FAM | Espectáculo de “Os Três Irmãos” com coreografia alterada para evitar nu integral

Victor Hugo Pontes, coreógrafo: “A alteração não desvirtua o espectáculo”

Apresentado no Festival de Artes de Macau a 18 de Maio, o espectáculo “Os Três Irmãos”, com coreografia de Victor Hugo Pontes e texto de Gonçalo M. Tavares, teve de ser adaptado a pedido do IC para evitar o nu integral em palco dos três bailarinos. O coreógrafo diz compreender e não querer fazer imposições do foro cultural às autoridades de Macau

 

“Os Três Irmãos” foi apresentado em 2020 em Portugal, em plena pandemia. Foram feitas algumas adaptações na transposição do espectáculo para Macau?

Não. O espectáculo é, essencialmente, o mesmo. Foi criado exclusivamente para estes três intérpretes, com um texto original de Gonçalo M. Tavares, e escrito concretamente para estes três bailarinos, Válter Fernandes, Paulo Mota e Dinis Duarte. Nesta apresentação em Macau são os mesmos três intérpretes, pois para mim não fazia sentido substituí-los, uma vez que a peça foi escrita para eles. A única alteração que existe tem a ver com uma das cenas. O espectáculo trata da relação entre estes três irmãos e da sua proximidade, intimidade e conflitos, à medida que vão desenrolando o passado. Uma das cenas de intimidade é quando tomam banho juntos e se lavam uns aos outros. Nesta versão de Macau não existe nudez integral. Essa parte terá de ser adaptada, quando em Portugal os três intérpretes ficam completamente nus. Isso não vai acontecer em Macau.

Essa alteração foi feita a pedido do Instituto Cultural (IC)?

Sim, a pedido do IC.

Quais foram os argumentos apresentados?

Penso que existe uma quota para nudez nos espectáculos e, no nosso caso, essa quota já tinha sido ultrapassada. Parece que tem de ser feita uma certa gestão em todos os espectáculos em que há nudez. Acredito que tenha a ver com a questão cultural, extremamente forte, em que a nudez não é ainda um lugar-comum, e que, para não criar demasiados constrangimentos entre a plateia e a programação, tenham de fazer uma certa selecção.

Como coreógrafo incomoda-o ter de fazer essas alterações?

Tento perceber o contexto cultural em que estou inserido. Há quem diga que a dança é uma linguagem universal, mas não acredito que seja, porque há códigos específicos que querem dizer coisas diferentes, dependentemente se estivermos no Oriente ou Ocidente. A dança não é, portanto, uma linguagem universal como tantas vezes é dito. Quando apresento um espectáculo numa outra cultura, gostaria que essa cultura pudesse aceitá-lo como é, mas não quero de forma nenhuma fazer imposições. Sinto que essa alteração não desvirtua o espectáculo, é pura e simplesmente simbólica sem ser estrutural. Sinto que vou ao encontro [do pedido], tentando sempre compreender o outro lado, embora nem sempre concorde, no sentido em que a minha cultura é outra e estou habituado a uma série de hábitos a que Macau não estará, e tenho de respeitar. Temos de criar uma sociedade mais una, e para isso teremos de esbater algumas barreiras, mas temos depois as questões de identidade, que têm a ver com as pessoas e a forma como se relacionam com o corpo, a nudez, a intimidade ou privacidade.

Gonçalo M. Tavares escreveu este texto com base numa encomenda. Como decorreu o processo criativo deste espectáculo?

Fomos discutindo os temas que queríamos abordar em conjunto. Foi escrito nesse sentido, tendo como ponto de partida estes três intérpretes. Chegámos à conclusão de que poderiam ser irmãos. Interessava-me explorar as relações da família nessa peça, e dada a proximidade etária, sentimos que a relação mais próxima que poderiam ter seria sempre de irmãos, ou de pais e filhos, mas aí teriam de estar no campo da representação, um acto que não me atrai. No teatro gosto deste lado da verdade, em que os actores têm a mesma idade dos personagens, sem que haja a ideia de que estou a fazer de conta que sou outra pessoa e outro corpo.

