Aragens & Divergências

20/05/2017

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]um maravilhoso livro de entrevistas o idoso Marcel Conche, provavelmente o exegeta dos pré-socráticos em França, confessa, aos 80 anos, que o encontro intelectivo com uma jovem mulher aos 78 anos abriu brechas na sua vida de sage.

Ela, pouco afeita às venerações académicas, chegara aos pré-socráticos por via do Oriente e procurava relações de parentesco entre os feixes conceptuais da filosofia clássica e os do sufismo e do taoísmo, que conhecia de forma erudita. O abalo foi grande e Marcel Conche, que se pensava jubilado e à beira do elevador que lhe alçaria directamente a alma ao sétimo céu, descobre-se aos 80 anos com faltas de ar e a estudar o sufismo e o taoísmo com o afinco dos vinte, para uma revisão implacável das pautas e do repertório adquiridos por décadas de estudo. Anos depois, após esforçar-se no chinês e no taoísmo, Conche lançaria um livro sobre Lao Tse. Imagine-se a energia que pode ter alguém com o ímpeto para aos 78 anos se lançar na aprendizagem do chinês e surfar entre nuvens no Lao Tse!?

E eis uma filosofia à procura de si mesmo, sem parapentes, que não teme lidar com as lacunas e dúvidas em que a despenham as aporias do impasse.

Pode a literatura ter menos honestidade? Pedir menos coragem? Vitorino Nemésio, Luis Lezama Lima, Jaroslav Seifert, Ted Hughes, ou Zbigniew Herbert não empalideceram com a idade e escreveram obras notáveis naquele que para muitos é um período de senectude.

Há que nos libertarmos do «complexo Rimbaud». O que importa é – cientes de ser a arrogância, como dizia Tchekov, uma qualidade que fica bem aos perus – avaliar a parcela de verdade que cada homem aguenta. Quanto menos auto-indulgência mais possibilidades se abrem de tornar-se mais extenso o arco da sua fecundidade poética.

Vem isto a propósito de uma figura deste jaez que aterrou aqui em Maputo e que proporcionou um diálogo de alta voltagem sobre “Literatura, Cultura e Identidade”, com um parceiro local e igualmente um excelente escritor, o João Paulo Borges Coelho. Falo de Helder Macedo.

O diálogo foi uma aragem que entusiasmou todos os presentes na sala do Instituto Camões. Eloquência, espontaneidade, conhecimento e um elegante curto-circuitar dos estereótipos sobre os temas em presença, precederam a abertura do diálogo ao público, que terminou em contágio e em semi-levitação e até a interrogar aspectos que são tabu para a terra.

Helder Macedo demonstrou porque na viragem para os oitenta lançou três dos seus melhores livros – Tão longo amor, tão curta a vida, romance, Romance, poesia, e Camões e outros contemporâneos – e promete não parar na sua “desmedida”. O Borges Coelho, o escritor moçambicano que prefiro, cortês e vivaz, foi um bom parceiro nesta viagem.

Este debate, a pretexto da diversidade cultural no centro das convergências linguísticas, foi apoiado pela Gulbenkian – representado pela doutora Helena Borges -, e trouxe igualmente a Maputo outra figura, Elias José Torres Feijó, um filólogo galego, que actualmente é professor titular de Filoloxía Galega e Portuguesa na Universidade de Santiago de Compostela (USC), onde dirige o grupo de investigación GALABRA (que trata dos sistemas culturais galego, luso, brasileiro e africano de língua portuguesa) e preside à Associação Internacional de Lusitanistas, e a cuja palestra infelizmente não pude existir.

Mas qual o sentido de falar-vos disto?

Ē que esta mesma equipa, incluindo desta vez na comitiva o Borges Coelho, deslocar-se-á a Macau, em Julho próximo, para novos actos de prestidigitação e para exercer a inteligência com as suas artes de Cícero. Os macaenses que se previnam!

23/05/2017

Escreveu Andy Warhol, em 1975: “O bom deste país é que a América começou a tradição pela qual os consumidores mais ricos compram essencialmente as mesmas coisas dos pobres. Podes estar a ver televisão e ver a Coca-Cola e podes saber que o Presidente bebe Coca-Cola, Lyz Taylor bebe Coca-Cola, e pensar que tu podes beber Coca-Cola. Uma Coca-Cola é uma Coca-Cola e nenhuma quantidade de dinheiro pode brindar-te uma melhor Coca-Cola do que a que está bebendo o mendigo da esquina. Todas as Coca-Colas são iguais e todas as Coca-Colas são boas”.

Suspeito que o inferno climatizado em que, neste momento, se vive nos States começou nesta pequenez (esperemos que ao menos Warhol tenha recebido algum dinheirinho da Coca-Cola para exibir um “raciocínio tão elaborado”), que à altura parecia, paradoxalmente, uma mensagem de verdadeiro afã democrático.

Alguma arte começou a baixar os braços com a Pop Art que, apesar da legitimidade dos seus melhores elementos, abriu a caixa de Pandora mediante a qual um vendaval de lixo tonitroante invadiria o mundo, segregando uma tendência à uniformização e ao homogéneo que fez da universalização do consumo uma celebração sem restrições ao mesmo.

O resultado foi a pós-verdade e o botãozinho em que Trump carrega para ver chegar o mordomo com a sua Coca-Cola (gosto que divide com o Red Bull).

Como preveniu Adorno, o ganho com a “industrialização da cultura” tem por creme uma trivialização que envenena.

Trump é o expoente de uma educação calibrada pelos valores da cultura de massas, reduzida a níveis tão baixos que beber uma Coca-Cola ao meio-dia da tarde representa uma espécie de turismo da “ialma”, sendo o epítome da inconsistência que tem a sua expressão na forma airosamente espectacular como hoje se confunde o público e o privado. Daí que pareça normal ao casal presidencial americano ir a Israel exibir em público as suas desavenças.

Até gostei da atitude da Melania quando, vendo que o marido lhe dava a mão só para imitar o outro casal, lha sacudiu, rejeitando a mentira, a hipocrisia.

O problema é que aquele cenário não era o do Big Brother. Ou era? Fétido o clima. Parece que a negociata das armas foi boa – mas virá primeiro o impeachment ou o divórcio? Aceitam-se apostas.

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