem um conjunto de regras para o despedimento de funcionários. O facto da universidade ter um docente com registo criminal não é o suficiente para o despedir. Não é claro que, mesmo que venha a ser acusado de algo, possa a vir ser despedido. DR Quatro anos depois do Occupy Central, como descreve o ambiente político de Hong Kong? Depois disso, e especialmente depois da tomada de posse de Carrie Lam como Chefe do Executivo, a situação tem vindo a piorar, e Hong Kong está a tornar-se cada vez mais num território autoritário. Temos visto casos de desqualificação [referência ao caso que envolveu os deputados do Conselho Legislativo], e a suspensão de um partido político [Partido Nacional de Hong Kong, de Andy Chan]. Não é que sejamos já um território autoritário, mas estamos a caminhar nessa direcção. Quais foram os principais erros do movimento Occupy Central? Não sei como dizer, porque algumas pessoas poderão ter a impressão de que usámos o movimento Occupy para mudar o sistema democrático de Hong Kong. Se foi esse o caso, falhámos o nosso objectivo. Nessa altura, sabíamos que as possibilidades eram muito baixas, mas queríamos tentar. Então se afirmarmos que a falha na mudança do sistema constitui um erro, posso dizer que esse erro já estava incluído no plano. Sabíamos que ao organizar este movimento as possibilidades de alterar o espaço de actuação de Pequim seriam muito baixas, mas ainda assim quisemos tentar. Mas houve outro objectivo que quisemos atingir, que era fazer com que mais pessoas tivessem a percepção da importância da democracia. E penso que atingimos essa meta mais do que podíamos imaginar. Um dos erros que podemos ter cometido foi subestimar o impacto do movimento. De acordo com o nosso plano original, teríamos apenas algumas milhares de pessoas, mas tivemos muito mais. Aí subestimamos o nosso trabalho. O que custou os 79 dias de ocupação não foi tanto o nosso trabalho, mas as acções da polícia com gás pimenta. Não é fácil apontar erros. Arrepende-se de alguma coisa? Há uma coisa de que me arrependo. Um mês após o Occupy Central, e depois dos estudantes terem oficializado as suas acções, ninguém sabia como proceder. As pessoas estavam estagnadas, e eu propus organizar grupos de eleitores para que todos os apoiantes do movimento se pudessem organizar em torno de alguns pontos em comum. Como tive objecções de vários lados, acabei por desistir do plano. Poderíamos não mudar nada, mas com esses grupos de votação haveria um verdadeiro desenvolvimento para as acções de rua a adoptar no futuro. O facto de não termos um mecanismo decisório foi o maior problema que encontrámos. Como podíamos preparar uma estrutura com pessoas diferentes? Este mecanismo decisório era importante, e se pudesse insistir e operar os grupos de votantes poderia, pelo menos, ter construído um modelo para a sociedade civil de Hong Kong usar no futuro. Arrependo-me de não ter insistido. É possível a ocorrência de um segundo Occupy Central em Hong Kong, ou um outro movimento semelhante? Não num futuro próximo, mas não nego que essa possibilidade venha a acontecer. Nos próximos anos queremos continuar com a nossa resistência não violenta, mas de uma outra forma. As acções de rua, com as acusações de desobediência qualificada, podem ter um custo muito elevado, mas ainda temos outros métodos não violentos. A votação é outro meio que podemos utilizar. Com o aproximar das eleições distritais [em Novembro do próximo ano] podemos usar o nosso voto para promover um avanço ou trazer algo de novo. Mas precisamos de melhor coordenação junto de todas as frentes do movimento pró-democracia. Os eleitores têm de compreender que não estamos numa verdadeira sociedade democrática. Há alguma incompreensão face à ideia de vivermos numa sociedade democrática. Votar agora é uma forma de protesto, porque ainda estamos a trilhar caminho até uma sociedade verdadeira democrática. Temos de usar o nosso voto de forma inteligente. Acredita que o movimento pró-independência tem espaço para crescer nos próximos anos? Não me parece. Acho que as pessoas de Hong Kong são muito práticas e não vêem a independência do território acontecer, pelo menos nesta fase. Não acho que nenhum destes movimentos, seja pró-independência ou pró-democracia, tenha a hipótese de ser bem sucedido nesta altura, a não ser que haja grandes mudanças na China. Aí todas as possibilidades estarão em aberto, inclusivamente a independência. Então, a questão principal não é se o movimento pró-independência terá mais apoiantes, mas se estamos prontos para uma eventual mudança na China. Ninguém sabe quando e se isso vai acontecer, mas se queremos ter uma sociedade mais democrática em Hong Kong, com o direito de decidir o nosso futuro, teremos de preparar os cidadãos de Hong Kong para quando esse momento acontecer, para que possamos tirar partido das oportunidades. Tudo o que fizermos agora deve ter como objectivo a preparação para a chegada desse momento. Muitos analistas políticos acreditam que Macau tem vindo a sofrer os efeitos do movimento Occupy Central. Concorda? Não sei como Macau pode estar a ser influenciado pelas acções do Occupy Central. Pelo que observo, Macau tem vindo a seguir a linha de Pequim e o entendimento que o Partido Comunista Chinês tem em relação ao conceito de “Um País, Dois Sistemas”. Tem-lo feito muito melhor do que Hong Kong, isto do ponto de vista do partido. Não vemos uma oposição forte em Macau e também as pessoas, os eleitores, tendem a apoiar o campo político mais tradicional. Não sei como comentar essa influência. Recentemente, na ONU, a delegação chinesa recebeu centenas de perguntas de países estrangeiros sobre a questão dos direitos humanos em Hong Kong. Acredita que isso pode levar a alguma mudança de paradigma, ou a uma maior pressão junto do Governo de Carrie Lam? Tudo depende do que irá acontecer na China. Se a situação económica piorar e o sistema na China se tornar mais instável, pode levar a algumas mudanças, mas não há muito que possamos fazer do nosso lado. Como disse, temos de nos preparar para essa mudança. As políticas deveriam ser mais dirigidas. As pessoas que actualmente são responsáveis pela implementação das políticas autoritárias da China, quer seja no Governo ou noutros sectores, como o empresarial, se essas medidas forem contra as leis de Hong Kong ou o direito à autonomia, deveriam ser responsabilizados por isso. Os Estados Unidos, ou outros países ocidentais, podem simplesmente recusar a entrada no país a essas pessoas. Penso que isso seria mais efectivo para a protecção dos interesses de Hong Kong. O grupo dos nove Os arguidos que hoje vão a tribunal são cofundadores do movimento “guarda-chuvas amarelos”, que surgiu no âmbito do Occupy Central. Além de Benny Tai, respondem hoje ao juiz Chan Kin-man e Rev Chu Yiu-ming, os deputados Tanya Chan e Shiu Ka-chun, o activista político Raphael Wong, os ex-líderes estudantis Tommy Cheung e Eason Chung e o ex-deputado Lee Wing-tat. Os nove activistas enfrentam várias acusações criminais, incluindo “incitação para cometer distúrbios públicos”. Já os três cofundadores do movimento enfrentam uma acusação adicional de “conspiração para cometer distúrbios públicos”, punida com pena até sete anos de prisão.
Sofia Margarida Mota EntrevistaJosé Anjos, poeta: “Escrevo para entender a morte” O poeta José Anjos esteve em Macau a filmar com João Morais o que será um documentário informal de viagem. Do território leva um sentimento de estranheza que pretende renovar a cada regresso. Entretanto, a poesia que escreve e diz é um acto de sobrevivência e resistência [dropcap]É[/dropcap] formado em Direito, exerceu advocacia e agora dedica-se à poesia. Como foi esta transição do Direito à poesia? Acho que o Direito à poesia é fundamental (risos). Nem sei bem, confesso. Nem queria ser advogado, mas acabei por fazer o estágio e gostar muito. Depois fui integrado e iniciei uma carreira que se adivinhava ser para sempre. Acho que foi isso que me assustou. Em Portugal ainda vivemos uma ideia de vida muito linear, quer dizer, as pessoas tornam-se naquilo em que é suposto tornarem-se. Na altura, uma pessoa cumpria aquilo que tinha que cumprir: fazer o curso com bom aproveitamento. Não havia outra opção que não entrar dentro de um túnel gigantesco, tornar-se o melhor possível, cumprir as suas obrigações e depois, na verdade, já não se saía do doutro lado deste túnel. Acho que há pessoas que estão mais preparadas para isso e digo isto com admiração. Quanto a mim, fiz o estágio já a trabalhar praticamente como advogado, fiquei na sociedade de advogados onde estava, depois passei para director jurídico. Aos 29 anos era associado sénior de uma das maiores sociedades de advogados do país. Uma carreia brilhante, mas que não chegava? Sim. Cheguei a um ponto em que olhava à minha volta e pensava “agora é isto”. Tentava olhar em frente e não conseguia, não me identificava, não havia nada que me fizesse querer. Olhava para as pessoas com quem trabalhava, pessoas maravilhosas, mas não me via a fazer o que elas faziam e a ser quem elas eram com a idade delas. Sentia-me até mal com isso. No fundo, até me sentia bastante egoísta, sentia que não estava a cumprir o que me era suposto e que estava a ter pensamentos proibidos. Quase um ingrato? Exacto, quase um ingrato. Aliás, tanto que deixei a advocacia, mas também fui voltando a ela muitas vezes. Porquê? Era, de facto, aquilo que eu sabia fazer e obviamente que há uma parte do Direito que gosto muito. Mas a advocacia, em si mesma, tem características que são absolutamente contrárias à ideia que temos de uma relação não antagónica com os outros e com o nosso horizonte. A advocacia implica um contencioso, uma negociação que é absolutamente importante nalguns casos porque é preciso pugnar pela justiça em geral, mas também pelos direitos dos clientes em particular. Outras vezes é uma espécie de campo de batalha de egos e vaidades. É preciso criar um cinismo. O cinismo é visto como uma grande qualidade e eu não consigo fazer isso.. O Direito, não especificamente o que é exercido na advocacia, tem outro fundamento, outro substrato de verdade, quase mesmo de ingenuidade. A construção jurídica das sociedades é muito tributária daquilo que é o reconhecimento humano dos direitos do outro. O Direito faz-se através da delimitação negativa do meu espaço da minha esfera jurídica, da minha esfera de acção, enquanto que na advocacia é o contrario: quero aumentar os meus limites, quero aumentar os limites do espaço que habito para lá do dos outros. Daí ser importante o Direito, precisamente para definir onde está este limite, quais são os direitos que são intangíveis e quais são aqueles que devem soçobrar ou cair perante outros. Esta criação complexa de uma sociedade que funcione de uma forma, dentro dessa hierarquia axiológica móvel, é absolutamente apaixonante. FOTO: Sofia Margarida Mota E a poesia? Já existia? Entretanto, comecei a ler alguma poesia, por volta dos 30 anos, porque me apaixonei. A poesia não está ligada obrigatoriamente à paixão, mas como não tinha tido nenhum contacto com poesia, tirando a que tinha dado na escola, nessa altura comecei a ter e foi quando comecei a escrever e a dizer poemas. Aliás, todas as cartas de amor acabam por ser poemas de certa forma. A poesia permite-me ligar às pessoas e criar em mim pontos de declinação com os outros e de inclinação para com os outros de uma forma não antagónica. Na advocacia era o contrário. Poesia e advocacia acabaram por se tornar incompatíveis. O que lhe trouxe a poesia? Acima de tudo, o que a poesia me permitiu foi a destruição de uma personalidade que tinha criado e que seria aquela que iria habitar até ao fim da vida. A poesia permitiu-me conhecer outra. Somos demasiado complexos e não temos personalidades unívocas. Seria impossível proibir a pluricidade das nossas personalidades. Por isso somos incoerentes, por isso somos instáveis. O Aldous Huxley dizia mesmo que o único homem verdadeiramente estável que ele tinha conhecido era um morto. O José Anjos não é só conhecido pelo que escreve, mas também por colocar os poemas em voz alta em palco. Qual a diferença entre a poesia escrita e a dita para os outros? O Leonard Cohen tem um texto chamado “Como se diz poesia” em que diz que “a língua original do poema é o silêncio”. O poema é escrito em silêncio como uma forma de mergulho e isso nunca vai mudar independentemente da forma como entregamos o poema. O poema escrito, o próprio acto de escrever já é uma interpretação, já é uma tradução. O poema faz-se de uma forma intuitiva, mais ou menos pensada, mais ou menos sentida, mas é uma coisa interior. Quase podemos dizer que vem de um sítio muito ruidoso dentro de nós, mas consegue sair cá para fora através de um apaziguamento, da organização desse ruído. Através de um silêncio que é construído e depois transformado em algo que cognoscível e que consegue exprimir sentidos e significados que vão para lá do gesto da expressão. Chamo a isso o milagre semântico. Escrevo uma palavra, e para uma pessoa que conheça aquela língua não estou apenas a juntar letras, mas estou a criar um sentido que abre uma porta que permite uma descoberta. A própria palavra, a poesia escrita, já é um caminho para a deturpação e tem que ser mesmo assim. Porque a palavra nem sempre tem um comportamento tão transparente como nós queríamos. Às vezes o equívoco da palavra serve um propósito. A grande tecnologia da linguagem é conseguir contar a história toda sem abdicar da sua ambiguidade. A poesia tenta através da metáfora e de outras figuras de estilo conseguir a transparência da palavra, ou seja, renegar a palavra. Um poema nunca é definitivo. E o que acontece quando é dito para os outros? O acto de dizer em voz alta poesia para o público é diferente do acto de dizer em voz alta sozinho. É mais um passo nesta linha de interpretação de algo. Uma interpretação das coisas como se lhes tentássemos dar uma voz para que elas se possam expressar e não o contrário. Não estamos, através do poema, a tentar expressar o que está dentro de nós. Estamos a servir de veículo, a inventar uma linguagem que permite às coisas expressarem-se. Há uma voz dentro das coisas. O leitor é o último degrau deste comboio de interpretação. Sem ele, o poema não existe. Ao dizer um poema cria-se uma urgência na leitura. Há pessoas que quando lêem um poema escrito não sentem nada. Quando o ouvem a ser dito por alguém, de repente abre-se um novo espaço e cria-se uma urgência na leitura. Hoje em dia, temos muito menos disponibilidade para nos sentarmos a ler. Temos uma velocidade interior que faz com que seja mais difícil parar e abrir espaço suficiente para a poesia entrar. Temos também mecanismos de defesa que não deixam as coisas entrarem. Curiosamente, quando estamos a ouvir um poema, estes mecanismos estão muito mais em baixo e a disponibilidade para ouvir é maior. Nos espaços onde a poesia é dita, as pessoas conseguem identificar-se mais porque estão mais vulneráveis. Há um contrato implícito das pessoas com o palco, um contrato de atenção e vulnerabilidade. Aqui a responsabilidade do artista é contemplar a realidade e a sua beleza terrível. Defini-la e torná-la acessível, primeiro a si próprio, como se estivesse a conter uma estrela para depois a poder mostrar aos outros sem que faça mal a ninguém. Há uma violência intrínseca nas coisas que a arte consegue transformar e transmitir com algum sentido. Estamos todos no caminho da autodestruição. A morte é disparada à nascença como um fio esticado. Somos o encaminhamento da morte. Mas, por outro lado, pensar na morte é também afastá-la, como afastamos o horizonte. É preciso dar ao horizonte a possibilidade de ele fugir de nós. A autodestruição é uma inevitabilidade. Leio para entender a vida, escrevo para entender a morte. O que nos pode salvar é que podemos escolher a inevitabilidade que nos cabe e podemos ser surpreendidos. A poesia é um acto de resistência? Exactamente. De várias resistências e também de resistência contra aquilo que entendemos que está mal no mundo. A humanidade é uma coisa insuportável. Ainda mais quando somos bombardeados com todo o tipo de crueldade e com todo o tipo de regressos de coisas horríveis. O mundo está muito melhor do que estava e é preciso relembrar isso. Só que nós agora temos muito mais informação. Temos mais responsabilidades também. Sim, e não estamos preparados para isso. Vivemos uma hiperestesia, principalmente aqueles que têm mais sensibilidade porque não conseguem deixar de ter empatia. O poema também é uma denúncia, uma denúncia daquilo que estou a sentir em relação a qualquer coisa. Mas é uma denúncia também do que está a acontecer e é preciso enunciar isso como algo que é mau. É preciso denunciar os sítios onde falta justiça e humanidade. A poesia tem uma eficácia limitada. Mas tem uma eficácia de criar um espaço em que os outros partilhem do meu pensamento, do meu sentimento e isso ganha força, e às vezes de uma maneira que dá a volta ao mundo e, mais importante, dá a volta ao medo. Está em Macau a filmar com o João Morais. Qual vai ser o resultado? Queremos fazer um documentário informal. Quando cá estive no ano passado, saí daqui com a ideia de que não tinha aproveitado para conhecer Macau. Mas gostei muito. Senti um sentimento de estranheza imenso que penso que pode ser o sentimento de estranheza do exílio e que é a mistura de algo que é absolutamente estrangeiro com aquilo que nos é familiar. Isto, mediado pela distância, faz com que esse sentimento fique dentro de nós. Tivemos agora a ideia de fazer um documentário informal, de viagem. Uma espécie de “on the road” para mostrar o que é ir a Macau ou tentar entender o que é Macau sem pretender entender Macau. Tentar ver como reagimos a estas realidades tão díspares num curto espaço de tempo. Isso permite um ímpeto de espanto, uma contemplação emocionalmente relevante sem tentar entender. O que leva mais daqui? Levo este sentimento de estranheza ainda mais vincado. Esta estranheza é um conceito sempre provisório. Quando percebemos que há certos sentimentos de estranheza que não vão a lado nenhum e que só vão criar ainda mais estranheza percebemos que as coisas não têm que ser entranhadas. Aliás, as coisas devem ser vividas como se fosse a primeira vez sem abdicar da bagagem que trazemos, o que é um pensamento também muito oriental. Nós vamos perdendo isso. Perdemos a capacidade e espanto. O que levo de Macau é este ímpeto de espanto que me permite, no fundo, voltar cá sempre a recomeçar.
