Camané, fadista: “O Fado é uma música para a vida”

É já amanhã, pelas 20h, que Camané irá actuar em Macau, desta vez no Centro Cultural de Macau ao lado da Orquestra Chinesa de Macau (OCM). Em conversa com o HM, o fadista revela que o fado tradicional faz parte do seu ADN e do mais recente álbum, “Horas Vazias”, gravado em plena pandemia

 

O primeiro espectáculo que deu em Macau foi em 1997, portanto esta é a quinta vez que actua no território. É como voltar a uma espécie de casa?

Sim. É voltar a um sítio que ficou sempre na minha memória, graças aos portugueses, chineses e macaenses que conheci em Macau e com quem contactei na altura. De todas as vezes que estive em Macau gostei imenso do ambiente, os concertos correram todos muito bem. Esta é uma oportunidade de fazer um segundo espectáculo com esta orquestra, algo que também gostei muito da primeira vez que tocámos, em 2007. Depois actuei no Venetian em 2013, num espectáculo em que os fados foram traduzidos para chinês e inglês, e foi fantástico.

O fado é uma música traduzível?

O fado vive muito da palavra, da poesia. As pessoas identificam-se com os sentimentos, com as descrições sentimentais, da vida, da dor, do quotidiano. Pessoas de todo o mundo identificam-se com isso. As palavras também são traduzíveis, apesar de tudo, mas há uma parte que passa, que é o sentimento, a emoção, que não se explica. Quando era miúdo ouvia música francesa e não percebia uma palavra, mas emocionava-me. Muita da poesia não se explica, mesmo traduzida. São pequenas coisas que as pessoas vão, aos poucos, percebendo. A poesia não é para perceber, é para se ir percebendo.

É mais para ser sentida, talvez. O fado também é assim?

Acho que toda a música é para ser sentida. Aos poucos vamos identificando esses sentimentos que associamos à música e depois, mais tarde, tiramos conclusões, ou não. São coisas muito do momento, e acho que a música é isso. Toda a arte tem essa particularidade, de encontrarmos pequenas coisas com as quais nos identificamos.

Como é cantar com uma orquestra chinesa? Como é a conjugação de sonoridades e instrumentos diferentes com a sua voz?

Já houve uma experiência que resultou muito bem com a OCM. O alinhamento baseia-se no meu repertório. Há temas que são tocados apenas com os guitarristas e depois passamos para um tema com orquestra, fazemos esta intercalação. Em vinte temas que vou cantar, dez serão com arranjos de orquestra e com a orquestra. Acho que vai funcionar muito bem [a ligação] desta orquestra com o meu repertório. Já fizemos dois espectáculos juntos e experimentei passar uns arranjos de uma outra orquestra com a qual actuei para a orquestra de Macau e as coisas funcionaram muito bem.

Como é constituído esse repertório?

É constituído com a maior parte dos temas que tenho cantado. Tenho feito muitos concertos com orquestras e guitarristas. Mesmo em Portugal, quando vou fazer espectáculos, convido sempre uma filarmónica para tocar comigo, pois tenho os arranjos feitos. Muitas vezes são miúdos entre os 8 e os 14 anos que vão tocar comigo. É sempre muito interessante haver outras gerações a entenderem e a perceberem o fado. Neste caso, [os músicos] da OCM percebem e ficam a conhecer o fado, e acho isso fantástico. O repertório vai ser uma espécie de retrospectiva daquilo que é um percurso, com fados que têm feito parte da minha carreira. Vai haver temas diferentes daqueles que foram apresentados no último espectáculo, mas haverá outros repetidos, também.

Tal como a relação entre Portugal e China que sempre se manifestou em Macau, com alguns desentendimentos e compreensões, também é essa a relação do seu fado com a OCM? Ultrapassam-se diferenças de comunicação e de linguagem musical?

Sim. A música tem essa particularidade, é também uma linguagem universal. Os músicos vão ter os arranjos feitos e entendem perfeitamente. Claro que vão existir algumas complexidades, porque o fado tem muitas paragens que fazem parte da música, tal como no jazz, por exemplo. Muitas vezes a paragem, no fado, acaba numa sílaba. Cantei, da última vez que estive em Macau, o “Fado da Sina” que, como costumo dizer, tem paragens em todas as estações, e é incrível como o maestro conseguiu perceber, decorando as palavras com as paragens, e não houve uma falha num tema que é difícil. Acho que desta vez o maestro também vai perceber. Teremos vários dias de ensaios para que não existam falhas. De certeza que vamos encontrar uma forma de alinharmos as coisas.

Editou, em 2021, o álbum “Horas Vazias”, o seu mais recente trabalho. Porquê este nome?

Horas vazias é quando estamos livres, quando temos tempo e preenchemos um vazio. E preenchemo-lo com muitas coisas, com arte, música, coisas que nos alimentam a alma. Por acaso foi gravado na altura da pandemia, mas o nome não surgiu por essa razão. De facto, as horas vazias é também quando temos ideias para fazer um disco, e as coisas foram surgindo com o tempo. É o disco em que tive uma produção de um grande músico, que é o Pedro Moreira, que também está ligado ao jazz. Pontualmente, fomos trabalhando juntos, ele conhecia muito bem o meu trabalho, e então teve um grande entendimento do que poderia ser o álbum. É um disco de fado, mas ele percebeu, graças a todos estes anos, a forma como estou no fado.