Porquê abordar relações familiares? Neste espectáculo parecem ser relacionamentos tensos.

Isso tem a ver com o universo do próprio Gonçalo M. Tavares. É uma escrita densa, sombria, e o espectáculo caminha também nesse sentido. Quando partimos da ideia de família não foi dada nenhuma indicação de que teríamos de ir por aí. Interessava-me falar da família porque era uma questão que vinha sendo abordada de forma ligeira noutros projectos. Trabalhei antes, por exemplo, com crianças que estavam institucionalizadas e que, por isso, não tinham família, e aí dei-me conta da sua importância na estruturação de um indivíduo. Depois fiz “Drama”, que se baseia numa família disfuncional. Interessava-me continuar a pesquisar sobre a ideia de quais as relações que temos uns com os outros e que laços nos unem, se são de sangue ou de proximidade.

E os três irmãos deste espectáculo estão, precisamente, em busca dos antepassados e de compreender as suas origens.

O Gonçalo [M. Tavares] coloca-os num não-lugar, à procura dos pais, que não sabem onde estão. O texto foi escrito durante a pandemia, em que muitas pessoas perdiam os familiares e não podiam despedir-se deles, muitos elementos da família ficavam sem esse elemento de luto. Juntaram-se, assim, esses dois universos, em que estes três irmãos estão nesse não-lugar e, enquanto procuram os pais, quase que escavam o seu passado e vêm à tona todos os conflitos, tensões e proximidade que têm nesta relação que é muito de amor-ódio. Isso faz com que tenham um final trágico. É um espectáculo bastante forte nesse lado familiar. Eles fazem uma série de sacrifícios perante o pai, como figura de autoridade máxima.

Como foi transpor esse universo denso para a coreografia?

O Gonçalo M. Tavares escreveu um texto dramatúrgico, semelhante a uma peça de teatro, e começamos exactamente por aí, por tentar fazer o espectáculo como se fosse teatro, tendo havido a memorização de texto por parte dos intérpretes e uma análise cena a cena, tentando perceber quais os conflitos e discussões entre os personagens. Depois tentámos ir abandonando o texto, deixando a acção por detrás desse conflito. No espectáculo há o plano do texto projectado em legendagem, e depois o texto que não é dito, mas sim interpretado pelos bailarinos. Esses dois planos existem ao mesmo tempo. Esta dança, estas qualidades físicas, os episódios de tensão, foram criados a partir das imagens geradas pelo texto e pelas próprias acções descritas no texto.

Já com o distanciamento temporal face à estreia do espectáculo, em 2020, como olha hoje para esse processo criativo?

Parece que foi numa outra vida, porque o ser humano tem capacidade de se adaptar muito rapidamente às circunstâncias mais adversas, e também a novas circunstâncias. Partimos de um universo em que não nos podíamos tocar e, em dois anos, voltámos à normalidade, em que imaginar um tempo em que usávamos máscara e não nos podíamos cumprimentar com um beijo parece fazer parte de um filme de ficção. O espectáculo foi construído num contexto muito próprio, em residência artística comigo e os três bailarinos. Portanto, não se nota que foi feito durante a pandemia, pois feitos os testes ficámos a trabalhar numa equipa muito pequena e retomámos essa proximidade. O espectáculo foi construído sem consciência de pandemia. Os laços dos próprios intérpretes ficaram muito fortes devido a essa convivência.

É a primeira vez que “Os Três Irmãos” é apresentado fora de Portugal. Que expectativas tem no seu acolhimento em Macau?

Sim, é a primeira vez. O espectáculo circulou mesmo muito em Portugal, foi bastante apresentado. Penso que pode ser bem recebido em Macau. É um espectáculo duro, que deixa o público em apneia durante 1h30, porque fica muito ligado a ele, mas depois consegue descomprimir dessa tensão no final. De certa forma, potencia o universo do escritor Gonçalo M. Tavares, com a materialização das palavras em cena, um elemento muito forte. Penso que pode interessar muito ao público em Macau.

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