João Santos Filipe EntrevistaSalva Dut, activista e sobrevivente da Guerra Civil do Sudão: “Corri na direcção oposta ao som das balas…” Era só mais um dia de escola quando os tiros romperam pela aldeia onde vivia Salva Dut, à altura com 11 anos. Depois de perder o contacto com a família, a luta pela sobrevivência deu-lhe forças para caminhar centenas de quilómetros no deserto até chegar a um campo de refugiados. Hoje, com 44 anos, leva água potável ao país de origem e conta a sua história na primeira pessoa [dropcap]Q[/dropcap]ue memórias guarda do dia em que foi obrigado a fugir da sua aldeia devido à guerra? É um dia que tenho muito presente. Eram 10h da manhã e estava na escola. De repente, começámos a ouvir o barulho dos tiros e tivemos de fugir. O nosso professor apenas nos disse para fugir… E corri na direcção oposta ao som das balas… Que cenário viu quando fugiu da escola? Foi um momento muito assustador. Lembro-me de ver pessoas perdidas a correrem em todas as direcções. Muitas já estavam cobertas por sangue, havia sangue por todo o lado. Entre esse momento, em 1985, até 2002 esteve 16 anos sem saber da sua família. Pensou neles quando fugia? Não. Num momento daqueles não se pensa em quase nada. O nosso objectivo é fugir, evitar o perigo e chegar a um lugar seguro. Quando o professor nos disse para fugir, deixei tudo para trás, até o livro de exercícios. Só queria fugir para longe do barulho das balas e nem pensei na minha família. Quando se lembrou deles? Quando me senti mais seguro, comecei a pensar neles, a perguntar-me como ia regressar a casa, a pensar se eles estariam vivos. Foi um pensamento que me perseguiu durante quase 17 anos… FOTO: Escola Internacional de Macau Após a fuga, em conjunto com 1500 rapazes, passou a fronteira para a Etiópia e mais tarde para o Quénia, com uma nova passagem pelo Sudão. Temeu morrer durante a fuga? Sem dúvida, o medo estava sempre muito presente. Não estávamos num lugar seguro, não tínhamos como arranjar água nem comida, e depois havia os ataques das tribos e dos animais selvagens… Nessa altura, um dos meus melhores amigos morreu devido a um ataque de um animal. Foi atacado por leão? Não sei dizer, talvez tenha sido um leão ou uma hiena. Aconteceu tudo à noite, quando estávamos entre a vegetação e não vimos como aconteceu. Só começámos a ouvir os gritos dele e percebemos que estava a ser atacado. Mas era de noite e não conseguimos ver nada, por isso também não pudemos fazer nada… Fomos ouvindo os gritos até que eles chegaram ao fim… A caminhada foi feita principalmente à noite? Tinha de ser, até porque tínhamos de passar por outras tribos. Se nos vissem, o normal era que nos atacasse porque nos consideravam o inimigo. Assim, à noite caminhávamos para tentar passar sem ser vistos, e durante o dia tínhamos de manter-nos escondidos. Eram alturas em que não se descansava. O que passa pela cabeça de um rapaz de 11 anos que vive uma experiência destas? Sobreviver. Estamos tão assustados que só pensamos em fazer tudo para chegar a um lugar seguro. Não pensamos em mais nada que não seja, para onde vamos ou como vamos arranjar água ou comida. Também há sempre o medo de sermos encontramos pelo inimigo, que nos quer matar. São dias em que o único pensamento é a sobrevivência. Neste tipo de conflitos, há tendência para os militares matarem as crianças, que se podem tornar soldados do inimigo. Vocês tinham noção disso? Sim, nós sabíamos que as crianças eram alvos preferenciais e, como é óbvio, isso contribuía para que tivéssemos mais medo. Como é que uma criança com 11 anos lida com esta situação e com o facto de ter perdido o contacto com a família? Eu estava tão focado em sobreviver que o meu cérebro não pensava em mais nada. Só às vezes, nos momentos de descanso, é que pensava no que estava a acontecer e na minha família… Mas o que é que eu podia fazer? Não havia correios, não havia telefones, não havia transportes para regressar… Tive de aceitar que o que não tem remédio, remediado está… O Salva Dut é cristão. Alguma vez pensou que Deus não existisse nesta fase? (Pausa) Acho que nunca tive esse sentimento. Eu rezava sempre à noite e de manhã. Rezar e estabelecer uma ligação com Deus foi um grande apoio, uma grande motivação nessa fase. Até porque quando uma porta se fecha, há sempre a possibilidade de Deus abrir outra. Considero que foi isso que aconteceu. Esteve no campo de refugiados de Lodawar, no Quénia, seis anos. Como era a vida nesse local? Foi uma altura em que estava por minha conta. Não tinha familiares e no campo, que é gerido pelas Nações Unidas, davam-nos comida e roupas. De resto, não havia muito mais nada para fazer. O objectivo era estar num lugar seguro. Em 1996, é escolhido num programa norte-americano para ser adoptado por um família em Rochester, Nova Iorque. Foi uma mudança radical? Foi muito difícil. O choque cultural foi tremendo e lembro-me que achava que estava sempre frio. Também não falava a língua, mas tinha de ir à escola, trabalhar… Foi difícil, mas sabia que tinha de me adaptar, porque poderia melhorar muito a minha vida. Vinha de uma aldeia onde não havia água nem electricidade. Sentiu uma grande diferença no estilo de vida? Sim. Na casa onde vivia no Sudão do Sul não existiam lâmpadas nem água. Quando cheguei ao EUA há todas estas coisas que tornam a nossa vida muito confortável e que utilizamos de forma automática. Por exemplo, eu não sabia acender uma luz. Este tipo de coisas que as pessoas nos países mais desenvolvidos fazem de forma natural, porque sempre viveram com elas, eu tive de aprendê-las. Como se sentiu por ir para os EUA? Sinto-me abençoado por Deus, que me guiou e me deu algo de positivo, apesar de todas as situações difíceis. Estive numa situação de guerra com 11 anos, tive toda aquela caminhada de centenas de quilómetros até chegar a um lugar seguro, foram condições em que muitos morreram. Eu sobrevivi e ainda tive a oportunidade de ir para os EUA. Também pude regressar ao Sudão do Sul, ajudar as pessoas lá, e reencontrei os meus pais. É algo fantástico. Em 2002, um ex-companheiro do campo de refugiados informa-o que o seu pai está a ser tratado numa clínica das Nações Unidas… Como foi o reencontro? Foi uma emoção tremenda. Quando me aproximei dele, ele não me reconheceu. Eu, primeiro, disse: “Olá, pai”, e ele respondeu: “Quem és tu?”. Tive de dizer: “Sou eu, o Salva” e ficámos ambos muito emocionados. Durante esses anos todos tinha muitas dúvidas de que o voltaria a ver vivo. É também a partir desse momento que decide criar a Water for South Sudan, fundação que tem como objectivo levar água potável às várias aldeias do Sudão do Sul… Ele estava a receber tratamento devido a uma doença causada pela ingestão de água que não é potável. Nessa altura, decidi que tinha de fazer alguma coisa para ajudar as pessoas como o meu pai. E o reencontro com a sua mãe, quando ocorreu? O meu pai teve de caminhar mais de 480 quilómetros para chegar à clínica e ela ficou na nossa aldeia a tomar conta do resto da família. Por isso, só estive com ela depois de regressar aos EUA e voltar novamente ao Sudão do Sul. Ela reconheceu-o? Não, fui eu que a reconheci. Estava sentado numa mesa numa sala, quando ela entrou. Nessa altura não a vi logo, porque estava a falar com o meu tio. Até que ela entra e pergunta ao meu tio: “Onde é que ele está?”. E ele disse “é este rapaz aqui”. Foi fantástico o reencontro. Como se sente por ter estado tanto tempo afastado da sua família? Sinto-me muito mal com isso. É algo que desejava que nunca tivesse acontecido. E é isto que é a guerra. Sempre que há guerra quem sofre são os inocentes. Este tipo de injustiça motiva-o para tentar melhorar a situação no Sudão do Sul? Talvez seja uma das razões… Uma das ideia que defende é que o acesso a água pode pacificar os conflitos entre as diferentes tribos do Sudão do Sul. Porquê? Quando as pessoas têm acesso à água não precisam de se deslocar à procura deste bem-essencial. Esta busca é uma das causas dos conflitos entre as tribos. É frequente no Sudão do Sul, ver as pessoas mais novas a matarem-se umas às outras devido ao acesso à água. Neste sentido, trazer água para as diferentes aldeias também é contribuir para a paz. E isso não cria um sentimento de inveja? Não é a isso que temos assistido, pelo contrário. É comum que pessoas de tribos diferentes se ajudem a abrir novos poços. Nessas situações é comum ouvirmos as pessoas de tribos diferentes a dizerem somos todos o mesmo povo. Qual é o maior desafio nos trabalhos de escavação de poços de água? Há muitos. O principal é a falta de infra-estruturas, não temos estradas, fábricas com capacidade para produzir tubos que utilizamos, ou as bombas de água. Todos os materiais que utilizamos são importados. O Sudão do Sul está em guerra civil desde 2013. Na semana passada houve um acordo de paz entre o Governo e as forças rebeldes. Acredita que é desta que a guerra termina? No passado houve acordos semelhantes que foram violados. Não sei o que vai acontecer desta vez. Mas espero que seja diferente, que haja paz. As pessoas do Sudão do Sul já sofreram demasiado com as guerras e só com a paz e estabilidade poderá haver prosperidade. Perfil Nascido em 1974, Salva Dut nasceu na tribo Dinka e aos onze anos, em 1985, viu-se obrigado a fugir da aldeia onde vivia, no Sul do Sudão, devido à Segunda Guerra Civil. É um dos 40 mil “Lost Boys” [crianças perdidas em português], nome para os menores que se perderam dos pais devido ao conflito armado. Em fuga, com um grupo de várias crianças, Salva teve de percorrer centenas de quilómetros, para encontrar abrigo, primeiro, num campo de refugiados na Etiópia e, depois, no Quénia. Em 1996, ao abrigo de um programa das Nações Unidas foi adoptado por uma família de Nova Iorque. Actualmente, é cidadão norte-americano e licenciou-se em Negócios Internacionais no Colégio Comunitário de Monroe, que pertence à Universidade Estadual de Nova Iorque. Em 2003, fundou com um grupo de amigos a associação sem fins lucrativos Water for South Sudan [Água para o Sudão do Sul], que tem como objectivo levar água potável a um dos mais novos países do mundo. Conflitos armados desde 1955 Em 2011, a República do Sudão do Sul tornou-se oficialmente um país. Porém, encontra-se em guerra civil desde 2013. Na semana passada, foi assinado um acordo de paz entre o Governo e as forças rebeldes, mas há bastantes dúvidas quanto ao sucesso da resolução, uma vez que no passado, por várias vezes, acordos deste género não foram cumpridos. Desde 1955, altura em que o território que agora constitui a República do Sudão do Sul pertencia ao Sudão, que a História do país está marcada pela guerra. Nos períodos 1955-1972 e 1983-2005, o Sudão do Sul, maioritariamente cristão, lutou com o Sudão, maioritariamente muçulmano, por maior representatividade e mais tarde por independência. O objectivo foi alcançado em 2011, após um referendo. Porém, dois anos depois, conflito armado regressou à região. Agora, Salva Kiir, presidente do país, e Riek Machar, líder dos rebeldes, dizem que vão partilhar o poder. Resta saber se vão efectivamente conseguir entender-se e terminar a guerra. Convite da Escola Internacional de Macau Salva Dut esteve em Macau a convite da Escola Internacional de Macau [The International School, em inglês], onde teve a oportunidade de partilhar a sua história e falar das actividades da Water for South Sudan com os alunos da instituição. Além disso, houve actividades promovidas pela escola de recolha de fundos para financiar a escavação de mais poços no Sudão do Sul. “Até hoje, já cavámos 349 poços e treinámos uma equipa especializada para auxiliar as diferentes aldeias em questões de higiene e manutenção desses poços”, disse Salva Dut, ao HM. “Os efeitos da escavação de um poço são fantásticos para as comunidades. A menina que antes tinha de andar quilómetros para ir buscar água para a família passa a ter tempo para poder ir à escola. E isso é uma semente para um futuro melhor para o Sudão do Sul e para a sua população”, acrescentou. • Ajude a Water for South Sudan
Sofia Margarida Mota EntrevistaRosa Coutinho Cabral, cineasta: “Renasci muita coisa pelo caminho” A cineasta Rosa Coutinho Cabral está em Macau para apresentar o filme “Pé San Ié – O poeta de Macau”, um ensaio visual sobre o exílio de Camilo Pessanha, que será exibido na Cinemateca Paixão na segunda-feira, às 18h. Este é o culminar de um processo de encontros e desencontros com a fantasmagoria do poeta e da cidade onde morreu [dropcap]E[/dropcap]stá em Macau para apresentar o filme sobre o Camilo Pessanha. Porquê este poeta? A génese da minha ligação a este poeta extraordinário tem uma pequena história. Aliás, todas a minhas ligações têm uma história, quer seja na vida, na literatura ou no cinema. A génese desta ligação com o Pessanha começou muito cedo, quando eu era miúda. Estava ainda nos Açores e teria menos de 13 anos. Descobri um dia um livro na casa de alguém, comecei a ler, adorei, pedi emprestado, não me lembro se por não ter dinheiro para o comprar ou porque não estaria à venda ali em São Miguel. Mas li Pessanha e como todos os adolescentes, também tinha a pulsão da escrita e acabei por “roubar” palavras a este poeta. Tudo isto está no filme. O mais importante é o que aprendemos acerca de nós próprios em todo o processo. Ficamos a conhecermo-nos melhor através de um conhecimento que nos é exterior. Um conhecimento de alguma forma projectado? Não sei se é projectado mas acho que é uma boa palavra, ainda não tinha pensado nela. Mas, sobretudo, quando uma peça acaba, quando terminamos de realizar uma coisa com toda a alegria e sofrimento que lhe é intrínseco, na verdade o que fica de mais importante é o que se conhece acerca de nós através dessa tal exterioridade, projectada ou não, e que neste caso tinha o nome de Camilo Pessanha de Macau. O que fica também é uma ligação, que vou adjectivar de superlativa, a ligação que tive com os outros, comigo e com o objecto do filme, o Pessanha, e como estas várias ligações me trazem até aqui. Não morri pelo caminho. Morri muita coisa, toda gente morre muita coisa pelo caminho, mas também renasci muita coisa pelo caminho. Isto só acontece se houver uma ligação forte com o que se faz. Como foi o processo para fazer este filme? Acho que tive o privilégio absolutamente extraordinário de trabalhar com pessoas com quem gostei muito de trabalhar. Umas já conhecia, outras não. Já conhecia o João Cabral, que é meu irmão e quem diz os poemas no filme. Há uma matéria no filme que é a própria poesia do Pessanha. Já conhecia o Pedro Cardeira, aqui de Macau, de um outro filme que tinha feito. O filme não é só meu. São matérias que têm uma ligação muito profunda com cada sujeito que as produz e que, por sorte, se encontraram neste filme e congeminaram qualquer coisa que acho que tem interesse. Também tenho que referir o José Carlos Pontes que fez a música e que, além disso, acompanhou todo o processo de acabamento do filme. Foi o grande apoio do fechar do filme e sem o qual seria impossível terminar este filme. Além destas pessoas que conhecia há duas novidades grandes: a Susana Gomes, que fez a fotografia, e o Carlos Morais José. E acho que o encontro com o Carlos Morais José é muito importante no próprio processo do filme. Este acto de fazer um filme, ou outra coisa, fica sempre marcado pelos encontros. FOTO: Sofia Margarida Mota Da mesma forma que se reencontrou com a primeira leitura… Na realidade, quando era miúda e descobri o Pessanha percebi que aquelas palavras na poesia eram fundamentais. Eu era uma adolescente, mas talvez também sentisse a dificuldade que é viver neste mundo. Mas acabei por esquecer o Pessanha. Um dia, aqui em Macau, o Rodrigo Guimarães pergunta-me porque é que eu não fazia um filme sobre o Pessanha. Na viagem de regresso a Lisboa o Daniel Pires faz-me a mesma pergunta. Reli o Pessanha e achei que era isso mesmo que queria fazer. Regressei a Macau e comecei a trabalhar com a Susana. Nessa altura, conheci o Carlos Morais José. Ouvi-o falar de Pessanha e pedi quase imediatamente se o podia filmar numa espécie de repérage ainda. Fiquei com a sensação de que aquela pessoa tinha que ver com o âmago deste projecto, no sentido da parte em que queria fazer um documentário ficcionado e não só um filme institucional com entrevistas. Fiquei com um duplo problema porque a partir daí percebi que estava dirigida para dois objectos: um para o documentário e o outro que era o filme. Tinha de fazer os dois e assim fiz, num tempo recorde. Durante ano e meio filmámos e montámos o filme. Não é a primeira vez que filma em Macau. Qual é a sua relação com o território? Já conhecia Macau. Já cá tinha filmado. Tive a sorte de o fazer com o Manuel Vicente. Adoro Macau. Há sempre coisas muito estranhas na vida e às quais eu não espero dar nenhuma explicação. Macau é uma destas cidades que produz em mim uma atracção muito forte e que esteja talvez no capítulo das pequenas ou das grandes paixões. Como todas as atracções tem os seus momentos de ódio, repúdio. Mas há qualquer coisa muito profunda que me liga a Macau, embora eu tenha cá chegado já bastante tarde até porque já não sou nova. Mas, de facto, não conheci Macau jovem nem com um olhar quase adolescente. Nada disso. Acho que conheci Macau com o olhar de quem está a entrar no envelhecimento. É uma cidade que tem diversas escala. É uma cidade aparentemente desordenada, cheia de contrastes de épocas, do antigo e do muito velho, que são coisas diferentes ao muito novo e ao muito actual. Estas diferenças agradam-me muito e produzem de um ponto de vista urbano uma espécie de desorientação muito divertida. É quase o que podemos encontrar em grandes metrópoles, porque tudo é abrangente pelo olhar mas é tudo muito diferente. Também gosto muito de estar num sítio com pessoas diferentes e Macau é a diferença por excelência. Há ainda outra questão. Sou açoriana e há uma humidade em Macau que adoro. Sinto-me absolutamente em casa. Outra coisa interessante é que da última vez que saí de Macau senti uma coisa muito especial: senti que me estava a ir embora e não que estava a regressar ao meu lugar a Lisboa. Sinto que me estava a ir embora do meu lugar e agora, quando cheguei, senti que estava a regressar a Macau o que é uma coisa estranha. O filme foi apresentado no DocLisboa. Como foi a reacção do público? Da crítica não sei, porque foi há muito pouco tempo. As outras reacções foram de boca a boca, do público que lá estava e que pelo que disseram gostaram muito. O filme é um objecto estranho. Não é um objecto que se diga tradicional. Aqueles que conheciam Macau gostaram da forma como viram a cidade e como filmei Macau. Fico contente com isso, fico orgulhosa por ter correspondido a qualquer coisa que as pessoas esperavam ver e ficaram muito admiradas com uma pessoa como o Carlos Morais José. Aliás, perguntaram-me onde encontrei este actor, esta pessoa, quem é ele, de onde vem. A relação entre os nossos dois discursos presentes no filme corre muito bem, interage muito bem. Eu dediquei-me a falar de cinema e não do Camilo Pessanha e esta relação com uma pessoa que está ali e fala do Camilo Pessanha. Ao mesmo tempo prestou-se generosamente ao jogo e à encenação do que eu queria fazer para poder filmar o morto. Não foi um desafio fácil, ele aceitou o desafio e fê-lo magistralmente. “Aproximar da morte, de algum modo, aproximar da fantasmagoria e, sobretudo, não querer tornar presente aquilo que está ausente no sentido da carne. Ele não está cá, há outras coisas que podem estar.” Porque é que este filme é um objecto estranho? Só posso falar da estranheza do objecto, ou da forma como fiz o filme pensando no filme acabado. Esta é uma circunstância nova. É estranho porque a tal ligação que tive com este Camilo Pessanha foi um encontro muito profundo, especialmente, por razões próprias com a dor. Tinha de chegar aí e tinha de trabalhar esta ligação de uma forma que se convertesse cinematograficamente. Essa ligação tinha de ser uma faca afiada, profunda, até ao fim do mundo. Finalmente, tinha de me colocar a mim própria, pela primeira vez num filme feito por mim, ensaiar numa experiência quase repetitiva este acto de me aproximar de alguém que não está cá. Aproximar da morte, de algum modo, aproximar da fantasmagoria e, sobretudo, não querer tornar presente aquilo que está ausente no sentido da carne. Ele não está cá, há outras coisas que podem estar. Isso era um grande desafio e torna imediatamente o objecto deste filme num objecto estranho. Depois há o modo de fazer, como é que se faz isso? São as questões que coloco no filme. Como faço e experimento isso? Acho que o cinema é, acima de tudo, um acto de experimentar que deve ser feito com a maior honestidade possível. Acho que ninguém faz tudo o que quer, mas acho que me aproximei o quanto baste para me sentir bem. Uma pessoa experimenta e eu experimentei o espaço por forma a decantar essa presença do Camilo Pessanha nesta cidade e a cidade Macau de Caminho Pessanha. FOTO: Sofia Margarida Mota Teve uma experiência semelhante, mas com uma pessoa viva. Manuel Vicente. Foi muito diferente? A diferença reside num ponto muito simples. A vida e a morte. O Manuel Vicente veio a Macau pela última vez comigo. Ele próprio diz, a dada altura no filme, “sei lá se volto a Macau”. Eu acho que ele sabia que não voltava, intuía. Acho que aquele filme foi uma despedida do Manuel Vicente a Macau. Era a Macau de Manuel Vicente. Eu gosto muito de cidades, e a forma como se vive e usa a cidade. Portanto, o Manuel Vicente deu-me uma perspectiva de Macau mas com aquela diferente, ele estava vivo, tinha carne e osso. E o Camilo Pessanha não tinha carne nem osso. Esta realidade de trabalhar atrás de um fantasma, atrás da morte, foi uma coisa muito profunda para mim e foi aquilo que tentei descobrir cinematograficamente. Acha que este filme é mais seu que os outros? É. Duas ou três pessoas que me conhecem há muito tempo disseram-me que este é o meu melhor filme. Não sou um cineasta VIP, fiz pouca coisa e não estou na boca do mundo. Não faço parte do mainstream e também nunca quis fazer. Sempre tentei fazer o que queria e acho que, finalmente, comecei a ter essa possibilidade. Quero contar coisas que tenham uma certa universalidade no fim, o Camilo Pessanha é importante porque a dor dele tem uma certa universalidade, a dor da humanidade, a dor dos desvalidos da sorte. Imagino que nem toda a gente goste, ou que um número muito reduzido de pessoas goste, não me importo, mas estou-me a aproximar cada vez mais do que quero fazer. Por outro lado, é um filme que também foi buscar à própria natureza do Camilo Pessanha, à sua forma de fazer. De algum modo, é um ensaio que se divide em quatro e esses quatro ensaios estão constantemente a recomeçar e a matar o anterior. Ou seja, é uma reinscrição ao jeito de Pessanha. A sua procura da eterna perfeição que ele tentou fazer reescrevendo os seus poemas, por vezes deixando de escrever. Mas, como o Carlos diz no filme, um poeta é sempre um poeta, mesmo que deixe de escrever. https://www.youtube.com/watch?v=4gtrcRBHs3E
Sofia Margarida Mota EntrevistaChan Weng Hon fotografou os refugiados do Vietname em Macau Entre 1977 e 1991 chegaram a Macau milhares de refugiados do Vietname. Em 1981, durante mais de um mês, todos os dias, o fotojornalista Chan Weng Hon foi fotografar estas pessoas e o seu dia a dia. A exposição “Boat People”, patente até 14 de Novembro na Galeria 1844, conta esta história em 42 imagens [dropcap]C[/dropcap]omo nasceu esta exposição? A maioria das imagens foi tirada em 1981. Na altura trabalhava no Jornal Tai Chung Pou. O Governo de Macau aceitou abrigar os vietnamitas que fugiam da guerra. Estes refugiados queriam primeiro chegar a Macau ou a Hong Kong para depois poderem ir para outros sítios como os Estados Unidos ou Inglaterra, por exemplo. As pessoas chegavam a Macau todos os dias, em barcos muito pequenos completamente cheios. Vinham à procura de um abrigo temporário. Recordo que no início ainda não existia nenhum abrigo para as acolher, pelo que acabavam a monte numa espécie de campo, onde o barco as deixava, na Taipa. Mas acabou por se arranjar três locais para instalar estas pessoas: na Ilha Verde, na Taipa e em Ka Ho. Estamos a falar de pessoas que chegavam sem nada. Todos os dias, durante mais de um mês, apanhava o autocarro para a Taipa para poder tirar fotografias. Como era a chegada destas pessoas a Macau? Acho que ao princípio estas pessoas só pensavam numa forma de poder ir de Macau para outro sítio. Penso que não era a sua intenção cá ficarem e encaravam a vinda para Macau como temporária. Por outro lado sentiam-se seguras por ter aqui um local onde estar enquanto não podiam ir para mais lado nenhum. Penso que a sensação era também de alívio porque sabiam que já não tinham que se preocupar muito mais. À chegada, mal saíam do barco passavam por uma inspecção. O objectivo das autoridades era verificar se ninguém transportava nada perigoso, especialmente armas como pistolas ou facas. FOTO: Sofia Margarida Mota Que impressão ficou desta altura e destas pessoas? Muitas vezes quando as pessoas fogem para outros países acabam por se isolar e às vezes criam problemas e envolvem-se em conflitos. Mas neste caso nada disso aconteceu. A sensação que ainda hoje tenho e que me marcou foi a de chegada de famílias inteiras em condições muito precárias e que só queriam estar num ambiente de calma e de paz e era isso que transmitiam também. Tinha algum contacto com eles? Não. O meu trabalho era ir ali, todos os dias, e fotografar. Uma vez com as fotografias tiradas tratava de imediato de ir para o jornal para as passar aos meus colegas que escreviam para acompanharem os seus artigos. Qual é a sua imagem favorita? Não está nesta exposição. Foi comprada por uma companhia ligada ao estudo da história de Macau por ser um documento histórico. Mas aqui tenho esta [uma imagem no túnel da Taipa]. Gosto especialmente dela porque consegui juntar todos os refugiados que na altura estavam ali para tirar uma fotografia de grupo. Ao lado estava o posto da policia. Do que me recordo estas pessoas eram bem recebidas pelas autoridade. © Chan Weng Hon Estas imagem foram tiradas em 1981 e só agora estão a ser expostas pela primeira vez. Porquê tanto tempo para mostrar este trabalho? Quando fiz as fotografias vendi algumas para quem se dedicava ao estudo da história local. Mas acho que agora é o momento de mostrar esta parte da história local principalmente aos mais novos. São pessoas que vieram para Macau e que acabaram por viver aqui durante algum tempo e fazem parte de um momento histórico que está muitas vezes esquecido. Hoje em dia já pouca gente se lembra desta altura. Macau é conhecido agora por ser o destino de muitos filipinos, vietnamitas ou indonésios que vêm à procura de trabalho, mas ninguém se lembra do tempo em que recebíamos refugiados. O que espera desta exposição? Espero dar a conhecer mais sobre o que se passou em Macau, principalmente às gerações mais novas que não fazem ideia desta parte da história local. Que diferenças sente entre Macau daquela altura e o território actualmente? Penso que a maior diferença está na forma como as pessoas de Macau recebem quem vem de fora. Quando acolhemos os vietnamitas, os residentes não se importaram que as pessoas viessem para cá e recebiam bem quem aqui chegava. Mas agora, não é assim. Talvez seja porque entretanto Macau recebeu muitas pessoas de fora como os emigrantes filipinos. Talvez isso tenha feito com que os residentes pensem, sem razão, que vão ficar sem os seus empregos. As pessoas agora afastam-se de quem para cá vem. Não pensam que quem vem para Macau trabalhar também vem de circunstâncias que envolvem pobreza. Não querem saber disso.
