Entrevista | Inocência Mata, académica: “O Homem é igual em todo mundo”

Inocência Mata, professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, passou os últimos quatro anos na Universidade de Macau. Dias antes de regressar a Portugal, a académica revela o que leva de cá. Mais que a experiência de ensino, Macau deu-lhe uma nova perspectiva e maior relativização das coisas do quotidiano

[dropcap]Q[/dropcap]uatro anos em Macau. O que é que leva daqui?
Levo uma nova aprendizagem do outro. Aqui, não só me senti diferente como, de facto, o sou. Levo também uma aprendizagem cultural e humana que por mais que eu lesse nunca conseguiria conhecer desta forma, com o sentir na pele. Sou professora e investigadora na área das culturas. É verdade que já tinha a percepção que cada cultura tem uma lógica e o importante é entender essa lógica, independente de aderirmos ou concordarmos com ela. Temos que a entender o porquê, e só assim é que podemos interagir. Mas repito, não temos que concordar com ela. Eu, por exemplo, não concordo com todas as lógicas culturais mesmo das culturas que me são afectas. Há aspectos da cultura que são nefastos ao desenvolvimento humano. Mas o importante é entender a lógica. Nesta perspectiva, o que aprendi cá vai-me ajudar a relativizar as coisas ainda mais.

Como?
Já sou uma pessoa que relativiza, até porque tenho uma família feita de diferentes. Não apenas em termos étnico raciais, mas também em termos sociais. A minha avó materna era negra lavadeira e o meu avô materno era médico branco. Cresci com esta diferença e foi ela que me enriqueceu. A minha avó mal sabia falar português e o que nos contava eram histórias em crioulo e o meu avô obrigávamos a ler os clássicos portugueses. Sempre fui uma pessoa que cresceu na diferença. Além de uma vivência pessoal também estudo nesta área. O ter vivido de forma tão intensa o lugar do outro como aconteceu cá, vai certamente predispor-me para entender coisas que eu à partida recusava. Continuarei a recusar, mas já lhes entendo a tal lógica.

Pode dar alguns exemplos?
As relações aqui não são baseadas na confiança. Isto chocava-me imenso no início. Chocava-me só de pensar que tinha que mostrar todos os originais de documentos porque aqui se partia do princípio de que estaria a mentir. Isto era quase uma afronta. Com o tempo fui entendendo o porquê.

FOTO: Sofia Mota

Como é que se aprende a lidar com esse tipo de características que por vezes são, como diz, chocantes?
Bem, ao princípio é a indignação e uma pessoa barafusta. Depois vai-se percebendo a lógica que é bastante prosaica. Por outro lado, acho que existe um certo autismo para se perceber que apesar do nome, a China não é propriamente o centro do mundo.

Sente que essa centralidade ou essa percepção de centralidade se vive aqui?
Não sei se existe esta consciência ou se o sistema social ou da administração se constrói com base nessa lógica. Mas sei que o que mais me incomoda nem é bem essa centralidade, mas sim a rasura do indivíduo.

Como assim?
Aqui, quando há uma norma é para ser aplicada sempre sem que se tenha em conta, alguma vez, o contexto. Não há uma adaptação. Há que ter em conta situações especiais.

E o que mais apreciou por cá?
Tive o privilégio de conhecer a China com chineses. Todas as vezes que estive no continente, e foram muitas, foi sempre com chineses e isso fez com que eu não conhecesse apenas a China turística. Deu-me oportunidade de, por exemplo, ir ao mercado. Foi com esse tipo de experiência que percebi que, pelo menos no continente, as pessoas se deliciam com o diferente e achei isso muito bonito. Na China, perante a diferença as pessoas são simpáticas, e olham, e perguntam. Percebo perfeitamente esta curiosidade. Existe uma pré-disposição para conhecer a alteridade. Por outro lado, esta alteridade que referi no início da conversa foi vivida de forma muito positiva. Outra coisa de que gostei muito aqui foi da comida. Em Portugal gostava muito de ir a restaurantes chineses e muitos amigos me diziam que aquilo não era comida chinesa. Aqui conheci realmente o que era. Nos primeiros tempos que cá estive, ia sozinha aos restaurantes e não gostava do que comia porque nem sabia o que estava a pedir, quando comecei a ir com amigos de cá, tudo mudou. Foi também cá que desfiz muitos mitos acerca do oriente. O conhecimento que se tem no ocidente acerca deste lado do mundo é ainda uma construção que tem por base o próprio ocidente. Existe uma invenção do oriente pelo ocidente e isso é uma coisa normal porque criamos, naturalmente, mitos acerca daquilo que desconhecemos. O que me aconteceu aqui foi um desfazer disso mesmo. Foi uma aprendizagem cultural e também uma aprendizagem do humano.

Para uma pessoa que lida com culturas, quer a nível pessoal como profissional, foi uma mais-valia?
Sim, sem dúvida, até porque o meu conhecimento de culturas parava na Índia. E tudo muda quando se passa do Índico. Aprendi muito.