E que forma é essa?

É uma forma em que as músicas, mesmo quando não são fáceis, transporto-as para este ambiente musical que é o fado. Não gosto de aproximar o fado das outras músicas, pois esta é uma música especial, como é o flamengo e o tango. Não é preciso aproximar-me de outras músicas, tenho é de fazer fado. Cresci a aprendê-lo e a viver com ele, e não tenho essa necessidade. Ele [Pedro Moreira] percebeu isso e foi fantástica a forma como trabalhámos juntos. É um disco que tem muitos compositores, como Pedro Abrunhosa, Jorge Palma, Vitorino, cujas composições eu transportei para este ambiente musical. Depois tem os fados tradicionais, as letras novas que fui descobrindo. É um disco que gostei muito de fazer. Neste espectáculo vou cantar alguns temas deste disco. Vou cantar temas de outros trabalhos anteriores que têm orquestrações feitas, mas vou incluir um pouco de tudo. Como é um trabalho com orquestra, faz sentido ir buscar alguns temas mais antigos, com arranjos muito bonitos de Mário Laginha, José Mário Branco, também do Pedro Moreira e de uma série de pessoas que me têm acompanhado.

Há fados que não podem escapar ao alinhamento dos seus espectáculos. Muitas vezes impõe o seu repertório, ou vai um pouco na onda daquilo que o público quer?

Não. Incluo, acima de tudo, o meu repertório e alguns temas que as pessoas conhecem, como “Sei de um Rio” ou “Ela Tinha uma Amiga”, mas há vários que gosto de cantar. Mas, normalmente, faço as coisas em que acredito, dou às pessoas aquilo que quero e em que acredito. Tenho sempre a esperança de que se identifiquem ou gostem. Claro que há temas que vão de encontro aquilo que as pessoas querem ouvir, e às vezes há dois ou três temas do meu repertório que gosto de cantar e que fazem parte de coisas que gosto muito de cantar, porque tenho tanto prazer a fazê-lo que acho que isso passa para o público. Mas são poucos.

Quando actua no estrangeiro sente que não leva apenas o nome Camané, mas também a língua e a cultura portuguesa? Sente essa responsabilidade?

Este ano aconteceram-me coisas fantásticas [com espectáculos] em que não havia muitos portugueses nas salas, nomeadamente na República Checa, na Polónia, na Áustria. Mas não penso muito nisso. Faço a mesma coisa quando vou tocar nestas salas fora de Portugal, em que sei que não existem portugueses, do que faço em Portugal. A música emociona e essa é a tal coisa que não se explica, e a barreira da língua ultrapassa-se com a música.

Como acha que os chineses percepcionam o fado?

Não sei. É como quando oiço música e sinto que há qualquer coisa que é verdade, que é muito expressiva e emociona-me. Evidentemente há muita música no mundo que gosto e da qual não percebo a língua. Quando ouvi música chinesa em Macau [ópera], e outras coisas mais populares, gostei imenso. A língua é mesmo uma barreira ultrapassável. Conta muito a entrega e a capacidade que temos de transmitir as emoções. Isso é o mais importante, e tenho tido sorte até hoje. Não gosto de falar de mim nesse aspecto, mas a verdade é que as pessoas se emocionam e não percebem uma palavra do que estou a dizer em palco.

Continua sempre ligado ao fado tradicional? É contra dar novas roupagens ao fado?

Não sou contra nada. Há coisas que estão muito bem feitas nessas áreas, mas a minha forma de estar no fado é que tem a ver com esse percurso que tive. Cresci no meio do fado, comecei a ouvi-lo com seis anos, tenho 57 anos. Não quero mudar nada porque é algo que tem a ver comigo, e o fado é uma música para a vida. Acontece com pessoas mais novas do que eu, ou que estão agora a começar, que tendem a tentar que o fado se aproxime das outras músicas, porque querem chegar a um público maior. É uma opção, mas para mim não. Também há quem faça música inspirada no fado, mas isso é outra coisa. A Ana Moura fez discos de fado fantásticos e teve outras opções. Não digo que sou contra, mas eu não mudo. Percebo que as outras pessoas tenham outras influências. Claro que já fiz outras coisas, fiz uma participação nos Humanos [grupo que gravou canções de António Variações], participei em discos dos Xutos & Pontapés. No final deste disco, por exemplo, tenho um conjunto de cordas inserido num tema, mas o ambiente musical, para mim, é muito importante, e esse é o fado.

Ao fim de tantos anos de carreira, o fado tem representado coisas diferentes para si?

Tem toda a importância na minha vida, é uma forma de estar na vida. Tem sido sempre uma motivação.

Em Macau, há grupos que tentam manter o fado ou o folclore vivo. São importantes estas expressões de portugalidade noutros lugares?

Super importante. Isso acontece em várias partes do mundo em que há uma ligação muito forte com Portugal e com a língua. Em Macau, na altura em que estive aí, assisti a algumas coisas ligadas ao fado, e achei fantástico. É importante que essa ligação cultural se mantenha.

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