Sofia Margarida Mota EntrevistaAndrés Malamud, académico: “O Brasil está refém da China” Andrés Malamud vai estar hoje na Fundação Rui Cunha, às 19h, para falar do futuro do Brasil depois da eleição de Jair Bolsonaro. Para o especialista em ciência política, a democracia pode não estar em risco, mas a vida democrática sim, com a possível perseguição a determinados grupos sociais [dropcap]J[/dropcap]air Bolsonaro é o novo presidente o Brasil. O que se pode esperar? Para começar uma fase de lua-de-mel. Apesar de tudo, o candidato, que era tão controverso, gerou expectativas e esperança. Sei que isto é polémico. Mas, a curto prazo, se não houver acontecimentos muito graves, como assassinatos, bullying, etc., a expectativa é que a situação corra bem E depois? Não sabemos. Vai depender muito da reacção de Bolsonaro e das forças estruturais dos actores institucionais do Brasil perante as suas acções. A situação internacional não é perigosa para o Brasil mas é turbulenta, sobretudo, na fronteira com a Venezuela. Por outro lado, Bolsonaro tem minoria no Congresso e para governar vai precisar de ter leis aprovadas. Para isso precisa de uma maioria. Como é que a vai construir? No passado, fazia-se com trocas. Por exemplo, o presidente oferecia ministérios em troca de apoio legislativo. Mas Bolsonaro vai reduzir o número de ministérios para 15. Desta forma, fica sem muito que distribuir. Outra maneira de conquistar a passagem de leis no passado era com dinheiro. Era uma forma de comprar apoio. Mas não se aplica agora. O que Bolsonaro vai dar? Vai dar prestígio, como fez Donald Trump. Trump tem o apoio do Partido Republicano, porque os legisladores republicanos precisam dos eleitores que são pró-Trump. Eles podem não gostar dele mas para manter o eleitorado manifestam-se a favor. É provável que Bolsonaro apele a medidas muito populistas, aprovadas pelas maioria das pessoas. Essas medidas podem vir a ser desagradáveis e mesmo violentas para muita gente, mas podem ser “simpáticas” para a maioria. Isto vai forçar os senadores a apoiar as leis que precisam de aprovação. Isso não é assustador? É. Mas a questão é a seguinte: muitas vezes perdemos de vista que o Brasil tem 3 por cento da população mundial e 15 por cento dos homicídios. Bolsonaro não chega por acaso. Chega em parte porque há muita violência. Ele aparece como um garante de ordem. Se para conseguir a ordem tiver de usar mão dura, o saldo até pode ser positivo. Ele pode matar algumas pessoas para que estas pessoas não matem tantas outras também. O que estou a dizer é terrível. Mas o eleitor brasileiro pensa desta forma. Estou apenas a tentar explicar porque é que Bolsonaro ganhou e como pode vir a governar. FOTO: Sofia Mota O Brasil saiu de uma ditadura em 1985. É muito recente. Como se explica esta “ausência de memória”, se é que se pode chamar assim? Sim, é isso mesmo. O Brasil teve uma ditadura que durou 21 anos, de 1964 a 1985. Naquela altura, todos os países da América do Sul viviam uma ditadura e as outras ditaduras tinham duas características que a brasileira não teve. Primeiro, mataram muito mais, sendo que cada vida vale o mundo. Depois, os os militares chilenos e argentinos eram neoliberais e privatizaram a economia enquanto os brasileiros foram desenvolvimentistas, ou seja modernizaram a economia. Por isso, a memória da ditadura brasileira não é tão trágica como a memória das ditaduras vizinhas. Isso permitiu que Bolsonaro tenha reivindicado a ditadura em oposição à suposta desordem. O próprio Lula recorreu aos militares, não à ditadura mas aos militares. Podemos dizer que, no fundo, a ditadura do Brasil foi uma ditadura suave – não soa bem, eu sei. Mas podemos dizer que a ditadura portuguesa também o foi. A ditadura de Salazar foi horrível, mas foi bem mais suave do que a de Franco. Estamos também a falar da eleição democrata de um candidato que se manifestou muitas vezes como anti-democrata. Não é um contra-senso? Há duas explicações possíveis e acho que a realidade é uma mistura das duas. Uma é que a situação é tão má que as pessoas acabam por aceitar o sacrifício. Há tanta corrupção, tanto homicídio que se prefere uma ordem ditatorial a continuar com a mesma situação. A segunda é o que se chama de dissonância cognitiva, o mecanismo psicológico pelo qual uma pessoa pode manter duas crenças contraditórias simultaneamente. Um sistema democrático deve aceitar a anti-democracia? Esse é um grande dilema desde a chegada do Hitler ao poder: Se a democracia deve ou não permitir os anti-democratas. É um paradoxo sem resolução interna. Há duas respostas: Se o permitir, permite a sua auto-destruição, se não o fizer, está-se a limitar. Não há uma solução e por isso é um dilema porque tem duas soluções sendo que nenhuma é completamente satisfatória. A decisão da Alemanha, por exemplo, depois do nazismo, foi a de não tolerar os intolerantes. O que podemos esperar da economia brasileira? A economia brasileira caiu nos últimos dois anos cerca de 3,5 por cento, ou seja, vem do fundo do buraco. O que quer dizer que este senhor já vai apanhar uma economia em crescimento. Só podemos esperar que melhore mas não é mérito do Bolsonaro. Ele vem com um legado favorável. Ele pode estragar isso e até foi explícito ao dizer que não entendia nada de economia. Aliás, é por isso que se tem feito acompanhar nesta área por um neo-liberal. Isto é interessante. Até há uns anos, Bolsonaro era um nacionalista desenvolvimentista e virou liberal. Não entendia nada de economia e as pessoas que o apoiaram, nomeadamente as forças armadas, exigiram que fosse liberal. Ele virou porque precisava deste apoio. Bolsonaro não é um homem que pratique aquilo que diz. Ele é um tipo esperto, não é tonto, o que não é necessariamente bom. Ele é mais mau do que tonto. As coisas que ele diz não são coisas de uma boa pessoa, mas não faz sentido fazer aqui uma avaliação moral. O importante é que não é tonto e não o sendo adapta-se. Ele adaptou-se à demanda dos brasileiros. Os brasileiros estavam a pedir o fim das igualdades. O Bolsonaro encarna também a luta contra a nova ameaça à segurança no Brasil e que não vem de uma potência estrangeira mas sim do narcotráfico. Esta luta acontece, essencialmente, nas favelas e nas prisões. Não me surpreenderia se agora houvesse algum massacre nas prisões. Nas favelas é mais difícil porque tem de ser um ataque explícito. Mas nas prisões basta uma retracção dos serviços penitenciários para que isso aconteça. Mas a evolução social não deveria ir no caminho da igualdade? A evolução é em forma de espiral em que os avanços se dão às voltas. Estamos a falar de uma população de 210 milhões de pessoas, das quais mais de sete milhões são empregadas domésticas. É a subordinação social quotidiana em que os empregados nem são notados, não andam nos mesmo elevadores sequer. É uma sociedade muito marcada por esta hierarquia. O PT tentou diluir estas diferenças e foi quando começou o medo e a rejeição das pessoas que não querem andar no mesmo elevador do que os seus empregados. Medo de perder o estatuto? Sim. Chama-se perca relativa e status. Aliás, foi esta a causa que levou também ao voto no Trump, nos Estados Unidos. Como fica o Brasil no contexto da América Latina? Se o Brasil fosse um país pequeno acabaria ostracizado. Como é grande, os presidentes dos vários países já o reconheceram e felicitaram. E agora estão à espera. Penso que o vão tentar normalizar. Vão trata-lo como normal, para que actue normalmente. O que podemos esperar das relações com os Estados Unidos da América? O Brasil está muito dependente da China. Bolsonaro não pode pedir ao Presidente americano para lhe comprar o que o Brasil vende à China. Isto não se faz politicamente. Por isso poderá haver uma aliança política entre o Brasil e os Estados Unidos, mas não penso que possa existir uma aliança económica. E as relações com a China? Bolsonaro na campanha eleitoral apenas mencionava estados com os quais tem alguma ligação político-eleitoral, como Israel ou os Estados Unidos. O Brasil precisa da China e agora a questão é a margem que tem para jogar com isto ou para esconder isto. O Brasil pode fazer política com os EUA e comércio com a China. 25 por cento das exportações do Brasil são para a China e não podem ir para o outro lado porque mais ninguém compra essas quantidades de soja e de ferro. Chama-se interdependência assimétrica. O Brasil está refém da China. É previsível que Bolsonaro venha a ter algum discurso político de afastamento. Mas acho que o afastamento económico é impossível. A democracia vai resistir no Brasil? Espero mais micro-violência do que macro-violência. Não espero o fim da democracia, mas sim uma redução da qualidade da vida democrática. A democracia vai manter-se e os governos vão continuar a ser eleitos pelo povo, mas os indivíduos e grupos particulares vão sofrer agressões e censura. A democracia vai ser muito pior.
Sofia Margarida Mota EntrevistaSofia Afonso Ferreira, criadora do movimento político D21: “Acima de tudo, sou democrata” Depois de uma carreira na área da comunicação, Sofia Afonso Ferreira funda agora a Democracia 21 (D21), um movimento cívico com aspirações a ser um partido político liberal. O novo rosto da direita portuguesa está em Macau para apresentar o movimento que fundou. O evento está marcado para hoje às 18h30, na Livraria Portuguesa [dropcap]O[/dropcap] que é o D21? Por agora é um movimento cívico, liberal e de direita. Estamos a acabar de recolher as assinaturas e em breve daremos entrada com o processo no Tribunal Constitucional. O D21 começou em Janeiro. Primeiro tentámos perceber se era viável a criação de um partido liberal em Portugal. Temos uma história muito incomum em Portugal quando comparada com o resto da Europa. Neste momento, os liberais são a segunda força política na Europa. Quase todos os países têm mais do que um partido liberal, uns no poder, outros em coligação, etc. Em Portugal não temos um partido liberal há 90 anos devido a circunstâncias históricas: primeiro tivemos uma ditadura, depois tivemos uma revolução, e depois tivemos estes anos, pós 25 de Abril. Já houve umas tentativas de projectos deste género, mas que falharam sempre. O máximo que tivemos até agora está associado ao PSD ou ao CDS que por vezes defendem algumas políticas liberais, mas essencialmente na área da economia e não dos costumes. Está a referir-se, por exemplo, ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, à adopção por estes casais e à eutanásia? Sim. Nesta parte dos costumes até estamos mais próximos dos partidos tradicionais de esquerda de Portugal. Mas nós partimos de uma base completamente diferente: nós damos mais poder ao indivíduo do que ao Estado e, como tal, tem que ser a sociedade a definir este tipo de coisas que têm que ver com a sua essência, e não um Estado. O Estado é um regulador e não tem que dizer se se pode ou não casar com quem se quiser, se se pode adoptar ou não, ou se em caso de doença grave, as pessoas podem ou não optar pela eutanásia. O Estado deve servir apenas para regular o bom funcionamento democrático das instituições e das leis, mas não impor-se. Como é que essa regulamentação se operacionaliza? É difícil de explicar porque não é um conceito muito incutido na sociedade portuguesa. Em 2018, não ser a favor do liberalismo na parte dos costumes para mim é anacrónico. Podemos ter as nossas convicções para nós, para a nossa família para quem está a nossa volta. O liberalismo é isto: é defender que o indivíduo pode ter as suas coisas. FOTO: Sofia Mota Disse numa entrevista que o foco para o D21 está na remodelação nas áreas da justiça, da saúde e da educação? Que tipo de reformas propõe? Vou começar pela educação. É uma área que teve alguma polémica há cerca de um ano com os contratos de associação. Nós somos a favor destes contratos. A razão tem que ver com um problema que a Europa está a enfrentar e que em Portugal estamos numa situação gravíssima, ou seja, não nascem bebés. No interior do país, as escolas começaram a ficar sem crianças. O que o Estado pagava para a manutenção daquelas escolas era muito elevado e começou a fazer contratos de associação com escolas privadas. A poupança entrou na casa dos 60 por cento por cada aluno. Atenção que isto não se justifica em todo o país. Justifica-se quase zona a zona. Houve uma grande campanha de que estaria a haver um abuso destes subsídios dos contratos de associação a escolas privadas. Com certeza que houve casos ilegais. Mas também se cometeram muitas injustiças porque tivemos casos de escolas que, de um momento para o outro, ficaram sem os contratos e fecharam, o que trouxe o desemprego de pessoas. Por um lado, e por outro, crianças passaram a ter que ir para escolas que ficavam a 30 quilómetros de casa. Defende a subsidiação de escolas privadas pelo Estado, é isso? Nós defendemos, acima de tudo, que esta matéria tem que ser revista. Houve decisões que foram peremptórias e direccionadas ao país todo tendo sido altamente prejudicial para algumas zonas. E defendem o ensino gratuito? Sim, com certeza. E na justiça? Em relação à justiça, a nossa maior bandeira é contra a corrupção e, portanto, todas as medidas que vamos apresentar, as mais prioritárias, são no sentido do combate à corrupção. Como pretendem reformar o sistema de saúde? Na saúde temos um problema idêntico ao das escolas. A saúde está por um fio, é talvez a área mais em perigo neste momento em Portugal. Por uma razão muito simples, eu posso ter problemas na área da educação mas ninguém morrer e na saúde se houver falhas as pessoas morrem. As pessoas que tenham cancro – como um caso que soube há dias em que depois de identificada a doença só conseguiu consulta para Abril do ano que vem – com a espera podem não ir a ter tempo para combater a doença. Ainda assim, o sistema de saúde português é considerado como um dos melhores da Europa ao nível da oncologia. É verdade. Isso parece quase inacreditável. O nosso serviço de saúde público até tem vários pontos de excelência. Mas houve aqui uma série de medidas nos últimos anos que não ajudaram na saúde. Nos últimos meses tivemos direcções de hospitais inteiras a pedir a demissão. Estamos a falar num momento que se segue a cortes orçamentais profundos, nomeadamente na área da saúde. O sistema tem de ser repensado. O grande problema é o facto das políticas serem levadas a cabo durante cerca de três anos. São apresentadas reformas, são implementadas durantes três anos e depois são mudadas. Isto é tareia à esquerda e à direita. Defendo que deveria existir um pacto entre os partidos relativamente a reformas que têm de ser feitas. São reformas que deveriam ter um período de implementação mínimo de dez anos. É a única maneira. É por isso que muita coisa não funciona. Criticou há uns dias a proposta de Orçamento de Estado por implicar muita despesa pública. Mas é necessário investimento. Como encontrar um equilíbrio? Nós apostamos muito nas reformas, porque parte dos nosso males advém de uma má gestão e da corrupção que, em Portugal, é transversal. Os liberais não são contra o Estado. Mas um Estado enquanto regulador. Por exemplo, um português típico, olha com inveja, e com alguma razão, para os países nórdicos onde a carga fiscal é muito elevada, mas as pessoas têm acesso a todos os serviços e com qualidade. O problema, em Portugal, é que estamos a chegar ao ponto em que qualquer pessoa, com um ordenado mediano, chega facilmente aos 35 ou 40 por cento de impostos, sem conseguir aceder a serviços de qualidade. Acha que em Portugal as pessoas deveriam ter direito aos mesmo benefícios que são dados por esses países? Exacto. Mas não temos serviços de acordo com isso. Se pagássemos o que pagamos, mas com serviços de saúde e de educação de acordo com esse valor tudo estaria razoavelmente bem e as pessoas, se calhar, não se importavam de pagar tantos impostos. Das duas uma, ou pagamos metade dos impostos que pagamos, continuamos a ter os serviços que temos, e o dinheiro com que ficamos vai-nos permitir viver melhor e investir de outra forma em nós próprios, na nossa profissão, na família, nos estudos dos filhos, etc. Nós, liberais, olhamos mais para o indivíduo e por isso, neste contexto, poderíamos pagar 20 a 25 por cento dos impostos e ter os mesmos serviços deficientes. Vivemos com isso e assumimos. Ou então, se pagamos aquilo que pagamos tem de haver uma reforma profunda e tem tudo de funcionar bem. E quem regula tudo isto é o Estado. Os países nórdicos também têm os seus problemas. Nada é perfeito. Mas são países que realmente têm sistemas de saúde e de ensino gratuitos que funcionam bastante bem. A Europa tem estado dividida. Os movimentos de direita são cada vez mais extremos. Uma das razões tem que ver com a reacção à integração de refugiados. Como vê esta questão? Quando tivemos agora esta vaga de refugiados na Europa, Portugal nem foi muito afectado. Não tivemos problemas. Mas houve outros países que tiveram. Quando falamos de refugiados estamos a falar de pessoas que vêem de uma situação extrema de vida ou morte e, portanto, precisam de um porto de abrigo. Penso que a Europa esteve bem a acolher os refugiados. Claro que depois isto originou problemas. A Itália foi altamente massacrada. A Itália foi o país com mais entradas de refugiados. A legislação Europeia diz que o país por onde os refugiados entram é responsável pelo seu processo de acolhimento e de trânsito. O que aconteceu foi que a Itália foi altamente prejudicada nisto. A Alemanha concordou em acolher grande parte destes refugiados. À partida, parece uma atitude bastante altruísta, mas na Alemanha não se brinca em serviço. A Alemanha para manter a economia lá em cima precisa de uma população activa grande. Atenção que os refugiados que vieram da Síria, na sua maioria, tinham cursos superiores e tinham as suas profissões. Eram refugiados bastante apetecíveis. Percebo perfeitamente porque é que a Alemanha lhes abriu a porta. Eram pessoas que se podiam integrar perfeitamente. Outros países fizeram o mesmo que a Alemanha. Agora há aqui um grave problema. A população destes países onde tem existido uma contestação mais forte, não viu isto com bons olhos devido aos problemas sociais que trouxe e por verem parte dos orçamentos a irem para estas questões. Começou a haver reacções de racismo puro e duro. O que se nota depois é a ascensão de partidos nacionalistas. Como vê esta ascensão de movimentos de extrema-direita? Acho que é perigoso. Esta coisa do populismo faz-me uma grande confusão. Mas isto é tão perigoso como seria perigoso partidos de extrema-esquerda subirem ao poder e imporem determinadas coisas. Acho tudo perigoso. Não é por acaso que a democracia se situa ao centro. E eu, acima de tudo, sou democrata. Até vejo isso um pouco como um equilíbrio natural, porque quando há um excesso de um lado, tem que haver a reacção do outro. Mas isso pode resvalar para situações perigosas. Sim, mas a história também nos ensina que perante essa situação também vai existir um contramovimento. Foi sempre assim. Não há maneira de evitar esse resvalar? Há, são os liberais. É a luta pela defesa de direitos e por uma boa implementação da democracia. Referiu que “entre Haddad e Bolsonaro, venha o diabo e escolha”. O que quer dizer com isto? Nós preferíamos que fosse um candidato novo que estivesse nesta corrida. O PT teve o problema gravíssimo de estar associado à corrupção e está a ser altamente penalizado por isso. Mas o Bolsonaro assume-se contra a democracia. Sim, e por isso não sei qual deles é o melhor. Se fosse brasileira teria graves dificuldades em escolher. Em escolher entre democracia e não democracia? Mas eu não considero nenhum dos dois candidatos democratas.
Diana do Mar Entrevista Sociedade“Uma Faixa, uma Rota” | Rui Lourido realça oportunidade para relações sino-lusófonas O presidente do Observatório da China, Rui Lourido, defende que a iniciativa “Uma Faixa, uma Rota” vai ser um “grande motor” também no âmbito das relações sino-lusófonas. Já a Macau cabe afirmar a sua diferença na China e destacar-se como um ponto de exportação da Grande Baía, diz [dropcap]A[/dropcap] iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” vai ser, “sem dúvida”, um “grande motor de desenvolvimento económico mundial”, em particular também para as relações entre a China e os países de língua portuguesa. É o que considera o presidente do Observatório da China, Rui Lourido, que entende que cabe a Macau destacar-se pela “diferença” e “como um ponto de exportação da Grande Baía”. “A China é hoje o maior incentivador do multilateralismo e da globalização e o país que mais contribui para relações diplomáticas fundamentadas por relações económicas ‘win-win’”, observou ao HM, Rui Lourido, para quem tal fica patente na iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”. “Esta visão de encarar o comércio como uma forma de estabelecer relações de ganho recíproco que se projectem e possam garantir um ambiente de paz é fantástica”, realçou o também historiador. “Poder-se-ia dizer que é egoísta traçar linhas férreas que são de todo o interesse para a importação e exportação dos seus bens, mas para os países atravessados pelo investimento nessas grandes vias de comunicação é altamente positivo”, dado que “contribui para o seu desenvolvimento”, apontou Rui Lourido. Em paralelo, a iniciativa promove um “relacionamento pacífico”, “em contraposição à actual postura de desestabilização dos Estados Unidos”, realçou. “Todos os países estão ansiosos”, argumentou, referindo-se ao projecto chinês de investimentos em infra-estruturas, que ambiciona reavivar simbolicamente o corredor económico que uniu o Oriente o Ocidente. “Para além da possibilidade de desenvolvimento económico, o que me parece interessante é que, agora, ao fazer comércio, a China também começa a ter a percepção que tem de ter uma vertente mais cultural”, o que “possibilita realmente a multiculturalidade”, sustentou Rui Lourido. “A China compreendeu que as relações culturais dão estrutura e coluna vertebral ao interesse económico”, afirmou, apontando que tal sucede depois dos “anticorpos” que Pequim gerou na sequência dos primeiros passos dados em África. Embora o mundo lusófono seja “uma vertente importante para a China”, Rui Lourido reconhece que “não é a fundamental”. Neste contexto, e sobre o papel de Macau, o historiador entende que o Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa joga um papel estratégico. “Naturalmente, Portugal ou Brasil negoceiam directamente com a China e o principal das relações não passa por Macau, mas [o Fórum] tem uma importância política que ultrapassa em muito essa diminuta importância económica”, defendeu. Na sua perspectiva, tal advém do facto de “dar visibilidade a oito países que não a teriam se o Fórum não existisse”. Por outro lado, acrescentou, o Fórum “é muito importante” para Macau que se distingue de outras regiões da China por via de uma identidade que “lhe permite dizer que “tem algo mais que as outras não têm”. No entanto, admitiu, “é um projecto em desenvolvimento, que pode melhorar e muito”. Questionado sobre a coerência de Macau se apresentar como uma plataforma entre a China e os países de língua portuguesa quando o seu comércio com África, por exemplo, é praticamente nulo, Rui Lourido reconheceu, porém, que “há todo um caminho a fazer”. Iniciativas para 2019 O Observatório da China, criado em 2005, vai publicar no próximo ano uma edição trilingue da Crónica dos Mares – Hailu Zhu, com o apoio da Universidade de Macau e da Fundação Macau e da Academia de Ciências Sociais da China e de Cantão. Esta será uma das iniciativas para 2019, ano em que se assinalam três efemérides importantes: os 40 anos do restabelecimento de relações diplomáticas entre Portugal e a China, os 70 anos da República Popular da China e os 20 anos da Região Administrativa Especial de Macau. Para Junho, por exemplo, está programada uma conferência, a ter lugar na Gulbenkian, precisamente sobre a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” e as relações da China com Portugal e a lusofonia”, indicou Rui Lourido, dando ainda conta de outras iniciativas de cariz cultural, que incluem levar Ópera de Cantão a cinco cidades portuguesas em Dezembro.
