José Pedro Castanheira, autor de “Os Últimos do Estado Novo”: “Quis juntar vencedores e vencidos”

José Pedro Castanheira, antigo repórter do jornal Expresso, acaba de lançar o livro “Os Últimos do Estado Novo”, com a chancela da Tinta da China. A obra compila entrevistas e reportagens sobre os últimos momentos e personagens do regime ditatorial que durou entre 1933 e 1974. “Os Últimos do Estado Novo” faz uma “radiografia” do regime em “fase terminal”, nos meses que antecederam à revolução do 25 de Abril

Foto de Ana Brígida cedida pela Tinta da China

 

Que Estado Novo é contado neste livro?

Conta o Estado Novo na sua fase terminal. É uma espécie de radiografia dos últimos meses do regime, de como as estruturas que o sustentavam eram dirigidas. Entrevistei, por exemplo, o último director da censura, Mário Bento Soares, e também o último presidente do partido único, a ANP [Acção Nacional Popular, anterior União Nacional]. Depois encontrei o último director do campo de concentração do Tarrafal [em Cabo Verde], que era a prisão mais conhecida e tenebrosa do regime. Reconstituí o último Governo da ditadura, falei com quase todos os governantes de Marcello Caetano [último presidente do Conselho] e também com seu último porta-voz e secretário particular. Juntar todos esses trabalhos deu-me uma ideia de como o regime estava estruturado, organizado, mas também apodrecido, quase como um nado-morto. É uma radiografia dessa fase final do Estado Novo.

O regime manteve-se durante 48 anos graças ao corporativismo, às hierarquias rígidas…

Também não nos podemos esquecer que um regime que dura quase meio século também tinha algum suporte popular, evidentemente. Não há nenhum regime que dure tanto tempo sem ter uma base social de apoio. Mas houve também estruturas que o ajudaram a consolidar e a perpetuá-lo, como a existência de uma polícia política, a censura e um partido único. Havia o apoio indiscutível de vários sectores da sociedade, em particular a hierarquia católica, as forças armadas, [apoio] que se tornou ainda mais forte com o início da Guerra Colonial. Até ao seu início, houve sucessivas convulsões e tentativas de contestação por parte de facções descontentes das forças armadas, mas a partir da Guerra Colonial isso mudou completamente. Nas proximidades do 25 de Abril o regime estava em agonia, e só isso explica que um golpe militar o tenha derrubado em menos de 24 horas. As estruturas intermédias das forças armadas perceberam, ao longo dos 13 anos de Guerra Colonial, que no final desse tempo o conflito não tinha uma solução militar, e que a questão colonial passava por uma solução política. O regime não estava disposto a encontrar essa solução, e a única alternativa foi o derrube do próprio Governo.

De todas as pessoas que entrevistou, alguma mostrou arrependimento ou culpa por ter feito parte da ditadura?

Durante a minha pesquisa histórica, na qualidade de jornalista, falei com muitas pessoas com responsabilidade no Estado Novo, polícias, militares, diplomatas, censores, agentes da PIDE. Quase nunca encontrei [arrependimento]. Só houve uma pessoa que verdadeiramente se mostrou arrependido pelo facto de ter desempenhado as funções, o último director da censura. Esteve no cargo apenas 13 meses, e foi o único civil que esteve à frente dos serviços de censura, porque estes eram sempre dirigidos por militares. Mas Mário Bento Soares, que curiosamente tomou posse no Dia das Mentiras, a 1 de Abril de 1973, fez sempre trabalho parcial, o que é bizarro. Mostrou-se contrafeito, admitindo que o trabalho que fez era ignóbil e lamentando o cargo que desempenhou. Mas foi o único que teve coragem moral para reconhecer que aquilo que fez, do ponto de vista profissional, não era correcto.

Terminado o Estado Novo e o período do PREC [Processo Revolucionário em Curso], estas pessoas tiveram uma vida normal?

Falando apenas dos governantes, é surpreendente que quase todos eles tenham refeito a sua vida dentro da nova sociedade democrática. A democracia foi capaz de os integrar e incluir, e até de recorrer aos seus serviços e experiência. Dos 36 governantes que fizeram parte do último Executivo do Estado Novo, apenas quatro foram presos. Tratava-se dos governantes que tinham a tutela da Defesa e do Exército, portanto directamente ligados à Guerra Colonial. Desses, só um viria a ser julgado e condenado, o último ministro do Interior, César Moreira Baptista. Desses 36 governantes verifiquei que 22 tinham saído do país, indo para o exílio, para o Brasil, Espanha e também países como França, Reino Unido e Estados Unidos. Mas todos acabaram por regressar a Portugal e refizeram a sua vida. Muitos prestaram serviços para o Estado português continuando a viver no Brasil. Só um se recusou sempre a voltar a Portugal, que foi o próprio Marcello Caetano, que morreu no Brasil. Três governantes viriam a ser eleitos deputados por partidos democráticos, na Assembleia da República, quatro viriam a desempenhar, de novo, cargos governativos e, curiosamente, em Governos do Partido Socialista. Um deles, que vinha do tempo de Salazar, foi eleito em democracia presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Dá ideia da capacidade de tolerância do regime democrático. Oito desses governantes viriam a ser condecorados pelos Presidentes da República, Ramalho Eanes, Jorge Sampaio e Mário Soares.

Na apresentação do livro juntou Miguel Caetano, filho de Marcello Caetano, e Isabel Soares, filha de Mário Soares, perseguido pelo regime. Quis juntar diferentes lados num debate sobre o passado?

Sim. Obviamente que foi propositado e simbólico. Costuma dizer-se que dos derrotados não reza a história, que normalmente é feita pelos vencedores. Este livro recolhe os testemunhos dos derrotados. Convidei para a sessão um dos familiares dos vencedores, a Isabel Soares, e Miguel Caetano, filho do principal derrotado do golpe militar do 25 de Abril. Não se pode confundir a figura do filho com o pai, porque Miguel Caetano sempre foi um democrata e até foi bem penalizado durante a vigência do Estado Novo por participar nos movimentos católicos progressistas. Quis de facto juntar vencedores e vencidos e pô-los a falar, algo que só é possível num regime de enorme tolerância como é a democracia.

Começou a carreira de repórter em 1974. Acompanhou os tempos do PREC, investigou esse período. Como olha hoje para esse passado e para esses trabalhos?

Nunca trabalhei sob censura. Sou filho do 25 de Abril em termos profissionais. Como jornalista acompanhei, de facto, todo o PREC, testemunhando alguns dos episódios mais marcantes da revolução. Isso obviamente deu-me vantagens quando, anos depois, comecei a escrever sobre esses mesmos episódios, na tentativa de os reconstituir, de os aprofundar, revelar nas suas múltiplas dimensões.

O que ainda nos falta descobrir sobre o Estado Novo, numa altura em que se celebram 50 anos sobre o 25 de Abril? Falta compreender a ditadura?

Sem dúvida. Um fenómeno tão complexo como é uma governação tão prolongada e marcante na própria cultura, idiossincrasia do povo português, tem necessariamente de ser mais estudada e completada. Haverá sempre terreno e novas pistas para uma melhor compreensão desse meio século marcante da nossa história mais recente. Acredito que há histórias por conhecer.

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