Trabalho de Casa

20/08/2017

[dropcap style≠’circle’]I[/dropcap]a-se a banhos. Quando se vive nos trópicos isso deixa de fazer sentido. E então, por alternativa, vai-se a Macau. Será o meu caso. Eis-me (quase) de véspera.

Inquieto por ir a Macau. A Marlene Dietrich já não deambula pelas imediações e dizem que quem viaja leva consigo as suas paisagens como dantes os viajantes costumavam levar consigo os seus penicos  de porcelana. Falta-me o penico. Bom, há as sombras chinesas. Gosto de sombras, sobretudo ao vento.

Ocorre-me um episódio que contou o John Cage. Na sua infância, houve um amigo do pai que, findo o jantar em família, à despedida lhe desarrumou o cabelo, enquanto lhe anunciava, Rapaz, falei com os teus pais e, como no próximo sábado vou à Grécia e não me apetece ir sozinho, levo-te. Mas os gregos detestam quem lá vai e está desinformado, tens uma semana, vê o que podes fazer. Cage correu para a biblioteca do bairro. Devorou o Homero, O Banquete e o Timeu do Platão, leu o Hesiodo e uma História da Grécia. No sábado acordou às cinco da manhã e fez a sua mala. Remoeu uma ode de Píndaro, que havia decorado, para o caso de lhe ser perguntado. Ainda hoje poderia esperar sentado. O amigo do pai não apareceu. Em casa ninguém pronunciou uma sílaba para abordar a banhada, o homem ou a viagem. Sentiu-se ludibriado. Ou pior, devastado. Porque entretanto tinha lido o Homero e nunca mais foi o mesmo.

Isto é que é pedagogia!

Pus-me eu também a ler sobre a estética Taoista. Estou tramado.

Quando o Camilo Pessanha por lá se imiscuía – entre esteiras de ópio e a fala em papel de arroz de uma rapariga com nome de águia – Macau, como todas as províncias, devia ser madrasta, no sentido em que arruinava as liberdades. Há duas formas de arruinar a liberdade. Por coacção da lei e dos costumes, sob o ritmo dos não-ditos, ou quando se constata que executar o nosso livre arbítrio não muda nada, ou muito pouco. Aí, um tipo, como dizia o Pessoa, “liberta-se para dentro.” Foi, cheira-me, o caso de Pessanha.

Libertou-se em primeiro lugar do corvo do tempo. O tempo é um corvo que bebe o nosso sangue e se alimenta das escórias que nos navegam as vísceras. E bica e bica até romper os tecidos. Porém, na China, Pessanha aprenderá que afinal a vida é consumação e retorno. Mudam-se as aparências mas não o miolo de que são feitas. Pelo que podemos candidatar-nos a beber igualmente nas veias do tempo, sugando-lhe o seu extremo vagar.

Aí o tempo liberta-nos, vai incomodar outros.

Não sei se é isso que irei fazer a Macau. Mas não falo cantonês e o meu inglês é a gaguez do hamster que encontrou o urso polar. E gostaria de lá ter ido com menos cabelos brancos e menos apegado à Circe.

Macau, la petite, espera-me.

21/08/2017

Fazendo o trabalhinho de casa para aterrar em Macau com um olhar menos esbugalhado do que é costume vi-me embutido na paisagem que descrevo no soneto:

A gorda ou o combate de estéticas: “Cada pernoca vale o velame de um iate / inflado em carne por ser nela o vento interior /aos tecidos. O tom de pele é mate. /É o namorado quem recheia // com chocolate o montanhoso pico /do sorvete, e, a avaliar p’lo entusiasmo /com que lhe enche de ideogramas/ a baunilha, aprecia. ‘Tico-Tico sardanico… ‘, //mimoseia o aventureiro. Não caberia/esta imperiosa coxa num haiku japonês /escrito por sindico e que, delicado, só sugira… //Ou traria à liça embondeiros, tsunamis, /e a onda de Hokusai, que, pasma, mira/o prenhe refego do Índico? “

22/08/2017

A propósito de chegar aos lugares tarde, recordo outra história. A de Marcel Conche, o grande especialista francês dos pré-socráticos. Julgava-se o erudito aos setentas e muitos aposentado. E então começa a receber cartas de uma jovem de trinta, da Sardenha, a Emily. As cartas eram atordoadoras, de prolixas e belas. Propunha-se a jovem a examinar com ele os subterrâneos vasos comunicantes entre os pré-socráticos, os sufis e os taoistas. E como não queria perder tempo aterrou em Paris.

Foi uma ventania que fez soar todos os carrilhões adormecidos na líbido embalsamada de Marcel. Em dois meses viu-se o filósofo várias vezes nu (salvo seja) e arrastado pela lotaria do pensamento. A sageza foi à viola, tudo o que ele pensava comandar. Num ápice, intempestivamente como havia chegado ela partiu. Deixando o filósofo a nu (salvo seja) com as suas insuficiências. Oh pá, se o objecto do desejo se escapuliu entre os buracos da chuva há que fazer das tripas coração! Foi o que fez o pobre Marcel. A dobrar os oitenta foi aprender chinês e aos oitenta e cinco lançou uma tradução mais comentários ao Tao te King, de Lao Tse. Parece que o livro é notável.

Acho esta história um exemplo. Era esta a coragem que desejava para mim. Mas temo que o meu coração não passe de um fruto, não seja uma tripa.

23/08/2017

Transcrevo: “o confucionismo parte do pressuposto de que o homem é bom. Pelo contrário, no Ocidente, hoje, toda a organização social se baseia no pressuposto de que o homem é mau: homo homini lupus. Uma profecia que se autoconfirma. Quando as relações humanas se estabelecem pensando que o homem é mau, o homem acaba por sê-lo… “. Sou interrompido pela minha filha que há dois dias trauteia em voz alta, sem piedade (ensaia para algum Got Talent) , uma canção dos Abba. Infatigável.

Calma, o homem é bom, não há tensões entre o homem e a sua incógnita.

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