Andreia Sofia Silva Entrevista EventosVíctor Marreiros, designer gráfico e ilustrador: “Não trabalho para exposições” Desde miúdo que está sempre a rabiscar desenhos e, no fundo, nunca trabalhou porque sempre amou o que fez. Víctor Marreiros, designer gráfico e ilustrador macaense, tem nova exposição em nome individual na residência consular até 8 de Novembro, intitulada “China Norte-Sul”, com trabalhos que nasceram de uma encomenda de um casino. Não busca uma partilha incessante do seu trabalho, mas, ainda assim, poderá protagonizar uma nova mostra em 2020 [dropcap]H[/dropcap]á cerca de dois anos falámos das obras que agora expõe na residência consular. Esperava que uma encomenda se transformasse numa exposição? Não foi programado como tal. Foi um caso raro esta encomenda do casino.Não foi a primeira vez, já tinha trabalhado para o restaurante do arquitecto Carlos Couto em Taiwan, mas o tema era completamente diferente. Neste caso o tema é a gastronomia chinesa das zonas norte e sul. Foi um projecto muito giro, e como artista fui completamente respeitado. Surgiu o convite, mas eu não trabalho para exposições. Vou trabalhando diariamente, vou fazendo uns desenhos nos intervalos das encomendas de artes gráficas. Quando não tenho encomendas, desenho. Nos intervalos do futebol ou de um filme vou desenhando. É o terceiro convite que me tem aparecido para exposições e já neguei dois. Não vale a pena fazerem-se muitas exposições, mas tem de se ter um número de quadros. O meu trabalho pode surgir de uma anedota, de uma conversa que tive, e vou fazendo aqui e ali. Quando não tenho projectos faço eu projectos temáticos, encomendo a mim próprio. Não quis negar este convite tendo em conta que tinha material suficiente e muitas pessoas disseram-me que o trabalho estava bom mas que tinham dificuldade em ver os quadros no meio de tantas pessoas no restaurante. Tinham vontade de ver mais. Juntei o útil ao agradável e como tinha obras em número suficiente, juntando alguns trabalhos que tinha mais antigos, e ainda outro que completava o tema. É por isso que a exposição tem o nome “China Norte-Sul”, porque aparecem referências a Xangai, Pequim, Macau. As mulheres têm um destaque neste seu trabalho, tendo retratado as vestes e características da cultura tradicional do norte e do sul da China. Concorda? Há quadros baseados em temas históricos e sociais, e naturalmente que uma mulher ocupa uma grande parte da vida de uma pessoa e de um homem como eu. Retrato épocas e costumes através de adereços ou formas. A mulher aparece de várias maneiras e já houve um apontamento… disseram-me que muitas das mulheres aparecem com um ar triste, mas foi um mero acaso. Não quis ter mulheres alegres ou tristes. Talvez tenha sido uma mera coincidência o facto das mulheres aparecerem com um ar triste, como a noiva na noite de núpcias. Não sei se no futuro irão aparecer com um ar mais alegre ou mais feliz. Se tivesse de fazer novas obras ou um trabalho sobre a actualidade de Macau, a nível político ou social, o que gostaria de retratar? Como trabalhei e trabalho a tempo inteiro como gráfico, e quando vem uma encomenda tenho de respeitar os objectivos e as directrizes de quem encomenda. Não é por essa razão que deixo de ser menos artista. Respeito o trabalho que faço, não sou eu que defino ou decido tudo o que faço. Se tivesse de fazer algo de Macau não pensei nem sei, porque ou a encomenda vem com objectivos ou então depende da emoção ou de algo que acontecesse no momento e que me fizesse desenhar. Sou um bocadinho nostálgico, ainda gosto do Macau antigo, mas não tenho nada contra o novo. A melhor coisa que eu posso dizer sobre Macau é elogiar a segurança em todos os campos, economia, política. BASTIDORES, Ópera de Cantão (vhm) Esta exposição acontece no âmbito da Semana Cultural da China e dos Países de Língua Portuguesa. Para si, o que é isto da cultura lusófona? É ainda um aglomerado de coisas à espera de melhor definição, ou está bem assim? Qualquer projecto deve ter o seu objectivo e deve-se definir para quem é o projecto e para quê. Não sou a pessoa indicada para opinar sobre o projecto que o Governo de Macau tem para a lusofonia, ou qualquer outro. Muitas das vezes as coisas começam com um certo ruído, no bom sentido, e vai-se crescendo. Em Macau, em relação às festividades da lusofonia é sempre bom que aconteçam, é bom para os portugueses e chineses também. Não encontro noutros países com comunidades portuguesas festivais com esta dimensão. Em relação ao 10 de Junho, em Macau volta a ser uma data com vários eventos. Pelo menos estamos a falar e a dar a conhecer o português como língua e cultura. No meio de tudo isso, a cultura macaense perde-se um pouco? Perde-se uma visão, mas ganha-se outra. É natural que a cultura macaense varie consoante o tempo, e o próprio macaense em si pode ser mais ‘achinesado’ ou ‘portuguesado’. Os casamentos vão variando, com mais ou menos sangue chinês, e há macaenses no estrangeiro que quase não conhecem Macau. É natural que esta miscelânia cultural vá variando com o tempo e as influências. Diria que a cultura macaense se vai renovando. No contexto específico da semana cultural, a cultura macaense está bem representada? Será que tem de ser representada? Não é uma semana macaense, mas portuguesa, porque os macaenses são também portugueses. As associações que participam é que se devem pronunciar sobre isso, se está melhor ou pior representada. A sua exposição acontece na residência consular. O novo cônsul, Paulo Cunha Alves, já disse que quer apostar na cultura portuguesa. O espaço da residência consular poderia ser mais bem aproveitado para manifestações culturais? Não conheço a agenda do novo cônsul. Tive a oportunidade de lhe dar os parabéns. Se o consulado deve organizar mais actividades culturais, tudo depende da sua agenda e em ligação com as associações que promovem esse tipo de eventos. Mr. HENRY, vida (vhm) Já tem ideias para o próximo cartaz do 10 de Junho, que costuma ser feito por si? Ainda não, é cedo. Até Maio tenho projectos para acabar porque estou a pensar realizar uma outra exposição e no meio disso não sei se farei mais uma coisa. É a minha forma de estar, tenho projectos encomendados para acabar até Maio e tenho projectos encomendados por mim, que não sei se estarão prontos em 2020. Até lá podem entrar coisas pelo meio. Não trabalho para exposições, como já disse, e não tenho nada contra quem trabalha para exposições. Não gosto de datas, adoro o que faço, mas cansou-me imenso estar 30 anos com deadlines, isso dá-me um stressezinho. Com encomendas ou não estou sempre a criar e a trabalhar. Tenho dois convites para exposições programados para 2020, disse que sim sem saber o que vou expôr, sem dar certezas.
Andreia Sofia Silva EntrevistaMaria Fernanda Ilhéu, académica e presidente da Associação Amigos da Nova Rota da Seda: “Não podemos estar com medo” A iniciativa “uma faixa, uma rota” ainda é um mistério sem contornos de definidos. Algo que Maria Fernanda Ilhéu, académica e presidente da Associação Amigos da Nova Rota da Seda, encara como uma oportunidade económica e cultural e uma visão alternativa à globalização. No final do mês, Maria Fernanda Ilhéu apresenta o livro “A China e a Revitalização das Antigas Rotas da Seda – Novo Vector do Comércio Mundial” [dropcap]A[/dropcap] Associação Amigos da Nova Rota da Seda faz dois anos em Dezembro. Que balanço faz deste dois anos de actividade? Temos dois objectivos essenciais, que são promover a iniciativa “uma faixa, uma rota” em Portugal e ao mesmo tempo encontrar projectos de cooperação entre Portugal e a China e entre Portugal a China e países terceiros, nomeadamente os de língua portuguesa. Começámos do início, através da promoção da iniciativa. Muita pouca gente em Portugal tem uma ideia do que se pretende com esta iniciativa, quer na vertente de desenvolvimento estratégico da China, quer na vertente do novo modelo de globalização que a China tem, a visão que propõe ao mundo. Esta fase ainda está em continuação, mas estamos também a identificar áreas de cooperação. Nessa fase de identificação de áreas de cooperação temos, por exemplo, a construção de infra-estruturas, quer em Portugal, quer nos países de língua portuguesa. Temos a parte de formação e educação em várias áreas de conhecimento, também ao nível linguístico, português e chinês, mas que são muito mais vastas que isso. Podem ser, na área tecnológica, nos negócios, ou na área cultural, ou da medicina. A medicina e o bem-estar é um grande campo de diálogo e de construção que podemos prever no encontro da medicina tradicional chinesa com a medicina ocidental. Em Portugal estamos avançadíssimos em algumas áreas da medicina. Um dos aspectos que vamos lançar, com o apoio da associação, é um curso de formação em várias áreas da medicina tradicional chinesa. Temos, obviamente, como objectivo o mercado português, mas também os mercados de língua portuguesa, como Moçambique, onde estamos já com uma prospecção avançada de como podemos colaborar com eles. HM O facto da Organização Mundial de Saúde ainda não ter reconhecido a medicina tradicional chinesa e de ter existido algum debate sobre isso não faz com que esta cooperação caia um pouco por terra? As próprias entidades chinesas compreendem que existem obstáculos para a medicina tradicional chinesa. Portanto, também fazem um esforço de compreensão, de como é que essa medicina e a ocidental podem cooperar, porque há valências e avanços significativos em ambas que são complementares. Em termos de Europa, Portugal está na vanguarda desse reconhecimento, faseadamente, para algumas áreas. É isso que estamos a trabalhar em conjunto com a China, de forma a que a China se aproxime também dos nossos conceitos e perceba como é que algumas coisas devem ser feitas para irem de encontro aos padrões europeus. Estamos a preparar um curso com a Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, com o Instituto de Medicina Tradicional e com ISEG na parte do marketing, para conseguirmos uma aproximação a potenciais alunos que estejam interessados em saber como evoluir, como têm de se preparar para a Europa os reconhecer. Mas temos outras áreas. Pode exemplificar com outros domínios? No sector cultural, por exemplo, temos um livro que vamos agora lançar em Macau, penso que será no dia 30, no Clube Militar ou no dia 29 no Instituto Internacional de Macau. “A China e a Revitalização das Antigas Rotas da Seda – Novo Vector do Comércio Mundial”. É um livro que coordeno, juntamente com a arquitecta Leonor Janeiro. Tem nove capítulos, escrito por 10 pessoas. Há um capítulo em co-autoria, o da música, mas os outros têm um autor por capítulo e várias áreas. Como é que as antigas rotas da seda contribuíram para o avanço civilizacional em várias áreas e para a ligação entre os povos. Como a nova rota da seda, que a China nos propõe, vai contribuir no futuro. No fundo, este grupo de trabalho na associação tem um foco muito grande na ligação entre os povos. Fizemos este livro e uma viagem antiga à rota da seda chinesa. Ao fim de dois anos, as várias áreas de trabalho vão produzindo os seus efeitos. Estamos muito atentos a tudo o que se faça na iniciativa “uma faixa, uma rota”, não só na China como em países europeus. No dia 12 de Novembro temos uma conferência, em Lisboa na Fundação Casa de Macau, sobre a relação da União Europeia com a China nesta iniciativa, e como é que outros países da Europa estão a progredir em termos de memorandos de entendimento. Na expectativa de, em breve, Portugal assinar um memorando de entendimento com a China sobre esta iniciativa. No fundo, estruturará e marcará algo que já é evidente, que é Portugal e China a colaborar nesta iniciativa. O Presidente da República já manifestou, por mais de uma vez, que é uma iniciativa que Portugal apoia e que tem muito interesse em integrar. O Primeiro-Ministro também, assim como o Ministro dos Negócios Estrangeiros. Agora, esperamos que formalmente seja assinado um protocolo que definitivamente estruture essa colaboração. Mas a nossa associação tem tido um empenho muito grande em dar a conhecer na China aquilo que Portugal tem, o que vai fazer, e por outro lado dar a conhecer em Portugal o que esta iniciativa pode trazer em termos de cooperação com a China e com os países de língua portuguesa. Considera que ainda existe falta de clarificação relativamente aos objectivos da iniciativa “uma faixa, uma rota”, apesar dos discursos oficiais? Acho que há muita coisa a construir. A política de abertura da China, que se iniciou em 1979, foi toda ela feita passo a passo, sentindo as pedras debaixo dos pés. Vamos avançando, sabemos para onde queremos ir, mas devagar. Ainda não sabemos como vamos, então vamos experimentando. Se corre bem continuamos, se não corre bem damos um passo atrás e vamos por outro caminho para lá chegar. O que está a acontecer nesta iniciativa é precisamente isto. A China lançou a visão e perguntou quem estava interessado em colaborar. Não é um roteiro do que vai acontecer. Há uma decisão de querer fazer algo diferente, isto é muito importante porque é um modelo de globalização diferente. Queremos proporcionar a cooperação entre os países mais desenvolvidos para ajudar os países menos desenvolvidos. Portugal tem um papel muito importante neste projecto, que é colaborar com a China e com os países de língua portuguesa. Todos temos a ganhar com esta cooperação. Como vamos fazer? Vamos construindo. Não há uma direcção que diga “as políticas são estas”. À medida que vamos avançando, vemos o que é necessário, qual a fase seguinte e como nos vamos estruturar. Nós, à maneira ocidental, estamos à espera que haja uma política logo definida e não há. Há um conjunto de visões e vamos acertar como lá chegamos. Há muitas áreas mal definidas. Por exemplo, a governação destes projectos. São projectos que podem ser tripartidos, ou mais que isso. Em termos de financiamento, como se podem desenvolver projectos com este nível de cooperação? Fizemos em Março, em Lisboa, uma grande conferência sobre o financiamento da “faixa e rota”, com entidade chinesas mas também com o Banco Mundial e com instituições como, por exemplo, o Banco Europeu de Investimentos. Há uma linha, sabemos que tipo de problemas vamos encontrar. Temos de entender que não são “grants”, não são ofertas. O dinheiro tem de ser justificado. O dinheiro vai ser posto à disposição dos projectos, por financiamentos vários, mas tem de ter rentabilidade. Estes projectos têm de ser auto-sustentáveis e rentáveis, temos de justificar economicamente a sua existência. Tudo isto são aspectos muito profissionais, que levam tempo a analisar, a preparar e a colocar as pessoas de acordo, porque estamos a falar de um encontro de pessoas com culturas diferentes, que têm registos de trabalhos passados diferentes, temos experiências diferentes. Temos de nos acertar para em conjunto evoluir. Por exemplo, os ocidentais são “rule oriented”, são orientados por regras. Os chineses são orientados por projectos e estratégias. Estamos a falar de um projecto dos próximos 30 anos, estamos agora a começar. Esta nova visão pode ser, efectivamente, uma visão muito motivadora de novos encontros civilizacionais e de novas áreas de desenvolvimento do mundo, nomeadamente o centro europeu, África e América Latina. Alguns analistas defendem que a política “uma faixa, uma rota” pode representar uma tentativa de domínio económico da China perante os outros países. Concorda com essa visão? Acho que tudo pode acontecer, porque a geopolítica e a geoeconomia estão a mudar, é visível o que se está a passar na Europa neste momento, com o Brexit, o que se está a passar nos Estados Unidos com o proteccionismo. São ideias correntes que, para nós, há uns anos eram impensáveis. Há novas potências ascendentes. A China é uma delas, mas também vamos ter a Índia. Há países a crescerem muito, alguns pela sua dimensão poderão ter uma pujança económica que lhes permite posicionarem-se na liderança da economia mundial. A pergunta é se a China está a fazer isso deliberadamente. Eu penso que não. Penso que a China está a fazer isto porque tem problemas internos para resolver. Na vertente interna de “uma faixa, uma rota” vai trazer áreas de novo desenvolvimento dentro da própria China. Como por exemplo… Uma delas é toda a zona do oeste que está muito mais atrasada em relação a outras províncias da China. Estou a falar do corredor de Gansu e da província de Xinjiang, essa zona ligando-se ao centro eurasiático vai reconstruir uma zona de grande poder económico, que existiu há milhares de anos. Tem muitos recursos naturais e um enorme potencial de desenvolvimento. Por outro lado, a China tem de se equilibrar, tem de passar a chamada armadilha do rendimento médio. Tem de dar um salto qualitativo muito grande, nomeadamente na área da ciência e investigação. Tem um grande investimento e um plano para a educação. Se daí vai resultar, ou não, uma liderança óbvia da China no mundo económico, no mundo científico, não sabemos. Não me parece que a prioridade da China seja dominar toda a gente. A China nunca teve essa ideia. Quando no séc. XV, Zheng He fez uma expedição marítima e chegou à costa de Moçambique, o que fizeram? Trocaram tributos, deram ofertas, estabeleceram políticas de relacionamento, aumentaram o comércio. A China é já uma potência emergente que vai ter um papel enorme no mundo. Mas os Estados Unidos também existem, a Europa também. Como é que estas forças todas vão conjugar as vantagens competitivas? O que é que se vai passar? É futurologia. Não podemos estar com medo, com medo não nos levantamos todos os dias. Portanto, o melhor é continuar, caminhar e ter projectos de colaboração. Cada país tem de ver o que é que lhe interessa e como pode colaborar com esta iniciativa, se é que lhe interessa. Mas é um campo que está aberto.