É conhecida por ser pioneira na produção de ensaios em língua portuguesa acerca do período pós-colonial. É nestes ensaios que também se debruça acerca das diferenças entre independência e liberdade.
Pode ser que no espaço da língua portuguesa de facto tivesse sido “pioneira” a debruçar-me sobre este assunto. Os estudiosos das ciências sociais tinham até há pouco tempo uma certa autocensura relativamente a esta matéria. Tendo em conta África, é preciso notar que no final dos anos 50, início de 60, começaram a aparecer livros de escritores africanos que já diziam que a conquista da independência não significou a conquista da liberdade. Há dois livros que são fundamentais para perceber que esta reflexão desde as primeiras independências africanas. São “Man of the people” de Chinua Achebe, e “Os sóis das independências” de Ahmadou Kourouma, que já mostram que os sóis das independências dos anos 60 estavam bem crepusculares. Independência não é sinónimo de liberdade. Nem é sinónimo de liberdade nem é sinónimo de viragens de mentalidade e das formulações culturais. É preciso dizer que a ideologia nacionalista, obviamente necessária à conquista da independência, era uma ideologia igualmente monolítica. Era uma ideologia que não admitia a diferença. Uma coisa é a independência, e aí acho que todos os povos têm direito à sua autonomia, e outra coisa é a gestão da sociedade e as liberdades têm que ver com a gestão da sociedade e dos regimes. Não apenas dos regimes políticos, porque o regime pode ser multipartidário e ainda assim extremamente ditatorial. Também o multipartidarismo não é sinónimo de democracia. Temos exemplos: o de São Tomé e Príncipe actualmente e, até há pouco tempo, o de Angola em que havia o multipartidarismo e não se podia dizer que houvesse democracia. Há um discurso que associa o facto de se ter eleições de quatro em quatro anos ser sinónimo de democracia, e daí? O importante é a gestão interna desse complexo de diferenças que é a sociedade. É na busca destas perspectivas de poder que me interesso pelos estudos pós-coloniais. O pós-colonial não é uma categoria da cronologia, é uma categoria da epistemologia. O pós-colonial é uma categoria de análise e que tem que ver com a forma como as relações de poder se estabelecem na sociedade, sejam elas no âmbito político partidário, mas também relações de poder no âmbito de género, de classe de etnia, raça etc. É aqui que me interessa estudar o pós-colonial e estas relações de poder, e não estou a inventar nada até porque neste aspecto Michel Foucault já inventou tudo acerca de como é que estas relações se estabelecem e se actualizam na sociedade. Se nós virmos bem, estas relações de poder depois da independência, pouco ou nada mudaram.

Porquê?
Porque o Homem é igual em toda a parte do mundo e sendo igual na sua natureza, se não é forçado a distribuir o poder, ele não o faz. Tenho amigos que me dizem, quando se fala, por exemplo, da corrupção em Angola: “mas em França também há corrupção”. Sim, lá está, o Homem é igual em todo o lado, mas no exemplo da França há mecanismos em que o próprio sistema neutraliza muitos actos de corrupção e se falarmos da Noruega o sistema blinda mesmo esses actos. É preciso que as suas sociedades arranjem sistemas que blindem a possibilidade de corrupção. Isto não quer dizer que o norueguês seja melhor homem que o angolano, mas o norueguês já sabe que se for caçado é fortemente punido.

Também estuda as relações de poder dentro das diferenças de género. Como estamos no que respeita às desigualdade e na transformação desse tipo de relação?
Tenho um projecto no centro de estudos comparativos e que trata precisamente o género, a normatividade e as representações. Não se trata apenas da condição feminina. A condição feminina é realmente central mas aqui é sobretudo a ideia da normatividade e da representação vista quer no discurso literário quer na imprensa. A imprensa, nos países africanos, particularmente, é muito machista. Diz-se tradicionalista, só que a tradição é machista. Por outro lado, tenho amigas, também académicas, mas que a sua forma de se afirmarem e de serem reconhecidas é com frases como: “cozinham muito bem”. Não estou a dizer que não se faça isso, mas isto significa que os estereótipos de género vivem debaixo da pele das pessoas e elas assumem esse estereótipo, esta normatividade. Elas são excelentes profissionais mas nunca se apresentam como tal. As minhas amigas assumem o trabalho tradicionalmente associado à mulher como uma mais-valia da sua feminilidade. O que é quase um boicote à luta pela igualdade de género. São pessoas que, claro, lutam contra a violência domestica, por exemplo. No entanto, fazem um discurso que continua a confinar a mulher a um espaço privado. É isso que quero desenvolver nos meus estudos. Não é apenas a condição feminina, mas o discurso da normatividade. Trabalhar sobre a condição feminina tem de se ir além de tratar do planeamento ou do aleitamento que são assuntos muito importantes, mas não é essa a minha luta.

É uma mulher da literatura. Quais são os seus livros favoritos?
São tantos e isso depende muito das fases em que estou. Livros inesquecíveis: dois são de Gabriel Garcia Marques, o “Cem anos de solidão” e “Amor em tempos de cólera”. Depois, claro, “Os Maias” do Eça e o “Anna Karenina” de Liev Tolstói. Dentro dos autores africanos é “Lueji” do Pepetela. Também gosto muito da “Montanha mágica” do Thomas Mann e mesmo de “Os três mosqueteiros”. Agora, por exemplo, estou na fase de “O conde de Monte Cristo”, de como um injustiçado regressa à vida.

Ensinou cultura na Universidade de Macau. Como é trazer culturas do ocidente para a China?
É fantástico. Nós aqui descentramo-nos. O que nós pensamos que é lógico e evidente, aqui não é. Temos de sair da nossa cultura para que possamos olhar para ela e explicá-la. O que eu acho que estou a explicar, segundo a normalidade, não é a normalidade para o outro e é o outro que me faz ver isso.

Existe uma invenção do oriente pelo ocidente e isso é uma coisa normal porque criamos, naturalmente, mitos acerca daquilo que desconhecemos.

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