Sofia Margarida Mota Entrevista MancheteNalini Elvino de Sousa, realizadora e produtora: “Macau e Goa partilham uma história com mais de 500 anos” Nalini Elvino de Sousa vai estar em Macau no próximo domingo para inaugurar a exposição “Viagem Oriental”, que estará patente no Jardim de Lou Lim Iok até 18 de Outubro. A realizadora, que também se dedica ao intercâmbio cultural e linguístico, tem na calha projectos para promover o ensino do português em Goa, para os quais espera o apoio de Macau [dropcap]V[/dropciagem Orientalap] começou por ser um livro e agora é uma exposição que traz ao público os objectos de Macau que ainda vivem nas casas de Goa. Como nasceu este projecto e qual foi o processo de recolha de conteúdos? Tudo começou com a minha curiosidade ao verificar que muitas casas de amigos que visitava tinham loiça vinda de Macau. A minha própria casa está cheia de loiça e mobília de Macau. Como nunca ninguém da família esteve em Macau, comecei a investigar. Havia, até há bem pouco tempo, lojas que vendiam loiça e mobília de Macau, e recentemente voltou a abrir uma na capital em Panjim. Entretanto, e enquanto responsável pela ONG Communicare Trust resolvi, através desta entidade, criar uma competição de imagens onde pedimos aos participantes para fotografarem todos estes objectos orientais que encontrassem em casa. Com o apoio do Gabinete de Apoio ao Ensino Secundário e do Instituto Internacional de Macau, foi possível levar o projecto em frente com a criação de um livro contendo as melhores 40 fotografias e dois textos de introdução sobre a relação entre Goa e Macau. Penso que o interesse que as pessoas que vivem em Goa ainda têm por este tipo de peças está puramente relacionado com o seu exotismo. Na verdade, não acredito que alguém use por exemplo, os conjuntos de chá vindos de Macau. Os meus em casa, estão guardados dentro de um armário. Muitas outras pessoas fazem o mesmo. São elementos decorativos da casa. Durante a sua vinda a Macau vai também participar numa palestra sobre as relações entre Macau e Goa. Macau e Goa partilham uma história com mais de 500 anos. Começa em 1557 com o estabelecimento de Macau e a paragem obrigatória na rota da Nau do Trato que também passou a ser conhecida como Nau do Trato de Macau. Era na viagem de regresso do Japão que a Nau vinha carregada de oiro, seda e porcelanas. Muitas das antigas casas em Goa, até hoje, contêm porcelana chinesa dessa altura que é considerada exótica e valiosa: jarrões, jogos de chá variados e pratos decorativos que enchiam as paredes das casas. Também no chão das casas se encontra esta presença através de desenhos extremamente trabalhados feitos de porcelana que se partia durante a viagem de Macau para Goa. Foi a partir destes pequenos pedaços de porcelana coloridos que se criaram pavões, flores, árvores etc. Diz-se até que quando não se conseguiam as cores pretendidas para as decorações se partia uma porcelana de propósito para poder terminar os desenhos. Nos finais do séc. XVI, começaram a crescer as dificuldades para se conseguir fazer esta viagem devido à competição com os holandeses, espanhóis e ingleses. Mais tarde, goeses que vieram trabalhar para Macau também trouxeram porcelanas e outros objectos na mala. Uma ou duas lojas dedicaram-se mais a sério ao comércio destes objectos naquela altura. Actualmente, ainda existe uma que se chama Casa Macaõ. Sim, nem o acento está no lugar correcto. Vou falar sobre isso na palestra. Ter um objecto de Macau em casa é ainda hoje moda. É responsável também por uma produtora e realizou recentemente o documentário “Enviado especial” em que retrata Aquino de Bragança, um goês que lutou pela paz em África. O que a motivou a fazer este filme? Todo o trabalho a que me tenho dedicado, seja através da minha produtora, Lotus Film & TV Production, como com a Communicare Trust e até com o meu canal no Youtube Travel & Learn Goa, tem como base a minha relação com Goa, com Portugal e com a lusofonia. Eu sou um produto disso. Os meus pais são de Goa, foram estudar para Portugal onde eu nasci. Muitos dos meus amigos tinham vindo então de Moçambique e eram de origem goesa. Fiz parte, durante 10 anos, do grupo da Casa de Goa – Ekvat. Depois, há 20 anos atrás, resolvi viver em Goa. Talvez por isso, todos os meus documentários denotem estas relações, ou talvez eu seja atraída por este tema sem me aperceber. Aquino de Bragança nasceu em Goa mas decidiu dar a sua vida pela África. Eu admiro pessoas que largam tudo por uma causa. Deve ser o meu lado romântico. Aquino de Bragança é conhecido pela sua oposição ao colonialismo e intervenção nos processos de descolonização tendo convivido de perto com líderes dos movimentos de libertação das antigas colónias portuguesas, como Samora Machel. Paralelamente, pautava a sua acção pelo humanismo e por uma atitude de abertura. Este tipo de diplomacia pode ainda hoje ser um exemplo? Aquino acreditava que só a conversar nos podemos entender. A Graça Machel chamava-lhe “o nosso submarino” porque ele nunca estava presente em conferências do partido, reuniões oficiais, etc. O discurso nesse tipo de reuniões, para ele, era sempre o mesmo. Ele encontrava-se nos corredores dessas mesmas conferências, chegando a um acordo com este ou aquele diplomata. Levava-o para casa, se possível, e a conversar, tomavam decisões importantes. Lembro-me da Sílvia Bragança (viúva do Aquino) confessar-me que ficava, às vezes, apreensiva pois o marido decidia ir a casa de diplomatas que eram completamente contra o seu pensamento. Aquino dizia: “Não te preocupes. Há que encontrar a razão da sua discórdia e com certeza haveremos de encontrar elementos em comum que nos fará chegar a um acordo”. Por vezes, chegava a reunir pessoas com mais do que uma opinião para discutir e chegar a um consenso. Isso é importantíssimo nas relações entre países, tanto na altura como actualmente. Há que ouvir ambos os lados ou não existe uma equilíbrio entre as relações sejam elas culturais, económicas ou de outra natureza. Pretende trazer o filme a Macau? Gostaria muito de trazer o filme para Macau. Contactei a Cinemateca, mas não obtive ainda resposta. Acho que é um filme que abre portas para muitas questões. Tem produzido inúmeros documentários. Qual foi o que mais gostou de fazer? Quando faço um documentário tenho de estar apaixonada pelo assunto. Então, embrenho-me de corpo e alma ao ponto de perder o sono. Perguntar qual deles gostei mais é como perguntar qual foi o meu namorado preferido. Gostei de todos, por igual. Está em Goa, um território que teve durante muito tempo a presença dos portugueses. Em que é que esta presença ainda se sente? A presença mantém-se na arquitectura, no nome de algumas ruas, algumas lojas que mantêm os antigos nomes portugueses, na gastronomia de Goa e na língua, claro. Hoje temos cerca de 900 alunos a aprender português como língua estrangeira. Os professores são poucos, mas vai-se fazendo o melhor que se pode. A Fundação Oriente tem feito um trabalho fantástico neste sentido. Também eu já passei pelo ensino, mas neste momento tenho outros projectos em mente. A geração dos meus pais ainda fala português fluentemente, mas no futuro não sei. Há muito nesta área que pode ser feito e estou a contar com Macau para que possamos trabalhar juntos na área do ensino. Os professores são pagos, na maioria, pela Fundação Oriente uma vez que são goeses reformados que falavam português em casa e que agora ensinam por amor à língua. Os jovens que ensinam português contam-se pelos dedos da mão. São apenas dois ou três. Nenhum dos professores fez um curso, propriamente dito, para ensinar português como língua estrangeira. A Fundação Oriente, com o apoio do Camões, tem realizado alguns workshops para poder melhorar o ensino da língua. Em Deli, a situação é completamente diferente: os professores são extremamente jovens e aprenderam português como língua estrangeira. Muitos estudam por razões financeiras. Há muitos call centers que precisam de indianos que falem português. No entanto, existem alguns que querem ensinar e é a eles que se tem de dar uma oportunidade. Uma das formas que a Communicare Trust encontrou para promover o português, como também as línguas nacionais dos países com quem trabalhamos, foi através da produção de um livro de histórias escrito e ilustrado pelos próprios alunos. O projecto chama-se: “Histórias Daqui e Dali”. O primeiro livro internacional foi publicado em Abril deste ano e foi criado por 200 alunos em Goa e 200 alunos em Portugal. O livro foi editado em Português, Konkani (língua oficial de Goa), Hindi (língua nacional indiana) e Inglês. Nos próximos anos, estamos a pensar trabalhar com Moçambique, Brasil, Timor mas também com Macau. Estamos, de momento, à procura de parceiros. Este projecto é uma forma de promover não só a leitura do português mas também das línguas nacionais dos países com quem interagimos porque, como disse Nelson Mandela: “Sem a língua, não se pode falar com as pessoas e entendê-las; não se pode compartilhar as suas esperanças e aspirações, compreender a sua história, apreciar a sua poesia, ou a sua música”. https://www.youtube.com/watch?v=7_-94TiowME
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteJoaquim Coelho Ramos, director do Instituto Português do Oriente: “Nunca fechamos portas” Nomeado director do Instituto Português do Oriente em Julho, Joaquim Coelho Ramos quer continuar o trabalho do seu antecessor, mas pretende internacionalizar mais a instituição de ensino e apostar na investigação. A criação de um laboratório de línguas está entre as novas apostas [dropcap]C[/dropcap]omecemos pelas estratégias que traz para este mandato à frente do IPOR. As estratégias que trago terão de ser ajustadas ao longo do tempo, uma vez que é assim que as coisas funcionam, porque temos de conhecer a realidade e as pessoas. Gostava de trabalhar em duas linhas: a primeira com a continuação do notável trabalho que deixou o meu antecessor, e essa fase será de consolidação em que será necessário terminar algumas tarefas e projectos que ficaram do anterior mandato. Há depois uma segunda fase que eu gostava de começar no prazo de um ano que consistirá na aproximação à rede que está ligada ao IPOR, aos nossos colegas de outros países aqui à volta. Queria, de facto, que a actividade do IPOR funcionasse mais em contacto com países como o Vietname, Tailândia, Timor-Leste e Austrália. Como se explica o interesse pelo português no Vietname, Tailândia e até na Austrália? O português é uma língua que não está a ser descoberta agora, está é a receber mais atenção por parte dos meios de comunicação. Mas a verdade é que vivemos uma segunda fase da ebulição do português, porque já foi a língua diplomática e a língua de negociação internacional. O que estamos a ver agora é um renascimento do português num novo contexto, que se justifica pelo crescimento de uma nova realidade, que é a comunidade dos países de língua portuguesa, que traz consigo fenómenos económicos e culturais de desenvolvimento que estão a atrair o interesse de outros países. A língua surge como instrumento de acesso a estas diferentes áreas. Claro que as relações com a China também vieram ajudar à expansão da língua. Não há grandes dúvidas com o facto de termos estas relações privilegiadas com os parceiros chineses, a nível cultural isso é muito significativo. Recordo-me que recentemente falei com curadores em Portugal que me disseram que há uma emergência de novos curadores, nomeadamente de Macau, que estão a aparecer em feiras internacionais, e que estão a surgir em Portugal em mostras de arte contemporânea. Isso está a despertar muito interesse da parte das comunidades que nós consideramos mais tradicionais. Esta relação com a China também aumenta não só a visibilidade da criatividade mas também áreas mais abstractas, com uma menor dimensão pragmática. Estou convencido que isso é para continuar, porque estamos apenas a descobrirmo-nos. Encontrou alguns desafios e problemas que ficaram por resolver do mandato do seu antecessor? Não. Encontrei, não lhe chamaria problemas, mas situações que tiveram o seu início e que estão a ter a sua continuação normal. São projectos que não são de conclusão imediata, têm um procedimento, e nesse contexto incluiria realidades como uma nova abordagem ao ensino do português, que se transformou de uma abordagem modular para abordagem de níveis. A produção de novos materiais didácticos que tentaremos exportar, e depois um reforço daquilo que são as competências e a oferta técnica do IPOR, para o qual contamos com generosos apoios da região. Fala do Governo de Macau? Sim. Falo também da criação do laboratório de línguas no IPOR, que é uma valência que estou convencido que, a prazo, servirá escolas, escolas bilingues, os nossos alunos, que estão em número crescente. Trata-se de um projecto que está a ser trabalhado em conjunto com o Governo de Macau, que tem sido, aliás, muito próximo e disponível para este tipo de apoios. Quando é que esse laboratório estará em pleno funcionamento? Não lhe posso dar já uma data, sobretudo porque temos situações técnicas que carecem de avaliação que fogem à minha competência, tal como programação informática e sistemas que têm de ser vistos. Há também detalhes que se prendem com questões de compatibilidade, pois o laboratório terá de ser compatível com outros sistemas que já existam no mercado. É minha intenção fazer um trabalho em rede. Queria que fosse lançado num curto espaço de tempo. Que mais valias vai trazer este laboratório na ligação entre o IPOR e as escolas? O laboratório de línguas é uma estrutura e um meio complementar de pedagogia mas também na oferta de outras áreas, tal como a investigação, e vai trazer muitos benefícios, por exemplo, a nível do desenvolvimento de competências na área da fonética. Também vai permitir aos nossos alunos algum tipo de experimentação ao nível dos textos orais, tendo em consideração que aqui no IPOR temos uma abordagem muito pragmática dos conteúdos dos cursos. Cursos na área da Administração Pública, por exemplo, tentamos dar material autêntico que permita pôr alunos, em fases iniciais, em contacto com essas realidades. Com o laboratório vamos poder fazer crescer essa oferta e as competências que vão estar ao dispor dos nossos professores, e permitir que os nossos alunos tenham outras condições de aprendizagem. Depois há uma dimensão a nível da investigação. Em que sentido? Gostava que o IPOR tivesse maior visibilidade internacional na área da investigação, sobretudo porque tenho falado com docentes do IPOR e tenho visto a categoria deles, que é sem dúvida bastante alta. Tenho neste momento cinco professores a fazer doutoramento e, sobretudo, têm desenvolvido trabalho de investigação, nomeadamente na área da didáctica, que está pouco divulgada externamente. Estou convencido que com o incremento destas valias tecnológicas podem atrair pessoas de fora para interagir com os nossos professores, para que possam ter novas experiências mesmo em contexto de laboratório. É o momento ideal para termos o laboratório. Falando agora do número de alunos e do espaço físico do IPOR, são necessárias mudanças tendo em conta a tendência de aumento? Para já temos as condições necessárias em termos de espaço. Teremos que, a breve prazo, rever as condições técnicas, porque isso faz parte da própria evolução, quer da intervenção pedagógica, que vai exigindo novas condições, quer dos formatos das próprias sessões. Há novas abordagens que passam pelo posicionamento dos alunos nas salas e também pelos meios técnicos que se oferecem em contexto de sala de aula, e estamos perante uma evolução constante. Em termos de espaço, estamos a rever a disposição de algumas salas para fazermos a máxima rentabilização e também é bastante vantajoso o facto de darmos algumas aulas fora do IPOR, nas escolas que nos contratam. FOTO: Sofia Mota Falemos da parte financeira. Está resolvido o processo de saída dos associados CESL-Ásia e Banco Espírito Santo (BES)? O IPOR está muito bem em termos de associados. Temos associados de qualidade que estão empenhados no desenvolvimento da língua portuguesa na região. O nosso website não está actualizado relativamente a este aspecto porque a saída de um associado implica um procedimento, que vai desde a manifestação de interesse de saída, até à oficialização pela assembleia-geral. Não é um procedimento imediato mas em boa hora se fará. Estou a falar do BES, por questões que são conhecidas, e a CESL-Ásia que saiu de facto também. Mas gostaria de esperar pela próxima assembleia-geral para avançar com essa informação [se foi ou não manifestada a declaração de interesses na saída]. Patrícia Ribeiro, vogal da direcção – o BES já saiu há cerca de cinco anos. Foi uma saída pacífica, demonstraram vontade de sair. Na verdade, a assembleia-geral já considerou a saída da CESL-Ásia de associado do IPOR. Não existe ainda uma formalização, mas a declaração de interesses já foi entregue há vários anos. O IPOR terá de encontrar novos associados? A atracção de novos associados é sempre um desafio ao qual nunca fechamos portas, porque a abordagem do IPOR é de parceria. Há um interesse permanente em acolher novas entidades interessadas nesta dinâmica. O IPOR também tem os seus fundos próprios e está, neste momento, numa situação estável. A atracção de novos associados terá a ver com o interesse dos próprios e não é uma urgência. Os relatórios e contas também não são tornados públicos desde 2012. Não há aqui nenhuma intenção de ocultar informação, mas estamos desde há algum tempo a procurar fazer um novo site, que está em fase de conclusão. Queremos introduzir novas valências tendo em conta a modernização de que lhe falei há pouco. Os relatórios e contas podem ser tornados públicos assim que a assembleia-geral o entenda. Perfis dos alunos. O IPOR tem cada vez mais alunos adultos, com diferentes profissões? O futuro vai passar por ter mais alunos que vêm dos países de língua portuguesa, do meio empresarial? O IPOR terá de dar resposta a esses alunos? Algumas das fases que já referiu já estão contempladas na actual acção do IPOR. Temos a linha de orientação para os profissionais que tem a ver com pessoas que, com um contexto de trabalho, se dirigem ao IPOR para desenvolverem os seus conhecimentos na língua. Temos também alunos que ainda estão na sua vida académica e, porque procuram um complemento à sua formação, ou porque decidem procurar o português por sua iniciativa, que são acolhidos pelo IPOR. Temos oficinas para crianças também. A nível etário temos uma oferta abrangente. Quando me fala na relação dos países da CPLP, e tendo Macau como ponto de contacto, a ideia é desenvolver também essa área [empresarial] por vários motivos. O português é uma língua pluricêntrica e, neste contexto, é fundamental ter as diversas visões das culturas que lhe estão associadas. Quando abrimos concurso para professores temos tido candidaturas de vários pontos do mundo. É uma vantagem e é para continuar. O inverso também me parece oportuno. Há dias falei com professores e técnicos do instituto e transmiti-lhes a vontade de ver concretizados projectos de investigação com docentes de outros países. Como é que isso poderá ser concretizado? Quando temos alunos que aprendem português com a intenção de o aplicar no contexto de Angola, Moçambique ou São Tomé e Príncipe, eles têm de o aplicar em contexto. Essa ligação em projectos de investigação ou de criação de materiais didácticos tem de ser feita em duas vias.
João Luz Entrevista MancheteMarcus Im, presidente do Instituto Politécnico de Macau: “Alexis Tam é um bom chefe” Cerca de um mês depois de tomar posse como presidente do Instituto Politécnico de Macau, o professor Marcus Im revela os desafios que tem pela frente e garante que o português é a área chave e a sua prioridade. Im refere que patriotismo e ensino podem conviver em harmonia e que a liberdade académica será garantida durante a sua liderança. Além disso, o novo presidente do IPM dá uma boa nota ao Executivo em termos de política de educação [dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]stá no IPM desde 2001. Olhando para trás, como vê a evolução do instituto desde que entrou? Quando comecei no IPM só tínhamos um edifício. Naquela altura, o número de estudantes era menor, tínhamos uma área muito limitada, o que também constrangia o nosso desenvolvimento. Mas aos poucos, o crescimento económico de Macau permitiu-nos ter cada vez mais espaço, três novos edifícios e um ginásio. Também com o apoio do Governo, temos alguns blocos por ser construídos na Taipa. A evolução do instituto está alinhada com o desenvolvimento da sociedade e a economia de Macau. Passo a passo, fomos crescendo e ainda temos um longo percurso pela frente. Para uma instituição de ensino superior, 20 anos ainda é uma idade tenra. Especialmente no português, área chave e principal foco para nós, consigo ver Macau como um território com uma posição única e que pode tornar o IPM muito importante em termos mundiais. Por isso, o desenvolvimento tecnológico para ferramentas de tradução automática é muito importante. É algo que pode trazer oportunidades excepcionais ao IPM. Durante o discurso de abertura do ano lectivo mencionou o amor à pátria. Acha que política e nacionalismo se devem misturar com conhecimento académico e pedagogia? Acho que amar o país é muito importante, porque se não se ama o país pode-se pensar negativamente sobre muitos assuntos. Se um estudante amar o seu país tem uma vida muito positiva e a possibilidade de se concentrar no trabalho académico, em vez de pensar em coisas políticas todos os dias. Pode passar a maioria do tempo a estudar, em vez de alimentar pensamentos negativos. Não me parece que haja contradicção entre amor à pátria e o ensino. Enquanto presidente do IPM, como pode garantir que haverá liberdade académica? Acho que é um elemento muito importante no desenvolvimento do instituto. Se tivermos muitas limitações para fazer coisas diferentes, isso irá afectar o desenvolvimento da pesquisa académica. Temos um sistema para promover o desenvolvimento académico dos nossos estudantes e professores de forma a que fiquem todos protegidos. É uma ferramenta administrativa que apoia o desenvolvimento da investigação académica, algo que também é muito suportado pela nova lei do ensino superior. Está lá previsto. Uma instituição de ensino deve apoiar a liberdade académica. Não podemos travar formas diversas de pensamento académico. Não podemos impedir as pessoas de prosseguirem as suas investigações, ou de apresentar ideias em conferência num lugar público. Este é um problema ético que também está previsto na Lei Básica. Por isso, possibilitamos que as pessoas falem livremente, que apresentem as suas conclusões académicas e, como é óbvio, permitimos discussão. Por exemplo, a tradução automática será muito importante no futuro, mas estou aberto a opiniões contrárias ou diferentes. Na academia é particularmente importante, se assim não for como poderemos desenvolver novas ideias? Fazer apenas o que o chefe, ou director, nos diz para fazer? Desta forma nunca poderemos desenvolver coisas boas, inovação. O antigo presidente do IPM esteve à frente do instituto quase 20 anos. Acha que terá este tipo de longevidade no cargo? Do meu ponto de vista, tentarei ser apenas um bom presidente todos os dias que estiver ao serviço do IPM. Vou trabalhar muito todos os dias e espero que o meu talento, a minha experiência, contribua para o IPM. Não sei durante quanto tempo, mas enquanto aqui estiver darei o meu melhor. Imagine que está a falar com um estudante que acabou de entrar no IPM. O que tem para lhe dizer e que desafio lhe propõe? Acho que a primeira coisa, seria tratar da sua acomodação, desenvolver a rede com professores e colegas. Aprender sozinho num quarto, só com livros, limita o desenvolvimento do aluno. Primeiro tem de se estabelecer uma rede de comunicação, trabalho próximo com um tutor, alguém que guie o aluno e que o ajude a superar problemas. Um mentor é alguém muito importante para a adaptação de alguém que começa o percurso no ensino superior, em caso contrário o aluno pode perder-se num labirinto sem direcção. Isso seria a primeira coisa a dizer: como começar. Uma boa rede de apoio potencia a aprendizagem com tranquilidade e felicidade. Também faz parte do Comissão Eleitoral do Chefe do Executivo. Que nota daria ao Executivo de Chui Sai On em termos de políticas de educação? Daquilo que entendo, enquanto professor em Macau, tivemos sempre novas oportunidades. Temos uma nova lei do ensino superior. Até o Presidente Xi, em termos investigação, deu-nos a instrução, um guia, para nos inspirar a apostar nas áreas da ciência, tecnologia e inovação. É o caminho para fortalecer o país. Como instituto de ensino superior, a nossa missão maior é produzir conhecimento e isso é um grande incentivo, essa aposta em nós. O Governo encara o ensino com muita seriedade. Ainda recentemente, o Chefe do Executivo ouvi-nos quanto às formas de desenvolver tecnologias inovadoras. Ele está muito atento ao desenvolvimento do ensino, esteve à frente da secretaria dos Assuntos Sociais e Cultura antes de se tornar Chefe do Executivo. Ao longo de 20 anos, a evolução é visível. Gosto de trabalhar como professor aqui em Macau. Alguns nomes começam a ser falados como possibilidade para Chefe do Executivo. Ho Iat Seng e Lionel Leong são alguns dos mais falados. Como vê as suas qualificações? É uma pergunta difícil. Pelo que sei, são pessoas boas e talentosas. Neste momento, acho que ainda é cedo para comentar porque ainda falta mais de um ano. É difícil comentar qualquer um dos nomes, porque se comento preciso investigar o que fizeram por Macau em várias áreas, por exemplo. Ainda não temos uma ideia das suas intenções se querem, ou não, ser Chefe do Executivo. Se tivessem manifestado ideias concretas sobre o que querem para Macau, aí poderia comentar mas, para já, ainda não há nada para avaliar. Por outro lado, não sou especialista em ciências políticas. E gostaria de ver a continuidade de Alexis Tam? Ele é o meu chefe e tem prestado muito apoio. Inteligência Artificial é um exemplo de uma área em que o secretário apoia bastante e dá-nos sempre boas sugestões e ideias para problemas do dia-a-dia. Alexis Tam é um bom chefe. Como foram os seus primeiros dias como presidente do IPM? Que desafios e prioridades enfrentou nos primeiros momentos? É um trabalho muito excitante. Enquanto presidente do IPM consigo aperceber-me das novas oportunidades para o ensino superior em Macau, em especial com a entrada em vigor da lei do ensino superior. Esse enquadramento legal permitirá ao IPM fazer mais, por exemplo, em termos de ensino e investigação depois da licenciatura. Isso é muito importante para nós porque nos permite mais oportunidades académicas. Estamos muito entusiasmados com o que o futuro nos reserva. Em termos práticos, e à luz deste novo enquadramento legal, qual o caminho que considera que o IPM deve seguir? O próximo passo é desenvolver os estudos pós licenciatura, acho que é a nossa tarefa principal, especialmente em termos de estudos e investigação ligados ao ensino do português. Como sabe, temos programas de mestrado e doutoramento que atraem muitas pessoas com talentos nesta área. Portanto, podem trabalhar em conjunto com os professores e desenvolver conhecimento, investigação com resultados e promover o intercâmbio entre a China, Macau e os países de língua portuguesa. Por exemplo, se tivermos programas de doutoramento podemos atrair académicos de Portugal para se doutorarem em Macau. Se estas pessoas completarem os seus estudos e investigações e apresentarem as suas ideias aqui, por exemplo em conferências, podem difundir esse conhecimento pelo mundo. Mas pode dar algum exemplo de metas que gostaria de ver alcançadas? Sim, por exemplo, temos o Laboratório de Tradução Automática Chinês/Português/Inglês. Não estamos apenas a fazer investigação para dicionários ou dicionários electrónicos. Estamos a desenvolver um instrumento do campo da Inteligência Artificial que nos permite ir além da tradução palavra a palavra, até à tradução frase a frase. Parágrafo a parágrafo, livro a livro. A mais recente tecnologia de Inteligência Artificial representa um outro nível. Estamos também a falar de mecanismo de voz. Quando fala em português eu posso usar a ferramenta, através do telemóvel ou de um instrumento pequeno e traduzir em simultâneo para cantonense e mandarim. Quais são os principais desafios deste cargo? É uma tarefa desafiante, mas acho que não é só para mim, mas para o inteiro IPM. Pessoalmente, penso que o desafio será como implementar primeiro programas pós licenciatura com um standard reconhecido internacionalmente. O IPM está na linha da frente da acreditação académica em Macau. Fomos o primeiro instituto em Macau a passar a revisão institucional no final de 2013. A maioria dos nossos programas académicos já são reconhecidos. De um total de cerca de 20 cursos, 15 deles são reconhecidos. Este feito é representativo da posição de liderança do IPM em Macau, principalmente ao nível de licenciatura. Claro que temos algumas parcerias de programas de pós licenciatura com, por exemplo, a Universidade de Lisboa, Universidade de Londres e algumas universidades de topo na China. Estas instituições já são reconhecidas internacionalmente, o que é uma conquista importante. Mas queremos garantir o reconhecimento dos nossos programas pós licenciatura, por exemplo em língua portuguesa. Acho que esse é um desafio que temos de ultrapassar. Com o apoio forte da sociedade e do Governo, mais e mais alunos chegam ao IPM para estudar na área do português. Temos programas novos, introduzidos recentemente, que contaram com o apoio e aprovação do Dr. Alexis Tam. Portanto, cada vez mais estudantes se juntaram ao IPM. A questão é como poderemos tornar os nossos programas mais interessantes e como podemos fazer com que as suas vidas em Macau sejam felizes. Esses são os desafios do IPM. No passado tínhamos um número reduzido de estudantes oriundos de países de língua portuguesa. Hoje em dia temos cada vez mais vindos de Cabo Verde, Moçambique, Brasil e todos se juntam aqui. É como uma família grande.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteAniversário da RPC | Moisés Silva Fernandes, historiador: “Em Macau os maoístas saíram vencedores” Moisés Silva Fernandes, historiador do Instituto Confúcio da Universidade de Lisboa, lança no próximo ano um livro sobre o bispo de Macau D. Paulo José Tavares, o homem que evitou que o pensamento de Mao Zedong fosse ensinado nas escolas católicas do território. A dias de se celebrar os 69 anos da República Popular da China, o historiador fala do papel de Macau nos anos do Maoísmo Está a trabalhar no livro “D. Paulo José Tavares, Bispo de Macau, e a Revolução Cultural chinesa, 1966-1973: Uma vitória onde todos sucumbiram”. Como surgiu este projecto? Penso que em 2019 o livro deverá ser impresso. Quando investiguei a Grande Revolução Cultural Proletária (GRCP) detectei que toda a Administração portuguesa, começando pelo Governador de Macau, Nobre de Carvalho, e as entidades portuguesas e estrangeiras acreditadas perante a Administração portuguesa se tinham prostrado perante a elite político-comercial chinesa que estava alinhada com Pequim e Guangzhou. Falo de O Cheng-peng, da Companhia Comercial Nam Kwong; Ho Yin, presidente da Associação Comercial Chinesa de Macau e ligado a muitos negócios lícitos e ilícitos; Roque Choi, que foi tradutor-intérprete de Ho Yin; Chui Tak-kei, que foi vice-presidente da Associação Comercial Chinesa de Macau e que esteve ligado a vários empreendimentos lícitos e outros de natureza mais duvidosa. Todos eles foram os intermediários entre a China Continental e a Administração portuguesa de Macau. Porém, havia uma pessoa que conseguiu destacar-se pela sua atitude diferenciada, que foi D. Paulo José Tavares e a Igreja Católica. Em que sentido? D. Paulo José Tavares era um eclesiástico muito sensível à situação política, religiosa, económica e militar da China Continental, Macau, Hong Kong e da Formosa/Taiwan. Só obedecia ao Estado da Santa Sé, onde, aliás, tinha exercido os cargos de adido, secretário, auditor e conselheiro da nunciatura apostólica da secretaria de Estado do Vaticano. Era um bispo treinado nas questões diplomáticas e por isso foi eleito prelado de Macau. Terceiro, prestava muita atenção ao que os padres chineses e ocidentais diziam sobre a conjuntura em Macau, Hong Kong e na Formosa/Taiwan. Quarto, não assinou nada com a Associação Geral de Estudantes Chineses de Macau, que pretendia, a todo o custo, que a Igreja Católica fosse recrutar um corpo de docentes para ensinar o pensamento de Mao Zedong e as demais funções políticas no sistema de ensino católico. Quinto, o prelado e a Igreja tornaram-se nos actores mais críticos e contundentes da Administração portuguesa de Macau. Porque é que esta foi uma vitória “onde todos sucumbiram”, tal como se lê no título do livro? Todos os actores abandonaram as três comunidades, a chinesa, a portuguesa e a macaense, com a excepção do bispo e da sua Igreja Católica. Esteve em todas as sessões do concílio Vaticano II, abrindo uma nova fase da vida católica universal. Pela primeira vez, os padres chineses passaram a ganhar o mesmo que os sacerdotes portugueses, pondo fim a uma discriminação de vários séculos. Além disso, nomeou um vigário-geral e governador do bispado, o monsenhor António André Ngan Im-ieoc, nascido em Macau, criando muitas inimizades com o clero português, que era ultraconservador. Por outro lado, as missas, que eram rezadas em latim, passaram a ser realizadas em português, cantonense e inglês. Por essas razões se impôs uma investigação duradoura acerca deste sacerdote que esteve à frente da diocese de Macau entre 1961 e 1973. FOTO: Paulo Dias Qual o papel que Macau teve no período da Revolução Cultural, sobretudo no que diz respeito às figuras da comunidade chinesa que faziam a ponte com os portugueses? Os que faziam “a ponte com os portugueses” foram os monopolistas que tinham o ouro, o jogo e as corridas de galgos. O Y.C. Liang e Ho Yin controlavam o ouro e as corridas dos galgos. Durante a GRCP o ouro passou para o Roque Choi, que era o secretário particular do Ho Yin. O jogo de azar e fortuna era controlado por Henry Fok Ying Tung, que era o sócio maioritário, e Stanley Ho, que era administrador-delegado e sócio minoritário. Acima destes todos ficava O Cheng-peng, que foi durante a GRCP o intermediário entre as autoridades militares em Guangzhou e a Administração portuguesa de Macau, para além de ser o “governo sombra de Macau”, através da Companhia Comercial Nam Kwong e o primeiro secretário regional do Partido Comunista Chinês de Macau. Todos estes monopolistas foram intransigentes e rígidos com as comunidades portuguesa, macaenses e chinesas. Só há um que não é monopolista, Leong Pui, que era o presidente da Associação Geral de Operários de Macau, a central sindical comunista, e durante a GRCP tornou-se o presidente da “Comissão de Luta contra a Perseguição Portuguesa” conhecida por Comissão dos Treze e mais tarde por Comissão dos Dezanove. Como é que Mao Zedong encarava o papel de Macau e Hong Kong no contexto do desenvolvimento do país? Com o início da Grande Revolução Cultural Proletária pelo primeiro-ministro Zhou Enlai, em 16 de Maio de 1966, Mao Zedong queria manter o status quo em Macau e Hong Kong. Todavia, em Macau os maoístas saíram vencedores, enquanto em Hong Kong a polícia e o governador não cederam em absolutamente nada. O brigadeiro Nobre de Carvalho, governador da administração portuguesa de Macau, sofreu ao longo de 1966, 1967 e 1968 imensas injúrias das organizações maoístas, o que levou a República Popular da China, através de Kei Fung, vice-director da Agência Noticiosa Nova China de Hong Kong, a trazer consigo instruções bem específicas de Zhou Enlai, primeiro-ministro da China, em Agosto de 1968, a tecer as seguintes afirmações: “não deve haver oposição às receitas do Governo de Macau. As taxas, as contribuições, etc., devem continuar a ser pagas”. Caso discordassem destas, “podem e devem expor as suas razões. Mas devem sempre pagar”. Para reforçar este ponto recordou que “[em] Macau existe o sistema capitalista, como é óbvio, e é esta situação que se tem de aceitar”. Devemos olhar para o motim “1,2,3” como uma extensão da Revolução Cultural? Sim, sem dúvida. Em 1966 começou na China Continental a GRCP entre os maoístas e os contra-revolucionários, nomeadamente Liu Shaoqi e o Deng Xiaoping. Rapidamente veio para Macau. Assim o “1-2-3” (três de Dezembro), e não o 1,2,3, que é uma deturpação, foi muito mais que um motim; foi a prostração da Administração portuguesa de Macau, que nunca mais se ergueu, apesar de se ter mantido até 19 Dezembro de 1999. Quem mandava, efectivamente, em Macau era o “governo sombra de Macau”, isto é, a Companhia Comercial Nam Kwong. Em segundo lugar, no dia 4 de Dezembro de 1966, que se chamou “12,4” (4 de Dezembro), houve um confronto geral entre comunistas e nacionalistas do qual saiu totalmente derrotada a comunidade chinesa nacionalista. Assim, a Administração portuguesa teve que entregar os sete nacionalistas presos em Macau à Guarda Fronteiriça do Exército Popular de Libertação, isto é, às Forças Armadas Chinesas, junto à fronteira das Portas do Cerco, à 1 hora da manhã do dia 20 de Dezembro de 1966; e as associações nacionalistas e de refugiados da China Continental foram encerradas e os dirigentes nacionalistas tiveram de ir para a Formosa/Taiwan, no dia 27 e 28 de Janeiro de 1967. No dia seguinte, dia 29, foram assinadas pelo governador da Administração portuguesa, brigadeiro Nobre de Carvalho, duas minutas: uma com a Repartição dos Assuntos Exteriores de Guangdong e outra com a elite político-comercial chinesa afecta a Pequim. Podemos falar de Macau como um lugar de fuga de cidadãos da China com diferentes períodos históricos (guerra civil e revolução cultural), e também de diferentes classes sociais, por comparação a Hong Kong? Sim, corroboro esta realidade. Enquanto Hong Kong tinha uma superfície de 2,600 Km2, Macau tinha 15.5 Km2. Em termos demográficos, Hong Kong tinha mais de 3,7 milhões de seres humanos, enquanto em Macau 300 mil pessoas, entre 1966-1967. Em Hong Kong tínhamos uma economia laissez-faire, onde basicamente o mercado era livre, enquanto em Macau tínhamos uma economia centralizada, através dos monopólios do ouro, jogo e corridas de galgos, e marcadamente fechada. As famílias que tinham posses em Xangai transportaram, literalmente, as fábricas que possuíam para Hong Kong, enquanto em Macau não se deu nada disto. Isto levou a que a GRCP em Hong Kong fosse fortemente reprimida pela polícia e que nunca se colocasse a hipótese das forças armadas britânicas entrarem no conflito, enquanto que em Macau foram humilhados pelos maoístas, tanto a polícia, como as forças armadas portuguesas. Considera que a Administração portuguesa lidou da melhor forma com os ilegais oriundos da China, ou trataram do processo de legalização tarde de mais? Convém distinguir entre dois processos diferentes. Os refugiados chineses entre 1949 e 1967 tiveram muito apoio da Igreja católica de Macau, nomeadamente da Casa Ricci e do seu padre espanhol Luís Ruiz, de muitas agências católicas internacionais, e, indirectamente, através da Administração portuguesa do território. A GRCP parou porque o acordo estabelecido entre a Administração portuguesa, que foi assinado pelo governador de Macau, brigadeiro Nobre de Carvalho, e a Repartição do Assuntos Exteriores da província de Guangdong, assim o previa. A partir de 1978, começaram a vir muitos refugiados da China Continental, apesar de constituir uma infracção ao acordo que Macau tinha assinado com a Repartição dos Assuntos Exteriores de Guangdong. A maioria das pessoas ia para Hong Kong, os menos hábeis ficavam por Macau. Entretanto, houve uma série de processos de legalizações dos refugiados da China Continental durante a Administração portuguesa. Mas temos de ter sempre em atenção que isto dependia totalmente das directrizes da China Continental e muito pouco de Macau. Estes cidadãos em fuga acabaram por definir a sociedade de Macau tal como ela é hoje, e explicam, inclusivamente, a fraca participação das pessoas no sistema político local? Isso é natural. Nunca se estudaram e investigaram em termos de ciências sociais os graves constrangimentos que se fizeram repercutir muitos anos mais tarde em Macau. Seja no tempo da administração portuguesa de Macau, seja no período chinês.
Sofia Margarida Mota EntrevistaCarlos Botão Alves, autor do primeiro dicionário de chinês-português: “Ninguém se lança numa coisa destas” No princípio era o verbo e depois o dicionário. O desafio era enorme, mas passada uma década de trabalho ficou pronto o primeiro dicionário de chinês – português, de autoria dos professores Carlos Botão Alves e Leong Cheok I. Além da tarefa hercúlea que une dois mundos linguísticos bem distintos, o professor tem na calha um projecto de tradução de contos de autores chineses obscuros [dropcap]C[/dropcap]omo surgiu a ideia para fazer este dicionário? Comecemos pelo princípio, porque eu gosto de estórias bem contadas. Em 1985, quando cheguei a Macau, comecei a trabalhar com vários professores chineses que ensinavam português e uma das professoras estava a acabar o seu mestrado em português, a professora Leong Cheok I. Ela enveredou pelo doutoramento em linguística portuguesa, fê-lo com o Professor Malaca Casteleiro sobre valência verbal, que abre a hipótese de se fazer, sobretudo nas línguas latinas, uma análise gramatical baseando o ponto fulcral no verbo. Essa professora contactou-me depois do doutoramento, tínhamos um grande arquivo de erros e dificuldades que os alunos iam tendo. Trabalhámos nesse sentido na Universidade de Macau e da recolha, reflexão e discussão de todos os materiais que tínhamos dos alunos, percebemos que havia uma grande dificuldade para os alunos do intermédio, intermédio avançado de domínio dos enunciados em que há mais do que uma oração, a frase complexa. Comparámos também com alunos de língua nativa inglesa e eles apresentavam e, obviamente que havia uma vizinhança maior do que com o chinês. Então, decidimos lançar um projecto de construção de um dicionário. Nunca tinha pensado fazer um dicionário, nunca ninguém se lança numa coisa destas. Mas com a orientação à distância do Professor Malaca, lançámos um projecto e apercebemo-nos que precisávamos de redução de horário, é preciso uma certa liberdade porque às vezes uma frase destas leva-nos horas a discutir para percebermos o que é que está ali. Tem de haver uma determinada paz mental, espaço mental para fazer isto. Começámos e o que poderia ter demorado um ou dois anos demorou dez. Foi editado em 2016, ela defendeu a tese no final de 2006, 2007 lançámos o projecto e demorou 10 anos. Como pensaram organizar o dicionário? Tem 2040 entradas. Vale a pena dizer que para fazer um dicionário, normalmente, as pessoas baseiam-se em dicionários existentes. O nosso problema era esse. Não há nenhum dicionário de verbos em português cruzando com o chinês, a única língua que cruza com o chinês é o inglês. Obviamente, pela força do mercado, qualquer dicionário cruzando com o inglês é um sucesso editorial e a editora investe imenso e põe os investigadores a trabalhar. Não é o caso das outras línguas, não há mais nenhuma, nem mesmo com o francês. Este é o segundo que partindo do chinês, cruza com o chinês. Isto é para alunos, investigadores ou tradutores de chinês que chegam ao português. O português – chinês será feito a seu tempo. Optámos pelos caracteres tradicionais. Foi uma opção nossa porque a edição é feita em Macau. Aparece pela ordem fonética da leitura dos caracteres em mandarim, aparece em pinyin ao lado, para fazer com que os alunos de língua materna cantonense possam aceder tem também o sistema de romanização em cantonense. Depois do verbo em caracteres, aparecem os vários sentidos que o verbo pode ter em português. Para cada um destes sentidos, que estão numerados, dão-se frases modelos, foram estas que demoraram 10 anos a fazer, para encontrar o paralelo entre o que está em chinês e o que está em português. Nunca a frase pode deixar de ser uma frase natural numa das línguas, mas aqui não nos interessa estar a ensinar vocabulário. O que vai ter a segunda edição? A parte da organização está lançada. Agora é necessário continuar a alimentar o bicho. Vai ter mais 203 verbos, que estão a ser tratados. Temos para aí 70 tratados, com as frases modelo, etc. Não encontrámos nenhum erro até agora, mas outros sentidos para os que foram dados. Os meus ex-alunos, os tradutores aí todos, do Tribunal Superior, do Tribunal de Base, na Assembleia Legislativa, no Gabinete do Chefe do Executivo, de juristas, dois juízes, polícia, serviços de turismo, serviços de educação, temos gente de todo o lado que está a traduzir e oferecemos o dicionário. Leve, use e dê-nos o feedback, queríamos testar a coisa. Foi por isso que deixámos que em 2016 fosse editado o dicionário, o período de testagem, porque não estavam criados condições aqui na escola para se editar um dicionário. Com a antiga direcção não era possível trabalhar muito. Agora, com a nova directora da Escola de Línguas, acho que estão criadas condições, tivemos o feedback desses todos, temos uma série de críticas muito interessantes para reformular alguns dos verbos que aqui estão incluídos. Tentámos pensar todas as possibilidades de sentido na utilização de um verbo mas, obviamente não acautelámos todas. Há sempre uma outra forma de utilizar a língua que nós não estávamos, à partida, a considerar e, portanto, é necessário completar. Esse feedback dos tradutores é precioso. O que está vai ficar mais afinado e vai-se completar. FOTO: Sofia Mota Este instrumento dá muito jeito a muitos países, como é óbvio todos os de língua portuguesa e aos estudantes de português da China continental e de Taiwan… A edição foi feita aqui no Instituto Politécnico e há um problema grande nestas edições feitas em Macau que é não atravessar a fronteira. É muito difícil fazer com que uma edição feita fora da China entre dentro da China. Aos alunos que estão a estudar português, ou que estão a estudar chinês em Portugal ou no Brasil, a seu tempo vamos exportar para Cabo Verde e Moçambique para ver como é que aceite nesses países. Mas o dicionário caminha, sobretudo, do chinês para o português, foi mais pensado para os alunos de língua materna chinesa que acedem ao português. Os alunos de língua materna portuguesa só quando tiverem um domínio bastante razoável do chinês é que poderão entrar no dicionário pelo chinês. Quando for feito o irmão gémeo, do português – chinês, aí já é para os dois caminhos. Não pensa no irmão gémeo para o carácter simplificado? Pensámos numa solução e acho que é o que vai acontecer quando sair este dicionário em CD-ROM há um programa que altera automaticamente, com alguma banda de erro, os caracteres para simplificado. Queremos que a próxima edição seja também em CD-ROM, para além do livro, e que chegue a todos os sítios onde é ensinado o português a chineses. Mas para isso precisamos de uma logística grande. O material está todo feito, só precisamos de duas ou três pessoas com grande paciência. No dia 9 e 10 de Novembro vou a uma conferência que faz ponte entre China e países de língua portuguesa, qualquer coisa assim, que este ano acontece em Pequim. Para o livro poder atravessar a fronteira, vou fazer a apresentação para mostrar-lhes as vantagens de um material destes e, sobretudo, conseguir contactos institucionais para que se possa fazer o correspondente. Se isto for feito em rede, com um conjunto enorme de pessoas, seria ouro sobre azul e a edição poderia ser feita entre Lisboa, Macau, Pequim e Rio de Janeiro. Colocávamos as pessoas a trabalhar em conjunto, sei que elas estão mais que abertas a isso. Já passaram aqui dois grupos de alunos que vieram da China no segundo semestre do ano passado, ofereci-lhes o dicionário e eles acharam interessante e perceberam a muralha, o controlo editorial que existe no país, mas penso que será uma maneira airosa e correcta de entrar no mercado. A lei do ensino superior acabou de sair em Macau, o IPM vai abrir cursos de mestrado e doutoramento. A direcção nova da Escola de Línguas é bilingue percebe o que é ensinar e aprender, o que não acontecia antes. Penso que estão criadas, finalmente, condições para lançar materiais que possam despoletar trabalhos de investigação no campo da linguística, e da linguística aplicada, que não existem e são muito necessários. Quando sai a segunda edição? Estamos a pensar mais um ano, ou um ano e meio. Entretanto, a Professora Leong Cheok I está sempre entre Lisboa e Macau e eu tenho outro projecto de tradução de contos contemporâneos chineses desde 1978, desde o lançamento da política de abertura de Deng Xiaoping, até 2008 que foram os Jogos de Pequim. Portanto, 40 anos. Para cobrir este período, há um conjunto enorme de escritores chineses que editaram determinados contos que manifestam não só a imagética do momento, a parte ficcional do momento, como as mensagens que são lançadas para percebermos a evolução da mentalidade de uma juventude que passou esta mudança ao longo da história. São 99 contos que cobrem 40 anos. As traduções estão feitas. O primeiro livro deve sair durante este semestre. São interessantíssimos, escritos por pessoas sem o treino nem intenção de ser editados. Têm uma enormíssima franqueza. Onde foi buscar estes autores? Em Xangai, uma edição pequena, muitos deles editados em jornais. Passou tudo muito despercebido. Interessantíssimo em termos de história da crítica literária, porque não são os escritores do partido, não são do sistema, não são os escritores sequer do mercado. São escritores espontâneos. Três destes escritores voltaram a editar qualquer coisa, muitos deles apareceram localmente, a nível de cidade ou provincial, em concursos de escrita e ganhavam uns premiozinhos. Mas é interessante, porque a mensagem importante não está à luz. Como é que num sítio onde não se pode dizer se diz? É nesse momento que se diz muito mais. Veja-se o que aconteceu nos antigos países da Europa de Leste, as edições eram brilhantes antes da queda do muro. Prometeu muito e afinal os Kunderas, etc, vieram para o Ocidente, produziram imensamente e brilhantemente e agora onde estão? Se calhar, o muro tem as suas potencialidades. Como o antes e o depois da censura em Lisboa. Prometiam uma coisa que depois acabou por não dar. Em Macau não há nativos de língua portuguesa a fazer traduções, nem há nativos de língua portuguesa de Macau a ensinar quando todo o aparelho do Governo assenta, sobretudo, nesses nativos macaenses. Desapareceram como se não existissem. Tudo funciona por causa deles, a língua está aqui por causa deles. Nós não estamos aqui porque houve chineses que aprenderam português. Estamos aqui porque há uma comunidade pequenina, porque a cidade também não é muito grande, que garantiu a permanência da língua. Onde estão os professores dessa comunidade? Foram eles que fizeram avançar a administração durante largas décadas, séculos. A professora Leong é de uma família chinesa de Macau, apercebe imenso do imaginário português. É uma senhora que celebra o Natal, percebe o que é um folar, percebe coisas culturais de natureza diversa porque é de Macau e muito atenta. Aprendeu a língua. Uma pessoa qualquer que aprendeu a língua em Pequim, ou Xangai, não vai sequer aperceber-se das importâncias e do imaginário que rodeia a parte cultural da língua portuguesa.
Sofia Margarida Mota Entrevista EventosEntrevista | Carlos Braz Lopes, criador de “O Melhor Bolo de Chocolate do Mundo” Tudo começou por ser uma brincadeira. Mas quis o destino que uma tentativa gorada para reproduzir outra iguaria se transformasse em “O Melhor Bolo de Chocolate do Mundo”. O seu criador, Carlos Braz Lopes, está em Macau para dar a provar este bolo, hoje, no Clube Militar às 18h30 [dropcap style≠‘circle’]C[/dropcap]omo apareceu o “Melhor Bolo de Chocolate do Mundo”? Tive um restaurante em Lisboa de cozinha tradicional portuguesa. Estávamos no ano de 1987, quando o panorama era muito diferente do que é hoje em dia. Nessa altura, resolvi fazer uma viagem entre Londres e Paris para ver o que por ali se andava a fazer com a intenção de vir a introduzir alguma coisa na oferta desse restaurante. Quando resolvemos escolher as sobremesas, além do tradicional leite creme, tínhamos de ter, como acontecia em todos os restaurantes, uma sobremesa de chocolate. Lembrei-me que tinha comido uma coisa em Paris que me chamou a atenção pela textura: era um bolo de chocolate com merengue e mousse. Aliás, basicamente, é esta conjugação que fazia a diferença deste bolo para os outros. Achei que era interessante. Não tenho formação em pastelaria mas sempre fui curioso, desde os tempos da faculdade onde estudei gestão. Mas como sou um bocadinho pretensioso, achei que chegava a Lisboa e ia conseguir fazer aquele bolo. É evidente que nunca consegui fazer igual. Masdei a provar a vários amigos o que fiz e eles acharam que estava bom. Acabei por fazer o bolo para servir no restaurante. Na altura, só se chamava bolo de chocolate. Como se transformou no melhor do mundo? As pessoas começaram a perguntar por esta sobremesa e a pedir para guardar uma fatia caso estivesse disponível. O bolo começou a ser um sucesso porque era realmente diferente. Mais tarde, abri uma loja que se chamava “Cozinhomania” onde se vendiam utensílios e se faziam cursos de cozinha. Como já tinha uma cozinha lá instalada, comecei a fazer o bolo. As pessoas entravam na loja e perguntavam porque é que cheirava a chocolate. Eu respondia que estava a fazer um bolo. As pessoas perguntavam se o bolo era bom e eu respondia que era o melhor do mundo. Foi assim que apareceu o melhor bolo de chocolate do mundo, que, no fundo, era apenas uma brincadeira. As encomendas começaram a surgir e a aumentar e pensei que tinha ali um negócio “sem saber ler nem escrever”. Na altura, já tinha uma pequena equipa para me ajudar a confeccionar, mas não era ainda o meu negócio permanente. FOTO: Sofia Mota Como justifica o sucesso? Há aqui vários factores. As pessoas que queriam fazer encomendas tinham de telefonar 48h antes para garantir o bolo. Não era um serviço fácil mesmo para o cliente. Acabei criar uma imagem à volta do bolo que dava a sensação de que era uma coisa difícil de conseguir e de que era um produto feito, personalizadamente, para aquele dia e para aquele cliente, o que acabou por lhe dar uma certa mitologia. O negócio nasceu completamente impensado mas depois acabou por funcionar a meu favor, desde o nome ao processo de aquisição. Mais tarde, verifiquei que o nome foi aquilo que me dizem ser “um golpe de marketing extraordinário”. Qualquer loja do mundo que abra com este nome chama sempre alguém a entrar, por estar irritado com o nome, por achar graça ou para testar. Já lá vão 16 anos desde que abri oficialmente “O melhor Bolo de Chocolate do Mundo”. Tive sorte. Tenho a sorte de ter visto negócios que me despertaram a atenção e que na altura não existiam em Portugal. Às vezes, acho que as pessoas saem do país à procura de novas oportunidades de negócio e quando regressam acabam por fazer coisas que já existem. Isto não quer dizer que não tenham sucesso, mas a luta é mais difícil. No meu caso, apareci como pioneiro na loja de produtos e cursos de cozinha. Tanto este negócio como “O Melhor Bolo de Chocolate do Mundo”, por serem novidade, fizeram com que depois a cobertura dos media também mostrasse interesse por eles, o que ajudou muito. Actualmente, é um produto espalhado por todo o mundo. Sim, já estamos no Brasil, em Espanha, na Austrália, em Angola e, talvez, estejamos no Kuwait em breve. Podemos dizer que o gosto pelo chocolate é universal? Sim, o gosto por chocolate é universal. Por exemplo, a Ásia já conhece há muito tempo a pastelaria que se faz na Europa. Aqui não se usa tanto açúcar, mas mesmo assim, num período de Natal em que vendi pontualmente para o Japão, este bolo foi um sucesso. Quem vive na Ásia também já viaja muito mais e começa a provar sabores que não se conheciam tanto. Um exemplo disso é que grande parte dos países asiáticos já têm pastelarias francesas.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteNewman Lam, académico : “Há interesse em dizer que Macau é problemático” A reforma ditou a saída de Newman Lam da Universidade de Macau, onde liderou o departamento de administração pública e governamental. O professor afirma que há “pessoas poderosas” em Macau a dar informações erradas ao Governo Central, através do Gabinete de Ligação, apontando semelhanças com Hong Kong para justificar a necessidade de maior controlo. Interesses pessoais podem estar por detrás destas manobras [dropcap]E[/dropcap]stá de saída da Universidade de Macau. Que balanço faz do seu trabalho nesta instituição, tendo em conta a questão da liberdade académica? Houve alguns desenvolvimentos? Quando comecei a trabalhar na UM todos tínhamos uma liberdade académica absoluta. Ninguém nos questionava no caso de convites feitos a oradores, ninguém se preocupava sobre o conteúdo político das apresentações feitas por esses oradores. Do ponto de vista académico, isso era completamente irrelevante, eram convidadas pessoas para falar das suas investigações, e não havia a preocupação relativamente à sua ligação a partidos políticos, por exemplo. Mas, nos últimos anos, temos notado alguma sensibilidade relativamente à situação política na China. Não querendo mencionar nomes, e deixando aqui claro que tal nunca se passou comigo, mas passou-se com colegas meus, no caso de haver convites feitos a pessoas de Hong Kong ou Taiwan cujas ideias ou ligações políticas não sejam consistentes com a situação política na China, podem ocorrer alguns problemas. Que tipo de problemas? A proposta de convite a essas pessoas pode ser recusada ou pode ser sujeita a escrutínio. Eu estou a reformar-me, não aconteceu comigo, mas sei que propostas feitas para conferências foram simplesmente recusadas ou analisadas previamente. Ou então foram feitas várias questões previamente sobre os convidados cujas ideias políticas não estivessem de acordo com as actuais políticas da China. Contudo, gostaria de manter a confidencialidade dos nomes dos meus colegas a quem isso aconteceu. Zhidong Hao, professor do departamento de ciência política, também já reformado, chegou a afirmar publicamente que os docentes da UM são questionados quando fazem viagens de trabalho a Taiwan, por exemplo. Confirmo isso. Há dez ou 15 anos, estabeleci alguns contactos com colegas de Taiwan. Antes era muito fácil convidar académicos de fora para fazer aqui uma palestra, bastava apresentar a proposta e normalmente o financiamento era fácil de obter, e também não tínhamos problemas se fossemos dar conferências a Taiwan. Mas agora, pelo que sei, o convidado é analisado previamente e se queremos ir a Taiwan por motivos académicos é-nos questionado com que pessoas nos vamos encontrar e as razões para isso acontecer. FOTO: Sofia Mota Os estudantes têm receios de fazer investigações sobre assuntos políticos? Penso que os alunos não estão sequer conscientes de que estas coisas acontecem. Em termos gerais, os estudantes preparam os seus exames e trabalhos, e a grande maioria não tem consciência dos desenvolvimentos ou dos temas mais sensíveis que têm sido debatidos nos últimos tempos. À excepção dos que, claro, estão a desenvolver investigações. Mas, para dizer a verdade, a grande maioria dos nossos alunos não está interessada em assuntos políticos. Acredito que se Donald Trump disser, ou fizer, algum disparate muitos não vão sequer saber quem é o Donald Trump (risos). No meu departamento alguns alunos estão interessados na política, mas não posso dizer que são a maioria. Nos outros departamentos, a política é um assunto em que não estão minimamente interessados. Faz falta mais investigação sobre a política de Macau? Honestamente, acho que os alunos deveriam ser mais interessados em questões políticas, especialmente na política local. Penso que a política actual é muito relevante para eles. Se olharmos para a Administração de Donald Trump, a guerra comercial com a China, o que se passa na Coreia do Norte, estes assuntos estão a acontecer fora de Macau e, eventualmente, poderão trazer impacto às suas vidas, porque quase tudo o que acontece na política tem implicações económicas. Falando da política local. Recentemente, uma palestra proferida por Andy Chan, líder de um partido pró-independência, gerou polémica na região vizinha. Macau está a sofrer consequências da situação política em Hong Kong? A situação política de Hong Kong sempre teve consequências em Macau, apesar de achar que Macau não tem os problemas da região vizinha. A RAEHK fala de independência, duvido que esse tópico tenha alguma vez ganho notoriedade em Macau. As pessoas em Macau não têm essa aspiração, incluindo os jovens. Mas o problema é que aquilo que aconteceu em Hong Kong fez o Governo Central ficar nervoso sobre a possibilidade de acontecer em Macau. Houve um maior controlo em Hong Kong, e depois pensou-se “porque não controlar mais a situação em Macau também?”. Então houve algumas implicações. Mas, como disse, Macau nunca teve um movimento pró-independência. Como explica isso? Se voltarmos a 1997, muitas pessoas receberam a transição de braços abertos, mas houve também bastante apreensão quanto ao futuro, sobretudo no que diz respeito à eleição do Chefe do Executivo e à garantia de liberdades e direitos. Mas em Macau a transição de soberania fez-se de forma bastante suave, e, de um modo geral, as pessoas não ofereceram qualquer resistência. O Governo britânico ajudou a aumentar a consciência das pessoas no que diz respeito a uma maior democratização e à necessidade do sufrágio universal, por exemplo. Isso terá levado a que em Hong Kong, depois da transição, as pessoas sempre tenham tido essa preocupação. Há dez anos atrás, ninguém em Hong Kong falava de independência, e até se pensava que seria uma loucura. Mas hoje é um tema na ordem do dia. E foram inclusivamente criados partidos políticos. Sim. Se a China ou algumas individualidades na China invocarem a ideia de que as pessoas de Hong Kong querem, de facto, a independência, o controlo aperta-se ainda mais, e quando isso acontece, sabemos que gera mais descontentamento. Temos também o problema do sufrágio universal, e as pessoas de Hong Kong acreditam que esta foi uma promessa feita por Deng Xiaoping, que querem agora ver cumprida. Todas estas coisas causam tensões e conflitos e isto acaba por se tornar numa espécie de profecia. Esse é o problema em Hong Kong. Temos de questionar quem criou tudo isto. No caso do movimento pró-democrata em Macau, deu-se o caso Sulu Sou. Que comentário faz à atitude dos deputados da Assembleia Legislativa? Este é um assunto complicado. Há o lado do campo político mais tradicional que fez a vida difícil a Sulu Sou, e depois houve o campo pró-democrata, com os jovens. Mas há também um outro grupo de pessoas, de deputados, que não apoiam Sulu Sou, não defendem a sua causa política porque simplesmente acham que não é algo que ele deva fazer. As propostas de lei que Wong Sio Chak quer apresentar são consequências da situação em Hong Kong? Wong Sio Chak quer mostrar ao Governo Central que Macau está a fazer as coisas bem? O problema é que há pessoas poderosas em Macau que dizem coisas a pessoas poderosas de Pequim. Algumas pessoas dizem a verdade, e acredito que esses dizem que Macau é um lugar pacífico, com uma sociedade patriótica. Mas, infelizmente, há outras pessoas que dizem a Pequim que o controlo deveria ser reforçado, e que Macau vai ficar igual a Hong Kong. Há algumas pessoas, e não quero mencionar nomes, que têm interesse em dizer que Macau é um lugar problemático, ou com potencialidade para ser igual a Hong Kong. Estas pessoas têm um poder concedido por Pequim. Falamos de pessoas ligadas às famílias tradicionais de Macau, deputados, membros do Governo? Não, penso que as famílias tradicionais não querem ter quaisquer problemas em Macau. Não quero mencionar nomes, e não me refiro necessariamente a membros do Governo. Há pessoas que esperam obter algumas vantagens do Governo Central, como recursos ou poder, ao dizerem que Macau é um lugar problemático que precisa de um reforço do controlo. É como dizerem que, se houver algum problema, eles vão resolvê-lo e garantir que nada acontece. São estas pessoas que estão a causar danos a Macau. Estou a referir-me a pessoas poderosas e não quero mencionar nomes. Estas pessoas não estão a dar ao Governo Central a informação correcta e se Pequim der ouvidos a estas pessoas, e se lhes conceder autoridade e poder, vão usar isso para os seus interesses pessoais. Essa é a parte assustadora. O Governo Central tem a sua representação em Macau através do Gabinete de Ligação. Estão em causa falhas na comunicação entre a RAEM e Pequim? Acho que se mantém boas relações com o Governo Central ao nível do Governo e famílias tradicionais, e eles mantém uma boa relação de trabalho. O problema é que há diferentes pessoas a dizer coisas diferentes. É uma questão de vermos em quem eles acreditam e que informação têm em conta. As novas medidas defendidas por Wong Sio Chak representam um maior controlo sobre aquilo que as pessoas dizem e escrevem nas redes sociais? Tanto em Macau como em Hong Kong estamos a caminhar para uma situação de maior controlo. Já percebemos isso. Mas duvido que avancemos para esse controlo assim tão rapidamente. Primeiro, porque não somos como Hong Kong e não temos o mesmo tipo de problemas. Pequim vê maior urgência em controlar Hong Kong, mas duvido que façam o mesmo aqui. Há muito tempo, no que diz respeito às questões políticas relacionadas com o Governo Central, que o Executivo local espera sempre para ver o que acontece em Hong Kong antes de agir. E vão continuar com esse tipo de abordagem. O Governo de Macau pode dizer muitas coisas, mas o que faz verdadeiramente, é outra história (risos). O ano passado houve eleições legislativas. Sulu Sou e Agnes Lam foram eleitos. Um ano depois, considera que houve grandes mudanças? Em primeiro lugar, Macau não é um lugar onde acontecem grandes mudanças. Esqueçamos essa possibilidade. Mas se me perguntar se se registou o início de uma mudança, então concordo. Houve novas pessoas eleitas e se, olharmos para a situação política actual de Macau, e os chamados radicais de há dez anos já não o são. Diria que o mais interessante de tudo isso é Agnes Lam. Todos questionam se pertence ao campo tradicional ou ao campo pró-democrata, e o quadro tem sido pintado assim. Mas penso que Agnes Lam está no meio e, tendo em conta os seus antecedentes, ela é patriota. Pensa que ela é mais patriota do que pró-democrata? É mais patriota. Mas, por outro lado, se olharmos para as suas interpelações e intervenções, é também consistente com os pró-democratas. Ela é uma das nossas docentes e diria que está a apresentar uma terceira opção, que não está intimamente ligada à China ou ao Governo local, mas que se preocupa com as necessidades das pessoas. O seu programa político defendia a implementação do sufrágio universal. Gostaria de ver um crescimento destes deputados que estão no meio, isso seria saudável para Macau. Representam uma voz para Macau e para o continente, e não representam apenas um lado ou outro. Sulu Sou deixou para trás a linha de Ng Kuok Cheong e Au Kam San. Mas Agnes Lam representa algo novo. Chui Sai On vai deixar de ser Chefe do Executivo no próximo ano. Que balanço faz destes últimos quatro anos de mandato? Esta questão é difícil de responder, porque acho que o nosso Chefe do Executivo assumiu uma postura passiva. Ele não fez nada drástico, seguiu as mesmas políticas e garantiu que as pessoas de Macau recebem dinheiro todos os anos e permanecem contentes. Essa abordagem funcionou até ao ano passado, até acontecer o tufão Hato. Mas o seu mandato está a chegar ao fim e, nos últimos quatro anos, não fez propriamente coisas erradas, mas também não atingiu grandes objectivos. Quanto a quem o vai substituir, e tendo em conta as preferências de Pequim, penso que ainda não foi feita qualquer escolha e apenas existe especulação popular. Fala-se das possibilidades de Ho Iat Seng ou Lionel Leong. Se Pequim quiser alguém com fortes ligações às famílias tradicionais e extremamente leal a Pequim, então Ho Iat Seng seria a escolha óbvia. Lionel Leong é considerado um nome forte e penso que é o mais indicado. E Wong Sio Chak? Penso que não tem perfil para ser tido em conta, pelo menos para já. Penso que não fez o suficiente, se compararmos com Lionel Leong. Foi apontado como secretário para a Segurança [em 2014] e penso que para fazer Pequim ter confiança num candidato são necessários mais anos, tem de ser alguém com relações mais duradouras nessa área. Lionel Leong está ligado aos negócios e tem relações com Pequim há mais tempo. Penso que Wong Sio Chak não tem antecedentes políticos suficientes para ser considerado como candidato. A China lançou o projecto da Grande Baía. A integração pode acontecer, na prática, antes de 2049? Não vai acontecer nos próximos anos, mas talvez aconteça antes de 2049. Se acontecer antes desse ano já nada precisa de ser feito, Macau pode até desaparecer e tornar-se numa região económica especial, por exemplo. A ponte já estará em funcionamento e penso que a área económica e empresarial vai desenvolver-se primeiro e aí veremos um desenvolvimento mais rápido nos próximos seis a dez anos. A integração política virá depois.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteTracy Choi, produtora e realizadora de cinema: “Queremos fazer algo mais comercial” Por estes dias, o segundo grande projecto cinematográfico de Tracy Choi, depois de “Sisterhood”, está a ser filmado numa velha fábrica vazia na Areia Preta. “Ina” é o novo filme da realizadora que agora desempenha o papel de produtora, em parceria com António Faria. No premiado “Sisterhood”, Tracy Choi abordou a questão da homossexualidade. Neste filme o olhar incide sobre o tráfico humano [dropcap]C[/dropcap]Como surgiu a possibilidade de trabalhar com António Faria? Este projecto começou, na verdade, há cinco anos atrás. O “Ina” foi, inicialmente, uma curta-metragem que apresentamos no “Macau Stories 3”, que reúne várias curtas-metragens com histórias sobre Macau. Com este filme queremos fazer algo na área do suspense, mas sobretudo queremos fazer algo mais comercial. Participámos na primeira e segunda edição do “Macau Stories” e, nessa altura, queríamos fazer um filme mais comercial e mais próximo do público, para que fosse mais fácil captar a sua atenção. No “Macau Stories 3” foi a primeira vez que trabalhei com o António Caetano de Faria e durante estes cinco anos trabalhámos juntos muitas vezes. Colaborei com ele na realização de um documentário e ele também me ajudou em vários projectos. Fazer o “Ina” é uma boa oportunidade para nós. Outro realizador que colabora connosco enviou o “Ina” em formato de curta-metragem para várias pessoas da área do cinema, um dos distribuidores americanos viu o trailer, adorou e disse que iria fazer com que o “Ina” fosse distribuído a nível internacional. O único problema que colocou é que não poderia colocar no mercado uma curta-metragem, tinha de ser em formato filme. Então, começámos a pensar se seria possível, depois de cinco anos, voltar à película e se teríamos dinheiro para fazer o projecto. O filme tem 90 minutos, procuramos investidores. E conseguiram fundos do Governo de Macau? Sim, pedimos apoio ao Fundo das Indústrias Culturais. Este é o segundo projecto cinematográfico desde o “Sisterhood”. Sim. Tenho alguns projectos pessoais em andamento, mas na verdade este é o segundo grande projecto cinematográfico em que estou envolvida. E é também a primeira vez que desempenho funções de produtora, antes trabalhei sempre como realizadora. Estou a aprender novas coisas e a pensar o quão complicado é produzir (risos). É um trabalho bastante diferente, e quando estou a realizar penso que tudo tem de estar perfeito no filme, mas depois, como produtora, penso no dinheiro que temos e na forma como temos de cortar aqui e ali. FOTO: Sofia Mota Mesmo com os subsídios do Governo, continua a ser difícil fazer cinema em Macau? Sim, totalmente. Além do facto dos apoios financeiros não serem suficientes, é difícil encontrar pessoas ou entidades que queiram investir na produção de um filme em Macau. Não há muitas pessoas interessadas em fazer isso, porque constitui sempre um risco muito elevado e claro que o retorno será sempre pouco. Não podemos ver, de facto, que haja lucros. É difícil ter lucros quando não temos uma grande estrela a trabalhar connosco, por exemplo. É a primeira vez que estamos a tentar captar investimento numa produção verdadeiramente local, porque no caso de produções em Hong Kong ou China os investidores têm uma maior confiança ao nível de obtenção de lucros. Falou-me da aposta no suspense. Que tipo de história podemos esperar em “Ina”? A história começa com a Ina, a personagem principal, na adolescência, um pouco confusa, porque está a crescer e tem problemas relacionados com drogas. Estamos agora a filmar a segunda parte, que se foca mais na forma como Ina cresce enquanto mulher. O seu pai morre e abordamos temas como as seitas e o tráfico de mulheres. Então, ela tem de decidir que pessoa quer ser. São temas sensíveis em Macau. Procura, com este filme, criar um debate em torno destas questões? Sim, a questão do tráfico humano é um pouco sensível, mas pensamos que vale a pena falar sobre o assunto e abordá-lo, porque podemos não ter conhecimento sobre a verdadeira situação do tráfico humano em Macau, mas há ainda muitas coisas a acontecer. Além disso, estamos mesmo a apostar numa película mais comercial para que possa ser vendida no mercado internacional, para chegarmos a um público maior. É por isso que é importante pegar em temas que geram preocupação para que possamos discuti-los. Com “Sisterhood” abordou vários elementos da cultura local. Com o “Ina” também têm esse objectivo, de mostrar a cultura de Macau e as suas pessoas? Como queremos fazer um projecto mais comercial, talvez a parte cultural não esteja muito presente na história, ainda que tenhamos filmado 90 por cento das cenas em Macau e feito uma ou duas filmagens na China. De certa forma, mostramos o território, mas mais numa perspectiva de como Macau é actualmente. Não de forma muito realista, diria, mas penso que de certa forma mostra há um pouco da cultura local no filme. Há planos para a apresentação do filme no mercado chinês? Ainda estamos a planear essa parte. Para entramos no mercado chinês temos de ter uma espécie de aprovação prévia quanto ao conteúdo do filme. Nós não queremos alterar o conteúdo, e se passarmos nessa análise, tudo bem. Se não passarmos, também não há problema. Quando estará concluído o filme? A pós-produção deverá estar concluída este ano e a estreia será este ano ou no próximo. Como estamos a trabalhar com um distribuir norte-americano, ele já começou a vender parte do conteúdo do filme em regime de pré-venda, ainda que estejamos em processo de filmagens. É bom ter esta abertura ao mercado internacional para que o cinema de Macau não fique sempre atrás do que é feito em Hong Kong e na China. Se conseguirmos, de facto, chegar lá fora e obter alguns lucros aí os investidores locais vão ver que também podem obter algum retorno. É bom dizer às pessoas que temos outro caminho a seguir. Também gostaríamos de estar presentes na próxima edição do Festival Internacional de Cinema de Macau, mas tudo vai depender dos prazos da pós-produção.
Sofia Margarida Mota Entrevista EventosPamela Chan, directora da Taipa Village Culture Association : “Um lugar romântico” A Taipa Village Culture Association é uma entidade dedicada à promoção da Taipa Velha como destino a conhecer, não só para turistas como para residentes. Nos próximos dias 22 e 23 de Setembro, a associação promove um festival dedicado ao Japão onde não vai faltar música, artesanato e costumes nipónicos [dropcap]A[/dropcap]A Taipa Village Cultural Association está a organizar um festival dedicado à cultura japonesa. Porquê? Tanto eu como o meu sócio somos fãs da cultura japonesa. Foi essa a principal razão que nos levou a organizar este evento. Trata-se de uma cultura muito rica. Não é a primeira vez que existe uma iniciativa do género. Em 2005, Macau chegou a ter um festival idêntico mas centrado essencialmente na música. Achámos que deveríamos trazer o Japão de volta. Este evento pretende oferecer mais do a música japonesa. Queremos integrar outros elementos que caracterizam aquele país. A Taipa está cheia, por exemplo, de ofertas gastronómicas relacionadas com a cozinha macaense e portuguesa, até porque Macau está muito ligado a estas duas culturas. Nós concordamos, mas achamos que é bom promover outras culturas também. O objectivo é ter lugar para uma verdadeira diversidade cultural e trazer novos elementos à vila da Taipa. Por outro lado, a cultura Japonesa também é muito popular por cá, tanto em Macau, como na região vizinha de Hong Kong e mesmo junto das pessoas do continente. Para este evento queremos trazer elementos ligados à música, à gastronomia, e mesmo à moda e ao artesanato. Também pensamos que está na altura de promover mais laços culturais entre o território e o Japão. Através da interacção com referências culturais japoneses podemos tentar a sua inserção dentro das culturas macaenses e portuguesas. O que mais gosta na cultura japonesa? Da comida, até porque há muitos restaurantes japoneses em Macau, o que facilita este contacto gastronómico. Que actividades destaca no cartaz do festival? Vai haver muita música e muita gastronomia, mas também workshops relacionados com artesano. Vamos ter artes marciais, costumes ligados aos rituais religiosos, vamos ter quimonos e ensinar as técnicas para os vestir. Vamos ensinar ainda várias técnicas tradicionais de produção de objectos decorativos e acessórios de moda. Vai haver também um workshop de caligrafia para o qual convidámos professores para ensinar a arte de escrever em japonês. FOTO: Sofia Mota Esta é uma forma de diversificar a oferta turística do território? Tentamos promover sempre a arte e a cultura. Este ano, por exemplo, é o ano da gastronomia e nós queremos não só promover eventos ligados a este tema dentro da nossa programação, mas tentamos ainda fazer actividades culturais paralelas que possam trazer mais pessoas à vila da Taipa. Fazemos eventos especiais tanto para os locais como para os turistas. Ao ter um conjunto de eventos a decorrer aqui na Taipa conseguimos atrair as pessoas cá, mas também conseguimos promover estadias de mais tempo aqui na Taipa. Não queremos que as pessoas venham à vila só para jantar e fazer compras. Queremos que elas possam ter mais opções e que fiquem por mais tempo. Temos, por exemplo, actividades de pintura facial e outro tipo de eventos mais orientados para a família e mesmo para as crianças. Com eles, além dos turistas também queremos proporcionar mais lazer à população local. Temos rotas gastronómicas que passam por vários restaurantes para dar a provar uma variedade maior de produtos. Como associação, o nosso foco está mais direcionado para actividades artísticas e culturais. Neste momento, estamos também com projectos em que queremos envolver os estudantes do ensino secundário. Porquê esta aposta nos mais novos? O objectivo é ensinar às futuras gerações mais sobre a história da Taipa e de Macau. Já estamos a trabalhar com uma escola sino-portuguesa para estudar melhor o mercado e ver se funciona, mas acreditamos que sim, que funciona. A ideia é ajudar os estudantes a conhecer e, ao mesmo tempo, inspirar para o conhecimento da Taipa através de actividades que promovam o divertimento, como concursos, etc. A ideia é também convidar a comunidade a disfrutar da nossa terra. A próxima geração é muito importante. Tentamos educar as nossas crianças acerca da particularidade de Macau com a sua mistura entre a cultura portuguesa e a chinesa. Isto é uma coisa que temos que transmitir e reforçar. Para si, o que tem a vila da Taipa de especial? É uma vila muito única e cheia de história. Está perto de tudo e temos bons acessos. É muito diversificada e tudo de uma forma muito concentrada. É também um bom lugar para todos, para famílias, para crianças, para jovens e para casais, porque é um lugar romântico.
Sofia Margarida Mota Entrevista Manchete SociedadeEntrevista | Inocência Mata, académica: “O Homem é igual em todo mundo” Inocência Mata, professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, passou os últimos quatro anos na Universidade de Macau. Dias antes de regressar a Portugal, a académica revela o que leva de cá. Mais que a experiência de ensino, Macau deu-lhe uma nova perspectiva e maior relativização das coisas do quotidiano [dropcap]Q[/dropcap]uatro anos em Macau. O que é que leva daqui? Levo uma nova aprendizagem do outro. Aqui, não só me senti diferente como, de facto, o sou. Levo também uma aprendizagem cultural e humana que por mais que eu lesse nunca conseguiria conhecer desta forma, com o sentir na pele. Sou professora e investigadora na área das culturas. É verdade que já tinha a percepção que cada cultura tem uma lógica e o importante é entender essa lógica, independente de aderirmos ou concordarmos com ela. Temos que a entender o porquê, e só assim é que podemos interagir. Mas repito, não temos que concordar com ela. Eu, por exemplo, não concordo com todas as lógicas culturais mesmo das culturas que me são afectas. Há aspectos da cultura que são nefastos ao desenvolvimento humano. Mas o importante é entender a lógica. Nesta perspectiva, o que aprendi cá vai-me ajudar a relativizar as coisas ainda mais. Como? Já sou uma pessoa que relativiza, até porque tenho uma família feita de diferentes. Não apenas em termos étnico raciais, mas também em termos sociais. A minha avó materna era negra lavadeira e o meu avô materno era médico branco. Cresci com esta diferença e foi ela que me enriqueceu. A minha avó mal sabia falar português e o que nos contava eram histórias em crioulo e o meu avô obrigávamos a ler os clássicos portugueses. Sempre fui uma pessoa que cresceu na diferença. Além de uma vivência pessoal também estudo nesta área. O ter vivido de forma tão intensa o lugar do outro como aconteceu cá, vai certamente predispor-me para entender coisas que eu à partida recusava. Continuarei a recusar, mas já lhes entendo a tal lógica. Pode dar alguns exemplos? As relações aqui não são baseadas na confiança. Isto chocava-me imenso no início. Chocava-me só de pensar que tinha que mostrar todos os originais de documentos porque aqui se partia do princípio de que estaria a mentir. Isto era quase uma afronta. Com o tempo fui entendendo o porquê. FOTO: Sofia Mota Como é que se aprende a lidar com esse tipo de características que por vezes são, como diz, chocantes? Bem, ao princípio é a indignação e uma pessoa barafusta. Depois vai-se percebendo a lógica que é bastante prosaica. Por outro lado, acho que existe um certo autismo para se perceber que apesar do nome, a China não é propriamente o centro do mundo. Sente que essa centralidade ou essa percepção de centralidade se vive aqui? Não sei se existe esta consciência ou se o sistema social ou da administração se constrói com base nessa lógica. Mas sei que o que mais me incomoda nem é bem essa centralidade, mas sim a rasura do indivíduo. Como assim? Aqui, quando há uma norma é para ser aplicada sempre sem que se tenha em conta, alguma vez, o contexto. Não há uma adaptação. Há que ter em conta situações especiais. E o que mais apreciou por cá? Tive o privilégio de conhecer a China com chineses. Todas as vezes que estive no continente, e foram muitas, foi sempre com chineses e isso fez com que eu não conhecesse apenas a China turística. Deu-me oportunidade de, por exemplo, ir ao mercado. Foi com esse tipo de experiência que percebi que, pelo menos no continente, as pessoas se deliciam com o diferente e achei isso muito bonito. Na China, perante a diferença as pessoas são simpáticas, e olham, e perguntam. Percebo perfeitamente esta curiosidade. Existe uma pré-disposição para conhecer a alteridade. Por outro lado, esta alteridade que referi no início da conversa foi vivida de forma muito positiva. Outra coisa de que gostei muito aqui foi da comida. Em Portugal gostava muito de ir a restaurantes chineses e muitos amigos me diziam que aquilo não era comida chinesa. Aqui conheci realmente o que era. Nos primeiros tempos que cá estive, ia sozinha aos restaurantes e não gostava do que comia porque nem sabia o que estava a pedir, quando comecei a ir com amigos de cá, tudo mudou. Foi também cá que desfiz muitos mitos acerca do oriente. O conhecimento que se tem no ocidente acerca deste lado do mundo é ainda uma construção que tem por base o próprio ocidente. Existe uma invenção do oriente pelo ocidente e isso é uma coisa normal porque criamos, naturalmente, mitos acerca daquilo que desconhecemos. O que me aconteceu aqui foi um desfazer disso mesmo. Foi uma aprendizagem cultural e também uma aprendizagem do humano. Para uma pessoa que lida com culturas, quer a nível pessoal como profissional, foi uma mais-valia? Sim, sem dúvida, até porque o meu conhecimento de culturas parava na Índia. E tudo muda quando se passa do Índico. Aprendi muito. É conhecida por ser pioneira na produção de ensaios em língua portuguesa acerca do período pós-colonial. É nestes ensaios que também se debruça acerca das diferenças entre independência e liberdade. Pode ser que no espaço da língua portuguesa de facto tivesse sido “pioneira” a debruçar-me sobre este assunto. Os estudiosos das ciências sociais tinham até há pouco tempo uma certa autocensura relativamente a esta matéria. Tendo em conta África, é preciso notar que no final dos anos 50, início de 60, começaram a aparecer livros de escritores africanos que já diziam que a conquista da independência não significou a conquista da liberdade. Há dois livros que são fundamentais para perceber que esta reflexão desde as primeiras independências africanas. São “Man of the people” de Chinua Achebe, e “Os sóis das independências” de Ahmadou Kourouma, que já mostram que os sóis das independências dos anos 60 estavam bem crepusculares. Independência não é sinónimo de liberdade. Nem é sinónimo de liberdade nem é sinónimo de viragens de mentalidade e das formulações culturais. É preciso dizer que a ideologia nacionalista, obviamente necessária à conquista da independência, era uma ideologia igualmente monolítica. Era uma ideologia que não admitia a diferença. Uma coisa é a independência, e aí acho que todos os povos têm direito à sua autonomia, e outra coisa é a gestão da sociedade e as liberdades têm que ver com a gestão da sociedade e dos regimes. Não apenas dos regimes políticos, porque o regime pode ser multipartidário e ainda assim extremamente ditatorial. Também o multipartidarismo não é sinónimo de democracia. Temos exemplos: o de São Tomé e Príncipe actualmente e, até há pouco tempo, o de Angola em que havia o multipartidarismo e não se podia dizer que houvesse democracia. Há um discurso que associa o facto de se ter eleições de quatro em quatro anos ser sinónimo de democracia, e daí? O importante é a gestão interna desse complexo de diferenças que é a sociedade. É na busca destas perspectivas de poder que me interesso pelos estudos pós-coloniais. O pós-colonial não é uma categoria da cronologia, é uma categoria da epistemologia. O pós-colonial é uma categoria de análise e que tem que ver com a forma como as relações de poder se estabelecem na sociedade, sejam elas no âmbito político partidário, mas também relações de poder no âmbito de género, de classe de etnia, raça etc. É aqui que me interessa estudar o pós-colonial e estas relações de poder, e não estou a inventar nada até porque neste aspecto Michel Foucault já inventou tudo acerca de como é que estas relações se estabelecem e se actualizam na sociedade. Se nós virmos bem, estas relações de poder depois da independência, pouco ou nada mudaram. Porquê? Porque o Homem é igual em toda a parte do mundo e sendo igual na sua natureza, se não é forçado a distribuir o poder, ele não o faz. Tenho amigos que me dizem, quando se fala, por exemplo, da corrupção em Angola: “mas em França também há corrupção”. Sim, lá está, o Homem é igual em todo o lado, mas no exemplo da França há mecanismos em que o próprio sistema neutraliza muitos actos de corrupção e se falarmos da Noruega o sistema blinda mesmo esses actos. É preciso que as suas sociedades arranjem sistemas que blindem a possibilidade de corrupção. Isto não quer dizer que o norueguês seja melhor homem que o angolano, mas o norueguês já sabe que se for caçado é fortemente punido. Também estuda as relações de poder dentro das diferenças de género. Como estamos no que respeita às desigualdade e na transformação desse tipo de relação? Tenho um projecto no centro de estudos comparativos e que trata precisamente o género, a normatividade e as representações. Não se trata apenas da condição feminina. A condição feminina é realmente central mas aqui é sobretudo a ideia da normatividade e da representação vista quer no discurso literário quer na imprensa. A imprensa, nos países africanos, particularmente, é muito machista. Diz-se tradicionalista, só que a tradição é machista. Por outro lado, tenho amigas, também académicas, mas que a sua forma de se afirmarem e de serem reconhecidas é com frases como: “cozinham muito bem”. Não estou a dizer que não se faça isso, mas isto significa que os estereótipos de género vivem debaixo da pele das pessoas e elas assumem esse estereótipo, esta normatividade. Elas são excelentes profissionais mas nunca se apresentam como tal. As minhas amigas assumem o trabalho tradicionalmente associado à mulher como uma mais-valia da sua feminilidade. O que é quase um boicote à luta pela igualdade de género. São pessoas que, claro, lutam contra a violência domestica, por exemplo. No entanto, fazem um discurso que continua a confinar a mulher a um espaço privado. É isso que quero desenvolver nos meus estudos. Não é apenas a condição feminina, mas o discurso da normatividade. Trabalhar sobre a condição feminina tem de se ir além de tratar do planeamento ou do aleitamento que são assuntos muito importantes, mas não é essa a minha luta. É uma mulher da literatura. Quais são os seus livros favoritos? São tantos e isso depende muito das fases em que estou. Livros inesquecíveis: dois são de Gabriel Garcia Marques, o “Cem anos de solidão” e “Amor em tempos de cólera”. Depois, claro, “Os Maias” do Eça e o “Anna Karenina” de Liev Tolstói. Dentro dos autores africanos é “Lueji” do Pepetela. Também gosto muito da “Montanha mágica” do Thomas Mann e mesmo de “Os três mosqueteiros”. Agora, por exemplo, estou na fase de “O conde de Monte Cristo”, de como um injustiçado regressa à vida. Ensinou cultura na Universidade de Macau. Como é trazer culturas do ocidente para a China? É fantástico. Nós aqui descentramo-nos. O que nós pensamos que é lógico e evidente, aqui não é. Temos de sair da nossa cultura para que possamos olhar para ela e explicá-la. O que eu acho que estou a explicar, segundo a normalidade, não é a normalidade para o outro e é o outro que me faz ver isso. Existe uma invenção do oriente pelo ocidente e isso é uma coisa normal porque criamos, naturalmente, mitos acerca daquilo que desconhecemos.
Andreia Sofia Silva Entrevista ManchetePatrícia Mouzinho, jornalista e pintora: “O meu coração macaense está nestes quadros” Jornalista há mais de 20 anos no canal de televisão SIC, Patrícia Mouzinho sempre se dedicou à pintura, mas só em 2015 teve coragem para mostrar o seu trabalho aos outros. O sucesso de vendas numa galeria online proporcionou-lhe uma entrada bem sucedida no mundo da arte. Hoje inaugura na Fundação Rui Cunha a exposição “Meu Macau e o poder dos números”, onde Patrícia Mouzinho mostra a sua relação com o território [dropcap]E[/dropcap]sta exposição mostra a sua relação com Macau e com números. Porque é que o 8 e o 9 se tornaram nos seus números da sorte? Tornaram-se por força das circunstâncias, isto é, o facto de eu ter vivido aqui tantos anos seguidos, foram oito anos seguidos, e os meus pais ficaram mais 15 anos. Confesso que nunca liguei muito à numerologia e ao poder dos números, mas aqui em Macau é uma coisa inevitável, está em todo o lado. A partir de uma certa altura passaram a ser também os meus números da sorte e hoje evito ao máximo o 14 e o 4. Tornei-me um bocadinho supersticiosa. Escolho sempre tudo o que tenha um 8 ou 9. Ficou-me no sangue. E tem funcionado, tem tido sorte? Tenho tido sorte. Tenho visitado Macau com regularidade, esta é a minha segunda terra, para não dizer quase a primeira. Passou cá a adolescência? Sim. Estudei no colégio D. Bosco, o que na altura não era comum, e isso fez com que me integrasse facilmente na comunidade macaense. O que me traz hoje a Macau, é uma imensa alegria e chega a ser emocionante. É o voltar à minha terra para expor uma coisa que sempre foi muito minha e muito íntima. Pinto há mais de 25 anos, a pintura faz parte da minha vida, mas nunca tive coragem para abrir essa gaveta. Era uma coisa minha, que ficava na esfera dos meus amigos e família. FOTO: Sofia Mota Mas depois começou a vender trabalhos numa galeria online. Sim, mas é uma coisa muito recente. Em termos familiares há uma ligação à pintura e ao desenho, porque a minha avó era professora de desenho e o meu avô pintava. Há um relacionamento muito forte com as artes plásticas. Há dois anos fui bastante incentivada por dois amigos e resolvi colocar o meu trabalho na Saatcha online, uma galeria de arte norte-americana. Comecei a vender bastante, e a curadora principal da galeria mandou-me um email a dizer que não era muito comum as pessoas venderem tanto e sugeriu que eu aumentasse os preços das obras. E continuei a vender. A partir daí comecei a divulgar o trabalho nas redes sociais e o feedback das pessoas era extraordinário. Sou auto-didacta e só recentemente fiz cursos. É gratificante que os quadros digam alguma coisa às pessoas. Começaram a surgir convites para exposições. Às tantas, dou por mim a dizer que não tenho tempo, porque sou jornalista e não consigo dar resposta a todas as solicitações. Tive um convite para fazer uma exposição no Líbano, por exemplo, e tive de adiar. O que posso dizer é que faço tudo com o coração e enquanto me der prazer, porque, como abri a gaveta, também a posso fechar. Que lugar tem agora o jornalismo na sua vida? O jornalismo continua a ter um lugar de extrema importância, porque eu faço-o com paixão. São 23 anos na SIC, é a minha casa, onde me sinto bem, e temos um grupo de trabalho fantástico. Hoje em dia faço mais trabalho não diário, reportagens especiais, coisas que implicam outro tipo de horário, os deadlines são geridos por mim e pelo meu coordenador. O jornalismo de há 23 anos não é o de hoje. O que mudou? Mudou muita coisa. Hoje em dia temos o digital e ainda não sabemos muito bem o que vai acontecer à televisão, tal como foi concebida. Não acredito que vá acabar, porque estas coisas reciclam-se e são dinâmicas. As redes sociais, o online, a rapidez com que se devora notícias, a possibilidade de entrar na internet e procurar o que queremos já não é o jornalismo como aquele que eu comecei a fazer. Isso não quer dizer que haja um profundo desencantamento com o jornalismo, mas é óbvio que, ainda que sendo a profissão que me dá o meu ganha pão, o jornalismo está taco a taco com a pintura. O futuro, não sei. Esteve em Macau há algum tempo em reportagem especial. Pode falar um pouco sobre esse trabalho que foi transmitido na SIC? Foi transmitido há três anos. Fiz um trabalho sobre o que mudou em Macau depois da transição. Já tinham sido feitas muitas reportagens e o meu objectivo era pegar no facto de ter vivido cá, e ter uma experiência diferente, e ir à procura de coisas diferentes. Aqui fiz um trabalho de juntar a minha experiência pessoal, e o que mudou para mim, e transmiti-lo de forma a que as pessoas em Portugal pudessem sentir o que é a Macau do antes e do depois. Macau mudou muito, obviamente, mas acho que isso é inevitável. Sempre foi um território assim. Em constante mudança. Penso que sim. Muitos de nós queríamos talvez agarrar num momento e cristalizá-lo naquela altura. Macau é, sem dúvida, muito especial, mas vai continuar a ser sempre. E eu volto a Macau, passados estes anos todos (vim para cá em 1984) e continuo a sentir que a minha Macau está cá. Quando chego aqui é quase um mergulhar na minha terra, mais do que em Portugal. E isto é muito estranho. Sou de Lisboa mas tenho raízes multiculturais. Quando fui para Portugal estudar senti que aquele país não era o meu. Sentia-me bem com estrangeiros. Macau continua a ser um sítio especial, apesar das pessoas me dizerem que está horrível, que não se consegue andar na rua. Eu acho que faz parte da mudança, foi assim, é assim. Daqui a dez ou vinte anos não se sabe o que será. Temos de aprender é a arranjar alternativas e não remar contra a maré. Portugal, Londres, Nova Iorque também têm as suas coisas péssimas. Tudo isso vai estar presente nas obras que vai expor na Fundação Rui Cunha. Foram feitas de propósito para esta exposição? Sim. São obras ligadas aos momentos e à vida que eu tive em Macau, aos locais que fazem parte de Macau, uns que já desapareceram outros que permanecem, pessoas que me marcaram e momentos que tive cá. Há pormenores que têm só a ver comigo. Há um quadro que mostra uma zona de Macau e depois tem uma mesa, pequena, com três meninos, que sou eu e os meus irmãos, quando um deles partiu a cabeça. E isso está ali no quadro só para mim. O que eu quero transmitir é mesmo isso: o meu coração macaense está nestes quadros, é isso que elas podem ver e sentir. Os quadros têm acrílico sobre madeira e nos desenhos usei técnica mista. São vários trabalhos feitos de propósito para aqui. Há, portanto, coisas pessoais e outras com as quais o público se vai identificar. Exactamente. Se tiverem curiosidade eu posso explicar algumas coisas. Mas há momentos que são só meus. Voltando à reportagem que realizou. Macau ainda é um território desconhecido dos portugueses, que fica perdido no Oriente? Sim. Mas isso acontece também em relação a Goa, Malaca, por exemplo. Também nos esquecemos de Timor-Leste, por exemplo. Em algumas coisas somos demasiado concentrados em Portugal e, muitas vezes, apenas em Lisboa. Isso tem muito a ver com a maneira como o jornalismo e as pessoas divulgam o que é e o que foi Macau, Goa, e como era viver nesses sítios. Macau continua a estar no imaginário e as pessoas também têm conceitos errados. Pensa-se que é a árvore das patacas, que se fala mandarim, que é só jogo. Só quem esteve cá e viu com olhos de ver, e sentiu, é que sabe e compreende. Em relação a Portugal, e aos sítios onde nós estivemos, e estivemos aqui em Macau muitos anos, acho péssimo. Se me pergunta se a ‘culpa’ é de Macau, que não se quer divulgar e mostrar? Acho que não. Portugal é que não está receptivo. Estamos fechado no nosso mundinho, importa falar do Benfica e do Sporting, e o resto é paisagem. Mas isso também acontece em Lisboa em relação ao resto do país. Que olhar os seus editores na SIC têm em relação ao papel de Macau e China no contexto actual das relações diplomáticas com Portugal? É o olhar certo, comparando com outros meios de comunicação social portugueses? Felizmente, acho que há muita noção em termos económicos da parte do meu editor e dos meus directores. Estão muito atentos ao que se passa e sabem. Quando têm alguma dúvida pesquisam e querem saber mais. Percebem o poder e o impacto das relações diplomáticas e económicas e do facto de termos, cada vez mais, de estabelecer pontes e relações, não só com Macau, porque foi português e estivemos cá, mas também com a China. Temos um fenómeno muito giro: em Arroios, um bairro lisboeta, vivem pessoas de várias nacionalidades e a comunidade chinesa é a quarta com mais poder. As pessoas começam a querer saber mais e a perceber que é diferente um chinês de Sichuan do macaense.